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Junho de 2022
Entrevista realizada a Luís Jacinto na sede da Banda Filarmónica Estrela do Oriente, em junho de 2022.
P: Começava por perguntar-lhe se nasceu aqui na Algarvia?
Luís Jacinto: Nasci aqui na Algarvia em 1948.
P: E os teus pais, o que que faziam?
Luís Jacinto: O meu pai era agricultor e a minha mãe era doméstica.
P: Tinha muitos irmãos?
Luís Jacinto: Seis, quatro rapazes e duas raparigas
P: E foram à escola aqui?
Luís Jacinto: Até à quarta classe.
P: E depois da quarta classe o que foi fazer?
Luís Jacinto: Depois da quarta classe, fui trabalhar para as terras. Depois fui para a tropa e depois fui para o Ultramar e depois de vir do Ultramar, empreguei-me ali numa fábrica mesmo aqui na freguesia, uma fábrica de fazer blocos e lá estive até minha reforma.
P: Então, e quando começou a trabalhar, logo a seguir à quarta classe nas terras, o que é que fazia?
Luís Jacinto: Ajudava o meu pai na lavoura, semeava milho, beterrabas. E depois da tropa então é que me empreguei, casei e fiz a minha vida.
P: E foi fazer a tropa à Lisboa?
Luís Jacinto: Não, eu fiz a tropa aqui e depois fui dois meses para Lisboa fazer uma especialização para ir para África. Fui para a Guiné.
P: Em que anos é que esteve lá?
Luís Jacinto: Fui para lá em 69, e vim em 71. Vim trabalhar para uma fábrica aqui na freguesia que ainda existe, uma fábrica de blocos.
P: E casou-se aqui também?
Luís Jacinto: Casei aqui e moro aqui na aldeia. Fiz uma casa nova. Tenho três filhos, o mais velho já tem 46 anos, está no Canadá, tenho outro que casou na Feteira e tenho uma filha que casou em São Paulo. Então tenho três filhos, mas nenhum deles está vivendo na freguesia.
P: E a sua esposa, o que é que fazia?
Luís Jacinto: A minha esposa sempre foi doméstica e costurava para fora.
P: E a vida era difícil?
Sim, ao princípio era difícil mas depois do ano em que me casei, em 1974, com o 25 de Abril, as coisas começaram a melhorar. Não estamos vivendo numa abundância mas está estável.
Luís Jacinto: Então, e quando é que entrou para a banda?
Luís Jacinto: Em 1989.
P: E antes de entrar banda, havia aqui alguma associação na freguesia?
Luís Jacinto: Era os Romeiros, eu fui mestre de romeiros durante 41 anos. São responsáveis pelo grupo, é uma responsabilidade muito grande. É pegar num rancho de pessoas, de homens, que sai da paróquia. É preciso marcar as horas para chegar a horas aos sítios. É uma coisa católica e as pessoas olham. É assim, durante o dia eu não tinha preocupações nenhumas com os romeiros, porque eu estava presente, mas depois de chegar à noite às freguesias e divididos, a gente já fica com a preocupação. Já ficava com uma preocupação: Como é que se vão comportar nas casa das pessoas, qual é a imagem que vão deixar? Além de a gente estar a insistir nas preparações, porque a gente fazia 25 horas de preparação, antes de sair os homens. Eu convidava os romeiros de outras localidades, sempre era uma voz diferente. De resto corria bem. Nunca tive nenhuma queixa das minhas romarias e nunca fui chamado à responsabilidade por nenhum dos irmãos que acolhia. É preciso ter muita responsabilidade.
P: Então, esses romeiros era no âmbito da igreja que se organizavam. Como é que se começou a envolver?
Luís Jacinto: Eu comecei a envolver-me desde os 12 anos. Eu saí da escola na quarta classe e já fui uma criança na romaria. Depois comecei, comecei a andar, a andar, e depois o mestre romeiro, que era daqui, embarcou para a América, a romaria ficou sem mestre. Parou. Esteve aí uns anos parada, senão eu tinha muito mais. Depois veio um colega meu. O pai era mestre romeiro, também fazia orações antes de ir para o Canadá. Veio para cá de vez e então levantou a romaria. E eu até fui um dos poucos que lhe disse: “A gente vai romar uma romaria, uma promessa de não ir a África”. “Vamos organizar isso”. E organizou-se. E depois dai começou. Eu estive em contramestre e depois fui mestre durante 21 anos.
P: E que idade tinha?
Luís Jacinto: Eu sai em 2015 e tenho 74, eu larguei de ser mestre em 2015.
P: Então, e porque é que se dedicava assim aos romeiros?
Luís Jacinto: Aquilo é uma coisa que vem daqui de dentro [comove-se], aquilo nasce aqui dentro. Quando chegava o tempo das romarias, a partir do natal, já começava aquele bichinho aqui dentro e aí é que a gente avançava para frente.
P: E o que é que era bom?
Luís Jacinto: Era muita coisa boa. Era levantar às quatro da manhã e rezar pelas ruas, sempre pesado. Começávamos a cantar pelo principio da madrugada e depois as coisas boas que a gente passava, ria, chorava.
P: Era uma coisa que unia muito as pessoas?
Luís Jacinto: Muito. Ainda hoje sinto muito. Já há dois anos que não faço...[emociona-se].
P: E antes do 25 de Abril já participava?
Luís Jacinto: Já participava. As romarias em São Miguel fazem este ano 500 anos. Tivemos agora na semana passada, o movimento dos romeiros daqui juntou-se todo, não foram os romeiros todos mas grande parte e foi muito bonito. Muito bonito, lindo!
P: E havia algum grupo da juventude operária católica?
Luís Jacinto: Não.
P: Aqui não houve?
Luís Jacinto: Havia da Salga à Pedreira.
P: Antes do 25 de Abril só participou na Romaria, foi?
Luís Jacinto: Exatamente.
P: E depois, como é que foi o 25 de Abril aqui na Algravia?
Luís Jacinto: O 25 de Abril aqui na Algarvia foi uma maravilha. As pessoas primeiro não sabiam o que era isso, o que era a liberdade. Não sabiam, quando veio o 25 de Abril, porque um dia tinha guerra e depois não havia guerra. Eu gostei muito de ouvir notícias. Agora não há guerra, isto vai melhorar. Os capitães e os generais estão fartos de ir para África fazer uma guerra que nunca poderão ganhar, que era uma guerra subversiva. Aquela terra era deles. O Salazar era fã da guerra.
P: Vocês aqui na Algarvia não gostavam do regime do Salazar?
Luís Jacinto: Não, não gostávamos. Mas depois quando veio o 25 de Abril e as coisas começaram a melhorar. Começou a haver mais trabalho e começou a haver tudo. E a gente viveu aquilo.
P: E começou a trabalhar na fábrica ainda antes do 25 abril?
Luís Jacinto: Sim, eu fui para lá antes de casar.
P: E ganhava-se bem ou mal?
Luís Jacinto: Razoável. Eu tenho que ser honesto. O meu patrão era da Ribeira Grande, uma empresa fortíssima da Ribeira Grande e a gente ganhava sempre acima da média. E houve dois anos que nos pagou dois subsídios de férias. Mas depois começou aí uma crise....
P: E vocês na fábrica tinham algum tipo de organização sindical?
Luís Jacinto: Não, a empresa não era uma empresa grande, tinha seis homens só, era de fazer blocos.
P: Então, e no período do 25 de abril aqui criou-se alguma associação nova, fizeram algum grupo novo, por exemplo, para fazer arranjos na Freguesia ou assim?
Luís Jacinto: Isso sim. Depois do 25 de abril as pessoas começaram mais a organizar-se, criaram um grupo da juventude, criaram um grupo de folclore, que a câmara ajudava. Mas depois, esta freguesia tem 200 habitantes, começaram a embarcar, a embarcar. Os nascimentos são poucos. Tem aqui uma filarmónica, mas esta filarmónica é composta por pessoal da Algarvia, graças a Deus a maior parte, pessoal de Santo António, pessoal de São pedro, pessoal da Feteira, pessoal da Achada e da Achadinha.
Porque quando eu vi que já não tinha mais para ir buscar para escola de música, para formar a banda, tive de avançar com os meus colegas da altura. E depois fomos para Santo António e trouxemos um de Santo António, depois veio um rapazinho de São Paulo, que ainda aqui está, que se veio oferecer. E depois atrás dele vieram outros. E depois fomos para Feteira. Da Feteira, ofereceram-se e a gente ia lá busca-los, porque eram crianças. A gente responsabilizamo-nos por as ir buscar para o dia do ensaio, a gente ia buscá-los e íamos pô-las à porta. Tinha de ser assim para os pais deixarem.
E depois avançou-se para a Achadinha e fez-se bem, alguns miúdos já estão na banda e outros estão em formação. A banda está boa! Agora, depois destes dois anos de pandemia, está boa. Não é por ser da minha freguesia mas neste momento é a melhor banda do concelho.
P: Então, o senhor estava envolvido nas romarias e ao mesmo tempo veio para a banda.
Luís Jacinto: Exatamente.
P: E como é que foi?
Luís Jacinto: Foi por causa dos amigos estão ali. O [anonimizado] que era muito conhecido comigo na freguesia, nas festas da paróquia, mesmo pelo estatuto de mestre romeiro eu tinha a obrigação de estar envolvido nos eventos da paróquia. O grupo de Romeiros, no regulamento que a gente recebeu, diz que temos de participar nos eventos da paróquia. E é bom que seja assim. Se a paróquia quer fazer uma cerimónia, se a paróquia quer fazer uma procissão, ai vão os romeiros.
P: E então pediram-lhe para vir aqui para a banda?
Luís Jacinto: É, esse meu amigo disse: “A gente tinha ai uma direção, mas depois a direção saiu, e isto ficou sem rumo. Fez-se uma comissão administrativa. Mas agora com a ajuda dos músicos consegui criar uma direção”. E depois ele disse: “A gente vai para ali, é a nossa freguesia, a gente não vai deixar morrer aquilo”. E então eu vim. E depois comecei a adaptar-me. Dá muito trabalho e não é reconhecido. O trabalho da direção não é reconhecido, é nos bastidores. As pessoas pensam que é só ir com a banda. É muito trabalho antes. Quando a banda sai para fora dá muito trabalho antes. E o telemóvel tem de estar sempre na mão.
P: E era músico? Tinha sido músico ou foi?
Luís Jacinto: Nunca, nunca fui músico e nunca tive aquela vocação quando era novo de vir aprender música. E depois envolvi-me nisto, estive aqui 30 anos. Eu estava sempre a ver se arranjava maneira de sair. Dizia ao conselho fiscal, ao presidente da assembleia geral: “Tens que arranjar, eu tenho que sair, isto tudo tem o seu limite”. Era para ter saído em 2016. Em 2016 já não consegui arranjar direção. E depois, segundo o estatuto desta câmara, quando não houver direção, a instituição tem de entregar-se à autoridade máxima da freguesia. Antes era o regedor, agora é a junta (...). E eu disse para os meus colegas: “A gente não tem outro remédio senão ficar aqui”.
P: Mas agora conseguiram arranjar?
Luís Jacinto: Arranjámos. Aquele rapaz é filho desta terra, mas ele mora na Achada e os outros dois são de Santo António, mas isso não interessa, interessa é que tenha direção. E o vice-presidente é daqui.
O: E diga-me uma coisa, aqui a banda, quantas pessoas é que envolve?
Luís Jacinto: Neste momento, com direção, está com 45, 46 mais ou menos. Já teve 52, mas isso é assim, as bandas têm altos e baixos.
P: Contanto com os músicos e com as direções. E depois não tem sócios?
Luís Jacinto: Não tem, o estatuto até manda mas a freguesia é pequena.
P: Mas a banda recebe quando vai tocar a vários sítios. E depois vocês usam esse dinheiro para quê?
Luís Jacinto: O ordenado do maestro e depois tem de se investir nos instrumentos e para investir nos instrumentos a gente pede apoio ao Estado. Faz a candidatura, pode ser aprovada, pode não ser aprovada, mas normalmente é sempre aprovada. E dão oitenta porcento, já não é nada mau, a pessoa já dá só vinte porcento. E depois temos um apoio da junta, temos um apoio anual para contar para o nosso orçamento. Desta junta e da junta de Santo António, é igual. Têm um compromisso e a gente também tem que retribuir, vamos lá fazer a festa do padroeiro e não cobramos dinheiro, a junta também está colaborando. E essa disponibiliza a carrinha da junta sempre que gente precisa, e a nossa aqui também e a banda também tem. E a nossa câmara deve ser das câmara que, penso eu aqui dos Açores, que dá mais dinheiro. Neste momento está dando doze mil euros. E o outro presidente de trás dava 15 mil euros, é muito dinheiro. Portanto, as bandas do concelho financeiramente não estão mal. O outro presidente dava 15 mil euros, 10 mil para despesas corrente e 5 mil tinha que se investir, ou em fardamento ou em instrumentos. Tinha-se é que investir e tinha-se que apresentar as fatura. Se não apresentássemos faturas, não havia dinheiro para ninguém. E eu era diretor e aproveitava para comprar instrumentos com melhor rendimento, essas coisas.
P: E diga-me uma coisa? Em algumas bandas que eu entrevistei lá no continente, disseram-me que a banda apoiava, por exemplo, os funerais dos sócios, que tinham algumas ajudas aos sócios.
Luís Jacinto: Mas a gente faz os funerais aqui sempre, mesmo o estatuto manda fazer, e fazer as domingas do Espírito Santo. Agora a banda só vai fazer os funerais da famílias dos músicos que estão no ativo. E vai fazer as domingas.
P: E conte-me uma coisa mais de antigamente. Aqui na vossa Freguesia os agricultores também tinham a prática de se ajudarem uns aos outros em alguns trabalhos de agrícolas que era preciso fazer em conjunto.
Luís Jacinto: Antigamente era assim, ajudavam-se mutuamente uns aos outros. Os bois iam lavrar e depois o outro também vinha semear. Havia essa coisa.
P: E acha que estas associações, por exemplo, como os Romeiros, ajudava a que houvesse essa entreajuda entre as pessoas, essa união?
Luís Jacinto: Os Romeiros têm essa finalidade, de ir visitar os doentes, angariar coisas da freguesia, pedir pelas portas às pessoas que podem dar às pessoas mais desfavorecidas. Os romeiros são um movimento forte aqui freguesia, e nas outras. É bonito. E graças a Deus, são dos bons. E isso ajuda muito as pessoas mais carenciadas. E para a nossa banda também, verdade seja dito, também olha muito para isso, para a parte social.
P: E a banda também tem essa dimensão social ou são mais romeiros?
Luís Jacinto: A banda é a sua própria associação. As pessoas gostam da banda. No fim da época faz-se uma festa da banda, mesmo própria da banda e a banda sai a cantar, saí à noite, vai correr a freguesia e as pessoas vão em grupo. E isso também ajuda a instituição.
P: Então, o senhor Luís Jacinto esteve aqui envolvido muito na Freguesia, chegou a ter algum cargo na junta de Freguesia?
Luís Jacinto: Na assembleia.
P: Fez parte da Assembleia? O que é que defendia lá na Assembleia?
Luís Jacinto: Defendia sempre os interesses da minha freguesia, porque isto não era freguesia. Isto foi para a freguesia há uns anos. Isto era Santo António, São Paulo e Algarvia e a sede era em São Pedro. E daí, o bolo vinha da junta era dividido. E aí, na Assembleia, a gente exigia essas coisas.
P: É importante para as crianças aqui da freguesia terem aqui a banda, e das outras, é importante?
Luís Jacinto: É muito importante.
P: Porquê?
Luís Jacinto: É importante porque elas têm gosto e duas vezes por semana estão aqui das oito às dez. Porque elas também têm escola não podem ficar aqui até à meia-noite.
P: E passeiam não é?
Luís Jacinto: Se passeiam. Esta banda saiu, antes de eu ser presidente, em 1993, à Madeira, a São Vicente. E depois em 1995 fomos para a Terceira, em 1997 a Santa Maria. E depois houve um período, em 1998, em que a banda estava meia fraca, a gente parou. Em 2000, Pico e Faial, em 2001, Estado Unidos da América. Em 2010, fomos para a Madeira. 2004 São ?. em 2005 Castro Marim, no Algarve. Fizemos lá uns concertos, fizemos um concerto em Vila Real de Santo António. Fomos a Espanha, à cidade de Aiamonte. Fizemos um rico de um passeio pelo rio Guadiana até Alcoutim. Passámos lá uns dias lindíssimos. A banda de Castro Marim já tinha estado aqui em junho e a gente foi em setembro. Em 2006, fomos outra vez para o Pico. Em 2008, fomos para a Fronteira, com passeio a Elvas, a Évora. E fomos a Badajoz, em Espanha. E de lá, a gente fez uma excursão a Fátima. Em 2009, outra vez para a Madeira. Em 2012, fomos para Múrcia. Aquela costa, a gente correu aquilo tudo. E fomos à cidade de Samora, em Espanha. Tocámos num sítio que eles têm, que a gente foi lá fazer uma visita, onde o rei Dom Afonso Henriques se encontrava com o rei de Castela. Tinha muita tapeçaria, tudo árabe. O nosso presidente da Câmara foi connosco que ele é de história. Foi bonito. É pena que os miúdos não querem nada disso. Em 2016 fomos para Leiria, foi um espetáculo. A dormir em escolas, mas tinha duche, tinha tudo. Foi uma maravilha.
P: Como é que se organizam essas viagens? É com as bandas de lá? São as bandas de lá que organizam?
Luís Jacinto: As bandas de lá pedem, por exemplo, que façam um intercâmbio. A banda de lá faz um convite. Faz um convite para a gente integrar as festas dos seus padroeiros. E a gente quando vê aquele convite, a gente começa a arranjar dinheiro aqui.
P: Faz-se uma candidatura para o governo, o governo paga 60%. Aquilo dá trabalho, tem que se por os papeis, aquilo tem que ser tudo bem confirmado.
P: E como é que arranjam os outros 40?
Luís Jacinto: A Câmara paga x passagens... A banda paga x passagens. A junta também paga duas... E o resto a gente também tem dinheiro. E a gente lá não gasta nada em comida, dormida, nada... É a outra banda que recebe que paga.
P: E quando vocês recebem, como é que pagam, também têm que pedir apoios para pagar quando recebem bandas de outros sítios?
Luís Jacinto: É por convite, mas eles têm de desenrascar a sua parte, a parte das passagens e de lá para cá é muito mais caro.
P: E com as bandas espanholas também tem essa ligação, quando foram a Múrcia?
Luís Jacinto: A gente foi a Múrcia, mas o veio cá foi um grupo de Folclore. E de Fronteira também foi um grupo de Folclore. Agora, neste momento temos condições para os receber aqui. Armamos uns colchões ali na escola, agora temos duche.
P: E aos Estados Unidos, como é que foram?
Luís Jacinto: Um rapaz que era meu amigo faleceu lá, quando eu assumi a presidência da banda. E um dia o irmão dele telefonou-me: “Estás presidente da banda, porque é que não trazes essa banda à América?”. E eu disse: “Isso tem de ser muito bem pensado, isso não é brincadeira”. “A gente vai fazer festas aqui para ajudar e tal”. Eu disse: “Está bem, vou falar com os meus colegas e a gente vai pensar nisso e depois a gente vai falar com o maestro para ver se a banda tem condições de ir lá”. E depois o maestro disse: “É uma oportunidade, porque é a gente não vai? Temos banda para isso! O que é que o senhor está à espera”. E eu depois: “E o senhor vai para a América por 20 dias, são as suas férias. A banda não vai pagar isso, que não tem dinheiro”. Mas fomos e correu tão bem. Eu disse a ele: “Eu quero que tu me arranjes 50% das passagens aéreas e o resto deixa comigo”. Fiz uma candidatura ao governo para pagar as passagens - à direção Regional da imigração. Fizemos a candidatura e deram-nos o dinheiro das passagens, era muito dinheiro - 108,800 €. A câmara deu seis, a junta também deu dois, e o resto a banda desenrascou. Mas a gente teve muita sorte, porque o serviço lá na América é pago, portanto a gente foi para as festas do Divino Espírito Santo, mas também fomos numa procissão e recebemos das duas. As festas também deu e juntando tudo, a gente ainda ganhou dinheiro. A comissão que estava lá fazia muitas festas, com jantares e tudo, por isso já tinha o dinheiro lá.
P: Ou seja, a amizade que há aqui dentro da banda também há com as bandas dos outros sítios
Luís Jacinto: Exatamente. É bonito.
P: Diga-me uma coisa, houve uma altura em que era mestre dos romeiros e presidente da banda. Como é que conseguia gerir isto?
Luís Jacinto: Conseguia com trabalho, mas nos romeiros a gente tem uma missa por mês, em que temos de cantar e participar. Mas dá, bem organizado dá.
P: Mas dedicava muito do seu tempo?
Luís Jacinto: Dava muito tempo à banda. A banda dá mais trabalho que os romeiros. Porque é assim. Eu tenho uma equipa... A senhora sabe que é assim. Eu tenho uma equipa de gente boa, a trabalhar, de gente séria... Prontos para fazer o que fosse com as carrinhas, ir buscar os músicos, e isso tudo. Mas o cabecilha, o mestre, é o presidente. O presidente é o mestre, porque se tem um problema... Mas, pronto, eu sou uma pessoa muito calma, muito paciente. Não é por estar a elogiar-me, mas é verdade, é a minha maneira de ser, muito paciente. E depois eu não tenho aquele feitio. Por exemplo, um músico se faz uma coisa mal, por isto ou aquilo, uma coisa que não tinha que fazer, eu não tenho aquele feitio, de chegar ali num lugar de um mestre e estar a descascar. Porque tem gente ali que não faz tudo bem. Mas chamava o músico à parte e dizia-lhe assim: “Tu tens que ter outro comportamento. Tu tens que ter outro comportamento. Isso não pode ser assim. Eu não quero estar ali a descascar-te à vista dos teus colegas, porque deixa-te mal”. E eles também não estão dispostos. Há pessoas que têm esse feitio, que descascam ali, mas eu não. Por isso é que eles diziam que eu era bom para bombeiro, para apagar os fogos. Eles diziam que fui devia ter ido para bombeiro, para apagar o fogo, para não ter conflitos.
P: Diga-me uma coisa, quais são os valores, os princípios que orientam estas associações? O que é mais importante? É a generosidade, é o compromisso? O que acha que são os valores deste movimento?
Luís Jacinto: Isto tem muito valor, é uma instituição de mérito cultural. Para esta freguesia, que é uma freguesia pequena, isto é um ponto de referência. E tem muito valor porque reúne estes rapazes aqui, tudo em harmonia.
P: Foi bom? O que é que sentiu? O que é que sentiu durante estes anos todos?
Luís Jacinto: Tive muito trabalho. Tive altos e baixos, mas sinto-me muito satisfeito. Se eu não estivesse nesta banda, eu não tinha ido à América. Se eu não estivesse nesta banda, não quer dizer que não tivesse ido a Lisboa, mas eu não tinha feito tantos amigos, tantos presidentes de câmara e presidentes de junta.
P: Então, acha que valeu a pena?
Luís Jacinto: Valeu a pena. Valeu a pena, aprendi muito. Conheci muitas amizades. Fora da ilha, na Madeira, na... Gostei imenso e sinto-me muito satisfeito. E continuo aqui, não estou aqui mas qualquer coisa que o presidente precise. Eu disse: “Qualquer coisa que te ultrapasse, que eu possa ajudar...”
P: Tem esperança, tem esperança que a banda continue assim?
Luís Jacinto: A banda vai continuar, a banda tem pernas para andar. Ainda outro dia, eu disse: “A banda da Algarvia tem pernas para andar sim senhor”.
P: E os Romeiros? Também valeu a pena?
Dos romeiros... Ele estão sempre aqui [aponta para o coração e emociona-se]. Quando saem os meus romeiros, eu nem sequer quero vir à despedida... Mas eu não posso. Andar de madrugada, fria, manhãs de março geladas. Andar ainda conseguia mas eu já tenho 74 anos.
P: E acha que este movimento dos romeiros vai continuar?
Luís Jacinto: Vai continuar, vai continuar. Tem muita gente nova. Alguns diziam: as romeiras vão acabar quando os velhos acabarem. Não, dou-lhe a minha palavra que não acabam.
P: Qual é o que é o peso que teve esta participação na sua vida? De que forma marcou a sua vida?
Luís Jacinto: Marcou-me muito (emociona-se). É a minha casa. A banda, os romeiros...É assim, os homens passam, as instituições ficam.
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Junho de 2022
P: Como estava a dizer, a minha ideia é perceber a história de vida das pessoas e por isso perguntava em primeiro lugar onde e quando é que nasceste?
Mário Abrantes: Nasci no hospital militar principal em Lisboa, mas era residente em Aveiro na altura, em 1950, a meio do século passado. Era filho de militar e o meu pai andou a saltar de um sítio para o outro, portanto eu fui atrás, ao princípio. Fui para Macau com 6 anos de idade, estive 3 anos em Macau, depois de Macau fui para, agora não sei bem a sequência, mas andei por Mafra, Portalegre, Elvas, Évora e Estremoz. Onde estive mais tempo foi em Estremoz. Depois estive em Moçambique, em Angola, nas comissões que ele fazia quando tinha comissões, durante a guerra. Depois, voltei para Lisboa e entretanto estava a estudar em agronomia, no Instituto Superior de Agronomia. Entretanto, antes do fim do curso, envolvi-me em atividades políticas consideradas lesivas dos interesses do Estado e fui preso antes do 25 de Abril, em 1973, antes de acabar o curso. Saí no dia 27 [de abril], que não foi a 25, foi a 27 de madrugada.
P: Estavas onde?
Mário Abrantes: Estava em Caxias e saí a 27 de madrugada. Depois acabei o curso nessa altura, mas entretanto aquela onda logo a sair ao 25 de abril levou-me atrás. Entrei para o MDP e, não sendo filiado, participei politicamente em atividades relacionadas com a atividade do PCP.
P: Diz-me só uma coisa, os teus pais eram de esquerda?
Mário Abrantes: Não, não, os meus pais eram adeptos ferranhos do regime, qualquer um deles.
P: E tinha as irmãos?
Mário Abrantes: Tinha 10 irmãos, neste momento estão 8 vivos. Éramos 11 e agora tenho 8 irmãos vivos, comigo somos nove neste momento.
P: E os teus irmãos também se envolveram em questões políticas?
Mário Abrantes: Sim. Há um que já não é vivo e logo a seguir ao 25 de abril esteve ligado à UDP. Mas esteve envolvido em grandes atividades políticas. De resto, as minhas duas irmãs, logo a seguir a mim na escala hierárquica da minha família, a mais velha, logo a seguir a mim, também esteve a envolvida em movimentos associativos e também esteve presa antes do 25 de Abril. Saiu um bocado antes do 25 de Abril, esteve pouco tempo, ela e o meu cunhado. E depois a minha outra irmã a seguir é essa, é que foi mais ativa e esteve ligada a várias organizações, todas elas ligadas ao Partido. Acabou na Guiné, trabalhou com o Nino Vieira na Guiné. Esteve dois ou trê anos na Guiné, depois veio para cá e trabalhou no movimento sindical também durante muitos anos. Atualmente está reformada e faz a sua vida própria. Envolvidos em política, à esquerda, não tenho mais ninguém. De resto, os outros meus irmãos, tenho o mais velho de todos que vive no Porto, e que é um homem que é militar, traumatizado pela guerra colonial e de direita e depois tenho os outros meus irmãos cuja opção política, há um que eu conheço, que é simpatizante do PSD, os outros não sei bem o que são, nem o que não são. É isto sobre a família, em termos de ligações políticas.
P: E o teu envolvimento foi no movimento estudantil?
Mário Abrantes: Não, o meu envolvimento foi simultaneamente no movimento estudantil e clandestinamente num movimento patrocinado pelo Partido, mas que não era só composto por gente ligada ao partido, que era a Ação Revolucionária Armada, de que eu fazia parte mesmo sem estar ligado ao Partido. Era um dos que não estando ligado ao Partido estava. Foi esse meu envolvimento que me levou à cadeia, porque quanto ao resto era na Associação dos Estudantes de Agronomia. Estive muitos anos ligado à associação, como ativista da associação, recusando-me sempre a ir para cargos diretivos, era responsável da secção sonora do da Associação dos Estudantes do Instituto do Superior de Agronomia.
P: E o que foi primeiro? Foi primeiro o envolvimento Estudantil?
Mário Abrantes: Sim, foi através do envolvimento do movimento estudantil que comecei a minha politização. A minha politização propriamente dita começa numa data concreta, em 1967, quando foram as cheias. O movimento associativo participou ativamente no socorro e no apoio às vítimas das cheias, nos bairros de lata de Lisboa fundamentalmente, e eu participei em algumas ações dessas levadas a cabo porque tinha acabado de entrar para a associação e tinha começado a trabalhar na associação, embora sem intenções políticas de outra ordem. Não tinha intenções políticas nenhumas, estava lá até porque gostava muito de fazer bonecos e desenhar e gostava muito de pôr música e de música. Estava na secção sonora e fazia publicidade e propaganda lá, fazia cartazes. Mas entretanto meti-me na cheias e depois de sair das cheias é que percebi bem onde estava metido. Porque até lá a minha cultura política era a que os meus pais me tinham transmitido praticamente, embora com algumas reservas, mas no fundamental aceitava a situação. Depois é que comecei a perceber a partir dali.
P: Como foi essa experiência tão marcante das cheias?
Mário Abrantes: A experiência das cheias foi ver como é que aquela gente todo vivia, não era preciso dizer mais nada, e as condições de vida que tinham e pelo que passavam antes, antes das próprias cheias, e a falta de apoio público que tiveram. Deixaram-nos morrer praticamente, muitos deles morreram por falta de socorro, por falta de apoio, e a partir daí, juntamente com os meus outros camaradas ou colegas da associação, começamos a participar em ações de contestação estudantil ao governo e à ditadura, a partir daí mais ou menos. Eu comecei a participar, com os meus colegas da associação, que eram mais velhos que eu e já participavam antes das cheias. Mas eu entrei foi nessa altura e a participação começou aí.
P: Isso foi em 1967?
Mário Abrantes: A partir de 67 e nunca mais parou.
P: E depois foi a crise de 1969...
Mário Abrantes: A crise de 69 e as eleições. Andei a fazer Campanha pela CDE. Participei em tudo o que era movimentos estudantis, eu participava em manifestações estudantistas, participava... Era isto. Até que, por via disso tive um contacto. Eu tinha cá as minhas ideias, esquerdistas na altura. Portanto, em Agronomia defrontavam-se duas correntes ideológicas, a ligada ao Partido Comunista e uma ligada ao esquerdismo e ao maoísmo.
P: MRPP?
Mário Abrantes: Não, maoísmo, mas sem ligações partidárias. Portanto, todos aqueles que passaram por ali, naquelas listas daquela associação, e que eu apoiava embora não fosse da direção. Havia um casal... E esses é que eram mesmo maoista, mas não eram MRPP. Eu acho que eles estavam, embora nunca tivessem dito, mas eu acho que eles estavam ligados ao Partido Comunista Reconstruído, ou um movimento qualquer de reconstrução do Partido Comunista maoísta. Aqueles com quem eu me dava mais, era pessoal, que: Sim senhor o Mao Tsé Tung, o maoísmo e não sei o quê, a Rússia é social imperialista e não sei que mais, mas não eram filiados em nenhum partido maoísta. E até, se queres que te diga, a ideia que eu tenho, é que nem sequer maoístas eram, devido à evolução futura deles. Um deles era Guineense, foi para a Guiné e era um homem do PAIGC. O outros eram também gente ligada aos movimentos de libertação.
P: Havia muitos estudantes das ex-colónias?
Mário Abrantes: Sim, em agronomia havia bastante e eu também, porque tinha estado em Angola e o primeiro ano foi em Angola. Foi quando se abriram os estudos universitários de agronomia e silvicultura, porque eu sou silivicultor. Foi em Angola que fiz o primeiro ano e depois vim para cá com uma série deles e estive até num lar chamado Lar Ultramarino, que era perto de agronomia, com uma série deles que vieram de lá. Em geral era a malta de direita. Era tudo gente ligada aos colonos. Eram brancos. Havia um negro, mas eram um negro branco. Eram os meus colegas, com quem eu vim de lá. Também aí as minhas ligações, como vez, eram para o outro lado completamente
P: E depois, estavas a dizer que tiveste um contacto nessa altura...
Mário Abrantes: Eu tive um contato, porque eu procurava esses contactos, com descrição, mas procurava. Porque nós iamo-nos desenvolvendo ideologicamente. E, portanto, aquela ideia da necessidade da luta armada, de ser contra o regime, que chegou a altura, isto era objeto de debate, objeto de discussão, de conversas entre nós na associação. Isto tudo ao nível da associação, embora de forma mais reservada. Até que há uma altura em que alguém que estava ligado também à associação me faz o convite para participar e eu aceitei.
P: E o que é que fizeste para ser preso?
Mário Abrantes: Participei em algumas ações da ARA - duas. Não tive tempo para mais porque aquilo foi rápido. Fomos presos em 1973, eu tinha entrado em 1972 talvez, então não tive tempo para fazer muita coisa.
P: Estiveste preso em Caxias? E foi duro, foste torturado?
Mário Abrantes: Se calhar não foi tão duro como outros, porque o meu pai era coronel nessa altura, já era coronel de cavalaria. E o regime já não estava com aquela força, nessa altura. Portanto, o problema das forças armadas, estás a ver? Tinham alguma reserva. Então, eu cheguei a ser torturado, estive sem dormir quatro noites, estive um dia e meio, quase dois dias, sem me sentar, mas não me deram porrada, não levei porrada. Acabei por confirmar as acusações que me eram feitas. As acusações que me eram feitas foi ter participado nisto, nisto e nisto. Portanto, eu tive ao todo duas semanas de interrogatórios, com interrupções, e passei ao todo talvez quatro noites sem dormir, depois mais uma. Depois fizeram-me vários convites para denunciar: Que me ofereciam uma passagem de avião não sei para onde, que eu passava a ter uma vida nova, enfim, uma identidade nova. Essas coisas todas que eles faziam com o pessoal, mas isso aí não….Nem tinha grandes condições para denunciar ninguém, a não ser mais duas pessoas que eu tinha convidado formalmente em agronomia, meus colegas, mas nunca referi nada a isso.
P: E depois, foste liberto em 1974.
Mário Abrantes: Fui liberto em 1974, na madrugada de 27 [de Abril].
P: Como é que foi o 25 de Abril dentro de Caxias?
Mário Abrantes: O 25 de Abril dentro de Caxias foi uma coisa… Não tínhamos datas, mas de alguma forma já tínhamos noção de que poderia acontecer qualquer coisa do género, não tínhamos era a Certeza. Porque sabíamos que nas forças armadas se passavam coisas que podíam desencadiar uma ação armada para derrubar o regime. Não sabíamos, era, porque havia duas correntes, qual dessas correntes era dominante na altura, se era a do Kaulza de Arriaga, se era a corrente progressista que depois se veio a afirmar como movimento dos capitães. Sabíamos que havia uma corrente progressista, não sabíamos como é que estava organizada. Portanto, íamos comunicando, íamos informando, até que um dia a gente teve conhecimento por fora, porque a gente tinha contactos externos nas visitas, que tinha havido de facto um levantamento. Tinha havido um levantamento, mas não sabíamos ainda bem que tipo o levantamento era, porque entretanto, entraram pela cadeia dentro, os paraquedistas, os paraquedistas ocuparam os postos todos da GNR. Ora os paraquedistas, a gente tinha a ideia de que era uma tropa muito ligada à direita, portanto ficámos à rasca. Barricamo-nos nas celas para não deixar entrar ninguém, mas depois vieram os fusileiros também e chamaram-nos lá para fora e confraternizámos com eles. Estava lá um colega meu também, que estava na tropa nessa altura, e depois é que percebemos que aquilo afinal era tudo boa gente.
P: Foi uma grande alegria?
Mário Abrantes: Pois, mas depois foram aquelas chatices todas até ao dia 27, porque isto passou-se no dia 25, e depois as chatices todas até o 27, que era a pressão do Spinola para não libertar toda a gente. E a gente decidiu, mas isso acho que deves conhecer, conheces a história.
P: E depois, em que te envolveste durante o processo revolucionário?
Logo a seguir decidi acabar o curso, mas entretanto a onda era muito grande e eu não resisti nada e acabei por filiar-me no MDP-CDE. Estive dois anos, quase dois anos filiado no MDP-CDE. Trabalhei em várias frentes, uma delas foi na formação da Associação das Coletividade de Cultura e Recreio na zona de Lisboa. E trabalhei na alfabetização com a Helena Cidade Moura, não sei se tu conheceste, que era uma mulher muito ligada a isso. O que é que fazíamos? Era andar atrás daquelas coletividades todas, explicar a necessidade de um entendimento comum, de se formar uma coisa para ganhar força e lá conseguimos ir formando, ir estruturando um núcleozinho, com outra gente, que envolvia já umas cinco ou seis coletividades. Mas depois entretanto eu larguei isso porque filie-me no Partido e a minha vida mudou completamente a partir daí. Continuei na zona de Lisboa, mas mudei completamente. E portanto desliguei-me. Nunca mais tive ligações nenhumas com as coletividades.
P: Mas uma das frentes dos do MDP/CDE era promover essa ligação? Foi no âmbito do MDPCDE?
Mário Abrantes: Sim, sim, sim. Um dos objetivos que o MDP/CDE tinha era fazer a ligação entre as associações e coletividade de cultura e recreio.
P: Mas já existia a estrutura, não é?
Mário Abrantes: Eu não me lembro que estruturas é que existiam.
P: Existia a federação em Lisboa, em 1974.
Mário Abrantes: Então a gente é que se calhar, na altura em que eu trabalhei nisso, ainda estávamos a trabalhar em paralelo, eventualmente, não sei.
P: Lembraste quais eram as coletividades?
Mário Abrantes: Não me lembro. Sei que era uma da terra do vinho verde, Colares. Outra, acho que era Torres Vedras e uma era de Sobral de Montagraço...
P: Qual é que era o objetivo político que era traçado para essa união? O que é que se esperava com isso?
Mário Abrantes: O que se esperava com isso era recrutar muito mais gente e equipar e dotar as coletividades do ponto de vista financeiro, material, de equipamentos, capacidade de intervenção, aumentar muito a capacidade de intervenção. Era isto no fundo. Não era para entrar por um caminho novo, era para respeitar exatamente a vocação. É uma banda, é uma banda. Não havia nenhuma intenção de alterar o que quer que fosse em termos da opção das atividades e das ações que estavam por trás da existência de cada uma daquelas coletividades.
P: Era mesmo porque se achava que era importante?
Mário Abrantes: Importante tal e qual como existiam. Só que para ganhar força, tinham que se entender, criar estruturas de entendimento, não era entenderem-se em si mas criar estruturas de entendimento, que lhes permitissem fazer pressão junto do Poder Político.
P: Estava agora a pensar, por teres estado naquilo das cheias, nas comissões de moradores em Lisboa. Naquela altura também foi um movimento muito forte....
Mário Abrantes: Tens toda a razão. Aí também, ainda no âmbito do MDPCDE, na zona da Algés, que era a minha zona (porque eu vivia ali, na altura os meus pais estavam ali), naqueles bairros, nos bairros da lata – Pedreira dos Húngaros, etc. – a gente formou comissões de moradores neles todos. Estruturámos comissões de moradores neles todos. Eu me lembro-me, eram uns cinco ou seis bairros que exitiam ali.
P: Enquanto funcionário do MDP/CDE?
Mário Abrantes: Sim, sim.
P: E o que é que se reivindicava?
Casa, habitação, fundamentalmente a guerra era pela habitação. Sair dali, acabar com aquilo e habitação.
P: Queria-se que houvesse construção de habitação social? Queriam fazer ocupações?
Mário Abrantes: Não, na altura não se punha nenhuma questão relacionada com ocupações. Até porque a gente não conhecia, nem sabia de coisas devolutas, nem de coisas potencialmente ocupáveis. Portanto, não. Era construir toda uma estrutura habitacional que pudesse substituir aquela. O trabalho era esse. E era para eles ganharem força no sentido de reivindicar exatamente isso. E de participarem, se fosse possível, na construção, no próprio erguer das casas novas.
P: E depois acompanhaste?
Mário Abrantes: Não, quando saí do MDP, tudo isso abandonei. Porque depois fui parar, ainda estive ligado às coletividades até meados de 1977, portanto de finais de 75 até meados de 77, quando estive na Câmara de Loures, ainda como MDP. Na altura o presidente da Câmara era um homem do MDP e convidou-me para ir para lá para assessorar a presidência na parte cultural. Eu estive durante esses meses nesse trabalho.Trabalhei para o Boletim Municipal e mantive a ligação com algumas coletividades de cultura e recreio que já trazia do MDP, mas já era em estrutura, não era a coletividade x ou y. A Câmara participava nas reuniões da estrutura intercoletividades que entretanto já existia.
P: Mas era uma estrutura municipal?
Mário Abrantes: Agora é que não te sei dizer, já não me lembro se era municipal ou se era mais... Se calhar era de Lisboa e a Câmara de Loures é que participava nas reuniões da intercolectividade.
P: Como é que era essa relação entre as autarquias e as coletividades?
Mário Abrantes: A gente participava no sentido de ouvir o que é que eles, nessa altura já eram nesse sentido, já não tinha a ver com o trabalho inicial, agora já era a própria estrutura a funcionar por si e nós a recebermos as propostas deles sobre o que competia ao município. E nós tentávamos acompanhar aquilo que fosse das nossas competências.
P: E quais eram as reivindicações deles?
Mário Abrantes: Não sei, acho que aquilo era muito diverso. Eu não estou a ver nenhuma específica. Acho que era muito diverso, eram coisas práticas. Umas precisavam de um automóvel, outras precisavam de... Eram necessidades desse tipo. E nós procurávamos satisfazer todas.
P: E não havia nenhum programa de articulação para dar resposta a determinadas necessidades sociais entre a autarquia e as coletividades?
Mário Abrantes: Não, que eu conhecesse não, mas eu estava na parte cultural, portanto não sei dizer se havia alguma coisa. Para além disso, na parte cultural, fiquei responsável durante esses dois anos, ou ano e meio que trabalhei lá, pelas festas do Concelho, pelo Feriado do Concelho que também envolvia muitas associações. Sim, envolvia coletividades e muita coisa.
P: Segundo a tua memória, qual é quer era o espírito que se vivia nas associações naquele período ainda efervescente?
Mário Abrantes: Eu acho que era uma expectativa extraordinária em relação ao futuro. A ideia com que eu fiquei é que toda aquela gente estava a dar o melhor de si porque julgavam que tinham condições e que estavam criadas as condições, e de alguma forma até que estiveram criadas durante algum tempo, para conseguirem atingir os objetivos por que sempre ansiaram. Chegarem a um outro patamar em termos de realização própria, coletiva. E portanto, uma disposição para ajudar, para colaborar, para trabalhar fora de horas. Aquilo não havia horários, não havia nada. Era um voluntarismo de facto muito forte. Havia um voluntarismo muito forte e a gente acompanhava aquilo tudo, claro, nem podia fugir dessa onda. Nem queria.
P: E nas comissões de moradores?
Mário Abrantes: Nas comissões de moradores era a mesma coisa, mas aí com mais calma. Porque a partir dessa altura acontecia que, como era um partido político, já não era tanto a câmara, era um partido político, na altura o MDP/CDE que estava a trabalhar naquilo, começavam a aparecer dentro dos próprios bairros, quando havia aqueles contatos com a Comissão, pessoal a contrariar e a pretender criar listas, enquanto a gente ainda estava muito nos unitários: Não, não há cá listas, vamos todos. Não estávamos naquela coisa das listas, de votos, nada disso. Eram portanto comissões de moradores o mais representativas possível. Mas também tínhamos que ter uma reserva muito maior no acompanhamento. Passávamos a ter que contactar lateralmente alguns dos membros dessas comissões com alguma regularidade, aqueles em que a gente tinha alguma confiança, politicamente, para não interferir lá, digamos, no conjunto.
P: E depois? Deixa-me perceber. Estiveste no MDP e depois foste para a Câmara de Loures?
Mário Abrantes: Portanto, enquanto eu estive na Câmara de Loures, inscrevi-me no PCP e participei na Concelhia de Loures. Na Comissão de Freguesia de Loures e depois na Concelhia até 1977, quando me propuseram a funcionalização no Partido. Portanto, eu ainda entrei em Loures em finais de 1975/1976, foi isso. E em 1977 inscrevi-me no Partido e depois passo para a funcionalização. Fiquei responsável pelo Concelho da Azambuja. Estava incluído numa organização que era os Concelhos do Norte do PCP, que são os Concelhos do Norte do Distrito de Lisboa. Tínhamos reuniões mensais de coordenação, em Torres Vedras, e depois tinha o Concelho por minha conta, em termos de responsabilidade política, partidária.
P: E o que que estava acontecer na Azambuja, nesse período?
