Itens
Tema é exactamente
Juventude Operária Católica
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Junho de 2022
Maria Angelina Ferreira
Entrevista realizada a Maria Angelina e José Manuel Ferreira em São Roque, em junho de 2022 P: Podemos começar pela Angelina? A Angelina nasceu aqui? Angelina Ferreira: Nasci em São Roque. Não foi nesta zona, foi no centro da Freguesia. Nasci em 1952 e lá cresci e estive na escola primária. Só fiz a escola primária porque depois o meu apreço e interesse pela costura foi muito grande e eu fui aprender costura. P: A sua mãe já era costureira? Angelina Ferreira: Não, a minha mãe era operária fabril aqui em São Roque, na Sociedade Corretora, que era uma fábrica de conserva de peixe, de atum. Era uma fábrica que sempre trabalhou com muita gente, mas que agora está.... P: Muitas mulheres imagino. Angelina Ferreira: Muitas mulheres, não só que São Roque mas de outras freguesias. P: E o seu pai? Angelina Ferreira: O meu pai também trabalhava na mesma empresa, mas era motorista de camião. P: E também nasceram aqui? Angelina Ferreira: Sim P: A família foi sempre daqui? Angelina Ferreira: Sim, sempre daqui e nunca renegamos a freguesia. P: Porque é que foi para a costura? Angelina Ferreira: Porque sempre gostei de costurar. P: E foi logo que acabou a quarta classe? Angelina Ferreira: Eu ainda estava na escola, porque no tempo em que eu estudava era preciso fazer um exame de admissão para ir estudar. A minha irmã tinha ido estudar, os meus pais também queriam que eu fosse, e eu ainda estava na escola. Fazia-se o exame em Ponta Delgada, aqui na escola primária de São Roque, e claro a minha mãe mandou fazer um vestido a uma costureira para eu ir fazer o exame. Entretanto eu pedi logo à senhora para ficar lá, mas fiz o exame e passei com muito bom resultado. P: Ficou a aprender costura.... Angelina Ferreira: Fiquei a aprender costura. P: Tinha 9 anos, 10 anos? Angelina Ferreira: Não, onze, porque naquele tempo, eu sou de 52, só se ia para a escola depois de fazer os 7 anos e eu fiz 7 anos em Janeiro e entrei em outubro. Portanto já saí com 11 anos feitos da primária e do exame de admissão ao liceu. P: E depois ficou na costura? Angelina Ferreira: Fiquei durante 4 anos e com 15 anos comecei a trabalhar por minha conta. P: Como é que era? Era modista? Tinha um ateliê? Angelina Ferreira: Aqui não havia assim estilistas, era só as chamadas costureiras e eu considero-me uma costureira. P: Mas era em casa? Angelina Ferreira : Era em casa e sempre trabalhei em casa. P: E trabalhava para pessoas individualmente ou para empresas? Angelina Ferreira: Para pessoas individualmente e com um grande leque de clientes que ainda hoje tenho. P: Então foi uma vida inteira? Angelina Ferreira: Uma vida inteira e nunca me arrependi e ainda hoje faço. P: Foi a sua profissão sempre, sempre aqui em São Roque? Angelina Ferreira: Sempre em São Roque, na casa dos meus pais. A casa era grande, mas não era suposto eu trabalhar em casa, não tinha lugar próprio. Era num quarto e ensinei muitas miúdas. Naquele tempo as mães queriam que as miúdas fossem aprender costura, cheguei a ter sete miúdas ao mesmo tempo. Agora trabalho sozinha. P: E depois quando se casou, passou a trabalhar na vossa casa? Angelina Ferreira: Eu fiquei em casa dos meus pais, porque tinha a minha avó. Eu cheguei a ter as duas avós, do lado materno e do lado paterno, lá em casa. Primeiro morreu a mãe da minha mãe e depois...A minha avó paterna é que me criou, porque a minha mãe trabalhava e eu ficava sempre com ela. Eu tinha uma afeição, um amor muito grande pela minha avó. Fiquei sempre na casa dos meus pais, porque o meu pai, naquele tempo quem tinha uma casa era pronto... O meu pai tinha aquela casa e não queria vende-la e não queria que eu construísse outra e, atendendo a que a minha avó precisava dos meus cuidados e a minha mãe já tinha morrido, eu fiquei sempre com o meu pai e com a minha avó, e com o meu marido. Os meus filhos nasceram na mesma casa e depois do meu pai morrer é que construímos esta casa. P: Então e o José Manel também nasceu aqui em São Roque? José Manuel Ferreira: Nasci nesta freguesia, em 23 de Abril de 1954. A minha mãe era doméstica e o meu pai era funcionário público, trabalhava na alfândega de Ponta Delgada. Fiz a quarta classe também aqui, depois fiz exame de admissão ao liceu e à escola Industrial. Optei por ir para a Escola Industrial, porque o liceu não me cheirava muito bem, era mais do tipo dos Fifis, e então fui para a escola Industrial. Tirei o curso de contabilidade em 1971 e comecei a trabalhar, naquela altura. Depois encontrei aqui esta moça ... Angelina Ferreira: Eu não me esforcei ... P: Como é que se conheceram? Angelina Ferreira: Foi nos encontros da JOC. José Manuel Ferreira: Conhecemo-nos e ainda estamos atados. A minha mãe foi sempre dona de casa. Foi quem nos criou. Era uma mulher assim muito metódica. A minha mãe tinha que nos arranjar para quando o meu pai chegasse a gente estar todos limpinhos, todos arranjados.. A gente não se podia sujar nessa altura. A diferença de mim para o meu irmão são três anos. Está a ver o que é, a gente de vez em quando tinha aquelas turras e aquelas coisas entre nós e depois a minha mãe quando o meu pai chegava a casa... O meu pai era uma pessoa muito mais aberta do que a minha mãe. A minha mãe era assim mais fechada e às vezes o meu pai chegava a casa e a minha mãe dizia-lhe assim: Oh Zé (o meu pai era José Jacinto), os rapazes fizeram isto e aquilo, contava a história toda sobre o que a gente fez. E o meu pai respondia: Armanda, quem é que estava em casa? Não eras tu? Então tu é que tinhas de os repreender. O que é que eu vou fazer agora? – portanto, ele era assim muito aberto. P: Naquele tempo não era comum, pois não? José Manuel Ferreira: Não era muito comum. O meu pai era muito mais aberto que a minha mãe. A minha mãe era mais metódica, mais miudinha, mais fechada, mas pronto ela é que nos criou. Na altura, também vivi na casa dos meus avós. Ainda conheci uma bisavó. Depois a minha bisavó faleceu e eu não quis ir vê-la, porque gostava muito dela e não quis ir vê-la. Depois faleceu o meu avô que gostava muito de mim. E tive assim uma história assim um bocado atrapalhada, porque de 27 de Março a 5 de Abril faleceu o meu avô e o meu pai, e eu fiquei assim, naquela altura... A minha avó ficou viva e eu fiquei o único ganhando para a casa. Portanto, comecei novinho, não tinha 20 anos ainda, ia fazer 20 anos. O meu pai morreu a 5 de Abril e eu fiz 20 anos a 23 de Abril. Fez-me bem, porque fui crescendo. Aliás, porque quando o meu pai estava doente e não podia já ir às compras ao mercado, eles faziam-me uma nota e mandavam-me ao mercado e eu dizia: Mas eu não vou saber fazer isto. Vais, porque tens que ir aprendendo. Portanto, foi assim o meu princípio de vida. P: Então e a participação na JOC, começou quando? Angelina Ferreira: Eu tinha 18 anos e com 20 anos quando fui ao Conselho Nacional da JOC. Eu tinha começado na JOC com 16 ou 17 anos. P: Era aqui na freguesia? Angelina Ferreira: Era na freguesia e ao sábado tínhamos o Conselho Regional em Ponta Delgada. Não era bem Ponta Delgada, era em São Pedro, havia lá uma sede. P: E também participava o José Manuel? José Manuel Ferreira: Eu entrei ia fazer também 18 anos. Entrei também para a JOC. P: Para o mesmo grupo? Angelina Ferreira: Não, havia o masculino. José Manuel Ferreira: Era na altura da separação, mas nós tínhamos reunião ao sábado. Também entrei em 1971. Fazia cá em cima a reunião aos sábados e depois fazia o regional lá em baixo, em São Pedro, em que nos reuníamos todos. P: Então foi nesses momentos que se conheceram? Angelina Ferreira: Não, não bem nesses momentos. Veio uma moça do continente que também era da JOC e na minha casa a gente recebia toda a gente. Já conheceu a Manuela não foi? Essa moça vinha cá porque queria vir conhecer a ilha e a Manuela, como a gente tínha uma casa grande, disse-me: Olha, será que vocês podem ficar com uma moça, a [anonimizada]. E nesses encontros a gente ia dar passeios com ela e o Zé também ia e foi nessa altura. P: Então e digam-me uma coisa, os vossos pais também já tinham essa ligação com estes movimentos ou foi uma coisa nova? Angelina Ferreira: Não, não era uma coisa nova. Há muitos anos que já havia JOC em São Roque, porque o meu irmão pertenceu novinho, já tinha um grupinho, mas era só rapazes, isso acabou. Na altura os moços iam para o ultramar e depois alguns casaram e acabou. Ao fim de muitos anos, a Manuela é que veio fazer esses encontros em São Roque e eu fiquei fascinada. Na altura não saíamos muito e naquela altura era tipo uma reunião todas as semanas. E foi quando começou. P: Não havia, só para perceber, não havia nenhuma outra associação aqui na freguesia? Angelina Ferreira: Não, de jovens não. Depois vieram os cursos de Cristandade, mas eram aqueles senhores da Freguesia mais cultos que iam para os cursos de cristandade. Nós éramos solteiros, ainda novos, não participávamos. O meu pai também não, porque a minha mãe não tinha escola e o meu pai foi obrigado a tirar a quarta classe para ter carta de condução de pesados já em adulto. Mas nunca nos impediram de crescer. P: Então e a Manuela chegou cá e como é que ela criou o grupo? Angelina Ferreira: Ela chegou cá, eu não sei se foi o padre [anonimizado], que era o padre da freguesia, que falou com algumas moças... Eu tinha na minha casa uma moça que era da Ribeira Quente e que trabalhava aqui em São Roque e não havia possibilidades dela ir todos os dias para a Ribeira Quente e ela ficou. E ela é que foi a primeira a ir. Na altura, eu estava aprendendo uns bordados numa máquina de costura na junta de Freguesia. E ela foi para aquele grupo com a Manuela e vem para casa e já: Ai Angelina, eu estive numa reunião com uma moça e eu gostei tanto. Na outra semana eu fui e assim foi. P: E o que é que era que a fascinava? Angelina Ferreira: Não sei. Eu sempre fui muito ligada à Igreja e os meus pais. Eu dizia que era uma beata. Fiz a catequese, fiz a comunhão, fiz o Crisma e dei Catequese. Fascinava-me aquelas conversas, aqueles testemunhos de vida que uma dava e outra dava. P: E quais eram os temas mais recorrentes? Angelina Ferreira: Acredite que eu já não me lembro, mas eu sei que na altura eram problemas de trabalho, de igualdade, dos que eram mais e dos que eram menos, que isso não era direito e que a gente devia lutar para haver uma igualdade. E eu já sentia que na minha casa havia isso. Porque essa moça da Ribeira Quente, só ia de mês a mês, porque as viagens eram caras e na altura não havia muitos carros, era só autocarros. E depois o irmão veio estudar e também para não ir, não podia ir para a Ribeira Quente todos os dias, também ficou na minha casa. Os meus pais sempre acolheram toda a gente e aquilo, portanto, ajudou-me a crescer e a entender. José Manuel Ferreira: Até porque a casa dos meus sogros era tipo uma pousada. Eles acolhiam toda a gente, até espanholas que trabalharam na cultura estiveram lá, dormiam e tudo. Portanto, aquilo era uma casa.... Angelina Ferreira: Elas vinham dar formação.. José Manuel Ferreira: Elas vinham dar formação pessoal e depois não havia lugar para ir para baixo e lá ficavam em casa da minha sogra e do meu sogro. Eles eram umas pessoas assim, nesse aspeto, eram muito acolhedoras e gostavam de acolher toda a gente. E depois, como eu estava dizendo, a gente principiou quando a [anonimizada] veio cá. Fomos dar uns passeios, mas já nos conhecíamos há muito tempo. E depois também tinha outra coisa, nós já nos conhecíamos antes, porque fizemos uma peça de teatro. Como estávamos na JOC, o padre naquela altura: Vamos fazer uma peça de teatro para o encerramento da Catequese e pela festa da paróquia - e foi no mesmo sítio, aqui em São Roque. E a minha sogra é que me conquistou e eu vou-lhe dizer porquê. Porque ela fez uma sopa de peixe espetacular, que nós tínhamos que comer na apresentação da peça. Eu era casado com a Angelina e tínhamos o nosso filho, que era o Jorge, o moço que depois foi para América, que era também da JOC. E eu disse: Que peixe tão bom! Se a mãe sabe fazer, a filha também deve saber. E pronto, já comecei tipo a arrastar a asa, como a gente costuma dizer. Depois fomos a uns passeios...E depois fomos num dia fazer uma discussão, no dia 4 de Setembro, eu nunca me esqueço da data. Fomos fazer uma excursão, fomos muita gente e tal e depois quando chegamos dessa excursão, a [anonimizada]: Vamos até... – a gente foi até Pico, ali em São Roque, aquela parte antes, tem uma vista à noite que é muito bonita. Diz ela: Também vou. Lá fomos todos. Subimos lá para cima e eu quando desci já desci mão dada. Já desci de mão dada. Portanto, foi o dia da excursão que aquilo começou e depois foi subindo e eu disse: Não, isto quando descer tem que levar uma volta. Então, já descemos de mão dada e a partir daí foi fazer uma caminhada. Fizemos uma caminhada juntos. Depois o meu pai esteve muito doente... E há uma outra coisa que é assim: antigamente tinha-se que falar com o pai da namorada, para saber qual era o dia que falava, quais os dias que dava e depois os pais tinham que apresentar à noiva do outro lado... A gente não fez nada disso. A gente já estava mais avançados, não se fez nada disso. Começámos a namorar e o meu pai que era muito esperto, passava de vez em conta de baixo da rua e dizia: Ai, Ai, Ai, quando eu chegar a casa.. Mas nunca me disse nada, nunca abriu a boca. Depois o meu pai esteve doente, teve que ir para o hospital. A minha mãe ficou. Então quem é que foi dormir com a minha mãe? A Angelina. Pronto, já está tudo certo, já fica tudo feito. A família já está pronta, já é tudo de casa. Essa história é assim. Na JOC, fiz um percurso a partir dos 17 anos e depois na altura ainda estava acabando mas havia a Juventude Estudantil Católica e eu fui para lá. E comecei a gostar daquilo porque aquilo tinha muita coisa boa. A gente em casa, o meu pai era funcionário público mas era dos do contra. Ele estava doente e os funcionários públicos, na altura, eram obrigados a ir por um papel na urna. E como ele estava doente, fui eu pô-lo. Depois o meu pai já conhecia a Seara Nova, já era daqueles rufiazinhos, e aquilo também mexeu com o sangue. E a maneira como eles trabalhavam, que era o ver, julgar e agir, a revisão operária. Eu não sabia fazer a revisão de vida operária porque ainda estava acabando o curso, depois é que comecei, em agosto de 1971, a trabalhar. Mas o ver, julgar e agir, aquilo já me dizia muita coisa. E depois o contato. Eu ao princípio não sou, mas depois quando começo fico muito sociável, que às vezes fico assim meio coiso... E então eu gostava daquilo, eram muito abertos aqueles encontros, a gente falava à vontade, não havia: cala-te para aí. E uma vez eu estava muito calado e o [anonimizado], que era Presidente aqui de cima, assim: Oh Zé, qual é a tua opinião? Eu disse: Eu vou-te dizer uma coisa, vai sair asneira. E ele assim: Se tu disseres uma asneira estás colaborando para que a gente aprenda também alguma coisa. E a tua asneira até pode ser uma coisa certa, como é que tu sabes que é asneira se ainda não disseste? E, portanto, aquilo ainda me pôs mais à vontade e a partir daí eu estive muito, muito mais à vontade. Fez-me crescer e ainda hoje, por incrível que pareça, ainda hoje às vezes, porque depois comecei a militar em movimentos como a Cáritas e essas coisas assim, às vezes eles começavam: ah não sei quê... e eu começava-me a rir. Agora estás sempre a rir. Isso que estás a dizer agora, isso já há tantos anos atrás já era assim. Isso não é nada de novo. Isso não é nada de novo e isso fez-me viver mais, estar mais à vontade. A JOC para mim foi uma caminhada boa de vida, uma caminhada grande de vida. Foi uma coisa que despertou algumas coisas que deviam estar adormecidas cá para dentro e foi muito bom. P: Estava-me a dizer que o seu pai era do contra, em que é que ele participava? José Manuel Ferreira: O meu pai não podia participar muito às vistas e às claras, porque senão era posto fora do serviço e o que é que ele ia fazer? O que é que a gente ia comer em casa? O meu pai, das coisas que ele mais embirrava, era ser da Legião Portuguesa, mas se não fosse era posto na rua do emprego, que era a Alfândega. O meu pai para entrar para a alfândega teve que ser através de um primo dele, que era informador da PIDE, que teve que dizer que o meu pai era muito bom rapaz, filho de boa gente e não sei quê. E avisou o meu pai: Nunca digas que és da Seara Nova ou que tens livros em casa, tu nunca fales nisso. A primeira vez que falares nisso, procura um emprego noutro lado qualquer porque.... Agora, o meu pai pertenceu à Cáritas, mais aquela que dava leite às crianças. Não era a Cáritas, era uma outra coisa, os vicentinos. O meu pai punha-se nesses movimentos todos que era para ver, porque havia ali quatro ou cinco pessoas aqui na freguesia que eram muito revirados, o pai do [anonimizado], era no seu nível uma pessoa totalmente virada, mas esse ainda estava no privado, assim ainda podia dizer alguma coisa, agora no Público não se podia falar. Falas, vais-te embora. E os filhos? Como é que fazem as coisas em casa? Não se pode fazer nada. Portanto, o meu pai ativamente não podia estar, sem ser nesses movimentos assim, que era a conferência de São Vicente de Paula, essas coisas assim. O que é que se fazia? A minha mãe ia para lá fazer leite em pó que vinha da América para dar às crianças, tinha-se que ir fazer isso. Eram as esposas desses senhores é que iam fazer, do meu pai, do [anonimizado] é que iam fazer, porque os outros... A gente tinha aqui boa gente e gente muito educada, mas era o senhor doutor. Porque depois, quando começámos a entrar através da JOC, quando começámos a entrar nisso que os senhores doutores estavam, nós começámos a discutir com eles. E havia um que claramente não sabia, que era o Dr. [anonimizado], era uma pessoa que chegou a ser vice-reitor aqui do Liceu, mas era uma pessoa compreensiva. Dizia: Não, não, o Ferreira tem razão. Não adiantava também muito mais, porque coitado também estava numa situação que não podia. Mas nessa altura a gente já batia o pezinho. O Padre [anonimizado] quando nos levava a certas coisas: Ai o senhor doutor é que sabe. Ai é? O senhor doutor é que sabe? Nós também sabemos. E eu dizia: Padre [anonimizado], nós somos capazes. Portanto, nós já fomos entrando por aí e já havia pessoas que, de uma maneira mais ou menos camuflada, nos deixavam entrar P: E o padre também deixava? José Manuel Ferreira: O Padre [anonimizado] não era uma pessoa que impusesse muito respeito, mas era uma pessoa que deixava. E para mim e para a Angelina, como a gente andava muito na JOC e essas coisas assim, era uma pessoa aberta. A gente foi-se confessar para ir para o casamento. Angelina Ferreira: Era, ele obrigava a confessar. José Manuel Ferreira: Era obrigatório confessar, mas para já a gente foi logo tirando da moda, porque era assim, os noivos que queriam confessar-se tinham que levar um fato e a noiva um vestido e eu fui de calças de ganga, aqui para as histórias... e a minha mãe: Então filho, como é? Eu vou de calças de ganga, espanto nosso. E falando do Padre [anonimizado], chegamos lá, e ele: Vocês vêm confessar-se? Sim senhora. E a Angelina vai e eu fico cá fora. E ele: Não, eu quero os dois cá dentro na minha frente. Vocês não se vão casar aos olhos de Deus? Então o que vocês vão falar, a confissão que vocês vão fazer aqui comigo é falar de vocês, da vida de vocês os dois em frente a mim e se for preciso dar alguma opinião eu dou, se não, não dou. Eu disse: Opá... Portanto, já começou também... Porque ele tinha uma maneira que estava sempre muito mau, mas para a gente era muito aberto. No dia do meu casamento, eu estava totalmente nervosíssimo, porque a Angelina não aparecia. Angelina Ferreira: O meu pai não tinha carro e pouca gente na freguesia tinha carro e era os táxis e o homenzinho do táxi atrasou-se. E eu à espera, já vestida, à espera do táxi. E o padre era muito rigoroso, mas não foi para a gente. Se saia fora de horas, ele ia-se embora. José Manuel Ferreira: E eu comecei a andar para trás, para frente, para trás, para frente e ele lá assim: Zezinho, nota filho querido, chega aqui. E eu: Já vou levar...Diga senhor padre. Porquê para trás, para frente, para trás, para frente, para trás? Não está vendo a hora? Estás com pressa? Ela vai chegar, ela não te vai deixar. Não, eu estou com pressa é porque...Calma, a Angelina vem, não há de vir. Nesse aspeto foi muito simpático. P: E a sua família Angelina, também era assim do contra? Angelina Ferreira: Os meus pais não eram assim tanto do contra, porque eram analfabetos e trabalhavam na (?), mas o meu pai era muito justo. Se a Joana tivesse necessidade de um escudo, ele emprestava. Se fosse emprestado, a Joana tinha que pagar, se fosse dado, dava. E aquilo era da natureza deles. E a minha mãe então...Mas nunca estiveram assim em movimentos. P: E aqui nesta indústria que como estava a dizer tinha muitas mulheres, nunca houve nenhuma greve? Angelina Ferreira: Não, as mulheres trabalhavam como escravas, mas não se podia fazer greve. P: Depois do 25 de Abril, se calhar... Angelina Ferreira: Depois de 25 de Abril a minha mãe... mas nunca fizeram. Mas o meu pai refilava, era um bom refilador. P: Com que é que refilava? Angelina Pereira: Quando via situações injustas. Havia muita pobreza e aquilo era uma fábrica que fazia conserva de carnes, de galinhas do albacor. E um dia, eu lembro-me, não me esqueço desse dia, cozeram muitas galinhas não sei para fazer o quê e havia os pés das galinhas cozidos e elas todas comeram e a minha mãe também comeu. Ai e depois, quando o chefe soube disse: Lurdes, eu não esperava que tu o fizesses. E porque é que eu não havia de fazer, se toda a gente fazia, se toda a gente fez e eu concordei. Porque a minha mãe era das mais velhas, mas era assim, trabalhavam como escravas e ganhava-se pouco. E o meu pai teve uma reforma muito pequenina, e ele é que foi tolo, porque tinha direito a trabalhar para ganhar como motorista e eles faziam uns descontos pelo mais baixos. E o meu pai nunca se apercebeu disso. Era o mais baixo que podiam descontar. Depois já do 25 de Abril, quando foi para a reforma, pensava que ia receber uma reforma grande e foi uma ninharia. Ele foi à Caixa Nacional de Pensões, em Lisboa, e disseram que com os descontos que tinha não tinha direito a receber mais. 52 anos que o meu pai trabalhou nessa empresa. Agora está tudo de olho aberto e a empresa foi ao fundo. P: E vocês na JOC falavam destas questões do trabalho? Ambos: Sim, sim. P: Quais é que eram os problemas que havia aqui que...? Angelina Ferreira: Exatamente, mas isso foi ainda antes de 25 de Abril, já havia. Eu lembro-me que o padre Fanhais, eu não sei se conhece, veio cá à Terceira. Eu nessa altura estava lá, antes do 25 de Abril. E ele ia cantar na Igreja da Sé, nas escadas, mas isto era proibido. A gente foi para um campo mais isolado para cantar, cânticos de intervenção, mas era proibido. P: Vocês tinham problemas com a PIDE? Angelina Ferreira: Tínhamos. José Manuel Ferreira: Eu tive problemas com a PIDE na JOC, porque pediram-me na altura para eu escrever um artigo sobre emigração e eu escrevi sem problema nenhum. Mas para escrever sobre emigração, tinha que se contar tudo sobre a emigração, porque é que as pessoas emigram. Não era pelos seus olhos belos. E eu escrevi, depois às tantas vejo no jornal, uma coisinha assim mais ou menos [gesto indicando que foi publicado um texto pequeno]. Epá, afinal, tanto que eu escrevi, era um artigo tão grande, era tudo sobre emigração e veio tudo tapado, tudo riscado. P: Era para que jornal? José Manuel Ferreira: Era para o jornal da JOC, eles pediram-me para escrever sobre emigração, porque nos Açores há muita emigração, e porque é que havia a emigração? Toda a gente sabia porque é que havia a emigração, mas toda a gente não dizia, porque senão a PIDE chegava...Eu disse: Então, eu estou na JOC. O meu artigo foi praticamente todo cortado e eu fiquei de olho, mas eles disseram logo: Não, está quieto, sê discreto, porque eles estão de olho em ti. Mas depois disso, quando comecei a trabalhar, eu pertenci à Comissão de Trabalhadores da empresa. P: Ainda antes do 25 de Abril? José Manuel Ferreira: Não, já foi depois disso. Mas pertencia à Comissão de Trabalhadores da empresa e pertencia porque tinha uma grande bagagem que aprendi na JOC. Eu disse: Não, isso não vai ser isso. Na altura fui eleito para a comissão de trabalhadores e era representante. E então a história da firma era a seguinte: Nós tínhamos três contratos de trabalho, um era dos empregados de escritório, outro era das transformadoras e eu era dos eletricistas. Era do sindicato da Manuela, quando a Manuela era das transformadoras e dizia: Se ela precisar de alguma coisa tem amigos – e eu era dos eletricistas. E depois cada um tinha o seu contrato e eles jogavam com isso e pagavam aos trabalhadores de forma diferente. Eu trabalhava na sede de uma grande multinacional, em que a Petrogal é que era dona, mais a Shell. Claro que dinheiro era...e eu disse: Não pode ser assim. E eu comecei, começámos, o que é que foi a minha intervenção nessa situação, foi a de tentar fazer um contrato para a empresa, só para a empresa. Um acordo coletivo de trabalho da empresa, não havia mais conversa. Com