"O primeiro incêndio que eu me lembro, pois, fui eu que o fiz"

Título | Title

"O primeiro incêndio que eu me lembro, pois, fui eu que o fiz"

Nome do entrevistado | Interviewee's name

Lourenço Carriço (nome fictício)

Breve informação sobre a pessoa | Brief information about the person

Nasceu e viveu na Serra de Monchique, trabalhou em diversas atividades, incluindo na gestão da floresta

Data | Date

7 Jun 2022

Local da gravação | Place of the recording

Silves-São Marcos, Serra de Monchique

Sinopse | Abstract

FIREUSES - Começou a trabalhar ali aos 12 anos, já havia muito eucalipto plantado crescido?

Não, começou daí para a frente. Fiz muita plantação de eucalipto daí para a frente. Julgo que daí para trás que não foi muito, não.

FIREUSES - E para que é que servia o eucalipto nessa altura? Era usado p’ra quê?

Opá aquilo ia para as fábricas, não sei se era para papel se era, acho que sim. Aquilo ia para a Portucel, ia para Espanha, para a Figueira da Foz e para Setúbal, depois não sei. Papel de certeza que faziam.

FIREUSES - E as pequenas courelas, as pessoas que tinham dois hectares também tinham eucalipto nessa altura?

Muitos tinham. [...] O que havia antes é praticamente o que há agora, mas já há menos eucalipto plantado. [...]

FIREUSES – Quando é que começou a diminuir?

Epá, aqui talvez nos anos de 90 para cá. [...] Começou a aparecer aqueles grandes incêndios, começou a dobrar e muitos desistiram. Por iniciativa ou não sei, mas muitos desistiram. Mas que havia muita plantação de eucalipto havia. Temos outra herdade aqui [...], também tem 400 e tal hectares, essa aí comecei a plantá-la de início até ao fim, assisti nela toda [...].

FIREUSES – Na Herdade [...], antes desses eucaliptos, o que é que se produzia lá?

Epá, nada. O pessoal semeava, fazia as suas sementeiras de trigo e era o tal medronho. Havia lá uma parte que tinha muita sobreira. De resto, pouco… era uma herdade fraca.

FIREUSES - Mas porquê? O solo não era bom?

Havia o medronho, a medronheira para tirar. E depois fizeram o projeto, fizeram o eucalipto, pronto. A medronheira está lá, mas o produto não sai. O medronheiro continua lá, só que o produto não dá. [...]

FIREUSES - Qual o primeiro incêndio de que se lembra?

O primeiro incêndio que eu me lembro, pois, fui eu que o fiz. Não foi grande, foi uma coisita pequena… putos da escola, vamos fazer, vamos aquecer, vamos fazer assim e aquilo ardeu um bom bocadinho. Só que era de Inverno [e] não ardeu mais; se fosse de Verão ardia muito, fazia grandes estragos. [...] Saímos da escola e estava frio e fizemos pronto. Não fui só eu. Um tinha um isqueiro e eu fiz o fogo num tojo para se aquecer, só que aquilo, um ventinho depois… a gente não pensou nisso, não é? [...]

FIREUSES - E o que é que fizeram depois?

Tentamos apagar, não conseguimos, depois viemos embora. [...] Apagou-se por ele.

FIREUSES – E o que é que havia nessa zona?
Cultivavam tojo e esteva. [...] Havia este mato assim e aquilo como tinha pouca ‘comida’, porque não há tojo, não há relva, [...] aquilo passa por baixo e depois sobe – e então não havia nada disso na altura e acabou-se o tojo e com o bocadinho de mato que aquela folha, que aquilo seca e cai para o chão, aquilo ia minando, minando, minando. Só que a gente apanhamos medo e fugimos: alheta! [...] Tinha pouco arbusto para comer, apagou-se por ele próprio.

FIREUSES – Qual é a melhor comida para um fogo?

Ah! Há tanta! Há tanta. O tojo que há aqui, que é o tojo balsinha, há muito tojo, mas a gente temos um tojo especial que é para chamuscar os porcos, esse é muito rápido. É um tojo assim muito rasteiro mas faz uma moita muita grande e chama-lhe aquilo um figo.

FIREUSES – Que mais outros tojos é que existem?

É o tojo gatum que tem uns bicos muita grandes! Aquilo passa-se lá ao pé, ainda não chegámos lá ao pé e já está picando as pernas. É muita bicudo, o tojo gatum. Podem-lhe dar outro nome, mas a gente aqui na serra chamamos-lhe aquilo. [...]

FIREUSES - Então, a boa comida para o incêndio estava-me a dizer que é esse tojo balsinha… que mais?

A rama de eucalipto quando está seco é o pffff. Qualquer árvore quando esteja seca arde bem, urze, é tudo e mais essa erva que está aí. Isso então aí é pior que um rato. Esta erva rasteira. [...] O cipreste protege o fogo. [...] Que seja mais tardia no arder para mim é essa só. Pode haver mais algumas, mas posso não conhecer tudo.

FIREUSES – A medronheira?

Ah isso arde logo. Isso mesmo verde arde bem.

FIREUSES – E morre?