Mário Abrantes: O que estava a acontecer é que era necessário estruturar o Partido, organizar, participar em lutas da FORD, por exemplo, das fábricas do Sul, na zona da Azambuja propriamente, porque o concelho vai muito para Norte, vai até a cadeia do Alcoentre, lá para cima. Cá em baixo, era necessário organizar o pessoal das fábricas, etc., etc., e lá mais para cima mexer com a agricultura, porque era o que havia, mexer o máximo com a agricultura e manter a organização do Partido e alargá-la o mais possível. Concorrer às eleições autárquicas, o trabalho autárquico era muito importante naquela altura também.
P: Na agricultura, que tipo de organizações é que criaram?
Mário Abrantes: Na altura havia uma cooperativa, que hoje é conhecida por aquela experiência horrorosa de matarem aqueles animais todos que era... como é que se chamava a cooperativa? O que a gente fazia era reuniões com os agricultores, era mais a parte de agricultores, não tanto em termos de cooperativa mas em termos reivindicativos diretos.
P: Eram pequenos proprietários?
Mário Abrantes: Eram. Ali já era tudo pequenos proprietários, era a maioria e muitos eram trabalhadores das fábricas e tinham uma pequena propriedade. Portanto a gente ou pegava por baixo e ia para cima, ou pegava em cima e ia para baixo, que era para fazer este intercambio de organização.
P: E conseguiram mobilizar essas pequenos proprietários?.
Mário Abrantes: Com muita dificuldade, com muita dificuldade. Estou a ver se me lembro de alguma ação assim mais forte. Eles eram mobilizáveis, mas começávamos com a agricultura e acabávamos nos problemas da terra, da freguesia, das ruas, dos caminhos, íamos parar para o âmbito autárquico.
P: E nas fábricas?
Mário Abrantes: Não, nas fábricas era de facto o salário, fundamentalmente o salário. Emprego efetivo e algumas greves. Trabalhamos para realizar algumas greves ali, com a própria célula do partido de cada uma das fábricas, que havia três ou quatro ligadas ao sector automóvel e depois ainda mais. Havia ali umas cinco ou seis fábricas e em todas elas tínhamos uma célula.
P: Quais eram os sindicatos?
Mário Abrantes: Havia vários, mas a gente no sindicato não mexia muito, a gente no sindicato não mexia muito. A gente quanto muito ajudava o sindicato quando nos pediam para mobilizar para greves ou para alguma coisa, para mobilizar os nossos. Eles diziam-nos, davam-nos um toque, e nós íamos ter com eles. Ainda foram algumas lutas ali.
P: Sobretudo salários?
Mário Abrantes: Sim, sim, fundamentalmente salários, que eu me lembre era fundamentalmente salários.
P: E depois era o trabalho autárquico?
Mário Abrantes: Muito, esse era o principal. Acabou por ser, por se revelar para mim o trabalho principal naquelas freguesias todas. Chegámos a ter dois vereadores na Câmara e tínhamos eleitos em praticamente todas as freguesias. E chegámos a ter três juntas de freguesia da Aliança Povo Unido.
P: E ainda estavam num período de saneamento básico?
Mário Abrantes: Era tudo coisas básicas – o lixo, o saneamento, os caminhos, as ruas...
P: Então, depois da Azambuja, foste para onde?
Mário Abrantes: Ora, depois da Azambuja, passado um ano e meio mais ou menos, começamos a ter a informação de que era preciso gente para vir para os Açores, porque se tinha passado aqui uma história negativa, o 6 de junho, como já te contaram, que foi o pré 25 de novembro na prática, foi o grande ensaio para o 25 de novembro, e nessa sequência e dos assaltos às sedes do partido, não sei quantos, os quadros do partido foram postos na rua, como tu sabes. Foram 7 ou 8 postos no avião daqui para fora. Aliás, quem me foi substituir na Azambuja foram dois dos que foram embora daqui - uma Micaelense, uma enfermeira, que foi a enfermeira que é muito conhecida, agora já não, mas na altura toda a gente a conhecia, que foi despida. Despiram a camarada ali na rua, à frente de toda a gente, sem vergonha nenhuma. Ela depois passou a funcionária. E portanto, o [anonimizado], que era o responsável por São Miguel, também foi para a rua depois de lhe deitaram o carro ao mar. Depois acabou, está hoje no Faial, anda por lá. E portanto isto ficou vazio, sem quadros, ficou sem quadros. Conseguiram recrutar um faialense para vir trabalhar na nova organização do PCP, porque o PCP estava todo desarticulado, ficou todo desmantelado praticamente. Aquilo foi perseguição objetiva aos comunistas, mas era perseguição mesmo, com bombas e tudo atrás, não era brincadeira. Portanto, conseguiram recrutar o Zé Deck Mota, que estava a trabalhar no partido em Coimbra. Conseguiram recruta-lo para aqui para os Açores. E ainda bem. Ele veio para os Açores, e então, nesse âmbito, começaram a recrutar mais gente nos organismos do partido, em vários sítios: Quem é que está disponível? E eu acabei por dizer: Epá, se não há mais ninguém, ninguém dizia nada....
P: Ainda não tinhas casado?
Mário Abrantes: Se não há mais ninguém... E vim para aqui para São Miguel, comecei com o Nordeste e com a Povoação, os dois concelhos periféricos. Já cá estava um camarada responsável antes de mim há um ano, que também tinha estado na organização dos mesmos concelhos do Norte do Distrito de Lisboa, responsável do Cadaval e da Lourinhã (que foi corrido de lá quando houve os incêndios dos assaltos e veio para cá) e eu vi-me juntar a ele aqui em São Miguel. Começou a minha vida aqui.
P: Em 1979?
Mário Abrantes: Em princípios de 79, fevereiro ou março, já não me lembro.
P: E vocês tinham funcionários para ter nas várias zonas da ilha? Tu tinhas só o Nordeste?
Mário Abrantes: Sim, o [anonimizado], que era o outro camarada que já cá estava há um ano veio em 1978, também recrutado da mesma maneira que eu, e ela, a [anonimizado], que era a companheira dele, estávamos divididos os três por vários...
P: E tu estavas com o Nordeste e Povoação?
Mário Abrantes: Isto foi um ano mais ou menos. Ao fim de um ano o [anonimizado] é mobilizado para o Pico, mais a [anonimizada], foram os dois, porque ficámos sem pessoal no Pico, foram por Pico e eu ainda durante algum tempo fiquei aqui sozinho só com este monstro. Depois é que com uma insistência permanente junto do Partido, é que se lá foi conseguindo, mas sempre aos bochechos. Agora vinha um camarada, estava cá um ano, dois anos e ia-se embora. Aliás era esse o compromisso, o meu também foi assim: Epa, é para ires por dois anos.
P: E por que ficaste?
Mário Abrantes: Fiquei porque entretanto não havia ninguém para me substituir, começa por aí. E segundo, porque comecei a ter ligações e relações com o pessoal daqui. Eu não tinha vida feita em lado nenhum, estás a perceber? Portanto, podia fazer vida em qualquer lado e foi isso, comecei a fazer vida aqui. As vizinhas metiam-se connosco e a gente brincava à noite, às vezes de uma casa para outra, e com o tempo a gente juntou-se, isto para ser breve.
P: Então constituíste aqui família?
Mário Abrantes: Fiz família aqui, portanto, a partir dessa altura, não tinha razões nenhumas para sair de cá. A não ser que me propusessem qualquer alternativa.
P; E quando vieste, tinhas-me dito que vieste como professor?
Mário Abrantes: Formalmente e oficialmente vim, concorri, e vim para dar aulas. Dei aulas no liceu e dei aulas na preparatória, na Roberto Ivens, durante dois anos.
E depois parou. Agora isto aqui já está mais calmo, mas durante esse período ainda houve muitos problemas, ainda assaltaram a sede, essa sede. Ainda boicotaram a campanha de 1979, no fim do ano, porque eram autárquicas esse ano. Assaltaram uma sessão pública que fizemos, mas isso foi bom para nós.
Assaltaram-nos uma sessão pública que fizemos aqui na Freguesia de São Pedro, no Cine São Pedro, (agora é daqueles gajos religiosos). Partiram aquilo de tudo, acabou tudo à porrada. Era um movimento separatista juvenil, o MSE - Movimento Separatista Estudantil.
E depois foram para o centro de trabalho, mas com gente que levava armas e tudo. Partiram-nos a porta, mas a vizinhança portou-se muito bem. Depois fizemos um trabalho de psicólogo junto da vizinhança, porque eles ficaram à rasca. O nosso problema era que eles ficassem todos com medo que a sede estivesse aqui e quisessem que a gente se fosse embora daqui. Mas não, correu bem. Com o tempo, aquilo acalmou tudo e conseguimos voltar outra vez a estar ali bem. Correu bem, pronto, com o tempo.
E, portanto, com esse tempo começou também a correr bem noutros lados. Entretanto subimos muito a nossa votação nessas autárquicas. Em 1979 houve um salto qualitativo grande, e começámos até a ser pessoas respeitadas, de certa maneira. Começámos a ser pessoas politicamente respeitadas aqui neste meio, que tinha sido o meio mais agressivo contra os comunistas, foi aqui mesmo, em Ponta Delgada. Começámos novamente a ser respeitados e a ter capacidade de mexer um bocadinho, foi isto.
E fomos mexendo, fomos mexendo, mexendo, mexendo, pronto.
P: Junto do operariado?
Mário Abrantes: Não sei o que tu chamas operariado...
P: Tenho estado a entrevistar aqui algumas pessoas das fábricas de tabaco...
Mário Abrantes: Sim, sim, tínhamos influência junto do operariado, mas não era de maneira nenhuma o vetor principal da nossa atividade, porque não tinha, do ponto de vista social e económico, o peso que têm outros setores. Tínhamos de facto, chegamos a ter células nos laticínios, na Loreto, aqui na fábrica do açúcar, a que aguentou mais tempo, na Melo Abreu, que era das cervejas. Mas o problema era: ideologicamente o pessoal não tinha ninguém. Portanto, era um trabalho a começar muito, muito, muito de baixo. Mesmo em termos coletivos, nas fábricas, esse pessoal não tinha mentalidade de conjunto, não tinha ainda. Eram herdeiros diretos do pequeno proprietário agrícola e, portanto, muito caracterizado pelo egoísmo, pelo individualismo. Era muito difícil trabalhar. Para já, reunir era uma vitória de um raio. Quando se conseguia juntar três ou quatro... E depois os temas, os assuntos, o conseguir-se chegar até aos problemas laborais... Tinham medo, um bocado como na Azambuja, mas a um nível muito mais.... Enquanto na Azambuja já havia uma consciência, aqui não havia consciência de classe nenhuma, zero, consciência de classe zero. O que poderia haver antes, não sei se morreu, se o que é que foi, mas também nunca foi nada de especial, nada de grande. O Partido Comunista, antes do 25 de abril, nos Açores, a história que tem é muito curta, é muito pequena. Há umas coisas na Terceira, há uns Avantes que os marinheiros traziam para aí e eram distribuídos. Havia o pessoal que depois veio a ser do MDP/CDE, o Governador Civil, o [anonimizado], ouviam a Rádio Moscovo. Havia uma cooperativa, é verdade, uma cooperativa nas Capelas que diziam que o dirigente principal era comunista, nunca cheguei a conhece-lo porque entretanto morreu, quando eu fui ter com ele.
P: Era uma cooperativa de quê
Mário Abrantes: Uma cooperativa agrícola. Mas olha consegui falar com um, e recrutar para o partido, um camarada que também tinha sido dessa direção, que por sua vez foi um super ativista nas Capelas, como autarca. Chegou a ser eleito não sei quantas vezes e era um homem que ia buscar não sei quantos votos, tinha uma capacidade! Um agricultor sem formação nenhuma.
Já morreu, já morreu. Coitadito, já morreu. Era uma história gira. Era uma história de vida. Era um homem muito, muito interessante. Porque tu ficavas revoltada: Como é que este gajo, é que revoltava-te. Se este gajo consegue isto tudo, porque é que o gajo ainda tem...Porque depois vinha com as reservas todas em relação ao comunismo. E depois dizia-te coisas que não tinham nada a ver. E tu: eiii! E depois a atividade dele era uma coisa espetacular. Metia-se em todas. A gente hoje tem 16 votos nas Capelas, o gajo ia buscar 150 e 200 votos às Capelas. Chegámos a eleger dois para a assembleia de freguesia. Os filhos, um deles era nosso simpatizante e continua eventualmente a ser, mas não se meteu com nada, e o outro é PS, é todo ativista do PS. Já foi candidato à Câmara pelo PS.
P: E com os agricultores, como é que era a mobilização?
Mário Abrantes: Com os agricultores houve duas experiências: a experiência de crescimento, que eu não me acompanhei. Foi logo a seguir ao 25 de abril. O Partido aqui fez um trabalho meritório na formação de cooperativas agrícolas. Conseguiu formar umas cinco ou seis cooperativas agrícolas, as principais eram a Achada, Maia, Capelas, e havia mais umas duas diretamente da responsabilidade do Partido, quer dizer que foi o Partido que pôs de pé. E depois havia mais algumas que entretanto se formaram. E portanto isto foi uma ascensão do movimento cooperativista muito interessante, se assim que se pode dizer. Depois morreu tudo, tudo o que era associativismo, tudo o que era experiências coletivas, de desenvolvimento, de abertura e não sei que mais, com o 6 de junho e depois o 25 de novembro a acumular, aqui em São Miguel isto foi tudo ao fundo. Mas é que foi mesmo tudo ao fundo. Porque mesmo aqueles que ainda tinham alguma consciência, tinham medo, porque perseguiam o pessoal. E o que eu apanhei já foi a fase degenerescente das cooperativas agrícolas. O que é que eu apanhei? Apanhei a Maia, ia fazer reuniões com a direção. Podia, eles aceitavam-me como membro do Partido, como dirigente do Partido, mas não me davam muita confiança, como quem diz: Mas tu aqui não mandas nada, atenção, não vens para aqui como... Eu também não queria mandar, mas eles é que interpretavam assim: Tu aqui não mandas nada. E depois ainda por cima eram gajos ligados ao PS, pois tinham-se acabado por ligar ao PS. Na Achada de facto mantínhamos lá um camarada, na direção. Tínhamos um camarada, mas incompatibiliza-se facilmente com os outros. Não era uma pessoa de lidar fácil. Conclusão, por ele a gente não chegava a lado nenhum. Ele estava lá, eles respeitavam-no e ele estava lá, mas quer dizer, à direção daquilo a gente não chegava, não conseguíamos mexer naquilo. Ainda hoje a cooperativa existe. E existem mais, elas existem todas formalmente, com estatutos, com tudo. Só que (tirando aqui uma grande, que já é uma cooperativa do ponto de vista económico sem espírito cooperativo nenhum, digamos assim, que é aqui a dos Arrifes, que é a maior, a Bom Pastor, e a União das Cooperativas, que tem a fábrica da união de leite, que é a maior fábrica de transformação de leite que temos nos Açores) está tudo na mão do PSD neste momento. Portanto elas existem porque interessa que existam do ponto de vista de estruturas e servem para o PSD influenciar os agricultores para votar. Sobretudo eles querem é os votos e querem é estar no poder e portanto tudo isto serve para eles, digamos assim, terem o pessoal na mão do ponto de vista político, que é o que lhes interessa. E depois vão dando uns bombons de vez em quando. É isto. E nós passamos a ter cada vez mais dificuldade em organizarmos, em influenciar a parte agrícola. Dessa cooperativa do Nordeste, desse nosso camarada, da Achada, que fica no concelho de Nordeste, um dos filhos acabou por se formar em cooperativismo É do Partido e participa nas reuniões. É um homem da agricultura biológica.
P: A gente volta outra vez à tua história, mas já agora, tinhas-me falado também, acho que foi sobre os estufeiros, que havia uma caixa económica. Também havia esse tipo de associações aqui, mutualidades?
Mário Abrantes: Sim, mutualista sim. Havia uma ligada à agricultura que tinha gente de esquerda, a Caixa Económica de Ponta Delgada, mas era ligada à agricultura e é, ainda existe, fundamentalmente ligada à agricultura. Mas está feita num banco quase praticamente normal. Tem é muita gente ligada a ela de esquerda, mas da área do PS. Aliás, depois do 25 de Abril, depois do 25 de Novembro, ser do PS em São Miguel já era muito à esquerda, sabes? Temos camaradas hoje aqui no Partido que já eram, já se consideravam comunistas, já eram adeptos, digamos assim, não se pode dizer militantes porque não eram, nem simpatizantes, eram adeptos do Partido Comunista (porque isto é tudo à moda no futebol) mas estavam no PS porque era menos perigoso. Mas hoje estão no Partido, felizmente, alguns, não sei de outros, mas estão porque acabaram por se chatear, porque afinal de contas...
P: E estas pessoas da Juventude Operária Católica, como a Manuela?
Mário Abrantes: Sim, isso é uma relação puramente sindical. Isto foi muito bem trabalhado, julgo eu, por dirigentes da CGTP que acompanhavam o trabalho sindical aqui. E os Açores, nomeadamente São Miguel, sempre tiveram um papel importante no equilíbrio da composição política das listas da CGTP a nível nacional. A Manuela era uma peça fundamental e ela sabia que era e estava consciente disso. Aliás a união dos sindicatos de São Miguel e Santa Maria, que ela depois deixou, a seguir quem foi para lá foi uma socialista. Fui até eu propus que fosse ela. Porque de facto também sindicalistas comunistas, com bagagem mínima para ir liderar o movimento sindical, o movimento intersindical que é a união dos sindicatos, não temos, não tínhamos. Os nossos quadros, com o 25 de novembro morreram todos aqui, foram-se embora. E essa gente [JOC] foi por aí que entrou, puxados indiretamente por nós através dos dirigentes comunistas da própria CGTP.
Porque o [anonimizado], que acompanhava a região em termos de CGTP, era ele que fazia esses contatos com as JOCs e com os católicos, com os PS e acompanhava. Portanto, e nessa altura a gente já não se metia em termos partidários, respeitávamos e não nos metíamos muito. Porque ao princípio a nossa intenção foi, nós tentámos interferir mais no movimento sindical, inclusive na estruturação do movimento sindical. Quando eu cheguei cá, o camarada que estava aí na frente sindical, trazido pela CGTP, era um reformador de um raio e queria restruturar o movimento sindical. E quem aqui é que o ajudava a fazer isso? Ele não podia, porque ele não era do partido.
Eu quis mexer com isso tudo, mas isso não resultou, não deu nada. Conseguiu-se fazer uma restruturaçãozita, melhorar a estrutura sindical, mas a grande reforma estrutural do movimento sindical, aqui em São Miguel, que eles queriam fazer inicialmente, com o Partido a influenciar decisivamente, morreu. E ainda bem, porque não ia dar em nada. Ia só criar estruturas sem funcionarem, com figura jurídica e pouco mais. E portanto, a partir daí, a gente acompanhou o que já existia da melhor forma possível. Até, inclusivamente, chegámos a acompanhar direções sindicais através de alguns dos membros e a estabelecer ligações com alguns dos membros da direção de sindicados da UGT, da alimentação e bebidas e das associações de agricultores. Atualmente, a direção da Associação de Agricultores de São Miguel e Santa Maria está nas mãos do PSD, o atual dirigente é do PSD. Não é PSD, mas está nas mãos do PSD. Mas nós chegámos a ter influência decisiva e a própria associação a aconselhar ao voto na CDU, aqui para umas autárquicas em São Miguel, em Porta Delgada. Convidaram a lista da CDU para um almoço com os agricultores, vejamos até onde é que isto chegou, o respeito que tinham já pela gente e pelo nosso trabalho, o trabalho ligado à agricultura.
Nós tomávamos posições políticas, os nossos deputados sempre foram deputados que intervieram muito no âmbito da agricultura - o Decq Mota e o Paulo Valadão, especialmente esses dois. E portanto eles reconheciam isso e numas autárquicas, por acaso eu é que era o candidato, o cabeça de Lista à Câmara, apercebi-me de que de facto esse respeito existia. Porque entretanto convidaram a lista da CDU para um almoço com os agricultores, aqui na sede da Associação (aquilo é uma super associação, faz parte da CAP, todas as associações agrícolas aqui são da CAP, para tua informação) e os dirigentes dessa associação, que está filiada da CAP, fizeram o apelo público ao voto na lista da CDU aqui em Ponta Delgada. Mas pronto, aconteceu uma vez, foi uma exceção. Depois veio este gajo que lá está e este gajo de facto tem aquilo na mão há muitos anos e o PSD é que controla aquilo. Fez a oposição até às maioria absolutas do PS durante este tempo todo. Ele e a Câmara de Comércio e Indústria e os sindicatos da UGT. Faziam reuniões os três, conferências de imprensa conjuntas, para deitar abaixo o governo do PS. Neste caso, contra o governo do OS, estes anos todos. Conseguiram alguma coisa com isso, conseguiram mobilizar. Mas isso só exprime a nossa perda de influência a esses níveis todos.
P: Mas essa perda foi no rescaldo do 6 de junho?
Mário Abrantes: Sim, sim. Depois recuperámos alguma coisa, mas já nunca mais chegámos ao nível que tinha sido possível chegar antes. Não, nem nada que se pareça. Não, hoje o nível de influência política e social que temos em São Miguel (eu falo só de São Miguel porque é o que tenho mais conhecimento, embora seja capaz de ter opinião sobre os Açores, e tenho, mas não vale a pena estar dá-la) é muito reduzido, é mesmo muito reduzido. Ou seja, nós, já mesmo depois do 25 de novembro, chegámos a patamares com algum interesse, digamos assim, alguma importância do ponto de vista político, como por exemplo este sinal desta associação, a comunidade é um sinal disso. Chegámos a algum nível, mas perdeu-se bastante. E neste momento eu acho que nós estamos ao nível praticamente do início, quando isto tudo começou, pelo menos ao nível da influência eleitoral. Mas agora, mesmo a influência social, com a perda do nosso deputado, (tínhamos um) a nossa imagem ainda se esbate mais. E portanto isso está a ajudar um bocado a missa. É um trabalho muito difícil, estamos com um trabalho muito difícil neste momento, mas as convicções são fortes e os problemas socioeconómicos agravam-se e por isso a luta continua.
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Junho de 2022
Entrevista realizada a Maria Angelina e José Manuel Ferreira em São Roque, em junho de 2022
P: Podemos começar pela Angelina? A Angelina nasceu aqui?
Angelina Ferreira: Nasci em São Roque. Não foi nesta zona, foi no centro da Freguesia. Nasci em 1952 e lá cresci e estive na escola primária. Só fiz a escola primária porque depois o meu apreço e interesse pela costura foi muito grande e eu fui aprender costura.
P: A sua mãe já era costureira?
Angelina Ferreira: Não, a minha mãe era operária fabril aqui em São Roque, na Sociedade Corretora, que era uma fábrica de conserva de peixe, de atum. Era uma fábrica que sempre trabalhou com muita gente, mas que agora está....
P: Muitas mulheres imagino.
Angelina Ferreira: Muitas mulheres, não só que São Roque mas de outras freguesias.
P: E o seu pai?
Angelina Ferreira: O meu pai também trabalhava na mesma empresa, mas era motorista de camião.
P: E também nasceram aqui?
Angelina Ferreira: Sim
P: A família foi sempre daqui?
Angelina Ferreira: Sim, sempre daqui e nunca renegamos a freguesia.
P: Porque é que foi para a costura?
Angelina Ferreira: Porque sempre gostei de costurar.
P: E foi logo que acabou a quarta classe?
Angelina Ferreira: Eu ainda estava na escola, porque no tempo em que eu estudava era preciso fazer um exame de admissão para ir estudar. A minha irmã tinha ido estudar, os meus pais também queriam que eu fosse, e eu ainda estava na escola. Fazia-se o exame em Ponta Delgada, aqui na escola primária de São Roque, e claro a minha mãe mandou fazer um vestido a uma costureira para eu ir fazer o exame. Entretanto eu pedi logo à senhora para ficar lá, mas fiz o exame e passei com muito bom resultado.
P: Ficou a aprender costura....
Angelina Ferreira: Fiquei a aprender costura.
P: Tinha 9 anos, 10 anos?
Angelina Ferreira: Não, onze, porque naquele tempo, eu sou de 52, só se ia para a escola depois de fazer os 7 anos e eu fiz 7 anos em Janeiro e entrei em outubro. Portanto já saí com 11 anos feitos da primária e do exame de admissão ao liceu.
P: E depois ficou na costura?
Angelina Ferreira: Fiquei durante 4 anos e com 15 anos comecei a trabalhar por minha conta.
P: Como é que era? Era modista? Tinha um ateliê?
Angelina Ferreira: Aqui não havia assim estilistas, era só as chamadas costureiras e eu considero-me uma costureira.
P: Mas era em casa?
Angelina Ferreira : Era em casa e sempre trabalhei em casa.
P: E trabalhava para pessoas individualmente ou para empresas?
Angelina Ferreira: Para pessoas individualmente e com um grande leque de clientes que ainda hoje tenho.
P: Então foi uma vida inteira?
Angelina Ferreira: Uma vida inteira e nunca me arrependi e ainda hoje faço.
P: Foi a sua profissão sempre, sempre aqui em São Roque?
Angelina Ferreira: Sempre em São Roque, na casa dos meus pais. A casa era grande, mas não era suposto eu trabalhar em casa, não tinha lugar próprio. Era num quarto e ensinei muitas miúdas. Naquele tempo as mães queriam que as miúdas fossem aprender costura, cheguei a ter sete miúdas ao mesmo tempo. Agora trabalho sozinha.
P: E depois quando se casou, passou a trabalhar na vossa casa?
Angelina Ferreira: Eu fiquei em casa dos meus pais, porque tinha a minha avó. Eu cheguei a ter as duas avós, do lado materno e do lado paterno, lá em casa. Primeiro morreu a mãe da minha mãe e depois...A minha avó paterna é que me criou, porque a minha mãe trabalhava e eu ficava sempre com ela. Eu tinha uma afeição, um amor muito grande pela minha avó. Fiquei sempre na casa dos meus pais, porque o meu pai, naquele tempo quem tinha uma casa era pronto... O meu pai tinha aquela casa e não queria vende-la e não queria que eu construísse outra e, atendendo a que a minha avó precisava dos meus cuidados e a minha mãe já tinha morrido, eu fiquei sempre com o meu pai e com a minha avó, e com o meu marido. Os meus filhos nasceram na mesma casa e depois do meu pai morrer é que construímos esta casa.
P: Então e o José Manel também nasceu aqui em São Roque?
José Manuel Ferreira: Nasci nesta freguesia, em 23 de Abril de 1954. A minha mãe era doméstica e o meu pai era funcionário público, trabalhava na alfândega de Ponta Delgada. Fiz a quarta classe também aqui, depois fiz exame de admissão ao liceu e à escola Industrial. Optei por ir para a Escola Industrial, porque o liceu não me cheirava muito bem, era mais do tipo dos Fifis, e então fui para a escola Industrial. Tirei o curso de contabilidade em 1971 e comecei a trabalhar, naquela altura. Depois encontrei aqui esta moça ...
Angelina Ferreira: Eu não me esforcei ...
P: Como é que se conheceram?
Angelina Ferreira: Foi nos encontros da JOC.
José Manuel Ferreira: Conhecemo-nos e ainda estamos atados. A minha mãe foi sempre dona de casa. Foi quem nos criou. Era uma mulher assim muito metódica. A minha mãe tinha que nos arranjar para quando o meu pai chegasse a gente estar todos limpinhos, todos arranjados.. A gente não se podia sujar nessa altura. A diferença de mim para o meu irmão são três anos. Está a ver o que é, a gente de vez em quando tinha aquelas turras e aquelas coisas entre nós e depois a minha mãe quando o meu pai chegava a casa... O meu pai era uma pessoa muito mais aberta do que a minha mãe. A minha mãe era assim mais fechada e às vezes o meu pai chegava a casa e a minha mãe dizia-lhe assim: Oh Zé (o meu pai era José Jacinto), os rapazes fizeram isto e aquilo, contava a história toda sobre o que a gente fez. E o meu pai respondia: Armanda, quem é que estava em casa? Não eras tu? Então tu é que tinhas de os repreender. O que é que eu vou fazer agora? – portanto, ele era assim muito aberto.
P: Naquele tempo não era comum, pois não?
José Manuel Ferreira: Não era muito comum. O meu pai era muito mais aberto que a minha mãe. A minha mãe era mais metódica, mais miudinha, mais fechada, mas pronto ela é que nos criou. Na altura, também vivi na casa dos meus avós. Ainda conheci uma bisavó. Depois a minha bisavó faleceu e eu não quis ir vê-la, porque gostava muito dela e não quis ir vê-la. Depois faleceu o meu avô que gostava muito de mim. E tive assim uma história assim um bocado atrapalhada, porque de 27 de Março a 5 de Abril faleceu o meu avô e o meu pai, e eu fiquei assim, naquela altura... A minha avó ficou viva e eu fiquei o único ganhando para a casa. Portanto, comecei novinho, não tinha 20 anos ainda, ia fazer 20 anos. O meu pai morreu a 5 de Abril e eu fiz 20 anos a 23 de Abril. Fez-me bem, porque fui crescendo. Aliás, porque quando o meu pai estava doente e não podia já ir às compras ao mercado, eles faziam-me uma nota e mandavam-me ao mercado e eu dizia: Mas eu não vou saber fazer isto. Vais, porque tens que ir aprendendo. Portanto, foi assim o meu princípio de vida.
P: Então e a participação na JOC, começou quando?
Angelina Ferreira: Eu tinha 18 anos e com 20 anos quando fui ao Conselho Nacional da JOC. Eu tinha começado na JOC com 16 ou 17 anos.
P: Era aqui na freguesia?
Angelina Ferreira: Era na freguesia e ao sábado tínhamos o Conselho Regional em Ponta Delgada. Não era bem Ponta Delgada, era em São Pedro, havia lá uma sede.
P: E também participava o José Manuel?
José Manuel Ferreira: Eu entrei ia fazer também 18 anos. Entrei também para a JOC.
P: Para o mesmo grupo?
Angelina Ferreira: Não, havia o masculino.
José Manuel Ferreira: Era na altura da separação, mas nós tínhamos reunião ao sábado. Também entrei em 1971. Fazia cá em cima a reunião aos sábados e depois fazia o regional lá em baixo, em São Pedro, em que nos reuníamos todos.
P: Então foi nesses momentos que se conheceram?
Angelina Ferreira: Não, não bem nesses momentos. Veio uma moça do continente que também era da JOC e na minha casa a gente recebia toda a gente. Já conheceu a Manuela não foi? Essa moça vinha cá porque queria vir conhecer a ilha e a Manuela, como a gente tínha uma casa grande, disse-me: Olha, será que vocês podem ficar com uma moça, a [anonimizada]. E nesses encontros a gente ia dar passeios com ela e o Zé também ia e foi nessa altura.
P: Então e digam-me uma coisa, os vossos pais também já tinham essa ligação com estes movimentos ou foi uma coisa nova?
Angelina Ferreira: Não, não era uma coisa nova. Há muitos anos que já havia JOC em São Roque, porque o meu irmão pertenceu novinho, já tinha um grupinho, mas era só rapazes, isso acabou. Na altura os moços iam para o ultramar e depois alguns casaram e acabou. Ao fim de muitos anos, a Manuela é que veio fazer esses encontros em São Roque e eu fiquei fascinada. Na altura não saíamos muito e naquela altura era tipo uma reunião todas as semanas. E foi quando começou.
P: Não havia, só para perceber, não havia nenhuma outra associação aqui na freguesia?
Angelina Ferreira: Não, de jovens não. Depois vieram os cursos de Cristandade, mas eram aqueles senhores da Freguesia mais cultos que iam para os cursos de cristandade. Nós éramos solteiros, ainda novos, não participávamos. O meu pai também não, porque a minha mãe não tinha escola e o meu pai foi obrigado a tirar a quarta classe para ter carta de condução de pesados já em adulto. Mas nunca nos impediram de crescer.
P: Então e a Manuela chegou cá e como é que ela criou o grupo?
Angelina Ferreira: Ela chegou cá, eu não sei se foi o padre [anonimizado], que era o padre da freguesia, que falou com algumas moças... Eu tinha na minha casa uma moça que era da Ribeira Quente e que trabalhava aqui em São Roque e não havia possibilidades dela ir todos os dias para a Ribeira Quente e ela ficou. E ela é que foi a primeira a ir. Na altura, eu estava aprendendo uns bordados numa máquina de costura na junta de Freguesia. E ela foi para aquele grupo com a Manuela e vem para casa e já: Ai Angelina, eu estive numa reunião com uma moça e eu gostei tanto. Na outra semana eu fui e assim foi.
P: E o que é que era que a fascinava?
Angelina Ferreira: Não sei. Eu sempre fui muito ligada à Igreja e os meus pais. Eu dizia que era uma beata. Fiz a catequese, fiz a comunhão, fiz o Crisma e dei Catequese. Fascinava-me aquelas conversas, aqueles testemunhos de vida que uma dava e outra dava.
P: E quais eram os temas mais recorrentes?
Angelina Ferreira: Acredite que eu já não me lembro, mas eu sei que na altura eram problemas de trabalho, de igualdade, dos que eram mais e dos que eram menos, que isso não era direito e que a gente devia lutar para haver uma igualdade. E eu já sentia que na minha casa havia isso. Porque essa moça da Ribeira Quente, só ia de mês a mês, porque as viagens eram caras e na altura não havia muitos carros, era só autocarros. E depois o irmão veio estudar e também para não ir, não podia ir para a Ribeira Quente todos os dias, também ficou na minha casa. Os meus pais sempre acolheram toda a gente e aquilo, portanto, ajudou-me a crescer e a entender.
José Manuel Ferreira: Até porque a casa dos meus sogros era tipo uma pousada. Eles acolhiam toda a gente, até espanholas que trabalharam na cultura estiveram lá, dormiam e tudo. Portanto, aquilo era uma casa....
Angelina Ferreira: Elas vinham dar formação..
José Manuel Ferreira: Elas vinham dar formação pessoal e depois não havia lugar para ir para baixo e lá ficavam em casa da minha sogra e do meu sogro. Eles eram umas pessoas assim, nesse aspeto, eram muito acolhedoras e gostavam de acolher toda a gente. E depois, como eu estava dizendo, a gente principiou quando a [anonimizada] veio cá. Fomos dar uns passeios, mas já nos conhecíamos há muito tempo. E depois também tinha outra coisa, nós já nos conhecíamos antes, porque fizemos uma peça de teatro. Como estávamos na JOC, o padre naquela altura: Vamos fazer uma peça de teatro para o encerramento da Catequese e pela festa da paróquia - e foi no mesmo sítio, aqui em São Roque. E a minha sogra é que me conquistou e eu vou-lhe dizer porquê. Porque ela fez uma sopa de peixe espetacular, que nós tínhamos que comer na apresentação da peça. Eu era casado com a Angelina e tínhamos o nosso filho, que era o Jorge, o moço que depois foi para América, que era também da JOC. E eu disse: Que peixe tão bom! Se a mãe sabe fazer, a filha também deve saber. E pronto, já comecei tipo a arrastar a asa, como a gente costuma dizer. Depois fomos a uns passeios...E depois fomos num dia fazer uma discussão, no dia 4 de Setembro, eu nunca me esqueço da data. Fomos fazer uma excursão, fomos muita gente e tal e depois quando chegamos dessa excursão, a [anonimizada]: Vamos até... – a gente foi até Pico, ali em São Roque, aquela parte antes, tem uma vista à noite que é muito bonita. Diz ela: Também vou. Lá fomos todos. Subimos lá para cima e eu quando desci já desci mão dada. Já desci de mão dada. Portanto, foi o dia da excursão que aquilo começou e depois foi subindo e eu disse: Não, isto quando descer tem que levar uma volta. Então, já descemos de mão dada e a partir daí foi fazer uma caminhada. Fizemos uma caminhada juntos. Depois o meu pai esteve muito doente... E há uma outra coisa que é assim: antigamente tinha-se que falar com o pai da namorada, para saber qual era o dia que falava, quais os dias que dava e depois os pais tinham que apresentar à noiva do outro lado... A gente não fez nada disso. A gente já estava mais avançados, não se fez nada disso. Começámos a namorar e o meu pai que era muito esperto, passava de vez em conta de baixo da rua e dizia: Ai, Ai, Ai, quando eu chegar a casa.. Mas nunca me disse nada, nunca abriu a boca. Depois o meu pai esteve doente, teve que ir para o hospital. A minha mãe ficou. Então quem é que foi dormir com a minha mãe? A Angelina. Pronto, já está tudo certo, já fica tudo feito. A família já está pronta, já é tudo de casa. Essa história é assim.
Na JOC, fiz um percurso a partir dos 17 anos e depois na altura ainda estava acabando mas havia a Juventude Estudantil Católica e eu fui para lá. E comecei a gostar daquilo porque aquilo tinha muita coisa boa. A gente em casa, o meu pai era funcionário público mas era dos do contra. Ele estava doente e os funcionários públicos, na altura, eram obrigados a ir por um papel na urna. E como ele estava doente, fui eu pô-lo. Depois o meu pai já conhecia a Seara Nova, já era daqueles rufiazinhos, e aquilo também mexeu com o sangue. E a maneira como eles trabalhavam, que era o ver, julgar e agir, a revisão operária. Eu não sabia fazer a revisão de vida operária porque ainda estava acabando o curso, depois é que comecei, em agosto de 1971, a trabalhar. Mas o ver, julgar e agir, aquilo já me dizia muita coisa. E depois o contato. Eu ao princípio não sou, mas depois quando começo fico muito sociável, que às vezes fico assim meio coiso... E então eu gostava daquilo, eram muito abertos aqueles encontros, a gente falava à vontade, não havia: cala-te para aí. E uma vez eu estava muito calado e o [anonimizado], que era Presidente aqui de cima, assim: Oh Zé, qual é a tua opinião? Eu disse: Eu vou-te dizer uma coisa, vai sair asneira. E ele assim: Se tu disseres uma asneira estás colaborando para que a gente aprenda também alguma coisa. E a tua asneira até pode ser uma coisa certa, como é que tu sabes que é asneira se ainda não disseste? E, portanto, aquilo ainda me pôs mais à vontade e a partir daí eu estive muito, muito mais à vontade. Fez-me crescer e ainda hoje, por incrível que pareça, ainda hoje às vezes, porque depois comecei a militar em movimentos como a Cáritas e essas coisas assim, às vezes eles começavam: ah não sei quê... e eu começava-me a rir. Agora estás sempre a rir. Isso que estás a dizer agora, isso já há tantos anos atrás já era assim. Isso não é nada de novo. Isso não é nada de novo e isso fez-me viver mais, estar mais à vontade. A JOC para mim foi uma caminhada boa de vida, uma caminhada grande de vida. Foi uma coisa que despertou algumas coisas que deviam estar adormecidas cá para dentro e foi muito bom.
P: Estava-me a dizer que o seu pai era do contra, em que é que ele participava?
José Manuel Ferreira: O meu pai não podia participar muito às vistas e às claras, porque senão era posto fora do serviço e o que é que ele ia fazer? O que é que a gente ia comer em casa? O meu pai, das coisas que ele mais embirrava, era ser da Legião Portuguesa, mas se não fosse era posto na rua do emprego, que era a Alfândega. O meu pai para entrar para a alfândega teve que ser através de um primo dele, que era informador da PIDE, que teve que dizer que o meu pai era muito bom rapaz, filho de boa gente e não sei quê. E avisou o meu pai: Nunca digas que és da Seara Nova ou que tens livros em casa, tu nunca fales nisso. A primeira vez que falares nisso, procura um emprego noutro lado qualquer porque.... Agora, o meu pai pertenceu à Cáritas, mais aquela que dava leite às crianças. Não era a Cáritas, era uma outra coisa, os vicentinos. O meu pai punha-se nesses movimentos todos que era para ver, porque havia ali quatro ou cinco pessoas aqui na freguesia que eram muito revirados, o pai do [anonimizado], era no seu nível uma pessoa totalmente virada, mas esse ainda estava no privado, assim ainda podia dizer alguma coisa, agora no Público não se podia falar. Falas, vais-te embora. E os filhos? Como é que fazem as coisas em casa? Não se pode fazer nada. Portanto, o meu pai ativamente não podia estar, sem ser nesses movimentos assim, que era a conferência de São Vicente de Paula, essas coisas assim. O que é que se fazia? A minha mãe ia para lá fazer leite em pó que vinha da América para dar às crianças, tinha-se que ir fazer isso. Eram as esposas desses senhores é que iam fazer, do meu pai, do [anonimizado] é que iam fazer, porque os outros... A gente tinha aqui boa gente e gente muito educada, mas era o senhor doutor. Porque depois, quando começámos a entrar através da JOC, quando começámos a entrar nisso que os senhores doutores estavam, nós começámos a discutir com eles. E havia um que claramente não sabia, que era o Dr. [anonimizado], era uma pessoa que chegou a ser vice-reitor aqui do Liceu, mas era uma pessoa compreensiva. Dizia: Não, não, o Ferreira tem razão. Não adiantava também muito mais, porque coitado também estava numa situação que não podia. Mas nessa altura a gente já batia o pezinho. O Padre [anonimizado] quando nos levava a certas coisas: Ai o senhor doutor é que sabe. Ai é? O senhor doutor é que sabe? Nós também sabemos. E eu dizia: Padre [anonimizado], nós somos capazes. Portanto, nós já fomos entrando por aí e já havia pessoas que, de uma maneira mais ou menos camuflada, nos deixavam entrar
P: E o padre também deixava?
José Manuel Ferreira: O Padre [anonimizado] não era uma pessoa que impusesse muito respeito, mas era uma pessoa que deixava. E para mim e para a Angelina, como a gente andava muito na JOC e essas coisas assim, era uma pessoa aberta. A gente foi-se confessar para ir para o casamento.
Angelina Ferreira: Era, ele obrigava a confessar.
José Manuel Ferreira: Era obrigatório confessar, mas para já a gente foi logo tirando da moda, porque era assim, os noivos que queriam confessar-se tinham que levar um fato e a noiva um vestido e eu fui de calças de ganga, aqui para as histórias... e a minha mãe: Então filho, como é? Eu vou de calças de ganga, espanto nosso. E falando do Padre [anonimizado], chegamos lá, e ele: Vocês vêm confessar-se? Sim senhora. E a Angelina vai e eu fico cá fora. E ele: Não, eu quero os dois cá dentro na minha frente. Vocês não se vão casar aos olhos de Deus? Então o que vocês vão falar, a confissão que vocês vão fazer aqui comigo é falar de vocês, da vida de vocês os dois em frente a mim e se for preciso dar alguma opinião eu dou, se não, não dou. Eu disse: Opá... Portanto, já começou também... Porque ele tinha uma maneira que estava sempre muito mau, mas para a gente era muito aberto. No dia do meu casamento, eu estava totalmente nervosíssimo, porque a Angelina não aparecia.
Angelina Ferreira: O meu pai não tinha carro e pouca gente na freguesia tinha carro e era os táxis e o homenzinho do táxi atrasou-se. E eu à espera, já vestida, à espera do táxi. E o padre era muito rigoroso, mas não foi para a gente. Se saia fora de horas, ele ia-se embora.
José Manuel Ferreira: E eu comecei a andar para trás, para frente, para trás, para frente e ele lá assim: Zezinho, nota filho querido, chega aqui. E eu: Já vou levar...Diga senhor padre. Porquê para trás, para frente, para trás, para frente, para trás? Não está vendo a hora? Estás com pressa? Ela vai chegar, ela não te vai deixar. Não, eu estou com pressa é porque...Calma, a Angelina vem, não há de vir. Nesse aspeto foi muito simpático.
P: E a sua família Angelina, também era assim do contra?
Angelina Ferreira: Os meus pais não eram assim tanto do contra, porque eram analfabetos e trabalhavam na (?), mas o meu pai era muito justo. Se a Joana tivesse necessidade de um escudo, ele emprestava. Se fosse emprestado, a Joana tinha que pagar, se fosse dado, dava. E aquilo era da natureza deles. E a minha mãe então...Mas nunca estiveram assim em movimentos.
P: E aqui nesta indústria que como estava a dizer tinha muitas mulheres, nunca houve nenhuma greve?
Angelina Ferreira: Não, as mulheres trabalhavam como escravas, mas não se podia fazer greve.
P: Depois do 25 de Abril, se calhar...
Angelina Ferreira: Depois de 25 de Abril a minha mãe... mas nunca fizeram. Mas o meu pai refilava, era um bom refilador.
P: Com que é que refilava?