muita luta, muita luta, conseguimos, mas eu penei um bocado, inclusivamente o advogado da firma foi um dia a minha casa. Eu fui chamado à administração e eles disseram-me assim: Sabes qual é a porta que entraste? E eu disse: Foi aquela que está ali. É por essa que vais sair. É quando vocês quiserem. Mas é quando vocês quiserem, mas aqui por dentro... eu tinha dois filhos em casa...Ele foi a minha casa e eu disse: Doutor, é estes dois filhos que eu tenho. Mas tu é que vais pagar por isso. Porque ele tinha revelado, a secretária dele é que tinha revelado, elementos para me incriminar. Eu ainda me ia chateando nesse aspeto. E esse contrato coletivo de trabalho, eu consegui, mais os meus colegas, que a gente passasse a ganhar todos por igual nas categorias. Todos os empregados em cimento tinham um vencimento, os escriturários tinham outro tipo de vencimento e os grandes tinham outro tipo de vencimento que não era respeitado, porque as chefias davam-lhes muito mais, mas pronto, mas tinham. Mas isso custou-nos muito trabalho, pelo menos a mim e aos meus colegas, para a gente tenta organizar isso tudo, para ficar direitinho. E ficámos muito marcados, principalmente eu fiquei muito marcado. Mas depois, com o tempo a correr, desmarcaram-me, eu já era um menino. Continuei na Comissão de Trabalhadores, mas já começaram a ver que realmente as coisas estavam a correr melhor. Não havia tantos: Eu não faço...Quando o diretor se foi embora disse: Os senhores estão mais à vontade, as pessoas precisam que lhes deem incentivos. Mas isso foi sempre tudo através daquilo que aprendi na JOC, no ver, ouvir e julgar, nessa revisão de vida operária que me fez. A nível de serviço, cheguei lá acima sem passar por ninguém. Fiz sempre o meu trabalho. P: Ontem, a Manuela estava-me a mostrar um cancioneiro da JOC que era só músicas de intervenção e contra a guerra. Vocês também falavam nisso, falavam da guerra colonial? Angelina Ferreira: Exatamente. Falávamos. Portanto, nessa altura ainda iam tantos rapazes para a guerra, coitadinhos. José Manuel Ferreira: Era uma desgraça e quando eles iam, uma vez foram nas vésperas de Santo Cristo, aqui da festa de São Miguel. Foi o [anonimizado] que os levou e aquelas mães a chorar, para quê? Angelina Ferreira: Para quê a guerra? E continuamos. P: E a igreja acabava por ser um espaço mais protegido para se poder falar sobre essas coisas? Ou seja, estava a imaginar que as outras pessoas que se opunham ao regime eram mais perseguidas. A Igreja dava-vos essa proteção? Angelina Ferreira: Sim, a gente nunca teve problemas. José Manuel Ferreira: A gente nunca teve problemas nesse aspeto, aqui na igreja. A Igreja também, a verdadeira, muitas vezes não faz as coisas certas, mas nessas alturas tinham um bom manto. A verdade é essa. Eu sei que a gente tinha mesmo um bom manto. A gente falava e não havia assim grandes coisas. O padre [anonimizado] deixava falar e depois o outro que veio também era assim. Angelina Ferreira: Mais novo, com mais ideias. José Manuel Ferreira: Portanto, quando a gente também precisava de alguma carreira... E a gente tinha aquela cobertura, chamemos-lhe assim, aquela cobertura da Igreja. Isso nunca nos faltou, pelo menos eu sinto isso por mim. Se eu tinha algum problema ia lá e dizia: Passou-se isto assim, assim. Mesmo quando foi na Comissão de Trabalhadores e às vezes estava assim um bocado e chegava e perguntava e tinha sempre apoio. P: Depois transitaram para a LOC? Ambos: Não. P: Quando é que deixou, em que altura que deixou de haver? José Manuel Ferreira: Isto depois começou a esmorecer Angelina Ferreira: Uns foram casando, outros emigraram. José Manuel Ferreira: Mas a gente ainda hoje de encontra. Angelina Ferreira: Tem, tem. José Manuel Ferreira: A gente tem os nossos, que sabe quem eles são, ainda há dias a gente conversou disso, a gente qualquer dia vai pensar reunir aqueles que a gente tem ainda, para a gente conversar, fazer um almoço, cantar, fazer um chantêzinho [ri-se], cantar com a Manuela, ela gosta muito disso. Angelina Ferreira: A Manuela era uma grande dinamizadora de jovens e das pessoas de idade. P: A Manuela depois seguiu para o movimento sindical. Vocês também se envolveram? Angelina Ferreira: Eu não, o Zé é que esteve José Manuel Ferreira: Eu é que estive depois, na direção dos empregados de escritório. Portanto, era da comissão de trabalhadores e pertencia à direção do sindicato dos empregados de escritório e das transformadoras. P: E houve mais houve mais pessoas da JOC que passaram para o movimento sindical? José Manuel Ferreira: Aqui de São Roque estive eu e o [anonimizado], era representante da FinAçores, portanto, aqui dos pesqueiros, das farinhas, do sindicato, porque depois aproveitava essas pessoas assim que iam para o sindicato. P: E antes do 25 de Abril, não havia aqui aqueles antigos sindicatos nacionais? José Manuel Ferreira: Havia. Era o sindicato nacional dos empregados de escritório. P: E vocês participavam? A JOC não intervinha nesses? José Manuel Ferreira: Que me lembre, não. Não estou dizendo que não, mas que eu me lembro não. Porque eu conheci aqui muitos amigos da JOC, do antigamente, que já são mais velhos do que eu e, portanto, não sei qual era, não deu para acompanhar o que eles faziam. O [anonimizado], o teu irmão e essas pessoas assim, não deu para acompanhar. Na altura, até nem sequer deviam estar... P: E havia aqui aquelas instituições do regime, como as casas do povo, as casas dos pescadores? José Manuel Ferreira: Aqui não, a casa do povo daqui era no Livramento, na freguesia aqui ao lado. Angelina Ferreira: Junto às duas freguesias. José Manuel Ferreira : Uma razão simples, política. A Freguesia de São Roque tinha muitos trabalhadores do campo, eles é que pertenciam às casas do povo. E quem tinha muitos desses trabalhadores era o Sr. [anonimizado]. Angelina Ferreira: A pessoa rica da freguesia. José Manuel Ferreira: Eram os donos da freguesia chamemos-lhes assim. E então a casa do povo era para ser feita em São Roque, que era onde havia mais trabalhadores rurais e ele, para não ficar sujeito à Casa do Povo, que lhe podia dar alguma dentadinha nos calcanhares, disse: Não, isso é melhor fazer-se no Livramento e nós ficamos sem essa coisa – mas por esta questão, para ele não ter muita gente na casa de povo. De repente algum mais virado podia-lhe dizer alguma coisa e então foi a Casa do Povo para o Livramento. Porque eu sei que aqui, há tantos anos, os homens eram comprados, eram arrematados. Havia ali no poço velho, havia ali um canto que era o canto dos homens. As pessoas iam lá buscar o pessoal para irem trabalhar para a Terra. P: Tipo uma praça de jorna? José Manuel Ferreira : Exatamente. E era: Tu vais comigo, eu dou-te dez. Não, não, vai comigo que eu dou-te 12. Portanto, havia escravatura, escravatura encoberta, em que estamos a comprar alguém. E para ele estar à sua vontade, a Casa do Povo foi para o Livramento. P: E essas pessoas que trabalhavam, esses jovens que trabalhavam na terra, também estavam na JOC? José Manuel Ferreira: Não, não estavam. A JOC tinha mais pessoal fabril. Uma Açor (?), era assim mais essas coisas, gráficas que era o caso do [anonimizado] tipógrafo, nas gráficas, em casa, como a Angelina estava, eu estava ainda acabando de estudar e depois passei para a vida. P: Tinha muitas raparigas? Angelina Ferreira : Tinha algumas, mas os pais não deixavam muitas, porque a gente era as mais faladas da freguesia. Os pais eram, as filhas eram em casa. P: Mesmo para a Igreja, não havia assim tanta liberdade? Angelina Ferreira: Iam para a Igreja, para a missa. Pronto, iam para a missa e o seu dever estava cumprido. Estavam desobrigadas de tudo. P: Porque a maior parte das mulheres que eu tenho entrevistado, mesmo do movimento sindical, vêm da JOC. E então eu tinha a ideia de que a JOC tinha sido um espaço onde as mulheres tinham conseguido.... Angelina Ferreira: Conseguiu-se muitas mas...Agora a freguesia de São Roque está muito descaracterizada, porque fazem apartamentos e vêm pessoas de todo o lado, mas no tempo que eu queria, eram as pessoas da Freguesia. E então quando se falava em sair à noite, em ter uma reunião à noite... P: Mas algumas conseguiram? Angelina Ferreira: Conseguiram, conseguiram. Tínhamos um grupinho aí de umas 15,16. P: E foi importante para a emancipação das raparigas? Angelina Ferreira: Para mim foi e para mais algumas. P: Porquê? Angelina Ferreira: Olhe, porque aprendi a ver as coisas por outro prisma. Foi muito importante para o meu crescimento. P: Vocês falavam, por exemplo, da igualdade entre os homens e as Mulheres? Angelina Ferreira: Sim falávamos. Porque ainda neste tempo, os rapazes do meu tempo, não digo na escola primária, mas do meu tempo de estar na JOC, ainda não havia rapazes com raparigas nas escolas. Isso foi muito depois e a gente achava, a gente ficou com má fama na freguesia, muitas das que participavam, porque a gente às vezes encontrávamo-nos com os rapazes e fazíamos passeios. José Manuel Ferreira: Íamos cantar para a praia à noite, isso era tido como... P: E sentiam que havia igualdade já entre os rapazes e as raparigas da JOC? Angelina Ferreira: Sim. José Manuel Ferreira: Havia um espírito aberto. Não havia: Quem manda aqui são os machos, havia muito espírito de abertura, muito espírito de partilha e também se aprendeu muito, muito em espírito de despojamento. Era: Vamos todos para aqui, vamos todos para o Monte, vamos passear e se alguém não podia, não, tu vais com a gente e depois a gente vê isso. Angelina Ferreira: Aqui na freguesia, as moças namoravam muito cedo e eu já tinha 20 anos e não tinha um namorado e nessa altura eu fui ao Conselho Nacional da JOC para o continente e fui muito falada, que tinha ido arranjar um noivo para Lisboa. Mas os meus pais nunca se importaram. P: Foi com quem, foi a única aqui da ilha? Angelina Ferreira: Fui a única de raparigas nesse ano, porque também não havia possibilidades assim financeiras de ir muita gente. P: E como é que foi esse encontro? Foi em que ano? Angelina Ferreira: Não sei se foi em 71? Eu tinha 20 anos, 70. E gostei muito. Eu não conhecia Lisboa, o continente. Nunca tinha ido. Daqui só conhecia a Terceira e cheguei lá sozinha, mas tinha um casal da Terceira, que também foi ao mesmo encontro, foram-me buscar ao aeroporto. E eu tinha uma tia que vivia lá, e a minha mãe telefonou à minha tia e eu fui para casa da minha tia enquanto não fui para Braga. Eu perdia-me, eu olhava assim... É que aqui, agora já há mais movimento, mas antes era muito paradinho e eu cheguei a Lisboa... Eu não vivia lá, mas gostei. Ainda gosto de ir ao continente e se pudesse ia todos os anos. P: Foi em Braga esse encontro? Angelina Ferreira: Esse encontro foi no Sameiro. P: E era com rapazes e raparigas? Angelina Ferreira: Era, rapazes e raparigas, tudo junto. P: E o que é que se discutiu nesse encontro? Angelina Ferreira: Discutíamos de tudo, foram sete dias de intervenções, de cânticos, de missas. P: E foi assim uma coisa já do contra? Angelina Ferreira: Era do contra...era do contra. Na altura ainda havia o Ultramar, ainda havia a guerra. P: E falavam sobre isso? E sobre os problemas também do trabalho? Angelina Ferreira: Do trabalho, exatamente, porque era de todo continente. Tinha moças de Aveiro, tinha moças de Lisboa, tinha moças de Coimbra, de Braga. Juntaram um elemento ou dois por cada região. Fiquei a conhecer, ficámos amigas e na altura ainda escrevíamos muito, mas depois com o passar do tempo... P: A Angelina depois não participou em mais nenhum movimento sem ser a JOC? Angelina Ferreira: Não, era o grupo Coral da Igreja. Não, não participei em mais nenhum, porque entretanto tinha a minha vida profissional, que me ocupava muito tempo. Eu tinha pouco tempo para mim, porque na altura as costureiras ainda havia muito... Eu tinha um leque muito grande de clientes, porque eu fazia por gosto. Depois vieram os filhos e eu trabalhava em casa e os meus filhos, na altura da menina não havia pré, com os outros já havia pré, mas eu criei os meus filhos em casa comigo. A minha mãe ajudava-me até falecer, faleceu nova, com 59 anos, e eu fiquei tomando conta do meu pai. Fiquei com meu pai, com a minha avó, com o meu marido, com os meus filhos e muita rapariga a aprender costura. As mães, mal elas saiam da escola iam logo ter comigo, por eu ter sempre um espírito jovem. Ainda hoje em dia, a minha afilhada está aí. A mãe foi para a minha casa com 14 anos e ainda hoje em dia é como uma filha para mim. E tinha muitas e ficavam a dormir lá na minha casa. Aqui defronte a uma pastelaria, isto aqui era uma terra, que era da mãe do Zé e como a mãe do Zé era viúva... O meu pai gostava muito de vinho e de batata. Quando saía do seu serviço vinha para aqui. E aqui era uma pastelaria e as raparigas que estavam lá na costura: Oh Manel, logo quando tu vieres, trazes-me um bolo? Se ele não trazia, elas no outro dia vinham a pé da freguesia, que ainda é um bocadinho do centro da freguesia para aqui, buscar bolos para o Manel Dias pagar. E ele também gostava muito delas. P: E transmitia-lhes os valores da JOC? Angelina Ferreira: Transmitia! José Manuel Ferreira: Ainda hoje é isso. Angelina Ferreira: A mãe da minha afilhada era de uma família com poucos recursos, a mãe morreu muito nova, com muitos filhos, e ela distribuía pão de manhã e ia deixar à minha casa e dizia: A minha pequena vai sair da escola, tu queres pegar nela para aqui? Porque comíamos todos, a minha mãe na altura fazia panelas de sopa e elas todas comiam e depois eu continuei. E eu dizia: Ai Senhora, eu não quero, porque eu já tenho aí seis ou o que é. Ai mulher, pega-me nela coitadinha, para ela não ficar em casa. E ela foi com 14 anos e ainda hoje em dia é como uma filha para mim. É a minha filha mais velha e ela dá-se muito bem com o meu filho e com a minha filha, mas o meu filho tem mais abertura com ela do que com a irmã. E ela teve uma menina e a nós fomos os padrinhos da menina e o Zé é que vai buscar à escola. De manhã a mãe leva-a, mas a mãe trabalha. José Manuel Ferreira: Ela veio lá para casa, depois faleceu-lhe a mãe... A história dela é essa, ela foi para lá aos 14 anos, ficou sempre filha da casa, eu é que lhe arranjei casa. Portanto, ela é mesmo nossa filha, não é biológica, mas é nossa filha e portanto, e tem os valores todos que a gente foi transmitindo. Aquilo é uma mulher que se mata para ajudar o outro. E às vezes eu: Os teus irmãos? Isso só tive aqui e eu já nem abro mais a boca, porque esse eu tive aqui, eu conheço. Eu é que a levei à Igreja, quando ela casou. Eu disse: então não tens irmãos? Angelina Ferreira: Ela tinha muitos, não podia escolher. José Manuel Ferreira: Ela disse, assim: Não, ou és tu ou eu vou sozinha. Sozinha não vais. Mas também tem aqueles valores todos que aprendeu e que a minha afilhada está continuando assim. Portanto, os valores que a gente foi aprendendo a gente foi transmitindo aos filhos. A minha filha é tesa, aquilo não se brinca com ela. Angelina Ferreira: Ela trabalha na casa do Gaiato. José Manuel Ferreira: O meu filho também. O que tiverem a dizer, dizem, acabou. Justos. Se tiverem que levar nas orelhas também levam. E se virem que não estão corretos, eles também não refilam por isso. P: E o Zé Manel depois esteve no movimento sindical até se reformar? José Manuel Ferreira: Não, depois tive um problema de saúde e aquilo já não dava. Eu fui operado ao coração, não dava para me enervar mais e então foi um colega meu. Mas quando ele precisava, era o [anonimizado], eu dizia: Epá tu vais, que tudo o que tu precisares tens cá o padrinho, o padrinho diz-te tudo o que tu precisares, mas tu é que tens de ir porque eu não posso. Mas sempre gostei, sempre gostei. P: Então mas contei-me lá, como é que foi o 25 de Abril aqui. Angelina Ferreira: Eu trabalhava de costura para a esposa do chefe da Pide cá. E a Senhora era amorosa e gostava muito de mim. Eu era muito magrinha e ela trazia-me suplementos alimentares, mas eu não comia muito. Eu tinha 48 kg e agora estou crescendo mais. E ela dizia: Vais de férias para Santa Maria comigo. Era uma pessoa que também não era egoísta. E no 25 de Abril aqui não tínhamos televisão. Ai uma revolução no continente, em Lisboa, e não sei quê. A gente ouvia na rádio e a minha mãe estava com muito medo. E a minha mãe nesse dia teve uma consulta, eu lembro-me disso, e ela foi a Ponta Delgada, e vi as pessoas a irem a casa buscar o chefe da PIDE, da Dona Lina. E a minha mãe viu a senhora na varanda tão inquieta e foi para casa e disse-me: Ai, eu tive tanta pena da Dona Lina, mas com medo da revolução, que não sabia o que era, não víamos na televisão e ficou tudo com medo. E depois, o Presidente, o Chefe da Pide não foi preso, mas foi para casa de um senhor amigo. E a Dona Lina depois, quando vinha a minha casa dizia: Mas o marido não era desses mais... José Manuel Ferreira: O [anonimizado] na altura não foi preso, não foi para a cadeia, o [anonimizado] foi para a casa dele, sendo tratado como filho dele. Ele também estava aqui nessa Terra, em que a gente se conhecia todos. Ele tinha que se impor senão coitado também ia-se embora, mas não era de fazer mal. Ele chegou a ter uma cubana. Angelina Ferreira: Exatamente, um dia a esposa veio a minha casa e levou uma moça tão bonita e ela disse-me que ela era cubana e o namorado era marinheiro e ela fugiu de barco com o namorado, porque aquilo em Cuba... naqueles anos. E ela não foi presa, foi para a casa deles, desses senhores. Ela levou-a a minha casa e a moça era tão bonita, tão bonita, que eu lembro-me na altura, eu devia ter aí uns 22 anos. Mas era assim uma pessoa que também não era dos piores, mas é claro toda a gente tinha medo. E quando se fez o 25 de Abril a gente não sabia o que é que isso ia dar e depois viu-se que despejaram os senhores lá do Alentejo, das suas propriedades... José Manuel Ferreira: Mas aqui também houve. Angelina Ferreira: Houve depois do 6 de Junho. José Manuel Ferreira: Antes disso também houve, depois do 25 de Abril começou logo a haver as tricas. A tropa começou a sair para a rua. Vinham de metralhadora, eles vieram do continente para cá. Foram postos aqui coitados e isso começou a causar um mal estar. E depois disso começou a haver muitas sessões em que a tropa batia. No seis de junho a lavoura levantou-se toda, incentivados pelos grande proprietários, os ??? e aquelas companhias todas, os homens das terras, houve um grande levantamento de pessoal. Alguns foram presos para a Terceira, de maneira que não se fazia, que era às tantas chegar a casa: Vamos embora, pega nele, mesmo à comunista, como eles costumavam dizer. Epa, o 25 de Abril não pode ser assim. E depois havia as sedes dos partidos incendiadas, logo que fosse do Partido Comunista ou do Partido Separatista, que era o caso da FLA, da Frente de Libertação dos Açores, eram incendiadas. O [anonimizado], que era do Partido Comunista, foi lançado da Avenida para o mar, queimaram-lhe o carro. Houve assim umas cenas tristes em tempo de liberdade. Angelina Ferreira: Era porque as pessoas eram ignorantes. José Manuel Ferreira: Mas era por causa disso, é o que a Angelina diz, a maior parte aqui era ignorante politicamente. P: E como é que se posicionava a JOC nesse período? Angelina Ferreira: Não tinha muito poder. José Manuel Ferreira: A gente podia falar, mas também, és comunista. Tudo o que tu falas assim é porque tu és comunista. Às vezes ainda é assim, já não tanto, mas às vezes se a gente diz alguma coisa assim mais aberto: Epá, tu és um grande comunista. E eu digo: Bem bom, pelas almas que alguém vê que eu sou comunista...porque logo que toque no instalado, és comunista. Agora já está tudo mais calmo, já se convive, já não há problemas de grande coisa, mas às vezes ainda alguns...e eu digo: Bem bom, é bom eu ser comunista, deixa estar. P: Mas naquela altura foi mais difícil? José Manuel Ferreira: Muito mais difícil, foi muito difícil. Por exemplo, tive um colega meu que foi a uma sessão de esclarecimento. Por acaso eu também era para ir, mas fiquei em casa já não sei porquê. Ele levou umas pancadas naquela cabeça com uns capacetes de moto.... P: Era uma sessão de esclarecimento de? José Manuel Ferreira: Do Partido Socialista. Chegaram a mandar uma bomba, em casa de um Dr. [anonimizado] na Madalena, que era um grande socialista. A casa dele levou uma bomba. Havia essas coisas assim e depois nós aqui, está a ver o que é isto num meio muito fechado, apanhar com uma coisa que a gente não sabe o que é, porque não vê na televisão, não vê nada. E depois há notícias que são verdadeiras, outras que são mentirosas, não é? Sempre houve e sempre vai haver. As pessoas ficavam assim: Mas afinal? Eu lembro-me das primeiras eleições que se fez, as velhinhas a desmaiar porque a velhinha se não fosse votar ficava sem a sua triste reforma de meia dúzia de patacos. Angelina Ferreira: Depois do 25 de Abril, as primeiras eleições, credo, as velhinhas a desmaiar. José Manuel Ferreira: Punha dó. Porque eu estive desde as primeiras eleições, estive sempre presente, era refila, fiz sempre parte das mesas de assembleia de voto, sempre. E ainda fazia, agora é que já me deixei, e quando não estava na mesa estava como fiscal do Partido, com uma credencial para ver se havia alguma coisa. E eram aqueles velhinhos, tão velhinhos: Ai senão eu perco... Não perdes nada querida, tenho dó de estares aí em pé, porque também não lhes davam o lugar, para as velhinhas passarem à frente. A gente dizia assim: Deixe passar. Ai não, ela que espere por mim. Ainda não havia bem essa coisa de.... Angelina Ferreira: Solidariedade... José Manuel Ferreira: O 25 de abril foi assim aqui, nesse aspeto, a gente não sabia o que era verdade, a gente não estava preparado para a questão de abrir e, politicamente, as pessoas eram muito ignorantes. P: E no mundo do trabalho, como é foi? Houve melhorias? José Manuel Ferreira: Houve algumas, a verdade também é essa, houve algumas melhorias. Mas todas elas, e ainda hoje, mas todas elas naquele tempo foram tiradas mesmo a ferros, muito a ferros. Eu cheguei, estou falando do meu caso pessoal em que posso falar bem, eu fui jantar com o advogado da firma: Ai e tal a gente vai jantar para a gente acabar o resto do contrato - isso quando foi o contrato. Está bem, pronto, vamos jantar. Não há problema nenhum, vamos jantar. Eu fui jantar aqui ao Bataclan, aqui mesmo em cima. E às tantas ele vira-se assim para mim: Oh Zé, eu trouxe aqui os papéis que é para a gente assinar, não sei quê. E eu disse: Está bem, não tem problema nenhum, a gente veio aqui para ver isso, epá, mas é assim não pode ser muito atrás (?). É assim já está escrito, assinas aqui. Não, não foi isso que a gente combinou. E eu: Oh sr. [anonimizado], que era o dono do restaurante, chega aqui, faz favor. Tira a minha conta que eu vou-me embora. Não, eu vou pagar. Não, não, eu comi e vou pagar e não vou assinar contra os meus colegas. E diz lá na firma que eu é que paguei o meu jantar. Não vaz ficar mal disposto, a firma não te vai fazer nada de mal por causa disso. Mas o meu jantar quem paga sou eu. Artur, para cá a conta. Está percebendo? Havia essas coisas assim, que tentavam: Porque vais ganhar mais que os teus colegas, mesmo do escritório. Hei, eu estou a fazer isto para a gente se igualar e agora vou ganhar mais? Não, não. Mas o jantar é por minha conta, acabou, não há mais problemas aqui. As coisas, é verdade que foram evoluindo, mas muitas coisas tiveram de ser arrancadas a ferros, ainda hoje em dia continua ser assim, secalhar até pior. Angelina Ferreira: E essas pessoas, portanto, que não tinham abertura, diziam que quem era comunista ia para o inferno. E as velhinhas coitadinhas que não queriam ir para o inferno, não eram comunistas nem socialistas. P: Pois claro. E quando ontem falava com a Manuela, ela contou-me quando foi a greve geral de 1982, que aqui houve uma grande adesão, estava no sindicato nessa altura? José Manuel Ferreira: Estava. P: Lembra-se dessa greve? José Manuel Ferreira: Lembro. Houve adesão, pois houve, mas custou-nos P: Como é que foi? José Manuel Ferreira: Eu estava na firma, porque lá aquilo queria cambar, e eu estive sempre lá, disse: Aqui não camba nada. Alguns iam furar a greve. E eu disse: Aqui não camba nem descamba, aqui é assim. E então havia lá os piquetes e eu estava sempre em todos os piquetes. Então tu estás? Então, eu sou representante do sindicato. Porque o Patrão entrava: Vai trabalhar. Vai trabalhar o quê? Eu estou aqui. Ah, porque é preciso encher aquela garrafa de gás, é preciso encher cinco garrafas de gás e levar ao hospital. Sem problema nenhum. Está aí, mas é só cinco garrafas. A gente tinha que fazer os serviços, não é? Não podia dizer que não ia levar ao hospital, às casas de saúde, mas já era para ver.. ah depois... Não, é só cinco, porque de repente algum que tivesse um certo receio, eles podiam dizer: Não, não, vais trabalhar porque senão perdes isto e perdes aquilo. E então eu dizia: Eu estou de piquete de greve, em todos os piquetes de greve eu estou e estava sempre. Do meu sindicato era aquele rapaz o [anonimizado], que era muito meu amigo, e o [anonimizado], que eu tinha que ter o [anonimizado] que era o responsável do enchimento comigo. Eu dizia: [anonimizado], eu quero-te sempre comigo porque se houver precisão de encher três garrafas eu não sei abrir as garrafas, tu é que vais ali