Entrevistas
As três entrevistas aqui disponibilizadas são o resultado da colaboração, iniciada em 2023, do projeto FIREUSES com a produtora de cinema TERRATREME. Com o título de História e memória do lugar do fogo nas ciências do território em Portugal, esta série de conversas pretendeu, em primeiro lugar, mapear a inscrição do tema dos incêndios, bem como dos usos do fogo no espaço rural, nos quadros de pesquisa, nos currículos académicos e, de modo geral, nas preocupações científicas de três disciplinas centrais na construção de conhecimento sobre o território português ao longo do século XX: a geografia, a agronomia e a silvicultura. Em segundo lugar, procurou-se alargar o foco académico e profissional à memória da transformação das paisagens rurais, a partir da experiência de vida e familiar dos entrevistados em diferentes regiões do país. Como se verá, esta atenção ofereceu dados e reflexões importantes que, sem deixarem de estar intimamente ligadas ao exercício da profissão, contribuem para uma história do fogo em Portugal e, em particular, para entender a emergência dos grandes incêndios nos sertões serranos portugueses.
Os entrevistados são três professores e investigadores que partilharam connosco, de forma generosa e interessada, conhecimentos e memórias provenientes maioritariamente do seu percurso académico, entre a licenciatura e os dias de hoje. Oferecem resposta a muitas das questões e dúvidas que trazíamos previstas nos guiões, preparados pela equipa FIREUSES, mas também desenham, em traços largos, contributos para uma história da geografia, da agronomia e da silvicultura portuguesas. Ficou claro, desde logo, que o olhar dirigido ao fogo, nos seus vários aspectos, desenvolveu-se através de cronologias e enfoques substancialmente distintos.
Na primeira entrevista, com Raquel Soeiro de Brito, geógrafa e professora catedrática jubilada da Universidade Nova de Lisboa, começamos por rememorar um grande incêndio num pinhal em Viana do Castelo, que se encaminhava para o Monte de Santa Luzia alimentado por um “vento muito forte e de norte”. O evento marcaria a sua infância nos anos 1930. Entre este momento e a década de 1980, quando nasce, por fim, a “geografia do fogo”, percorre-se o lugar do fogo nos trabalhos do Congresso Internacional de Geografia de 1949, o seu papel complementar, ou acidental, nos temas e quadros que compõem a geografia portuguesa de meados do século passado (“o fogo como acontecimento geográfico tinha muito pouca importância) e, ainda, a descoberta, ao longo da década de 1960, do uso do fogo como elemento constitutivo da agricultura em diversos territórios coloniais portugueses, onde era “habitual pegar fogo, fazer grandes queimadas à moda do Alentejo”. Oportunamente, recorda que já nos incêndios do verão de 2003, cuja memória coletiva tem sido submergida pelos desastres posteriores em 2017, “morreu muita gente” por acção do fogo.
Na entrevista com João Filipe Bugalho, engenheiro silvicultor e professor jubilado do Instituto Superior de Agronomia, acede-se, com muito detalhe, à relação da silvicultura portuguesa com o uso do fogo. O relato das suas memórias leva-nos da sua infância e juventude no Alto Alentejo, onde não recorda a ocorrência de incêndios rurais (embora o fogo estivesse sempre presente), à sua integração nos Serviços Florestais no final da licenciatura na década de 1960, quando começaria a interessar-se pelo tema. Inicialmente encarregue de trabalhos pioneiros relacionados com o recenseamento de aves, acabaria por acompanhar, já na década de 1970, a visita a Portugal de alguns dos mais renomados especialistas internacionais na ecologia do fogo, como David Klein e o casal Betty e Edwin Komarek. Até então, “o fogo era o inimigo número um dos silvicultores e só se falava do fogo da perspectiva de incêndio”. As primeiras experiências de fogo controlado no Parque Nacional do Gerês, a cargo de peritos estrangeiros, ajudariam então a impor uma visão matizada do uso do fogo entre novas gerações de silvicultores portugueses, onde, como refere, se destacam os nomes de Joaquim Moreira da Silva e Francisco Castro Rego.
Na última entrevista desta série, com João Castro Caldas, engenheiro agrónomo e professor catedrático jubilado do Instituto Superior de Agronomia, recuamos no tempo pelo norte e centro do interior rural de Portugal até meados do século XX, quando “toda a carga combustível era consumida pelas comunidades agrícolas e pastoris”. Das memórias das férias escolares passadas entre a Lousã e Arcos de Valdevez despontam recordações vivas das queimadas agrícolas que todos os verões pontuavam os cumes das serranias – e de que ninguém fazia caso – e do fabrico generalizado de carvão para consumo doméstico. O pinhal era então uma reserva de recursos para populações que viviam em condições económicas e sociais muito duras. O despovoamento destes territórios decorre a par da própria florestação imposta pelo Estado Novo e da ocorrência dos primeiros grandes incêndios, já na década de 1960, num contexto em que “o engenheiro silvicultor tinha um poder quase militar localmente”. A conversa em torno do lançamento recente da obra A Casa e as Famílias: Entre Douro e Minho depois do Inquérito à Habitação Rural (1943), em que João Castro Caldas colabora, permite-nos regressar ao presente e procurar aferir por um momento o que realmente mudou nestas paisagens, nos últimos oitenta anos, por força da emigração, da democracia e do turismo.
No seu conjunto, estas entrevistas – filmadas e editadas pela realizadora Luísa Homem – constituíram verdadeiras sessões de trabalho assentes na recolha e partilha de informação, na discussão viva de hipóteses de trabalho e no desenvolvimento de caminhos de pesquisa. Ademais, as entrevistas aqui partilhadas, assim como a gravação integral das sessões, representam fontes orais valiosas para a história do fogo em Portugal. Centrada nas ciências que se dedicaram a inquirir e mapear o território português, esta série poderá ser continuada através, naturalmente, da botânica e da ecologia, com o objetivo de identificar a emergência do fogo como factor ecológico na compreensão dos biomas mediterrânicos e, no campo das ciências sociais, através da história e da antropologia, pensando na história social dos campos portugueses e na rica etnologia que se dedicou à recolha e sistematização de práticas e técnicas agrícolas em vias de desaparecer.