"Eu vou vender a mata!"

Título | Title

"Eu vou vender a mata!"

Nome do entrevistado | Interviewee's name

Artur Sampaio (nome fictício)

Breve informação sobre a pessoa | Brief information about the person

Administração local

Data | Date

2 Fev 2022

Local da gravação | Place of the recording

Sernancelhe, Serras da Lapa e Leomil

Sinopse | Abstract

FIREUSES – Sabe qual foi a área ardida?

Não. Não sei dizer. A população revoltou-se imenso com o que se passou. Tivemos uma aldeia em grave situação, foi a Aldeia de Santo Estevão. Aliás, andámos todos lá a apagar o incêndio, todos nós. [...] Depois são comitivas que vêm, outras que vão para trás, umas vêm identificar, outras voltam e depois vêm e anda-se muito tempo neste alarido e neste espetáculo, cortam-se estradas, passas com carros, passas com ambulâncias e aqui começa-se a criar um pânico. Depois começamos a ouvir gente a gritar: “Vão além, vão acudir que já está a arder além! Vão acudir que já está na minha casa! Onde é que estão as pessoas? Já se foram embora? Não estão…”. E aí o pânico surge.
Depois isto tudo foi discutido em assembleia municipal. É claro que depois vimos presidentes de junta completamente revoltados: “Porque é que é foi desautorizado um comandante local? Porque é que vem um superior regional? Porque nós é que conhecemos, nós é que sabemos, nós é que estamos e somos autorizados”.
Depois, vem uma série de questões. Foi solicitada a identificação de áreas ardidas e de culturas. Nós perdemos quase 2000 castanheiros [e] nunca veio apoio para a reposição deles, porque o apoio era enquadrável num sentido, não era enquadrável num outro. […] A nível de governo não houve a resposta que se pretendia. As culturas não estavam contempladas. Ardeu vinha, ardeu olival, ardeu muito castanheiro e nunca houve reposição dessas ajudas. […]
O fogo teve também ventos específicos, não comuns. Porque o fogo iniciou na Lapa, rodeou Lamosa, Carregal, entrou em Moimenta da Beira e voltou novamente à Lapa.

FIREUSES – Fechou?

Ele circundou. Fez um círculo. […] Foi um fogo imenso.

[...]

FIREUSES – [...] Antigamente, tínhamos a população a ajudar na extinção do fogo...

A população tinha uma responsabilidade e uma interação com a floresta que hoje não tem. Hoje, a limpeza é imposta e essa limpeza imposta traz até também alguma revolta para os proprietários, porque ela traz muitos custos. A mão de obra cada vez é mais reduzida, estamos a falar de uma população envelhecida. Por exemplo, uma determinada pessoa, que tem 70 ou 80 anos, vem ter […] ao município e diz: “Ó sr. Presidente, veja-me agora o que é que me aconteceu: sou obrigado a limpar a minha mata e a empresa de limpeza pede-me 1500-2000 euros para limpar a mata. Eu vou vender a mata!
Obviamente que a relação que existia com a floresta era outra. Estávamos num meio mais rural, num meio onde havia mais necessidade da autossuficiência, portanto, produzir para consumir. O mato e a floresta estavam muito associados também à fonte de calor para aquecimento, muito também para os estrumes e camas para animais e, portanto, havia uma manutenção quase que natural. Ainda me lembro de, muito novo, ouvir estórias de uma situação oposta a esta. A pessoa que tinha a necessidade de camas para animais ou para fazer, nós chamamos aqui a compostagem, que era as montureiras, […] as pessoas debatiam-se por isso. É claro que a floresta estava num estado tal de manutenção, digamos assim, que estas situações nunca se verificaram. Os incêndios é um fenómeno muito mais recente. […]
Tenho também uma lembrança de algumas pessoas que relatavam, [sobre] os grandes proprietários – que eram eles que tinham as maiores áreas e áreas de floresta – e as guerras que existiam [por causa de] “invasão”, por [se] querer uma pequena pernada ou uma pinha. Tudo isso era tão raro e as pessoas brigavam por esses recursos mínimos. E esses grandes proprietários acionavam a força local, que eram a GNR ou os policiamentos, e as pessoas dormiam presas durante uma noite ou duas porque foram acusadas de ir buscar uma pernada de um pinheiro que caiu, meia dúzia de pinhas…

FIREUSES – E chamava-se invasão?

Era uma invasão. Existiam as esquadras locais, como existem, e o castigo determinado era de uma noite ou duas ficarem presas, eram punidas por isso.

FIREUSES – Isso é quando?

Ora, para ouvir falar disto, estamos a falar anos 40, 50 e 60 ainda.

[...]

Aqui a floresta tem uma importância enormíssima. Toda a gente relata um hábito diário que as pessoas tinham: todos os dias iam à lenha; todos os dias se ia ao mato, ia-se à lenha buscar a forma de se aquecerem, [...] e para cozinharem, para se aquecerem, para se manterem. [...] As pessoas relatam que muitas das vezes para encontrarem esses pequenos fragmentos de lenha já não era num raio de 500 metros ou de um quilómetro. Às vezes tinham que se fazer 3 ou 4 quilómetros por florestas a dentro, porque senão não se encontrava.

FIREUSES – E haveria certamente comércio. Pessoas que traziam às vilas essas recolhas para vender?

Também havia a venda das pinhas, a venda da lenha, isso também existe. Outra figura muito importante que a Lapa tem é o resineiro. Os resineiros. A Lapa, onde vocês vão, é uma freguesia de resineiros, portanto, a recolha da resina está muito associada à Quintela da Lapa. A resina era um trabalho manual. Era até uma certa forma de exploração infantil, estava muito associado a isso.

FIREUSES – Iam os filhos, ia a família toda?

Toda a família. E também fazia com que a floresta tivesse uma certa manutenção, porque eles limpavam, cortavam para recolha da resina. Foram hábitos que terminaram e a floresta tem toda esta mudança porque ela deixou, de facto, de estar tão interligada como estava com as populações. [...] O resineiro vem do pinheiro.
É feito um corte na casca, crava-se uma pequena goteira feita em latão e depois mete-se um púcaro de barro e aquela goteira vai gotejando para aquela púcara de barro. E o resineiro o que é que faz? Vai andando pela floresta a rapar aquela púcara que ficou cheia de resina e vai deitando no bidon e anda com aquilo às costas, de árvore em árvore, até ir enchendo aqueles bidons. No fundo, a resina é a seiva do pinheiro. [...] Hoje já não há extração de resina.

FIREUSES – Qual era o uso primordial da resina? Tintas, colas, verniz?

[...] Por aí. Como não havia iluminação, amolava-se tipo uma vela, digamos assim, e [ela] queimava-a. Só que tinha um problema, deita muito fumo e as pessoas tinham problemas pulmonares por causa disso. [...] Na falha de um combustível – havia pessoas que não tinham dinheiro para o petróleo ou para a creolina para os candeeiros – usavam a resina. Mas isso já eram famílias mesmo muito muito carenciadas, porque [a resina] tinha problemas a nível de saúde. [...] É engraçado. Hoje estou a chegar a esta perceção que no início não tinha quando vocês chegaram, que é: o fogo leva-nos sem dúvida a questões tão sociais… Quando falámos da questão dos incêndios, não os avaliei ou não os consegui visualizar nesta tal largura e na questão social e até no [seu] impacto emocional, psicológico, social, económico...
Serra da Lapa, 6 de agosto de 2020