encher e levas o [anonimizado]. Mas aguentou-se, tinha que se ter força. P: E depois também esteve na Cáritas. José Manuel Ferreira: Estive. Na altura, oitentas, na altura em que havia, e há, muita fome, mas eu vou-lhe dizer uma coisa. Na Caritas eu também cresci e aprendi muito. Eu só lhe vou contar uma, que me choca mas que eu passei. Uma vez, nós distribuíamos aqueles cabazes de Natal e eu fui encarregado de ir distribuir os cabazes mais um Senhor, ali abaixo ao Terreiro, que é parte aqui da minha freguesia, a uma determinada pessoa. Cheguei lá, eu não gostava de ir bater à porta, deixar e até logo se Deus quiser, bom Natal. Não. Não gostava de estar aí, porque assim, porque assado. Não. Faz-se de maneira que a outra pessoa não veja a dar. E eu cheguei e disse: Está aqui. Oh Senhor Manuel, faz favor, e disse: Eu preciso. Pois está aqui. Mas duas casas abaixo da minha precisam muito mais do que eu, vais lá levar. Eu não sabia. Ninguém sabe, estou eu a dizer-te, porque é muito envergonhada, ela não diz nada. Realmente aquilo demonstrou sentido de solidariedade, de empenho. Sim senhora. Deixei, vim para cima para a Caritas: Hei, mais um cabaz para eu levar ao fulano. Mas não foste levar ao fulano? Fui, mas passou-se isto assim, assim e a mulher não fica sem cabaz. A gente vai lá levar. Portanto, uma lição de vida, uma lição de partilha que se aprende. Eu aprendi e fez-me crescer ainda mais. Porque se eu fosse lá só pôr, é para mim. Por isso, a Caritas também me ensinou isso. E também me ensinou que às vezes... Eu fui levar [um cabaz] a outro lado e eu disse: a gente não vai levar porque o senhor tem dinheiro, ele faz-se assim, mas ele tem muito dinheiro. Vai levar porque assado e cozido – o outro colega meu. E eu disse: Epá, é para se levar, vai-se levar, mas eu vou contigo. A gente bateu à porta: Posso entrar? A Senhora era muito ... era uma pobre de Cristo. Posso entrar? Sim, Senhor, sim, Senhor. Ele estava deitado na cama. Eu disse: Então João está tudo bem? Ele: Está, o que é que vieste fazer? – assim, bruto. Então vim trazer umas coisinhas para vocês, para o Natal. Eu cá não preciso e saca a mão atrás, pega na carteira. Eu tenho aqui dinheiro, para que é que eu quero isso? O que foi lá comigo, que era o que tinha insistido que eu fosse lá levar, disse: Manel, a gente vai levar esse cabaz para trás. Nem penses nisso. Isso vai ficar aqui. Mas agora (a gente estava mesmo perto do centro, da sede da Caritas) tu vais chegar lá e vais dizer que realmente era como eu disse. Tens que dizer, é a única coisa que eu te peço. É que vais ter de dizer e vais ter que aprender que se alguém diz as coisas é porque sabe. Quando eu cheguei lá ele disse ao Dr. [anonimizado]: O Ferreira tinha razão, porque assim e assado. O Dr. [anonimizado] começa a rir e disse assim: Quando o Ferreira disser que é, é porque é, porque ele conhece. Porque eu conhecia muito aqui, fruto também de ter sido presidente da junta e essas coisas assim. Mas porque a prima da Angelina trabalhava no dispensário materno infantil e sabia-se tudo lá, as desgraças entre aspas das pessoas, o não ter o que dar ao bebé, o que a fulana é...E a Laura estava connosco na Cáritas porque era o nosso veio de transmissão de tudo que se passava na materno infantil, a nível da freguesia. E também tínhamos um senhor que nos dava toda a informação da ação social (pertencia também à Cáritas). Aquilo era pela porta do cavalo mas a gente tinha. Portanto, a gente ia estudar, era uma questão de estudar tudo. Uma vez, eu lembro-me, tínhamos um presidente novo: Vamos levar este cabaz a fulano – era o Sr. [anonimizado], que a gente tratava de [anonimizado], que era o sacristão. E eu começo a rir mesmo à gargalhada, mesmo ferrado e eles: Tu estás-te a rir, estás a fazer pouco de quê? Nada, vão dar um cabaz a esse senhor? Ide ver, ele está enterrado, ele está morto. Não havia já a coisa de saber se a pessoa era viva, se não era viva, se precisava, era levar por levar. E eu nessa altura, então: Deixem estar, vocês e que percebem disso – porque eu ia só lá para me chatear e eu já não tinha mais tempo para me chatear. Nesse aspeto, já tinha perdido a paciência. P: Estava-me a dizer que também foi Presidente da Junta, foi quando é que isso foi? José Manuel Ferreira: Foi no dia em que morreu o Sá Carneiro. Eu era o Secretário mais novo da Junta de Freguesia, porque eu estaca com dois senhores com mais idade, o Sr. [anonimizado] e o Sr. [anonimizado], e era o secretário da Junta de Freguesia. Depois fiz dois mandatos como Presidente e fiz três mandatos na Assembleia de Freguesia, sempre pelo Partido Socialista, que ponha os pés no seu voto, porque que eu nunca fui para outro, embora pudesse ter sido, era só pedir que eles davam-me, só tinha de concorrer pelo PSD. Eu disse: Ai Credo, está quieto. Não quero, não renego a minha pátria. É uma questão de princípio. P: Quanto é que entrou para o Partido Socialista? Foi a seguir ao 25 de Abril? José Manuel Ferreira: Foi em 74, eu sou o militante mais velho da secção de Ponta Delgada. Mais velho de anos de inscrição. Quando eu levo o cartão para votação: Hei Ferreira... Vocês ainda estava dormindo e eu já estava cá dentro. P: E conseguiu também, na vida política, aplicar os valores que tinha aprendido na JOC? José Manuel Ferreira: Sim, sim. Eu lembro-me de ir uma vez a um Conselho Nacional do Partido Socialista, mas dizerem-me o seguinte: quando aqui chegares tens que apresentar um relatório. Fiz o relatório e eu tinha muita confiança com um rapaz que já faleceu, que era o [anonimizado]. Eu escrevi o relatório e disse: Olha lá, tu és capaz de ler esse relatório, que eu sou assim novinho nestas coisas, para veres se isso está bem, se é preciso corrigir alguma coisa. Ele começa a ler: Foi isso que se passou? Foi. E tu queres entregar isso? Quero. Entrega, mas eu já te vou dizer uma coisa, vais ficar na prateleira. Estão ai coisas que não se devia dizer. Ai é? Mas posso entregar? Agora decides, queres ficar na prateleira ou queres ser menino bonito. Não, eu prefiro ficar na prateleira. P: O que é que era que o fazia ficar na prateleira? José Manuel Ferreira: Ficar na prateleira era não ser mais chamado para Conselhos Nacionais, nos congressos regionais não ia para as comissões. Ainda me veio dizer um primo, casado com uma prima minha, vai lá pedir para ires. Eu pedir para ir? Tu não tens juízo? Se eles virem que eu sou bom para ir, eu vou. Se eles continuarem a estar com a teima, continuem com a teima. P: Mas o que é que estava lá escrito que eles não concordavam? José Manuel Ferreira: Eu é que não concordava com a maneira como as coisas se tinham passado e a maneira como as pessoas intervinham e como é que se dava a palavra e como é que se retirava a palavra e como é que aquilo era tudo dividido sempre pelos mesmos, parecia ser uma igreja. E eu fiz isso tudo e disse que nunca mais precisava de ir a coisas daquelas. Mas pronto, ele disse-me logo que ia para a prateleira. Mas depois passaram. Eu cheguei a dizer a eles: Eu não devo nada ao Partido Socialista. Eu dei a minha cara pelo meu Partido, portanto por vocês. E depois então, a partir daí...Eu sempre fui muito amigo do [anonimizado], fechamo-nos uma vez num quarto e demos uns murros em cima da mesa, mas sempre amigos. Eu era frontal, eu dizia as coisas e ainda hoje continuo a ser assim. É verdade uma coisa, muitas vezes perde-se por ter uma boca grande. P: Agora queria-vos fazer uma última pergunta, que ontem também fiz à Manuela e ela deu-me uma resposta espetacular. Eu estou a fazer um trabalho de história sobre os movimentos sociais, sobre o associativismo e eu gostava que vocês me dissessem, se fossem vocês a fazer, se fossem historiadores, o que é que vocês acham que era importante estudar destes movimentos? Angelina Ferreira: Conhecer melhores as pessoas, estudar as pessoas, saber as necessidades delas. Mas eu não sei se eu tinha coragem para isso. José Manuel Ferreira: Eu acho que nesse estudo e nesses movimentos, era saber qual era o fim, para que serve esse movimento. Se ele está a fazer para aquilo para que foi criado. Se não está a fazer aquilo para que foi criado, vamos embora. Eu acho que tinha-se que ir estudar e ver se realmente os movimentos cumprem os fins para que foram criados ou se andam a sugar os outros. Isso é que era essencial e não ter medo de por isso a nu, de abrir e dizer, vocês não são isso. Porque muitas vezes o que falta é... A gente diz, mas dá uma volta tão grande, tão grande... Eu costumo dizer assim: Em duas palavras podia-se reduzir o que muitas pessoas dizem em 40. Porque se eu tiver um relatório muito grande, de 30 folhas, eu acho que a gente só vai ver o que diz na conclusão. Mas se eu levar um relatório de uma folha, sintético, e a conclusão, aí eu fiz o meu trabalho e fiz bem feito e percebi para que é que aquele movimento foi criado. P: Especificamente em relação à JOC, acham que foi um movimento que teve importância na história do nosso país? Angelina Ferreira: Penso que sim. P: Porquê, o que é que acham que trouxe? Angelina Ferreira: Olha, eu falo por mim, porque eu fiquei mais aberta ao mundo. A Joana pode não dar o valor, porque sempre viveu no continente, não é? De Portugal vai-se para todos os lados e aqui não, a gente vive numa ilha. E quando eu fui ao continente pela primeira vez marcou-me muito. Foi quando eu vi a grandeza. Porque a gente fechados aqui. Embora se tenha bons sentimentos, ajudar o próximo... Se calhar num meio mais pequeno nós somos capazes de fazer isso melhor, mas eu também penso que é preciso alargar horizontes. P: E a JOC alargou-lhe os horizontes? Angelina Ferreira: Sim. P: E o Zé Manuel, o que é que acha? Acha que foi importante? José Manuel Ferreira: Sim, sim, muito importante, a nível pessoal, para mim foi uma abertura. O nosso menino que estudou, que está juntamente com o [anonimizado], o [anonimizado], com o não sei quê, que quase todos esses tiveram comigo na primária, não tiverem as possibilidade que eu tive. Mas eu tenho que estar com eles. E eu sempre vivi, sempre aprendi muito com esses. Tinha os ensinamento de casa. O meu pai dizia: Ninguém é melhor do que ninguém. Isso fez com que eu me sentisse mesmo irmão deles todos. Portanto, é para ir para a terra? É para ir para a terra. É para ir para ali? É para ir para ali. Eu cheguei a vir...Hei, tu andas a falar com essa prostituta? É uma mulher como outra qualquer, ela quis vir falar comigo e eu não falo com ela? Então que raio é isso? Portanto a JOC fez-me crescer nesse aspeto, não separar ninguém. Foi o essencial, não separar ninguém, não há classes. Tu és tu, o outro também é ele, mas são unos. Se a gente estiver todos juntos, a trabalhar todos para o mesmo lado, é uma categoria. Agora se nós quisermos trabalhar cada um para o seu canto, veja-se o que é que se passa. E a JOC ensinou-me a trabalhar com um rumo certo, todos irmanados, todos iguais. Para mim isso foi muito, muito, muito, muito gratificante e continua a ser. E foi o que me fez aprender muito na vida. P: Então agora eu vou vos dizer o que é que a Manuela me disse que achava que era importante eu perguntar, vou-vos fazer essas perguntas que eu acho que são muito boas. Ela disse-me que eu devia perguntar, o que é que as pessoas sentiram naquela altura? O que sentiam quando participavam na JOC? Angelina Ferreira: Eu senti-me crescer e ver melhor o outro e não ver o meu eu primeiro, ver o eu do outro primeiro. Um exemplo: eu fui a um curso de cristandade, já depois de casada e ter filhos, e vi uma senhora, isto é um exemplo. Eu vi uma senhora, daquelas senhoras da elite, a dizer que tinha de dar um testemunho, que depois de ir aos cursos de cristandade via melhor as outras pessoas e que quando uma pessoa lhe ia pedir qualquer coisa, os mendigos, ela não dava e que depois de ir ao curso de cristandade já dava. E eu disse: eu sempre vi isto na minha casa, desde pequenina. Eu não aprendi nada naquele curso de Cristandade. Mas eu já vi isso por ter estado na JOC e ver que os outros também são gente, que a gente primeiro deve ouvir os outros. Aquela senhora que eu pensava que ia fazer um testemunho muito grande e era aquilo que eu aprendi desde pequenina. P: E o Zé Manel o que é que sentia quando estava na JOC? José Manuel Ferreira: Alegria, para já porque a gente estava com aquela malta toda e depois porque nós éramos um grupo unido, que conversávamos sobre tudo e crescíamos. E não havia gente a tentar separar, porque se a gente tentar separar, tínhamos uma pessoa que era o [anonimizado]: Eu vou dizer meninos uma coisa (ele era muito mais velho), amigos! E depois quando eu comecei no ver, julgar e só agir no fim e de acordo com o evangelho. É isso. É uma coisa que dá trabalho de fazer, uma revisão de vida operária como deve ser. Porque é que é? Porque não é? Porque muitas vezes também não é só o patrão, muitas vezes também somos nós. Mas o ver, julgar e agir era essencial. Porque aí é que a gente, pelo menos para mim, a gente via, a gente julgava à luz do Evangelho. Mas ele vai comigo. E é como nós ajudamos, a ensinar a pescar. Portanto para mim, a revisão de vida operária era o essencial da caminhada, difícil. P: A outra pergunta tem a ver com isso que é o caminho? Também tem algumas dificuldades, não é? Também já contaram aqui várias coisas que não foram fáceis, mas valeu a pena? Valeu a pena esse empenho? Angelina Ferreira: Valeu. José Manuel Ferreira: Muito, muito, muito, muito. Ainda hoje a gente colhe esses frutos. Por exemplo, a gente às vezes: Hei, a gente tem de ir falar com a Manuela. Uma vez havia um padre que eu não gostava, no sentido em que ele quando vinha fazer a homilia debruçava-se assim no altar. Parecia que estava a vender vinho ao balcão. E um dia, eu estava mesmo doido, doido, doido e disse: Oh Manuela, eu preciso de falar contigo. O que é? É o padre fulano....E ela: Não estás bom, vais julga-lo por estar debruçado assim ou vais ouvir a palavra dele. Pronto, não me digas mais nada, já estou bem disposto. E algumas vezes a gente encontra-se, muitas vezes até quando a gente se encontra é um problema para a gente se desencontrar. Porque a gente começa a falar, começa a falar, mais fulano, mais beltrano, o padre fulano que estava na JOC, o Padre [anonimizado], o Padre que já não me recordo. Mas a gente vai sempre falando, sempre conversando. A JOC ainda está muito viva, pelo menos naqueles que estiveram lá e que quiseram estar lá, está muito viva. Se fosse assim, vamos reformar-nos outra vez. Se houvesse alguma coisa para lutar eramos capazes de lutar. Mais velhos, mas lutávamos Angelina Ferreira: Eu acho que já não lutava mais... P: E têm esperança no futuro? Angelina Ferreira: Tenho, tenho esperança que esse futuro seja melhor. Não é melhor em riqueza, mas as pessoas serem felizes e olharem para as outras pessoas. O meu lema é: Nunca faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti e eu às vezes faço, mas depois arrependo-me e tenho coragem de dizer que me arrependi. P: E tem esperança que haja essa evolução? E o Zé Manel também tem? José Manuel Ferreira: Tenho. -
Junho de 2022
Manuela Medeiros
Entrevista a Manuela Medeiros P: Nasceste aqui em São Miguel? Manuela Medeiros: Eu nasci no dia 2/04/1942, aqui na ilha de São Miguel. A freguesia é que não foi esta, foi na freguesia de Santa Clara. Fica na rua direita, depois nós subimos à direita, antes de chegar à Igreja, a avenida que vai para o aeroporto. Era uma freguesia piscatória, agora já não é tanto. Havia muitos pescadores e encontravam-se também aqueles que iam para a pesca do bacalhau, que levavam seis meses fora, a pescar. Eu lembro-me muito bem dessa parte, porque nós tínhamos vizinhos nossos que também iam. E era muito engraçado. Quando eles chegavam, nós íamos lá para o farol da Santa Clara. Nós íamos para lá e acompanhávamos o barco, eles vinham com as caravelas e nós estávamos com os lenços a dizer adeus. Era tão lindo… E depois íamos à casa deles ver a família, eles sobretudo. Eles traziam-nos umas bolachas, eram mesmo assim grandes, de água e sal. Não era nada doce, era mesmo assim, e traziam as caras de bacalhau, essas coisas assim, que depois davam a algumas vizinhas. Lembro-me perfeitamente, tinha uma tia que fazia. A minha mãe não gostava. Aquilo é muito saboroso. Ali nasci e estive na escola até aos 10 anos. Fiz só a quarta classe. Esperei dois anos e comecei a trabalhar na fábrica de tabaco micaelense. Naquela altura era pelo menos com doze anos [que se começava a trabalhar]... É uma coisa que agora, felizmente, não se passa. Quando falo nisto lembro-me sempre que agora uma pessoa já se interessou em defender isso, para as pessoas começarem a trabalhar não com 12 mas com 16, e obrigarem as pessoas primeiro ao estudo, por uma vida melhor, pela qualificação dos empregos, quando nessa altura não se falava. E as pessoas que iam estudar eram aquelas que tinham posses ou tinham madrinhas que ajudavam a família. Nós éramos quatro irmãs, de maneira que nenhuma foi para cursos superiores. Tenho uma irmã que foi jornalista, agora está na reforma. Jornalista primeiro do “Diário dos Açores”, jornal mais antigo, que tinha quase 160 anos, e depois o responsável do jornal “Açoriano Oriental” foi buscá-la e assim foi desse jornal que ela então foi para a reforma. Eu estive na fábrica 47 anos, não foi brincadeira, e aos 16 anos comecei a tomar conta – eles diziam chefiar, eu não gostava –, a tomar conta de quase 200 mulheres. Porque a fábrica tinha mais mulheres do que homens, por causa da mão-de-obra barata. Essa fábrica nunca despedia ninguém, mas quem saía para casar, depois de casada mal ficava a trabalhar. Não ficava, nessa altura não ficava ninguém. A primeira pessoa que ficou a trabalhar na fábrica casada foi uma nora de um patrão. É casada com um filho deles. Porque até aí ninguém ficava. Entravam com 12, 14, 16 anos, mas depois casavam e iam para casa e às vezes era pena, pela qualidade que elas que tinham de serviço. Mas também, às vezes, eu ponho-me a pensar: não se justificava sair de casa a pé daqui dos Arrifes lá para baixo, não se justificava as pessoas caminharem tanto a pé para ganhar isso. Não ganhavam o suficiente para terem uma alimentação muito cuidada. Mas tinham uma vida muito alegre. Eram muitos alegres… As mulheres juntas têm os seus prós e os seus contras. Por exemplo, a minha irmã sempre gostou muito mais de trabalhar com homens do que com mulheres. Eu tive essa fase. Quando eu saía, que ia conferir serviço para o escritório, eu dizia: “Olha, cada uma está por sua conta, cada uma toma conta de si, eu não posso defender ninguém.” Nunca tive problemas, também a verdade é essa. Eu estive 47 anos, quando saí fui para a reforma. No meio disso tudo, portanto noutro ciclo, aos 12 anos, quando comecei a trabalhar, aos domingos nós tínhamos já grupinhos que se juntavam noutras paróquias. Não era na minha de Santa Clara, porque a minha ainda não era paróquia. E então o meu pai ia para o futebol, ele não gostava que a gente saísse sozinhas assim para muito longe, e ele ia para a freguesia de São José, a tal do campo de São Francisco, a Igreja de São José, e aí já tinha um grupinho que se chamava pré-JOC. Era a primeira coisa que nós frequentávamos antes da JOC. E então eu gostava, porque havia aquele convívio, conhecíamos outras pessoas, íamos um grupinho, quatro ou seis, uma coisa assim. E depois fomos crescendo, fomos desenvolvendo, depois criámos um grupinho de jovens em Santa Clara. Depois, mais tarde, apareceram rapazes também. E Santa Clara sempre teve um convívio de gente nova muito bom, assim para o positivo, mesmo com rapazes e raparigas. O padre que estava lá na altura nunca foi daqueles de dividir, de fazer divisões. Felizmente, tivemos isso. E pronto, tudo começou a partir desses grupos pequenos que depois, portanto, eu com os meus 20, antes de 20 anos, já tinha aqui um grupo pequenino da pré-JOC e depois na paróquia de Santa Clara formaram um grupo de adultos, tinham um grupo de homens e já tinham o grupo de senhoras casadas. Elas gostavam muito de mim porque eu sempre fui muito alegre. Achavam-me muita graça. Um dia o padre disse: “Olha, Manuela, eu tenho coisa para te dizer.” ”Tem uma coisa para me dizer, que coisa é essa que o senhor tem de dizer em particular?” “As tuas amigas, tu gostas muito delas e elas de ti [eu às vezes ia para casa tomar conta das crianças para eles irem para as reuniões], elas dizem que têm confiança em ti para ficares com um grupo de adolescentes, para tomares conta.” Eu disse: “Têm?” Naquela altura nós chamávamos o grupo das novas. “Claro, têm.” Eu disse: “eu não vou dizer nada. Eu vou pensar e depois o senhor vai-lhes dar uma resposta.” Fui pensar. Eu pensava e, quando estava com elas, via, pensava, e um dia falando com elas, disse: “Vocês sabem que vai haver novas eleições com um grupo e outro e nós também vamos ter eleições para o nosso grupo, de maneira que não se sabe quem é que vai ficar.” Pronto, não lhes disse o que tinham pensado, mas depois a certeza é que eu fui falar com o padre e disse: “Eu pensei e vou aceitar. Não falo mais com elas daquilo que o senhor falou, mas vou aceitar”. E foi uma maravilha. Tomei conta daquele grupinho, o grupinho desenvolveu-se. Lembro-me perfeitamente, assim perto da Páscoa. E pela Páscoa havia aquelas vigílias e eu fui dizer ao senhor padre que as novas queriam preencher uma hora de Adoração ao Santíssimo Sacramento. Eu disse-lhe uma coisa: “elas é que vão orientar a hora, eu só oriento os cânticos. Elas é que têm as coisas feitas, de maneira que quem estiver nessa hora, vai aceitar essa hora feita por elas e mais nada, como nós aceitamos as outras que os outros fazem.” E foi assim. Mas correu muito bem. Correu tão bem que depois elas disseram: “Manuela, nós queríamos ficar toda a noite, ficar com as outras. Eu disse: “vocês assim obrigam-nos [a maior parte não tinha telefones] a ir à casa de cada uma de vocês [eram umas oito ou dez], para dizer às vossas mães, aos vossos pais, se autorizam que vocês fiquem toda a noite.” E fomos. As mães, se eu dissesse que ia ficar toda a noite e eu já sabia que ia ficar, “eu vou fazer um chazinho, elas vão fazer umas bolachinhas”. Foi assim e foi maravilhoso. De facto, foi um momento mesmo de grande espiritualidade vivido por esse grupo de adolescentes, só com cânticos por mim preparados. Mas foi mesmo uma surpresa para toda a gente, até para mim, porque havia coisas que eu não sabia, porque eu não queria estar no papel de vigilante, queria ter um papel participativo na outra parte dos cânticos. E foi assim, mas correu muito bem. (Isso também é muito positivo, porque nós hoje em dia muitas vezes falamos nos jovens, mas eu e outros adultos somos responsáveis, porque esta sociedade não confia nos jovens. Nós sabemos que há uma grande, ultimamente, portanto, estou a falar dos anos 60 para agora, há muitas coisas que nós não tínhamos, sobretudo a televisão, as diversões à noite e essas coisas todas. Mas se houvesse mais confiança, uma vigilância que não fosse persecutória, mas de confiança, penso que a juventude seria outra. Sempre vi os jovens com um grande espírito de solidariedade e de humanização. E é isso que às vezes as pessoas não gostam de confiar sem saberem sempre quem comanda.) Isto foi desde o início da minha catequese até começar no grupo de jovens como responsável, portanto nos anos 60. Ainda no fim dos anos 50 fui responsável pela Juventude Operária Católica ao nível da diocese, eu fui ao bispo e tudo. As da Terceira é que me guiaram, porque a gente tinha então grupos na Terceira, no Faial, em Santa Maria não. Tinhamos cá e não tínhamos no Pico. Mas pronto, e depois já concordavam que eu fosse e andei um bocado de mala às costas a fazer reuniões, encontros, a juntar todos, a falar nos primeiros objetivos, no que era a JOC e no que é que havia de novidade no movimento católico. P: Era o quê? Estamos a falar nos anos 60? Nessa altura, o que é que essa novidade? Manuela Medeiros: A novidade era a Juventude Operária Católica, uma juventude operária que tinha os problemas do trabalho, da vida do dia-a-dia e, além disso, tinha também a parte espiritual, que é o Evangelho. O Evangelho não era só aquela doutrina de que nós líamos aquele bocadinho, mas que pegávamos nele para a vida do dia-a-dia. Qual é a palavra de ordem que nós vamos levar agora para o nosso trabalho? Porque aquele grupo já estava todo a trabalhar, embora houvesse algumas que estudavam, que não queriam ir para o grupo daquelas estudantes, queriam ficar no meu grupo. Era alegre, como eu dizia, era muito alegre. A gente juntava-se em várias ocasiões, festejávamos as amigas, coisas que vocês lá não têm. Porque no Carnaval as quintas-feiras têm todas um sentido, tem a quinta-feira de amigos, quinta-feira de amigas, quinta-feira de compadres, quinta-feira de comadres. E então pelas amigas nós juntávamo-nos, juntava-se as paróquias todas onde havia. Era São José, a Matriz, era Santa Clara, São Sebastião, que é matriz, e São Pedro. Juntávamo-nos todas e era uma alegria... Não havia os discos, mas havia música gravada, havia alguém que sabia tocar o acordeão ou coisa assim. Elas gostavam muito e eu também. A gente gostava muito disso e a partir daí as pessoas tinham isso. O que é ligado à vida é isso, não havia várias gavetas, ou por outra, havia várias gavetas, como vários conhecimentos, mas todos unidos numa função. A JOC foi