Angelina Pereira: Quando via situações injustas. Havia muita pobreza e aquilo era uma fábrica que fazia conserva de carnes, de galinhas do albacor. E um dia, eu lembro-me, não me esqueço desse dia, cozeram muitas galinhas não sei para fazer o quê e havia os pés das galinhas cozidos e elas todas comeram e a minha mãe também comeu. Ai e depois, quando o chefe soube disse: Lurdes, eu não esperava que tu o fizesses. E porque é que eu não havia de fazer, se toda a gente fazia, se toda a gente fez e eu concordei. Porque a minha mãe era das mais velhas, mas era assim, trabalhavam como escravas e ganhava-se pouco. E o meu pai teve uma reforma muito pequenina, e ele é que foi tolo, porque tinha direito a trabalhar para ganhar como motorista e eles faziam uns descontos pelo mais baixos. E o meu pai nunca se apercebeu disso. Era o mais baixo que podiam descontar. Depois já do 25 de Abril, quando foi para a reforma, pensava que ia receber uma reforma grande e foi uma ninharia. Ele foi à Caixa Nacional de Pensões, em Lisboa, e disseram que com os descontos que tinha não tinha direito a receber mais. 52 anos que o meu pai trabalhou nessa empresa. Agora está tudo de olho aberto e a empresa foi ao fundo.
P: E vocês na JOC falavam destas questões do trabalho?
Ambos: Sim, sim.
P: Quais é que eram os problemas que havia aqui que...?
Angelina Ferreira: Exatamente, mas isso foi ainda antes de 25 de Abril, já havia. Eu lembro-me que o padre Fanhais, eu não sei se conhece, veio cá à Terceira. Eu nessa altura estava lá, antes do 25 de Abril. E ele ia cantar na Igreja da Sé, nas escadas, mas isto era proibido. A gente foi para um campo mais isolado para cantar, cânticos de intervenção, mas era proibido.
P: Vocês tinham problemas com a PIDE?
Angelina Ferreira: Tínhamos.
José Manuel Ferreira: Eu tive problemas com a PIDE na JOC, porque pediram-me na altura para eu escrever um artigo sobre emigração e eu escrevi sem problema nenhum. Mas para escrever sobre emigração, tinha que se contar tudo sobre a emigração, porque é que as pessoas emigram. Não era pelos seus olhos belos. E eu escrevi, depois às tantas vejo no jornal, uma coisinha assim mais ou menos [gesto indicando que foi publicado um texto pequeno]. Epá, afinal, tanto que eu escrevi, era um artigo tão grande, era tudo sobre emigração e veio tudo tapado, tudo riscado.
P: Era para que jornal?
José Manuel Ferreira: Era para o jornal da JOC, eles pediram-me para escrever sobre emigração, porque nos Açores há muita emigração, e porque é que havia a emigração? Toda a gente sabia porque é que havia a emigração, mas toda a gente não dizia, porque senão a PIDE chegava...Eu disse: Então, eu estou na JOC. O meu artigo foi praticamente todo cortado e eu fiquei de olho, mas eles disseram logo: Não, está quieto, sê discreto, porque eles estão de olho em ti. Mas depois disso, quando comecei a trabalhar, eu pertenci à Comissão de Trabalhadores da empresa.
P: Ainda antes do 25 de Abril?
José Manuel Ferreira: Não, já foi depois disso. Mas pertencia à Comissão de Trabalhadores da empresa e pertencia porque tinha uma grande bagagem que aprendi na JOC. Eu disse: Não, isso não vai ser isso. Na altura fui eleito para a comissão de trabalhadores e era representante. E então a história da firma era a seguinte: Nós tínhamos três contratos de trabalho, um era dos empregados de escritório, outro era das transformadoras e eu era dos eletricistas. Era do sindicato da Manuela, quando a Manuela era das transformadoras e dizia: Se ela precisar de alguma coisa tem amigos – e eu era dos eletricistas. E depois cada um tinha o seu contrato e eles jogavam com isso e pagavam aos trabalhadores de forma diferente. Eu trabalhava na sede de uma grande multinacional, em que a Petrogal é que era dona, mais a Shell. Claro que dinheiro era...e eu disse: Não pode ser assim. E eu comecei, começámos, o que é que foi a minha intervenção nessa situação, foi a de tentar fazer um contrato para a empresa, só para a empresa. Um acordo coletivo de trabalho da empresa, não havia mais conversa. Com muita luta, muita luta, conseguimos, mas eu penei um bocado, inclusivamente o advogado da firma foi um dia a minha casa. Eu fui chamado à administração e eles disseram-me assim: Sabes qual é a porta que entraste? E eu disse: Foi aquela que está ali. É por essa que vais sair. É quando vocês quiserem. Mas é quando vocês quiserem, mas aqui por dentro... eu tinha dois filhos em casa...Ele foi a minha casa e eu disse: Doutor, é estes dois filhos que eu tenho. Mas tu é que vais pagar por isso. Porque ele tinha revelado, a secretária dele é que tinha revelado, elementos para me incriminar. Eu ainda me ia chateando nesse aspeto. E esse contrato coletivo de trabalho, eu consegui, mais os meus colegas, que a gente passasse a ganhar todos por igual nas categorias. Todos os empregados em cimento tinham um vencimento, os escriturários tinham outro tipo de vencimento e os grandes tinham outro tipo de vencimento que não era respeitado, porque as chefias davam-lhes muito mais, mas pronto, mas tinham. Mas isso custou-nos muito trabalho, pelo menos a mim e aos meus colegas, para a gente tenta organizar isso tudo, para ficar direitinho. E ficámos muito marcados, principalmente eu fiquei muito marcado. Mas depois, com o tempo a correr, desmarcaram-me, eu já era um menino. Continuei na Comissão de Trabalhadores, mas já começaram a ver que realmente as coisas estavam a correr melhor. Não havia tantos: Eu não faço...Quando o diretor se foi embora disse: Os senhores estão mais à vontade, as pessoas precisam que lhes deem incentivos. Mas isso foi sempre tudo através daquilo que aprendi na JOC, no ver, ouvir e julgar, nessa revisão de vida operária que me fez. A nível de serviço, cheguei lá acima sem passar por ninguém. Fiz sempre o meu trabalho.
P: Ontem, a Manuela estava-me a mostrar um cancioneiro da JOC que era só músicas de intervenção e contra a guerra. Vocês também falavam nisso, falavam da guerra colonial?
Angelina Ferreira: Exatamente. Falávamos. Portanto, nessa altura ainda iam tantos rapazes para a guerra, coitadinhos.
José Manuel Ferreira: Era uma desgraça e quando eles iam, uma vez foram nas vésperas de Santo Cristo, aqui da festa de São Miguel. Foi o [anonimizado] que os levou e aquelas mães a chorar, para quê?
Angelina Ferreira: Para quê a guerra? E continuamos.
P: E a igreja acabava por ser um espaço mais protegido para se poder falar sobre essas coisas? Ou seja, estava a imaginar que as outras pessoas que se opunham ao regime eram mais perseguidas. A Igreja dava-vos essa proteção?
Angelina Ferreira: Sim, a gente nunca teve problemas.
José Manuel Ferreira: A gente nunca teve problemas nesse aspeto, aqui na igreja. A Igreja também, a verdadeira, muitas vezes não faz as coisas certas, mas nessas alturas tinham um bom manto. A verdade é essa. Eu sei que a gente tinha mesmo um bom manto. A gente falava e não havia assim grandes coisas. O padre [anonimizado] deixava falar e depois o outro que veio também era assim.
Angelina Ferreira: Mais novo, com mais ideias.
José Manuel Ferreira: Portanto, quando a gente também precisava de alguma carreira... E a gente tinha aquela cobertura, chamemos-lhe assim, aquela cobertura da Igreja. Isso nunca nos faltou, pelo menos eu sinto isso por mim. Se eu tinha algum problema ia lá e dizia: Passou-se isto assim, assim. Mesmo quando foi na Comissão de Trabalhadores e às vezes estava assim um bocado e chegava e perguntava e tinha sempre apoio.
P: Depois transitaram para a LOC?
Ambos: Não.
P: Quando é que deixou, em que altura que deixou de haver?
José Manuel Ferreira: Isto depois começou a esmorecer
Angelina Ferreira: Uns foram casando, outros emigraram.
José Manuel Ferreira: Mas a gente ainda hoje de encontra.
Angelina Ferreira: Tem, tem.
José Manuel Ferreira: A gente tem os nossos, que sabe quem eles são, ainda há dias a gente conversou disso, a gente qualquer dia vai pensar reunir aqueles que a gente tem ainda, para a gente conversar, fazer um almoço, cantar, fazer um chantêzinho [ri-se], cantar com a Manuela, ela gosta muito disso.
Angelina Ferreira: A Manuela era uma grande dinamizadora de jovens e das pessoas de idade.
P: A Manuela depois seguiu para o movimento sindical. Vocês também se envolveram?
Angelina Ferreira: Eu não, o Zé é que esteve
José Manuel Ferreira: Eu é que estive depois, na direção dos empregados de escritório. Portanto, era da comissão de trabalhadores e pertencia à direção do sindicato dos empregados de escritório e das transformadoras.
P: E houve mais houve mais pessoas da JOC que passaram para o movimento sindical?
José Manuel Ferreira: Aqui de São Roque estive eu e o [anonimizado], era representante da FinAçores, portanto, aqui dos pesqueiros, das farinhas, do sindicato, porque depois aproveitava essas pessoas assim que iam para o sindicato.
P: E antes do 25 de Abril, não havia aqui aqueles antigos sindicatos nacionais?
José Manuel Ferreira: Havia. Era o sindicato nacional dos empregados de escritório.
P: E vocês participavam? A JOC não intervinha nesses?
José Manuel Ferreira: Que me lembre, não. Não estou dizendo que não, mas que eu me lembro não. Porque eu conheci aqui muitos amigos da JOC, do antigamente, que já são mais velhos do que eu e, portanto, não sei qual era, não deu para acompanhar o que eles faziam. O [anonimizado], o teu irmão e essas pessoas assim, não deu para acompanhar. Na altura, até nem sequer deviam estar...
P: E havia aqui aquelas instituições do regime, como as casas do povo, as casas dos pescadores?
José Manuel Ferreira: Aqui não, a casa do povo daqui era no Livramento, na freguesia aqui ao lado.
Angelina Ferreira: Junto às duas freguesias.
José Manuel Ferreira : Uma razão simples, política. A Freguesia de São Roque tinha muitos trabalhadores do campo, eles é que pertenciam às casas do povo. E quem tinha muitos desses trabalhadores era o Sr. [anonimizado].
Angelina Ferreira: A pessoa rica da freguesia.
José Manuel Ferreira: Eram os donos da freguesia chamemos-lhes assim. E então a casa do povo era para ser feita em São Roque, que era onde havia mais trabalhadores rurais e ele, para não ficar sujeito à Casa do Povo, que lhe podia dar alguma dentadinha nos calcanhares, disse: Não, isso é melhor fazer-se no Livramento e nós ficamos sem essa coisa – mas por esta questão, para ele não ter muita gente na casa de povo. De repente algum mais virado podia-lhe dizer alguma coisa e então foi a Casa do Povo para o Livramento. Porque eu sei que aqui, há tantos anos, os homens eram comprados, eram arrematados. Havia ali no poço velho, havia ali um canto que era o canto dos homens. As pessoas iam lá buscar o pessoal para irem trabalhar para a Terra.
P: Tipo uma praça de jorna?
José Manuel Ferreira : Exatamente. E era: Tu vais comigo, eu dou-te dez. Não, não, vai comigo que eu dou-te 12. Portanto, havia escravatura, escravatura encoberta, em que estamos a comprar alguém. E para ele estar à sua vontade, a Casa do Povo foi para o Livramento.
P: E essas pessoas que trabalhavam, esses jovens que trabalhavam na terra, também estavam na JOC?
José Manuel Ferreira: Não, não estavam. A JOC tinha mais pessoal fabril. Uma Açor (?), era assim mais essas coisas, gráficas que era o caso do [anonimizado] tipógrafo, nas gráficas, em casa, como a Angelina estava, eu estava ainda acabando de estudar e depois passei para a vida.
P: Tinha muitas raparigas?
Angelina Ferreira : Tinha algumas, mas os pais não deixavam muitas, porque a gente era as mais faladas da freguesia. Os pais eram, as filhas eram em casa.
P: Mesmo para a Igreja, não havia assim tanta liberdade?
Angelina Ferreira: Iam para a Igreja, para a missa. Pronto, iam para a missa e o seu dever estava cumprido. Estavam desobrigadas de tudo.
P: Porque a maior parte das mulheres que eu tenho entrevistado, mesmo do movimento sindical, vêm da JOC. E então eu tinha a ideia de que a JOC tinha sido um espaço onde as mulheres tinham conseguido....
Angelina Ferreira: Conseguiu-se muitas mas...Agora a freguesia de São Roque está muito descaracterizada, porque fazem apartamentos e vêm pessoas de todo o lado, mas no tempo que eu queria, eram as pessoas da Freguesia. E então quando se falava em sair à noite, em ter uma reunião à noite...
P: Mas algumas conseguiram?
Angelina Ferreira: Conseguiram, conseguiram. Tínhamos um grupinho aí de umas 15,16.
P: E foi importante para a emancipação das raparigas?
Angelina Ferreira: Para mim foi e para mais algumas.
P: Porquê?
Angelina Ferreira: Olhe, porque aprendi a ver as coisas por outro prisma. Foi muito importante para o meu crescimento.
P: Vocês falavam, por exemplo, da igualdade entre os homens e as Mulheres?
Angelina Ferreira: Sim falávamos. Porque ainda neste tempo, os rapazes do meu tempo, não digo na escola primária, mas do meu tempo de estar na JOC, ainda não havia rapazes com raparigas nas escolas. Isso foi muito depois e a gente achava, a gente ficou com má fama na freguesia, muitas das que participavam, porque a gente às vezes encontrávamo-nos com os rapazes e fazíamos passeios.
José Manuel Ferreira: Íamos cantar para a praia à noite, isso era tido como...
P: E sentiam que havia igualdade já entre os rapazes e as raparigas da JOC?
Angelina Ferreira: Sim.
José Manuel Ferreira: Havia um espírito aberto. Não havia: Quem manda aqui são os machos, havia muito espírito de abertura, muito espírito de partilha e também se aprendeu muito, muito em espírito de despojamento. Era: Vamos todos para aqui, vamos todos para o Monte, vamos passear e se alguém não podia, não, tu vais com a gente e depois a gente vê isso.
Angelina Ferreira: Aqui na freguesia, as moças namoravam muito cedo e eu já tinha 20 anos e não tinha um namorado e nessa altura eu fui ao Conselho Nacional da JOC para o continente e fui muito falada, que tinha ido arranjar um noivo para Lisboa. Mas os meus pais nunca se importaram.
P: Foi com quem, foi a única aqui da ilha?
Angelina Ferreira: Fui a única de raparigas nesse ano, porque também não havia possibilidades assim financeiras de ir muita gente.
P: E como é que foi esse encontro? Foi em que ano?
Angelina Ferreira: Não sei se foi em 71? Eu tinha 20 anos, 70. E gostei muito. Eu não conhecia Lisboa, o continente. Nunca tinha ido. Daqui só conhecia a Terceira e cheguei lá sozinha, mas tinha um casal da Terceira, que também foi ao mesmo encontro, foram-me buscar ao aeroporto. E eu tinha uma tia que vivia lá, e a minha mãe telefonou à minha tia e eu fui para casa da minha tia enquanto não fui para Braga. Eu perdia-me, eu olhava assim... É que aqui, agora já há mais movimento, mas antes era muito paradinho e eu cheguei a Lisboa... Eu não vivia lá, mas gostei. Ainda gosto de ir ao continente e se pudesse ia todos os anos.
P: Foi em Braga esse encontro?
Angelina Ferreira: Esse encontro foi no Sameiro.
P: E era com rapazes e raparigas?
Angelina Ferreira: Era, rapazes e raparigas, tudo junto.
P: E o que é que se discutiu nesse encontro?
Angelina Ferreira: Discutíamos de tudo, foram sete dias de intervenções, de cânticos, de missas.
P: E foi assim uma coisa já do contra?
Angelina Ferreira: Era do contra...era do contra. Na altura ainda havia o Ultramar, ainda havia a guerra.
P: E falavam sobre isso? E sobre os problemas também do trabalho?
Angelina Ferreira: Do trabalho, exatamente, porque era de todo continente. Tinha moças de Aveiro, tinha moças de Lisboa, tinha moças de Coimbra, de Braga. Juntaram um elemento ou dois por cada região. Fiquei a conhecer, ficámos amigas e na altura ainda escrevíamos muito, mas depois com o passar do tempo...
P: A Angelina depois não participou em mais nenhum movimento sem ser a JOC?
Angelina Ferreira: Não, era o grupo Coral da Igreja. Não, não participei em mais nenhum, porque entretanto tinha a minha vida profissional, que me ocupava muito tempo. Eu tinha pouco tempo para mim, porque na altura as costureiras ainda havia muito... Eu tinha um leque muito grande de clientes, porque eu fazia por gosto. Depois vieram os filhos e eu trabalhava em casa e os meus filhos, na altura da menina não havia pré, com os outros já havia pré, mas eu criei os meus filhos em casa comigo. A minha mãe ajudava-me até falecer, faleceu nova, com 59 anos, e eu fiquei tomando conta do meu pai. Fiquei com meu pai, com a minha avó, com o meu marido, com os meus filhos e muita rapariga a aprender costura. As mães, mal elas saiam da escola iam logo ter comigo, por eu ter sempre um espírito jovem. Ainda hoje em dia, a minha afilhada está aí. A mãe foi para a minha casa com 14 anos e ainda hoje em dia é como uma filha para mim. E tinha muitas e ficavam a dormir lá na minha casa.
Aqui defronte a uma pastelaria, isto aqui era uma terra, que era da mãe do Zé e como a mãe do Zé era viúva... O meu pai gostava muito de vinho e de batata. Quando saía do seu serviço vinha para aqui. E aqui era uma pastelaria e as raparigas que estavam lá na costura: Oh Manel, logo quando tu vieres, trazes-me um bolo? Se ele não trazia, elas no outro dia vinham a pé da freguesia, que ainda é um bocadinho do centro da freguesia para aqui, buscar bolos para o Manel Dias pagar. E ele também gostava muito delas.
P: E transmitia-lhes os valores da JOC?
Angelina Ferreira: Transmitia!
José Manuel Ferreira: Ainda hoje é isso.
Angelina Ferreira: A mãe da minha afilhada era de uma família com poucos recursos, a mãe morreu muito nova, com muitos filhos, e ela distribuía pão de manhã e ia deixar à minha casa e dizia: A minha pequena vai sair da escola, tu queres pegar nela para aqui? Porque comíamos todos, a minha mãe na altura fazia panelas de sopa e elas todas comiam e depois eu continuei. E eu dizia: Ai Senhora, eu não quero, porque eu já tenho aí seis ou o que é. Ai mulher, pega-me nela coitadinha, para ela não ficar em casa. E ela foi com 14 anos e ainda hoje em dia é como uma filha para mim. É a minha filha mais velha e ela dá-se muito bem com o meu filho e com a minha filha, mas o meu filho tem mais abertura com ela do que com a irmã. E ela teve uma menina e a nós fomos os padrinhos da menina e o Zé é que vai buscar à escola. De manhã a mãe leva-a, mas a mãe trabalha.
José Manuel Ferreira: Ela veio lá para casa, depois faleceu-lhe a mãe... A história dela é essa, ela foi para lá aos 14 anos, ficou sempre filha da casa, eu é que lhe arranjei casa. Portanto, ela é mesmo nossa filha, não é biológica, mas é nossa filha e portanto, e tem os valores todos que a gente foi transmitindo. Aquilo é uma mulher que se mata para ajudar o outro. E às vezes eu: Os teus irmãos? Isso só tive aqui e eu já nem abro mais a boca, porque esse eu tive aqui, eu conheço. Eu é que a levei à Igreja, quando ela casou. Eu disse: então não tens irmãos?
Angelina Ferreira: Ela tinha muitos, não podia escolher.
José Manuel Ferreira: Ela disse, assim: Não, ou és tu ou eu vou sozinha. Sozinha não vais. Mas também tem aqueles valores todos que aprendeu e que a minha afilhada está continuando assim. Portanto, os valores que a gente foi aprendendo a gente foi transmitindo aos filhos. A minha filha é tesa, aquilo não se brinca com ela.
Angelina Ferreira: Ela trabalha na casa do Gaiato.
José Manuel Ferreira: O meu filho também. O que tiverem a dizer, dizem, acabou. Justos. Se tiverem que levar nas orelhas também levam. E se virem que não estão corretos, eles também não refilam por isso.
P: E o Zé Manel depois esteve no movimento sindical até se reformar?
José Manuel Ferreira: Não, depois tive um problema de saúde e aquilo já não dava. Eu fui operado ao coração, não dava para me enervar mais e então foi um colega meu. Mas quando ele precisava, era o [anonimizado], eu dizia: Epá tu vais, que tudo o que tu precisares tens cá o padrinho, o padrinho diz-te tudo o que tu precisares, mas tu é que tens de ir porque eu não posso. Mas sempre gostei, sempre gostei.
P: Então mas contei-me lá, como é que foi o 25 de Abril aqui.
Angelina Ferreira: Eu trabalhava de costura para a esposa do chefe da Pide cá. E a Senhora era amorosa e gostava muito de mim. Eu era muito magrinha e ela trazia-me suplementos alimentares, mas eu não comia muito. Eu tinha 48 kg e agora estou crescendo mais. E ela dizia: Vais de férias para Santa Maria comigo. Era uma pessoa que também não era egoísta. E no 25 de Abril aqui não tínhamos televisão. Ai uma revolução no continente, em Lisboa, e não sei quê. A gente ouvia na rádio e a minha mãe estava com muito medo. E a minha mãe nesse dia teve uma consulta, eu lembro-me disso, e ela foi a Ponta Delgada, e vi as pessoas a irem a casa buscar o chefe da PIDE, da Dona Lina. E a minha mãe viu a senhora na varanda tão inquieta e foi para casa e disse-me: Ai, eu tive tanta pena da Dona Lina, mas com medo da revolução, que não sabia o que era, não víamos na televisão e ficou tudo com medo. E depois, o Presidente, o Chefe da Pide não foi preso, mas foi para casa de um senhor amigo. E a Dona Lina depois, quando vinha a minha casa dizia: Mas o marido não era desses mais...
José Manuel Ferreira: O [anonimizado] na altura não foi preso, não foi para a cadeia, o [anonimizado] foi para a casa dele, sendo tratado como filho dele. Ele também estava aqui nessa Terra, em que a gente se conhecia todos. Ele tinha que se impor senão coitado também ia-se embora, mas não era de fazer mal. Ele chegou a ter uma cubana.
Angelina Ferreira: Exatamente, um dia a esposa veio a minha casa e levou uma moça tão bonita e ela disse-me que ela era cubana e o namorado era marinheiro e ela fugiu de barco com o namorado, porque aquilo em Cuba... naqueles anos. E ela não foi presa, foi para a casa deles, desses senhores. Ela levou-a a minha casa e a moça era tão bonita, tão bonita, que eu lembro-me na altura, eu devia ter aí uns 22 anos. Mas era assim uma pessoa que também não era dos piores, mas é claro toda a gente tinha medo. E quando se fez o 25 de Abril a gente não sabia o que é que isso ia dar e depois viu-se que despejaram os senhores lá do Alentejo, das suas propriedades...
José Manuel Ferreira: Mas aqui também houve.
Angelina Ferreira: Houve depois do 6 de Junho.
José Manuel Ferreira: Antes disso também houve, depois do 25 de Abril começou logo a haver as tricas. A tropa começou a sair para a rua. Vinham de metralhadora, eles vieram do continente para cá. Foram postos aqui coitados e isso começou a causar um mal estar. E depois disso começou a haver muitas sessões em que a tropa batia. No seis de junho a lavoura levantou-se toda, incentivados pelos grande proprietários, os ??? e aquelas companhias todas, os homens das terras, houve um grande levantamento de pessoal. Alguns foram presos para a Terceira, de maneira que não se fazia, que era às tantas chegar a casa: Vamos embora, pega nele, mesmo à comunista, como eles costumavam dizer. Epa, o 25 de Abril não pode ser assim. E depois havia as sedes dos partidos incendiadas, logo que fosse do Partido Comunista ou do Partido Separatista, que era o caso da FLA, da Frente de Libertação dos Açores, eram incendiadas. O [anonimizado], que era do Partido Comunista, foi lançado da Avenida para o mar, queimaram-lhe o carro. Houve assim umas cenas tristes em tempo de liberdade.
Angelina Ferreira: Era porque as pessoas eram ignorantes.
José Manuel Ferreira: Mas era por causa disso, é o que a Angelina diz, a maior parte aqui era ignorante politicamente.
P: E como é que se posicionava a JOC nesse período?
Angelina Ferreira: Não tinha muito poder.
José Manuel Ferreira: A gente podia falar, mas também, és comunista. Tudo o que tu falas assim é porque tu és comunista. Às vezes ainda é assim, já não tanto, mas às vezes se a gente diz alguma coisa assim mais aberto: Epá, tu és um grande comunista. E eu digo: Bem bom, pelas almas que alguém vê que eu sou comunista...porque logo que toque no instalado, és comunista. Agora já está tudo mais calmo, já se convive, já não há problemas de grande coisa, mas às vezes ainda alguns...e eu digo: Bem bom, é bom eu ser comunista, deixa estar.
P: Mas naquela altura foi mais difícil?
José Manuel Ferreira: Muito mais difícil, foi muito difícil. Por exemplo, tive um colega meu que foi a uma sessão de esclarecimento. Por acaso eu também era para ir, mas fiquei em casa já não sei porquê. Ele levou umas pancadas naquela cabeça com uns capacetes de moto....
P: Era uma sessão de esclarecimento de?
José Manuel Ferreira: Do Partido Socialista. Chegaram a mandar uma bomba, em casa de um Dr. [anonimizado] na Madalena, que era um grande socialista. A casa dele levou uma bomba. Havia essas coisas assim e depois nós aqui, está a ver o que é isto num meio muito fechado, apanhar com uma coisa que a gente não sabe o que é, porque não vê na televisão, não vê nada. E depois há notícias que são verdadeiras, outras que são mentirosas, não é? Sempre houve e sempre vai haver. As pessoas ficavam assim: Mas afinal? Eu lembro-me das primeiras eleições que se fez, as velhinhas a desmaiar porque a velhinha se não fosse votar ficava sem a sua triste reforma de meia dúzia de patacos.
Angelina Ferreira: Depois do 25 de Abril, as primeiras eleições, credo, as velhinhas a desmaiar.
José Manuel Ferreira: Punha dó. Porque eu estive desde as primeiras eleições, estive sempre presente, era refila, fiz sempre parte das mesas de assembleia de voto, sempre. E ainda fazia, agora é que já me deixei, e quando não estava na mesa estava como fiscal do Partido, com uma credencial para ver se havia alguma coisa. E eram aqueles velhinhos, tão velhinhos: Ai senão eu perco... Não perdes nada querida, tenho dó de estares aí em pé, porque também não lhes davam o lugar, para as velhinhas passarem à frente. A gente dizia assim: Deixe passar. Ai não, ela que espere por mim. Ainda não havia bem essa coisa de....
Angelina Ferreira: Solidariedade...
José Manuel Ferreira: O 25 de abril foi assim aqui, nesse aspeto, a gente não sabia o que era verdade, a gente não estava preparado para a questão de abrir e, politicamente, as pessoas eram muito ignorantes.
P: E no mundo do trabalho, como é foi? Houve melhorias?
José Manuel Ferreira: Houve algumas, a verdade também é essa, houve algumas melhorias. Mas todas elas, e ainda hoje, mas todas elas naquele tempo foram tiradas mesmo a ferros, muito a ferros. Eu cheguei, estou falando do meu caso pessoal em que posso falar bem, eu fui jantar com o advogado da firma: Ai e tal a gente vai jantar para a gente acabar o resto do contrato - isso quando foi o contrato. Está bem, pronto, vamos jantar. Não há problema nenhum, vamos jantar. Eu fui jantar aqui ao Bataclan, aqui mesmo em cima. E às tantas ele vira-se assim para mim: Oh Zé, eu trouxe aqui os papéis que é para a gente assinar, não sei quê. E eu disse: Está bem, não tem problema nenhum, a gente veio aqui para ver isso, epá, mas é assim não pode ser muito atrás (?). É assim já está escrito, assinas aqui. Não, não foi isso que a gente combinou. E eu: Oh sr. [anonimizado], que era o dono do restaurante, chega aqui, faz favor. Tira a minha conta que eu vou-me embora. Não, eu vou pagar. Não, não, eu comi e vou pagar e não vou assinar contra os meus colegas. E diz lá na firma que eu é que paguei o meu jantar. Não vaz ficar mal disposto, a firma não te vai fazer nada de mal por causa disso. Mas o meu jantar quem paga sou eu. Artur, para cá a conta. Está percebendo? Havia essas coisas assim, que tentavam: Porque vais ganhar mais que os teus colegas, mesmo do escritório. Hei, eu estou a fazer isto para a gente se igualar e agora vou ganhar mais? Não, não. Mas o jantar é por minha conta, acabou, não há mais problemas aqui. As coisas, é verdade que foram evoluindo, mas muitas coisas tiveram de ser arrancadas a ferros, ainda hoje em dia continua ser assim, secalhar até pior.
Angelina Ferreira: E essas pessoas, portanto, que não tinham abertura, diziam que quem era comunista ia para o inferno. E as velhinhas coitadinhas que não queriam ir para o inferno, não eram comunistas nem socialistas.
P: Pois claro. E quando ontem falava com a Manuela, ela contou-me quando foi a greve geral de 1982, que aqui houve uma grande adesão, estava no sindicato nessa altura?
José Manuel Ferreira: Estava.
P: Lembra-se dessa greve?
José Manuel Ferreira: Lembro. Houve adesão, pois houve, mas custou-nos
P: Como é que foi?
José Manuel Ferreira: Eu estava na firma, porque lá aquilo queria cambar, e eu estive sempre lá, disse: Aqui não camba nada. Alguns iam furar a greve. E eu disse: Aqui não camba nem descamba, aqui é assim. E então havia lá os piquetes e eu estava sempre em todos os piquetes. Então tu estás? Então, eu sou representante do sindicato. Porque o Patrão entrava: Vai trabalhar. Vai trabalhar o quê? Eu estou aqui. Ah, porque é preciso encher aquela garrafa de gás, é preciso encher cinco garrafas de gás e levar ao hospital. Sem problema nenhum. Está aí, mas é só cinco garrafas. A gente tinha que fazer os serviços, não é? Não podia dizer que não ia levar ao hospital, às casas de saúde, mas já era para ver.. ah depois... Não, é só cinco, porque de repente algum que tivesse um certo receio, eles podiam dizer: Não, não, vais trabalhar porque senão perdes isto e perdes aquilo. E então eu dizia: Eu estou de piquete de greve, em todos os piquetes de greve eu estou e estava sempre. Do meu sindicato era aquele rapaz o [anonimizado], que era muito meu amigo, e o [anonimizado], que eu tinha que ter o [anonimizado] que era o responsável do enchimento comigo. Eu dizia: [anonimizado], eu quero-te sempre comigo porque se houver precisão de encher três garrafas eu não sei abrir as garrafas, tu é que vais ali encher e levas o [anonimizado]. Mas aguentou-se, tinha que se ter força.
P: E depois também esteve na Cáritas.
José Manuel Ferreira: Estive. Na altura, oitentas, na altura em que havia, e há, muita fome, mas eu vou-lhe dizer uma coisa. Na Caritas eu também cresci e aprendi muito. Eu só lhe vou contar uma, que me choca mas que eu passei. Uma vez, nós distribuíamos aqueles cabazes de Natal e eu fui encarregado de ir distribuir os cabazes mais um Senhor, ali abaixo ao Terreiro, que é parte aqui da minha freguesia, a uma determinada pessoa. Cheguei lá, eu não gostava de ir bater à porta, deixar e até logo se Deus quiser, bom Natal. Não. Não gostava de estar aí, porque assim, porque assado. Não. Faz-se de maneira que a outra pessoa não veja a dar. E eu cheguei e disse: Está aqui. Oh Senhor Manuel, faz favor, e disse: Eu preciso. Pois está aqui. Mas duas casas abaixo da minha precisam muito mais do que eu, vais lá levar. Eu não sabia. Ninguém sabe, estou eu a dizer-te, porque é muito envergonhada, ela não diz nada. Realmente aquilo demonstrou sentido de solidariedade, de empenho. Sim senhora. Deixei, vim para cima para a Caritas: Hei, mais um cabaz para eu levar ao fulano. Mas não foste levar ao fulano? Fui, mas passou-se isto assim, assim e a mulher não fica sem cabaz. A gente vai lá levar. Portanto, uma lição de vida, uma lição de partilha que se aprende. Eu aprendi e fez-me crescer ainda mais. Porque se eu fosse lá só pôr, é para mim. Por isso, a Caritas também me ensinou isso. E também me ensinou que às vezes... Eu fui levar [um cabaz] a outro lado e eu disse: a gente não vai levar porque o senhor tem dinheiro, ele faz-se assim, mas ele tem muito dinheiro. Vai levar porque assado e cozido – o outro colega meu. E eu disse: Epá, é para se levar, vai-se levar, mas eu vou contigo. A gente bateu à porta: Posso entrar? A Senhora era muito ... era uma pobre de Cristo. Posso entrar? Sim, Senhor, sim, Senhor. Ele estava deitado na cama. Eu disse: Então João está tudo bem? Ele: Está, o que é que vieste fazer? – assim, bruto. Então vim trazer umas coisinhas para vocês, para o Natal. Eu cá não preciso e saca a mão atrás, pega na carteira. Eu tenho aqui dinheiro, para que é que eu quero isso? O que foi lá comigo, que era o que tinha insistido que eu fosse lá levar, disse: Manel, a gente vai levar esse cabaz para trás. Nem penses nisso. Isso vai ficar aqui. Mas agora (a gente estava mesmo perto do centro, da sede da Caritas) tu vais chegar lá e vais dizer que realmente era como eu disse. Tens que dizer, é a única coisa que eu te peço. É que vais ter de dizer e vais ter que aprender que se alguém diz as coisas é porque sabe. Quando eu cheguei lá ele disse ao Dr. [anonimizado]: O Ferreira tinha razão, porque assim e assado. O Dr. [anonimizado] começa a rir e disse assim: Quando o Ferreira disser que é, é porque é, porque ele conhece. Porque eu conhecia muito aqui, fruto também de ter sido presidente da junta e essas coisas assim. Mas porque a prima da Angelina trabalhava no dispensário materno infantil e sabia-se tudo lá, as desgraças entre aspas das pessoas, o não ter o que dar ao bebé, o que a fulana é...E a Laura estava connosco na Cáritas porque era o nosso veio de transmissão de tudo que se passava na materno infantil, a nível da freguesia. E também tínhamos um senhor que nos dava toda a informação da ação social (pertencia também à Cáritas). Aquilo era pela porta do cavalo mas a gente tinha. Portanto, a gente ia estudar, era uma questão de estudar tudo. Uma vez, eu lembro-me, tínhamos um presidente novo: Vamos levar este cabaz a fulano – era o Sr. [anonimizado], que a gente tratava de [anonimizado], que era o sacristão. E eu começo a rir mesmo à gargalhada, mesmo ferrado e eles: Tu estás-te a rir, estás a fazer pouco de quê? Nada, vão dar um cabaz a esse senhor? Ide ver, ele está enterrado, ele está morto. Não havia já a coisa de saber se a pessoa era viva, se não era viva, se precisava, era levar por levar. E eu nessa altura, então: Deixem estar, vocês e que percebem disso – porque eu ia só lá para me chatear e eu já não tinha mais tempo para me chatear. Nesse aspeto, já tinha perdido a paciência.
P: Estava-me a dizer que também foi Presidente da Junta, foi quando é que isso foi?
José Manuel Ferreira: Foi no dia em que morreu o Sá Carneiro. Eu era o Secretário mais novo da Junta de Freguesia, porque eu estaca com dois senhores com mais idade, o Sr. [anonimizado] e o Sr. [anonimizado], e era o secretário da Junta de Freguesia. Depois fiz dois mandatos como Presidente e fiz três mandatos na Assembleia de Freguesia, sempre pelo Partido Socialista, que ponha os pés no seu voto, porque que eu nunca fui para outro, embora pudesse ter sido, era só pedir que eles davam-me, só tinha de concorrer pelo PSD. Eu disse: Ai Credo, está quieto. Não quero, não renego a minha pátria. É uma questão de princípio.
P: Quanto é que entrou para o Partido Socialista? Foi a seguir ao 25 de Abril?
José Manuel Ferreira: Foi em 74, eu sou o militante mais velho da secção de Ponta Delgada. Mais velho de anos de inscrição. Quando eu levo o cartão para votação: Hei Ferreira... Vocês ainda estava dormindo e eu já estava cá dentro.
P: E conseguiu também, na vida política, aplicar os valores que tinha aprendido na JOC?
José Manuel Ferreira: Sim, sim. Eu lembro-me de ir uma vez a um Conselho Nacional do Partido Socialista, mas dizerem-me o seguinte: quando aqui chegares tens que apresentar um relatório. Fiz o relatório e eu tinha muita confiança com um rapaz que já faleceu, que era o [anonimizado]. Eu escrevi o relatório e disse: Olha lá, tu és capaz de ler esse relatório, que eu sou assim novinho nestas coisas, para veres se isso está bem, se é preciso corrigir alguma coisa. Ele começa a ler: Foi isso que se passou? Foi. E tu queres entregar isso? Quero. Entrega, mas eu já te vou dizer uma coisa, vais ficar na prateleira. Estão ai coisas que não se devia dizer. Ai é? Mas posso entregar? Agora decides, queres ficar na prateleira ou queres ser menino bonito. Não, eu prefiro ficar na prateleira.
P: O que é que era que o fazia ficar na prateleira?
José Manuel Ferreira: Ficar na prateleira era não ser mais chamado para Conselhos Nacionais, nos congressos regionais não ia para as comissões. Ainda me veio dizer um primo, casado com uma prima minha, vai lá pedir para ires. Eu pedir para ir? Tu não tens juízo? Se eles virem que eu sou bom para ir, eu vou. Se eles continuarem a estar com a teima, continuem com a teima.
P: Mas o que é que estava lá escrito que eles não concordavam?
José Manuel Ferreira: Eu é que não concordava com a maneira como as coisas se tinham passado e a maneira como as pessoas intervinham e como é que se dava a palavra e como é que se retirava a palavra e como é que aquilo era tudo dividido sempre pelos mesmos, parecia ser uma igreja. E eu fiz isso tudo e disse que nunca mais precisava de ir a coisas daquelas. Mas pronto, ele disse-me logo que ia para a prateleira. Mas depois passaram. Eu cheguei a dizer a eles: Eu não devo nada ao Partido Socialista. Eu dei a minha cara pelo meu Partido, portanto por vocês. E depois então, a partir daí...Eu sempre fui muito amigo do [anonimizado], fechamo-nos uma vez num quarto e demos uns murros em cima da mesa, mas sempre amigos. Eu era frontal, eu dizia as coisas e ainda hoje continuo a ser assim. É verdade uma coisa, muitas vezes perde-se por ter uma boca grande.
P: Agora queria-vos fazer uma última pergunta, que ontem também fiz à Manuela e ela deu-me uma resposta espetacular. Eu estou a fazer um trabalho de história sobre os movimentos sociais, sobre o associativismo e eu gostava que vocês me dissessem, se fossem vocês a fazer, se fossem historiadores, o que é que vocês acham que era importante estudar destes movimentos?
Angelina Ferreira: Conhecer melhores as pessoas, estudar as pessoas, saber as necessidades delas. Mas eu não sei se eu tinha coragem para isso.
José Manuel Ferreira: Eu acho que nesse estudo e nesses movimentos, era saber qual era o fim, para que serve esse movimento. Se ele está a fazer para aquilo para que foi criado. Se não está a fazer aquilo para que foi criado, vamos embora. Eu acho que tinha-se que ir estudar e ver se realmente os movimentos cumprem os fins para que foram criados ou se andam a sugar os outros. Isso é que era essencial e não ter medo de por isso a nu, de abrir e dizer, vocês não são isso. Porque muitas vezes o que falta é... A gente diz, mas dá uma volta tão grande, tão grande... Eu costumo dizer assim: Em duas palavras podia-se reduzir o que muitas pessoas dizem em 40. Porque se eu tiver um relatório muito grande, de 30 folhas, eu acho que a gente só vai ver o que diz na conclusão. Mas se eu levar um relatório de uma folha, sintético, e a conclusão, aí eu fiz o meu trabalho e fiz bem feito e percebi para que é que aquele movimento foi criado.
P: Especificamente em relação à JOC, acham que foi um movimento que teve importância na história do nosso país?
Angelina Ferreira: Penso que sim.
P: Porquê, o que é que acham que trouxe?
Angelina Ferreira: Olha, eu falo por mim, porque eu fiquei mais aberta ao mundo. A Joana pode não dar o valor, porque sempre viveu no continente, não é? De Portugal vai-se para todos os lados e aqui não, a gente vive numa ilha. E quando eu fui ao continente pela primeira vez marcou-me muito. Foi quando eu vi a grandeza. Porque a gente fechados aqui. Embora se tenha bons sentimentos, ajudar o próximo... Se calhar num meio mais pequeno nós somos capazes de fazer isso melhor, mas eu também penso que é preciso alargar horizontes.
P: E a JOC alargou-lhe os horizontes?
Angelina Ferreira: Sim.
P: E o Zé Manuel, o que é que acha? Acha que foi importante?
José Manuel Ferreira: Sim, sim, muito importante, a nível pessoal, para mim foi uma abertura. O nosso menino que estudou, que está juntamente com o [anonimizado], o [anonimizado], com o não sei quê, que quase todos esses tiveram comigo na primária, não tiverem as possibilidade que eu tive. Mas eu tenho que estar com eles. E eu sempre vivi, sempre aprendi muito com esses. Tinha os ensinamento de casa. O meu pai dizia: Ninguém é melhor do que ninguém. Isso fez com que eu me sentisse mesmo irmão deles todos. Portanto, é para ir para a terra? É para ir para a terra. É para ir para ali? É para ir para ali. Eu cheguei a vir...Hei, tu andas a falar com essa prostituta? É uma mulher como outra qualquer, ela quis vir falar comigo e eu não falo com ela? Então que raio é isso? Portanto a JOC fez-me crescer nesse aspeto, não separar ninguém. Foi o essencial, não separar ninguém, não há classes. Tu és tu, o outro também é ele, mas são unos. Se a gente estiver todos juntos, a trabalhar todos para o mesmo lado, é uma categoria. Agora se nós quisermos trabalhar cada um para o seu canto, veja-se o que é que se passa. E a JOC ensinou-me a trabalhar com um rumo certo, todos irmanados, todos iguais. Para mim isso foi muito, muito, muito, muito gratificante e continua a ser. E foi o que me fez aprender muito na vida.
P: Então agora eu vou vos dizer o que é que a Manuela me disse que achava que era importante eu perguntar, vou-vos fazer essas perguntas que eu acho que são muito boas. Ela disse-me que eu devia perguntar, o que é que as pessoas sentiram naquela altura? O que sentiam quando participavam na JOC?
Angelina Ferreira: Eu senti-me crescer e ver melhor o outro e não ver o meu eu primeiro, ver o eu do outro primeiro. Um exemplo: eu fui a um curso de cristandade, já depois de casada e ter filhos, e vi uma senhora, isto é um exemplo. Eu vi uma senhora, daquelas senhoras da elite, a dizer que tinha de dar um testemunho, que depois de ir aos cursos de cristandade via melhor as outras pessoas e que quando uma pessoa lhe ia pedir qualquer coisa, os mendigos, ela não dava e que depois de ir ao curso de cristandade já dava. E eu disse: eu sempre vi isto na minha casa, desde pequenina. Eu não aprendi nada naquele curso de Cristandade. Mas eu já vi isso por ter estado na JOC e ver que os outros também são gente, que a gente primeiro deve ouvir os outros. Aquela senhora que eu pensava que ia fazer um testemunho muito grande e era aquilo que eu aprendi desde pequenina.
P: E o Zé Manel o que é que sentia quando estava na JOC?
José Manuel Ferreira: Alegria, para já porque a gente estava com aquela malta toda e depois porque nós éramos um grupo unido, que conversávamos sobre tudo e crescíamos. E não havia gente a tentar separar, porque se a gente tentar separar, tínhamos uma pessoa que era o [anonimizado]: Eu vou dizer meninos uma coisa (ele era muito mais velho), amigos! E depois quando eu comecei no ver, julgar e só agir no fim e de acordo com o evangelho. É isso. É uma coisa que dá trabalho de fazer, uma revisão de vida operária como deve ser. Porque é que é? Porque não é? Porque muitas vezes também não é só o patrão, muitas vezes também somos nós. Mas o ver, julgar e agir era essencial. Porque aí é que a gente, pelo menos para mim, a gente via, a gente julgava à luz do Evangelho. Mas ele vai comigo. E é como nós ajudamos, a ensinar a pescar. Portanto para mim, a revisão de vida operária era o essencial da caminhada, difícil.
P: A outra pergunta tem a ver com isso que é o caminho? Também tem algumas dificuldades, não é? Também já contaram aqui várias coisas que não foram fáceis, mas valeu a pena? Valeu a pena esse empenho?
Angelina Ferreira: Valeu.