Não, não. Arrebenta. O eucalipto arrebenta, o medronheiro arrebenta. Só se a raiz toda [for] toda queimada. Normalmente morre toda a gente. O eucalipto também rebenta, sim, se não arder a cepa toda. [...] A azinheira também rebenta se a cepa também não arrebentar. Fica com uns buracos ali mas ainda consegue rebentar, ainda sobrevive ali depois, pode morrer a seguir, mas… mas sobrevive arrebentando.

FIREUSES – E a alfarrobeira?

Ah, isso a alfarrobeira vai à vida. [...] A oliveira arrebenta se não for toda queimada. Tudo. Tudo o que seja a toca ali formada ali aquele pé que nasce que não vá ao fundo que não arda tudo, tudo arrebenta. Arrebenta mais fraco, mas arrebenta tudo. Agora a alfarrobeira, essa, no arrebento morre sempre. É raro. Essa é mais fraca. A oliveira também, passa o fogo arde. Arde a rama mas ficam lá os troncos, aquilo rebenta. Vem o Inverno, se chover, temos de pedir a ajuda também de Deus para chover. Se houver chuva, rebenta, se não houver chuva, já não arrebenta, seca.

[...]

FIREUSES - O que se fazia para preparar os terrenos para a agricultura?

Tirava-se o mato, fazia-se aquelas grandes roças. Isso era tudo a poder de ajudas dos vizinhos. Faziam-se aquelas grandes apanhas do mato, juntava-se tudo numa zona e aquilo tudo era queimado. Depois de estar tudo queimado, no ano a seguir fazia-se as tais sementeiras de trigo.

FIREUSES – E queimavam em que altura do ano?

Sempre no Inverno. [...] Só que às vezes, mesmo no Inverno, saía e aparecia aí bons fogos também. [...] Escapadelas. Eu passei bons incêndios derivados disso, às vezes. Falta de atenção por qualquer coisa acontecia muito. Grandes fogos.

FIREUSES – Chegou a fazer?

Eu não, não. Eu cheguei a fazer aqui para mim. [...] Mas isso era quantidades pequenas. Bocados pequenos. Agora grandes, coisas grandes para fazer a cultivação do trigo não. [...] Isso ainda eu calhando era puto mais pequeno... Agora, eu cheguei a fazer para mim poucachinho.

FIREUSES – E fez para limpar o mato?

Para limpar o mato, sim. Para não haver os incêndios que há de Verão. (…) Para sementeira já não. Trigo não. Nunca semeei trigo. Não, nunca semeei. Ceifei, ceifei, mas semear não semeei nada.

FIREUSES – Quando fazia as tais limpezas para fazer as sementeiras para os animais como é que limpavam o terreno?

Tínhamos uma máquina de arrasto, uma Fiat 150, e tínhamos um D4 e um trator, um trator 165 para fazer a sementeira. Escarificava-se, lavrava-se, fazia-se tudo em condições.

FIREUSES – Já não utilizavam o fogo nunca?

Não, nessa parte não. Fazer fogo já foi no outro tempo. Depois de 86 para cá, pronto. Antigamente fazia-se as roças para pegar fogo, para queimar o mato. Aquilo a máquina derretia, aquilo com uma grade ou um corta-mato desfaziam o mato todo e depois com o trator lavrava-se o terreno. Fazia-se agora isto em 2022 para semear em 2023. O terreno ficava lavrado, chamávamos o tal desterroamento do terreno para ir queimando todas as coisas que lá tinha que depois na sementeira escarificava-se com o trator e a seguir fazia-se a semente, punha-se a semente e escarificava-se novamente.

FIREUSES – Quando é que se deixou de usar o fogo e se passou para a máquina?

Isso é muito velho. Já é uns 50 anos talvez. [...] Antes do 25 de Abril… e mesmo antes do 25 de Abril já não faziam isso. Era já tudo com máquinas, tratores.

FIREUSES – Alguma vez se proibiu as roças?

Eram sempre proibidas no Verão. Uma parte do Verão foram sempre proibidas, antes ou depois. Só que antigamente antes do Verão, mesmo neste mês em junho, chovia muito. Hoje já não chove nada, mas chovia muito. (…) Sempre me lembro de ser proibido, sempre, sempre. [...]

FIREUSES – E havia controlo? Havia pessoas a fiscalizar?

Essa parte não existia. [...] Acho que não havia nada disso. As pessoas ajuntavam-se, faziam aquele pacte e queimava, às vezes havia azar e fugia. Mas não havia as tais coimas como há hoje.

FIREUSES – Entre 86, quando começou na reserva, até 2004, viu alguma diferença nos incêndios nesse período de trabalho longo? O que é que acha que mudou no incêndio?

Nos incêndios mudou muito, porque até essa altura, muito terreno as pessoas cultivavam-no e andava limpo e a partir daí o pessoal deixou e começou-se a encher de mato e o fogo no lugar de durar um dia começou a demorar três/quatro dias, porque apareceu muito mato nesses terrenos todos. [...] Em 86 já ninguém limpava nada.
Serra da Lapa, 6 de agosto de 2020