uma escola de formação grande para mim, que me preparou para a vida e que me ensinou a ligar o Evangelho à vida. A gente está sempre a pensar naquilo, mas como é que eu vou fazer isso? Tal e qual como a gente vê, ligado às leis do trabalho, o que é que é certo e o que é que é errado? Se eu estivesse aqui, o que é que eu fazia? Se eu tivesse aqui, o que é que pensava? Era sempre com esse princípio… Ainda no outro dia, não há muito tempo, tivemos um encontro, de vez em quando eles fazem, mas para toda a gente, para todos os leigos, encontros pastorais, e eu fui. E depois eu disse: “Olha, o que falta hoje na Igreja é a ação católica”. E estava o bispo presente e disse-me: “A ação católica já está desatualizada.” E eu disse: “Está desatualizada para quem não quer trabalhar. Porque a ação católica leva-nos a uma ação. E a ação é essa, não é falar de Deus a ninguém, é o nosso testemunho de encontro com aquilo que nós aprendemos daquilo que está escrito no evangelho. Isso obriga-nos a mudar e a dar um testemunho em que as pessoas acreditam e não é preciso estar falando.” Ainda ontem lembrei-me disso, porque era assim: “Não julgueis para não seres julgados.” Porque a gente às vezes tem uma tendência: Porque é que ela disse? Porque é que ela fez? Porque é que ela e assim? A gente tem isso, são nessas coisas que nós aplicamos. Não julgueis para não ser julgados. Porque tu tens uma trave na tua vista, não vês, mas vês na vista do outro, que é a crítica. São essas pequenas coisas que nós vivemos e por isso é que digo que a Juventude Operária Católica, para mim, foi uma lição e uma formação para a vida por uns belos anos, e foi isso até ao 25 de Abril. Mas no meio disso, na fábrica, as minhas colegas todas confiavam muito em mim. Depois veio o 25 de Abril e os patrões juntam-se, querem formar uma Junta Administrativa. Eu estava de férias, ligaram para mim. Eu vim das furnas de autocarro para o plenário. Ficou toda a gente admirada. Eu estava de férias, mas não fui proibida de entrar (nessa altura já trabalhava na fábrica há quase 20 anos). Depois eles levavam um papel e perguntaram se eu já tinha assinado aquilo e depois iam a outra fábrica de tabaco e eu disse às minhas colegas no plenário: “Vou dizer uma coisa, eu tenho orgulho de trabalhar na fábrica Micaelense, estou contente que as outras pessoas tenham assinado, mas aqui aos meus colegas eu digo, não estou a falar mal das pessoas que nem conhecemos, mas se assinarem uma proposta dessas, eu amanhã venho para o jornal e digo que tenho um grande desgosto de trabalhar para a Fábrica Micaelense.” (Já havia as máquinas, mas nunca despediram ninguém. As primeiras máquinas da terra, foi engraçadíssimo, foram feitas por um colega nosso, também de lá, era de cigarros. Era um trabalho muito, muito engraçado, e que envolvia muita gente). E ninguém assinou, nem os do escritório assinaram. E não era contra as pessoas, mas a gente não tinha uma explicação para que é que era aquilo. Pronto, era para criar uma junta governativa, era assim. Mas então era uma divisão, queriam separar-se do continente. Eram assim umas movimentações, mas felizmente, pronto, essa parte passou, depois houve outras, e depois entrei para os sindicatos. Um dia estava lendo, porque a gente já descontava para os sindicatos antes do 25 de Abril, e estava lendo o meu cartão do sindicato, que diziam tem dever disso, tem dever disso, tem dever disso... e eu disse: “Vocês leiam o que está aqui para ver se eu estou lendo bem. As pessoas: Isso é tudo deveres, a gente não tem um direito que seja.” P: Isso antes do 25 de Abril? Manuela Medeiros: Era o sindicato das indústrias transformadoras. Disse às pessoas: “O que é que vocês acham?” A gente discutiu e não tinha um direito que fosse. A gente tem de ir à Inspeção do Trabalho, mas nós próprias não confiamos na Inspeção do Trabalho. Então, e foi nessa data que pedi licença ao sindicato dos empregados de escritório, porque das indústrias transformadoras, que era para onde a gente descontava, era uma sala pequenina e havia um pormenor, eu não cabia ali. E então eles emprestaram-nos. Lembro-me perfeitamente. Tive de subir à mesa, porque aquilo estava cheio e as pessoas não viam. E pronto, a partir daí começou a movimentação, o interesse. P: Isso foi em que ano? Manuela Medeiros: Isso já foi em 1975, logo ao princípio, quando a gente começou a estar mais consciente daqueles movimentos. Essa já foi mesmo logo a princípio do 25 de Abril, depois começou-se então os sindicatos. P: Podemos recuar um bocadinho? Manuela Medeiros: Podes fazer as perguntas que quiseres. P: Se calhar, antes de irmos para o 25 de Abril, tinha algumas perguntas sobre o período anterior, se calhar até antes disso. Os seus pais trabalhavam na pesca, o seu pai trabalhava aqui na pesca? Manuela Medeiros: O meu pai era mergulhador… e não sabia nadar. É uma anedota, mas era verdade, todas as pessoas têm essa reação. O meu pai trabalhava ali na Junta Autónoma dos Desportos no Porto de Ponta Delgada. E uma vez eu disse-lhe que queríamos a ver o trabalho dele, como é que ele fazia. E eu fui. Aquilo tinha uns fatos muito pesados, umas botas muito pesadas. Os fatos era eu que remendava. E quando ele fazia serviço, nós íamos às vezes ao fim de semana, estávamos lá com ele na sua oficina, nós sentávamo-nos ali a ver. Mas um dia ele ia para um sítio pertinho, mais à frente, ali junto do estabelecimento prisional, não sei se já passaste lá, na Calheta, e ele disse que ia: “Então vamos.” E eu fui. Ele estava lá para baixo, nós estávamos cá em cima, porque tinha assim mesmo um portozinho, estava muita gente a ver. Ele ia tirar já não sei o que foi, alguma coisa que tinha encalhado de algum barco que valia a pena, mas deu-me uma aflição e eu não quis ver. Porque eu julguei, ele estava aqui, depois aparecia ali, depois aparecia acolá. Eu julguei que ele fazia isso porque estava agoniado. Olha, tomei um medo, eu também era novinha nessa altura, devia ter uns 14 anos. Estava a trabalhar, já, mas com os meus 14 anos não tinha a perceção daquilo. Então eu fui-me embora. Disse à minha mãe que não queria ver mais e pronto. P: E a tua mãe estava em casa? Manuela Medeiros: Era, na altura era quase tudo em casa. A minha mãe, antes de casar, trabalhava com outras senhoras na costura, eram chamadas aprendizes de costura. O que elas ganhavam era o que elas aprendiam, era assim, e faziam serões e tudo. Mas a minha mãe aprendeu, não sabia fazer, também a senhora não fazia, mas a minha mãe fazia muito bem roupa de menina e chegou a criar vestidos pequeninos para crianças de um aninho e tal. Ela criava e fazia, e para a gente chegou-nos a fazer muitos. Então para nós, há muito tempo, a gente adolescentes, chegou-nos a fazer vestidos muito lindos, para mim e para minha irmã, a mais velha já não foi. Foi três, uns vestidos beijes com a fazenda lisa e criou por si. Daqui aqui levava umas tiras, mas umas tiras dobradas que lhe deu muito trabalho. Mas era assim, o entrepano era mais abaixo. Eu vou-te dizer, toda a gente gostava, era muito giro. E ela sabia então fazer isso, entretinha-se e fazia para outra gente. Eu tenho uma sobrinha neta, aquela que está ali, eu disse: “a tua bisa, se fosse viva, ela fazia-te o vestido”. Não queria. Eu disse: “Ela fazia vestidos bem lindos. Tu não sabias, ela não te ia fazer um vestido feio”, assim na brincadeira. Mas ela aí criava. Ela criava e sabia. P: E tu, não chegaste a casar? Manuela Medeiros: Não, não. Nunca namorei nem nunca casei. P: Porque lá na fábrica de tabaco era essa a regra? Manuela Medeiros: Não, não. Antes pelo contrário, havia alguns que brincavam e alguns que diziam coisas. Havia um que dizia assim: “Não sei como é, gostas tanto de crianças e não pensas num casamento ou coisa assim?” E eu disse: “Também se eu quiser ter um filho não é preciso casar.” Portanto, essas coisas assim. E à medida que elas iam saindo, a fábrica nunca ficou com maior percentagem de homens do que de mulheres. Só mais tarde, se calhar quando eu saí, à medida que iam saindo ou coisa assim. Sempre tivemos mais mulheres e do que homens, os homens eram mais na mestrança, à frente das máquinas, os técnicos de máquinas, assim. Havia mulheres que depois também já estavam, algumas raparigas à frente de máquinas e que sabiam tal como eles. E às vezes acontecia se havia alguma pessoa grávida, os patrões não podiam saber porque se não eram mesmo despedidas, aquilo era um segredo. E não havia os seis meses nessa altura, era a questão da produção que não podiam dar igual ou coisa assim, iam faltar mais ao serviço. É ganância, digamos assim, tanto de despedir como de lucro que havia as duas coisas. P: E as mulheres ganhavam muito menos que os homens não era? Manuela Medeiros: Ganhavam. Não havia assim grande diferença para aqueles que não estavam ligados a coisas qualificadas, mas já havia diferença. Aquilo era, em escudos, 6,30 e depois lembro-me de chegar a 9, não sei. Até fizemos uma festa com o primeiro salário mínimo que tivemos. Veio o 25 de abril e eu não conhecia uma nota de 1000 escudos. Quando eles ganharam os 3600, nós recebemos 3300, porque a maior parte que estava lá, era de facto uma maior parte, não recebia mil escudos, mesmo os homens não recebiam. Mas depois foi-se aproximando, mas não vou dizer que nunca se igualou, portanto houve essa diferença e depois veio esse aumento. P: Isso foi já depois do 25 de abril.... Manuela Medeiros: Sim, sim, sim. Primeiro o salário mínimo de 3300 entrou em vigou. Foi uma boa mão cheia, mas aí ninguém se desculpou, ninguém foi dizer que não queria, oh, que não queria. A gente só disse assim: “se fosse dividido por coisas, agora não sentiam tanto e nós tínhamos lucrado muito mais.” A verdade é essa. A gente sabe que os preços e o custo de vida eram elevados, mas dava perfeitamente. O primeiro trabalho que nós tivemos nos sindicatos (eu não era da direção nem nada, mas falei com a direção), fomos para lá por causa do custo de vida, do aumento do custo de vida. Depois para pagarem os salários, aumentavam noutras coisas e o poder de compra diminuiu. Pusemos uma mesa no salão do sindicato, tipo exposição, para sensibilizarmos as pessoas para essa coisa dos aumentos. Porque de nada servia um aumento salarial com o preço de vida a aumentar. P: Isso foi em que ano? Manuela Medeiros: Foi logo a seguir ao 25 de Abril. P: E antes do 25 de Abril, houve alguma reivindicação na sua fábrica? Manuela Medeiros: Sim, a primeira que houve já era por salários e houve noutra, que era também de tabaco. E aí conseguimos mas um aumento pequenino, mas que se conseguiu igualar, digamos, ao subsídio de natal. Porque enquanto umas lá na fábrica recebiam subsídio de Natal de um mês, as do escritório, nós recebíamos à quinzena, era menos 15 dias. E depois nós começámos a ver que não era certo. As do escritório ligavam para mim: “Oh Manuela, já vieste agradecer ao patrão?” “Agradecer ao patrão o quê? Não tenho nada a agradecer.” Vocês têm, mas eu recebi 15 dias, não tenho nada que agradecer. Então, lá fui ao escritório e o patrão: “Oh Manuela, alguma coisa?” E eu disse: “Eu não venho agradecer, ao contrário das minhas amigas, eu venho pedir. Venho pedir, mas não venho pedir um favor ao senhor. Venho pedir é para a fábrica, porque a fábrica somos nós todos. E o senhor, se der, é da Soares Pereira e o que venho pedir não é para mim. Venho pedir é um colchão para um casal que não tem condições nenhumas de viver e são idosos.” “Pronto Manuela, mas então queres que seja em nome da fábrica?” “Porque a fábrica somos nós, trabalhadores, que estamos a dar. E se for o senhor a dar é o seu nome. Portanto, há uma grande diferença, sim.” E depois ele assim: “Queres colchão e a cama?” Eu disse: “Isso também.” “Então vai escolher e a fábrica depois manda um carro buscar e vai entregar onde tu mandares.” E depois ele também disse: “E roupa para a cama?” Quem teve essa iniciativa foi um grupo que se juntava para questões sociais de ajuda. Mas nós não queríamos que as pessoas sentissem que aquilo era esmola. Há uma diferença. E então eu disse: “não senhor, nós também temos que sentir uma coisa do grupo, esse grupo que teve essa iniciativa, essa iniciativa não é só minha. Então nós, o grupo, é que vamos dar os lençóis, os cobertores, nós é que vamos dar.” E correu bem e depois foi feito tudo como eu dizia e ainda ficou uma ou duas a limpar a casa, aquilo não era uma casa, era uma garagem. Fomos limpar, era a tia Maria e o senhor António. E o senhor António chegou-se ao pé de mim e disse (chamava-me menina Maria): “Oh menina Maria, quando viu tudo feito [tinha muitos gatos, os gatos sujavam aquilo tudo], como é que me vou deitar naquela cama?” “Oh senhor, como se deitava na outra, é sua, mas agora já não é nada nosso. A gente vai continuar a vir fazer visitas, mas isso é tudo seu, é tudo vosso”. E foi assim, essa ação também foi bonita. Mas então é a tal parte para eles não sentirem que é esmola. Eu vou-lhe dizer uma coisa que eu gostava também de contribuir para essa despesa. Eu disse: “O senhor, nós ainda estamos devendo, mentira, estamos devendo o resto do colchão. O tio António vai-nos dar todas as semanas dois escudos e meio.” “Sim, senhora, a menina vem aqui buscar?” “Venho sim senhor.” Pronto, quando eu ia lá ele dava os dois escudos e meio e eu nunca disse que o colchão estava pago. Não é que um dia eu estava constipada e depois eles mandaram um recado e eu fui ver alguém doente que estava no hospital. E andava um enfermeiro: “menina Maria, menina Maria”, não sabia quem era. As enfermeiras não sabiam quem era menina Maria. “Senhora, é consigo?” “É comigo.” “É que está lá um senhor, que já está com biombo, que quer falar consigo e diz que tem que falar com a menina, ele já estava com um biombo para morrer.” Eu fui lá e ele disse-me assim: “menina Maria, é só para lhe perguntar quem é que vai pagar o resto do colchão.” E eu não tive coragem de dizer que o colchão estava pago. Eu só disse: “Tio António, o grupo, que gosta tanto de si, não o vai deixar mal. Nós pagamos o resto, só falta um bocadinho.” E pronto, morreu uns minutos depois. Foi das coisas mais maravilhosas também. Isto para dizer que na ajuda que damos aos outros, temos de ter o cuidado de não ferir a sensibilidade das pessoas e de lhes pôr, com aquilo que eles podem (até que seja limpar ou lavar) a colaborarem para aquilo que vai ser bom para eles, para eles sentirem a coisa sua. E muitas coisas em que há estragos, que há, é aquilo a que eles não dão valor porque não sentem as coisas como suas. E tudo o que fazemos é sempre nesse intuito: dá de graça para receberes de graça. P: Esse grupo era ligado também à JOC? Manuela Medeiros: Esse grupo sim, tinha ligações à JOC, mas não era todo. Nós chamámos aqueles que quiseram colaborar nessa parte social, digamos assim. E nem todos queriam. Quando foi da tia Maria e do senhor António, foram mais pessoas de fora para levar a cama, para armar a cama, para levar o que não prestava. Não foi brincadeira, foi muita coisa. E, cá está, nós também não queríamos, só queríamos aquelas que tivessem mais intimidade, para não os deixar vexados com aquilo. Nem toda a gente conhecia o ambiente. Essa foi das ações muito concretas. Reivindicávamos as férias, que só tínhamos uma semana e os outros tinham 15 dias. Nós queríamos as férias iguais, porque trabalhávamos os 365 dias como aos outros. Conseguimos assim alguma coisa antes do 25 de Abril, conseguimos as férias e já não me lembro se conseguimos o subsídio. Também não quero dizer coisas sem ter a certeza… P: E como é que se organizavam essas reivindicações? Era através da JOC? Manuela Medeiros: Não, tínhamos essas que já tinham essa parte social, a JOC também tinha uma parte social. A Juventude Operária Católica mete o Evangelho em tudo aquilo que é justiça, que é verdade. Muita gente, muitas daquelas e daqueles que estavam na JOC gostavam do ambiente, digamos assim. Era um ambiente leve, era um ambiente alegre, era um ambiente em que nada era exigido. As pessoas iam se queriam, as pessoas faziam se queriam. E depois havia sempre os mais responsáveis, que tinham de dar conta e dinamizar, mas não eram obrigados. Por exemplo, aquele grupo de novas ia à vigília e a mais coisas que nós fazíamos, era assim. Ninguém era obrigado, mas sempre nos juntávamos. Essas coisas faziam muito bem, faziam muito bem a todos. E depois, quando havia uma festa, o padre anunciava. A missa era toda cantada. Nós, em Santa Clara, é que começámos, porque eu fui escolhida para representar os jovens à Suíça. Isso em 1968. Aquilo era tudo em francês, eu passei fome, porque não gostava daquelas comidas e um dia eles dão-nos assim umas coisas nuns copos. Eu fiquei tão contente que aquilo era um sumo, era sopa. Eu não gostei nada da sopa, mas pronto. Mas tinha uma que se chamava Manuela Varela e ela, então, guardava para mim o pequeno-almoço, aquelas coisinhas de doce, porque sabia que eu não gostava da comida. Ela guardava e era o que eu comia durante o dia. Uma vez tínhamos a tarde livre e os franceses perguntaram se eu queria ir com eles num passeio. Claro que eu fui, a chefe do grupo, nós tínhamos uma chefe de grupo que era do continente, nessa viagem fomos 14, e cá dos Açores fui só eu. A Lurdes, ainda é viva, disse assim: “Mulher, vai, tu vais gostar tanto”. Era para conhecer, mas também queria comer alguma coisa. Como eles sabiam que eu cantava, enquanto eles comiam, eu cantava. Mas foi tão bom, cantei coisas da minha terra, cantei coisas também do continente, alguma coisa que eu sabia. Não era muito assim, mas cantei e depois à noite houve um serão, eles puseram-me uma capa preta de estudante, os nossos de Lisboa, e cantei um fado de Coimbra. Isso é terrível porque eu sei a música, mas não sei a letra. Mas então cantei: “Coimbra tem mais encanto [canta a primeira frase]”. Olha, apagaram-se as luzes, só acenderam os isqueiros. Eu comecei a inventar letras: “Quando nós não temos dinheiro, temos a solidariedade dos amigos, como abrir os frigoríficos e ver aquilo que pode servir para mais”, essas coisas assim, olha, fomos sempre safando, mas foi lindo. Lembro-me que a minha mãe me fez um fatinho verde, desse verde assim, e uma blusinha amarela. Os rapazes chegaram lá, portanto, homens despiram antes de almoçar, despiram, ficaram em tronco nu, foram-se lavar daqui para cima, vestiram uma blusa, uma camisinha lavada. As mulheres que iam mais finas, cheias de esterco e essas coisas assim, da transpiração, do comboio e da terra. Mas fomos embora assim, porque não tínhamos onde nos mudar. P: Esse encontro era da JOC Europeia? Manuela Medeiros : Era JOC internacional… P: O que é que discutiam nesses encontros? Manuela Medeiros: Nesses encontros da JOC internacional já discutíamos coisas relacionadas com o meio ambiente. Não essa coisa «climática», mas o meio ambiente: respeitamos o meio ambiente, não fazemos fogueiras nem queimas, na altura do Verão. Discutíamos como ocupar os tempos livres. Os franceses é que foram responsáveis por aquela parte da Liturgia naquele dia de como ocupar os tempos livres. Foi engraçadíssima a ideia deles. Eles levaram bolas, eles levaram rádios às costas, eles levaram coisas de jogar póquer e isso tudo, tudo o que eles gostavam de fazer. Levaram livros, levaram cartazes para chamar a atenção das pessoas que estivessem e que não pertencessem ao nosso grupo, como ocupar os tempos livres, como eram necessários os tempos livres, como era urgente a gente ter férias, os trabalhadores todos terem férias. Também foi muito bonito, em 1968. Lembro-me que foi a primeira viagem que eu fiz assim. Parei primeiro em Lisboa e depois fui de comboio, não fui de avião. Por isso ficámos todos cheios de esterco, claro. Mas aquilo tudo era alegria, tudo era folia. P: E como é que era a relação da JOC com a ditadura, havia problemas? Manuela Medeiros: Sim, não havia liberdade. O 25 de Abril, o que me deu de novo foi liberdade de expressão, sobretudo, e de escrita. Não me deu mais nada, a maneira de eu ser, a maneira de sentir, já sentia da formação da JOC, da minha escola de vida. O 25 de abril deu-me foi liberdade de expressão. E depois veio o 1.º de Maio, já depois do 25 de abril. Uma vez, lembro-me perfeitamente, no primeiro ano em que o Mário Soares nos queria descontar 2,8 % de subsídio de natal. A gente juntou-se numa campanha contra. Fomos para a Igreja Matriz. Nós tivemos que ter uma licença da câmara. Fomos à Câmara, claro que ela nos deu a cópia assinada e tudo. Estava eu a dizer: “Não nos roubam 2,8! Queremos o subsídio por inteiro, não é dividido, não é roubado!”. E veio um polícia: “Vamos acompanhá-la a casa.” “A minha casa? O senhor não está bom, eu sei onde é a minha casa. Eu tenho de estar aqui até às 7h00, às 19h00. Os trabalhadores saem às 18h30 e eu tenho que estar aqui até às 19h00, que é para eles nos apanharem, porque a gente também estão contra isso. Eles não querem ser roubados 2,8. O senhor gostava que descontassem o seu subsídio? O senhor também não quer.” “Oh, senhora, mas eu fui mandado.” “Mas diga ao seu patrão que eu não vou porque eu tenho isso aqui, olhe, a Câmara assinou. O senhor presidente da Câmara está cheio de dores cabeça. Olhe, o senhor presidente da Câmara pode ir para a sua casa quando quiser, quem não pode ir para sua casa são os funcionários. Ele pode ir para a sua casa, passe no hospital, trate de si e vá-se embora, não sou eu.” E foi assim. Depois ele veio outra vez e não me lembro. E a polícia quando falava comigo tocava-me no ombro e eu estava com mais homens. Não era uma multidão muito grande, mas estava aquele quadrado assim. E eles mais assim perto de mim, a polícia: “Oh, senhora, a senhora aceite, a gente vai... “ “Já disse que não vou, os senhores para onde me podem levar é para a Boa Nova – a Boa Nova era a cadeia, era a prisão –, porque aí eu não vou sozinha. Para a minha casa eu vou à hora que eu quiser, sei onde é, não preciso de companhias, desculpe lá”. E pronto, nunca vim embora, mas aí um senhor que estava ao pé de mim, era um trabalhador, disse: “Eu vou dizer uma coisa, você não toca mais nela. Eu não me responsabilizo, o senhor, por favor, não toque mais nela.” Olha, quando a gente dá por nós, já não havia só um polícia. Aquilo à volta eram uns 30 ou 40, eles estavam juntinhos, rodeando aquilo tudo e a gente lá no meio. E eu disse: “Olhem meus amigos, a polícia também não quer que lhe roubem o subsídio, estão todos aqui porque não querem que lhes roubem o seu 13.