José Manuel Ferreira: Muito, muito, muito, muito. Ainda hoje a gente colhe esses frutos. Por exemplo, a gente às vezes: Hei, a gente tem de ir falar com a Manuela. Uma vez havia um padre que eu não gostava, no sentido em que ele quando vinha fazer a homilia debruçava-se assim no altar. Parecia que estava a vender vinho ao balcão. E um dia, eu estava mesmo doido, doido, doido e disse: Oh Manuela, eu preciso de falar contigo. O que é? É o padre fulano....E ela: Não estás bom, vais julga-lo por estar debruçado assim ou vais ouvir a palavra dele. Pronto, não me digas mais nada, já estou bem disposto. E algumas vezes a gente encontra-se, muitas vezes até quando a gente se encontra é um problema para a gente se desencontrar. Porque a gente começa a falar, começa a falar, mais fulano, mais beltrano, o padre fulano que estava na JOC, o Padre [anonimizado], o Padre que já não me recordo. Mas a gente vai sempre falando, sempre conversando. A JOC ainda está muito viva, pelo menos naqueles que estiveram lá e que quiseram estar lá, está muito viva. Se fosse assim, vamos reformar-nos outra vez. Se houvesse alguma coisa para lutar eramos capazes de lutar. Mais velhos, mas lutávamos
Angelina Ferreira: Eu acho que já não lutava mais...
P: E têm esperança no futuro?
Angelina Ferreira: Tenho, tenho esperança que esse futuro seja melhor. Não é melhor em riqueza, mas as pessoas serem felizes e olharem para as outras pessoas. O meu lema é: Nunca faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti e eu às vezes faço, mas depois arrependo-me e tenho coragem de dizer que me arrependi.
P: E tem esperança que haja essa evolução? E o Zé Manel também tem?
José Manuel Ferreira: Tenho.
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Junho de 2022
Entrevista a Manuela Medeiros
P: Nasceste aqui em São Miguel?
Manuela Medeiros: Eu nasci no dia 2/04/1942, aqui na ilha de São Miguel. A freguesia é que não foi esta, foi na freguesia de Santa Clara. Fica na rua direita, depois nós subimos à direita, antes de chegar à Igreja, a avenida que vai para o aeroporto. Era uma freguesia piscatória, agora já não é tanto. Havia muitos pescadores e encontravam-se também aqueles que iam para a pesca do bacalhau, que levavam seis meses fora, a pescar. Eu lembro-me muito bem dessa parte, porque nós tínhamos vizinhos nossos que também iam. E era muito engraçado. Quando eles chegavam, nós íamos lá para o farol da Santa Clara. Nós íamos para lá e acompanhávamos o barco, eles vinham com as caravelas e nós estávamos com os lenços a dizer adeus. Era tão lindo… E depois íamos à casa deles ver a família, eles sobretudo. Eles traziam-nos umas bolachas, eram mesmo assim grandes, de água e sal. Não era nada doce, era mesmo assim, e traziam as caras de bacalhau, essas coisas assim, que depois davam a algumas vizinhas. Lembro-me perfeitamente, tinha uma tia que fazia. A minha mãe não gostava. Aquilo é muito saboroso.
Ali nasci e estive na escola até aos 10 anos. Fiz só a quarta classe. Esperei dois anos e comecei a trabalhar na fábrica de tabaco micaelense. Naquela altura era pelo menos com doze anos [que se começava a trabalhar]... É uma coisa que agora, felizmente, não se passa.
Quando falo nisto lembro-me sempre que agora uma pessoa já se interessou em defender isso, para as pessoas começarem a trabalhar não com 12 mas com 16, e obrigarem as pessoas primeiro ao estudo, por uma vida melhor, pela qualificação dos empregos, quando nessa altura não se falava. E as pessoas que iam estudar eram aquelas que tinham posses ou tinham madrinhas que ajudavam a família.
Nós éramos quatro irmãs, de maneira que nenhuma foi para cursos superiores. Tenho uma irmã que foi jornalista, agora está na reforma. Jornalista primeiro do “Diário dos Açores”, jornal mais antigo, que tinha quase 160 anos, e depois o responsável do jornal “Açoriano Oriental” foi buscá-la e assim foi desse jornal que ela então foi para a reforma. Eu estive na fábrica 47 anos, não foi brincadeira, e aos 16 anos comecei a tomar conta – eles diziam chefiar, eu não gostava –, a tomar conta de quase 200 mulheres. Porque a fábrica tinha mais mulheres do que homens, por causa da mão-de-obra barata.
Essa fábrica nunca despedia ninguém, mas quem saía para casar, depois de casada mal ficava a trabalhar. Não ficava, nessa altura não ficava ninguém. A primeira pessoa que ficou a trabalhar na fábrica casada foi uma nora de um patrão. É casada com um filho deles. Porque até aí ninguém ficava. Entravam com 12, 14, 16 anos, mas depois casavam e iam para casa e às vezes era pena, pela qualidade que elas que tinham de serviço.
Mas também, às vezes, eu ponho-me a pensar: não se justificava sair de casa a pé daqui dos Arrifes lá para baixo, não se justificava as pessoas caminharem tanto a pé para ganhar isso. Não ganhavam o suficiente para terem uma alimentação muito cuidada. Mas tinham uma vida muito alegre. Eram muitos alegres…
As mulheres juntas têm os seus prós e os seus contras. Por exemplo, a minha irmã sempre gostou muito mais de trabalhar com homens do que com mulheres. Eu tive essa fase. Quando eu saía, que ia conferir serviço para o escritório, eu dizia: “Olha, cada uma está por sua conta, cada uma toma conta de si, eu não posso defender ninguém.” Nunca tive problemas, também a verdade é essa. Eu estive 47 anos, quando saí fui para a reforma.
No meio disso tudo, portanto noutro ciclo, aos 12 anos, quando comecei a trabalhar, aos domingos nós tínhamos já grupinhos que se juntavam noutras paróquias. Não era na minha de Santa Clara, porque a minha ainda não era paróquia. E então o meu pai ia para o futebol, ele não gostava que a gente saísse sozinhas assim para muito longe, e ele ia para a freguesia de São José, a tal do campo de São Francisco, a Igreja de São José, e aí já tinha um grupinho que se chamava pré-JOC. Era a primeira coisa que nós frequentávamos antes da JOC.
E então eu gostava, porque havia aquele convívio, conhecíamos outras pessoas, íamos um grupinho, quatro ou seis, uma coisa assim. E depois fomos crescendo, fomos desenvolvendo, depois criámos um grupinho de jovens em Santa Clara. Depois, mais tarde, apareceram rapazes também. E Santa Clara sempre teve um convívio de gente nova muito bom, assim para o positivo, mesmo com rapazes e raparigas. O padre que estava lá na altura nunca foi daqueles de dividir, de fazer divisões. Felizmente, tivemos isso.
E pronto, tudo começou a partir desses grupos pequenos que depois, portanto, eu com os meus 20, antes de 20 anos, já tinha aqui um grupo pequenino da pré-JOC e depois na paróquia de Santa Clara formaram um grupo de adultos, tinham um grupo de homens e já tinham o grupo de senhoras casadas. Elas gostavam muito de mim porque eu sempre fui muito alegre. Achavam-me muita graça. Um dia o padre disse: “Olha, Manuela, eu tenho coisa para te dizer.” ”Tem uma coisa para me dizer, que coisa é essa que o senhor tem de dizer em particular?” “As tuas amigas, tu gostas muito delas e elas de ti [eu às vezes ia para casa tomar conta das crianças para eles irem para as reuniões], elas dizem que têm confiança em ti para ficares com um grupo de adolescentes, para tomares conta.” Eu disse: “Têm?” Naquela altura nós chamávamos o grupo das novas. “Claro, têm.” Eu disse: “eu não vou dizer nada. Eu vou pensar e depois o senhor vai-lhes dar uma resposta.”
Fui pensar. Eu pensava e, quando estava com elas, via, pensava, e um dia falando com elas, disse: “Vocês sabem que vai haver novas eleições com um grupo e outro e nós também vamos ter eleições para o nosso grupo, de maneira que não se sabe quem é que vai ficar.” Pronto, não lhes disse o que tinham pensado, mas depois a certeza é que eu fui falar com o padre e disse: “Eu pensei e vou aceitar. Não falo mais com elas daquilo que o senhor falou, mas vou aceitar”. E foi uma maravilha. Tomei conta daquele grupinho, o grupinho desenvolveu-se. Lembro-me perfeitamente, assim perto da Páscoa. E pela Páscoa havia aquelas vigílias e eu fui dizer ao senhor padre que as novas queriam preencher uma hora de Adoração ao Santíssimo Sacramento. Eu disse-lhe uma coisa: “elas é que vão orientar a hora, eu só oriento os cânticos. Elas é que têm as coisas feitas, de maneira que quem estiver nessa hora, vai aceitar essa hora feita por elas e mais nada, como nós aceitamos as outras que os outros fazem.”
E foi assim. Mas correu muito bem. Correu tão bem que depois elas disseram: “Manuela, nós queríamos ficar toda a noite, ficar com as outras. Eu disse: “vocês assim obrigam-nos [a maior parte não tinha telefones] a ir à casa de cada uma de vocês [eram umas oito ou dez], para dizer às vossas mães, aos vossos pais, se autorizam que vocês fiquem toda a noite.” E fomos.
As mães, se eu dissesse que ia ficar toda a noite e eu já sabia que ia ficar, “eu vou fazer um chazinho, elas vão fazer umas bolachinhas”. Foi assim e foi maravilhoso. De facto, foi um momento mesmo de grande espiritualidade vivido por esse grupo de adolescentes, só com cânticos por mim preparados. Mas foi mesmo uma surpresa para toda a gente, até para mim, porque havia coisas que eu não sabia, porque eu não queria estar no papel de vigilante, queria ter um papel participativo na outra parte dos cânticos. E foi assim, mas correu muito bem.
(Isso também é muito positivo, porque nós hoje em dia muitas vezes falamos nos jovens, mas eu e outros adultos somos responsáveis, porque esta sociedade não confia nos jovens. Nós sabemos que há uma grande, ultimamente, portanto, estou a falar dos anos 60 para agora, há muitas coisas que nós não tínhamos, sobretudo a televisão, as diversões à noite e essas coisas todas. Mas se houvesse mais confiança, uma vigilância que não fosse persecutória, mas de confiança, penso que a juventude seria outra. Sempre vi os jovens com um grande espírito de solidariedade e de humanização. E é isso que às vezes as pessoas não gostam de confiar sem saberem sempre quem comanda.)
Isto foi desde o início da minha catequese até começar no grupo de jovens como responsável, portanto nos anos 60. Ainda no fim dos anos 50 fui responsável pela Juventude Operária Católica ao nível da diocese, eu fui ao bispo e tudo. As da Terceira é que me guiaram, porque a gente tinha então grupos na Terceira, no Faial, em Santa Maria não. Tinhamos cá e não tínhamos no Pico. Mas pronto, e depois já concordavam que eu fosse e andei um bocado de mala às costas a fazer reuniões, encontros, a juntar todos, a falar nos primeiros objetivos, no que era a JOC e no que é que havia de novidade no movimento católico.
P: Era o quê? Estamos a falar nos anos 60? Nessa altura, o que é que essa novidade?
Manuela Medeiros: A novidade era a Juventude Operária Católica, uma juventude operária que tinha os problemas do trabalho, da vida do dia-a-dia e, além disso, tinha também a parte espiritual, que é o Evangelho. O Evangelho não era só aquela doutrina de que nós líamos aquele bocadinho, mas que pegávamos nele para a vida do dia-a-dia. Qual é a palavra de ordem que nós vamos levar agora para o nosso trabalho? Porque aquele grupo já estava todo a trabalhar, embora houvesse algumas que estudavam, que não queriam ir para o grupo daquelas estudantes, queriam ficar no meu grupo. Era alegre, como eu dizia, era muito alegre.
A gente juntava-se em várias ocasiões, festejávamos as amigas, coisas que vocês lá não têm. Porque no Carnaval as quintas-feiras têm todas um sentido, tem a quinta-feira de amigos, quinta-feira de amigas, quinta-feira de compadres, quinta-feira de comadres. E então pelas amigas nós juntávamo-nos, juntava-se as paróquias todas onde havia. Era São José, a Matriz, era Santa Clara, São Sebastião, que é matriz, e São Pedro. Juntávamo-nos todas e era uma alegria... Não havia os discos, mas havia música gravada, havia alguém que sabia tocar o acordeão ou coisa assim. Elas gostavam muito e eu também. A gente gostava muito disso e a partir daí as pessoas tinham isso.
O que é ligado à vida é isso, não havia várias gavetas, ou por outra, havia várias gavetas, como vários conhecimentos, mas todos unidos numa função. A JOC foi uma escola de formação grande para mim, que me preparou para a vida e que me ensinou a ligar o Evangelho à vida. A gente está sempre a pensar naquilo, mas como é que eu vou fazer isso? Tal e qual como a gente vê, ligado às leis do trabalho, o que é que é certo e o que é que é errado? Se eu estivesse aqui, o que é que eu fazia? Se eu tivesse aqui, o que é que pensava? Era sempre com esse princípio…
Ainda no outro dia, não há muito tempo, tivemos um encontro, de vez em quando eles fazem, mas para toda a gente, para todos os leigos, encontros pastorais, e eu fui. E depois eu disse: “Olha, o que falta hoje na Igreja é a ação católica”. E estava o bispo presente e disse-me: “A ação católica já está desatualizada.” E eu disse: “Está desatualizada para quem não quer trabalhar. Porque a ação católica leva-nos a uma ação. E a ação é essa, não é falar de Deus a ninguém, é o nosso testemunho de encontro com aquilo que nós aprendemos daquilo que está escrito no evangelho. Isso obriga-nos a mudar e a dar um testemunho em que as pessoas acreditam e não é preciso estar falando.”
Ainda ontem lembrei-me disso, porque era assim: “Não julgueis para não seres julgados.” Porque a gente às vezes tem uma tendência: Porque é que ela disse? Porque é que ela fez? Porque é que ela e assim? A gente tem isso, são nessas coisas que nós aplicamos. Não julgueis para não ser julgados. Porque tu tens uma trave na tua vista, não vês, mas vês na vista do outro, que é a crítica. São essas pequenas coisas que nós vivemos e por isso é que digo que a Juventude Operária Católica, para mim, foi uma lição e uma formação para a vida por uns belos anos, e foi isso até ao 25 de Abril. Mas no meio disso, na fábrica, as minhas colegas todas confiavam muito em mim.
Depois veio o 25 de Abril e os patrões juntam-se, querem formar uma Junta Administrativa. Eu estava de férias, ligaram para mim. Eu vim das furnas de autocarro para o plenário. Ficou toda a gente admirada. Eu estava de férias, mas não fui proibida de entrar (nessa altura já trabalhava na fábrica há quase 20 anos). Depois eles levavam um papel e perguntaram se eu já tinha assinado aquilo e depois iam a outra fábrica de tabaco e eu disse às minhas colegas no plenário: “Vou dizer uma coisa, eu tenho orgulho de trabalhar na fábrica Micaelense, estou contente que as outras pessoas tenham assinado, mas aqui aos meus colegas eu digo, não estou a falar mal das pessoas que nem conhecemos, mas se assinarem uma proposta dessas, eu amanhã venho para o jornal e digo que tenho um grande desgosto de trabalhar para a Fábrica Micaelense.”
(Já havia as máquinas, mas nunca despediram ninguém. As primeiras máquinas da terra, foi engraçadíssimo, foram feitas por um colega nosso, também de lá, era de cigarros. Era um trabalho muito, muito engraçado, e que envolvia muita gente).
E ninguém assinou, nem os do escritório assinaram. E não era contra as pessoas, mas a gente não tinha uma explicação para que é que era aquilo. Pronto, era para criar uma junta governativa, era assim. Mas então era uma divisão, queriam separar-se do continente. Eram assim umas movimentações, mas felizmente, pronto, essa parte passou, depois houve outras, e depois entrei para os sindicatos. Um dia estava lendo, porque a gente já descontava para os sindicatos antes do 25 de Abril, e estava lendo o meu cartão do sindicato, que diziam tem dever disso, tem dever disso, tem dever disso... e eu disse: “Vocês leiam o que está aqui para ver se eu estou lendo bem. As pessoas: Isso é tudo deveres, a gente não tem um direito que seja.”
P: Isso antes do 25 de Abril?
Manuela Medeiros: Era o sindicato das indústrias transformadoras. Disse às pessoas: “O que é que vocês acham?” A gente discutiu e não tinha um direito que fosse. A gente tem de ir à Inspeção do Trabalho, mas nós próprias não confiamos na Inspeção do Trabalho. Então, e foi nessa data que pedi licença ao sindicato dos empregados de escritório, porque das indústrias transformadoras, que era para onde a gente descontava, era uma sala pequenina e havia um pormenor, eu não cabia ali. E então eles emprestaram-nos. Lembro-me perfeitamente. Tive de subir à mesa, porque aquilo estava cheio e as pessoas não viam. E pronto, a partir daí começou a movimentação, o interesse.
P: Isso foi em que ano?
Manuela Medeiros: Isso já foi em 1975, logo ao princípio, quando a gente começou a estar mais consciente daqueles movimentos. Essa já foi mesmo logo a princípio do 25 de Abril, depois começou-se então os sindicatos.
P: Podemos recuar um bocadinho?
Manuela Medeiros: Podes fazer as perguntas que quiseres.
P: Se calhar, antes de irmos para o 25 de Abril, tinha algumas perguntas sobre o período anterior, se calhar até antes disso. Os seus pais trabalhavam na pesca, o seu pai trabalhava aqui na pesca?
Manuela Medeiros: O meu pai era mergulhador… e não sabia nadar. É uma anedota, mas era verdade, todas as pessoas têm essa reação. O meu pai trabalhava ali na Junta Autónoma dos Desportos no Porto de Ponta Delgada. E uma vez eu disse-lhe que queríamos a ver o trabalho dele, como é que ele fazia. E eu fui. Aquilo tinha uns fatos muito pesados, umas botas muito pesadas. Os fatos era eu que remendava. E quando ele fazia serviço, nós íamos às vezes ao fim de semana, estávamos lá com ele na sua oficina, nós sentávamo-nos ali a ver.
Mas um dia ele ia para um sítio pertinho, mais à frente, ali junto do estabelecimento prisional, não sei se já passaste lá, na Calheta, e ele disse que ia: “Então vamos.” E eu fui. Ele estava lá para baixo, nós estávamos cá em cima, porque tinha assim mesmo um portozinho, estava muita gente a ver. Ele ia tirar já não sei o que foi, alguma coisa que tinha encalhado de algum barco que valia a pena, mas deu-me uma aflição e eu não quis ver. Porque eu julguei, ele estava aqui, depois aparecia ali, depois aparecia acolá. Eu julguei que ele fazia isso porque estava agoniado. Olha, tomei um medo, eu também era novinha nessa altura, devia ter uns 14 anos. Estava a trabalhar, já, mas com os meus 14 anos não tinha a perceção daquilo. Então eu fui-me embora. Disse à minha mãe que não queria ver mais e pronto.
P: E a tua mãe estava em casa?
Manuela Medeiros: Era, na altura era quase tudo em casa. A minha mãe, antes de casar, trabalhava com outras senhoras na costura, eram chamadas aprendizes de costura. O que elas ganhavam era o que elas aprendiam, era assim, e faziam serões e tudo. Mas a minha mãe aprendeu, não sabia fazer, também a senhora não fazia, mas a minha mãe fazia muito bem roupa de menina e chegou a criar vestidos pequeninos para crianças de um aninho e tal. Ela criava e fazia, e para a gente chegou-nos a fazer muitos.
Então para nós, há muito tempo, a gente adolescentes, chegou-nos a fazer vestidos muito lindos, para mim e para minha irmã, a mais velha já não foi. Foi três, uns vestidos beijes com a fazenda lisa e criou por si. Daqui aqui levava umas tiras, mas umas tiras dobradas que lhe deu muito trabalho. Mas era assim, o entrepano era mais abaixo.
Eu vou-te dizer, toda a gente gostava, era muito giro. E ela sabia então fazer isso, entretinha-se e fazia para outra gente. Eu tenho uma sobrinha neta, aquela que está ali, eu disse: “a tua bisa, se fosse viva, ela fazia-te o vestido”. Não queria. Eu disse: “Ela fazia vestidos bem lindos. Tu não sabias, ela não te ia fazer um vestido feio”, assim na brincadeira. Mas ela aí criava. Ela criava e sabia.
P: E tu, não chegaste a casar?
Manuela Medeiros: Não, não. Nunca namorei nem nunca casei.
P: Porque lá na fábrica de tabaco era essa a regra?
Manuela Medeiros: Não, não. Antes pelo contrário, havia alguns que brincavam e alguns que diziam coisas. Havia um que dizia assim: “Não sei como é, gostas tanto de crianças e não pensas num casamento ou coisa assim?” E eu disse: “Também se eu quiser ter um filho não é preciso casar.” Portanto, essas coisas assim. E à medida que elas iam saindo, a fábrica nunca ficou com maior percentagem de homens do que de mulheres. Só mais tarde, se calhar quando eu saí, à medida que iam saindo ou coisa assim.
Sempre tivemos mais mulheres e do que homens, os homens eram mais na mestrança, à frente das máquinas, os técnicos de máquinas, assim. Havia mulheres que depois também já estavam, algumas raparigas à frente de máquinas e que sabiam tal como eles. E às vezes acontecia se havia alguma pessoa grávida, os patrões não podiam saber porque se não eram mesmo despedidas, aquilo era um segredo. E não havia os seis meses nessa altura, era a questão da produção que não podiam dar igual ou coisa assim, iam faltar mais ao serviço. É ganância, digamos assim, tanto de despedir como de lucro que havia as duas coisas.
P: E as mulheres ganhavam muito menos que os homens não era?
Manuela Medeiros: Ganhavam. Não havia assim grande diferença para aqueles que não estavam ligados a coisas qualificadas, mas já havia diferença. Aquilo era, em escudos, 6,30 e depois lembro-me de chegar a 9, não sei.
Até fizemos uma festa com o primeiro salário mínimo que tivemos. Veio o 25 de abril e eu não conhecia uma nota de 1000 escudos. Quando eles ganharam os 3600, nós recebemos 3300, porque a maior parte que estava lá, era de facto uma maior parte, não recebia mil escudos, mesmo os homens não recebiam. Mas depois foi-se aproximando, mas não vou dizer que nunca se igualou, portanto houve essa diferença e depois veio esse aumento.
P: Isso foi já depois do 25 de abril....
Manuela Medeiros: Sim, sim, sim. Primeiro o salário mínimo de 3300 entrou em vigou. Foi uma boa mão cheia, mas aí ninguém se desculpou, ninguém foi dizer que não queria, oh, que não queria. A gente só disse assim: “se fosse dividido por coisas, agora não sentiam tanto e nós tínhamos lucrado muito mais.” A verdade é essa. A gente sabe que os preços e o custo de vida eram elevados, mas dava perfeitamente.
O primeiro trabalho que nós tivemos nos sindicatos (eu não era da direção nem nada, mas falei com a direção), fomos para lá por causa do custo de vida, do aumento do custo de vida. Depois para pagarem os salários, aumentavam noutras coisas e o poder de compra diminuiu. Pusemos uma mesa no salão do sindicato, tipo exposição, para sensibilizarmos as pessoas para essa coisa dos aumentos. Porque de nada servia um aumento salarial com o preço de vida a aumentar.
P: Isso foi em que ano?
Manuela Medeiros: Foi logo a seguir ao 25 de Abril.
P: E antes do 25 de Abril, houve alguma reivindicação na sua fábrica?
Manuela Medeiros: Sim, a primeira que houve já era por salários e houve noutra, que era também de tabaco. E aí conseguimos mas um aumento pequenino, mas que se conseguiu igualar, digamos, ao subsídio de natal. Porque enquanto umas lá na fábrica recebiam subsídio de Natal de um mês, as do escritório, nós recebíamos à quinzena, era menos 15 dias. E depois nós começámos a ver que não era certo. As do escritório ligavam para mim: “Oh Manuela, já vieste agradecer ao patrão?” “Agradecer ao patrão o quê? Não tenho nada a agradecer.” Vocês têm, mas eu recebi 15 dias, não tenho nada que agradecer.
Então, lá fui ao escritório e o patrão: “Oh Manuela, alguma coisa?” E eu disse: “Eu não venho agradecer, ao contrário das minhas amigas, eu venho pedir. Venho pedir, mas não venho pedir um favor ao senhor. Venho pedir é para a fábrica, porque a fábrica somos nós todos. E o senhor, se der, é da Soares Pereira e o que venho pedir não é para mim. Venho pedir é um colchão para um casal que não tem condições nenhumas de viver e são idosos.” “Pronto Manuela, mas então queres que seja em nome da fábrica?” “Porque a fábrica somos nós, trabalhadores, que estamos a dar. E se for o senhor a dar é o seu nome. Portanto, há uma grande diferença, sim.” E depois ele assim: “Queres colchão e a cama?” Eu disse: “Isso também.” “Então vai escolher e a fábrica depois manda um carro buscar e vai entregar onde tu mandares.” E depois ele também disse: “E roupa para a cama?”
Quem teve essa iniciativa foi um grupo que se juntava para questões sociais de ajuda. Mas nós não queríamos que as pessoas sentissem que aquilo era esmola. Há uma diferença. E então eu disse: “não senhor, nós também temos que sentir uma coisa do grupo, esse grupo que teve essa iniciativa, essa iniciativa não é só minha. Então nós, o grupo, é que vamos dar os lençóis, os cobertores, nós é que vamos dar.” E correu bem e depois foi feito tudo como eu dizia e ainda ficou uma ou duas a limpar a casa, aquilo não era uma casa, era uma garagem. Fomos limpar, era a tia Maria e o senhor António. E o senhor António chegou-se ao pé de mim e disse (chamava-me menina Maria): “Oh menina Maria, quando viu tudo feito [tinha muitos gatos, os gatos sujavam aquilo tudo], como é que me vou deitar naquela cama?” “Oh senhor, como se deitava na outra, é sua, mas agora já não é nada nosso. A gente vai continuar a vir fazer visitas, mas isso é tudo seu, é tudo vosso”.
E foi assim, essa ação também foi bonita. Mas então é a tal parte para eles não sentirem que é esmola. Eu vou-lhe dizer uma coisa que eu gostava também de contribuir para essa despesa. Eu disse: “O senhor, nós ainda estamos devendo, mentira, estamos devendo o resto do colchão. O tio António vai-nos dar todas as semanas dois escudos e meio.” “Sim, senhora, a menina vem aqui buscar?” “Venho sim senhor.” Pronto, quando eu ia lá ele dava os dois escudos e meio e eu nunca disse que o colchão estava pago.
Não é que um dia eu estava constipada e depois eles mandaram um recado e eu fui ver alguém doente que estava no hospital. E andava um enfermeiro: “menina Maria, menina Maria”, não sabia quem era. As enfermeiras não sabiam quem era menina Maria. “Senhora, é consigo?” “É comigo.” “É que está lá um senhor, que já está com biombo, que quer falar consigo e diz que tem que falar com a menina, ele já estava com um biombo para morrer.” Eu fui lá e ele disse-me assim: “menina Maria, é só para lhe perguntar quem é que vai pagar o resto do colchão.” E eu não tive coragem de dizer que o colchão estava pago. Eu só disse: “Tio António, o grupo, que gosta tanto de si, não o vai deixar mal. Nós pagamos o resto, só falta um bocadinho.” E pronto, morreu uns minutos depois. Foi das coisas mais maravilhosas também.
Isto para dizer que na ajuda que damos aos outros, temos de ter o cuidado de não ferir a sensibilidade das pessoas e de lhes pôr, com aquilo que eles podem (até que seja limpar ou lavar) a colaborarem para aquilo que vai ser bom para eles, para eles sentirem a coisa sua. E muitas coisas em que há estragos, que há, é aquilo a que eles não dão valor porque não sentem as coisas como suas. E tudo o que fazemos é sempre nesse intuito: dá de graça para receberes de graça.
P: Esse grupo era ligado também à JOC?
Manuela Medeiros: Esse grupo sim, tinha ligações à JOC, mas não era todo. Nós chamámos aqueles que quiseram colaborar nessa parte social, digamos assim. E nem todos queriam. Quando foi da tia Maria e do senhor António, foram mais pessoas de fora para levar a cama, para armar a cama, para levar o que não prestava. Não foi brincadeira, foi muita coisa. E, cá está, nós também não queríamos, só queríamos aquelas que tivessem mais intimidade, para não os deixar vexados com aquilo. Nem toda a gente conhecia o ambiente.
Essa foi das ações muito concretas. Reivindicávamos as férias, que só tínhamos uma semana e os outros tinham 15 dias. Nós queríamos as férias iguais, porque trabalhávamos os 365 dias como aos outros. Conseguimos assim alguma coisa antes do 25 de Abril, conseguimos as férias e já não me lembro se conseguimos o subsídio. Também não quero dizer coisas sem ter a certeza…
P: E como é que se organizavam essas reivindicações? Era através da JOC?
Manuela Medeiros: Não, tínhamos essas que já tinham essa parte social, a JOC também tinha uma parte social. A Juventude Operária Católica mete o Evangelho em tudo aquilo que é justiça, que é verdade. Muita gente, muitas daquelas e daqueles que estavam na JOC gostavam do ambiente, digamos assim. Era um ambiente leve, era um ambiente alegre, era um ambiente em que nada era exigido. As pessoas iam se queriam, as pessoas faziam se queriam. E depois havia sempre os mais responsáveis, que tinham de dar conta e dinamizar, mas não eram obrigados.
Por exemplo, aquele grupo de novas ia à vigília e a mais coisas que nós fazíamos, era assim. Ninguém era obrigado, mas sempre nos juntávamos. Essas coisas faziam muito bem, faziam muito bem a todos.
E depois, quando havia uma festa, o padre anunciava. A missa era toda cantada. Nós, em Santa Clara, é que começámos, porque eu fui escolhida para representar os jovens à Suíça. Isso em 1968. Aquilo era tudo em francês, eu passei fome, porque não gostava daquelas comidas e um dia eles dão-nos assim umas coisas nuns copos. Eu fiquei tão contente que aquilo era um sumo, era sopa. Eu não gostei nada da sopa, mas pronto. Mas tinha uma que se chamava Manuela Varela e ela, então, guardava para mim o pequeno-almoço, aquelas coisinhas de doce, porque sabia que eu não gostava da comida. Ela guardava e era o que eu comia durante o dia.
Uma vez tínhamos a tarde livre e os franceses perguntaram se eu queria ir com eles num passeio. Claro que eu fui, a chefe do grupo, nós tínhamos uma chefe de grupo que era do continente, nessa viagem fomos 14, e cá dos Açores fui só eu. A Lurdes, ainda é viva, disse assim: “Mulher, vai, tu vais gostar tanto”. Era para conhecer, mas também queria comer alguma coisa.
Como eles sabiam que eu cantava, enquanto eles comiam, eu cantava. Mas foi tão bom, cantei coisas da minha terra, cantei coisas também do continente, alguma coisa que eu sabia. Não era muito assim, mas cantei e depois à noite houve um serão, eles puseram-me uma capa preta de estudante, os nossos de Lisboa, e cantei um fado de Coimbra. Isso é terrível porque eu sei a música, mas não sei a letra. Mas então cantei: “Coimbra tem mais encanto [canta a primeira frase]”. Olha, apagaram-se as luzes, só acenderam os isqueiros. Eu comecei a inventar letras: “Quando nós não temos dinheiro, temos a solidariedade dos amigos, como abrir os frigoríficos e ver aquilo que pode servir para mais”, essas coisas assim, olha, fomos sempre safando, mas foi lindo.
Lembro-me que a minha mãe me fez um fatinho verde, desse verde assim, e uma blusinha amarela. Os rapazes chegaram lá, portanto, homens despiram antes de almoçar, despiram, ficaram em tronco nu, foram-se lavar daqui para cima, vestiram uma blusa, uma camisinha lavada. As mulheres que iam mais finas, cheias de esterco e essas coisas assim, da transpiração, do comboio e da terra. Mas fomos embora assim, porque não tínhamos onde nos mudar.
P: Esse encontro era da JOC Europeia?
Manuela Medeiros : Era JOC internacional…
P: O que é que discutiam nesses encontros?
Manuela Medeiros: Nesses encontros da JOC internacional já discutíamos coisas relacionadas com o meio ambiente. Não essa coisa «climática», mas o meio ambiente: respeitamos o meio ambiente, não fazemos fogueiras nem queimas, na altura do Verão. Discutíamos como ocupar os tempos livres.
Os franceses é que foram responsáveis por aquela parte da Liturgia naquele dia de como ocupar os tempos livres. Foi engraçadíssima a ideia deles. Eles levaram bolas, eles levaram rádios às costas, eles levaram coisas de jogar póquer e isso tudo, tudo o que eles gostavam de fazer. Levaram livros, levaram cartazes para chamar a atenção das pessoas que estivessem e que não pertencessem ao nosso grupo, como ocupar os tempos livres, como eram necessários os tempos livres, como era urgente a gente ter férias, os trabalhadores todos terem férias. Também foi muito bonito, em 1968. Lembro-me que foi a primeira viagem que eu fiz assim.
Parei primeiro em Lisboa e depois fui de comboio, não fui de avião. Por isso ficámos todos cheios de esterco, claro. Mas aquilo tudo era alegria, tudo era folia.
P: E como é que era a relação da JOC com a ditadura, havia problemas?
Manuela Medeiros: Sim, não havia liberdade. O 25 de Abril, o que me deu de novo foi liberdade de expressão, sobretudo, e de escrita. Não me deu mais nada, a maneira de eu ser, a maneira de sentir, já sentia da formação da JOC, da minha escola de vida. O 25 de abril deu-me foi liberdade de expressão. E depois veio o 1.º de Maio, já depois do 25 de abril.
Uma vez, lembro-me perfeitamente, no primeiro ano em que o Mário Soares nos queria descontar 2,8 % de subsídio de natal. A gente juntou-se numa campanha contra. Fomos para a Igreja Matriz. Nós tivemos que ter uma licença da câmara. Fomos à Câmara, claro que ela nos deu a cópia assinada e tudo. Estava eu a dizer: “Não nos roubam 2,8! Queremos o subsídio por inteiro, não é dividido, não é roubado!”. E veio um polícia: “Vamos acompanhá-la a casa.” “A minha casa? O senhor não está bom, eu sei onde é a minha casa. Eu tenho de estar aqui até às 7h00, às 19h00. Os trabalhadores saem às 18h30 e eu tenho que estar aqui até às 19h00, que é para eles nos apanharem, porque a gente também estão contra isso. Eles não querem ser roubados 2,8. O senhor gostava que descontassem o seu subsídio? O senhor também não quer.” “Oh, senhora, mas eu fui mandado.” “Mas diga ao seu patrão que eu não vou porque eu tenho isso aqui, olhe, a Câmara assinou. O senhor presidente da Câmara está cheio de dores cabeça. Olhe, o senhor presidente da Câmara pode ir para a sua casa quando quiser, quem não pode ir para sua casa são os funcionários. Ele pode ir para a sua casa, passe no hospital, trate de si e vá-se embora, não sou eu.”
E foi assim. Depois ele veio outra vez e não me lembro. E a polícia quando falava comigo tocava-me no ombro e eu estava com mais homens. Não era uma multidão muito grande, mas estava aquele quadrado assim. E eles mais assim perto de mim, a polícia: “Oh, senhora, a senhora aceite, a gente vai... “ “Já disse que não vou, os senhores para onde me podem levar é para a Boa Nova – a Boa Nova era a cadeia, era a prisão –, porque aí eu não vou sozinha. Para a minha casa eu vou à hora que eu quiser, sei onde é, não preciso de companhias, desculpe lá”. E pronto, nunca vim embora, mas aí um senhor que estava ao pé de mim, era um trabalhador, disse: “Eu vou dizer uma coisa, você não toca mais nela. Eu não me responsabilizo, o senhor, por favor, não toque mais nela.” Olha, quando a gente dá por nós, já não havia só um polícia. Aquilo à volta eram uns 30 ou 40, eles estavam juntinhos, rodeando aquilo tudo e a gente lá no meio. E eu disse: “Olhem meus amigos, a polícia também não quer que lhe roubem o subsídio, estão todos aqui porque não querem que lhes roubem o seu 13.º mês.”
Fazíamos isto com muita convicção e também com muita confiança naqueles que me rodeavam. Eu nunca estive sozinha em nada, eram poucos, mas eram bons. Porque às vezes o que tem valor não são as maiorias, mas quando as minorias são boas. E eu tive sempre isso, também havia muitos que eram contra, claro. Mas havia também aquelas que eram minhas amigas na JOC que quando me veem no sindicalismo começam a acusar-me de comunista.
Eu era voluntária e ela diz assim: “Ai Manuela, que bom, desde que tu és voluntária que és muito mais católica”. E eu disse: “Eu não conheço a senhora de lado nenhum, como é que a senhora me pode ajuizar, de um valor daquilo que eu sou, de uma coisa que não conhece. Eu não sei se sou mais católica ou não”. “Ai não, a gente nota.” “Nota o quê? Eu vou-lhe dizer: eu não a conheço de lado nenhum.” “Ai, mas a gente no nosso grupo, a gente reza pela Manuela.” Eu disse: “Olha que bom, enquanto vocês rezem, dão-me mais força.” Disse: “eu estou contente, mas diga ao seu grupo que também lá há um dizer que a senhora está usando e que está lá escrito, ‘não julgueis para não seres julgados’. Não se esqueça, marque isso na sua cabeça.”
Pronto isso é, são métodos muito ricos.
P: Como é que foi o 25 de Abril, o dia 25 de abril?
Manuela Medeiros: Ai, o 25 de Abril, eu vou-te dizer, querida. Quando foi o 25 de abril, claro que eu ainda estava a trabalhar, tinha um amigo que era distribuidor de tabaco (a minha secção era de onde saía o tabaco). Eu trabalhava com um guarda, que era fiel da alfândega e eu era fiel da fábrica. E então, eu estou a fazer o pedido, a requisição deste senhor que chegou lá (este senhor já faleceu há muito tempo e eu gostava tanto dele, era uma pessoa tão séria), eles foram distribuir o tabaco, e ele cheio de medo: “Manuela, anda aqui, anda aqui.” E eu disse: “sr. Flávio, porque é que me estás a chamar logo de manhã? O que é que te aconteceu?” ”Houve uma revolução em Lisboa.” “Ah, sr. Flávio, eu ainda não ouvi dizer isso.”
Já eram umas 8h30 da manhã ou 9h00 e eu disse assim: “não ouvi.” “Ah, vai-te sentar no meu carro.” Porque ele tinha rádio e estava ouvindo. “Epá é verdade, como é que eu vou fazer isto? O que é que eu ia fazer?” Eu fiquei... uma revolução. Liguei para alguém de mais confiança, mas nesse dia não fizemos nada. Foi tudo para os seus…, tudo queria era ouvir notícias. Eu vim para casa, lembro-me perfeitamente, comprei rebuçados. Nós tínhamos um rádio antigo, muito grande, não havia televisão, havia um rádio. Tomei banho, vesti o pijama, fui para ali, a minha cozinha não era assim, portanto não tinha aquelas obras, era mais simples ainda, fechei tudo e levei toda a noite a comer rebuçados e a ouvir notícias. No outro dia fiquei tão mal-disposta.
Cheguei à fábrica, depois fui falar com um, falámos com outro: “Hei, isto tudo vai mudar, agora e que vai ser ela, agora e que não sei quê... o fascismo nunca mais? É!” Então a gente vai é para a rua e pronto. E a primeira manifestação que houve eu não pude ir, porque estava num serviço de responsabilidade na fábrica, que era quando fazíamos a exportação para América. Aquilo era mais difícil. E eu não queria dar a responsabilidade a outra pessoa.
Ia para a manifestação e depois, se houvesse um erro? Então a outra foi para a manifestação, mas teve um papel determinante, no Governo Civil. Há fotografias dela. Ela entrou e foi para a varanda gritar: “Fascismo nunca mais!” Ela com mais duas ou três, foi engraçadíssimo, foi engraçadíssimo. Foi uma grande força. Ela já faleceu, foi na América, porque ela depois ainda embarcou. Chamava-se Fátima. Eu não queria acreditar quando ela me disse: “tu vais ver, vais ver fotografias, eu vou comprar.” Eu disse: “tu vais comprar e eu vou-te que dar dinheiro e também quero.” E pronto, foi assim, houve coisas muito interessantes.
E depois as pessoas começaram a juntar-se, aqueles que tinham mais confiança, analisando o que é que era. Porque a gente antes vivia, eu vou-te dizer… A gente, na fábrica, no tempo em que eu estive lá, mesmo antes do 25 de abril, uns 20 anos à vontade, eu nunca sofri lá dentro represálias do fascismo. A fábrica sempre teve uma parte socialmente positiva. Dava-nos a alimentação. Tinha salários baixos, tinha a divisão das férias, essas coisas assim. Quer dizer, um patrão copia aquilo que o outro faz, porque eles não querem descer os seus lucros. Era assim, mas nunca tive...
Sempre falei com eles: “a gente vai festejar as amigas. Está tudo avisado. Telefonei para o comercio todo que nos fazia pedidos para aquele dia, naquela época, que quinta-feira é tarde de amigas, para não nos telefonarem.” E mesmo no dia antes, a gente trabalhava de maneiras a mandar tudo, para as ilhas, tudo, para ninguém nos pedir nada, para não faltar nada a ninguém, era assim. Portanto, eu sempre tive uma coisa a meu favor, que me ajudou nesse sentido. O que queria dizer de um patrão ia-lhe dizer, nunca mandei dizer por ninguém. Porque a gente nunca sabe como é que vão dizer. E desde que apanhei um amigo meu em falsidade… Pronto, são coisas que às vezes acontecem e a gente quando apanha, apanha. E depois a gente orienta-se de outra maneira e foi o que fiz.
Ainda hoje em dia ele aqui vem. Já não nos juntamos tanto, mas não há nada como a gente dizer na cara das pessoas aquilo que a gente sabe. Porque guardando para nós destrói-nos. A gente assim liberta-se do veneno que tem cá dentro. É uma maravilha.
Uma vez, lembro-me, uma segunda-feira, três irmãs, que eram tão amigas, foram fazer queixa de mim, depois de um fim-de-semana em que eu nem estive com elas. A gente foi-se embora todas bem, porque é que elas…? Não sei. Foram falar com o patrão e eu fui atrás delas. Cheguei à porta, estava o meu patrão e elas, e eu bati. O patrão disse: “Abre, abre” – porque ela sabia quem era. Então disse: “Podes entrar, Manuela.” Ele disse: “Manuela, é alguma coisa?” Eu disse: “Não senhor, não é nada, eu só venho saber de que é que essas minhas colegas vêm fazer queixa de mim. Porque se elas vierem sozinhas eu não me posso defender. Eu tenho de estar aqui.” Aí elas ficaram.... O patrão disse assim: “A tua secção é um confessionário, vocês que se vão embora todas.” Depois eu disse: “Então o senhor não chegou a saber o que é que elas vinham dizer?” “Eu não tenho gosto de saber.” Então eu nunca soube o que é que elas iam dizer.
Portanto, é assim, ou a gente tem que ter coragem e enfrenta ou a gente desanima. Claro, há coisas que às vezes não correm como a gente quer.
Depois tivemos a primeira manifestação, no Dia dos Trabalhadores, no 1.º de Maio, logo a seguir ao 25 de Abril, e eu não gostei nada.
P: Porquê?
Manuela Medeiros: A gente começava sempre com pinturas no campo com as crianças. Aí, às mil maravilhas, cantando, brincando, tudo. E depois tivemos um encontro no Coliseu, digamos assim, um plenário para informar os trabalhadores e tal. Eu também fui. Nós corríamos por todos para não serem sempre os mesmos, a verdade é essa. E como eu ia à televisão, disse “não, eu vou à televisão, é melhor a gente variar.” Eles tornam-se também mais responsáveis. E eu depois disse: “Fico então num Avé Maria em Latim, na Igreja de São José, um casamento de uns amigos meus, um casal.” E o que é que acontece na igreja? O Padre, que que Deus o tenha num bom lugar, disse assim: “Agora, antes de eu vir para aqui para essa cerimónia, para essa missa, vinha um grupo....
P: Estavas a contar-me do casamento no 1.º de Maio?
Manuela Medeiros: Fomos cantar, eu cantei a Avé Maria e voltei para o campo, que tinha um quiosque, onde tínhamos a parte do encerramento. E depois alguém veio ter comigo e disse: “Manuela, tu já viste que começaste o teu dia de hoje e o que é que já se passou?” Eu disse: “Ai lembro” e a gente tem isso tudo escrito, porque eu também fazia parte da organização e disse: “Olha, eu comecei com as crianças a pintar no campo, cantando coisas para as crianças, elas dançando, os que pintavam, pintavam-se uns aos outros, isso tudo.” Depois fomos comer qualquer coisa porque íamos para o Coliseu. No Coliseu, já não me lembro quem foi que tinha a apresentação da sensibilização para o 1.º de Maio, a importância que era de comemorar o Dia dos Trabalhadores, os motivos que levaram para isso, realçando a liberdade, porque antes do 1.º de Maio nós tínhamos feito uma manifestação oito dias depois do 25 de Abril, a primeira manifestação, oito dias depois, que foi grande, linda. Mas eu não fui, havia uns outros, uma meia dúzia, gente que trabalhava já contra o fascismo, mas às escondidas claro, e esses depois saíram e fizeram uma grande manifestação, alguns deles já morreram. Tirando aqueles que estavam à frente, nós não tínhamos cravos, uns levaram azálias, que é uma flor que é parecida com o cravo, quando está fechadinha, e há vermelhas. Outros iam sem nada, com faixas do 25 de Abril, e pronto.