º mês.” Fazíamos isto com muita convicção e também com muita confiança naqueles que me rodeavam. Eu nunca estive sozinha em nada, eram poucos, mas eram bons. Porque às vezes o que tem valor não são as maiorias, mas quando as minorias são boas. E eu tive sempre isso, também havia muitos que eram contra, claro. Mas havia também aquelas que eram minhas amigas na JOC que quando me veem no sindicalismo começam a acusar-me de comunista. Eu era voluntária e ela diz assim: “Ai Manuela, que bom, desde que tu és voluntária que és muito mais católica”. E eu disse: “Eu não conheço a senhora de lado nenhum, como é que a senhora me pode ajuizar, de um valor daquilo que eu sou, de uma coisa que não conhece. Eu não sei se sou mais católica ou não”. “Ai não, a gente nota.” “Nota o quê? Eu vou-lhe dizer: eu não a conheço de lado nenhum.” “Ai, mas a gente no nosso grupo, a gente reza pela Manuela.” Eu disse: “Olha que bom, enquanto vocês rezem, dão-me mais força.” Disse: “eu estou contente, mas diga ao seu grupo que também lá há um dizer que a senhora está usando e que está lá escrito, ‘não julgueis para não seres julgados’. Não se esqueça, marque isso na sua cabeça.” Pronto isso é, são métodos muito ricos. P: Como é que foi o 25 de Abril, o dia 25 de abril? Manuela Medeiros: Ai, o 25 de Abril, eu vou-te dizer, querida. Quando foi o 25 de abril, claro que eu ainda estava a trabalhar, tinha um amigo que era distribuidor de tabaco (a minha secção era de onde saía o tabaco). Eu trabalhava com um guarda, que era fiel da alfândega e eu era fiel da fábrica. E então, eu estou a fazer o pedido, a requisição deste senhor que chegou lá (este senhor já faleceu há muito tempo e eu gostava tanto dele, era uma pessoa tão séria), eles foram distribuir o tabaco, e ele cheio de medo: “Manuela, anda aqui, anda aqui.” E eu disse: “sr. Flávio, porque é que me estás a chamar logo de manhã? O que é que te aconteceu?” ”Houve uma revolução em Lisboa.” “Ah, sr. Flávio, eu ainda não ouvi dizer isso.” Já eram umas 8h30 da manhã ou 9h00 e eu disse assim: “não ouvi.” “Ah, vai-te sentar no meu carro.” Porque ele tinha rádio e estava ouvindo. “Epá é verdade, como é que eu vou fazer isto? O que é que eu ia fazer?” Eu fiquei... uma revolução. Liguei para alguém de mais confiança, mas nesse dia não fizemos nada. Foi tudo para os seus…, tudo queria era ouvir notícias. Eu vim para casa, lembro-me perfeitamente, comprei rebuçados. Nós tínhamos um rádio antigo, muito grande, não havia televisão, havia um rádio. Tomei banho, vesti o pijama, fui para ali, a minha cozinha não era assim, portanto não tinha aquelas obras, era mais simples ainda, fechei tudo e levei toda a noite a comer rebuçados e a ouvir notícias. No outro dia fiquei tão mal-disposta. Cheguei à fábrica, depois fui falar com um, falámos com outro: “Hei, isto tudo vai mudar, agora e que vai ser ela, agora e que não sei quê... o fascismo nunca mais? É!” Então a gente vai é para a rua e pronto. E a primeira manifestação que houve eu não pude ir, porque estava num serviço de responsabilidade na fábrica, que era quando fazíamos a exportação para América. Aquilo era mais difícil. E eu não queria dar a responsabilidade a outra pessoa. Ia para a manifestação e depois, se houvesse um erro? Então a outra foi para a manifestação, mas teve um papel determinante, no Governo Civil. Há fotografias dela. Ela entrou e foi para a varanda gritar: “Fascismo nunca mais!” Ela com mais duas ou três, foi engraçadíssimo, foi engraçadíssimo. Foi uma grande força. Ela já faleceu, foi na América, porque ela depois ainda embarcou. Chamava-se Fátima. Eu não queria acreditar quando ela me disse: “tu vais ver, vais ver fotografias, eu vou comprar.” Eu disse: “tu vais comprar e eu vou-te que dar dinheiro e também quero.” E pronto, foi assim, houve coisas muito interessantes. E depois as pessoas começaram a juntar-se, aqueles que tinham mais confiança, analisando o que é que era. Porque a gente antes vivia, eu vou-te dizer… A gente, na fábrica, no tempo em que eu estive lá, mesmo antes do 25 de abril, uns 20 anos à vontade, eu nunca sofri lá dentro represálias do fascismo. A fábrica sempre teve uma parte socialmente positiva. Dava-nos a alimentação. Tinha salários baixos, tinha a divisão das férias, essas coisas assim. Quer dizer, um patrão copia aquilo que o outro faz, porque eles não querem descer os seus lucros. Era assim, mas nunca tive... Sempre falei com eles: “a gente vai festejar as amigas. Está tudo avisado. Telefonei para o comercio todo que nos fazia pedidos para aquele dia, naquela época, que quinta-feira é tarde de amigas, para não nos telefonarem.” E mesmo no dia antes, a gente trabalhava de maneiras a mandar tudo, para as ilhas, tudo, para ninguém nos pedir nada, para não faltar nada a ninguém, era assim. Portanto, eu sempre tive uma coisa a meu favor, que me ajudou nesse sentido. O que queria dizer de um patrão ia-lhe dizer, nunca mandei dizer por ninguém. Porque a gente nunca sabe como é que vão dizer. E desde que apanhei um amigo meu em falsidade… Pronto, são coisas que às vezes acontecem e a gente quando apanha, apanha. E depois a gente orienta-se de outra maneira e foi o que fiz. Ainda hoje em dia ele aqui vem. Já não nos juntamos tanto, mas não há nada como a gente dizer na cara das pessoas aquilo que a gente sabe. Porque guardando para nós destrói-nos. A gente assim liberta-se do veneno que tem cá dentro. É uma maravilha. Uma vez, lembro-me, uma segunda-feira, três irmãs, que eram tão amigas, foram fazer queixa de mim, depois de um fim-de-semana em que eu nem estive com elas. A gente foi-se embora todas bem, porque é que elas…? Não sei. Foram falar com o patrão e eu fui atrás delas. Cheguei à porta, estava o meu patrão e elas, e eu bati. O patrão disse: “Abre, abre” – porque ela sabia quem era. Então disse: “Podes entrar, Manuela.” Ele disse: “Manuela, é alguma coisa?” Eu disse: “Não senhor, não é nada, eu só venho saber de que é que essas minhas colegas vêm fazer queixa de mim. Porque se elas vierem sozinhas eu não me posso defender. Eu tenho de estar aqui.” Aí elas ficaram.... O patrão disse assim: “A tua secção é um confessionário, vocês que se vão embora todas.” Depois eu disse: “Então o senhor não chegou a saber o que é que elas vinham dizer?” “Eu não tenho gosto de saber.” Então eu nunca soube o que é que elas iam dizer. Portanto, é assim, ou a gente tem que ter coragem e enfrenta ou a gente desanima. Claro, há coisas que às vezes não correm como a gente quer. Depois tivemos a primeira manifestação, no Dia dos Trabalhadores, no 1.º de Maio, logo a seguir ao 25 de Abril, e eu não gostei nada. P: Porquê? Manuela Medeiros: A gente começava sempre com pinturas no campo com as crianças. Aí, às mil maravilhas, cantando, brincando, tudo. E depois tivemos um encontro no Coliseu, digamos assim, um plenário para informar os trabalhadores e tal. Eu também fui. Nós corríamos por todos para não serem sempre os mesmos, a verdade é essa. E como eu ia à televisão, disse “não, eu vou à televisão, é melhor a gente variar.” Eles tornam-se também mais responsáveis. E eu depois disse: “Fico então num Avé Maria em Latim, na Igreja de São José, um casamento de uns amigos meus, um casal.” E o que é que acontece na igreja? O Padre, que que Deus o tenha num bom lugar, disse assim: “Agora, antes de eu vir para aqui para essa cerimónia, para essa missa, vinha um grupo.... P: Estavas a contar-me do casamento no 1.º de Maio? Manuela Medeiros: Fomos cantar, eu cantei a Avé Maria e voltei para o campo, que tinha um quiosque, onde tínhamos a parte do encerramento. E depois alguém veio ter comigo e disse: “Manuela, tu já viste que começaste o teu dia de hoje e o que é que já se passou?” Eu disse: “Ai lembro” e a gente tem isso tudo escrito, porque eu também fazia parte da organização e disse: “Olha, eu comecei com as crianças a pintar no campo, cantando coisas para as crianças, elas dançando, os que pintavam, pintavam-se uns aos outros, isso tudo.” Depois fomos comer qualquer coisa porque íamos para o Coliseu. No Coliseu, já não me lembro quem foi que tinha a apresentação da sensibilização para o 1.º de Maio, a importância que era de comemorar o Dia dos Trabalhadores, os motivos que levaram para isso, realçando a liberdade, porque antes do 1.º de Maio nós tínhamos feito uma manifestação oito dias depois do 25 de Abril, a primeira manifestação, oito dias depois, que foi grande, linda. Mas eu não fui, havia uns outros, uma meia dúzia, gente que trabalhava já contra o fascismo, mas às escondidas claro, e esses depois saíram e fizeram uma grande manifestação, alguns deles já morreram. Tirando aqueles que estavam à frente, nós não tínhamos cravos, uns levaram azálias, que é uma flor que é parecida com o cravo, quando está fechadinha, e há vermelhas. Outros iam sem nada, com faixas do 25 de Abril, e pronto. Nessa primeira manifestação, acho que o Lourenço ainda não estava cá. Depois começou a ir para as outras e a organizar as outras, mas não estava cá. Essa foi mesmo a associação, que depois teve o nome de associação, que não era, era um grupo de antifascistas, digamos assim, que se reuniam. Portanto, era um grupo de que eu não fazia parte, porque não sabia sequer que existia. E depois, quando dessas manifestações, então disseram-nos, mandaram-nos cartas para os trabalhadores, para as fábricas, para os plenários. A gente ainda não tinha aquela postura de fazer os plenários, tinha sido oito dias depois. Não dava para isso. Mas fizemos e tivemos ainda um bom grupo nessa manifestação, uma manifestação muito boa, dessa associação. Portanto juntaram-se todos na Matriz, e viemos por lá, todos cantando, avisando, e houve um carro com micro a avisar todos os que queiram contra o fascismo e aqueles que tinham as palavras de ordem. Aí já havia a partidos clandestinos, como o PCP, e então também se juntaram e foi uma grande manifestação. P: E tu foste com quem? Foi com essa associação? Manuela Medeiros: Fui nessa manifestação, misturada ali com eles. P: Como é que conheceste as pessoas dessa associação? Manuela Medeiros: Eu conhecia-os de cá, não sabia é que eles pertenciam a nada. Não, eu não sabia. Pronto, tinha um que eu sabia que era de esquerda, dizia que era de esquerda, nem sequer sabia distinguir muito os de esquerda dos de direita e essas coisas assim, não tínhamos esse palavreado. Só havia um que era mesmo de esquerda. E ele dizia, numa reunião que nós tivemos, que ele também foi da JOC: “Sabes, Manuela, eu agora sou ateu.” E eu disse: “Olha que bom, cada um é aquilo que é, que bom tu seres ateu, eles já não estão sozinhos, já têm mais uma pessoa.” Mas uma vez estávamos numa reunião e não estavam a dar as coisas certas e ele disse assim: “Ai, meu Deus...” e eu disse assim: “Como é? Então tu és ateu, como é que estás chamando por Deus?” Eu disse: “Mas tu tens razão, porque de facto Deus também gosta dos ateus, para não fazer exceção de pessoas, deixa-te estar onde estás.” É uma questão de a gente estar atentas, mas pronto, nunca criei inimizades com ninguém por causa disso. Na fábrica, nesse tal plenário, alguns diziam: “Desconfiaste dos nossos patrões?” “Não desconfiei.” Ninguém desconfiou daqueles senhores que não conhecia, nem do meu patrão. Como é que eu desconfiei dos meus patrões? Não estava ali nenhum deles. P: Essas comissões administrativas, eram... Manuela Medeiros: Governativa, era uma que era para formar um novo governo já depois do 25 de Abril, sem a gente conhecer quem era... P: Eram os separatistas? Manuela Medeiros: Não eram ainda… Bom, não quer dizer que não tivessem ali algum separatista, porque se calhar estavam à mistura, mas eu agora também não quero afirmar. Porque depois é que foi a FLA (Frente de Libertação dos Açores), que era os separatistas. Pronto, eram os separatistas que inclusivamente... aqueles que não eram do grupo deles não podiam vestir azul, que eram as cores da nossa bandeira. Eles não gostavam. Portanto, se eu vestia azul, era a bandeira deles, e eu não me devia identificar com uma coisa que não concordava. Mas eu queria era a cor, não estava a pensar naquilo que eles eram. P: Mas essa comissão governativa era contra o 25 de Abril? Essa da fábrica que queriam que assinasse… Manuela Medeiros: Eu não sei o que é que eles queriam, o que é que eles eram, porque eram os tais que eu não conhecia. Eu estava nas Furnas, vim para saber o que é que era, mas não que tivesse conhecimento, não conhecia as pessoas. Eram pessoas, como é que eu hei de te dizer, mais ligadas ao capital. Nem sei se alguns eram patrões, eu já não me lembro. Mas pronto, eles foram-se embora, a gente não assinou, e ficou por isso mesmo, acabou. Nem os meus patrões, nunca disseram nada sobre isto, nunca, tenho que dizer a verdade. Só aquele que eu disse, mas pronto, eu não liguei e depois não sei se foi longe demais, mas pronto. E continuaram sempre, quando a gente tinha os plenários. Tivemos de ir para os regulamentos para saber quando podíamos convocar os plenários, essas coisas todas, os estatutos, os estatutos da empresa, que foram criados. O meu sindicato não tinha estatutos, tivemos de fazer os estatutos e cada um depois foi-se organizando nas suas direções, eleições, essas coisas assim, levou o seu tempo. P: Foi logo a seguir ao 25 de Abril que começou essa dinâmica de criar sindicatos? Manuela Medeiros: Sim, sim, havia os sindicatos, não estavam era organizados, não defendiam nada. P: Os sindicatos corporativos, não é? Os sindicatos nacionais? Manuela Medeiros: Eles não tinham o nome de corporativos, havia era o sindicato das indústrias transformadoras e serviços. Depois havia o dos escritórios e venda. Depois havia o dos transportes e turismo. E havia alimentação e bebidas. Mesmo assim, o da alimentação e bebidas era mais difícil para nós. Era um setor fácil de cativar, mas era o mais.... Com o dos escritórios, a gente dava-se às maravilhas, mas o de alimentos e bebidas... Tem a ver com os dirigentes, com aqueles que se querem impor, com aqueles que são melhores... Mas quando era para juntar para o 25 de Abril, a gente colaborava com a associação e conforme as despesas cada sindicato dava tanto. P: Como é que chamava associação? Manuela Medeiros: Era mesmo Associação 25 de Abril e ainda continua. P: E começaram a começaram a criar os sindicatos... Manuela Medeiros: Começámos a criar os sindicatos a partir do 25 de Abril. Portanto, num sinal de liberdade, mas também de responsabilidade e de defesa daqueles que também confiaram e nós e nos elegeram. Começámos a criar primeiro os estatutos, depois as eleições, para as pessoas irem tomando conhecimento. Eles e eu, que também não sabia. P: E tu ficaste dirigente do sindicato... Manuela Medeiros: Das indústrias transformadoras. Primeiro, não fui eu, foi um senhor que existia antes, que era da Fábrica do Açúcar. Depois dele é que fui eu e depois de mim já estiveram outros. P: E coisa que foram assim as primeiras atividades que desenvolveram? Manuela Medeiros: As primeiras atividades foram para dar conhecimento às pessoas, aos trabalhadores, acerca do que era o 25 de abril, quais eram as vantagens que nos dava. Começámos a fazer debates individuais em plenário, para juntar mais, para verem que havia gente diferente também, foi mais nesse sentido. Mas tínhamos atividades conjuntas, essa do 25 de abril foi sempre. Cada sindicato tinha a sua festa própria e depois, então, quando era o Dia do Trabalhador nós fazíamos assembleias com os dirigentes, para que cada um desse a sua opinião, e depois íamos para os sindicatos e para as fábricas também fazer plenários. Era assim. Os sindicatos dos escritórios sempre colaboraram connosco, sempre. Depois os da alimentação e bebidas também iam, mas era com mais cerimónia, digamos. São feitios das pessoas que a gente não pode mudar, é assim. P: Conseguiram uma boa adesão dos trabalhadores e das trabalhadoras nessa altura? Manuela Medeiros: Nos sindicatos? Sim, sim. Porque as pessoas já descontavam, eu já não me lembro quanto é que eu descontava para o sindicato. Depois também tivemos de ver o problema das quotas, porque tivemos que organizar os sindicatos com funcionários. E depois disso, antes do aumento de quotas, tivemos de saber como é que a gente ia pagar. É todo um trabalho que se faz e que demora o seu tempo. E defendíamos mesmo os que não eram sindicalizados. Nós tivemos um problema de um setor da Ribeirinha, que era uma fábrica que fazia fitas para máquinas e elas faziam isso em linho, na Ribeirinha. E um dia foram despedidas e foram ter connosco e nós fomos defendê-las e ganhámos. Nessa altura tínhamos o primeiro presidente [do Governo Regional], João Bosco Mota Amaral, e já não sei a propósito do quê, nós tivemos uma coisa conjunta, em que ele estava também, assim qualquer coisa do governo que ele convidou os sindicatos. Eu fui e essas já não iam receber o décimo terceiro mês, estavam despedidas. Mas ele tinha ido à fábrica, quando os americanos vieram abrir essa fábrica, com televisão e tudo, e ele deu um grande elogio, não sei quê mais. Quando a fábrica fecha, de repente elas aparecem. E ele começa a falar, a desejar as boas festas, era Natal, qualquer coisa do governo que ele convidou os sindicatos, e a falar, e disse: “Os sindicatos o que é que esperam do Natal? Toda a gente quer as suas famílias…” Eu disse: “eu queria que o senhor, com uma palavra vossa, ligue para a Segurança Social – que não pagava porque não queria fazer horas extraordinárias na semana do Natal para pagar aos trabalhadores – para fazerem o favor de pagar aos trabalhadores da Ribeirinha antes do Natal e basta só essa palavra, senhor presidente. Mas eles não querem, eles dizem que não vão fazer horas para pagar aqueles trabalhadores. Mas eles já têm o seu, senhor, isso não está certo. Como é que aquela gente que ganha salários mínimos vão passar o Natal?” Ele telefonou e eles receberam. Também reconheço que em sítios pequenos as coisas são mais fáceis, mas não esperava que eles dissessem uma coisa dessas. E o meu nome não apareceu nisso. P: E quais é que eram os principais problemas que tinham os trabalhadores aqui em são Miguel, quando foi o 25 de Abril? Manuela Medeiros: Quando foi o 25 de Abril, os principais problemas que tinham eram esses mesmos: de férias, de não ganharem igual, de não haver revisão de carreira. Não havia formação. Depois fomos sentindo a necessidade, fomos chamando pessoas. E depois, mesmo entre os sindicalistas havia alguém com mais sabedoria, aqueles que trabalhavam nos computadores e que faziam os quadros e essas coisas assim ajudavam-se uns aos outros nesse sentido e davam essa formação. E sobretudo a coragem e o perder o medo. Não havia razões para ter medo. Com casos concretos, não havia, se havia queixas, eles vinham e diziam mesmo, se for descontado horas ou isso, vocês vêm que a gente trata. Quem diz o medo, não era só meu, os outros tinham também, às vezes as horas extraordinárias que não eram bem remuneradas... E não estão a ser agora. Estamos a voltar atrás neste sentido. P: Foi necessário organizar alguma greve ou movimento? Manuela Medeiros: Sim, tivemos uma greve geral, tivemos uma greve geral cá. Credo, eu trabalhei para aquela greve geral. P: A de 1982? Manuela Medeiros: Foi, foi a nível do país. P: Como é que foi aqui? Manuela Medeiros: Adesão total, total, credo. Andámos de noite, no carro de um, no carro de outro, vigiando a fábrica de um, a fábrica de outro. Andamos nisso, a telefonar, não era telemóvel, percebe? Não foi brincadeira. O meu sindicato estava de serviço ao telefone. Havia uma parte central, o meu e o dos escritórios. Eles é que iam comunicando com os outros. Foi total. Depois fizemos ma manifestação de alegria, todos, como foram capazes, como a gente... a união faz a força, essas coisas assim. Pronto, e houve também muitas greves de setores, sim, sim. Houve várias greves de setores. P: Dessas de setores, consegue lembrar-se as que foram mais importantes? Manuela Medeiros: Parece-me que em cada setor era importante quando se convocava uma greve. Pronto, umas tinham mais adesão do que outras, a verdade é essa. Eu lembro-me que tive um colega na fábrica que estava lá há pouco tempo e não aderiu à greve geral. Eu disse: “O que é que vais fazer? O que é que vais fazer, está tudo fechado.” Abriu o portão e eu disse: “isso é contigo, ninguém te vai pôr na rua, porque é toda a gente.” Pronto, mas é normal, às vezes os medos das coisas e pronto. Mas houve várias greves setoriais, sim, mas aquela greve geral foi inesquecível, credo. P: Não houve repressão? Manuela Medeiros: Não, não. A gente estava à vontade. Pronto, talvez a força também venha disso. Portanto, assim como o mal se reproduz, aquilo que é bom também se reproduz. Mas essas coisas foram inesquecíveis. E depois nós tínhamos encontros de Natal. Nós convidávamos as mulheres dos sindicalistas para elas verem o ambiente. Para elas se aperceberem de como era valioso o trabalho que os maridos faziam. E sobretudo para que elas lhes dessem coragem, porque a gente estava num meio pequeno e as coisas podiam mudar num instante. Também houve essas incertezas na altura dos separatistas, de onde estava a força de maior capital. Não foi brincadeira. E aí houve muita gente, muitos trabalhadores, que aderiram sem saberem o perigo que corriam. E aí não era fácil pensar nisso, por mais que a gente fizesse, por mais que escrevêssemos, por mais... Mas pronto, havia a maior parte, que eram aqueles que davam emprego, que tinham mais facilidade em criar emprego, mas também conseguiu-se e isso foi muito positivo. Foram muitas noites sem dormir e a minha mãe dizia: “Credo, eu gostava muito mais...” A minha mãe fazia a comparação com o tempo em que eu estava só dedicada à JOC e chegava-se a uma certa hora e as pessoas todas iam para as suas casas e ali a gente tinha vezes, conforme as ações reivindicativas, conforme os setores, em que eram noites perdidas. Eram, eram... Houve uma vez que o Sá Carneiro veio cá. Nós estávamos no meu sindicato a trabalhar e os carros do aeroporto a passar com uns sapadores todos contentes a levar o Sá Carneiro. Não me lembro se houve alguma coisa, lembro-me dos carros a passar e de uns apitos. Nós abrimos até as varandas para ver, a gente não sabia o que era, depois é que nos lembrámos quando vimos as bandeiras do PSD. E o sindicato de escritórios ficava assim ao lado, de frente. Mas a gente tinha a preocupação de juntar. Havia a festa de Natal, a gente às vezes juntávamos as crianças, fazíamos uma festa de crianças, cada grupo levava... A gente alargava muito às famílias também. P: Estavas a dizer que convidavam as mulheres dos sindicalistas. Manuela Medeiros: Sim, sim, elas iam. P: Quer dizer que os sindicalistas eram quase todos os homens. Havia poucas mulheres? Manuela Medeiros: Havia mulheres, mas a maioria era homens no sindicato. Depois, mais tarde, já com o 25 de abril avançado, é que começaram, graças a Deus, a aparecer muitas, da fábrica do açúcar, da fábrica do papel, da fábrica de tabaco, também mais, da outra fábrica de cima, dos escritórios, começarem a aparecer mais. Não sei a quantidade em percentagens, porque é assim, eu deixei de trabalhar e depois eles ainda me queriam num serviço que era criar, digamos assim, um setor dos reformados. E eu disse: “vocês desculpem-me, mas eu não estou trabalhando, já não tenho cabeça para mais, eu estou deveras muito cansada e não pego em mais nada. Sou capaz de aparecer aqui, ali e acolá mas sem compromisso.” Quando a gente não pode, não deve aceitar. A gente não aceita só por nome, a gente aceita para trabalhar. Aí deixei de trabalhar e deixei de ter qualquer atividade com responsabilidade, a verdade é essa. Continuei ligada às ações sociais e ingressei como voluntária no hospital e já estou lá há 20 anos. De maneira que é assim e que é um trabalho que nos leva tudo. Nos leva ao contato com trabalhadores, nos leva a discutir problemas que eles têm e que às vezes não têm confiança para discutir com outras pessoas. Pronto, um bom ambiente social e sobre a saúde também. Leva-nos ao contacto com médicos. Isso eu tenho pouco, a minha irmã tem mais com médicos e com enfermeiros, com os auxiliares... P: Então a Manuela, nessa altura, no período após 25 de Abril, era uma mulher entre homens no meio sindical? Era uma das poucas mulheres que estava nos sindicatos? Manuela Medeiros: Não era a única. Era, talvez, a mais atrevida ou ativa, como lhe queiram chamar, mas havia mais algumas. Nos escritórios tinha uma. Depois do 25 de Abril, também tinha uma naqueles que era dos serviços, onde depois chegou o meu afilhado, também tinha. Tinha uma do SITAVA, mas a maioria eram homens. Manuela Medeiros: E era mais difícil para as mulheres serem dirigentes sindicais? Manuela Medeiros: Era mais difícil e não era pelos serviços em si. Eu achava também difícil, mas era porque não havia divisão de tarefas comuns. As mulheres eram aquelas que chegavam a casa e tinham outra tarefa, outro dia de trabalho como tiverem durante o dia na empresa. Talvez ainda com mais responsabilidades e que tinham de sorrir para os filhos e que tinham de apoiar os filhos. Eu sempre valorizei muito a mulher sindicalista, porque tinha duas funções, duas grandes funções de grande responsabilidade, e que tinham de encarar com a mesma disponibilidade e a boa disposição, tanto uma como a outra. E não era nada fácil, depois do cansaço, ter crianças, ter de dar um ambiente aos filhos e ao próprio marido depois de um dia de trabalho. Às vezes não era fácil. Eu sempre valorizei muito isso. De maneira que era mais difícil, sempre foi mais difícil nesse sentido. E não havia a divisão que agora há, embora se note ainda. Eu, no outro dia, estive com alguém que me disse: “Eu admirei-me porque o marido não é capaz de levantar o seu prato da mesa, um prato”. P: E acha que o sindicalismo concorreu para mudar essas diferenças de tratamento das mulheres e dos homens? Manuela Medeiros: Eu vou-lhe dizer, no início não. Nós estávamos virados era para as lutas nas empresas, mas havia uma preocupação com a família, mas não com essa ideia. Agora, às vezes íamos à casa uns dos outros, fazíamos muito isso. Por exemplo a [?]