Nessa primeira manifestação, acho que o Lourenço ainda não estava cá. Depois começou a ir para as outras e a organizar as outras, mas não estava cá. Essa foi mesmo a associação, que depois teve o nome de associação, que não era, era um grupo de antifascistas, digamos assim, que se reuniam. Portanto, era um grupo de que eu não fazia parte, porque não sabia sequer que existia. E depois, quando dessas manifestações, então disseram-nos, mandaram-nos cartas para os trabalhadores, para as fábricas, para os plenários. A gente ainda não tinha aquela postura de fazer os plenários, tinha sido oito dias depois. Não dava para isso.
Mas fizemos e tivemos ainda um bom grupo nessa manifestação, uma manifestação muito boa, dessa associação. Portanto juntaram-se todos na Matriz, e viemos por lá, todos cantando, avisando, e houve um carro com micro a avisar todos os que queiram contra o fascismo e aqueles que tinham as palavras de ordem. Aí já havia a partidos clandestinos, como o PCP, e então também se juntaram e foi uma grande manifestação.
P: E tu foste com quem? Foi com essa associação?
Manuela Medeiros: Fui nessa manifestação, misturada ali com eles.
P: Como é que conheceste as pessoas dessa associação?
Manuela Medeiros: Eu conhecia-os de cá, não sabia é que eles pertenciam a nada. Não, eu não sabia. Pronto, tinha um que eu sabia que era de esquerda, dizia que era de esquerda, nem sequer sabia distinguir muito os de esquerda dos de direita e essas coisas assim, não tínhamos esse palavreado. Só havia um que era mesmo de esquerda. E ele dizia, numa reunião que nós tivemos, que ele também foi da JOC: “Sabes, Manuela, eu agora sou ateu.” E eu disse: “Olha que bom, cada um é aquilo que é, que bom tu seres ateu, eles já não estão sozinhos, já têm mais uma pessoa.” Mas uma vez estávamos numa reunião e não estavam a dar as coisas certas e ele disse assim: “Ai, meu Deus...” e eu disse assim: “Como é? Então tu és ateu, como é que estás chamando por Deus?” Eu disse: “Mas tu tens razão, porque de facto Deus também gosta dos ateus, para não fazer exceção de pessoas, deixa-te estar onde estás.”
É uma questão de a gente estar atentas, mas pronto, nunca criei inimizades com ninguém por causa disso.
Na fábrica, nesse tal plenário, alguns diziam: “Desconfiaste dos nossos patrões?” “Não desconfiei.” Ninguém desconfiou daqueles senhores que não conhecia, nem do meu patrão. Como é que eu desconfiei dos meus patrões? Não estava ali nenhum deles.
P: Essas comissões administrativas, eram...
Manuela Medeiros: Governativa, era uma que era para formar um novo governo já depois do 25 de Abril, sem a gente conhecer quem era...
P: Eram os separatistas?
Manuela Medeiros: Não eram ainda… Bom, não quer dizer que não tivessem ali algum separatista, porque se calhar estavam à mistura, mas eu agora também não quero afirmar. Porque depois é que foi a FLA (Frente de Libertação dos Açores), que era os separatistas. Pronto, eram os separatistas que inclusivamente... aqueles que não eram do grupo deles não podiam vestir azul, que eram as cores da nossa bandeira. Eles não gostavam. Portanto, se eu vestia azul, era a bandeira deles, e eu não me devia identificar com uma coisa que não concordava. Mas eu queria era a cor, não estava a pensar naquilo que eles eram.
P: Mas essa comissão governativa era contra o 25 de Abril? Essa da fábrica que queriam que assinasse…
Manuela Medeiros: Eu não sei o que é que eles queriam, o que é que eles eram, porque eram os tais que eu não conhecia. Eu estava nas Furnas, vim para saber o que é que era, mas não que tivesse conhecimento, não conhecia as pessoas. Eram pessoas, como é que eu hei de te dizer, mais ligadas ao capital. Nem sei se alguns eram patrões, eu já não me lembro. Mas pronto, eles foram-se embora, a gente não assinou, e ficou por isso mesmo, acabou. Nem os meus patrões, nunca disseram nada sobre isto, nunca, tenho que dizer a verdade. Só aquele que eu disse, mas pronto, eu não liguei e depois não sei se foi longe demais, mas pronto.
E continuaram sempre, quando a gente tinha os plenários. Tivemos de ir para os regulamentos para saber quando podíamos convocar os plenários, essas coisas todas, os estatutos, os estatutos da empresa, que foram criados. O meu sindicato não tinha estatutos, tivemos de fazer os estatutos e cada um depois foi-se organizando nas suas direções, eleições, essas coisas assim, levou o seu tempo.
P: Foi logo a seguir ao 25 de Abril que começou essa dinâmica de criar sindicatos?
Manuela Medeiros: Sim, sim, havia os sindicatos, não estavam era organizados, não defendiam nada.
P: Os sindicatos corporativos, não é? Os sindicatos nacionais?
Manuela Medeiros: Eles não tinham o nome de corporativos, havia era o sindicato das indústrias transformadoras e serviços. Depois havia o dos escritórios e venda. Depois havia o dos transportes e turismo. E havia alimentação e bebidas. Mesmo assim, o da alimentação e bebidas era mais difícil para nós. Era um setor fácil de cativar, mas era o mais.... Com o dos escritórios, a gente dava-se às maravilhas, mas o de alimentos e bebidas... Tem a ver com os dirigentes, com aqueles que se querem impor, com aqueles que são melhores... Mas quando era para juntar para o 25 de Abril, a gente colaborava com a associação e conforme as despesas cada sindicato dava tanto.
P: Como é que chamava associação?
Manuela Medeiros: Era mesmo Associação 25 de Abril e ainda continua.
P: E começaram a começaram a criar os sindicatos...
Manuela Medeiros: Começámos a criar os sindicatos a partir do 25 de Abril. Portanto, num sinal de liberdade, mas também de responsabilidade e de defesa daqueles que também confiaram e nós e nos elegeram. Começámos a criar primeiro os estatutos, depois as eleições, para as pessoas irem tomando conhecimento. Eles e eu, que também não sabia.
P: E tu ficaste dirigente do sindicato...
Manuela Medeiros: Das indústrias transformadoras. Primeiro, não fui eu, foi um senhor que existia antes, que era da Fábrica do Açúcar. Depois dele é que fui eu e depois de mim já estiveram outros.
P: E coisa que foram assim as primeiras atividades que desenvolveram?
Manuela Medeiros: As primeiras atividades foram para dar conhecimento às pessoas, aos trabalhadores, acerca do que era o 25 de abril, quais eram as vantagens que nos dava. Começámos a fazer debates individuais em plenário, para juntar mais, para verem que havia gente diferente também, foi mais nesse sentido. Mas tínhamos atividades conjuntas, essa do 25 de abril foi sempre. Cada sindicato tinha a sua festa própria e depois, então, quando era o Dia do Trabalhador nós fazíamos assembleias com os dirigentes, para que cada um desse a sua opinião, e depois íamos para os sindicatos e para as fábricas também fazer plenários. Era assim.
Os sindicatos dos escritórios sempre colaboraram connosco, sempre. Depois os da alimentação e bebidas também iam, mas era com mais cerimónia, digamos. São feitios das pessoas que a gente não pode mudar, é assim.
P: Conseguiram uma boa adesão dos trabalhadores e das trabalhadoras nessa altura?
Manuela Medeiros: Nos sindicatos? Sim, sim. Porque as pessoas já descontavam, eu já não me lembro quanto é que eu descontava para o sindicato. Depois também tivemos de ver o problema das quotas, porque tivemos que organizar os sindicatos com funcionários. E depois disso, antes do aumento de quotas, tivemos de saber como é que a gente ia pagar. É todo um trabalho que se faz e que demora o seu tempo.
E defendíamos mesmo os que não eram sindicalizados. Nós tivemos um problema de um setor da Ribeirinha, que era uma fábrica que fazia fitas para máquinas e elas faziam isso em linho, na Ribeirinha. E um dia foram despedidas e foram ter connosco e nós fomos defendê-las e ganhámos. Nessa altura tínhamos o primeiro presidente [do Governo Regional], João Bosco Mota Amaral, e já não sei a propósito do quê, nós tivemos uma coisa conjunta, em que ele estava também, assim qualquer coisa do governo que ele convidou os sindicatos. Eu fui e essas já não iam receber o décimo terceiro mês, estavam despedidas. Mas ele tinha ido à fábrica, quando os americanos vieram abrir essa fábrica, com televisão e tudo, e ele deu um grande elogio, não sei quê mais.
Quando a fábrica fecha, de repente elas aparecem. E ele começa a falar, a desejar as boas festas, era Natal, qualquer coisa do governo que ele convidou os sindicatos, e a falar, e disse: “Os sindicatos o que é que esperam do Natal? Toda a gente quer as suas famílias…” Eu disse: “eu queria que o senhor, com uma palavra vossa, ligue para a Segurança Social – que não pagava porque não queria fazer horas extraordinárias na semana do Natal para pagar aos trabalhadores – para fazerem o favor de pagar aos trabalhadores da Ribeirinha antes do Natal e basta só essa palavra, senhor presidente. Mas eles não querem, eles dizem que não vão fazer horas para pagar aqueles trabalhadores. Mas eles já têm o seu, senhor, isso não está certo. Como é que aquela gente que ganha salários mínimos vão passar o Natal?”
Ele telefonou e eles receberam. Também reconheço que em sítios pequenos as coisas são mais fáceis, mas não esperava que eles dissessem uma coisa dessas. E o meu nome não apareceu nisso.
P: E quais é que eram os principais problemas que tinham os trabalhadores aqui em são Miguel, quando foi o 25 de Abril?
Manuela Medeiros: Quando foi o 25 de Abril, os principais problemas que tinham eram esses mesmos: de férias, de não ganharem igual, de não haver revisão de carreira. Não havia formação. Depois fomos sentindo a necessidade, fomos chamando pessoas. E depois, mesmo entre os sindicalistas havia alguém com mais sabedoria, aqueles que trabalhavam nos computadores e que faziam os quadros e essas coisas assim ajudavam-se uns aos outros nesse sentido e davam essa formação.
E sobretudo a coragem e o perder o medo. Não havia razões para ter medo. Com casos concretos, não havia, se havia queixas, eles vinham e diziam mesmo, se for descontado horas ou isso, vocês vêm que a gente trata. Quem diz o medo, não era só meu, os outros tinham também, às vezes as horas extraordinárias que não eram bem remuneradas... E não estão a ser agora. Estamos a voltar atrás neste sentido.
P: Foi necessário organizar alguma greve ou movimento?
Manuela Medeiros: Sim, tivemos uma greve geral, tivemos uma greve geral cá. Credo, eu trabalhei para aquela greve geral.
P: A de 1982?
Manuela Medeiros: Foi, foi a nível do país.
P: Como é que foi aqui?
Manuela Medeiros: Adesão total, total, credo. Andámos de noite, no carro de um, no carro de outro, vigiando a fábrica de um, a fábrica de outro. Andamos nisso, a telefonar, não era telemóvel, percebe? Não foi brincadeira. O meu sindicato estava de serviço ao telefone. Havia uma parte central, o meu e o dos escritórios. Eles é que iam comunicando com os outros. Foi total.
Depois fizemos ma manifestação de alegria, todos, como foram capazes, como a gente... a união faz a força, essas coisas assim. Pronto, e houve também muitas greves de setores, sim, sim. Houve várias greves de setores.
P: Dessas de setores, consegue lembrar-se as que foram mais importantes?
Manuela Medeiros: Parece-me que em cada setor era importante quando se convocava uma greve. Pronto, umas tinham mais adesão do que outras, a verdade é essa.
Eu lembro-me que tive um colega na fábrica que estava lá há pouco tempo e não aderiu à greve geral. Eu disse: “O que é que vais fazer? O que é que vais fazer, está tudo fechado.” Abriu o portão e eu disse: “isso é contigo, ninguém te vai pôr na rua, porque é toda a gente.” Pronto, mas é normal, às vezes os medos das coisas e pronto. Mas houve várias greves setoriais, sim, mas aquela greve geral foi inesquecível, credo.
P: Não houve repressão?
Manuela Medeiros: Não, não. A gente estava à vontade. Pronto, talvez a força também venha disso. Portanto, assim como o mal se reproduz, aquilo que é bom também se reproduz. Mas essas coisas foram inesquecíveis.
E depois nós tínhamos encontros de Natal. Nós convidávamos as mulheres dos sindicalistas para elas verem o ambiente. Para elas se aperceberem de como era valioso o trabalho que os maridos faziam. E sobretudo para que elas lhes dessem coragem, porque a gente estava num meio pequeno e as coisas podiam mudar num instante. Também houve essas incertezas na altura dos separatistas, de onde estava a força de maior capital. Não foi brincadeira. E aí houve muita gente, muitos trabalhadores, que aderiram sem saberem o perigo que corriam.
E aí não era fácil pensar nisso, por mais que a gente fizesse, por mais que escrevêssemos, por mais... Mas pronto, havia a maior parte, que eram aqueles que davam emprego, que tinham mais facilidade em criar emprego, mas também conseguiu-se e isso foi muito positivo. Foram muitas noites sem dormir e a minha mãe dizia: “Credo, eu gostava muito mais...” A minha mãe fazia a comparação com o tempo em que eu estava só dedicada à JOC e chegava-se a uma certa hora e as pessoas todas iam para as suas casas e ali a gente tinha vezes, conforme as ações reivindicativas, conforme os setores, em que eram noites perdidas. Eram, eram...
Houve uma vez que o Sá Carneiro veio cá. Nós estávamos no meu sindicato a trabalhar e os carros do aeroporto a passar com uns sapadores todos contentes a levar o Sá Carneiro. Não me lembro se houve alguma coisa, lembro-me dos carros a passar e de uns apitos. Nós abrimos até as varandas para ver, a gente não sabia o que era, depois é que nos lembrámos quando vimos as bandeiras do PSD. E o sindicato de escritórios ficava assim ao lado, de frente.
Mas a gente tinha a preocupação de juntar. Havia a festa de Natal, a gente às vezes juntávamos as crianças, fazíamos uma festa de crianças, cada grupo levava... A gente alargava muito às famílias também.
P: Estavas a dizer que convidavam as mulheres dos sindicalistas.
Manuela Medeiros: Sim, sim, elas iam.
P: Quer dizer que os sindicalistas eram quase todos os homens. Havia poucas mulheres?
Manuela Medeiros: Havia mulheres, mas a maioria era homens no sindicato. Depois, mais tarde, já com o 25 de abril avançado, é que começaram, graças a Deus, a aparecer muitas, da fábrica do açúcar, da fábrica do papel, da fábrica de tabaco, também mais, da outra fábrica de cima, dos escritórios, começarem a aparecer mais. Não sei a quantidade em percentagens, porque é assim, eu deixei de trabalhar e depois eles ainda me queriam num serviço que era criar, digamos assim, um setor dos reformados. E eu disse: “vocês desculpem-me, mas eu não estou trabalhando, já não tenho cabeça para mais, eu estou deveras muito cansada e não pego em mais nada. Sou capaz de aparecer aqui, ali e acolá mas sem compromisso.”
Quando a gente não pode, não deve aceitar. A gente não aceita só por nome, a gente aceita para trabalhar. Aí deixei de trabalhar e deixei de ter qualquer atividade com responsabilidade, a verdade é essa. Continuei ligada às ações sociais e ingressei como voluntária no hospital e já estou lá há 20 anos. De maneira que é assim e que é um trabalho que nos leva tudo. Nos leva ao contato com trabalhadores, nos leva a discutir problemas que eles têm e que às vezes não têm confiança para discutir com outras pessoas. Pronto, um bom ambiente social e sobre a saúde também. Leva-nos ao contacto com médicos. Isso eu tenho pouco, a minha irmã tem mais com médicos e com enfermeiros, com os auxiliares...
P: Então a Manuela, nessa altura, no período após 25 de Abril, era uma mulher entre homens no meio sindical? Era uma das poucas mulheres que estava nos sindicatos?
Manuela Medeiros: Não era a única. Era, talvez, a mais atrevida ou ativa, como lhe queiram chamar, mas havia mais algumas. Nos escritórios tinha uma. Depois do 25 de Abril, também tinha uma naqueles que era dos serviços, onde depois chegou o meu afilhado, também tinha. Tinha uma do SITAVA, mas a maioria eram homens.
Manuela Medeiros: E era mais difícil para as mulheres serem dirigentes sindicais?
Manuela Medeiros: Era mais difícil e não era pelos serviços em si. Eu achava também difícil, mas era porque não havia divisão de tarefas comuns. As mulheres eram aquelas que chegavam a casa e tinham outra tarefa, outro dia de trabalho como tiverem durante o dia na empresa. Talvez ainda com mais responsabilidades e que tinham de sorrir para os filhos e que tinham de apoiar os filhos. Eu sempre valorizei muito a mulher sindicalista, porque tinha duas funções, duas grandes funções de grande responsabilidade, e que tinham de encarar com a mesma disponibilidade e a boa disposição, tanto uma como a outra. E não era nada fácil, depois do cansaço, ter crianças, ter de dar um ambiente aos filhos e ao próprio marido depois de um dia de trabalho. Às vezes não era fácil.
Eu sempre valorizei muito isso. De maneira que era mais difícil, sempre foi mais difícil nesse sentido. E não havia a divisão que agora há, embora se note ainda. Eu, no outro dia, estive com alguém que me disse: “Eu admirei-me porque o marido não é capaz de levantar o seu prato da mesa, um prato”.
P: E acha que o sindicalismo concorreu para mudar essas diferenças de tratamento das mulheres e dos homens?
Manuela Medeiros: Eu vou-lhe dizer, no início não. Nós estávamos virados era para as lutas nas empresas, mas havia uma preocupação com a família, mas não com essa ideia. Agora, às vezes íamos à casa uns dos outros, fazíamos muito isso. Por exemplo a [?]. Ela e o marido também foram sindicalistas. Ela era da função pública foi daquelas poucas que não sentia isso, porque em casa, quando chegavam, os dois trabalhavam. E com toda a abertura ela falava disso. Eram um grande casal, tanto ela como o marido, eu gostava muito deles. No outro dia vi-a, mas foi assim ao longe. Eu gosto muito dela.
Era uma pessoa bem disposta e se nós acabávamos uma reunião e se estava ela e o marido, ela dizia: “Vamos a nossa casa, a gente não tem nada, mas ou assa-se um chouriço ou assim”. Eles na altura ainda não tinham filhos, mas depois tiveram dois. Agora já são casados, já têm netos...
P: E nessas lutas nas empresas, por exemplo, não se tentava que as mulheres começassem a ganhar o mesmo que os homens? Não havia essa preocupação?
Manuela Medeiros: Havia essa preocupação por parte dos sindicalistas, defenderem isso sobretudo para a contratação. Havia já isso de “trabalho igual, salário igual” e de não haver diferenças entre sexos.
Mas era um problema, mesmo entre trabalhadores. Diziam que tinham um esforço que nós não tínhamos, que tinham mais força, faziam coisas que nós não éramos capazes de fazer. Procuravam defender-se, mesmo entre trabalhadores, não era só com os patrões. Quando há essas duas coisas é mais difícil, mas pronto, foi um trabalho lento, não podemos dizer que não foi um trabalho lento e que, infelizmente, isso ainda perdura.
P: Então diga-me uma coisa, de que forma é que acha que esse envolvimento no movimento sindical marcou a sua vida?
Manuela Medeiros: Sim, marcou a minha vida. Mas, como eu disse, eu tinha uma formação anterior, que foi a JOC, que me levava a pensar nos outros, naquilo que os outros se sacrificavam, que não eram correspondidos, que não eram reconhecidos. Portanto, teve uma grande repercussão na minha vida. Por isso é que eu digo que o 25 de Abril, o que me deu, foi liberdade de expressão e mais nada, a formação eu já tinha. A sensibilidade para os outros já tinha. A preocupação pela caminhada dos outros eu já tinha. Digamos assim, para que todos vivamos um momento feliz, era essa a meta, e para atingir a meta temos que passar por coisas muito difíceis.
Nós conseguimos passar, mas não conseguimos alcançar tudo, porque depois há outros que vêm e às vezes não vêm com a mesma dinâmica, nem têm a mesma dinâmica, porque quem se mete numa coisa dessas nunca vê os seus próprios interesses. É isso.
Eu, uma vez – não sei se já disse isto – tive um convite para ir para uma outra fábrica ganhar mais, para telefonista, e eu não aceitei. E o meu patrão soube e, para me aguentar, queria-me fazer um aumento sem ninguém saber. E eu disse que o que eu ganhasse era para ser público e na contratação, como os outros todos. Porque se eu merecia, todos tinham de conhecer. Portanto, eu sou pobre, mas não aceito. De maneira que é assim.
O que ficou na contratação é o que eu recebo, mais nada. De maneira que, muitas vezes, eles precisam é de ver como tem valor a palavra. A palavra de honra, que já se deixou de falar nela. A palavra tem muito valor e muito sentido. Porque ele queria dar-me mais sete escudos e meio, ou seis e meio ou sete e meio, não era brincadeira, estás a perceber? No fim-da-semana era um dinheirinho. Mas eu não, no fim não aceitei. As minhas colegas iam saber, e depois? E depois, eu perdia toda a confiança. Ninguém é perfeito, eu posso ter muitas deformações, mas a de enganar os outros, essa não tenho. Posso ter outras coisas, mais banais ou mais difíceis ou mais prejudiciais, mas logo que seja para mim, que não se reflita nos outros, eu não me importo.
Era mais 6 e meio ou 7 e meio eu já não me lembro. Era assim: toda a gente está a telefonar a dar-me os parabéns. Mas como, se eu não vou? Eu agora digo que não vou e eles não vão ver isso na minha folha de ordenado, porque eu de facto não aceito. Nem na folha individual, nem na coletiva, essa quantidade, porque não foi tratada em plenário quando foram apresentados os outros elementos. Se eu mereço, não preciso de ganhar às escondidas. É isso.
E quando eles, por exemplo, uma coisa logo no início também, que foi uma edição do 25 de abril que eles queriam, mas depois lá à frente eram os representantes dos trabalhadores na administração. E houve um senhor, que pertencia ao Governo, e que me disse: “Olha, Manuela, daqui a dias tu vais e alguém daqui vai apresentar-te ao Conselho de Administração como reconhecimento.” E eu disse: “O quê, ele vai-me dar posse? O senhor está tão enganado, o senhor não nos conhece.”
Eu, como trabalhador, nunca chegaria ali. Pronto, mas depois eu telefonei para si e, de facto, não fui, foi uma do escritório. E depois eu disse, quando fui lá acima dar os parabéns à nova direção: “Tinham-me dito que era eu que vinha para aqui e eu sempre disse que não. Não é que eu não merecesse ou não soubesse, mas eu onde estou, estou melhor. Não é nem o dinheiro, nem os nomes, e vocês sabem, os senhores sabem bem que eu não sou assim. Não tenho a mania de gradezas, eu sou pequenina. Não, essas coisas têm valor na simplicidade e, como eu já disse, na verdade, na palavra de honra.”
Eu tenho mesmo pena dessa frase da palavra de honra, ela é dita com tanta convicção e agora já não existe. Agora dá-se por tudo e por nada. Agora veio uma corrida do salve-se quem puder, e quem puder por os pés no pescoço de outro põe, mesmo para saltar para cima. É terrível isso, uma doença. Eu nunca tive. Eu tenho no sindicato, estou no voluntariado, que é outra coisa que muito me orgulho muito, muito, muito. É uma coisa que eu gosto muito de fazer e que estou a sofrer com a paragem nestes dois anos da pandemia. Estou a sofrer com isso.
Não só eu, todos os voluntários, que isso faz uma falta na nossa vida... Cada um tinha o seu horário, cada um tinha o seu dia e aquilo era para cumprir, não era para faltar, era para cumprir. Deste o nome, deste a formação, tiveste a formação, tu vais cumprir! E quando faltares, dizes a alguém para te vir substituir. O voluntariado é um serviço de amor, gratuito, mas por ser gratuito, não tem menos valor do que aquele que é remunerado. Não tem. Tem um valor que não se vê.
P: Manuela, diz-me uma coisa, eu estou a fazer a história destes movimentos, tanto dos movimentos de ação católica como do movimento sindicalista. O que é que tu achas que é importante destacar e investigar na história destes movimentos? O que é que achas que falta conhecer? Se tu fosses historiadora, o que é que tu ias investigar?
Manuela Medeiros: Se eu fosse investigadora ia investigar aquilo que me estás a fazer a mim. Ia saber: o que sentiste quando estiveste lá; se valeu a pena; e, agora, se tens esperança.
Porque a esperança é uma coisa que não morre, mas que precisa ser alimentada. E ela só é alimentada se nós formos à procura, porque as coisas não nos vêm bater à porta. E depois dessa esperança alimentada, cria-se a tal confiança entre todos.
P: Então responde-me lá às três perguntas? O que é que sentiste quando estiveste lá?
Manuela Medeiros: Olha, senti dificuldades, não posso dizer que não, mas depois da confiança, da boa vontade de todos, que era de todos, do compromisso. Alguns – não há duas pessoas iguais – cumprem mais do que outros. Mas, quando assumem a responsabilidade e depois justificam, até é desculpado. Não é desculpado, é mesmo, porque ninguém é obrigado a fazer nada, tem de ser sempre de livre vontade. E depois, nós temos que ter muito em conta, quando nós estamos à frente de um sindicato ou coisa assim, que aquele dinheiro que nós gastamos não é nosso. É dos trabalhadores. Por isso, tudo tem de ser contabilizado. Há muita coisa que eu não ganhei, perdi algum, não estou arrependida. Se eu perdi um bilhete de camioneta, eu perdi, e às vezes tinha vergonha de pedir a segunda via de um táxi, de ele pensar, se quer a segunda via então perdeu. Eu tinha esse escrúpulo. E não sou rica, é sempre do meu trabalho, mas pronto. Mas preferia perder do que as pessoas pensarem mal de mim.
Às vezes há escrúpulos que nos levam a perder, como eu estou dizer, mas a gente fica de consciência tranquila. E é preciso também muito cuidado e cada vez mais nos tempos que correm, porque há mais dinheiro a circular e o dinheiro se não for bem aplicado, bem gerido e a pensar sempre que – seja no Governo, sejam patrões, sejam sindicalistas – o dinheiro que nós gastamos, mesmo em serviço sindical, não é nosso, é dos trabalhadores. E por isso tem de ser tudo muito bem gerido.
Quando era para aumentar os funcionários do meu sindicato, na direção a gente combinava, a gente não sabe como é, eles é que têm as contas, só resta isso. Se só resta isso, eles é que vão dizer o que é que querem de aumento para ficarem com coisas para as despesas mensais. E era assim. As coisas têm de ser feitas assim.
P: Agora a segunda pergunta: valeu a pena?
Manuela Medeiros: Valeu a pena! Costuma-se dizer que “tudo vale a pena se a alma não é pequena!” E é isso, tudo vale a pena. Porque no meio disso tudo há amor, há pura gratuidade, há entrega. E valeu a pena porque tive o gosto de fazer muitas coisas que deram frutos, que deram sementes. E é bom saborear quando as pessoas dizem: “Manuela, foi tão bom aquele tempo.” Ainda na semana passada falávamos nisso com pessoas que não via há anos e que tinham passado por isso. “Ai, Manuela foi tão bom aquilo”. Foi saboroso. Porque a gente trabalhava, a gente sofria, mas também tínhamos muitos momentos de alegria. Muitos, muitos. É isso.
P: E ainda tem esperança?
Manuela Medeiros: A esperança que resta é isso, naqueles bocadinhos e, às vezes, em conversas que temos, ou quando vemos na televisão. Há esperança de uma continuidade, que não seja igual, mas à maneira de agora, porque os tempos de agora não são como os meus tempos, são totalmente diferentes. Até quase que digo que são mais difíceis. São momentos de muito mais tentação. De paragem, porque têm as coisas mais organizadas, têm uns bons sofás para descansar. Têm uns grandes televisores para ver. Têm outras coisas. Há mais tentação para parar.
Mas têm de continuar, para gozarem aquilo que fizeram – não em tempos, mas agora, se querem ver frutos dessa esperança. A esperança é alimentada com amores, com total gratuidade. Embora o sindicalista que tem horas e que tem de ganhar pelo sindicato, tem que ser remunerado, tem que ter sempre em conta que essas horas no sindicato têm de ser feitas com tanto amor e com a mesma disponibilidade, como seja um bom profissional no seu campo de trabalho. E a esperança nasce.
Porque não se pode chegar a um momento saboroso, digamos assim, ao momento de partir um bolo, sem termos todos os preparos para aquele bolo e, sobretudo, não pode faltar o fermento, que é aquilo que falta.
P: Muito obrigado.
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P: Antes de falarmos sobre a experiência associativa, ia lhe pedir alguns dados biográficos para também termos a noção da sua história de vida e porque este estudo também permite fazer uma caracterização do tipo de pessoas que se dedicam às associações. Então ia-lhe pedir o seu nome todo.
Sebastião Mota: Sebastião Augusto Conceição Mota.
P: A data de Nascimento?
Sebastião Mota: 20 de março de 1944.
P: E o local?
Sebastião Mota: Marinha grande. Engenho, Marinha grande.
P: Estudou aqui na Marinha Grande?
Sebastião Mota: Segundo grau só. Comecei a trabalhar aos 11 anos.
P: Começou a trabalhar no quê?
Sebastião Mota: No vidro, aprender a pintura do vidro. Posteriormente lapidação e muito posteriormente a pintura outra vez. Foi como terminei, foi com a pintura.
P: E os seus pais também trabalhavam na indústria vidreira?
Sebastião Mota: Sim, o meu pai era lapidário.
P: E a sua mãe?
Sebastião Mota: A minha mãe, por força das circunstâncias, o meu pai morreu tinha eu 5 anos, teve de se empregar na indústria vidreira, era roçadeira. Toda a minha família era ligada ao vidro, não havia outra forma.
P: A mulher também, casou-se?
Sebastião Mota: Sim, sim. Também trabalhou na indústria vidreira. Trabalhou comigo, trabalhava comigo nos lapidários.
P: E filhos?
Sebastião Mota: Dois, uma filha de 50 e um filho de 46.
P: E o que é que eles fazem?
Sebastião Mota: Ela é comercial numa multinacional austríaca que está aqui na Marinha grande, está na secção comercial. Ele é gerente de um bar.
P: Qual foi a escolaridade que eles fizeram?
Sebastião Mota: Ela, o 12º, e depois teve que, por dificuldades... Nós na altura, eu trabalhava mais a mãe na Ivima, chegávamos ao fim do mês, não recebíamos. E por força das circunstâncias, ela teve que ir trabalhar também coitadinha. E depois tirou inglês, alemão, espanhol. E daí ter conseguido o emprego que posteriormente, conseguiu. Mas foi à força dela.
P: E o filho também fez o 12º ano?
Sebastião Mota: Fez.
P: Viveu sempre aqui na Marinha Grande?
Sebastião Mota: Olhe, eu costumo dizer minha Senhora, nascido, criado e batizado, fui à guerra e vim, durmo no quarto onde nasci. Que esta é a verdade, verdadinha.
P: Foi à guerra colonial?
Sebastião Mota: Fui, à Guiné.
P: Tem alguma filiação partidária?
Sebastião Mota: Tenho, PCP. Eu era simpatizante antes, daí fazer parte das listas do sindicato Vidreiro antes do 25 de Abril, que foram vetadas pelo Presidente da Câmara. E quando se deu o 25 de Abril, entrei logo para o Sindicato como dirigente sindical e para o partido como é óbvio.
P: E religião, tem alguma religião?
Sebastião Mota: Tenho que ser católico porque sou batizado, mas não sou praticante, nunca fui.
P: Muito bem, então estava-me a dizer que participou nas listas do sindicato Vidreiro, ainda antes do 25 de Abril, teve alguma outra participação associativa antes disso?
Sebastião Mota: Sim, sim, tinha. Na minha coletividade de sempre, de que o meu pai foi fundador, o Império, o Sport Império Marinhense.
P: O que é que o seu pai contava desse período da Fundação?
Sebastião Mota: Não me lembro. Então ele morreu eu tinha 5 anos. Lembro-me de ir com ele à primeira sede do Império, que era junto ao parque do Engenho e da minha casa, mas tenho muito pouca ideia da minha infância com o meu pai.
P: E quando é que começou a participar no Império?
Sebastião Mota: Olhe, começámos a jogar, tínhamos uma equipazinha de pingue-pongue de juvenis. Naquela altura, não é só agora é que há crises diretivas, houve tamanha crise diretiva que fecharam a coletividade. E eu lembro-me perfeitamente de ter 15 anos e ir a um diretor e pedir a chave para abrir aquilo para irmos jogar Ping-pong. E já tínhamos uma televisão e à noite abríamos, ia eu abrir. Porque a minha avó vivia mesmo pegada à coletividade e eu ia abrir aquilo para as velhotas irem ver televisão. Foi aí que começou. Depois houve direções, eu ainda estive na direção antes de ir para a tropa, numa ou duas direções. Depois, quando vim da guerra, assumi logo, fui logo posto em Presidente. E depois vêm aqueles anos de 69 com as eleições do Arlindo Vicente. Era o Arlindo Vicente e era o Humberto Delgado. E depois veio o Congresso de Aveiro de 73, em que eu participei também, mas isso... As reuniões do MDP-CDE, na Marinha, eram feitas em duas coletividades, era no Operário e no Império, porque mais ninguém dava o peito às balas. E lá no meu lugar, no dito Engenho, havia um movimento de rapazes que eram contestatários ao regime, mais velhos do que eu, mas eu cheguei a acompanhá-los. E há uma altura que vão até uma freguesia do Concelho de Leiria, que era Amor, que é aqui ao lado da Marinha distribuir propaganda do MDP CDE à saída da Igreja de Amor. O Padre [anonimizado] telefonou à Pide e foi tudo preso. Eu não fui preso, eu era dos mais pequenitos, fugi lá pelo meio das terras. Mas houve dois que foram passar ainda uns meses valentes a Caxias, essencialmente a Caxias. E pronto, a partir daí o bichinho mordeu e dava gozo na altura nós cedermos o Império ao MDP-CDE, porque sabíamos que tínhamos a PIDE à perna, mas tínhamos que fazer um documento, assinado por todos os elementos da direção para o Governo civil para permitir, dizer que era da nossa inteira responsabilidade a cedência da coletividade. O nosso salão já era enormíssimo. Mas não se podiam invocar determinadas palavras. Eles davam-nos uma lista das palavras que não podiam ser ditas. Os oradores que iam ao palco não podiam usar aquilo.
P: Que tipo de palavras? Lembra de algumas?
Sebastião Mota: Não me lembro, aquilo já era muita areia para a minha camioneta. Sei que o Doutor Vareda, que era líder daqui, mais o Doutor Vasco da Gama Fernandes, que eram os líderes do MDP/CDE e o Doutor António José Guarda Ribeiro e um economista de Ourém [refere-se a Sérgio Ribeiro], esse ainda é vivo. Esse tinha uma fluência do discurso que era um espetáculo ouvi-lo. E a gente dizia: Olha, se você vão falar de fora deste âmbito, portanto, podem falar de tudo, mas estas palavras não podem ser invocadas. Pronto, eles eram advogados, só o Sérgio Ribeiro de Ourém é que era economista, e conseguiam dar curvas àquilo tudo. Mas mesmo assim o Império, ainda antes do 25 de Abril era perseguido pela PIDE. Agora vou me reportar para o sindicato.
P: Mas não quer explorar mais aqui a questão do Império?
Sebastião Mota: Sim, eu ia falar precisamente do Império, na cedência do Império ao sindicato, numa das greves que não é nada falada. O sindicato antes do 25 de Abril já lá tinha dois dirigentes filiados do Partido Comunista infiltrados. Um agora está muito mal no hospital, que era o [anonimizado] e era o [anonimizado]. E estavam a negociar um contrato em Lisboa e pediam 100 escudos de aumento por dia, per capita. E aquilo era.... como deve imaginar. O sindicato fazia plenários na sede do sindicato, que era no centro da Marinha, aquilo dava para cem, cento e poucas pessoas e vinha a polícia de choque, quem tivesse a biqueira dos sapatos fora do arrebate do sindicato, pimba. E não deixavam ali parar ninguém. Tomámos uma decisão, tomaram eles: Vamos é telefonar para o Presidente do Império – nunca mais me esquece quem era, era o [anonimizado] – se podemos fazer lá, ir daqui para Império. E foi. Minha Senhora, eu não estou a puxar nada a brasa à minha sardinha por ser do Império, é que era a única que abria a porta era o Império. Era o Império e o Operário. As outras, pronto. Aqui a Comeira não existia.
P: Essa greve foi em que ano?
Sebastião Mota: 74. 5 semanas antes do 25 de Abril. Então vamos para a sede do Império, começa-se a constar, pimba, pimba, contactos, não havia telemóveis, agora mobilizações, sabe melhor que eu, são fáceis. Começa-se a falar, a falar... Tivemos que abrir os portões laterais, não cabia tanta gente no Império. E os gajos da PIDE que estavam lá infiltrados começaram a temer as consequências e chamaram reforços. Chamaram reforços, mas isso não obstou que se fosse avante com uma proposta.... Há um indivíduo que ainda está vivo [anonimizado]. Sobe a uma escada de alumínio que estava encostada a uma das paredes, porque andavam a ornamentar o salão para os bailes de Carnaval, e grita: Vamos para greve, amanhã ninguém pega no trabalho às 8h – Não foi a mesa, mas eu penso que aquilo já estava ensaiado – Amanhã, às 8 da manhã, ninguém pega ao trabalho. Votação por aclamação. Saímos do Império, uns em alta correria, outros não sabiam, no lugar de irem para a Marinha iam para o lado da Vieira, porque a confusão cá fora estava instalada pela polícia de choque. O resultado que se esperava, no outro dia nas fábricas ninguém pegou o trabalho. Onde eu trabalhava, na Crisal, houve um ou dois que fizeram a tentativa de ligar os engenhos lapidários, porque aquilo eram engenhos, motores individuais. Parou tudo, fomos às Mulheres da roça, parou-se o forno, pararam as fábricas todas, começaram a mandar emissários. Da parte da tarde, o calcanhar de Aquiles era o setor da garrafaria, que é este que está aí ainda hoje próspero, e de que maneira, mas eram três da tarde, estava tudo completamente paralisado, tudo. E a polícia de choque vem de Lisboa, vem o capitão [anonimizado] para aqui dirigir isso, nunca mais me esqueço. A partir daí foi recolheres obrigatórios, perseguições, pancadaria. E na madrugada de sexta para sábado, já de madrugada, a polícia de choque vai-se embora. Soubemos que tinha havido um movimento dos capitães das Caldas para Lisboa. A polícia de choque foi daqui da Marinha atrás deles. Porque no dia anterior, até determinada hora do dia, nós conseguíamos mandar telegramas de apoio para a Corporação da Indústria para Lisboa, a apoiar a Comissão negociadora sindical. Cotizávamo-nos nas fábricas, mandávamos os garotos com textos escritos. O gajo da estação dos Correios da Marinha alertou as autoridades. Pronto é tudo cortado e no sábado de manhã eram para aí 10 da manhã recebemos a notícia que tínhamos levado um aumento de 60 escudos per capita para toda a gente exceto, repare nisto, exceto, para as crianças de 12 anos e 13, que levaram 50%, 30 escudos. A partir dos 14 anos, já éramos homens adultos. Toda a gente levou 60 escudos. Isto é um introito um bocado longo para a tal participação do Império. Se não fosse o Império, isto não acontecia. Não havia hipótese de reunir as pessoas. E foi a partir daí, do Império. Depois veio o 25 de Abril e pronto, foi tudo muito....
P: Mas diga-me uma coisa, neste processo, quer na reabertura do Império, quer na cedência do Império para o sindicato, na organização da greve, qual é que foi a participação das Mulheres?
Sebastião Mota: As mulheres a nível da direção nessa altura era zero, não havia mulher nenhuma. Agora, a nível de organização de fábrica, elas tinham muita força. Na organização de fábrica não havia as células como há agora. Antigamente, podia haver meia dúzia de mulheres mais ligadas ao PCP, mas em termos de organização não havia, aquilo andava um bocado desgarrado. Mas notou-se, nesta luta que nos levou a esse aumento, quem teve, pelo menos na fábrica onde eu trabalhava, na Crisal, a preponderância, quem foi ao forno mandar parar os homens do forno foram de facto as mulheres, que subiram as escadarias: Ninguém trabalha, estamos em greve - e pronto,
eram aqueles gritos. Ali a preponderância das mulheres foi muito importante.
P: Elas também receberam um aumento de 60 escudos?
Sebastião Mota: Tudo igual, minha querida per capita.
P: Mas quanto é que elas ganhavam? Ganhavam o mesmo que os homens?
Sebastião Mota: Não, não, ganhavam muito menos e eu era para trazer a tabela número 12 do Ministério das Corporações, que eu tenho lá guardada religiosamente. Tem isso tudo definido, elas ganhavam muito menos. Depois, com o andar do tempo é que nas profissões de pintura, por exemplo.
Sebastião Mota: Por exemplo, eu trabalhava junto a quatro senhoras. Não havia quadro de idades nas categorias nem havia nada e as mulheres naturalmente eram todas deixadas para trás. Porque os homens é que, no conceito dos industriais, os homens é que eram produtivos. Mas havia e há, cada vez há mais, profissões em que as mulheres ainda produzem mais que os homens, como é óbvio. E partir daí, voltando ao Império. O Império foi... lutei e tenho lutado. Eu parece-me, parece-me não, de certeza absoluta, que terminei faz amanhã 15 dias, a minha colaboração como dirigente do Império. Porque eu fui agora nos últimos anos, muitos anos, Presidente da Assembleia Geral. Muitos problemas, à beira de encerrar, à beira disto, à beira daquilo, felizmente resolveu-se a semana passada, com a eleição de uma nova direção. E eu estou cansado porque já venci quatro cancros, uma operação ao Coração. Vou fazer 78 anos e há noite já estou bem é no meu cantinho, a ler, a ouvir música, e não a andar em confusões. Mas amanhã ainda tenho uma reunião porque o Presidente, lá está, quer pedir-me uma opinião acerca de um berbicacho que temos e eu vou ver se colaboro com ele. Colaboro sempre, agora estar efetivamente ali, porque também sou o Presidente da Assembleia Geral dos Reformados, da ASURPI aqui da Marinha, e também estava no Conselho Pedagógico da Universidade Sénior, mas pedi escusa. Mas tive o cuidado de indicar dois nomes que foram aprovados e que são duas excelentes pessoas, com licenciaturas, e que não me souberam dizer que não. Porque eu passei muito. Além do Império, foi o sindicato e os reformados.
P: Então, e entrou no sindicato em que ano?
Sebastião Mota: Em 74. Mas antes já tínhamos reuniões e clandestinas.
Joana Dias Pereira: Como é que era? Quando é que começou a participar nessas reuniões?
Sebastião Mota_ Foi logo a seguir a eu vir da Guerra. Não, foi depois, foi para aí em 68. Talvez em 68. Eu lembro-me perfeitamente das eleições de 69, da campanha. Depois tenho mais nítido é o Congresso de Aveiro, de andar a correr na célebre Avenida Lourenço Peixinho, isso é que não me esqueço.
P: Em que condição é que participou no Congresso de Aveiro?
Sebastião Mota: Assistente, não fui delegado, não fui nada. Fomos cinco amigos que fomos daqui de carro, tivemos de fugir para a Costa Nova e tivemos de dormir na Costa Nova, dentro do carro. As estradas estavam todas bloqueadas. Foi muito, olhe deu enquanto deu, enquanto eu pude. Depois com a história das doenças, é que foram dois na bexiga e extração total da próstata e agora, passado quase quatro anos, há dois anos atrás, foi-me detetado um novo tumor. Tive que ir fazer 35 sessões de radioterapia. A radioterapia manda uma pessoa abaixo. Até aqui ao cérebro/computador, vai buscar... Por acaso hoje está a funcionar bem.
P: Então diga-me lá, mas disse-me que tinha participado numa direção do sindicato ainda antes do 25 de Abril?