. Ela e o marido também foram sindicalistas. Ela era da função pública foi daquelas poucas que não sentia isso, porque em casa, quando chegavam, os dois trabalhavam. E com toda a abertura ela falava disso. Eram um grande casal, tanto ela como o marido, eu gostava muito deles. No outro dia vi-a, mas foi assim ao longe. Eu gosto muito dela. Era uma pessoa bem disposta e se nós acabávamos uma reunião e se estava ela e o marido, ela dizia: “Vamos a nossa casa, a gente não tem nada, mas ou assa-se um chouriço ou assim”. Eles na altura ainda não tinham filhos, mas depois tiveram dois. Agora já são casados, já têm netos... P: E nessas lutas nas empresas, por exemplo, não se tentava que as mulheres começassem a ganhar o mesmo que os homens? Não havia essa preocupação? Manuela Medeiros: Havia essa preocupação por parte dos sindicalistas, defenderem isso sobretudo para a contratação. Havia já isso de “trabalho igual, salário igual” e de não haver diferenças entre sexos. Mas era um problema, mesmo entre trabalhadores. Diziam que tinham um esforço que nós não tínhamos, que tinham mais força, faziam coisas que nós não éramos capazes de fazer. Procuravam defender-se, mesmo entre trabalhadores, não era só com os patrões. Quando há essas duas coisas é mais difícil, mas pronto, foi um trabalho lento, não podemos dizer que não foi um trabalho lento e que, infelizmente, isso ainda perdura. P: Então diga-me uma coisa, de que forma é que acha que esse envolvimento no movimento sindical marcou a sua vida? Manuela Medeiros: Sim, marcou a minha vida. Mas, como eu disse, eu tinha uma formação anterior, que foi a JOC, que me levava a pensar nos outros, naquilo que os outros se sacrificavam, que não eram correspondidos, que não eram reconhecidos. Portanto, teve uma grande repercussão na minha vida. Por isso é que eu digo que o 25 de Abril, o que me deu, foi liberdade de expressão e mais nada, a formação eu já tinha. A sensibilidade para os outros já tinha. A preocupação pela caminhada dos outros eu já tinha. Digamos assim, para que todos vivamos um momento feliz, era essa a meta, e para atingir a meta temos que passar por coisas muito difíceis. Nós conseguimos passar, mas não conseguimos alcançar tudo, porque depois há outros que vêm e às vezes não vêm com a mesma dinâmica, nem têm a mesma dinâmica, porque quem se mete numa coisa dessas nunca vê os seus próprios interesses. É isso. Eu, uma vez – não sei se já disse isto – tive um convite para ir para uma outra fábrica ganhar mais, para telefonista, e eu não aceitei. E o meu patrão soube e, para me aguentar, queria-me fazer um aumento sem ninguém saber. E eu disse que o que eu ganhasse era para ser público e na contratação, como os outros todos. Porque se eu merecia, todos tinham de conhecer. Portanto, eu sou pobre, mas não aceito. De maneira que é assim. O que ficou na contratação é o que eu recebo, mais nada. De maneira que, muitas vezes, eles precisam é de ver como tem valor a palavra. A palavra de honra, que já se deixou de falar nela. A palavra tem muito valor e muito sentido. Porque ele queria dar-me mais sete escudos e meio, ou seis e meio ou sete e meio, não era brincadeira, estás a perceber? No fim-da-semana era um dinheirinho. Mas eu não, no fim não aceitei. As minhas colegas iam saber, e depois? E depois, eu perdia toda a confiança. Ninguém é perfeito, eu posso ter muitas deformações, mas a de enganar os outros, essa não tenho. Posso ter outras coisas, mais banais ou mais difíceis ou mais prejudiciais, mas logo que seja para mim, que não se reflita nos outros, eu não me importo. Era mais 6 e meio ou 7 e meio eu já não me lembro. Era assim: toda a gente está a telefonar a dar-me os parabéns. Mas como, se eu não vou? Eu agora digo que não vou e eles não vão ver isso na minha folha de ordenado, porque eu de facto não aceito. Nem na folha individual, nem na coletiva, essa quantidade, porque não foi tratada em plenário quando foram apresentados os outros elementos. Se eu mereço, não preciso de ganhar às escondidas. É isso. E quando eles, por exemplo, uma coisa logo no início também, que foi uma edição do 25 de abril que eles queriam, mas depois lá à frente eram os representantes dos trabalhadores na administração. E houve um senhor, que pertencia ao Governo, e que me disse: “Olha, Manuela, daqui a dias tu vais e alguém daqui vai apresentar-te ao Conselho de Administração como reconhecimento.” E eu disse: “O quê, ele vai-me dar posse? O senhor está tão enganado, o senhor não nos conhece.” Eu, como trabalhador, nunca chegaria ali. Pronto, mas depois eu telefonei para si e, de facto, não fui, foi uma do escritório. E depois eu disse, quando fui lá acima dar os parabéns à nova direção: “Tinham-me dito que era eu que vinha para aqui e eu sempre disse que não. Não é que eu não merecesse ou não soubesse, mas eu onde estou, estou melhor. Não é nem o dinheiro, nem os nomes, e vocês sabem, os senhores sabem bem que eu não sou assim. Não tenho a mania de gradezas, eu sou pequenina. Não, essas coisas têm valor na simplicidade e, como eu já disse, na verdade, na palavra de honra.” Eu tenho mesmo pena dessa frase da palavra de honra, ela é dita com tanta convicção e agora já não existe. Agora dá-se por tudo e por nada. Agora veio uma corrida do salve-se quem puder, e quem puder por os pés no pescoço de outro põe, mesmo para saltar para cima. É terrível isso, uma doença. Eu nunca tive. Eu tenho no sindicato, estou no voluntariado, que é outra coisa que muito me orgulho muito, muito, muito. É uma coisa que eu gosto muito de fazer e que estou a sofrer com a paragem nestes dois anos da pandemia. Estou a sofrer com isso. Não só eu, todos os voluntários, que isso faz uma falta na nossa vida... Cada um tinha o seu horário, cada um tinha o seu dia e aquilo era para cumprir, não era para faltar, era para cumprir. Deste o nome, deste a formação, tiveste a formação, tu vais cumprir! E quando faltares, dizes a alguém para te vir substituir. O voluntariado é um serviço de amor, gratuito, mas por ser gratuito, não tem menos valor do que aquele que é remunerado. Não tem. Tem um valor que não se vê. P: Manuela, diz-me uma coisa, eu estou a fazer a história destes movimentos, tanto dos movimentos de ação católica como do movimento sindicalista. O que é que tu achas que é importante destacar e investigar na história destes movimentos? O que é que achas que falta conhecer? Se tu fosses historiadora, o que é que tu ias investigar? Manuela Medeiros: Se eu fosse investigadora ia investigar aquilo que me estás a fazer a mim. Ia saber: o que sentiste quando estiveste lá; se valeu a pena; e, agora, se tens esperança. Porque a esperança é uma coisa que não morre, mas que precisa ser alimentada. E ela só é alimentada se nós formos à procura, porque as coisas não nos vêm bater à porta. E depois dessa esperança alimentada, cria-se a tal confiança entre todos. P: Então responde-me lá às três perguntas? O que é que sentiste quando estiveste lá? Manuela Medeiros: Olha, senti dificuldades, não posso dizer que não, mas depois da confiança, da boa vontade de todos, que era de todos, do compromisso. Alguns – não há duas pessoas iguais – cumprem mais do que outros. Mas, quando assumem a responsabilidade e depois justificam, até é desculpado. Não é desculpado, é mesmo, porque ninguém é obrigado a fazer nada, tem de ser sempre de livre vontade. E depois, nós temos que ter muito em conta, quando nós estamos à frente de um sindicato ou coisa assim, que aquele dinheiro que nós gastamos não é nosso. É dos trabalhadores. Por isso, tudo tem de ser contabilizado. Há muita coisa que eu não ganhei, perdi algum, não estou arrependida. Se eu perdi um bilhete de camioneta, eu perdi, e às vezes tinha vergonha de pedir a segunda via de um táxi, de ele pensar, se quer a segunda via então perdeu. Eu tinha esse escrúpulo. E não sou rica, é sempre do meu trabalho, mas pronto. Mas preferia perder do que as pessoas pensarem mal de mim. Às vezes há escrúpulos que nos levam a perder, como eu estou dizer, mas a gente fica de consciência tranquila. E é preciso também muito cuidado e cada vez mais nos tempos que correm, porque há mais dinheiro a circular e o dinheiro se não for bem aplicado, bem gerido e a pensar sempre que – seja no Governo, sejam patrões, sejam sindicalistas – o dinheiro que nós gastamos, mesmo em serviço sindical, não é nosso, é dos trabalhadores. E por isso tem de ser tudo muito bem gerido. Quando era para aumentar os funcionários do meu sindicato, na direção a gente combinava, a gente não sabe como é, eles é que têm as contas, só resta isso. Se só resta isso, eles é que vão dizer o que é que querem de aumento para ficarem com coisas para as despesas mensais. E era assim. As coisas têm de ser feitas assim. P: Agora a segunda pergunta: valeu a pena? Manuela Medeiros: Valeu a pena! Costuma-se dizer que “tudo vale a pena se a alma não é pequena!” E é isso, tudo vale a pena. Porque no meio disso tudo há amor, há pura gratuidade, há entrega. E valeu a pena porque tive o gosto de fazer muitas coisas que deram frutos, que deram sementes. E é bom saborear quando as pessoas dizem: “Manuela, foi tão bom aquele tempo.” Ainda na semana passada falávamos nisso com pessoas que não via há anos e que tinham passado por isso. “Ai, Manuela foi tão bom aquilo”. Foi saboroso. Porque a gente trabalhava, a gente sofria, mas também tínhamos muitos momentos de alegria. Muitos, muitos. É isso. P: E ainda tem esperança? Manuela Medeiros: A esperança que resta é isso, naqueles bocadinhos e, às vezes, em conversas que temos, ou quando vemos na televisão. Há esperança de uma continuidade, que não seja igual, mas à maneira de agora, porque os tempos de agora não são como os meus tempos, são totalmente diferentes. Até quase que digo que são mais difíceis. São momentos de muito mais tentação. De paragem, porque têm as coisas mais organizadas, têm uns bons sofás para descansar. Têm uns grandes televisores para ver. Têm outras coisas. Há mais tentação para parar. Mas têm de continuar, para gozarem aquilo que fizeram – não em tempos, mas agora, se querem ver frutos dessa esperança. A esperança é alimentada com amores, com total gratuidade. Embora o sindicalista que tem horas e que tem de ganhar pelo sindicato, tem que ser remunerado, tem que ter sempre em conta que essas horas no sindicato têm de ser feitas com tanto amor e com a mesma disponibilidade, como seja um bom profissional no seu campo de trabalho. E a esperança nasce. Porque não se pode chegar a um momento saboroso, digamos assim, ao momento de partir um bolo, sem termos todos os preparos para aquele bolo e, sobretudo, não pode faltar o fermento, que é aquilo que falta. P: Muito obrigado. -
Maria do Céu Ferreira
P: Maria do Céu, a sua propensão para a participação associativa é de família? Ou seja, algum familiar seu, o seu pai ou a sua mãe, já tinham alguma participação ou foi a primeira na família? Maria do Céu Ferreira: A minha mãe foi sempre uma mulher muito decidida e sempre se bateu pelo que achava certo. Naquela altura, a participação das mulheres operárias era zero. Militou na acção católica, foi da JOC, num tempo em que a JOC tinha características muito diferentes das que eu conheci. Eram outros tempos. O meu pai era um homem de uma grande generosidade, amigo de ajudar e participava nas comissões das festas do seu bairro de nascimento, no clube de futebol. Foi, com outros, fundador do Rancho Rosas da Biqueira, que mais tarde deu origem ao Rancho Folclórico de Gouveia, que ainda hoje existe. Ele foi sócio da Associação de Socorros Mútuos dos Artistas e Operários de Gouveia, da Banda de Música 5 de Outubro, dos Bombeiros e ainda do Desportivo de Gouveia. Nasci no seio de uma família operária com muita dificuldade, a vida era muito difícil porque de um momento para o outro a semana de trabalho era reduzida de seis para quatro dias com perda de salário, o que para uma família de seis pessoas, naquela altura, era a mesma coisa que recorrer ao “fiado”. Recordo-me da empresa onde o meu pai trabalhava, a fábrica do Alçada, ter encerrado e aí as coisas foram muito difíceis, mas também me lembro que o meu pai não ficou parado, porque quando eu nasci, em 1946, ele tinha construído, com a ajuda de pessoas amigas, um tear de madeira para tecer as primeiras mantas para o berço. Ele era tecelão, foi para uma fábrica com sete anos, por isso nunca foi menino e não aprendeu a ler, mas era um artista. Foi o produto saído desse tear que possibilitou ganhar algum dinheiro. Começou a tecer passadeiras e mantas de trapos e vendia. Eu era a filha mais velha, muitas vezes o acompanhei e apercebi-me que havia gente com muito dinheiro, casas riquíssimas, e casas dos pobres, sobretudo nas aldeias da Serra, onde as casas eram térreas e muitos telhados eram ainda de colmo e onde havia muito pouco, vivia-se da venda do carvão, e de uma agricultura de subsistência. Aquele tipo de desigualdades de certo modo marcou-me. Estas influências todas ficaram… Aos três anos fui para o patronato. Naquela altura, havia grandes empresas que normalmente faziam creches para os filhos dos trabalhadores. Aqui, na altura, não havia empresas de grande dimensão, não sendo a empresa que construiu e administrou o patronato. Foi uma irmã do patrão da empresa Bellino e Bellino, e cunhada do patrão da empresa Alçada, aquela que encerrou e onde o meu pai trabalhava. Esta senhora [...], solteira, católica, de missa diária, é a fundadora do patronato para as filhas dos operários das fábricas acima mencionadas. Dos três aos sete anos, a minha educação religiosa passou muito por esta instituição. Depois fui para a escola primária e, no fim das aulas, voltava ao patronato onde fazíamos os deveres de casa, lanchávamos, rezávamos o terço e íamos para casa. Qualquer ATL de hoje não é melhor do que aquele que eu tinha, excepto na questão religiosa. Quando fiz a quarta classe, e porque os meus pais não podiam pagar a continuação dos estudos, mas também não queriam que fosse para a fábrica, continuei no patronato, onde tínhamos um sistema de estudo como se estivéssemos no liceu (em Gouveia, na altura, era o único estabelecimento de ensino), mas em que as disciplinas eram: cultura religiosa, economia doméstica, puericultura, pedagogia, costura e bordados e tudo aquilo que as mulheres tinham que saber fazer em termos de limpeza da casa. Eram estas meninas que depois cuidavam das mais pequenas, da limpeza do patronato, que ajudavam na cozinha, e que era considerado o trabalho prático do que aprendíamos nas aulas. Tudo isto era orientado por uma assistente social, uma cozinheira e ainda por uma educadora de infância, que na altura não tinha este nome pomposo. Havia rotação de trabalho semanal, hoje aquela menina ia para a cozinha, na semana seguinte ficava a aprender a bordar ou a cuidar das mais pequenas. A minha formação foi nesta área. E claro, aquilo era feito como se estivéssemos numa escola. No Natal, havia testes, na Páscoa havia testes e no fim do ano havia testes com notas expostas e a partir do terceiro e quarto ano havia dois prémios: um prémio de bom comportamento e um prémio das melhores notas. Não sei porquê a Assistente Social começou a dar-me tarefas, que eram desafios grandes e que eu tentava dar o meu melhor, porque ela acreditava que eu era capaz e isso foi determinante para mim. No final dos períodos, ela obrigava-me a ficar no patronato a estudar. E eu sempre aceitei desafios e não queria deixar quem confiava em mim defraudada. De maneira que logo no segundo ano eu ganhei o prémio das melhores notas. Mas como no segundo ano as regras impediam a atribuição de prémios, não o tive, mas fui o centro das atenções. Ganhei o prémio no terceiro e quarto anos. No final de cada ano, fazendo coincidir com o dia 15 de agosto, havia missa cantada pelas alunas do patronato, onde participavam todas as forças vivas de Gouveia: desde o presidente da Câmara ao regedor. É claro que isso também me trazia alguns dissabores... Aprendi a bordar, aprendi a costurar, só não aprendi a tocar piano e a falar francês, mas até latim aprendi, por causa das missas. Posso dizer que tudo o que aprendi foi importante. O que eu estudei em Cultura Religiosa, sobretudo no Antigo Testamento, sobre os Filisteus, a Babilónia, etc., serviu-me quando estudei História para me propor a essa disciplina no antigo 7º ano. Considero-me uma boa gestora de recursos e isso devo à Economia Doméstica, porque ao fim de cada dia tínhamos que escrever, num quadro que existia na cozinha, os preços do que gastámos com a alimentação e dividia-se pelas pessoas que tinham comido e dava o resultado para cada pessoa. Este tipo de coisas é evidente que ficou. P: O que é que o seu pai lhe contava da participação na Associação de Socorros Mútuos? Maria do Céu Ferreira: Falava na maçonaria e dos pedreiros livres, que para mim soava a proibição e falava do homem que fundou aquela associação, que tinha ido como degradado para África (participou no 31 e janeiro no Porto) e que quando voltou casado com uma mulher negra, cuja foto está no Centro Republicano Pedro Amaral Botto Machado, era um homem anti regime. Aliás, todos os irmãos, (se for à Voz do Operário, vai ver lá com certeza o nome de Fernão Botto Machado), todos eram anti regime, por isso foi enviado para África. O meu pai, que foi também ardina, nas horas vagas vendia O Século e uma vez foi preso. Ele não sabia ler, o jornal tinha chegado tarde e alguém (hoje penso que podia ser algum viajante) lhe disse: você não vende o jornal mais rápido porque não quer, caiu o governo, anuncie que caiu o governo. E o meu pai anunciou que o governo tinha caído e foi preso. E foi ameaçado. A sorte dele foi mesmo ser analfabeto e ter uma mãe aleijada de um braço e de uma perna. E que ainda por cima era uma filha da roda. A minha avó paterna era filha da roda, eu não sei quem são os meus bisavôs. O meu pai falava nos disto tudo com um certo humor. Teve uma vida cheia de histórias. Pedreiros livres, maçónicos republicanos, para mim, eram homens bons. O Botto Machado, quando regressa a Gouveia, faz muitas obras em Gouveia. Uma grande avenida, que hoje tem o seu nome, fundou a associação de Socorros Mútuos, fundou uma banda de música, fundou uma escola, tudo isto para que os operários se instruíssem e não fossem para as tabernas, portanto era um homem querido, mas era um homem anti regime. Mesmo durante o regime de Salazar, era quase proibido falar do Botto Machado. Enfim, a associação existia, mas era quase proibido os sócios operários irem lá. Entretanto, lembro-me que o meu pai era sócio e essa associação, quando o meu pai não trabalhou, foi quem lhe pagou os medicamentos, portanto era uma associação que de certo modo foi pioneira a criar uma estrutura de apoio aos trabalhadores quando adoeciam. Considero-a o embrião do movimento sindical. Lembro-me de uma vez o meu pai me levar para o patronato e estava fechado, teve que me levar para a fábrica onde trabalhava, ainda nem sequer estava na escola, tinha quatro ou cinco anos e eu nunca mais me esqueci daquele ambiente escuro e das condições de trabalho. Quando mais tarde li Charles Dickens recordei tudo aquilo que tinha presenciado em miúda. Eu própria nasci e fui criada com fábricas à minha volta. Sempre me fascinou a fábrica, quando a minha mãe ficava a dar horas, e eu podia ir à fábrica levar-lhe o almoço para poder entrar ali, para poder ver aquilo tudo. Um dia em casa ouvi a minha mãe dizer que a Sociedade Industrial de Gouveia ia meter pessoal. No dia seguinte era sexta-feira, fui à empresa pedir trabalho. Nesse mesmo dia recebi a notícia que estava admitida. Fi-lo por duas razões: porque era importante o salário para ajudar a família e porque, como militante da JOC, devia estar onde estavam os trabalhadores. Nesse fim-de-semana fiz a minha bata exactamente igual às das meninas do colégio, com cabeção com umas preguinhas e levei o casaco comprido, que era uma coisa que as operárias não levavam. Para a fábrica levava-se xaile. Fui trabalhar para uma secção de homens, mas com um grupo de mulheres, incluindo a minha mãe. Creio que não fui muito bem aceite, mas foi por pouco tempo. A não aceitação tinha a ver com o facto de vir do patronato e as meninas do patronato não iam para aquela fábrica. Lembro-me que tirava a roupa que levava e metia a manga da bata, tirava a outra manga e punha a manga... portanto, menina católica, puritana. Era olhada com alguma desconfiança. Entretanto, introduzi-me bem e pus aquela gente toda a rezar o terço de volta da minha máquina. Portanto, a máquina era uma coisa grande, três mulheres de um lado, três do outro, e no mês de Maria, que era típico, a gente ir ao terço, eu punha a rezar aquela gente toda. O problema foi quando eu, para além de rezar o terço, quando sentia que alguma coisa estava mal, ia ter com o patrão e dizia que as coisas estavam mal. Um dia aumentaram os trabalhadores e a mim também me aumentaram. Mas deram-me 18 escudos e queriam que eu assinasse 21. E eu não assinei. E depois o patrão mandou-me chamar, porque é que não assina? Não assino porque se eu ganho 18 não posso assinar 21. Aliás, eu ainda ontem estive na missa com o senhor e ouvi dizer: dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. O patrão ficava completamente sem resposta. O pior é quando ele começa a perceber que ela reza o terço, mas depois faz-me a vida negra. Entretanto, na década de 60 é fundada em Gouveia a escola técnica, nocturna. E o sindicato, que era nomeado pelo patronato, paga o bilhete de identidade, paga entrada na escola aos operários/as, porque isto interessava a Gouveia (normalmente os patrões eram os vereadores na Câmara), para que a Escola ficasse em Gouveia e não fosse para Seia, e não tanto a pensar na valorização dos trabalhadores/as. Não era, no caso da Sociedade Industrial de Gouveia (SIG) interessar ter gente culta. Pronto, e o sindicato lá pagou. A mim ninguém me convidou. Não queriam que eu fosse, mas eu matriculei-me e fui para a escola, sem pagamento de ninguém, mas pago por mim. E, por incrível que pareça, fui a única mulher que acabou o curso. Fiz o curso de quatro anos e ao fim de quatro anos pedi equivalência ao segundo ano do Liceu. Entretanto, em 1969, com a queda de Salazar, homens ligados aos organismos da Acção Católica, nomeadamente à LOC, formam uma direcção e candidatam-se ao sindicato. Candidataram-se e ganharam. Eram pessoas com quem eu tinha grandes afinidades de amizades familiares. Numa primeira ou segunda reunião, para discutir contratação coletiva, eu convido uma senhora e vamos ao sindicato, participar na reunião. Coloquei o problema: porque é que tinham que ser homens a tratar de problemas que dizem respeito às mulheres, nomeadamente a maternidade? Deram-me uma salva de palmas, que se eu tivesse um buraco tinha-me metido nele. Entretanto, convidaram-me para fazer um comunicado e eu fiz, a apelar às mulheres para participarem. Na segunda reunião eram mais mulheres que homens. Uma coisa linda, linda. Entretanto, acabei de tirar o curso de fiação, era fiandeira e o patrão quase foi obrigado a promover-me e vou para o armazém, onde continuava a contactar com pessoas com quem tinha trabalhado. O armazém era de apoio à tecelagem e às urdideiras… P: E a participação na JOC, foi antes? Maria do Céu Ferreira: Foi muito antes. A participação na JOC, para além das reuniões que havia semanalmente, onde colocávamos os problemas que tínhamos na fábrica, era também onde começámos a ter contactos com outros núcleos e isso foi muito importante. A JOC de Gouveia começou a ter contactos com a JOC da Covilhã, com a JOC de Lisboa, etc. Isto deu-me a possibilidade de perceber o que é que se passava noutros lugares, noutras latitudes, no Porto, em Lisboa. Eu tive sempre muito mais afinidades com as organizações da Covilhã e zona operária do Sul do Tejo, do que com as do Norte. P: Como é que se estabeleciam esses contactos? Maria do Céu Ferreira: Era eleita a Direção Nacional da JOC e todos os anos havia pelo menos um ou dois encontros nacionais em que se discutia o plano de ação, que depois as direções diocesanas/ regionais implementavam. Houve uma altura em que eu fui nomeada para dirigir só o trabalho das jovens jocistas. O termo era este: responsável pelas novas. De certo modo, foi isto que me levou primeiro quer para a fábrica quer para o sindicato. Para mim, o sindicato era uma coisa que devia defender os trabalhadores, de tal ordem que uma vez subi ao sindicato e perguntei: se o sindicato tem uma biblioteca, porque é que a biblioteca não está ao serviço dos trabalhadores? O homem que lá estava ficou a olhar para mim, deve ter pensado que era maluca. Porque aquilo era um lugar de homens. Os homens iam lá para ver televisão, ler o jornal e não questionar muito. Porque é evidente que, naquela altura, todas as queixas que se fazia os patrões e a PIDE sabiam, que ninguém tenha dúvidas. Claro que eu não tinha essa ideia, eu tinha a ideia de que se eu não estou a fazer nada de mal, porque é que devo ter medo de dizer o que era a verdade? Era essa inocência, não sei… Para mim, aquilo era o bem, se era algo de bem que eu tinha aprendido na JOC, se era a mensagem de Cristo… Claro, mas isto começou a ser incómodo. Realmente, a minha empresa começou a ser um alfobre de gente, possivelmente com ideias políticas, mas eu não sabia. Aliás, eu quero dizer que foi uma vez num encontro da JOC que eu ouvi um padre pela primeira vez a falar do Mário Soares e nem sequer ouvi falar de Álvaro Cunhal. Eu sabia que havia comunistas, sabia que havia alguns em Gouveia, deliciava-me a ouvir as histórias deles. Mas nesta fase, já muito mais perto dos anos 70, as coisas já estavam um bocadinho mais diluídas. A greve de 1946 foi muito dura, esteve muita gente presa, houve muita gente que teve de emigrar internamente e para o estrangeiro, mas também vieram pessoas estranhas de fora para apaziguar, nomeadamente médicos: um foi presidente da Câmara e mais tarde ministro do Interior, até o padre (os que cá estavam, que eram mais progressistas) veio de uma aldeia, e realmente eles conseguiram. A SIG continuou a ser uma empresa com gente unida e que conseguia travar muitas atitudes divisionistas. Quando fui urdideira, o responsável pela secção dava cinco centavos por cada corte urdido. Ora, quem conhece este trabalho sabe que quem urde mais cortes não é quem mais trabalha, então só havia uma forma de todos nos ajudarmos. O dinheiro juntava-se e no final da semana dividia-se. Isto levou a uma grande entre ajuda e deitou por terra aquilo que o chefe pretendia. P: Era o seu pai que lhe contava sobre a greve de 1946? Maria do Céu Ferreira: A minha mãe, a minha mãe participou na greve e até dizia que as amigas dela diziam: tu fazes greve porque ainda estás a comer da boda de casamento. A greve foi em abril e a minha mãe tinha casado em 27 de fevereiro. O meu pai creio que não fez greve. Mas o meu pai falava muito na associação de classe. Ele falava da associação de classe muito anterior à greve e até contava a história que o patronato dizia: “ide para vossas reuniões que nós vamos para as nossas”. Nós sabemos da vossa e vós não sabeis das nossas. Os patrões sabiam tudo o que se passava na reunião dos trabalhadores, mas eles não sabiam o que se passava na dos patrões. E outra: por exemplo, durante a Segunda Grande Guerra, havia um burguês, que era doutor de leis, que eu não conheci, esse dr. dizia: nós cá ainda não comemos nem cães nem gatos, quer dizer que em Portugal não havia guerra, e que não tinham comido nem cães nem gatos. E o povo que passava fome arrombou-lhe a casa para lhe roubar a “tulha”, porque realmente as pessoas tinham fome. Ele não tinha comido cão nem gato, ele, porque ele tinha muita gente da agricultura a trabalhar para ele. Ele tinha terras, portanto dava terra às “terças”. É assim: dois terços é para nós, um terço é para quem produzia. Portanto, eles tinham tudo. Estas histórias, este ambiente na família existia, eu fui muito tocada por ele. P: Quando começou a participar no sindicato foi na altura da discussão do contrato coletivo de trabalho? Maria do Céu Ferreira: Sim, eu fui à primeira reunião. Como já disse anteriormente, esta segunda reunião em que já participaram muitas mulheres, foi uma coisa mesmo bonita. Nesta altura eu ainda não era dirigente sindical, ainda não estava na direção do sindicato, mas fazia parte de um grupo que fazia os comunicados, sobretudo quando se tratava de problemas específicos de mulheres. Eu ia para a fábrica às seis e meia da manhã, trabalhava por turnos para estudar à noite, saía às 11 da noite e ainda íamos para o sindicato fazer comunicados. Foi um período muito envolvente, foi uma época muito rica. Quando, em 1973, há novamente eleições, eu vou para a direção do sindicato e é aí que eu começo a participar na CGTP, embora eu, não sendo da direção do sindicato, já ia às vezes com eles a algumas reuniões. E aí eu começo a trabalhar muito com as pessoas da Covilhã. Aliás, eu sempre gostei da Covilhã, mesmo ao nível da JOC eu reunia muitas vezes na Covilhã e há uma altura em que havia um homem que era da LOC, um homem muito interessante, que era debuxador, e nós deixámos de o ver e eu fiquei sempre com aquela ideia de que ele tinha emigrado, de que ele tinha fugido. Mais tarde encontrei-o na Festa do Avante! e alguém chamou: Oh [...], anda cá -mas eu conheço o [...]