Sebastião Mota: Não, antes do 25 de Abril nunca participei. Participei em eleições. A lista foi proposta e o Presidente da Câmara, [anonimizado], cortou todos da Marinha por professarem ideias contrárias ao sentido de Estado, a bem da nação e uma coisa qualquer deste género. Quem não foi cortado foi o Presidente, talvez indigitado para presidente da direção esse [anonimizado], porque pertencia ao Concelho de Alcobaça e o Presidente da Câmara de Alcobaça não o cortou. Não, não, este homem é idóneo e é livre. Livres não éramos, não tínhamos nada de liberdade. Avança o plano B. Avança o plano B e o Presidente da Câmara estava a ir no mesmo sistema, cortar tudo. Neste espaço tempo de 15 dias, dá-se o 25 de Abril, avança ao plano A, do qual do qual eu fazia parte. E ainda lá estive 5 anos.
Na vida sindical passava-se semanas absolutas fora da Marinha. Não via os meus filhos, estava sempre em Lisboa. Em Lisboa negociávamos no Hotel Flórida, ali no Marquês de Pombal. Isto era cansativo, até que conseguimos o primeiro contrato coletivo de trabalho vertical em Portugal, foi o nosso, com técnicos de desenho, metalúrgicos, eletricistas, empregado de escritório, tudo. Passado um ano, não chegou a um ano, uma reivindicação da Covina. Só nomes pomposos a dar aos trabalhadores, era tudo técnicos, naquela empresa era tudo técnico. Aí a gente vai lá fazer um plenário e eu e o [anonimizado] passamo-nos dos carretos: Então vocês há meia dúzia de meses levaram 60 escudos de aumento per capita, um aumento para toda a gente, sem lutarem, e agora já querem sair do contrato coletivo de trabalho. Somos chamados a instâncias superiores. Demitimo-nos do sindicato. Eu não, eu nunca mais me esqueço disso. Eu quero ir ao Marinhense, ao Lisboa Marinha ver a bola e não quero que me chamem de traidor. Quero ir ao café e não quero que me chamem traidor. Eu sou natural da Marinha Grande, nasci lá, vivi lá, vocês estão aqui no quinto andar, sabem que o que aqui chega vem tudo deturpado. Eis o que é que eu disse.
[Reservado a pedido do entrevistado]
Aqueles candeeiros que eram feitos na Crisal em Alcobaça, vêm para aqui para a Marinha, para pintar, só 4 ou 5 pintores é que os pintávamos. Foi a única transformação que eu aceitei, foi mudar de facto da lapidação para a pintura e depois, quando a Ivima deixou de pagar salários, eu armei-me de armas e bagagens e fui trabalhar para casa sozinho. Tive a sorte de um nome esquecido da pintura aqui da Marinha, [anonimizado], que me disse: Não, tu vais para casa eu dou-te trabalho, que ele trabalhava em casa também. E foi assim a minha vida. Pronto, trabalhei, ganhava a minha vida, não era rico, mas também não estava como estou hoje. Porque hoje estou com 545 EUR na reforma, não tenho rigorosamente mais nada. Isto é a vida de um homem de 78 anos, que deu.... Mas estás bem com a tua consciência – dizem. Pois estou, então vai-te governar com a minha consciência que vez o resultado que tiras. E foi isso. No Império Intercalava, não estava constantemente na direção. Mesmo no sindicato. Cheguei a ser Presidente da Assembleia Geral do Império, enquanto estava no sindicato. Mas depois pronto, é a tal teoria, há que dar lugar aos novos. Mas os novos não aparecem e demos lugar aos novos no Império, aqui há dúzia e meia de anos, e tivemos muito maus resultados. Os novos deram cabo daquilo tudo. Ainda hoje se está a pagar a fatura do que eles se meteram.
P: Conte-me como foi a passagem do 25 de Abril no Império, nas coletividades?
Sebastião Mota: A passagem no Império aconteceu desta forma, eu tenho impressão que na altura eu era secretário. Sei que no dia 25 de Abril estava cá uma equipa do Grupo de Teatro de Campolide a montar a cena para uma peça de teatro que era Filopópus. No outro dia de manhã eu vou para a fábrica. Eu estava a trabalhar, mas tinha um rádio potente e com a autorização da administração com uma antena. Eu ouvia a BBC de Londres. Eu ia sempre às 7:30, mais cedo, porque eles emitiam às 7:30, à 1:30 e acho que era às 7:30 da tarde. Eu fui para a fábrica mais cedo e começo a ouvir aquilo, estava tudo em silêncio, os engenhos só se ligavam às 8. Há um golpe, há um golpe de Estado, começou-se a falar e pronto: Ninguém trabalha, ninguém pega ninguém…e eu pumba, para o Império, vou para o Império. Porque nessa manhã vinha de Lisboa uma camioneta com os nossos carpinteiros para montarem a cena, quando soube...Não houve espetáculo à noite, era no outro dia e teve que ser adiado, porque no outro dia toda a malta do grupo de Teatro de Campolide quis ir para Caxias, para a libertação dos presos políticos. E depois vieram, fizeram o espetáculo, aquilo foi uma euforia, não imagina, o Império, não cabia lá mais ninguém, aquilo era uma alegria incomensurável. E depois lembro-me muito bem de irmos a uma antiga pensão em São Pedro de Moel cear todos, com o grupo de teatro todo. Porque eles vinham cá muito, era o Joaquim Benite, o encenador. Eles vieram cá com o Filópopus, com o Dom Quixote outra peça. Porque nós tínhamos um grupo de teatro muito poderoso e muito famoso também na altura.
P: Então vamos lá detalhar as atividades do Império, quais é que foram as primeiras, quando reabriu?
Sebastião Mota: Ora bem, o Império, está localizado numa povoação muito sui generis, como já lhe disse que é o Engenho. Não é por acaso que se chama engenho, porque está lá implantado o parque florestal da Marinha Grande. O Parque pertence ao Ministério da Floresta. Eles andam a dizer que vão lá construir um museu da floresta, mas até ver nada. O Império, como já disse, vai fazer 100 anos, em 23. E no tempo do meu pai, e de outros amigos que o fundaram, a primeira sede do Império foi construída pelo sogro do meu pai, pelo primeiro sogro do meu pai. Porque o meu pai era casado, tinha um filho, o meu irmão, mas a esposa morreu queimada por uma faísca. Estava a fazer o almoço para ele, numa trovoada em Maio, fulminou logo. O meu irmão estava num berço ao lado, não lhe aconteceu nada. Mas o sogro do meu pai era um homem que tinha dinheiro e construiu, que não haja dúvida nenhuma que foi construída de raiz, ao lado da moradia dele, mesmo ao lado do parque do Engenho, um edifício de primeiro andar para ser a sede do Império, com o salão de baile, um corredor ao fundo com os gabinetes da direção, as casas de banho e uma escada em madeira para o bufete, porque a gente chamava o bufete antigamente. E é aí que funcionou o Império nos seus primeiros anos. As festas do Império do aniversário de São João eram feitas dentro do parque do Engenho, que mais ninguém aqui na Marinha tinha a capacidade daquilo. Já nesse tempo, os próprios serviços florestais tinham uns arcos em madeira, com luzinhas às cores. Isso eu lembro-me bem, de ver lá dentro das arrecadações, quando era pequenito e ia para lá brincar. A estrada do Engenho daqui do Largo do Luzeirão, por trás da Câmara, até à entrada da Mata, era tudo enfeitado com esses arcos. E as festas do Império passaram a ser feitas dentro do Parque do Engenho. E posteriormente cá fora, mesmo em frente à sede, porque aquilo são largos com árvores. Está lá uma fonte feita na altura do portão do engenho de 1850, com uma pedra enorme em granito.
E o Império já tinha ping-pong nessa altura. Há documentos e provas que mostram que nessa altura já tinha sido campeão distrital de ping-pong. Creio que em 1952 ou 1953 foi campeão do distrito Leiria. E depois tinham as tais contradanças, que era, eu tenho fotografias disso também na Casa do Império, também lá estão expostas, e teatro. Mirou-se sempre, sempre, sempre para a cultura. Na sede do Império, não havia espaço para ensaiar, mas tínhamos um amigo que tinha comprado uma fábrica que era da Philips. A primeira fábrica que a Philips, além da Holanda, montou na Europa foi aqui no engenho, que era a FAPAIX, que depois foi para Moscavide. Não sei se ainda existe em Moscavide se não. Aquilo tinha um salão, um barracão grande e era lá que o Império ia ensaiar as peças de teatro, muitas, muitas, muitas, peças de teatro. Aliás, há uma senhora que é secretária do La Féria agora no politeama, que a origem dela de teatro foi aqui no Império. Ela lá não faz teatro, é secretaria, faz parte da produção. Depois o Império teve Voleibol, Andebol, várias atividades. E começa-se a construir a sede atual, tudo ali pá pica, desde os garotos. Ali não havia diferença de idades, uns faziam umas tarefas, outros outras e foi-se construindo. Construiu-se um salão, não havia dinheiro para pôr janelas, pôs-se plátex a tapar para não haver corrente de ar.
P: Isso foi em que ano, a nova sede?
Sebastião Mota: Ora isto ronda 1960. Quando se começou a iniciar, eu devia ter uns 12 anos por aí assim, a partir de 1955. Começou-se a iniciar, foi em fases distintas, era só do dinheiro dos sócios e peditórios que se faziam. Entretanto, temos uma ajuda tremenda dos serviços florestais. Fomos falar lá com o engenheiro Amaral, que era um homem que superintendia toda esta desgraça e que desapareceu, que foi à mata e cedeu-nos todo o vigamento e todo o parquet, o que já era um luxo, aplicar parquet no chão. O Salão, eu acho que tem 16m por 35m, não 16m por 80m. O salão é enorme. Olhe sinceramente, nunca soube, nunca interiorizei quais são as medidas do Salão do Império. Foi-se construindo depois um palco, com a base em Madeira, mas à frente, a boca de cena, tudo em platex, tudo improvisado. Um bar ao fundo e tal, vivíamos assim. Fazíamos grandes festivais, até que aparece lá um rapaz como Presidente que teve ideias mais alargadas. É um proscrito, quase que é um proscrito, porque deixou as dívidas para os outros. Mas isso tudo se pagou. Mas a minha mantém-se. Se não fosse ele, o Império não tinha estas instalações, porque tem lá umas instalações... Temos dois bares, os bares têm o dobro deste salão. Temos um no primeiro andar e outro no rés chão. Depois temos o salão e ainda temos outro piso por cima, onde temos a sala de dança. Tínhamos grupos de ginástica, tínhamos as atividades, o teatro nunca morreu. Entretanto, as coisas foram naturalmente desaparecendo. As pessoas do Engenho foram também desaparecendo e o Império foi circundado por prédios de gente que vem de fora, que não é assim bairrista aqui como é a Comeira e outros lugares da Marinha. O Império está situado numa estrada que vai da Marinha para a Vieira, é um centro de passagem. A sede inicial era no centro do Engenho, junto ao parque Florestal. Agora não, agora está mais para Sul. E pronto, tem tido muitas dificuldades, mas o teatro ainda está vivo e é a única coisa que se pode dizer que neste momento está vivo no Império. Mais limitado, derivado da época que vivemos e pronto. Tirando isso, alugamos o salão para muitos eventos, muitos, muitos, muitos, que é o que nos mantém. Porque tínhamos um problema, é que gastávamos mais de 1000 EUR por mês numa funcionária que admitiram a contrato, com todos os encargos sociais, com tudo. Não sou contra a Senhora, o Império é que não lhe podia pagar. E os indivíduos que cometeram aquele erro, são dos tais que assumiram uma situação que não ponderaram bem. Conseguimos resolver o problema com ela, olhe, com a ajuda da pandemia. Aquilo fechou, ela foi para o fundo de desemprego. A gente propôs-lhe dar-lhe, enquanto ela andasse no fundo desemprego, o complemento de ordenado, para ter o ordenado completo e acho que já não se deve nada e a senhora vai para a reforma. Agora quem abre o Império são os próprios dirigentes, não todos os dias. Nós tínhamos tudo, seguros e caixa de previdência, tínhamos tudo, e isso custava-nos um balúrdio que a gente não tinha. O bar não tem movimento suficiente, porque o Império foi rodeado de bares, estão lá meia dúzia deles, e as pessoas dispersaram, uns para um lado outros para outro. Olhe, vamos, vão mantendo aquilo. O meu neto, por exemplo, anda lá, porque há uma rapariga que alugou-nos, já há uns anos, uma sala um bocadinho mais pequena que esta onde dá explicações. Essa está lá todos os dias. E alugamos aquilo imenso, a casamentos, batizados, festas...
P: O senhor Sebastião fez teatro?
Sebastião Mota: Só tive jeito para uma coisa, para ser ponto. Não tive jeito para mais nada. Eu fiz uma vez uma peça qualquer. Lembro-me perfeitamente de um colega que saiu a chorar de cena - a própria cena fazia chorar. Sai da cena e nos bastidores vimo-nos aflitos para o calar, para o consolar, para parar de soluçar, ele soluçava, soluçava. Mas de resto não tive jeito nenhum. O Império teve uma coisa muito boa também, que foi a revista à portuguesa, com as piadas locais, como é óbvio, escrita por autores lá do Engenho, que era o Arnaldo Cruz, que era barbeiro, o Padre Manuel e o Fernando Luz. E foi isso de facto que manteve o Império.
P: Havia muita gente ali do Engenho a participar no teatro?
Sebastião Mota: Muita, muita. E nas marchas! E na ginástica! O Império todos os anos ia à Sportinguiada, convidado pelo Sporting, às vezes tinham de ir dois autocarros, porque um não chegava. Mas eu veio-me agora à memória aquilo que eu lhe queria contar de antes do 25 de Abril. O Império tinha uma iniciativa, que era a Caravana da Amizade. A Caravana da Amizade, isto antes teve outro nome, mas a pide marrou. Porque a gente fazia uns prospetos a anunciar e era normalmente no dia 10 de Junho. Nós íamos para a mata, para a fonte das canas de bicicleta. Cento e tal bicicletas, com umas carrinhas de apoio com as pessoas mais de idade e com os morfes. Não havia discursos políticos, não havia nada, era só uma questão de camaradagem. Lá está, não podíamos empregar a palavra porque camaradagem era proibido. E chegámos a ser apoquentados por causa da Caravana da Amizade. E fizemos anos, anos, anos seguidos. Entretanto, outras coletividades começaram a fazer, a Ordem e o Casal Galego. Isto não há bairrismo nenhum aqui. Para mim são todos iguais, mas o que foi o facto é que foi o Império que deu pontapé de saída com muitos anos de antecedência. E isso enraizou-se na população do Engenho e toda a gente queria ir de bicicleta para a Fonte das Canas. Íamos por estradas da mata, estradas secundárias. Íamos conviver, levávamos os farnéis. Havia os mais cultos que diziam algumas coisas para a coisa também não ser em vão, mas não se podia também abrir muito, porque a gente infelizmente naquela altura não sabíamos quem é que andava no meio da gente, sabe? Porque tive isso no sindicalismo, tive isso no associativismo, tive isso na fábrica – bufos a controlarem. E depois, a partir das eleições de 1969, acentuou-se mais a perseguição. Mas muitas pessoas iam inocentemente. Eu também comecei a ir inocentemente, mas vi: Não, isto tem uma finalidade, é convivermos e elucidarmo-nos uns aos outros para procurarmos trocar impressões sobre o que estava bem, o que estava mal, não só no clube, como no lugar. E isso despertou o interesse à PIDE também.
P: Acha que essas iniciativas foram importantes para a consciencialização política?
Sebastião Mota: Foram, sem dúvida, foram, foram. Foram, porque embora praticássemos jogos tradicionais para matar o tempo, ia-se à praia, dava-se banho, vinha-se, almoçava-se e depois as pessoas mais de idade falavam sobre o clube e metiam umas farpazinhas. Porque as pessoas também tinham muito medo, como é óbvio, tinham de acautelar. Porque a PIDE aqui na Marinha... não era tudo perfeito também. Também havia ali muito, então nos locais de trabalhos. Infelizmente, aconteceu muito. É assim que me lembro grosso modo da atividade antiga do Império. Depois houve aquelas modalidades desportivas passageiras, o box, aquilo não se chamava box, era outra modalidade. Disputaram aí campeonatos nacionais, mas passado dois anos morreu tudo. Eram coisas sem continuidade, depois vinha outra direção, com outro iluminado e lembrava-se de: Olha, vamos fazer isto. Tivemos uma boa equipa de andebol, não tínhamos era estrutura para seguir. Foi tudo para o Sporting Clube Marinhense que já tinha pavilhão. Nós tínhamos que treinar na rua, à chuva e ao frio. Chegávamos a ir jogar à Maceira, em Leiria, e claro o que é que nos acontecia. Tínhamos de pedir para nos irem lá pôr, nós nem bicicletas tínhamos. A maioria de nós nem bicicletas tinha e íamos lá, na altura tivemos que vir a pé porque o homem que lá nos foi por com uma carrinha esqueceu-se de nos ir buscar. Tivemos que vir a pé, cheios de fome. Tivemos uma boa equipa de voleibol. Daí foi um para o Benfica, foi Internacional do Benfica e ainda cá está, é o Moisés Nobre. Tínhamos Atletismo. Eu não tomei apontamentos nenhuns e agora isto é que está a vir-me à memória. O Império tinha uma grande prova anual de atletismo que era chamada volta aos Sete. Tínhamos uma equipa com rapazes e raparigas, alguns trinta a competir, mas depois as pessoas vêm com novas ideias, uns cansam-se, outros desistem. E depois, como sabe, as questiúnculas de bairro também são mais que muitas. Por vezes, um indivíduo sacrifica-se, trabalha, trabalha, trabalha e ainda é criticado e mandado abaixo.
Ficheiro de áudio
MVI_0667.m4a
Transcrição
P: No 25 de Abril o Império não esteve envolvido em nenhum daqueles movimentos de auto-organização, para o saneamento ou...?
Sebastião Mota: Teve, havia as comissões de moradores. Que eu me lembre, depois do 25 de Abril, era na noite do 25 de Abril, o Império chegou a participar, porque a Câmara desafiava as coletividades, num cortejo rumo à praça para nos juntarmos à meia-noite. E eu lembro-me que o Império levava cortejos a pé que era um espetáculo e com música. Juntavam-se meia dúzia, porque lá no nosso lado houve sempre o hábito de conjuntos, música de baile, nns a tocar trompete, outros a tocar saxofone e a gente vinha a marchar por ali acima. E foi lindo enquanto durou.
P: Foi criada alguma comissão de moradores lá no Engenho?
Sebastião Mota: Foi, foi. Sempre houve comissão de moradores.
P: E o que é que fizeram lá o Engenho?
Sebastião Mota: Fizeram as coisas essenciais na altura, auxiliavam a Câmara e a junta nalgumas tarefas, mesmo as pessoas a trabalharem. Não podia ser durante a semana, mas trabalhava-se ao sábado e ao domingo.
P: O Sr. Sebastião participou?
Sebastião Mota: Não, porque eu nessa altura estava praticamente fora da terra, tal como lhe disse, estava no sindicato. E lá vou eu outra vez para a parte do sindicato. Antes do 25 de Abril, havia cinco - Lisboa, Porto, Marinha Grande, Aveiro e Figueira da Foz. Fundimos tudo no sindicato dos Trabalhadores da Indústria vidreira, que ainda existe hoje. Eu por acaso até era o tesoureiro do sindicato, por isso é que estou rico. Comprámos dois apartamentos na rua da Firmeza, no Porto, e mandamos tirar as paredes de dentro para ficar com uma sala boa de reuniões. Porque a sede do sindicato Vidreiro do Porto era num vão de escada na rua da Santa Catarina. Estava na rua mais famosa, mas não tinha condições nenhumas. Comprámos as atuais instalações na calçada da Estrela, em Lisboa (entretanto já compraram outro) e comprámos esta sede aqui na Marinha. A delegação da Figueira da Foz deixou de interessar e ainda tínhamos a de Oliveira de Azeméis. Em Oliveira de Azeméis criaram-nos problemas de toda ordem, de nos quererem matar. Eram populações não tinham nada a ver com o vidro, da indústria de chapelaria, essencialmente mobilizados pelo [anonimizado], que era o dono do Centro Vidreiro Norte Portugal. E passámos bem, andámos a fugir à frente de tiros. E há um episódio que nunca mais me esqueço. Íamos daqui de madrugada, de táxi, para fazer um plenário no Auditório da escola Industrial de Oliveira de Azeméis. Tínhamos autorização do diretor, do Padre, que tinha dito: Não Senhor, isto está cedido. Chegámos lá e havia gente à nossa espera, numa bomba de gasolina antes de Oliveira de Azeméis. Eles perguntaram e nós respondemos: Nós vamos de táxi. Mas nós estamos a responder que vamos táxi para sermos atacados ou quê? A gente andava assim. Parámos e vêm dois que nós conhecemos: Fugi já para o Porto, fugi já para o Porto, vocês não podem voltar atrás, fugi para o Porto. Então vamos fugir para o Porto porquê? Eles deram cabo do piano todo. Deram cabo do piano... – pensámos que fosse no ginásio da escola, onde ia ser a reunião. Estão, eles deram cabo, que paguem. Mas o piano era o nome, era a alcunha, de um delegado sindical nosso. Deram-lhe com uma corrente na cara, que lhe deu cabo da cara toda. Já estava para o hospital. E a gente ignorava que ele tinha a alcunha de Piano. Olha, deram cabo do piano que paguem, e não conseguimos fazer o plenário. Depois decidimos: Fechamos a sede de Oliveira de Azeméis. Quando vocês precisam de reunir,, Oliveira de Azeméis vai reunir ao Porto. Temos condições, metem-se num táxi e vão ao Porto. O nosso sindicato era poderoso na altura. Nós tínhamos uma caixa de previdência própria. Era a Caixa de Previdência do Pessoal da Indústria Vidreira. Os trabalhadores descontavam +1% por mês para ter direito a medicamentos e tudo mais. E o que é que, antes do 25 de Abril, nesses anos antes, o que é que essa gente fazia ao dinheiro? Compravam imóveis na Avenida de Roma. Eu cheguei a andar, eu com técnicos, a ver os bens que o Sindicato tinha. Mas a Caixa do pessoal da Indústria Vidreira só funcionava com o aval do sindicato compreende? Mas que é isto? Meia Avenida de Roma, prédios degradados, para que é que a gente quer isto? Entretanto, houve alguém que se encarregou de ficar com aquilo tudo. Foi o presidente da caixa de Previdência daqui da Marinha Grande, na altura, que era o [anonimizado], açambarcaram tudo da Caixa Vidreira para a Caixa Nacional de Pensões. Ficámos a zero. Nós tínhamos património e ficámos sem nada, tanto que em Lisboa estamos muito bem instalados também.
P: Quais é que eram as suas responsabilidades no sindicato?
Sebastião Mota: Era tesoureiro. Fui sempre tesoureiro. Era tesoureiro, mas tenho que dizer que tinha um economista e um chefe de serviços atrás da Secretária que me punham a papinha toda na frente e me explicavam tudo. E eu assinava como é óbvio, quando não tinha capacidade para, como é que se chamavam, os balancetes analíticos e aquelas coisas toda. Eu não tinha capacidade para isso, mas tinha confiança nas pessoas que trabalhavam comigo. O nosso economista e técnico de contratação era o Amândio Teixeira Cardoso. O nosso advogado aqui na Marinha era o doutor Guarda Ribeiro, outro homem de excelência e muito sério. E era assim que nós trabalhávamos.
P: E depois intervinha em termos de mobilização?
Sebastião Mota: Sim, sim, ia a plenárias às empresas. Por isso é que eu dizia, minha Senhora, nós tínhamos sedes em Lisboa e no Porto, tínhamos diretores a tempo inteiro em Lisboa e no Porto, mas para apagar fogos tinham que ir os bombeiros aqui da Marinha.
P: Quais foram os fogos que teve que apagar?
Sebastião Mota: Olhe, uma vez na Covina, estávamos lá em Santa Iria da Azoia, lá na coletividade local a fazer um plenário, e lá aquela rapaziada do MRPP tenta invadir o plenário, e ainda nos mandaram pedras. Outra vez, foi na Voz do Operário. Nós estávamos atacados pela esquerda, pela direita, pela extrema esquerda, não havia ninguém que não chutasse na gente, mas a gente chegava para isso tudo. Na escadaria da Voz do Operário, há um gajo que vem para mim e que me diz, eu não sei o que é que ele me disse. Mando-lhe um sopapo, só o vi dar a cambalhota. Isto tinha que ser assim. E depois, procedimento incorreto. Querem que nós sejamos Jesus Cristo. Leva numa face oferece a outra. E eu não prestava para essas coisas. Por isso é que olha: Já tens 5 anos disto, já aprendeste o suficiente, vai lá para o teu Engenho trabalhar, trabalhar e não era brincadeira, das 8 da manhã às 8 da noite, que éramos obrigados. Estou a mentir. Isso foi antes do 25 de Abril, trabalhar-se até às 8 da noite. Fazíamos 11 horas por dia, tínhamos 50 minutos para almoçar. Que era das 8 ao meio-dia e meia hora. E da uma meia às 5. Parávamos para tomar uma buchazinha, um quarto de hora, e depois até às 8.
P: Diga-me uma coisa, havia algum tipo de solidariedade informal nas fábricas, por exemplo, grupos de doentes. Tenho ouvido em algumas regiões do país?
Sebastião Mota: Havia, havia, antes do 25 de Abril. Havia uma coisa que se usava aqui muito na Marinha, que era as subscrições. As subscrições a favor de....
P: Como é que funcionava?
Sebastião Mota: Era andar a pedir com uma lista, o nome. Quanto é que dás? 25 tostões, tal, tal, tal e depois entregar à pessoa. Olha, o resultado é isto. Quando havia alguém que precisava, nós tínhamos conhecimento, porque naquela altura nem havia oportunismo. As pessoas nem sabiam ser oportunistas. Eram pessoas sérias que tinham a confiança da Comunidade e pronto trabalhava-se assim. Agora, infelizmente... E tínhamos também, como eu disse há pouco, a Caixa Sindical de Previdência que pagava-nos os medicamentos na íntegra.
P: E quando estavam doentes, pagava o ordenado?
Sebastião Mota: Não, não.
P: E havia ajuda entre os colegas nas fábricas?
Sebastião Mota: Era só entre os colegas, a empresa não pagava rigorosamente nada.
P: E essa ajuda entre os colegas era só estas subscrições ocasionais ou tinham uma coisa mais formal?
Sebastião Mota: Não era só estas subscrições. E não era só para aí, até para os presos políticos. Eu participei em dezenas e dezenas de peditórios. Tinha que ser, não se nega. Havia uma tática, havia um homem que nós tínhamos muita confiança, havia vários, mas um era o Manuel Baridó,
o sítio preferido dele, para nos encontrarmos com ele, para lhe levar os 100 ou 200 mil reis, era no café dos ricos, na Marinha, no café cristal. Era onde parava o Presidente da Câmara e essa canalha toda da pide. E aí eu: Ó Manel estás-me a mandar aí ter contigo ao café? – a horas diferentes, não íamos todos juntos. Estás-me a mandar ir ter contigo ao café Cristal? Não te rales, ali é que funciona bem, estamos protegidos. E são histórias.
P: E Imprensa clandestina antes do 25 de Abril?
Sebastião Mota: Havia o Avante só. Eu recebia, chegava-me a chegar às mãos dentro de uma cana, uma cana assim, enroladinho lá dentro, parecia o testemunho daquela prova de atletismo, passar o testemunho. Isso era o que me acontecia. Eu na minha secção, na altura já éramos 75 lapidários, fiz-me assinante da República, era o número 21. Levava-a para casa, pagava 25 tostões e eu não tinha muito dinheiro. Não tinha muito dinheiro, não tinha nenhum dinheiro, todo o dinheiro do ordenado tinha que o dar à minha mãe. Lia-o de fio a pavio e no outro dia levava-o para a fábrica. Toda a gente lia a República. Foi um serviço que eu fiz. Gente com mais poder económico que eu não fazia isso de certeza absoluta. Não faziam, nunca fizeram, nunca tive conhecimento. Mas lá está, como costumo dizer, nessa altura dava gozo. Eu não sei se o termo será o indicado, mas eu penso que dava gozo um gajo lutar, ter com quem lutar. O que é que se faz agora? Chamam-se nomes aos políticos, bate-se nos polícias, os polícias nem batem nas pessoas. Antigamente era o contrário. O 28 de Outubro por acaso este ano foi comemorado, foi criado aqui um grupo de que eu faço parte também, o Grupo Antifascista Frente 18 de Janeiro.
P: Isso foi em que ano?
Sebastião Mota: Isto foi em 73. Que eles vêm aqui com a intenção de prender a juventude, os jovens mais ativos. Ali, conhece a Marinha? Está a ver onde está a estátua do vidreiro (está agora aí uma polémica por causa disso, parece que a vão mudar para o lado), em frente há um edifício, havia ai um banco, um grande café, que era o Panorama, ainda ali está uma casa de modas, que é o Sonho da Moda? Começámos a arrancar, só custou a arrancar o primeiro paralelo, daqueles quadrados. Ai, eles deram, mas você pensa que eles não foram bem aviados para Leiria? Ai foram, foram. É evidente que prenderam um ou dois bodes expiatórios, os mais ativos. No outro dia é julgado um aqui na Marinha. Bloqueamos logo a Marinha toda, ei meu Deus. E quando me vêm dizer, olha que Fulano, e vieram-me dizer a mim. E eu não tinha responsabilidades políticas nenhumas, não era controlado, bom era controlado no mínimo, fazia aquilo que me orientavam, mas diretamente do Partido Comunista não, era sempre por interposta pessoa. Vieram-me dizer que fulano foi visto atrás do Tribunal a falar com o Pinto Galante. O Pinto Galante era o diretor da PIDE de Leiria. Isso para mim foi uma faca no coração. Depois constou-se. Depois vínhamos de uma reunião da intersindical com o Presidente dos Metalúrgicos ao meu lado, chegámos às Caldas parámos, quando vínhamos à hora do jantar parávamos num snackbarzinho para comer um bifinho lá na frigideira, e começámos a encontrar pessoas da Marinha: Olha, mas a Marinha deslocou-se para aqui hoje, o que é que se passa? Era malta, gente do partido e do MDP/CDE, porque o [anonimizado], que ia no táxi comigo, que era Presidente dos metalúrgicos da Vieira, era o [anonimizado] da PIDE. E depois, confessou também: Olha, o [anonimizado] também dá informações. Isso já a gente sabe, porque o [anonimizado] era do sindicato e era da caixa de Previdência. Foi expulso de tudo. Mas ainda houve quem passado uns dois ou três anos, quem quisesse reavivar a Memória. Foi o [anonimizado], que era do PS. E eu disse-lhe: Olha doutor, não penses em fazer uma coisa dessas, é um erro político terrível. Queria dar o nome dele a um salão no Operário. E eu assim: Então dá o nome de um homem que traiu tudo? Ele tratava-me por senhor, ele era filho de um dono de um café aqui da Marinha. Oh Mota, eu estive a pensar melhor, você tem razão. Opá, esqueça, deixe estar isso no baú do esquecimento. Esqueça, não se meta nisso. Que a gente não sabia, não sabia o que é que saía. E a mim saíram-me algumas. Felizmente nunca fui preso, mas estive nessas tais reuniões preparatórias para a reunião da direção dos sindicatos antes do 25 de Abril. Eu cheguei a ter que fugir de motorizada, que eu chegava a Casa lá nos subúrbios do Engenho e via o carocha da PSP escondido, o carro da polícia. E não havia telemóveis para falar à mulher nem nada, era uma aflição. Eu ia para a Vieira com o [anonimizado], coitadito já morreu, cada qual na sua motorizada dormir a casa da sogra dele. Mas pronto, além disso eu estive preso depois do 25 de Abril. Numa reunião na Barbosa Almeida, em Avintes, quando o Presidente da região Militar do Porto era o [anonimizado], um facho. Entendem que a gente estava a fazer campanha subversiva, isto depois do 25 de Abril. E chama a gente, manda a gente, tropa, numa carrinha para o quartel-General do Porto. Os senhores ficam aqui em reunião permanente, estão em reunião permanente comigo. Estivemos lá dois dias e meio primeiro que fôssemos libertados. Esta não lembra a ninguém, esta, por isso é que festejas hoje o 25 de Novembro. Não me esqueço destas coisas todas. Isto tudo já estava a ser orquestrado aos poucos. E esta é a história da minha luta, já pareço o Raul Solnado [ri-se].
P: Diga-me, houve uma parte que não falámos, e podemos não falar, mas é a participação na guerra Colonial
Sebastião Mota: Sim, sim.
P: Houve uma pessoa que eu entrevistei aqui outro dia que disse que mesmo lá criou grupos de futebol, procurou de alguma forma promover algum relação.
Sebastião Mota: Sim, sim. Eu tenho fotografias e tenho a faixa de campeão da região leste de Bafata de futebol de Salão. Tenho a faixa de campeão. E está emoldurada, protegida com vidro. Tenho lá na cozinha independente onde como. O que é que a gente lá faz? Ainda faz hoje oito dias, fui daqui com quatro amigos à Lourinhã, a casa de um camarada que esteve comigo na Guiné. Produz bens agrícolas e vinho e tudo: Epá venham cá. E vai lá a uma praia, não sei se já conhece a praia da areia branca, pelo menos já ouviu falar. Ao lado há uma praia selvagem que é Paimogo. Aquilo dá do bom e do melhor, navalheiras e polvos e moreias e ele pôs lá um banquete para a gente. E eu disse, disse aos outros que estavam: O [anonimizado] passou três meses no Mato sem vir ao quartel. Eu passei os 22 meses no quartel, eu nunca saí porque eu era escriturário. Mas não tinha nada que ir para a Guiné eu. Eu tinha que ser livre da tropa por amparo de mãe. Como o meu pai faleceu, a minha mãe foi-lhe detetada a angina do peito, sofria muito com aquilo e estava proibida de trabalhar. E eles levam-me. Tiro a especialidade. Vou para o quartel-general para Tomar, estava muito bem no Conselho administrativo rodeado de gente excecional. O Presidente do Concelho de Administração era um coronel muito amigo do meu chefe de secção de pintura aqui na Marinha, que era o senhor [anonimizado]. Eu estava ali, era jogar ping-pong e futebol salão. Até que me vêm buscar de Castelo Branco e já não pude voltar. Despedi-me da minha mãe por telefone. E como imagina, um homem fica completamente esfrangalhado. Lá vou eu com o Capote para Castelo Branco. Cheguei a Castelo Branco não era nada disso que me tinham dito. O embarque foi passado um mês. Podia ir para casa 15 dias. Mas eu devia ser livre por amparo de mãe, mas mesmo assim na tropa eu fui roubado, fui raptado, porque eu e mais nove, fomos para o quartel-general. Eu não era o primeiro, mas era o segundo e começo a ir à frente do quinto, do Sexto e do Sétimo, que estavam atrás de mim na classificação.
E depois na Guiné é que eu percebi como é que se faziam as maroscas. Os primeiros sargentos eram os gajos que ganhavam mais dinheiro daquilo. Houve um gajo que eles mandaram embora, a troco sabe-se lá de quanto, e foram buscar-me a mim. E eu fui, estive lá. A única coisa que me resta é que nunca ninguém desconfiou de mim, nem na vida civil nem na vida militar, porque os relatórios secretos era eu que os fazia com o capitão. Os dois sozinhos num gabinete, como estamos os dois aqui. E o primeiro sargento nunca pôs o olho naquilo. Mas eu dizia-lhe assim: Oh General, quando eu cheguei a Castelo Branco e me apresentei você me perguntou, de onde é que tu és rapaz? Sou da Marinha Grande meu capitão. Opá, já só me faltava isto. Eu disse isso? Então não disse, não se lembra? Não, nós tínhamos muita intimidade, agora ele era General. Aliás, lá em Bafatá o nosso esquadrão tinha dentro do aquartelamento um ringue em cimento para jogar. Eu cheguei a jogar ténis com bolas da Dunlop, raquetes da Dunlop e redes da Dunlop. Deu-se o dia que eu jogava ping-pong e sabia a marca das coisas porque a maioria da rapaziada que lá estava não sabia nada daquilo e depois lá está a tal história, em terra de cego quem tem um olho é rei, brilha-se sempre, não é? Já se sabe, agora a raquete já sabe dar, embora o ténis de mesa seja muito diferente, mas há as noções. Eu gostava muito de andar pelas tabancas. Nunca provoquei ninguém, nunca chateei ninguém. Mas havia lá...eu fui mobilizado de Castelo Branco e 70% da unidade era gente das Beiras. Gente que o melhor que lhes aconteceu foi darem-lhes um colchão de luso-espuma na Guiné para dormir e terem garfo e faca e prato à frente para comer. Que aquilo era gente que vivia, coitados andavam lá nos campos, na pastorícia e pouco mais. E depois havia os outros os mais vivazes e, peço desculpa os mais xicos espertos, que eram os de Lisboa. Mas tenho grandes amigos. Havia lá um que estava de técnico de som na noite do 25 de Abril no Rádio Clube Português, o [anonimizado]. Esse gajo... adoramo-nos um ao outro. E morreu há pouco tempo um da Amadora. E é isto, você falou-me da tropa e os grandes amigos que eu tenho são da tropa. É que a gente vai lá, estamos ali dois anos a gravar aquilo no Coração. Como é óbvio, há lá outros que eu quase não os conheci. Eu tinha o meu núcleo de amigos, todos fazemos, é na escola, é em todo lado. Ai vínhamos cá abaixo, porque Bafatá já tinha três restaurantes, e vínhamos cá abaixo, quando tínhamos dinheiro para comer e tal. Eu ai ia tendo um problema, olhe foi um rapaz do Diário de Notícias que o teve, o [anonimizado], nunca mais me esqueço, já morreu. Era tipógrafo no Diário de Notícias. Quando a comida não agradava, a gente tinha que se manifestar. E eu sabia que tanto o praça, que tinha tanta verba para a alimentação diária como o General, o Governador General, era o Shultz na altura, depois já foi o Spinola. Tinham 24 escudos, o soldado tinha 24 escudos também. Porque é que os oficiais e sargentos têm messes e a gente ia.. eu aí meti a minha colherada por ser da Marinha, ser refilão, levava já um bocado da injeção da vida e há um sábado que nos servem arroz de caril com atum. A gente já não podia ver aquilo. Eu ainda estava na Secretaria. Eu normalmente ia sempre, tinha que fazer a ordem de serviço atrasada, mas guardavam-me a refeição. E chega lá um barulho e o capitão não estava. O que é que se passa? Epá, há um levantamento de rancho, vou já para lá. O Alferes, por acaso hoje é muito meu amigo, meu e dos outros, naquele dia, nunca mais me esqueço, que foi no dia 20 de maio de 1967, um sábado ao jantar. Ele puxa da walther: tau, tau, tau.
A malta gritava: Não presta! – a bater tachos, porque pegada ao nosso quartel havia o comando do agrupamento onde estava um coronel. O alferes [anonimizado] (angolano, preto, professor e um gajo com uma classe, da área do MPLA, do Agostinho Neto), começa a levantar a voz e começam-lhe as terrinas a cair nas trombas e na farda, ele era um homem de arroz. Tudo para as casernas sem comer. No outro dia de manhã, eram sete da manhã, era domingo. Domingo para quem estava no quartel, porque para quem andava no Mato não havia domingos. Uma dornier a esta hora? Dornier são aqueles aviões pequenos com três gajos, o piloto e três gajos de gabardine, isto é uma vergonha, óculos escuros e chapéu, em Bafatá que às 7 da manhã já fazem uns 30 e tal graus de calor. Pimba, Pimba, interrogatórios, interrogatórios e interrogatórios. Como é que começou? Chegaram a esse [anonimizado] não sei como. Foi para o Paiol da Pólvora preso e no outro dia para Bissau. Esteve preso em Bissau, mas depois não conseguiram encontrar provas. Mas ficaram lá e foram os dois de Lisboa. Foi o [anonimizado], que trabalhava numa loja de modas em Alcântara, e o [anonimizado]. A senhora não se admire de eu me lembrar dos nomes deles todos. Estão todos aqui. Era todos os dias dois anos ali com os mesmos nomes. Já morreram ambos. Ficaram lá.
Eu tenho um grande amigo, ali de Aveiro. Tenho lá dois, mas o [anonimizado] tem 80 anos e é professor doutor. Ele foi professor na universidade de Cambridge, de Lisboa, do Porto e de Aveiro e tem um gabinete de estudos da mineralogia da Ria de Aveiro. É ele que dá assistência, estuda a Ria de Aveiro. É evidente que está cheia de engenheiros. Agora eu assim: Então Lages, mas ainda trabalhas. Epá, trabalho. Mas ele ao pé de mim, parece meu irmão mais novo, com 80 anos. Um homem Atlético que fez sempre desporto, era bruto como um raio a jogar à bola, mas isso era elas por elas. E foi com esta gente que eu vivi, convivíamos muito. O futebol de salão então era a paixão que havia. E em Bafatá o Sporting Clube de Bafatá já tinha já tinha uma piscina, um cinema e um ringue. E o ringue quando chovia muito era outra piscina. Eram duas piscinas no Inverno, no tempo das chuvas, das monções. E nós fazíamos muito futebol de salão. Depois também joguei aqui nos veteranos aqui do Estrela do Mar, joguei aqui muita vez neste campo. Ainda joguei 35 anos à bola na Comeira.
P: E diga-me uma coisa, teve alguma responsabilidade na autarquia ou na Junta de Freguesia?
Sebastião Mota: Estive na autarquia. Fui deputado municipal. Mas depois era muito, eu não tinha tempo, queriam-me. Porque naturalmente sabe, quem está à frente de uma coisa, normalmente é empurrado para outra. Este gajo está-se a safar ali também é bom para acolá. E eu ainda estive em dois ou três mandatos na Assembleia Municipal. Depois, houve um certo divórcio. Sou militante do
Partido, não renego nem nunca renegarei, mas não sou praticante.
[Pede para desligar]
Sebastião Mota: Eu nunca mais tinha falado com o homem, quando o Jerónimo de Sousa veio à Marinha Grande. Esperei que ele saísse, desse uns beijinhos. Então estás bom Jerónimo? Então como é que estás? E o Pina, tens visto o Pina? Eu já estive em casa dele lá em Benavila. Olha, amanhã tenho um comício em Avis e vou estar com o Pina. Então olha, dá-lhe um abraço. Algumas pessoas daqui da Marinha vieram logo a correr. Não sei se estavam com receio de alguma coisa que eu estava a contar ao Jerónimo Sousa, mas eu estava a única e exclusivamente a falar de coisas pessoais entre nós os dois, da nossa vida que passamos. Efemeramente, foi efemeramente. Mas não, mais nada. A partir daí, pronto, eu segui o meu trilho. Vou colaborando onde posso. Para já estou só com os reformados. Era para ir amanhã com reformados a Santarém, mas não posso. Tenho de estar com a minha mulher no hospital, a minha casa parece Alcoitão, queixa-se um para cada lado, é um manicómio.
P: Então e nos reformados, quando é que começou a participar?
Sebastião Mota: Olhe, comecei a participar como aluno de informática. Para aí há, sei lá, uns 7 ou 8 anos. Ai tenho que me matricular outra vez que eu já me esqueci de tudo. Pratico pouco. E depois fui abordado em minha casa, três elementos da direção da altura que entendiam que eu devia ir para Presidente da ASURPI e eu disse: Eh pá, não, Presidente da ASURPI não, porque tenho trabalho aqui em casa, porque eu para trabalhei em casa vinte e tal anos e ainda havia que fazer e eu não posso estar a abandonar isto para ir para a ASURPI, tem que ir para uma pessoa disponível. Eles foram lá duas vezes. Em relação ao meu nome desiludam-se. Poderia eventualmente, disse, ser Presidente da Assembleia Geral. Olha, em boa hora que eu fui para lá, mas pus como condição: Quem escolhe os meus secretários sou eu, não quero ninguém imposto. Sabe como é que isto funciona. Eu escolho os meus dois secretários. Um hoje ainda é meu Secretário e o outro é Presidente da Direção, porque eu disse: Não, tu sais daqui vais para Presidente da Direção. Tem feito um bom trabalho. Fizemos um bom trabalho na altura, porque aquilo havia lá uns certos desaguisados. As pessoas não se entendiam. Eu costumo dizer, somos duas vezes crianças. Às vezes tomamos atitudes menos corretas, mas eu cheguei a pacificar situações de aperto de mão. Não há nada escrito, não quero nada escrito em atas de assembleias, está aqui um aperto de mão entre cavalheiros e está assumido. E assumiu-se e resolveu-se felizmente, aquilo está muito mais desanuviado do que estava na altura que eu para lá entrei. E continua pronto e há amanhã uma reunião, a primeira reunião entre o Conselho Pedagógico, os alunos e os professores. Prevê-se para Dezembro arrancar, se a situação não descambar outra vez, vamos lá ver. Eu tenho muita confiança, como disse atrás, naquelas duas pessoas que convidei para lá e que aceitaram, que a direção posteriormente aceitou e que vão assumir. Para já são pessoas que têm conhecimento. Um, eu nem sabia e que me disse: Opá, eu dei sete anos aulas ali no ISDO. Oh Victor vê lá tu o que é que eu sei. Sei que tu és licenciado em recursos humanos e mais não sei. O Paulo é professor doutor também. Perante os próprios alunos, quer queiramos quer não, tem que haver o Dr., para haver um certo respeito. Não é que me faltassem ao respeito, eu é que acho que não tenho nem conhecimentos nem nada para estar a ocupar. Foi um cargo, um caso de emergência durante um ano. E depois fomos apanhados pela pandemia e não fizemos nada. Todos os projetos que tínhamos, tínhamos variadíssimos projetos em carteira para desenvolver, tivemos que fechar, Abrimos a sede dos reformados esta semana, a semana passada. Nós tínhamos ali uma componente social, porque temos muitas senhoras a colaborarem e todos os dias está um casal de serviço ao bar. Há dois bares, há um onde estão uns cadeirões e a televisão e tudo mais. E há outro que é para os homens, mais jogos de cartas, de dominó e onde h´ uma cozinhazinha onde se fazem umas bifanas, fazem-se uns pastéis, fazem-se umas petingas fritas, uns carapaus fritos.. Chegámos a detetar que quatro pessoas, a única refeição quente que comiam era ali, por volta das três da tarde. E então nós até decidimos cobrar um preço simbólico, porque víamos que as pessoas de facto eram necessitadas. Dois já morreram durante esta pandemia, agora ainda lá não fui desde que aquilo abriu. Tenho que lá ir amanhã, porque de facto há, como disse, à tarde a reunião da universidade e eu quero estar presente. E a minha vida resume-se a isto.