. E perguntei-lhe: não eras tu que estavas na LOC nesta altura e emigraste? Sou eu! Então olha, eu sou a Céu. Foi então que ele me contou que teve mesmo de fugir. Há todas estas influências ao longo desta caminhada. P: Esses contactos com a Intersindical foram ainda antes do 25 de abril? Maria do Céu Ferreira: Sim, eu participei em muitas reuniões antes do 25 de Abril. Eu era menina, porque eu ia de Gouveia com os homens todos e é engraçado porque fui sempre muito bem tratada, no sentido de protecção. Em 8 de dezembro de 1973 há, na Covilhã, um grande encontro do sector dos lanifícios. Eu tinha ido a Lisboa, a uma reunião da Inter, e vim directamente para a Covilhã . Participaram os cinco sindicatos dos lanifícios, que nessa altura já integravam a Intersindical. Era feriado, mas apesar de haver uma certa abertura do regime, a actividade sindical era sempre feita ao fim de semana ou fora do horário de trabalho, e foi nesse encontro que tomei consciência pela primeira vez da presença da PIDE. Estávamos rodeados. Aquilo foi um grande encontro para discutir o aumento dos 1000 escudos. Nessa altura, trouxemos circulares para serem distribuídas pelos trabalhadores e qual é o meu espanto? As circulares desapareceram. Perguntei ao presidente, o tal que fez o discurso no Natal e ele foi se desculpando até que aparecem, mas recusava-se a distribuir. Essa fase de dezembro de 1973 a 1974 foi uma fase muito difícil, em que já se notava uma grande pressão, da PIDE, e das forças vivas de Gouveia. Por exemplo, eu entrava no sindicato sempre com polícia à porta, mas naquela altura nem ligava a isso. Um dia, fui avisada por um amigo: se tens alguma coisa lá em casa que te incomode, é melhor pores fora. O que é que eu tinha em casa que me incomodasse? Assinava as edições D. Quixote, que normalmente saíam e imediatamente eram proibidas. E recebia algumas cartas, por exemplo do Laboratório Bial, e vinha lá dentro propaganda de outros sindicatos e de outra gente, sobretudo do Dia Internacional da Mulher, mulheres que faziam iniciativas e me mandavam. E eu todas essas coisas guardava. Resolvi guardar em casa de um irmão. Vinha eu a voltar para casa com a minha irmã e o meu pai e passam muitos carros. E ao outro dia, a minha irmã que trabalhava num pronto-a-vestir em Gouveia, o presidente da Câmara, que frequentava o estabelecimento perguntou: então menina, ontem você e a mana vinham de onde? Vínhamos de casa do meu irmão. Ele vinha com o Governador Civil. Aí é que eu comecei a sentir, a ter noção da vigilância Entretanto, no fim de março, todos os técnicos e os quadros intermédios da empresa são aumentados e eu, que era quadro intermédio, não tive aumento. Fui ao escritório falar com um dos patrões e disse: sou quadro intermédio, cumpro o meu dever, como sabe, trabalho muito e não me aumentaram. Responde: nós vamos fazer uma reconversão na fábrica e como a Maria do Céu é a pessoa mais nova e não tem família para governar, vamos despedi-la. E no dia 4 de abril era despedida, com um cheque de pouco mais do que 20 mil escudos e com os maiores elogios. Respondi que o meu despedimento era por ser dirigente sindical e que por essa razão o cheque tinha que ser a dobrar. Entretanto, participei aos quatro sindicatos dos lanifícios, participei à CGTP e também não foi nada que me admirasse, aliás eu já tinha escrito ao Manuel Lopes dizendo que mais tarde ou mais cedo era normal que fosse isso que ia acontecer. Aliás, nessa altura aconteceu outro despedimento, na Castanheira de Pera. As manifestações de solidariedade foram muitas, quer dos sindicatos quer ainda dos trabalhadores. Em 17 de Abril realiza-se um plenário pela minha readmissão e pelo aumento de 1000 escudos, com tanta gente que houve muita gente que não conseguiu entrar no sindicato. Nesse dia ficou marcado um outro plenário para o dia 28 de abril de 1974 em instalações que permitissem ter muita gente. Não foi nada fácil ceder instalações, pois o que havia estava dependente de gente do regime. Entretanto, o Governo Civil da Guarda tinha enviado para o sindicato uma contra fé, creio que era assim que se chamava, para me apresentar no Governo Civil no dia 25 de Abril. Eu e um padre. Possivelmente sabiam que, possivelmente, o 1.º de Maio ia ser celebrado e, portanto, era melhor engavetar dois ou três. E isto era geral ao nível do País, como mais tarde se soube. Entretanto, o 25 de Abril acontece e conseguimos o cinema para fazer a reunião no dia 28, que continuava a ser pelo aumento dos 1000 escudos e pela minha readmissão. E ainda nesse dia 28 foi feita a primeira manifestação em Gouveia depois do 25 de abril, onde pela primeira vez se falou em socialismo e comunismo. Houve ainda uma manifestação de trabalhadores junto à sociedade industrial pela minha readmissão, que foi feita no dia 2 de maio. Uma amiga minha trabalhava no laboratório e foi uma ativista pela minha readmissão, e o patrão que sabia ser minha amiga, vai ter com ela e diz-lhe: pode ir ao sindicato dizer à Maria do Céu que pode vir trabalhar amanhã. E eu cheguei à empresa e entreguei o cheque que eles me tinham dado. Porquê? Porque aquele cheque não era aquilo que me pertencia, era o dobro. E como era o dobro eu não aceitei e por isso esperava que fosse resolvido. Entretanto, como eu estava despedida, acabei por ir ao seminário e pedir ao padre, que me tinha e tem muita estima e amizade, para poder facultar as aulas do quinto ano para poder fazer algumas cadeiras. E lembro-me que no 25 de abril chego ao seminário e estava o padre [...] à minha espera. Disse-me: há uma revolta em Lisboa, está a haver uma revolução, e eu só lhe pergunto, é da ala Kaúlza ou é da ala Spínola? Como se fossem muito diferentes, não eram muito diferentes, mas na altura as coisas eram assim, porque, entretanto, o Spínola tinha escrito aquele livro Portugal e o Futuro, e ele disse-me: não sei. Mas, entretanto, ao intervalo diz-me: olha, é do Spínola, porque o professor de Física, a mulher é francesa e ouviu na rádio francesa as notícias. Pronto, e eu vim para casa e digo à minha mãe: olha há uma revolução em Lisboa, eu já não sou presa. E a minha mãe diz-me: o meu filho já não vai para a guerra colonial. O meu irmão mais novo… E digo-lhe eu: olha, mãe, mas atenção, que tu tens dois irmãos, que um é vice-governador de Vila Pery e o outro está na Emissora Nacional. Pois, eu nunca sei do que está em Vila Pery o que será. E realmente era um homem do regime. O que estava na Emissora por acaso era comunista. Depois do 25 de abril, a história não está feita. Foi um tempo com muitas solicitações, eu pesava 55 quilos, perdi 10 quilos. Porque eu vinha de Lisboa, chegava às 15 horas a casa, à meia-noite metia-me num comboio para chegar a Lisboa de manhã, o meu sistema nervoso não me deixa comer, eu sou assim, foi muito tempo… P: E o primeiro de maio em Gouveia, como foi? Maria do Céu Ferreira: Eu não estive no 1º de Maio em Gouveia. O sindicato levou um autocarro para Lisboa, mas aqui ficaram outros dirigentes que o organizaram e foi grande como em todo o lado. Eu, no primeiro de maio, fiz parte da segurança da manifestação em Lisboa e eu escrevi aquilo que eu senti naquela altura, na braçadeira que levei e que guardei até hoje. Depois há o 28 de setembro, depois o 11 de março, eu sempre muito envolvida com o MFA. P: Conte-me lá como foram essas iniciativas? Maria do Céu Ferreira: Íamos às aldeias falar com as pessoas, explicar o que tinha sido o 25 de Abril , o que é que os militares cá estavam a fazer. Era essencialmente isso, nalguns casos aqui não houve muita participação, mas a engenharia militar veio abrir caminhos: na dinamização cultural, na alfabetização, na iniciativa contra a marcha [da chamada maioria ] silenciosa, contra os boicotes nas empresas. Foi gratificante sentir que contribuí para a consolidação do 25 de abril. De tal ordem foi o envolvimento que um dos militares que passou por aqui convidou-me para madrinha de casamento. Quando foi do 11 de março, os militares foram para estrada inspeccionar os carros, quem ia e quem não ia, e nós íamos também. P: Havia uma relação entre o MFA e os sindicatos? Maria do Céu Ferreira: Aqui havia, aqui houve sempre e foi de grande ajuda mútua. P: Quais foram as iniciativas mais importantes em Gouveia? Maria do Céu Ferreira: Estamos a falar em termos sindicais. As iniciativas mais importantes foram ao nível da empresa. Ao contrário do que se imaginava, a empresa onde trabalhava, apesar de ter feito uma festa no final de 1973, de ter aumentado os quadros técnicos e administrativos, parece que não tinha tanto dinheiro assim. Aquilo era uma sociedade anónima, mas em que uma família tinha a maioria das ações e praticamente essa maioria é que governava. Essa maioria não estava interessada em investir dinheiro e então o que é que fazia? Gastava. Comprou outra empresa, depois do 25 de abril, que se dizia que era para acabar com aquela, e para levar só alguns trabalhadores da S.I. Gouveia, onde estavam, para essa empresa que foi comprada. Associou-se essa empresa a um vendedor e a um empreiteiro e formaram uma empresa de construção civil. Servia para fazer obras de construção civil nas empresas e para onde canalizavam o dinheiro. Essa empresa que foi comprada teve que ser reabilitada, havia dividas... e o cheque que a empresa teve de passar era de 300 contos, quando a obra não tinha sido mais do que 30 contos, isto dito por um dos sócios. Esse vendedor vai a minha casa, à casa do meu pai na altura, para eu denunciar o que estava a ser feito, e eu disse-lhe: tenho muita pena, mas se o senhor não me der papéis eu não vou denunciar. Porque depois também havia o aproveitamento de muita gente, a mandar recados para os outros dizerem. Entretanto esse patrão morreu, mas quando foi o 25 de novembro dizia-se que ele estava no Brasil. P: Houve alguma tentativa de implementar o controlo operário? Maria do Céu Ferreira: Na minha empresa criou-se uma cantina, um médico… Esta questão de controlo operário em autogestão não, mas que a gente queria saber como é que era e como não era sim. Criámos a cantina, que ainda durou algum tempo, mas depois acabou a empresa, acabou a cantina. O médico era um verdadeiro socialista, mas de verdade, um homem que lutou contra a ditadura e que também por isso sofreu e foi expulso da função pública e que aceitou vir para a empresa dar consultas. E houve melhorias, é evidente, das condições de trabalho. Era uma empresa muito apoiada pelo antigo regime, a maior parte do trabalho era para a guerra, para a Marinha, para a GNR. Portanto, para além da instabilidade de o patrão não se adaptar aos novos tempos, de uma quebra de algumas encomendas, houve greves por não pagarem os salários e mesmo assim conseguimos que o Ministério da Indústria desse dinheiro, aí também com a ajuda do MFA. Entretanto, esse patrão morre, fica o cunhado, que não percebia nada, nada, nada de indústria. Portanto, mete-se a família na empresa, só porque é família, não percebia nada. Depois ainda se tentou uma comissão para controlar, mas não resultou. Depois descambaram, porque numa altura em que os trabalhadores queriam que as coisas andassem, inclusivamente quando veio dinheiro para salários, abdicaram dos salários para comprar matéria-prima, esse patrão despede sete ou oito trabalhadores. Aquilo criou um conflito que nunca mais foi sanado e a empresa fecha. E os trabalhadores ficaram três meses à porta da empresa, em tendas, isto foi no princípio de 1981, com grande apoio e solidariedade, mas também com a polícia a fazer guarda para nos demover. Havia um trabalhador que tinha a incumbência de, se viesse a polícia, ir aos bombeiros tocar a sirene. E fez, e foi julgado, mas absolvido. P: Não está a falar da greve dos 29 dias? Maria do Céu Ferreira: Não, essa greve aqui não existiu. Essa foi na Covilhã. Aqui é uma outra greve, pela readmissão dos sete trabalhadores, mas já era impossível... A greve terminou, mas depois o patrão fez lock out... Foi uma coisa trágica. Depois fechou, foi muito mau, porque eram 400 trabalhadores, famílias inteiras e na altura o que valeu foi a emigração para a Suíça. P: No 25 de abril houve algum movimento popular para a construção de infantários, saneamento básico? Maria do Céu Ferreira: Gouveia era uma terra já com boas infraestruturas, mas por exemplo houve movimentos para mudar nome de ruas e um movimento para criar um lar que era um solar, onde hoje é o museu Abel Manta, mas depois se chegou à conclusão que não havia condições, que aquela casa não tinha condições para ser um lar e a família deu-a para o museu. Houve ocupações de casas, mas não foram coisas muito duradouras. Não sei qual é a explicação, mas, por exemplo na minha empresa, os quadros técnicos eram quase todos oriundos da Covilhã. Sendo assim, não era fácil haver interesse nesta coisa da toponímia, do lar… Acaba por ser uma pequena burguesia, onde depois é importante ter alguns operários e ter o sindicato. Mas é também verdade que, nessa altura, o sindicato estava muito virado para as lutas nas empresas, para a luta das 42 horas e meia. Não era muito possível estar em todo o lado. E também na altura foi obrigatório fazer eleições, foram umas eleições terríveis, aí houve grandes clivagens, apareceu a nossa lista, a minha lista, e apareceu uma lista ligada ao patronato. Foi uma campanha que parecia uma campanha eleitoral. Lembro-me que na noite antes das eleições aparecerem uns panfletos a dizer “não votes na Catarina”, Catarina era eu. “Não votes na lista dos comunistas”, que na altura era eu. E estávamos no sindicato e aparecem três ou quatro a querer falar com o presidente da assembleia-geral, já eram umas nove da noite. E nós não o deixámos ir sozinho e fomos com ele. A ideia era roubarem as urnas, era a gente sair dali, ir atrás dele, e roubarem as urnas. E, entretanto, no sindicato já não havia muita gente nessa altura e eu lembro-me de que tinha lá a minha irmã, e ela realmente tem uma grande perspicácia, e disse “olha que eles estão preparados para… olha que eles até lanternas têm”. E eu lembro-me de ter telefonado para o restaurante onde havia um camarada e onde era possível que alguns trabalhadores tivessem ido para lá. “Venham para cá porque isto está rodeado de gente que não ganhou as eleições, mas que está disposta a boicotar estas”. Ganhámos em todo o lado, menos na cidade da Guarda. P: Qual foi o papel da JOC e da LOC no período revolucionário? Maria do Céu Ferreira: Eu já não participava na JOC. Eu acho que foi muito pacificador. Os antigos dirigentes antes de mim trabalhavam numa empresa e por lá se mantiveram. Embora um deles fizesse parte do sindicato, da assembleia-geral, era um homem pacificador, não era um radical e travava um bocadinho, mas também não foram anti... Mas nessa altura a LOC também já estava muito desfalcada. P: Houve uma maior participação das mulheres neste período? Maria do Céu Ferreira: Sim, sim, sim… Aliás, que já vinha de trás, atenção, já vinha de 1971-1972. Aliás, aquele comunicado foi realmente uma coisa… foi muito bom, nomeadamente quando estivemos três meses à porta da minha empresa. O trabalho das mulheres foi extraordinário. A fazer comida, a revezar-se, a fazerem os turnos. Eu acho que as mulheres às vezes demoram mais a aderir à luta, mas quando aderem é deixá-las ir, é deixá-las andar e às vezes é preciso pôr-lhes travão. P: Foram organizadas iniciativas específicas relativas à mulher trabalhadora na indústria têxtil, não foram? Maria do Céu Ferreira: Sim, nos lanifícios fizemos sempre coisas muito giras no 8 de março, embora também aí convidássemos homens. Não era uma coisa só para mulheres. Eu acho que a luta das mulheres tem a ver com os homens, que participam e ajudam. Mesmo nas empresas faziam-se coisas que depois se foram perdendo, também porque o sindicato mudou, as pessoas não foram as mesmas. Eu deixei o sindicato em 1978, fui para a União dos Sindicatos, e depois tive de voltar. Foi bom, acompanhámos sempre as lutas nacionais, a não ser a greve dos 29 dias, que foi mais na Covilhã. Acho que aqui não tínhamos arcaboiço para essa luta. A Covilhã era uma terra operária mesmo, aqui, a determinada altura, o patronato, mesmo antes do 25 de abril, quando foi da adesão à EFTA, a emigração, a guerra colonial, que levou muitos homens, eles foram buscar as mulheres ao campo. A população feminina era muito rural e isso é também um fenómeno que difere muito da Covilhã. Mas o patronato vai buscá-las não é por acaso, eles sabem muito bem o que fizeram: eles foram busca-las porque sabiam que era ali que deviam investir, porque havia pessoas ali que qualquer tostão era uma coisa ótima. Já muito depois do 25 de abril, estava eu na União dos Sindicatos, e lembro-me que uma empresa, que era dos vestuários, dizer: “o que ganho aqui gasto tudo aqui.” Se estivesse em casa, o que ganhava era para gastar com aquilo que faria em casa. O que ela gastava em transportes para vir da terra onde vivia para trabalhar, teve de pôr o filho na creche e a mãe num lar. E dizia-me: “contas feitas, só ficam 10 euros, mas é importante eu vir trabalhar.” E isto é verdade. Havia outra que me dizia “o meu pai pagava-me o dinheiro da fábrica para eu não vir trabalhar”. Portanto as situações são diferentes. A minha empresa, por exemplo, tinha pessoal que vinha da Covilhã, mesmo trabalhadores que vinham da Covilhã, não era só técnicos. Com outra visão. Era mais fácil de mobilizar. P: E quando foi para Guarda, quais eram as diferenças? Maria do Céu Ferreira: Na União era um bocadinho diferente. Eu fui coordenar vários sindicatos, mas creio que eu consegui, porque antigamente aqui no distrito tínhamos quatro sindicatos, lanifícios, metalúrgicos, rodoviário e o comércio. Claro que depois tínhamos trabalhadores, professores, função pública, que ao longo do tempo também se foram organizando na região. E a minha tarefa era unir essa gente toda. E realmente essa tarefa foi conseguida. Quando eu saí tinha os sindicatos todos praticamente na União, creio que agora também estão praticamente todos. P: E que tipo de atividades é que desenvolvia a União? Maria do Céu Ferreira: Desenvolvia atividade de levar à prática aquilo que a CGTP propunha para a região e sempre que um sindicato travava uma luta a União apoiava, inclusivamente aqueles sindicatos que não tinham qualquer tipo de organização, a União apoiava. Pode-me perguntar como é que a União tinha dinheiro. Os sindicatos davam um X por cada trabalhador, a CGTP dava um X. E mais tarde começámos a fazer formação profissional, muito mais tardiamente do que outros setores. E a União da Guarda sempre cumpriu aquilo que era uma prática: dinheiro da formação não é para a atividade sindical. Porquê? Porque isto podia levar a que a gente descurasse o trabalho sindical, tirava dinheiro daqui, punha aqui. E essa foi também uma tarefa conseguida, a União da Guarda comprou uma sede. Por exemplo, num conflito que houve numa empresa de metalurgia, em que os patrões queriam pôr os trabalhadores ao turno e os trabalhadores assinaram. Mas quando um trabalhador trabalha ao turno, tem de ter meia hora para comer, essa meia hora tem de entrar no horário de trabalho, e eles não queriam dar, e diziam “então eu não assino”. E houve um conflito, lá fui eu para o Ministério do Trabalho, e jornalistas também, isto quando há “sangue” lá vai tudo. Utilizei os argumentos todos, expondo: “se o Ministério do Trabalho é para defender os trabalhadores e para defender a lei, e a lei está aqui, está escrita. Por outro lado, se não fosse para defender a lei, não valia a pena haver Ministério do Trabalho aqui. Por outro lado, se o patrão quisesse fazer uma empresa com máquinas de costura umas em cima das outras, vocês iam lá e diziam que as máquinas deviam ficar a uma determinada distância. Se fazem isto com as máquinas tem de fazer isto com as pessoas. Se é importante para a empresa trabalhar por turnos, a meia hora tem de ser dada.” E a gente não chegou a conclusão nenhuma, e eu disse para um doutor “se a gente não chega a conclusão nenhuma, eu sei que o Manuel Carvalho da Silva amanhã vai ter uma reunião com o Diretor Geral do Trabalho em Lisboa e eu vou já mandar-lhe um email com isto para ele ver”. Mal tínhamos chegado à União, já tínhamos um telefonema a dizer “não mande nada, que o problema já está resolvido, agora é só acertar as coisas”. Claro, não podia ser de outra maneira. Pronto, eram estes pequenos grandes conflitos. Organizar manifestações, fazer uma greve, dar apoio aos sindicatos com mais dificuldades, quer financeiras , quer de quadros. P: Participou na própria estruturação da CGTP ao longo destes mais de 40 anos, quais é que acha que foram os momentos mais importantes? Maria do Céu Ferreira: É evidente que o momento mais importante foi o 1º de maio de 1974. Se não houvesse movimento sindical organizado na CGTP, o 25 de abril teria sido um golpe de Estado, mas nunca teria sido uma revolução. Também se calhar não foi assim tanto... mas conseguiu-se aquilo que se conseguiu, foi porque havia trabalhadores organizados. Eu lembro-me, por exemplo, de o Álvaro Rana ir à Cova da Moura dizer ao Spínola e a quem lá estava “o primeiro de Maio é feriado”. E o Spínola torceu o nariz e o Álvaro Rana disse “se o senhor não decreta, decretamo-lo nós, porque nós vamos para a rua” e tiveram que decretar. A primeira greve Geral de 1982, a marcha contra o desemprego, isto para dizer todos estes momentos foram momentos importantes, até os momentos em que a gente se sentia cercada, mas enumerá-los era quase um livro… P: Como por exemplo? Maria do Céu Ferreira: Por exemplo quando foi do 28 de setembro, lembro-me do patrão da Vodratex vir ao sindicato pedir-me para ir à empresa explicar o que se estava a passar aos trabalhadores. Porque quando se ouviu falar que havia outro golpe, o pessoal parou. E eu disse ao patrão “o que é que eu vou lá fazer?”, “Vem dizer o que se está a passar”. E fui e isso também mostrava a vitalidade do sindicato e a confiança que os trabalhadores tinham na sua organização de classe. Mas era também uma responsabilidade e um compromisso com a verdade. P: Participou nos congressos nacionais da CGTP? Maria do Céu Ferreira: Sim. Por exemplo, o Congresso de todos os Sindicatos foi uma coisa realmente fantástica, de unidade, em que era possível dialogar. Eu acho que a minha geração, a geração que agora tem 70 anos, era gente com convicções muito firmes, mas uma gente com uma capacidade de diálogo muito grande e isso permitiu chegar onde se chegou. O Kalidás era um socialista, puro, o que não o impedia de trabalhar com o Álvaro Rana, que era comunista, e com os católicos. Uma coisa que eu ainda hoje digo, eu lidava com muitos comunistas que não sabia que eram comunistas, mas que tinham um grande respeito pelas minhas convicções enquanto católica. Eu estive na Base-FUT, eu ainda sou da origem da Base-FUT, não continuei na Base-FUT, porque tinha de ir para Lisboa sozinha, não era muito compatível. P: Também participou nos Centros de Cultura Operária? Maria do Céu Ferreira: Participei nos Centros de Cultura Operária, sim senhor. Ainda hoje tenho aí montes de revistas e fazíamos reuniões muito giras em que discutíamos artigos. Eu lembro-me de uma discussão muito gira que foi ler o poema do menino do bairro negro, do José Afonso, e depois discutir. Havia os cadernos GDOC, que tenho ainda guardados, que discutíamos reflectindo e que foi de grande valia em termos sindicais. P: Foi em que altura? Maria do Céu Ferreira: Foi ainda antes do 25 de abril. Depois do 25 de abril foi mais difícil porque já estava muito envolvida. Os