P: Então mas o que é que o motivou a ter tanta participação? Tanta dedicação, tantas horas de trabalho voluntário, o que é que o motivou?
Sebastião Mota : O que me motivou? Concretamente não sei dizer, acho que as atividades. Antes do 25 de Abril, dar o corpo, como se costuma dizer. Eu desempenhei tarefas no Império que ninguém agora dos mais novos imagina. Desde a coletividade lá em baixo, eu ainda fui da direção da Coletividade lá em baixo, na coletividade antiga. E havia um homem, um homem que era industrial, industrial não, tinha uma loja de móveis e também faziam alguns móveis, que me dizia, era o [anonimizado]: Oh Mota, e quando a gente tinha que descer com o cântaro, porque tinha uma piazinha para lavar os copos - era um cântaro de barro para amparar a água de lavar os cálices e os copos, esgoto não havia. As cervejas bebiam-se pela garrafa e as gasosas dos pirolitos. Vínhamos com um cântaro de barro grande, os dois, debruçados para vir despejar à casa de banho. Desde isso, foi tudo, agora está tudo.. está mais moderno por uns lados, está pior pelos outros.
P: Mas só para terminar esta questão da motivação, era o desafio das atividades....
Sebastião Mota: Era, era e o amor e o amor. Sem o amor à causa, não se vai lá. E eu tinha muito amor ao Império. Aliás, eu tenho um defeito, por isso é que eu procuro não me ligar a mais coisas. Onde eu me ligo tenho que ir. Eu meti-me em coisas no Império quando era Presidente... Meteu-se-me uma vez na cabeça, lembra-se do conjunto Victor Gomes e os gatos negros? Fizeram um filme. Mas acabam de fazer um filme, o filme passa aqui a Marinha, passado um mês estavam a atuar no Império. Consegui o contato do agente deles. Foi um balúrdio que eles nos levaram, mas nós ganhámos muito dinheiro, tinha que ser portas abertas. Uma vez os Trovante, a seguir ao 25 de Abril, tivemos que montar uma bancada, uma bancada falsa, porque não conseguíamos suportar tanta gente. E pronto eram essas coisas. Eu tinha gosto também de inovar. E gostava de inovar, não sei se também se era das profissões. Porque eu tenho peças em casa, qualquer dia já me passou pela cabeça dar para o museu do vidro, mas ninguém me conhece e deixo lá estar para casa para os meus netos. Eu dava-me gozo o inovar, isso dava-me gozo. Então quando alguém me dizia: Mota, tens de fazer isto - para mim era uma ordem. Eu fazia. Nunca procurei aldrabar em nada e a opinião que as pessoas têm de mim, cada qual tem a sua, como é óbvio. Nós não podemos impor nada a nosso respeito. Mas penso que cumpri no tempo que cá andei, e cá ando, porque não estou para me ir embora já. Penso que cumpri bem com o meu dever. É evidente, há aquela história do sindicalismo que cria muito animosidade. Eu sou do tempo da madisca da carta aberta e disso tudo que esse Mário Soares e esse Gonelha fizeram antes de vir a UGT. E o meu nome chegou a ser alvitrado para representante dos Vidreiros na CGTP. Quando isto aconteceu, foi na altura que eu me afastei do sindicato. Caiu tudo por terra e olhe, cá vou vivendo.
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Junho de 2021
P: Então podia-me dizer o seu nome todo?
Carlos Alberto Barroca: Carlos Alberto Barroca.
P: Nasceu aqui na Covilhã?
Carlos Alberto Barroca: Na freguesia de Santa Maria Maior.
P: Em que ano?
Carlos Alberto Barroca: 1945.
P: Estudou aqui na escola?
Carlos Alberto Barroca: Estudei a primária, porque só tenho a primária. E depois fui trabalhar, aos 13 anos.
P: Para quê?
Carlos Alberto Barroca: Em diversas coisas, porque antigamente nós não começávamos logo. Por exemplo, isto era uma cidade de lanifícios e eu nunca gostei de lanifícios. Ajudante de eletricista, assim coisas...
P: E depois, qual é que foi a carreira que seguiu?
Carlos Alberto Barroca: Depois fui para a tropa, para a Marinha. Fiz duas comissões no Ultramar. Eu era fuzileiro especial e, tendo saído, vim para motorista. Dediquei-me a uma associação, onde estive a trabalhar 30 anos, que era uma associação de deficientes. E estive lá 30 anos, até me reformar.
P: E os seus pais também eram daqui da Covilhã?
Carlos Alberto Barroca: Os meus pais também eram aqui da Covilhã.
P: E trabalhavam no quê?
Carlos Alberto Barroca: A minha mãe trabalhava nas limpezas, fazia limpeza nos Correios, e o meu pai trabalhava numa fábrica de lanifícios, que era a Ernesto Cruz.
P: E casou-se, teve filhos?
Carlos Alberto Barroca: Tenho 2 filhos.
P: E a sua mulher também trabalhava aqui na Covilhã?
Carlos Alberto Barroca: Trabalhava no comércio.
P: Os seus filhos ficaram cá na Covilhã?
Carlos Alberto Barroca: Ficaram, ficaram comigo e estão felizes.
P: E o senhor?
Manuel Luís Farias: Sou Manuel Luís Farias, nascido na Freguesia de Santa Maria também, em 1952, casado, pai de duas filhas - uma professora, outra tem duas valências, que é analista e farmacêutica. Eu trabalhei nos têxteis. Eu fiz o sexto ano e fui para os têxteis. Depois tive duas ocupações enquanto profissional: que é a área de hotelaria, de que hoje já estou aposentado, mas trabalhei durante 40 anos e ainda faço alguns eventos de hotelaria. Fiquei sem mãe muito cedo, tinha 2 anos. Tenho 69 anos praticamente feitos, vou fazer em setembro.
O meu pai foi tecelão, também foi operário têxtil, ficámos cinco irmãos sem mãe após a morte dela, foi uma morte de sofrimento. Basicamente hoje estou aposentado também. Faço parte desta casa já há muitos anos. O meu pai foi funcionário aqui desta Casa, desde 1960 a 1964, e eu, na altura garoto, vinha ajudá-lo para cá na altura das férias da escola. E basicamente resume-se a minha vida a isso.
A minha esposa trabalhou, está aposentada já também desde Agosto, trabalhou 47 anos na firma Paulo Oliveira. Não sei se ainda existe. Felizmente, sim. Também se a sociedade da Covilhã já está como está, com as carências todas que tem de falta de emprego, se aquela fábrica um dia fechar é muito mau para a nossa região. E, basicamente, a minha vida resume-se a esta história.
P: E o senhor?
Carlos Alberto Monteiro Santos: Carlos Alberto Monteiro Santos. Nasci em 1955. Sou da Covilhã. Os meus pais também. Fiquei sem mãe aos 14 anos. Fiz a primária. Na altura não havia tanto dinheiro ou hipótese para estudar. Tive que ir trabalhar.
Comecei a trabalhar na indústria têxtil e sempre trabalhei na indústria têxtil. Estive a chefiar uma empresa que acabou. Depois trabalhei durante 47 anos e aposentei-me, sou aposentado. Tenho uma filha, que está a trabalhar num escritório, numa oficina de automóveis. Tenho dois netos, uma neta e um netito. A neta com 13, vai fazer 13 anos, o neto vai fazer dois.
Já pertenci a várias associações, já fui diretor do Sporting Clube da Covilhã e agora estou há uns anitos aqui no ginásio, onde também joguei futebol. A minha mulher é técnica de análises. E agora sujeito-me, tenho de me habituar a esta vida, porque não há outra a seguir. E temos que nos entreter aqui no associativismo.
Isto está muito mal a nível do associativismo. Ninguém quer assumir parte da direção, o que quer dizer que temos que nos ir entretendo aqui.
P: E digam-me uma coisa, esta propensão para o associativismo já veio de família? O que é que levou a dedicar-se assim tantas horas de trabalho voluntário?
Carlos Alberto Barroca: A mim, não. Na minha família, não me recordo de haver alguém que estivesse ligado ao associativismo. Eu é que comecei muito cedo. Aos 16 anos vinha aqui e até foi fundado aí, nessa porta em frente, nessa casa, um clube que se chamava o Clube Estrela de São Pedro. Aos 16 anos, já estava… Depois estive um bocado afastado até que, quando vim da Marinha, passados seis anos, dediquei-me ao campismo, do qual fui diretor durante 22 anos.
P: Era uma associação?
Carlos Alberto Barroca: É um clube.
P: Como é que isso começou?
Carlos Alberto Barroca: Esse clube começou porque fundaram outro, se não me engano o Faria é fundador desse clube, e na altura, em 1974, ardeu todo, completamente. E foi-lhes cedido um vão de uma escada mesmo à minha porta, e aí começou o vício. Começou o vício e então fiz-me sócio e passado dois anos já era diretor.
P: E que tipo de atividades é que desenvolviam?
Carlos Alberto Barroca: No campismo havia muitas. Fazíamos acampamentos e ainda hoje se fazem em todo o país. E eu gostava na altura porque o campismo tinha uma vertente muito engraçada, é que ninguém sabia a profissão do amigo do lado, ninguém sabia se era pobre se era o doutor, e se sabia era sem querer. E havia uma camaradagem fora do comum. E então a gente deslocava-se com a mochila às costas. Hoje já não é assim, já é em autocaravanas e eu esse campismo já não gosto, embora tenha uma roulote no parque de campismo, mas eu desse campismo já não gosto.
E depois estive uns anos em que eu disse: não, associativismo acabou. Até que me apareceu o Ginásio e já cá ando (como presidente já fiz doze anos)... perdi a conta. E agora passei a pasta de presidente aqui ao Farias.
P: Você não me disse, mas aquele primeiro clube que foi aqui fundado, era um clube de quê, qual era a atividade?
Carlos Alberto Barroca: Era um clube de bairro, tinha futebol. Naquela altura tinha andebol. E depois o que é que faziam no Estrela? Era aos fins de semanas os bailes, que era um convívio engraçado, em que as pessoas iam para a sede das coletividades para se divertirem um bocadinho naqueles salões de baile. O Estrela tinha futebol e andebol e parece que tinha atletismo também.
P: Então e o senhor, quando é que começou?
Manuel Luís Farias: Eu comecei muito novo, como lhe disse anteriormente, comecei quando o meu pai esteve dez anos e comecei a gostar desta casa. A Covilhã na altura chamava-se, e ainda hoje tem esse nome, Manchester dos têxteis. E a razão da existência de tantas coletividades na região - porque era como se costuma dizer na gíria, porta sim porta não havia uma coletividade - era Isto porque a Covilhã tinha na altura cento e não sei quantas empresas têxteis (180, salvo erro) e basicamente todos os trabalhadores no seu bairro, na sua localidade ou perto de casa, tinham uma associação, associação essa que era frequentada por eles todos os dias.
Saíam do emprego e reuniam-se. Onde é que nos vamos encontrar, conversar com os amigos? Onde é que vamos encontrar? Vamos a tal lado. A razão do meu gosto foi começar muito cedo aqui, em que eu entrava cá porque o meu pai fazia parte, era arrendatário daquele bar. E na altura esta coletividade tinha milhares, perto de um milhar de sócios. Era muito frequentada, fazia-se vários eventos, fazia-se festas, os arraiais de São João e de São Pedro, de fim de ano, inclusive aqui há fotografias disso. A razão de gostar desta foi precisamente ter nascido praticamente aqui no Ginásio, já faço parte desta casa há muitos anos.
Fui diretor também, em 1977-79, da Banda da Covilhã, que é uma associação também que tem muitos pergaminhos na nossa região. Fui também presidente da Assembleia Geral no Arsenal de São Francisco, também uma coletividade, já com alguns anos de existência. Fui diretor também depois, anos após. Isto depois é um bichinho que mexe e depois os amigos que se querem encontrar: onde é que vamos? Vamos ao ginásio, vamos à coletividade A, que está lá o amigo B e o amigo C, e pronto, estas coisas basicamente funcionavam assim de há muitos anos a esta parte.
Pronto, cá estou a assumir mais esta luta de presidente, que era uma coisa que eu já tinha, não tinha feito juras, porque eu não costumo jurar, mas já tinha dito que queria acabar, porque estas casas vivem hoje de carolice dos amigos que gostam ainda delas. Porque, como ele dizia há bocadinho, também é muito difícil criar-se um elenco que dê continuidade e que zele pelo menos pelas coisas. Porque esta casa viveu a maioria, esta, basicamente estou a falar nesta e quase todas seria assim, mas basicamente vivia de gente antiga que foi morrendo. A rapaziada mais nova já não as querem assumir estas situações, porque é a prisão é a responsabilidade. Gostam de facto de frequentar, jogam bilhar e jogam pingue-pongue e matraquilhos e não sei quê, vêm ao bar e divertem-se, bebem umas cervejas, mas assumir na sua plenitude, gerir uma casa não, não querem, e a gente, às vezes já se interroga, e em reuniões já dizemos, se um dia a gente deixar isto dificilmente mais alguém pegará nela e teremos que a entregar à Câmara.
Porque esta casa é autossustentável. O edifício, não sei se já lhe explicaram, é nosso, nós temos arrendatários que pagam, que nos pagam renda ao final do mês, portanto esta casa basicamente sustenta-se por ela própria. Agora, claro que também há todo o interesse em dinamizá-la, criar-lhe eventos, patrocinar alguns, nalgumas partes, porque também não se pode deixar morrer e é preciso angariar mais gente que lhe dê vida, que é isso que basicamente a gente tem andado à procura. Mas a nossa cidade vive de gente jovem, vive basicamente da Universidade, universitários esses que ao fim de semana regressam às suas residências. Isto no fim-de-semana basicamente fica muito vazio.
Se já por si, durante a semana, ela já pouca vida tem, durante o fim-de-semana mais difícil se torna arranjar gente para que frequente, tanto assim é que durante a semana a casa mexe bem, trabalha bem, é bem frequentada, tirando este problema que tivemos de pandemia, que de facto, mesmo assim mexeu um bocado com estas casas, porque as pessoas foram perdendo o hábito de se encontrar e inclusivamente as pessoas vêm pelos cafés. Aquilo era um ponto de encontro. Vamos ao café A, ao café B porque estamos lá. Basicamente as casas vivem dessa situação.
P: E que tipo de atividades é que desenvolveu nessas coletividades em que participou?
Manuel Luís Farias: Basicamente, eram quase todas, funcionavam todas do mesmo modo. Ou era o atletismo ou os torneios de snooker ou bilhar. O Ginásio designa-se por uma coletividade de esgrima, mas basicamente todas as coletividades funcionavam assim: torneios de atletismo ou de Futsal (que na altura era futebol de salão), torneios de damas, que esta casa também fazia campeonatos a nível nacional. Infelizmente, até essa parte se foi perdendo, foi diminuindo. Os participantes foram diminuindo cada vez mais, mas vinham de todas as áreas do país. E as coletividades basicamente funcionavam quase todas nos mesmos moldes, uma com mais um evento ou outro diferente, mas era tudo nessa base.
P: E a música, não é? Esteve na banda?
Manuel Luís Farias: Sim, estive na banda de 1977 a 1979.
P: E algum de vocês teve foi músico, participou mesmo na banda ou foi só dos órgãos sociais?
Manuel Luís Farias: Não, fui só mesmo dos órgãos sociais. Porque a banda não tinha eventos dessa natureza, funcionava só na angariação dos músicos, na parte cultural. Desenvolvê-los para que depois dessem espetáculos de rua, nos anfiteatros ou coisas assim.
P: E o senhor também já participou em várias coletividades?
Carlos Alberto Monteiro Santos: Foram algumas. Pegando nas palavras aqui dos meus colegas, pelo que não há mais a dizer sobre essa parte.
P: Mas conte-me a sua experiência pessoal...
Carlos Alberto Monteiro Santos: Eu comecei a frequentar estas coletividades mais por causa do futebol de salão, na altura os torneios e isso tudo e propriamente os bailes. Vou contar uma história muito rapidamente, de quando eu andava no serviço militar, porque eu sempre morei aqui perto. No serviço militar, estava em Castelo Branco, no carnaval estive a fazer 2 ou 3 noites para vir passar o Carnaval. Em vez de chegar aqui, fui parar à Guarda, deixei-me dormir e fui parar à Guarda. Mas pronto, tive que vir de táxi, tive que vir ao baile aqui no Ginásio. Então, isso era uma parte, em que era mesmo obrigatório vir.
Agora nas outras coletividades era os bilhares e era o futebol de salão que nos levava a estar nessas coletividades todas. O Sporting da Covilhã, na altura, quando entrei para lá, tinha acabado com as camadas jovens. E então nós, a direção, voltámos a criar as camadas jovens. Dá trabalho, muito trabalho, mesmo à gente, à família. Eu vou-lhe dizer: foram sete anos, eu tirei sete anos à minha mulher e à minha filha, na altura. Só que a minha mulher também gostava um bocadinho de futebol, mais as primas e as tias e equilibrámos as coisas, conseguimos fazer outra vez as camadas jovens. Depois das camadas jovens estarem já feitas e organizadas, fui chamado para os seniores. Aí é mais difícil. É mais difícil trabalhar com os seniores, porque são jogadores de muitos lados e são profissionais. E vêm com muitos vícios…
Depois disse à minha mulher: eu nunca mais vou participar numa direção. E ela disse: espero bem que sim. Ao menos se houvesse mais qualquer coisa… Mas o bichinho está cá dentro, é terrivel. Depois andam atrás de mim e não sei quê e tive de regressar. Basicamente é isso, a minha vida de coletividade.
Manuel Luís Farias: E tens outra particularidade… É que o avô dele foi funcionário desta casa.
Carlos Alberto Monteiro Santos: Pois, também. O avô da minha mulher, neste caso, foi funcionário aqui no Ginásio, foi funcionário do Sporting. Do Sporting passou aqui para o Ginásio. E pronto, e acabou aqui também. Basicamente conheci aqui a minha mulher, porque vinha aqui e ela vinha aqui trazer a refeição ao avô…
P: Eu ia perguntar agora, mais especificamente sobre esta coletividade que já vi que conhecem já de tempos até antes do 25 de Abril. Como é que eram esses tempos? Quais eram as principais características aqui desta coletividade?
Carlos Alberto Barroca: Como sabe, já lhe tinha dito, eu já li os livros de atas quase todos desde a fundação até agora. Isto tinha uma particularidade. Este clube nasceu de uma divisão entre dois clubes. Era o clube União, que antigamente aqui na Covilhã só existia o clube União, e depois havia a classe dos empresários ou dos patrões e havia a classe dos puxadores, dos empregados, que não se entendiam e dividiram-se. Os patrões ficaram no Clube União e os outros ficaram aqui no Ginásio, fundaram o Ginásio.
Antigamente, para se ser sócio desta coletividade, era um problema, tinha que se ter um grau académico. Eu, por exemplo, se me quisesse fazer sócio metia a proposta, mas à partida não entrava, porque só tinha a quarta classe e andava aí nas obras como eletricista e tal. Mas mesmo que tivesse mais alguma coisa, eu podia ter um problema, por exemplo uma irmã minha que se tivesse divorciado ou que tivesse separada, já não podia ser, porque tinha uma irmã de “mau porte”. Era assim. Para se ser sócio desta Casa, não era com facilidade.
Os que geriam isto não queriam saber. Para se gastar um tostão nesta casa, aquilo tinha que ser com a assinatura deles todos. Há uma parte, que eu agora não me recordo, em que ano, para comprarem duas dúzias de cadeiras, por uma diferença de um tostão, foram ao Porto.
P: Gastaram mais em transportes…
Carlos Alberto Barroca: Está bem que eles tinham facilidade. As camionetes que eles tinham iam ao Porto levar a fazenda, mas era assim. E então isto era dirigido altamente, profissionalmente, como os gajos diziam, mas depois há as atividades que eles tinham nessa altura… Apareceu aí uma empresa qualquer de ingleses que fizeram o logotipo do emblema com a esgrima, mais ou menos nessa altura. Não se sabe se praticavam esgrima, praticava-se aí muita coisa. Jogos de azar também cá se praticavam. Isto andou tudo mais ou menos assim até que isto se perdeu…
Isto ainda tinha uma particularidade. Como é que sobrevivia? Além da quotização dos seus sócios, ali na rua direita - chamamos a rua direita à rua Campos Melo havia lá uma senhora que tinha uma mina e então o Ginásio Clube da Covilhã alugava essa mina a essa senhora por 200 escudos anuais e aqui assim, na zona, vendia a água e com a receita sobreviviam. Nos estatutos constava assim: O ginásio Clube da Covilhã só podia ter 2500 escudos ao fim do ano, tudo o que excedia davam às crianças, era doado aos pobres da freguesia. Eles só podiam ficar com 2500 escudos ao fim do ano. No fim do ano, ao irem à assembleia a aprovar as contas, há 3000, há 500 a dividir. E depois as atividades que foram criadas aqui. Tinham um salão, um anfiteatro, como eles lhe chamavam - e aquilo que estava à procura, porque eu tinha umas folhas passadas a computador, tiradas de um livro que tinha ali, e agora não as vejo lá a para lhe mostrar. Em 1927 atuou aqui a Maria Amélia Rey Colaço. Portanto, isto tinha uma atividade que era seletiva, não era para toda a gente, em que havia um porteiro fardado à entrada da porta. Ninguém entrava. Eu, que fui criado aqui, passávamos aqui era a correr bem, porque o porteiro chutava-nos logo. Era assim depois, até que isto ardeu em 1946.
O edifício foi comprado em 1948, se não me engano. E, então aí, depois do incêndio, reconstruíram isto e consta que está mais ou menos como estava. A partir dessa altura, talvez o Farias saiba mais coisas do que eu, porque...
P: Continuou assim tão seletivo?
Manuel Luís Farias: Basicamente sim, durante muitos anos ainda depois dessa altura, eu a data também já não posso precisar de memória, mas ainda funcionou de modo muito seletivo durante anos. Depois é que começou a haver uma abertura, porque, como eu disse há pouco, os mais idosos iam falecendo e havia que criar sangue novo. Havia que repor aqui novas mentalidades, porque isto há uns anos atrás, a esta parte, eles lembram-se tão bem quanto eu, isto era dominado por uma classe só de nomes, ou seja, havia determinados sócios que criavam grupitos e queriam ser donos e senhores do Ginásio. Portanto, em assembleias gerais, que se pudessem realizar para tomar um parecer de qualquer coisa ou fazer uma aprovação do relatório de contas, eles queriam ser dominadores de toda a área.
Foram falecendo alguns e a casa, felizmente, já não funciona assim. Toda a gente tem direito a usar da palavra, toda a gente pode opinar, porque no fim de contas são sempre bem recebidas essas opiniões, porque duas cabeças pensam sempre melhor do que uma só. Isso foi mudando, foi mudando esta área, foi-se criando novas mentalidades. Há umas coisas que eu me recordo, mas também são coisas de infância que basicamente era o que ele estava a contar, já de resto, acho que resume
essa história toda.
Carlos Alberto Barroca: Mas conte essas histórias de infância…
Manuel Luís Farias: Tenho uma, tenho uma história do meu pai e essa ficou-me gravada porque foi a parte familiar. O meu pai teve seis mulheres. Nós somos seis irmãos, deixe-me cá contar que às vezes também a memória dessa parte também já me falha. Somos sete irmãos de cinco mulheres. Como eu disse, fiquei sem mãe muito cedo, o meu outro irmão mais novo tinha 15 dias de existência e fomos criados com uma irmã do meu pai, que por sinal nunca se casou. Deixou de trabalhar para cuidar de nós. Éramos cinco na altura, um deles, o mais novo, com 15 dias, foi praticamente aperfilhado pelos padrinhos de batismo. O meu outro irmão foi com uma outra senhora. Só ficamos em casa três: a minha irmã mais velha, eu e o meu outro irmão, que é mais velho um ano que eu.
O meu pai estava aqui e tinha arranjado uma outra mulher. A irmã do meu pai não gostava dela e dizia-me: Tu já viste? São mulheres a mais para o teu pai e depois .... E um dia, ela vinha aqui, essa dita senhora que estava com ele, vinha ajudá-lo aqui ao bar, e eu venho aqui, entrei na coletividade, fui ao bar e vi-a lá e cheguei a casa, fugi daqui a correr, cheguei a casa e disse: Oh tia, olha que ela está lá. Ela agarrou, viemos os dois, a minha tia entrou ali no bar, agarrou-a pelos cabelos, trouxe a debate até aqui ao fundo das escadas e o meu pai fugiu nesse dia, o meu pai abandonou o bar, já não quis saber do seu bar e abandonou o barco.
Tive uma outra história também. Na altura fumava-se ainda dentro das coletividades e entrava gente que às vezes se excedia no consumo da bebida e ficavam um bocado transtornados. E então, há um dia que estavam a lanchar lá uns indivíduos e já vinham assim bem compostos de bebida e um deles trazia um embrulho qualquer. Nós temos aqui ao cimo das escadas um espelho grande e tal era a bebedeira que ele trazia que agarrou no embrulho e atirou, julgando que era uma janela, atirou contra o espelho. Aquilo caiu no chão, diz ele: Olhe, ainda bem que caiu no telhado [riem-se]. Oh pá, são assim pequenas histórias que me vêm à memória, isto depois com seguimento das coisas vou-me lembrando de mais.
Eu, entretanto, também saí daqui, o meu pai saiu daqui. Tivemos cá, nessa altura, quatro anos, quando ele teve a posse do bar. Depois saímos, eu na altura não era sócio, não me aceitariam como sócio nessa altura e depois não deixei de acompanhar só que não podia frequentar. Depois houve esta fase de transição, da facilidade de serem admitidos mais sócios, pronto com outra… com outro estatuto, é que a gente depois começou a apostar.
P: Quando é que foi essa alteração? Quando é que vocês entraram mesmo? Foi antes ou depois do 25 de Abril?
Carlos Alberto Barroca: Foi depois do 25 de Abril, já foi quando ficámos sócios?
Manuel Luís Farias: Não, não, a senhora não está a perguntar isso… Quando foi a transição disto deixar de ser dos chamados granfinos.
Carlos Alberto Barroca: Talvez fosse após o 25 de abril.
Manuel Luís Farias: Foi depois do 25 Abril, foi.
P: Acham que o 25 de abril teve alguma coisa a ver com isso?
Carlos Alberto Barroca: Não sei.
Carlos Alberto Monteiro Santos: Na altura do 25 de Abril já não havia isso. Mesmo antes do 25 de abril já não havia essa parte… aquela porta giratória.
Manuel Luís Farias: Ainda havia, ainda havia.
Carlos Alberto Barroca: Não, a porta giratória já não, porque isso foi depois do incêndio. A porta giratória, depois do 25 de Abril já não existia.
Carlos Alberto Monteiro Santos: Logo que a porta giratória deixou de existir, começaram a desistir dessa parte...
P: Quando é que vocês se filiaram, têm ideia?
Carlos Alberto Barroca: Eu fui 80... e tu, Farias, que número és?
Manuel Luís Farias: 68, mas já cá tinha estado antes.
Carlos Alberto Monteiro Santos: Eu sou mais baixo, sou 64
P: Então mas como é que acham que foi essa transição? Como é que isso aconteceu?
Manuel Luís Farias: Foi o que eu lhe disse há pouco, foram morrendo, foram morrendo alguns sócios, que eram fundadores da casa e depois foi havendo uma abertura, porque eles começaram a pensar que só eles sozinhos não conseguiriam gerir esta casa, porque começou a acontecer ninguém querer assumir os destinos da coletividade. E então foi quando pensaram em abrir mais, abrir as portas a outras pessoas que não eram, como eles chamavam, os granfinos, que eram, como eu já disse, eram os industriais da cidade e os puxadores. Pronto, aquela classe média alta.
P: O que é que são os puxadores? Desculpem lá...
Manuel Luís Farias: Puxador é um técnico que faz os desenhos dos tecidos da fazenda. E a transição começou a partir daí, quando eles começaram a dar abertura a que pudessem vir mais sócios, de outra qualidade de vida, para dinamizar a casa e assim foi o que aconteceu.
P: Quando começaram a entrar mais sócios, começaram a vir também trabalhadores dos têxteis?
Todos: Sim, sim, sim.
Manuel Luís Farias: A grande força desta casa, dos associados, passou a ser o pessoal que trabalhava nos têxteis.
P: E em que é que se alteraram as atividades quando houve essa alteração das pessoas? Como é que isso se refletiu nas atividades? Começaram a desenvolver-se outras coisas?
Carlos Alberto Barroca: Principalmente o jogo de azar, começou a haver menos, e ao haver menos criou-se atividades desportivas. Era o futebol de salão, começou a haver mais essa atividade e uma das causas de haver nessa altura é precisamente essa, é aquela transição dos jogos de azar que havia aqui. Porque eles começaram a ter juízo. É que se perdiam aqui fortunas autênticas e, segundo consta, alguns até perderam as mulheres no jogo, as próprias mulheres…
Portanto, isso fez mudar a situação e também tudo dependia das pessoas que estavam à frente disto. Havia os que não eram a favor do jogo e foram tirando o jogo aos bocadinhos até que, felizmente, os jogos aqui são para passar o tempo, jogam ao dominó, às damas.
P: E as mulheres, estavam a falar de algumas que foram perdidas no jogo...
Carlos Alberto Barroca: Antigamente, isto era frequentado pelas mulheres, porque esta parte aqui de cima, além desta, isto era jogo. E lá em baixo, onde está a sala de pingue-pongue, era o salão de chá. E depois tinham os bilhares, que antigamente os bilhares funcionavam de manhã à noite. Hoje não. Hoje até esse é um vício que se vai perdendo. Então, lá em baixo três bilhares, que se trabalharem duas, três horas por semana é muito.
A juventude de hoje não está vocacionada para isto. Hoje, a gente vai às coletividades - eu não vou dizer nomes, que não vale a pena - e os estudantes vão para lá para quê? Não é para estudar, é para beberem cerveja em catadupa e fazerem disparates. É a única maneira de sobreviverem também.
P: Estavam-me a contar que no tempo ainda dos granfinos que as mulheres tinham um salão lá em baixo e depois, quando vocês entraram, também entraram mulheres?
Manuel Luís Farias: Algumas sim, essencialmente as esposas dos sócios. Houve durante muitos anos a existência da parte feminina, que também dinamizava um bocado a casa. Porque, como é normal e como saberá, se houver parte feminina a frequência acaba por ser maior. Portanto, as pessoas aderem com mais frequência do que estando só a parte masculina. Pronto, e seria essa situação.
P: E quais eram as atividades que as mulheres desenvolviam?
Manuel Luís Farias: Não tenho ideia de que houvesse alguma atividade para elas desenvolverem na coletividade. Faziam permanência, faziam o convívio, reuniam-se como nesta altura agora nos reunimos nós, ponto de encontro. Hoje perdeu-se um bocado esse hábito das senhoras frequentarem e poderia existir algum tempo, quando se fazia um evento qualquer, ou um fim de ano ou uns santos populares que as pessoas e as senhoras aderiam, no dia a dia foi acabando. O Carnaval que era muito forte aqui.
P: E as marchas, vocês não participavam nas marchas?
Manuel Luís Farias: Não, o Ginásio nunca participou nas marchas.
Carlos Alberto Monteiro Santos: Andou-se um ano a pensar que se pudesse participar, mas não se chegou a concretizar
P: Foi sempre mais a vertente desportiva, não não tiveram teatro, música, nada disso?
Carlos Alberto Barroca: O teatro tiveram nessa altura, até à altura em que ardeu. Ninguém sabe como é que era isto era antigamente, antes de 1946, pelo menos eu nunca falei com ninguém que me dissesse “isto aqui era assim”. É porque eles chamavam a isto contentores. Chamavam, naquela altura, existia aqui um terreno onde estavam contentores. Agora, o que eram estes contentores? Não sei, nunca falei com ninguém. E até tentei procurar os que são muito mais velhos do que eu, indivíduos que moraram aqui, nasceram aqui e que também não têm Ideia do que do que era isto. Depois foi quando fizeram este prédio. É que este prédio vem até ao fundo da rua. Ninguém sabe o que era e o que eram as atividades.
P: Já percebi que têm interesse pela história do associativismo. Eu gostava de saber: esta zona é uma zona tão industrial e com tanta gente ligada aos lanifícios, com uma grande tradição operária. De que forma é que isso se reflete aqui no associativismo? De que forma é que o associativismo da Covilhã se torna diferente?
Carlos Alberto Barroca: Eu tenho um conceito do associativismo um bocado… Fui vítima do associativismo, nesta associação para a qual trabalhei. Porque para mim há duas classes de associativismo, o associativismo como o nosso, de carolice, que vimos para aqui às vezes em prejuízo da nossa família, e há o dos oportunistas. Eu tenho muito medo disso.
Porque, não sei se ouviu falar, havia aqui uma associação que era de deficientes e eu estive 30 anos a trabalhar com essa associação, até que apareceram lá os oportunistas. Destruíram tudo, até a nível nacional. Os trabalhadores daquela casa chegaram a fazer queixa na Polícia Judiciária, eu incluído. Sabe qual foi a resposta? Nós já temos conhecimento, mas já investigámos e está tudo bem. Passado dois anos, insolvência. Porque tinha quintas, era uma coisa muito grande, até bombas de gasolina tinha. E foi tudo.
Levaram o senhor a Tribunal. Sabia tudo e nada fez, mandou 80 crianças deficientes para casa. Levaram o senhor a tribunal e ficou absolvido, que aquilo foi uma má gestão. Mas tem uma bruta casa, feita à custa disto. Tem uma bruta casa na praia, tem uma bruta casa lá em cima, um bungalow na Serra. É má gerência.
É preciso muito cuidado com o associativismo. Há o associativismo que não tem problemas de direções. Estão à espera de tacho. Infelizmente, agora na Covilhã, também cá há associações que têm lá pessoal desse. Mas as coletividades, que eu considero as coletividades de bairro, essas vivem como as vivemos, que de dois em dois anos andamos atrapalhados para arranjar gente Porquê? Porque não estamos com interesses monetários. Aqui julgo que também já tivemos, mas vá lá corremos com isso.
Porque hoje, eu faço parte de uma direção, conheço-os todos bem e eles conhecem-me a mim. Nós tivemos cá um e eu tirei-o de tesoureiro e eu pu-lo como vogal. Eu pus-lhe foi uma casca de banana nos pés para escorregar e sabe o que é que ele me disso? Não, para ser despromovido não fico. Nestas coletividades, trabalha-se para ser promovido ou despromovido? Eu fui presidente durante 10 anos, agora sou o quarto vogal. Fui despromovido? Não, porque as minhas opiniões aqui dentro desta sala continuam a ser as que tinha como presidente, embora um presidente agora, antigamente tinha o poder de voto ou, como é que se chama?, o voto de qualidade. Hoje eu não tenho. Mas estou solidário com o presidente. Isto é uma despromoção? Não, quero ajudar a coletividade. Portanto o associativismo, é preciso muito cuidado com ele.
P: Vocês aprendem muito aqui, a fazer esta gestão, têm que aprender contabilidade a lidar uns com os outros?
Manuel Luís Farias: Faz parte do desenvolvimento das pessoas. Tal como sabe, e como ele já explicou, há muita gente que vem para estas casas para se promover. Só que estas associações pouco ou nada têm de poder promover alguém, a não ser instituições públicas, como todos sabemos. Mas, infelizmente, há muita gente que pensa dessa forma, porque nós tivemos aí um caso de um indivíduo que foi presidente desta coletividade e era jornalista profissional. Foi presidente desta casa. arranjou o elenco à maneira dele, ou seja, as pessoas adequadas para compartilharem com ele, para depois tirar dividendos da coletividade da qual ainda há pouco, bem pouco tempo, deixou de pagar. porque o tivemos que meter no Ministério Público, porque estas casas vivem de apoios.
Nós, como lhe disse anteriormente, somos autossustentáveis, mas precisamos de fazer obras. Só pelas rendas que temos e a quotização dos sócios, só isso não chegará. Precisamos de subsídios camarários, subsídios de junta, patrocínios de qualquer outro organismo, porque senão não conseguiremos sobreviver, então deixamos cair as coisas ao nascer. É, infelizmente, essa gente aproveita-se dessas pequenas coletividades, só para colher fins.
Houve alguém que na altura entrou para a direção, que queriam fazer um perdão, mas houve outros que não, as coisas têm que chegar ao seu termo e as pessoas têm que se responsabilizar e têm que pensar que isto não é, esta carolice não é para as pessoas promoverem nada, nem é para viverem daqui, porque têm o seu vencimento ou têm a sua aposentação e não é viver com os dinheiros das coletividades.
Daí a razão das dificuldades de se criarem elencos ao longo dos anos, como já tivemos ocasião de falar nisso. As pessoas hoje não querem responsabilidade, porque privam a família de estar determinado tempo. E as coisas funcionam basicamente assim. Deixar morrer as casas também as pessoas não querem, mas também em contrapartida também não entram para cá pessoas que depois destruam tudo aquilo que de bem se fez. Porque nós entrámos, nós já estamos no elenco, pronto também já estou num elenco já há muitos anos. Já fiz parte, antes dele de ser presidente, já fiz parte de outras direções.
E a casa não estava assim como está hoje. A casa hoje está digna de se ver, está limpa, está modernizada, fez-se obras, gastou-se dinheiro, dinheiro esse que alguém se aproveitasse, digamos, porque se mexe, qualquer pessoa pode mexer no dinheiro. Agora temos o tesoureiro, as contas um bocado passam por aí, mas muita gente mexia em dinheiros. Se toda a gente tivesse essa atitude, esse pensamento, não se conseguiria fazer mais nada ao longo do tempo. E pronto e as coisas têm funcionado assim devagar, precisaríamos de mais alguns fundos para poder modernizar algumas coisas que ainda são necessárias.
Mas é como se costuma dizer: não se pode dar o passo maior do que a perna e as coisas vão sendo devagarinho, não se faz hoje, faz-se amanhã ou faz-se para a semana e as coisas vão-se valorizando. Porque também lá está, nós trabalhamos para ela e não é ela que trabalha para nós.
P: E o que é que vocês ganham a nível pessoal? Vocês dão este trabalho voluntário, toda esta dedicação.
Manuel Luís Farias: Não ganhamos nada.
P: Não, mas algum retorno terão, este vício é porque é bom, é uma coisa boa?
Carlos Alberto Monteiro Santos: É carolice, é o amor à camisola, como se costuma dizer. É já de há muitos anos, aquilo que se passou aqui, coisas boas, coisas menos boas também se passaram. É isso que nos leva a não deixar isto, esta coletividade ir por aí abaixo.
P: Quais foram as coisas melhores? Quais são as lembranças mais felizes que têm aqui da coletividade?
Carlos Alberto Monteiro Santos: Alguns momentos que se passaram aqui, sei lá, a amizade, o convívio. Os convívios são muito bons. Além de ter conhecido aqui a minha mulher, o futebol, que era na altura a coisa de que todos nós gostávamos, que o presidente também gostava, mas na altura já jogava ali no Arsenal de São Francisco, não estava tão ligado aqui, ainda estava mais ligado além na parte do Futebol. E é isso que nos leva a esta parte. Eu quase tinha jurado à minha mulher que não voltaria a ir para coletividade nenhuma e pronto, já aqui estou há uns poucos anos.
Manuel Luís Farias: Acho que as recordações que se tenham é o bicho que está dentro de nós e eu saber, ou eles pensarão igual, a gente saber que eu saio de casa “para onde é que hei de ir?” Porque isto a idade também nos vai modificando um bocado, não é? Portanto, quando a gente é jovem, tem outro tipo de amizades, tem outro tipo de encontros, tem outras zonas para frequentar. Eu hoje estou-me a ver, eu saio de casa: “Onde é que eu vou? Ao Ginásio. Onde é que eu vou jogar uma partida de bilhar? Ao Ginásio. Onde é que eu jogo umas cartas ou um dominó? Ao ginásio. Onde é que eu vou lanchar com os amigos, por exemplo? Ao Ginásio.” Portanto, tudo isto depois vai-se criando um hábito de rotina. Vai-se criando esta situação, é isso que nos leva, o dia passa, hoje, amanhã e depois e vai-se cada vez gostando mais. Por um prazer de dizer que frequentamos isto, porque temos alguma memória de tempos passados, é só dentro disso. Mas não, não há assim recordações, recordações.
P: Qual é que foi o período alto aqui do ginásio? O período que vocês recordam como mais exuberante?
Carlos Alberto Barroca: Eu aqui no Ginásio não tenho assim os momentos, são os momentos de convívio. Conheci aqui pessoas...
Manuel Luís Farias: As caminhadas que aqui se fizeram foram engraçadas, fez parte de um convívio saudável.
Carlos Alberto Monteiro Santos: E não só, os grandes torneios de damas, vinha a madrugada já começavam a juntar-se cá à espera a porta para entrarem, para se fazer esses grandes torneios de damas. Isso são momentos muito marcantes.
Carlos Alberto Barroca: Houve um momento muito marcante que eu vivi aqui, que me marcou mesmo, até porque a minha sensibilidade para com os deficientes é muita. Houve um torneio que ganhou um senhor Vítor Oliveira de Vale de Cambra. E há aí um deficiente, que eu suponho que ainda é vivo, agora já há algum tempo que eu não vejo, que gosta muito de damas e que vive com uma certa dificuldade. E, antigamente, nestes torneios de damas havia prémios monetários, até porque eram muito subsidiados pela Câmara e pelo INATEL. Foi uma das grandes causas do declínio dos torneios de damas foi a falta de apoio do INATEL. O INATEL hoje é mais uma agência de viagens do que era como era antigamente, apoio ao associativismo. Hoje, apoio ao associativismo não o fazem.
E então, esse indivíduo que vinha de Vale de Câmara, que vinha de propósito fazer o torneio, agarrou nos prémios todos e deu a esse deficiente, que nem estava a jogar. E talvez fosse o momento mais marcante que eu passei aqui. Para mim, aqui no Ginásio, foi precisamente esse. Às vezes, passam-se coisas nestas coletividades, como essa que contei há bocadinho, de aqui só se poder fazer 2500 escudos e o resto ser dado em bodas aos pobres.
P: Tinham mais algum tipo de atividade de caráter beneficente? Chegaram a ter, por exemplo, subsídios de funeral?
Carlos Alberto Barroca: Não, não, isso só havia duas coletividades na Covilhã que tinham esse benefício e eu beneficiei (eu não, a minha mãe, porque eu também fiquei sem pai aos 14 anos), que eram o Rodrigo e o Campos Melo. Mais coletividade nenhuma tinha essa benesse para os sócios e, se não me engano, davam à viúva para o funeral do sócio 700 escudos. Na altura era dinheiro, dava para pagar o funeral. Mas nesta coletividade, que eu tenha conhecimento, não.
P: Era só essas esmolas?
Carlos Alberto Barroca: Era só essa esmola no fim do ano, que davam aos pobres aqui da freguesia.
Manuel Luís Farias: Eu acho que tiveram um período, não tenho em mente quando, mas acho que tiveram um período em que eles apoiavam as famílias mais carenciadas, aos filhos em livros escolares. Mas já não me recordo, também para precisar datas, também já não me recordo. Na altura, pronto era miúdo ainda, foi antes de ir. Mas sei que eles participavam com os livros escolares para as pessoas mais carenciadas.
P: Mas digam-me uma coisa, em algumas associações em que eu estive, havia pessoas que o facto de terem aprendido a gerir as associações depois também vieram a assumir cargos nas juntas de freguesia e na própria Câmara. Aqui também houve também essa....