CCOs, que deram origem à Base-FUT foram criados antes, e foi aí que se criaram os cadernos GDOC e se fizeram discussões aturadas. P: Lembra-se dos encontros dos CCOs em que participou? Maria do Céu Ferreira: Lembro-me de alguns… . Claro que era tudo gente ligada à JOC, tudo gente que vinha da católica. P: Onde é que se encontravam? Maria do Céu Ferreira: Eu acho que alguns encontros já foram onde é hoje a Base-FUT. Eu não tenho a certeza, mas em Lisboa, na Federação dos Lanifícios, na Avenida Almirante Reis, onde é hoje a Inovinter, onde estava muita gente da Católica, em algumas situações serviu para reunir o CCO. P: Qual é memória mais marcante que tem do período revolucionário? Maria do Céu Ferreira: Marcante, marcante foi a minha readmissão. Depois foi a conquista do sábado, das 42 horas. Em pleno inverno, aquilo foi uma coisa... as empresas todas paradas ao sábado, os trabalhadores com fogueiras para se aquecerem e eu, com outros dirigentes, a fazermos a volta às empresas... Isto foi no inverno de 1975, foi antes do 25 de novembro, a conquista do sábado foi antes do 25 de novembro. P: Foi uma greve duradoura? Maria do Céu Ferreira: Não, nós parámos num sábado e nunca mais trabalhámos ao sábado. Aliás, nós fomos os primeiros do sector a ter as 42 horas de trabalho. O sector têxtil, para conseguir as 44 horas, fez outras manifestações e outras lutas. Os lanifícios conseguiram as 42,5 horas muito rapidamente, porque foi uma luta que envolveu quase 100% dos trabalhadores. E pronto, foi uma luta ganha porque as pessoas aderiam em força. P: E depois, ao longo do resto do período democrático, qual foi o momento mais marcante? Maria do Céu Ferreira: Marcante, marcante, foi quando fui para a direcção da CGTP. Não estava nos meus planos e isso pressupunha uma grande responsabilidade. Depois a um nível mais da região, eu acho que muito marcante foi aquele permanecer à porta da minha empresa durante três meses para que nada fosse retirado, mas sobretudo a grande solidariedade que houve, com os sindicatos estrangeiros a enviarem dinheiro para os trabalhadores. Eu acho que nunca mais houve uma iniciativa destas. Os sindicatos europeus manifestaram uma grande solidariedade. P: Eram estreitas as relações internacionais? Foi a algum congresso internacional? Maria do Céu Ferreira: Fui ao congresso da CFDT, Já numa fase posterior, A União fez e ainda faz parte de uma estrutura transfronteiriça com os sindicatos aqui deste lado da raia, Trás-os-Montes e Beiras e Galiza e Castela. Aí fui a uma série de encontros com os espanhóis e iniciativas conjuntas que se fizeram. Umas correram muito bem, outras nem tanto... P: Quais foram as iniciativas que fizeram? Maria do Céu Ferreira: Foi trazer trabalhadores espanhóis uma semana a Portugal. E aí foi necessário pedir apoios. Por exemplo, estou a lembrar-me: Pinhel emprestou-nos uma pousada para dormir, aqui a minha câmara deu-nos oitenta contos, na altura, para um almoço, e essa parte teve toda de ser trabalhada por nós. Depois eles organizavam a ida dos nossos trabalhadores, mas isso não aconteceu. Portanto, foram recebidas autarquias, houve intercâmbios com outras pessoas com outras formações, e isso foi importante. Teria sido importante os trabalhadores daqui terem contactos com os trabalhadores do lado de lá, mas eles não conseguiram. Fazíamos alguns encontros, mas eu acho que nunca passava muito disso. A ideia que eu tinha era de que a União Europeia tinha dinheiro para este tipo de iniciativas e era importante gastá-lo. Aquilo que nós temos é nosso, é com o dinheiro dos trabalhadores, os sindicatos espanhóis têm realmente ajudas estatais. Portanto, a não ser essas iniciativas de trazermos os trabalhadores para cá e os nossos para lá, para serem os trabalhadores in loco a verem a vivência de cada povo, não achei muito mais do que isso e nós não conseguimos levar os nossos trabalhadores, mas não dependeu de nós. P: E os sindicatos portugueses também organizaram movimentos de solidariedade com outros? Por exemplo a campanha de solidariedade com os trabalhadores moçambicanos pela federação têxtil, lembra-se disso? Maria do Céu Ferreira: Sim, mas aqui o próprio sindicato organizou campanhas dessas. Por exemplo, uma campanha de solidariedade a que nos associámos logo após o 25 de Abril foi com os trabalhadores de Gonçalo, que ficaram em autogestão e que depois formaram uma cooperativa. E a gente solidarizou-se não só comprando coisas, mas até fizemos um autocolante que vendemos para angariar dinheiro. Essa foi a primeira iniciativa solidária que fizemos depois do 25 de Abril. Mas com África não era a nível da federação, era ao nível da CGTP. Ao nível da CGTP, eu sei que nós fizemos uma grande campanha de solidariedade e nós contribuímos com muita coisa. P: Isso foi a seguir ao 25 de abril? Maria do Céu Ferreira: Não, isso foi muito depois. Assim a seguir ao 25 de abril foi a ajuda aos trabalhadores de Gonçalo, porque os trabalhadores ficaram em autogestão. É engraçado que a Base-FUT veio a Gonçalo e eu acompanhei essa visita. E outras campanhas que fizemos, de solidariedade, foram com a reforma agrária. Fomos passar um fim-de-semana à reforma agrária para ajudar nas colheitas e para os trabalhadores daqui perceberem o que era a reforma agrária e depois recebemos os trabalhadores da reforma agrária, que trouxeram azeite e tudo aquilo que tinham para venderem aqui. P: Acha que esse tipo de iniciativas ajuda a criar um espírito de solidariedade entre os trabalhadores do país? Maria do Céu Ferreira: Ajuda, não só a esse nível como também a nível dos trabalhadores de várias empresas que não se conhecem, que são de terras também diferentes. Isso era importante. Uma coisa que também se fazia era convívios com os trabalhadores do distrito. Isso era muito importante e infelizmente perdeu-se. P: Também faziam torneios de futebol, não era? Maria do Céu Ferreira: Nós fazíamos isso para o 1º de maio. Quando era o 1º de maio, fazíamos torneios de futebol e no 1º de maio fazíamos o último desafio. E fazíamos estafetas em que se saía de S. Romão e se vinha até Gouveia. Chegámos a ter corredores de grande craveira. Era muito giro, muito importante nessas manifestações do 1º de maio. É evidente, isso perdeu-se desde que eu saí do sindicato, da União, o 1º de maio nunca mais se fez em Gouveia. P: Porque é que acha que se deixou de fazer? Maria do Céu Ferreira: Porque Gouveia perdeu todo o seu operariado, os dirigentes sindicais já não são daqui. É preciso trabalhar! Estar no sindicato, receber os bombeiros, receber a banda de música, fazer o discurso para eles, falar do que é o 1º de maio e depois vestir a outra farda e servir a sandes, servir a bebida. Porque se não há quem faça isto... Claro que eu não era sozinha, mas era mais fácil pegar num grupo de mulheres que me ajudavam do que pegar num grupo de homens que estavam ali para dar as medalhas, para pôr as medalhas ao peito dos participantes nas provas desportivas. P: Acha que as mulheres tinham um papel mais pró-ativo nesse tipo de iniciativas? Maria do Céu Ferreira: Sim, aqui… Não quer dizer que noutros lados os homens não tivessem, mas aqui, infelizmente, era assim. Eu estava na formação a falar do 1º de maio e dizia “amanhã quem é que me vem ajudar?” E elas vinham. Fazíamos as sandes, quer dizer, era mais fácil comprar as sandes já feitas, mas isso era dinheiro dos trabalhadores, é um problema de gestão. O problema é que hoje, mesmo a nível político, é mais fácil mandar fazer do que fazer, mas não tem tanta piada, além de que se gasta muito mais dinheiro. P: Acha que as mulheres têm mais propensão para fazer em vez de comprar feito? Maria do Céu Ferreira: Não direi todas, eu acho que em todos estas coisas, sejam mulheres ou homens, é preciso ganhá-los para isto. Por exemplo, como é que a gente tinha os prémios para dar aos atletas? Mandávamos uma carta às empresas, ao comércio, e depois íamos buscar. Isto dá trabalho. E há gente, que por ser dirigente sindical, considera isto um trabalho menor. P: Conte-me das campanhas que a CGTP organizava com África. Maria do Céu Ferreira: Mandava uma circular para o sindicato a pedir, por exemplo, roupa. E tinham o cuidado de pedir roupa que não fossem roupas pesadas, que fossem roupas leves, fossem roupas garridas. E depois, como é evidente, nós aqui fazíamos uma seleção, porque há muita gente que dá farrapos e eu acho que farrapos são farrapos. De Lisboa organizavam-se contentores para enviar para África. P: Havia a ideia da solidariedade internacionalista, era uma coisa que estava enraizada? Maria do Céu Ferreira: Sim, eu acho que nós em relação a África, o povo português em relação ao povo moçambicano ou angolano sempre foi solidário. Até porque mesmo gente que fez a guerra colonial, homens, operários, essa gente era muito sensível a participar. P: Havia um laço privilegiado com as ex-colónias? Maria do Céu Ferreira: Havia. Eu estou por exemplo a lembrar-me de dois homens que uma vez aparecem no sindicato com muita roupa e diziam assim “isto é para uma terra onde eu estive e que bem precisa”. Acredito também que as pessoas querem desfazer-se do que têm em casa e disso não sou muito apologista. Mas eu acho que com África essa solidariedade existe, de tal ordem que a CGTP às vezes tinha de dizer “agora parem”, porque aquilo também estava sujeito ao espaço dos contentores. P: E a CGTP enviava para outros sindicatos africanos, era via sindical? Maria do Céu Ferreira: Não sei, mas deveria ser via as centrais sindicais. P: Havia contactos frequentes com as centrais sindicais desses países? Maria do Céu Ferreira: Havia. Eu lembro-me que, por exemplo logo a seguir ao 25 de abril, o [...] foi a Angola e os angolanos enviaram café para os dirigentes e funcionários da CGTP, um bom café. Uma vez vieram do Norte da Europa três dirigentes sindicais, que entraram por Vilar Formoso, e o responsável pelas relações internacionais da CGTP pediu o apoio da União e o meu apoio pessoal e, para além do apoio da União, que tinha a ver com alojamento, eu recebi-os na minha casa, onde ofereci o jantar. P: A CGTP promove ações de formação para os sindicalistas dos países africanos? Maria do Céu Ferreira: A CGTP não, o INOVINTER, que é uma escola de formação entre a CGTP e o IEFP, que dá formação a quadros sindicais e formadores. E neste momento já têm uma serie de delegações em Angola. A CGTP deu com certeza formação aos quadros sindicais desses países, o [...] foi pelo menos duas vezes dar formação a Angola. P: A sua experiência na direção da CGTP foi em que anos? Maria do Céu Ferreira: A direção da CGTP, em termos de direção, mudou em alguns congressos. Quando eu fui para a CGTP, o Congresso elegia o Secretariado, que era uma estrutura pequena, éramos 14 pessoas, e eu era suplente do Secretariado, mas nunca fui tratada como tal. Participava nas reuniões como se não estivesse nessa qualidade. Depois o Secretariado passou a ser eleito pelo Concelho Geral e, este sim, eleito em congresso. Fiz seis mandatos. Desde 1981 a 2005. Fui à Bulgária, fui fazer dois cursos de formação a Bernau, na antiga RDA, e fui uma vez a Moscovo. P: Qual foi a importância desses cursos na sua formação enquanto sindicalista? Maria do Céu Ferreira: Foram muito importantes. Lembro-me de uma professora alemã dizer isto, eles davam formação sindical: “Portugal tem uma linguagem tão rica que é possível fazer um comunicado com palavras completamente diferentes de um comunicado político.” Nunca mais me esqueci disto. Tinha sempre isto muito presente. Era este tipo de formação... Claro que havia uns que a recebiam melhor que outros. Em determinada altura eles tinham traduções feitas por eles e pediam para a gente ler e ver se aquilo em português estava bem, era também o nosso contributo para aquilo que nos davam. Essa formação na RDA foi importante até para perceber como era difícil ter a televisão do outro lado a entrar pelas suas casas e a influenciar os jovens. Esse casal de professores tinham um filho adolescente e ela dizia-me muitas vezes, ela falava em português: “é muito difícil explicar aos nossos filhos determinado tipo de coisas porque eles não viveram a guerra”. Isto também me levou a compreender a queda do muro de Berlim. As pessoas envelhecem, os mais jovens querem outras coisas, se calhar hoje já estão arrependidos, e essa preocupação de mulher, de mãe, de pessoa de esquerda, que está naquele país e ela tinha dificuldade de transmitir estes valores ao filho. Era também este tipo de vivência, não era só o curso, era também viver com as pessoas. O povo alemão é um bocadinho frio, mas entretanto uma das vezes que estive lá na Alemanha... Sabe o que é acordar com o hino da CGTP e a diretora da escola vir ter comigo e dar-me um presente? Foi um povo que teve muitas dificuldades, por isso é tudo muito comedido. A gente vê a Merkel, anda sempre com o mesmo estilo de roupa, e um dia uma locutora perguntou-lhe porquê e ela respondeu que é funcionária pública, não é modelo. A outra que está no Parlamento Europeu é igual. Nós não somos assim, não é, damos muito valor a estes artigos... P: Na direção da CGTP que tarefas é que assumia? Maria do Céu Ferreira: Estive no departamento das mulheres e estive no departamento de formação sindical. P: O que é que desenvolveu no departamento das mulheres? Maria do Céu Ferreira: Preparar as iniciativas, levar à prática e sobretudo receber e analisar tudo o que vinha de fora sobre os problemas das mulheres o que de certo modo levou à criação do CIT – Comissão para Igualdade do Trabalho. Foi um departamento onde muitos conflitos foram esgrimidos e positivamente para as mulheres, e onde participavam patrões e sindicatos, que tinham de fazer cumprir a lei, por exemplo, a lei da paternidade, um pai tinha direito a ficar com o filho, na altura, 15 dias, os patrões não queriam, não deixavam. Se uma mulher escrevesse para a CIT, ele era obrigado. Por exemplo, com a amamentação a mesma coisa. As mulheres tinham dois tempos para amamentar e o patrão queria que a mulher amamentasse, por exemplo, a meio da manhã, mas essa mulher tinha um filho a dois ou três quilómetros de casa, portanto é evidente que ela preferia, ou no princípio do turno ou no fim do turno, portanto o patrão dava a meio que era para ela não ir. Este tipo de coisas eram discutidas e analisadas e muitas vezes foram resolvidas, pena que se tenham perdido estes benefícios com o governo da troika. P: E esse departamento das mulheres na CGTP, que tipo de iniciativa é que fazia? Maria do Céu Ferreira: Celebrávamos o 8 de março, fazíamos conferências sobre a maternidade, a paternidade, até mais do que a igualdade de género, porque isso agora é que está mais presente, mas houve conferências que juntavam centenas de mulheres. P: Quais é que eram os principais problemas que as mulheres sentiam no trabalho? Maria do Céu Ferreira: Cada setor tinha problemas específicos mas a discriminação salarial, a discriminação na carreira, esses eram os problemas mais sentidos, a discriminação exatamente por ser mulher e ser mãe é que dificultava sobretudo subir na carreira. Em muitos casos a maternidade não foi possível porque o emprego era mais importante, porque preocupava muito que a maternidade estivesse a diminuir, mas a diminuição da maternidade tem a ver com a entidade patronal não querer admitir mulheres em idade reprodutiva. Havia inquéritos onde perguntavam se iam engravidar ou não, nesta situação a maternidade é uma coisa que pesava, e ainda hoje pesa, não foi só naquela altura. Até mesmo no movimento sindical, nós agora temos uma secretária-geral mulher, mas muitas vezes não era fácil às mulheres assumirem cargos de chefia se não tivessem suporte familiar ou fossem solteiras. Eu não poderia ter feito o que fiz se não tivesse atrás um marido e um filho e, antes do marido e do filho, a família, um pai, uma mãe. P: E acha que a participação sindical foi importante para a emancipação feminina? Maria do Céu Ferreira: Sim, não tenho dúvida nenhuma disso. Nem estou a ver hoje, nem naquela altura, sindicatos sem mulheres. P: Para si pessoalmente, foi importante para a sua emancipação? Maria do Céu Ferreira: Sim, ao princípio era quase uma missão. Não vou para dirigente sindical porque quero ser dirigente sindical, vou porque estou empenhada numa luta… Não era tanto pela emancipação da mulher, era porque eu como pessoa, como católica, eu tinha que estar lá. E depois o resto foi por acréscimo. Quando eu fui àquela reunião dos homens, é evidente que a direcção do sindicato tinha homens que eu conhecia, eram homens da LOC. Mas foi também este tipo de condições que se calhar outras mulheres não tiveram. Eu não sou nenhuma supermulher, apesar de ser muito combativa, de não aceitar um sim ou um não. P: Em que medida é que acha que esta participação, esta dedicação neste caso ao movimento sindical, marcou a sua vida pessoa? Imagina a sua vida sem esta participação? Maria do Céu Ferreira: Eu acho que marcou… Olhe, encontrei o marido no movimento sindical, com quem sou muito feliz. Se não fosse o movimento sindical se calhar não o tinha encontrado. Mas eu hoje olho para trás e fazia tudo de novo, por uma razão. Eu sempre fui muito leal, comigo e com os outros. E este tipo de lealdade hoje também é muito respeitado. Mesmo a nível político, eu nunca fui capaz de ler um papel sem o discutir primeiro. Discuto. Esta linguagem não é a minha, por isso eu não leio isto. E eu tenho a certeza que por isto também sou respeitada. Política é uma coisa muito bonita, mas eu não posso fazer política só porque agora há eleições... P: Também assumiu cargos políticos na autarquia, não foi? Maria do Céu Ferreira: Sim, fui candidata a presidente da Câmara Municipal de Gouveia, com o [...] do PSD, imagine. Portanto, era um político de peso, e outro que era o actual presidente da Câmara e que hoje é deputado. Claro, eu sabia que não ia ser eleita, mas adorei participar na campanha. Foi uma campanha muito verdadeira. Mas, por exemplo, o [...] estava na Assembleia Municipal comigo, ele pelo PSD e eu pela CDU. E ele vinha de Coimbra, chegava ao sábado às 14 horas, hora do início da assembleia, ele ouvia a Maria do Céu e depois ele pegava numa ou outra coisa, e fazia a sua intervenção. E é engraçado, na última assembleia antes das eleições em que éramos candidatos, eu vinha para Coimbra fazer um curso, à distância, eu tinha de ir a Coimbra de 15 em 15 dias a uma aula presencial. Eu tinha de ir nesse dia e, portanto, eu disse “eu tenho mesmo de ir embora e não vou ficar para a tarde”. E ele disse isto: “eu tenho dar parabéns à senhora deputada, porque ela foi quem, nesta assembleia, apresentou mais propostas, mais lutou por elas, apesar de estar sozinha.” Respondi: “agradeço que diga isso na campanha, agora aqui?” Até que um dia, há um boletim municipal na Câmara e, a determinada altura, o director da revista pede-me para eu dar uma entrevista e há uma pergunta no final, se eu preferia ter lá o PS ou o PSD. E eu disse, “olhe, politicamente eu estou mais próxima do PS do que do PSD, mas o que teria sido bom era ter ficado o PSD, o PS e a Maria do Céu, que eram sete”. A partir daí fui pessoa não grata. O [...], que é muito vaidoso, deve ter pensado que por ter feito oposição cerrada ao PS que diria que preferia o PSD. Eu não tinha nada a ver com o PS, mas a minha família política está mais próxima do PS. Aliás, eu fiz parte da primeira direcção do PS em Gouveia, saí quando da discussão da unidade e da unicidade sindical. Escrevi uma carta pública, porque a direcção estava contra a unicidade e não sabia o que era uma coisa e o que era outra. Esse médico que foi para a minha empresa, era socialista de verdade, dizia: “eu não percebo nada disto. Os ingleses, que são os ingleses, são socialistas e têm uma central sindical única, e nós aqui andamos em guerra.” P: Foi a questão da unicidade sindical que a fez sair do Partido Socialista e ir para o PCP? Maria do Céu Ferreira: Eu não entrei para o Partido Comunista nessa altura. A minha entrada teve a ver com uma visita à RDA e com uma votação muito baixa que o Partido teve. O que é facto é que eu, em Gouveia, sou conhecida pela comunista, independentemente se sou filiada ou não, portanto estar filiada foi apenas um proforma. É claro que há coisas com que eu não estou de acordo, mas também tenho espaço para as dizer, não fica nada por dizer. P: E acha que há uma ligação entre a participação sindical e a participação política? Maria do Céu Ferreira: Há. Eu, enquanto dirigente sindical, luto pela defesa dos trabalhadores, o Partido Comunista luta pelo mesmo. Quando deixar de lutar eu não estou lá. P: E as suas funções na autarquia, de que forma é que se relacionam com a atividade sindical? Maria do Céu Ferreira: A minha intervenção enquanto deputada, para além das questões que têm a ver com o desenvolvimento do concelho, tem também a ver com os interesses dos trabalhadores e pelo facto de ser dirigente sindical sentia de forma diferente, defendia e lutava por elas de forma diferente. Na Assembleia de abril levava sempre uma saudação aos trabalhadores no 1º de Maio, no 25 de Abril idem, se houver uma greve a mesma coisa, mas é muito mais pela valorização da terra, aquilo que está mal e que é preciso pôr bem, é muito mais nesse sentido. Agora, é evidente que a atividade sindical dá um arcaboiço muito grande, dá uma vivência muito grande, saber das preocupações, das empresas, etc. Eu acho que, por exemplo, se na discussão do orçamento, a Câmara não chamar os deputados para discutir o quadro dos trabalhadores, está a fazer uma ilegalidade. Eu dizia “os senhores têm de chamar os deputados, porque isto mexe com os trabalhadores e os deputados têm de dar opinião”. Isto é da lei. P: E porque acha que a par da motivação para participar no movimento sindical teve também a motivação para participar na política local? Maria do Céu Ferreira: Primeiro porque gosto muito da minha terra, depois porque antes de ser deputada, por exemplo, e ainda naquele período revolucionário, havia aqui em Gouveia uma reunião com todas as forças vivas da terra para discutir. A Câmara teve cá um geólogo, um arquiteto, para estudar o terreno para a reconversão de algumas coisas, e os sindicatos e outras organizações foram chamadas e logo nessa altura eu percebi que os interesses económicos eram difíceis de conciliar. Aqueles que tinham terras eram uma coisa terrível, queriam transformar parte da reserva agrícola e ecológica em zonas de habitação. E realmente há coisas que eles explicaram que, em determinadas zonas, pelo declive do terreno, etc, não era aconselhável a construção. Não é que mais tarde, quando se constrói o mercado municipal, não é que imediatamente caiu um muro, porque, como os técnicos, diziam há zonas muito vulneráveis. Depois veio o 25 de novembro, e a participação das organizações representativas foi-se, e isso foi perdido. Por isso nós hoje, a nível de Gouveia, uma terra muito bonita, mas em termos da habitação, antiga, ela está toda a deteriorar-se. Mas o que é que temos? Urbanizações longe do centro da cidade, que levam também pessoas. As pessoas não vêm para o centro. Isto realmente descaracteriza uma terra e Gouveia perdeu imenso, perdeu as fábricas, perdeu muito. Portanto, isso também foi uma coisa que me empurrou. Por isso, fiz uma série de mandatos. Agora acabou. Vou na lista, claro, da autarquia, mas num lugar não elegível. P: Qual é que acha que é o futuro do movimento sindical? Maria do Céu Ferreira: Enquanto houver trabalhadores tem de haver sindicatos. É possível que, esta juventude, por exemplo, estou a falar dos jovens que conheço, que têm pouca relação com os sindicatos, e já anteriormente era assim. É sempre quando as pessoas têm problemas. E como eu acredito que os jovens vão ter muitos problemas, infelizmente, vai haver futuro. Evidentemente, com muitas dificuldades, eu não me esqueço que a minha geração foi criada noutra escola, numa escola de luta antes do 25 de abril. Estes jovens agora têm outra formação, têm outra mentalidade, têm a informática à frente deles. Agora, eu digo-lhe uma coisa: eu temo pelo futuro dos jovens. Porque acho que não vai ser fácil para eles. Quando as pessoas começarem a ter problemas, só tem uma porta aonde ir bater. E mais, até podem não ter uma porta, até podem ter que ser eles a organizar-se. A CGTP tem jovens com muito valor, agora é preciso trabalho nas empresas, o trabalho de base, o trabalho com as pessoas é muito importante. Sobretudo saber ouvi-las, discutir, ver como é que seria melhor. Mas eu continuo a acreditar que os sindicatos serão sempre importantes. Aliás, o movimento sindical em Portugal passou por uma fase terrível antes do 25 de abril e não foi por essa razão que os sindicatos acabaram. Antes do 25 de Abril eles reinventaram-se. Os bancários, os seguros, os lanifícios, os metalúrgicos, não tiveram problema nenhum em juntar-se. Esta dinâmica, mais tarde ou mais cedo, vai ser imposta. Já reparou? As reformas agora são aos 68. Um jovem que começa a programar informática agora, acha que até aos 70 anos vai poder fazer isto. Neste momento não há nenhum sindicato para eles. Eu já falei com os camaradas da Inter, a malta tem que começar a organizar esta gente, eles próprios têm noção de que aquilo que eles fazem é de uma tal violência intelectual, que aos 70 anos ninguém está nessa. E como é? Têm de ter futuro... está de acordo?