Carlos Alberto Barroca: Não, felizmente não. Nunca se ninguém promoveu. Esses que vêm para as associações Para se promoverem são os tais que eu digo, perigosos. Até já houve um presidente do Sporting da Covilhã que foi para presidente do Sporting para se promover e foi para presidente da Câmara. Esses são os tais de que eu não gosto no associativismo. Há muita gente dessa. Mas também os pode haver, que fazem a transição destas coletividades e vão para as câmaras que são pessoas sérias e honestas. Eu também não englobo toda a gente, mas 90% destes, que vêm para as coletividades e depois se promovem nas coletividades para irem para as juntas de freguesia.
P: Então, já agora também, estou a perguntar isso a todos os dirigentes para estatística, vocês professam alguma religião? São católicos praticantes?
Manuel Luís Farias: Eu sou católico, não praticante, mas sou católico.
Carlos Alberto Monteiro Santos: Também sou católico, pouco praticante, mas pronto.
P: E são filiados ou foram filiados em algum partido político?
Carlos Alberto Barroca: Eu tenho um partido político, sou do contra, há uns que são do Chega, eu sou do contra, sou contra tudo e contra todos, digo mal deles todos.
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3 de junho de 2021
P: Então agora só para ficarmos com o registo do seu nome e naturalidade.
Rui Mendes: Rui Mendes, natural da Covilhã, nasci e fui criado aqui no bairro municipal.
P:E esta propensão para o associativismo é de família?
Rui Mendes: Sim, é um pouco, porque também a nossa vivência passou pelo associativismo, passou por estarmos aqui nesta casa, que me viu crescer e que ganhámos a paixão, porque isto vai de família e vai precisamente pelo bairrismo que existia à volta desta coletividade, isso acaba por nos envolver também.
P: Em que ano é que nasceu?
Rui Mendes: Em 1970.
P: E estudou aqui nesta escola?
Rui Mendes: Estudei nesta escola, exatamente, até à quarta classe.
P: E depois, qual é que foi o percurso profissional?
Rui Mendes: Tenho o 12º segundo ano de escolaridade, enveredei pela área comercial em que comecei a minha área profissional, na área de informática, em 1989. E depois tive uma atividade também por conta própria, na área dos equipamentos hoteleiros. Neste momento, estou na área da construção civil, a nível de venda de materiais para a construção civil, numa grande empresa nacional. Felizmente, tive a sorte de abraçar esse projeto e é uma empresa que neste momento já tem uma faturação muito grande, tem 12 armazéns a nível nacional, o que me tem dado um élan, a nível de experiência também, para poder com a minha experiência ajudar o Campos Melo a vingar.
Porque de facto foi… nós estamos aqui há dois anos, esta direção, e chegámos aqui com uma situação difícil, financeira, e ao fim de dois anos eu posso dizer-lhe, é público, porque tivemos uma assembleia há cerca de duas semanas, onde divulgámos os resultados, posso dizer que financeiramente estamos muito saudáveis. Temos sim, neste momento, um problema que é o que está a atravessar a nossa sociedade e agora temos que dinamizar, quando pudermos fazê-lo, para termos pessoas, porque é um pouco aquilo que se está a passar aqui neste bairro, a desertificação, pelo que vamos ter que arranjar maneira de dinamizar possivelmente o espaço, que é aquilo que falta neste momento. Creio que temos que trabalhar um bocadinho agora nesse sentido e esperar que a pandemia nos deixe fazer alguma coisa.
P: É casado? Tem filhos?
Rui Mendes: Sim, sou casado, tenho dois filhos. Na direção também está minha mulher, está um dos meus filhos, o mais velho. O mais novo também já nos dá uma mãozinha aqui quando precisamos, em casa e aqui. O mais velho, posso dizer, que quando eu participei aqui numa direção em 2010, que por conseguinte foi a minha primeira direção - sempre estive ligado ao associativismo, ao ténis de mesa, porque aprendi também aqui o ténis de mesa e depois fui impulsionador também de uma secção em que dávamos formação aos jovens e tudo, ao Covimúsica, desde há muito tempo, e de facto, em 2010 participei pela primeira vez numa direção - e que o meu filho mais velho foi um dos impulsionadores a nível da área digital. Acabou por nos ajudar a transformar um bocadinho esta fase do papel e do que era o antigamente e transformar um pouco a evolução que estamos a ter hoje, daí que ele também já está enraizado aqui nisto e acredito que vai continuar no futuro a ter uma ligação muito forte aqui ao Campos Melo.
Basicamente, neste momento o que estamos a tentar fazer é precisamente continuar a engrandecer esta casa, fazendo com que o Campos Melo possa vir a ser representado nas marchas populares, porque eu acho que nós sempre tivemos um bom percurso, ganhámos as marchas populares por duas vezes e que na cidade da Covilhã é um ex-libris também, que este ano não vai acontecer. Para além disso, temos o Covimúsica que está no ativo, temos neste momento o zumba, que é uma atividade de senhoras que vêm aqui duas vezes por semana, o que é excelente. Temos uma secção de matraquilhos, em que temos atletas federados que no ano passado foram campeões nacionais de associações, o que foi muito bom e que estamos a apoiar. E o objetivo será a passar pela formação na área dos matraquilhos também, captar jovens, o que é fundamental, porque nós temos aqui bem perto de nós uma escola primária, em que o objetivo será no próximo ano, isto é, se nós continuarmos, porque vamos ter eleições dia 19 deste mês, será captar precisamente esses jovens para virem para aqui.
Até, por conseguinte, poder ter algum protocolo com a escola para podermos criar alguma dinâmica, não só nos matraquilhos, mas também no ténis de mesa, porque foi sempre uma atividade desportiva que teve também muito sucesso aqui. Outrora, de facto, houve muita coisa. O teatro também teve aqui momentos áureos, muito, muito bons, o futsal, as marchas populares é claro, que envolvia muita gente e que eu tenho muita pena que tenha havido agora este interregno todo, porque movimentava muito. Para já, de facto, é cativar as pessoas para elas voltarem.
P: Estávamos há pouco a ver que as mulheres só começaram a participar após o 25 de Abril. Que outras grandes transformações é que houve? Era criança, mas se calhar lembra-se…
Rui Mendes: É assim, a transformação que eu notei foi que de facto a participação das mulheres, que é fundamental. E eu posso-lhe dizer que nós, nesta direção inicial, o meu objetivo, quando quis fazer uma equipa, foi também olhar muito para as mulheres, porque elas trazem-nos outra perspetiva de ver alguns assuntos que é necessário nestas casas haver. Para além disso, têm maior sensibilidade. Também às vezes é necessário um esforço maior por parte delas, porque às vezes é preciso limpar. É preciso estar mais atento a certos pormenores que nós homens passamos ao lado. E aqui na nossa direção nós tivemos aqui, neste momento são cinco mulheres que estão. Apenas já, infelizmente, duas no ativo, as outras três abandonaram este projeto, porque às vezes... é pena que isso aconteça, mas vai das pessoas, há umas que têm mais motivação do que outras para estar a enfrentar estes desafios.
Eu penso que fundamentalmente a evolução que estamos a ter e ela está a provocar alterações na nossa sociedade. As pessoas estão a ficar mais fechadas. E isto está-nos a dar que pensar muito, como é que nós vamos fazer para continuarmos a criar atividade numa casa destas, que está na zona mais a norte da cidade, quando a cidade está a crescer para baixo. E como é que nós vamos puxar as pessoas para aqui? Eu, por exemplo, eu neste momento vivo a sete quilómetros daqui, eu tenho que me deslocar aqui de propósito, ou seja, se estivesse no bairro e se houvesse gente aqui no bairro era muito mais simples.
O que é que vamos ter que fazer? É uma bela questão. É uma bela questão que para já ainda não consegui responder na totalidade. Porque tenho ideias, temos ideias, se nós ficarmos por aqui, eu teria muito gosto em continuar, mas de facto a minha vida profissional às vezes não permite. Mas dentro do que é possível, continuo a estar e eu acho que neste momento o grande desafio é trazer a juventude para estas casas. Eu acho que é o maior desafio, porque a juventude é que vai ser o futuro e aí é que parte precisamente a nossa ideia de irmos tentar captar essas camadas jovens. Porque, aliás, há outras associações que já o estão a fazer, e bem, e temos que tomar como exemplo, precisamente isso que se está a passar com eles, porque em algumas conversas que temos tido, a experiência deles diz mesmo isso, que é necessário trazer a juventude agora para esses projetos e envolvê-los. Penso que é por isso mesmo que vai passar este desafio. Agora se vamos conseguir…
P: Em relação àquela questão da memória que me interessa perceber, como é que é transmitida a memória destes tempos, que estes senhores nos estiveram a contar, acha que esse legado é passado, ou seja, eles contam, vocês absorvem?
Rui Mendes: Sim, quem está aqui diretamente ligado com eles consegue absorver essas histórias. Mas muitas delas perderam-se, porque eles vão desaparecendo, esses homens que estão aqui e que estiveram aqui muitos anos a fio e que os registos começam a ser menores. E como também não há muita gente a dar continuidade a este trabalho, porque estamos a ver a dificuldade que existe em captar pessoas para estarem à frente destas associações, o que também vai demostrando algum desinteresse por parte das pessoas e elas acabam por não já não olhar para isto como algo que tenha que ser preservado, mas como algo que está e que se calhar vai continuar a estar, mas começa a fazer parte do passado. É pena que isso aconteça.
Nós tínhamos um objetivo no ano passado de fazer precisamente uma atividade para tentar reavivar as memórias das pessoas, convidarmos os sócios a vir ouvir a estas histórias, mas eu penso que se calhar é um desafio para o próximo ano ou para os próximos dois anos. Fazer algo do género e aproveitar talvez o mês do aniversário para que se possa fazer um dia dedicado precisamente a isso, para reavivar as memórias daqueles que já as viveram. E então talvez passar precisamente essas mesmas memórias para aqueles que ainda estão aqui e que possam dar continuidade e explicar aos filhos como é que isto era. É, mas, de facto, está-se a perder muita informação, sem dúvida.
P: E há assim alguma história marcante que seja simbólica, ou seja, se há algum acontecimento que seja mais conhecido?
Rui Mendes: Da coletividade há, o teatro, por exemplo, uma peça de teatro que é a Casa de Pais, que é uma peça que foi apresentada aqui nos anos 50, porque é uma peça do Ruy de Carvalho, onde interveio o Ruy de Carvalho nos anos 40 e pouco. Eu acho que foi um momento áureo aqui e daí o Ruy de Carvalho também ter vindo aqui quando, há cerca de sete, oito anos, o teatro aqui voltou a reativar essa peça. Foi feito o convite precisamente ao Ruy de Carvalho para estar presente numa sessão que aconteceu no teatro da Covilhã. Esse foi um dos grandes momentos, porque de facto havia aqui a cultura.
Esta foi uma casa dedicada ao início essencialmente à cultura, à educação, em que o objetivo era precisamente implementar essas ideias, esses valores e era aqui que as pessoas se entretinham e que faziam do seu tempo livre um bocadinho, o querer estar na cultura. Tinham também um rancho folclórico. Ou seja, esse foi um dos momentos altos. Um dos outros, para a própria associação, foi um objetivo que que já se tinha há muito tempo, que era ter um ringue, porque o Campos Mello, a dada altura, a nível regional, teve uma equipe de futsal que dominou durante dois, três anos, dominou futsal em termos de regional. E um dos objetivos na altura era precisamente, e que nós não tínhamos, era ter esse espaço, que hoje é um espaço que, infelizmente, não está devoluto mas não tem atividade e que havia necessidade de dinamizar. Esse foi o momento alto, foi quando conseguimos atingir esse objetivo, e que agora, costumo dizer, é um elefante branco que ali está. É pena que assim seja.
P: Fale-me mais um bocadinho desta questão da cultura. Acha que isso se deve por exemplo à tradição operária?
Rui Mendes: Sim, também.
P: Como é que essa tradição operária e esta homogeneidade, o facto de quase toda a gente, pais, filhos, mulheres, trabalharem na indústria, marcou o associativismo?
Rui Mendes: Marcou, porque nós... a casa surgiu precisamente de cinco pessoas que se juntaram aqui numa tasca, numa tasquinha, que eram operários, tiveram por ideia precisamente criar este espaço onde as pessoas poderiam então conversar, onde poderiam ler, onde poderiam dinamizar as atividades culturais. O movimento operário teve uma importância brutal, tanto é que esta sede está assente num terreno que foi doado por uma família, que era a família Campos Mello, que era uma das famílias mais ricas da cidade e que tinha precisamente uma...
Eles eram pessoas muito humanas, tanto é que abraçaram este projeto, dando o terreno, precisamente porque era para ser para aquele fim. E tanto é que a família Campos Melo foi aquela que deu também os terrenos para a escola secundária Campos Melo. Pronto e aí o operariado, sem dúvida, nós estamos aqui, como podemos ver ainda quando olhamos aqui para muitas fábricas devolutas. Porque esta era a zona onde havia mais fábricas. As fábricas implantavam-se nas zonas da descida da água, porque era para aproveitarem a água que existia para fazer a lavagem das lãs, etc. E de facto aqui havia precisamente muita gente, muita gente que estava ligada a esse setor e que sentia necessidade de ter que vir para um espaço onde podiam ouvir rádio, jogar às cartas e onde podiam vir conversar.
E depois, por inerência, começaram a surgir precisamente o teatro, os ranchos. Faziam aqui atividades que eu ainda há tempos ouvia destas pessoas mais antigas, que eram os bailes, que eram os chás, eles chamavam os chás dançantes, que eram interessantíssimos e que fazia com que... Vinha gente de toda a cidade para o Campos Melo. E gostei muito de ouvir porque são aquelas coisas que vão ficando precisamente aquilo que tinha a ver com a componente cultural que existia aqui e que se implementou. De facto acho que o operariado...eles tinham a necessidade, eles tinham necessidade de se cultivar. E isto é engraçado. Como é que é possível? E olhando para esta casa conforme ela está. Como é que é possível as pessoas, que tinham na altura dificuldades financeiras enormes, porque os ordenados eram baixíssimos, terem uma dinâmica, uma vontade, um querer para erguer uma casa com esta dimensão?
Sem dúvida que isto é de valorizar, porque, por isso é que eu tenho dito, e isto às vezes cria alguma emoção, porque nós e quem vive esta casa tem que pensar que ela não pode morrer, precisamente para nós podermos valorizar todo esse esforço das pessoas que durante estas gerações todas trabalharam aqui com afinco e de uma forma voluntária. Porque o Campos Mello teve aqui um período difícil, com alguns altos e baixos e até com situações muito delicadas, a ter que encerrar portas e foi agora, com a nossa direção. Tivemos aqui um período muito complicado e eu falo nisto porque doeu-me muito ter que ter esta casa fechada um mês. E não estou a falar do período pandémico, porque isso foi forçado. Foi num período em que nós nos vimos aqui numa situação financeira difícil. Não tínhamos ninguém para ter o bar aberto, porque o bar é que mantém a casa aberta. Ainda hoje estamos com uma situação delicada, em que não conseguimos ter o bar aberto para além das cinco, porque não temos gente devido a esta desertificação. Mas eu queria chegar a dizer que esta casa não pode fechar, ela tem 80 anos, e neste momento acredito que não vai fechar. Eu posso afirmar isso, não vai fechar. Agora, é preciso haver gente que se dedique e continue a pensar que isto é uma história imensa e que não pode fechar portas. Daí que nós continuamos aqui a trabalhar, esforçando-nos um bocado e apelando aos sócios que também nos ajudem. E é isso é que é fundamental.
Felizmente, eu tenho que dizer isto, temos tido por parte dos sócios, que tivemos aqui uma ação junto deles e ainda não terminamos, em que foi solicitado que eles fizessem um aumento de quota voluntário para continuarmos a manter esta casa de pé e eu digo que isto é brutal. As pessoas sentem a casa e todas elas quiseram ajudar, dentro das suas possibilidades. Não houve ninguém que dissesse que não queria ajudar. E isso é sinal de que há vitalidade. É sinal de que nós temos que continuar a fazer esse trabalho. Por isso cá estaremos.
P: Só mais uma questão, estava a falar e nós temos estado a falar em torno mais dos ativistas principais, depois há toda uma massa associativa e pelo que eu percebi das suas palavras, a questão da história, da tradição, tem um peso grande até para motivar a manter as portas abertas e perpetuar esta tradição. Acha que essa história, essa tradição também pesa para a massa associativa, no sentido de ajudar a manter, ou seja há este sentimento que é algo que é preciso ser preservado?
Rui Mendes: Sem dúvida. E digo isto porquê? Porque o Campos Mello, ao ter 600 sócios e como eu disse, o bairro está desertificado, ou seja, não há aqui 600 pessoas. E o Campos Mello é abrangente, porque temos sócios em toda a zona da cidade da Covilhã, no concelho da Covilhã existem sócios por todo o lado, por conseguinte até em freguesias que estão anexas. O que diz bem do movimento associativo que o Campos Mello tinha. Para além disso, e segundo rezam as crónicas, o Campos Melo chegou a ter perto de 3000 sócios, ora o que dizia bem da sua dimensão. E eu creio que sim, creio que precisamente esta vontade dos sócios em querer manter o Campos Mello de pé e de portas abertas é importantíssimo. Nós também estamos a desenvolver esse trabalho, porque acho que é fundamental olhar para eles como algo muito importante.
Acho que é a base e o trabalho que estamos a fazer é um pouco chegar mais perto deles. Como? Nós, neste momento, optámos por enviar mensagens, por isso é que estamos a fazer até a atualização do ficheiro para termos os contactos, porque hoje em dia, por mensagem chega-se muito facilmente, não podemos ir por Facebook, etc., porque não conseguimos chegar aos sócios mais antigos. Mas hoje, felizmente, até os antigos já têm um telemóvel e muitos deles já conseguem ver essas mensagens. E o objetivo é precisamente esse, é dizer-lhes que temos a atividade A ou B ou C e é importante para eles poderem saber e dizer assim, e lembrarem-se: “Epá, olha o Campos Mello vai ter isto” e eventualmente eles até virem aqui, mais que não seja para tomar um cafézinho. E é isso que estamos a trabalhar e é isso que é necessário neste momento. Trabalhar para que essa informação chegue junto deles para que eles não abandonem esta Casa e para que sintam esta Casa como deles. Porque não podem ser apenas um número, não podem ser apenas uma pessoa que está a contribuir com a sua quota e que o Campos Mello em si, quem está aqui a gerir os destinos da casa, se esqueça deles e os interprete como um número. Eu acho que o caminho tem que ser precisamente esse, dar a importância que estamos a dar a quem passou cá e importância a quem ainda cá está, que continua a ajudar, acho que é este contrabalanço que faz com que olhemos para o futuro. Porque a história faz parte da casa e o futuro faz parte de quem ainda continua pronto.
P: Muito obrigada. Só para efeitos estatísticos, mais uma pergunta que estou a fazer a toda a gente: professa alguma religião?
Rui Mendes: Sim, eu sou católico, não praticante neste momento, mas sou católico.
P: E tem filiação em algum partido político?
Rui Mendes: Não.
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3 de Junho de 2021
P: Se calhar podíamos começar pelo senhor, dizia-me o seu nome todo para ficar registado.
José Augusto Mendes: José Augusto Mendes.
P: Nasceu aqui na Covilhã?
José Augusto Mendes: Nasci mesmo aqui neste bairro. A casa era ali, um barracão, nasci nessa casa, que foi deitada abaixo para fazerem a escola, que era aqui e depois é que passou lá para cima. Era para fazer lá na escola e depois foi feita lá em cima. Nasci em 1933.
P: E andou aqui na escola?
José Augusto Mendes: Andei na escola aqui? Não. Foi na escola que era ali, numa casa que aqui está ao lado, e andei lá em baixo, porque o grupo começou numa tasca. Foi num barracão que era aqui a seguir ao grupo, que era de um fundador, que era o Manuel da Cruz, que teve aqui as tascas quase todas. Esteve ali na tasca, esteve ali em baixo. E ele, quando organizou este grupo, foi ali num barracão que era lá a tasca. Havia mais tascas ... e depois daí nasceu o grupo.
P: E a escola, fazia parte do grupo?
José Augusto Mendes: A escola foi só depois, quando arrendaram, porque aquilo estava numa tasca. Foi organizado numa tasca e depois passou a arrendar aqui uma casa, aqui ao lado, e foi aí a escola, que era uma casa que agora é da família aqui do Francisco, que era altos e baixos, tinha rés-do-chão e primeiro andar. Depois daí passou para ali para o Zé Maria Couto, também pertence a essa fundação.
P: E andou, fez aí...
José Augusto Mendes: Fiz só cá a terceira classe e depois fui para a central.
P: E aí na central fez até quando?
José Augusto Mendes: Só fiz até à quarta classe, que era o que havia, porque nesses anos era a admissão ao liceu e eu cheguei à quarta classe, ainda estive na admissão ao liceu, mas depois desisti porque fui trabalhar, porque nesse tempo era assim.
P: E foi trabalhar para onde?
José Augusto Mendes: Fui trabalhar para o Gomes, aquela lá em baixo, na Ultimação, que agora também não há, é um restaurante, etc. E estive aí.
P: Qual foi o ofício que foi aprender?
José Augusto Mendes: O ofício que fui aprender foi o ofício de acabar as fazendas, era a acabação.
P: E trabalhou sempre nessa área?
José Augusto Mendes: Depois daí passei a ser chauffeur da Ultimação e trabalhava lá dentro, porque isto antigamente era assim. E davam-me mais um X para eu sair com a camionete e eu saía com a camionete. Depois daí ainda fui para a tropa, quando vim da tropa, a ver se arranjava melhor vida, comecei a andar, chauffeur, continuei a trabalhar nessa Ultimação e depois passei para o Fernando Antunes. Andei a ver de trabalho. Eu não queria ir para a Ultimação, disse: “Eu já não vou mais para a Ultimação.” Fui aprender a tecelão e saía da Ultimação às 4:00 da tarde, ficava à hora ao meio-dia, almoçava, pegava logo ao trabalho, depois saía às 4, às 4 ia trabalhar, a pegar na Rosa e Conceição, que era ali na estrada quando se vai para a floresta, que isso também já acabou, e então eu trabalhava até à meia-noite, até terminar. Aprendi a tecelão, ao fim de aprender a tecelão, andei a ver aí o que é que me podia aparecer. Fui para o longo curso, muito triste, de camionetes, depois fui ao Fernando Antunes, estive lá 34 anos, foi onde eu acabei. E depois, além de ser chauffeur, trabalhava no armazém de fios, que era dar os fios para urdirem as teias para os tecelãos fazerem a fazenda. Depois passei para o armazém de fazendas, que foi onde fiquei.
P: E casou? Tem filhos?
José Augusto Mendes: Sim, casei. Tenho dois filhos, o Rui e o José Alberto, que andam no Covimusica.
P: E a sua mulher, também trabalhava na indústria têxtil?
José Augusto Mendes: Trabalhava, era metedeira de fios na Nova Penteação.
P: E os seus filhos, qual foi a profissão que seguiram?
José Augusto Mendes: O mais novo tem o 12º e o outro foi para Eletromecânica, mas não completou. Enfim...
P: E os seus pais, também trabalhavam na têxtil. Também trabalhavam aqui nas fábricas, os seus pais?
José Augusto Mendes: Trabalhavam. O meu pai trabalhava na Ultimação, para onde eu fui, porque o meu pai não queria que os filhos fossem trabalhar para ao pé dele. Mas nós lá.... primeiro foi um irmão meu, que já morreu, que era o mais velho, esse é que foi o primeiro, depois eu digo: “Arranja-me lá trabalho para mim.” E arranjou-me. E eu entrei. Quando entrei lá e se isso era.. Nesse tempo, a gente ia, havia pais que era horrível, havia outros que não se incomodavam.
P: E a sua mãe também trabalhava na indústria ou ficou em casa?
José Augusto Mendes: A minha mãe estava em casa, depois é que passou a trabalhar também na parte da indústria, que era nas máquinas de preparações.
P: É religioso, é católico?
José Augusto Mendes: Sou. Como a família, não quero outra.
P: E é filiado em algum partido?
José Augusto Mendes: Não, isso de partidos eu não aceito nada. Eu tenho a minha ideia, partidos não quero cá.
P: Então agora o senhor, pode dizer-me o seu nome todo?
Francisco José Meruje: Francisco José Fazenda Meruje. Nascido na cidade da Covilhã, desde 1944. Tenho 77 anos. Eu fui já muita coisa. Portanto, casei, tive uma filha, divorciei-me. Estou sozinho. Estou sozinho e bem acompanhado, que ainda é melhor. Trabalhei nos lanifícios. Trabalhei na Argélia. Fui 20 anos aqui diretor, praticamente, uns anos como presidente, outros anos como secretário, outros anos como vogal. Claro que os lanifícios agora são totalmente diferentes do que eram antigamente. O último trabalho que tive foi no Campos Melo, na fábrica Campos Melo, estava no armazém, era o chefe de armazém. E ali o que faziam era só transformar a lã, para ser lavada e depois transformá-la em bobine.
P: E é religioso?
Francisco José Meruje: Sou religioso, católico, não muito praticante. No entanto, todos os domingos me farto de rezar Pai Nosso e Ave Maria, que estás no Céu.
P: E é filiado em algum partido?
Francisco José Meruje: Não, mas tenho a minha ideologia, é normal.
P: E então digam-me uma coisa, esta vontade de participar nas associações é uma coisa que vem de família, ou seja, os vossos pais ou algum familiar já participava em alguma associação?
José Augusto Mendes: Quer dizer, pelo menos o meu pai era, trabalhava, porque o meu pai não sabia ler, portanto, os que não sabiam ler só trabalhavam, não podiam ser diretores, era só trabalhar, e eu vim por causa dos meus pais, porque nesse tempo, nesta coletividade, os garotos não podiam entrar, só acompanhados pelos pais. E então ficavam à porta ou vinham com os pais e a gente começou a tomar assim coisa por esta coletividade, dessa forma.
P: E o senhor?.
Francisco José Meruje: O meu é diferente, muito diferente. O meu pai era instrutor.
P: Era instrutor de quê?
Francisco José Meruje: Instrutor de carros de condução. E eu nunca… não tenho carta. E podia ter e nunca quis. Dizia eu para o meu pai: “Oh pai, se eu tiver a carta, se comprar um carro, vou ser utilizado por muita gente para ir aqui e ali, porque eu não sou capaz de dizer que não e assim é dinheiro que poupo.” E então foi assim, a minha mãe praticamente estava em casa, mas tinha uma senhora, que era a dona desses carros e o esposo, e a minha mãe fazia lá a limpeza sempre, portanto, era como se tivesse também junto. Era o [...].
Eu, como atrás lhe disse, nestes 20 anos, praticamente, pertenci à direção, aconteceram coisas espetaculares. Uma delas, sabe muito bem que antes do 25 de Abril, não se podia dizer ai nem ui, entrávamos aqui, mas vínhamos com os pais, de outra maneira não podíamos entrar, só a partir dos 18 anos. E depois, indo mais à frente, aconteceu uma coisa espetacular, quando foi um ano em que resolvemos trazer o Francisco Fanhais aqui à coletividade, antes do 25 de Abril. E esteve quase para fechar a coletividade, adianto já que esteve quase para fechar. Tivemos depois a sorte de ir falando e tal e a coisa não aconteceu. Mas esteve aqui o Comissário da Polícia, estiveram aqui os Pides, estiveram aqui, que a gente depois veio a saber quem eram. Levaram os discos dele, levaram tudo que tínhamos aqui, foi assim. Passámos um mau bocado, nessa altura, mas nunca desistimos, continuámos sempre na mesma.
Isto foi feito praticamente por sócios. Foi a fábrica Campos Mello, por isso é que tem o nome, isto era só Grupo Educação e Recreio, e o que é que aconteceu? Aconteceu que isto, estas pessoas que estão aí da primeira direção resolveram juntar-se e ir ao Campos Melo, porque trabalhava muita gente daqui, ali em baixo. Resolveram ir lá e falar com o Campos Melo que queriam construir o grupo e o que é que podia acontecer. Este terreno era dele, ele deu o terreno e deu 20 contos nessa altura, 20 contos era muito dinheiro, que conseguiram pôr a parte de baixo quase toda pronta. E a partir daí, ficou então posto ao Grupo Educação e Recreio Campos Melo. Ainda hoje em dia se vai, em Março, ao cemitério em homenagem dos sócios ao jazigo dele. Nós é que praticamente estamos a tomar conta do jazigo.
P: O senhor já não se não se recorda exatamente desse período da fundação?
Francisco José Meruje: Não me recordo, recordo-me mais por ler os livros e ouvir contar aqui às pessoas mais velhas.
P: E o senhor, recorda-se desse processo de construção?
Francisco José Meruje: Ele recorda-se, desculpe lá, ele recorda-se porque quando fizeram o salão lá em baixo, fizeram um palco para dar uns bailes e eles iam para debaixo do palco ver as pernas às senhoras.
José Augusto Mendes: Quer dizer, a fundação disto, quando começou e começaram a fazer a sede, já tinha sido o grupo em dois lados. Depois foi quando o Campos Mello, conforme o Francisco disse, deu o terreno e começou. A obra que foi feita era só a entrada, uma pessoa agora entra, essa parte era fechada, mas estava a entrada de frente e era como esta divisão ou mais, mas apanhava altos e baixos e começava, e depois havia aí os bailes. Por debaixo estava a tasca, nesse tempo era tascas, não era bares. Havia a tasca, quando a gente entrava no terreno, depois havia a sala de baile e espetáculos, que já se fazia teatros e tudo, e depois havia o barbeiro, era pequenito, o espaço era pequeno, mas havia de tudo um bocadinho, barbeiro e tudo isso. Isso foi quando começou essa parte.
Depois, começou-se a arranjar dinheiro e depois é que fizeram o resto até aqui, como está agora, praticamente, mas ficou tudo em aberto, não havia nada de divisões nem nada e depois fizeram, disso o Francisco já se lembra, porque já foi mais tarde. E então havia uma divisão a esta ponta, puseram lá a barbearia, e já era um café mais ou menos. Depois havia os bailes todos os fins de semana, vinham as sopeiras, antigamente eram as sopeiras, que eram as criadas de servir, chamavam-lhes muitos nomes, e vinham para o baile, que era a matiné, até à 7:00 horas, porque elas depois tinham que ir dar o jantar aos patrões. E então, até essa hora, das 3 às 7 horas, era casa cheia.
Francisco José Meruje: Era uma animação. Senhoras, de um lado, homens do outro.
José Augusto Mendes: E depois havia os bailes e depois havia, para se arranjar dinheiro, isso já eu pertencia a essas comissões, havia os lances. Havia os rapazes que, esta não queria dançar com ele e depois havia os lances, quem ficasse com o lance ia oferecer...
Francisco José Meruje: O lance eram várias coisas, eram flores ou era...
José Augusto Mendes: Ou era sabonetes, arranjava-se muito dinheiro assim. E havia então o beberete, que era o chá, as meninas só chá, então iam as meninas ao chá, havia o disco, claro, porque cada um ia buscar a moça para ao café e tinha de pagar. O rapaz é que pagava o chá, um ou dois, o que ela comesse.
Francisco José Meruje: Depois tivemos também aqui o rancho folclórico.
José Augusto Mendes: Foi, o primeiro rancho folclórico. Isso foi em 1954, andava eu na tropa.
Francisco José Meruje: Depois fizeram-se aí muitos casamentos. Mas eram bons tempos, melhores do que estes.
José Augusto Mendes: Eu pertenci a esse rancho e mais um colega. E havia a Feira de São Tiago, que era lá em baixo no jardim.
Francisco José Meruje: Era no coreto, que agora foi embora daqui da Covilhã, não sei o que é que fizeram ao coreto, era aí, era no Campos Melo, no Oriental, nos Leões, aquilo ao fim havia sempre zaragata, mas depois acabava tudo junto, porque aquilo era aquele é que merecia ganhar, o outro é que merecia ganhar. Era assim.
P: Então digam-me uma coisa, na construção da sede era trabalho voluntário, eram os sócios?
Francisco José Meruje: Trabalho dos sócios, tudo feito pelos sócios.
P: Então e esse dinheiro que angariavam nos bailes em que é que o usavam?
Francisco José Meruje: Era precisamente para isso, ia-se fazendo aos poucos as divisões e pronto, havia um plano que estava traçado. Já não era como agora é, que é preciso ir à Câmara para fazer isto e aquilo. Nós temos lá em cima um polidesportivo, um ringue também, não sei se sabe, também lá temos um, também foi assim que se fez. Foram os sócios a trabalhar ali, embora se tivesse uma empresa, que havia coisas que não se sabia, não podiam ser feitas por nós, porque era arrancar pedras, tirar pedras e tudo do terreno. E foi assim que a gente o fez, com a ajuda do Castelo Branco do, como é que se diz, da Câmara, de várias instituições que nos foram dando dinheiro para conseguirmos acabar a obra que lá está em cima.
Só que o problema agora passa-se na questão do pagamento do IMI, e isso tem que ser pago e tem que ser tudo. E por isso é que as coletividades estão um bocadinho em baixo, por causa dessas coisas, que deviam ser, que fazem tão bem à população, que deveriam ser isentas dessas coisas, se outras pessoas são e que não fazem tão bem à cidade e aos grupos e às coletividades… É assim e temos que ir vivendo conforme bate o batuque.
P: Então começaram com os bailes, o rancho....
José Augusto Mendes: E havia uma cotização também. Eram umas cadernetas, eu não sei se o Chico se lembra, eram umas cadernetas e que com um carimbo punham só pago e mais nada. E depois é que passou então a ser com cortes.
Francisco José Meruje: Mas era de facto um tempo diferente do que é este. Havia mais...
José Augusto Mendes: Havia mais respeito…
Francisco José Meruje: Este bairro era o mais populoso da Covilhã. Acaba por ser um bairro com menos população que há agora. Era uma coisa espetacular, a coletividade todos os dias estava cheia, depois tinha snooker, tinha as damas, tinha o jogo da sueca, tinha várias coisas.
José Augusto Mendes: Era o loto, antigamente que isso era...
Francisco José Meruje: Fazia-se os bailes de carnaval, era o segundo baile do país, no Carnaval, o melhor era lá em cima na Serra, tínhamos que proibir a entrada às pessoas, porque era aquele salão todo cheio. Às vezes, às 10h30 já ninguém podia entrar. Era uma coisa impressionante.
José Augusto Mendes: E depois eram quatro dias. Era começar hoje à 1h00 e só saíamos de manhã às 8 horas.
Francisco José Meruje: Sair às 8 horas para o trabalho. Sair do trabalho às 5h00 e ainda varrer tudo para essa noite, para ficar até às 4, 5 da manhã, ir trabalhar, eram quatro dias assim. Mas eram comissões espetaculares.
P: Organizavam-se em comissões?
Francisco José Meruje: Exatamente, para ajudar a direção. Era uma comissão que estava a tomar conta, por exemplo, ficar lá em baixo para ver se havia algum problema ou não havia e tal e tentar resolver sempre as coisas.
José Augusto Mendes: Foi primeiro o teatro e depois é que foi o rancho, o primeiro em 1954, que foi a primeira vez o rancho.
P: E o teatro foi quando?
José Augusto Mendes: O teatro foi sempre, quando o grupo teve sala para dar espetáculos começou logo.
P: Mas eram os sócios que faziam teatro?
Francisco José Meruje: Era, um dos primeiros ensaiadores do teatro foi o sr. [...], que foi também presidente. Esse foi ensaiador, foi presidente, foi contínuo, contínuo da coletividade, e que estávamos todos e ele é que fechava, fazia a limpeza, fazia tudo. Isto porque, antigamente, isto tinha funcionários. Tinha funcionários que faziam cumprir as regras dos estatutos. Eu, se viesse à porta, que entrasse ali e ele me visse, o espanador que tinha na mão, ia ele e eu tinha de fugir, porque era assim e não entravam mesmo. Com os pais não havia problemas. Eu só comecei aqui entrar praticamente aos 12 anos, quando o meu pai vinha cá, é que eu vinha com ele. E ficava ali quietinho...
José Augusto Mendes: Eu, quando me fiz sócio, tive que fazer os 18 anos, e agora não, fazem-se sócios logo que nascerem. Eu não, ficava ali à entrada, ali estávamos…
Francisco José Meruje: Antigamente só aos 18 anos é que se podiam fazer sócios.
José Augusto Mendes: Porque se me fizesse sócio nessa altura em que eu entrava com o meu pai, eu agora sou um número baixo, mas pronto, era mais baixo.
P: E algum de vocês fez parte do teatro?
José Augusto Mendes: Eu fiz, o Xico não, o Xico foi ensaiador.
P: E quais eram as peças que faziam e qual é que gostaram mais?
Francisco José Meruje: Uma das peças que todos gostámos mais e que estivemos agora a fazer outra vez, há cerca de um ano e tal, foi a Casa de Pais, que tivemos uma menção honrosa e até um diploma e tudo. Teve cá o Ruy de Carvalho, a servir de júri no teatro-cine da Covilhã, tivemos uma menção honrosa, uma senhora que não sabia ler nem escrever e decorou o papel todo, o principal papel todo, só as pessoas a lerem para ela dizer as coisas.
José Augusto Mendes: Era minha tia. Eu tinha um meu tio, que era o professor aqui, que era o [...], que era um homem que tinha uma mão deficiente, e ele é que dava aulas aqui. Foi um dos professores aqui da Covilhã, porque quando levava alunos a exame, todos passavam e os outros não passavam.
P: Era boa, a escola da coletividade?
José Augusto Mendes: Era. Teve cá bons professores, sim senhora.
P: Até quando é que durou a escola?
José Augusto Mendes: Acabou não foi há muitos anos, que passou lá para cima, que era para ser feita no barracão que deitaram abaixo, onde eu fui criado.
Francisco José Meruje: Já não tenho recordação. Isso, depois, a senhora ali nos livros vê lá, se quiser. Há muita coisa que a gente já…
P: E vocês, com o teatro e com o rancho, passeavam pelo país?
Francisco José Meruje: A Casa de Pais correu aqui a Covilhã toda, todas as coletividades, esta última…
P: Qual é a história da Casa de Pais?
Francisco José Meruje: A Casa de Pais é um filho que quer virar e está casado com uma mulher, portanto, está casado, é um casal e a mulher manda nele. A mulher é que manda nele e que diz o que há de fazer e o que não há de fazer e quer pôr o velho num sítio qualquer, quando o velho é que está a dar tudo. Depois há dois irmãos que são do outro lado e há outros, há o mais novo que está com o pai e que pega numa espingarda, pega em tudo, ameaças, mas ela manda-se para cima dele, a cunhada. E depois acaba por, pronto, acaba por tudo ficar bem, pedem perdão e tudo. Mas são três atos espetaculares.
José Augusto Mendes: Deram-se cá grandes peças de teatro, sempre casa cheia.
P: E o rancho, como é que era?
José Augusto Mendes: O rancho não era como agora se faz, de nenhuma maneira, era, enfim...
Francisco José Meruje: Era bom.
P: E vocês, só faziam parte desta associação ou faziam parte de outras?
Francisco José Meruje: Não, só desta associação. Somos guerreiros até ao fim do mesmo.
José Augusto Mendes: Eu mais o Francisco somos os últimos sócios que estamos sempre aqui.
Francisco José Meruje: E depois o Rui arranja-nos estes caldinhos.
P: E as mulheres, as mulheres também se envolviam nas comissões?
Francisco José Meruje: Sim, sim. Olhe a questão das marchas, por exemplo, estava a dizer à sua colega que aqui o salão estava sempre cheio, tínhamos as mulheres, elas faziam os vestidos, elas faziam tudo, quer dizer, havia sempre uma pessoa como eu que dizia o que queria e como queria e havia pessoas que estavam nas confeções, que trabalhavam nas coleções, traziam as máquinas delas e faziam tudo. Era espetacular o convívio, um convívio espetacular!
P: E as mulheres também participavam nas direções?
José Augusto Mendes: Sim, sim, sim.
Francisco José Meruje: Ainda hoje há, ainda hoje esta direção tem. Tinha pelo menos duas, três, mas agora só duas, a [...]e a [...].
P: Andaram aqui na escola primária também?
Francisco José Meruje: A [...]sim, a [...]não.
José Augusto Mendes: A [...]é do Canhoso.
P: Estou a perguntar acerca das mulheres em geral…
Francisco José Meruje: Havia muitas mulheres na escola, tinha a escola dos rapazes e a escola das meninas. Não devia haver mistas nessa altura.
P: Então, contem-me lá, estavam-me a dizer que antes do 25 de Abril ainda tiveram alguns problemas com a polícia.
José Augusto Mendes: Tivemos sim. Era eu diretor e o [...], que já faleceu, que foi presidente da Junta, e tinha uma loja de mercearias aí nessa rua, quando se vem do Sporting, do antigo Sporting. Tinha aí uma mercearia, éramos nós e eu era presidente. E então há uma sexta-feira, a pior guerra foi essa, essa já não foi com o Francisco. E estava uma direção, nós íamos a sair, já cá estávamos há quatro anos e com isto a andar para trás, porque nós, quando entramos para cá não havia dinheiro. Nós então dávamos aos sócios quando morriam um X, ao sócio era um X, era 700 e depois passou para 1000. E era aos filhos.
Pois é, quando nós entrámos não havia dinheiro. No primeiro dia que entrámos nesta porta, aparecem logo a pedir-nos dinheiro, nós não tínhamos dinheiro, sabe o que é que nós fizemos? O [...] diz assim “bom, temos que resolver isto, temos que pagar”. E agarrámos, tu ganhas X, dás X, que eu tenho aqui, e foi assim que pagámos. Eu ganhava menos, dei menos. O [...] deu mais porque podia mais. E pagámos assim os subsídios às pessoas para não cortar. Depois começou a entrar dinheiro, porque nesse tempo tínhamos 3000, 2000 a 3000 sócios, só a quotização dava muito dinheiro.
P: Explique-me lá isso dos subsídios, eram subsídios de funeral?
Francisco José Meruje: Eram mil escudos o homem... Acabou por depois se eliminar dos estatutos essa cláusula, porque já não tinha importância pagar isso, porque toda a gente, praticamente, tinha os funerais pagos pela caixa, mas o que é certo e verdade é que dávamos os livros para os filhos para a escola, que se davam também todos os anos, isto antes do 25 de abril, aos que estavam mais carenciados. E houve mais coisas que eu agora não estou recordado, na questão de beneficência para as pessoas.
P: Mas conte-me lá melhor essa história de quando veio cá o Padre Fanhais....
Francisco José Meruje: Quando veio o Fanhais foi assim, foi anunciado que vinha o Fanhais e até era entrada livre. O salão completamente cheio, as pessoas vieram, mas não sabiam ao que é que vinham. Até eu nem sabia se havia PIDE se não havia PIDE, nessa altura. Ora, sei que fui a uma discoteca comprar o último disco dele, em vinil. Arranjei dentro do palco, com tudo fechado, arranjei um gira-discos, liguei a corrente e enquanto as pessoas entravam e estavam à espera que ele viesse, pus o disco a tocar, sempre ia tocando.
Quando ele chega, abrimos as coisas e qual foi o nosso espanto, cantou aquela canção que diz os “polícias cães e os cães polícias” e qualquer coisa assim do género que agora já não me recordo. Vimos um burburinho na sala. Não, não houve assim grande coisa, mas um burburinho e a gente começou logo. Olha, há aqui qualquer coisa. E dissemos ao Francisco Fanhais: “Você vai já embora daqui no seu carro e, por favor, quando chegar ao Barreiro, diga-nos, por favor, se chegou ou não chegou bem, se há algum problema.” Ele saiu daqui e felizmente não houve problemas nenhuns. Ligou-nos, estava tudo bem, mas depois começaram aqui a ser interrogados os membros da direção, embora eu não estivesse na direção, mas os membros da direção foram interrogados. Chegámos à porta: “Aqui ninguém mexe, nem nada”. A partir daí, tivemos a sorte de que a coisa se esqueceu e a coletividade safou-se dessa coisa, mas foi, foi um....
Mas, quer dizer, levaram os discos, levaram o gira-discos, como já tinha dito atrás, levaram tudo o que era revolucionário. E depois avisaram: “Não façam mais disto, porque vocês não podem fazer estas coisas.” ”Mas isto é uma coisa normal, a gente traz as pessoas que podemos trazer aqui para ganharmos algum dinheiro, é o normal.” E ele não quis um tostão. E é assim, acabou assim a história.
P: E a biblioteca? Tiveram algum problema com os livros da biblioteca?
Francisco José Meruje: Não, não, nunca tivemos problemas na biblioteca.
P: Era muito frequentada?
Francisco José Meruje: Antigamente era, antigamente.
P: Também emprestavam livros para casa?
Francisco José Meruje: Sim, exatamente, ficava o nome da pessoa, ficava tudo e entregávamos um papel como ele entregou.
José Augusto Mendes: E depois, quem lesse mais tinha um prémio.
Francisco José Meruje: Também tinham um prémio.
P: E houve pessoas que aprenderam aqui a ler?
Francisco José Meruje: Sim, várias, havia a escola da noite para idosos, que não sabiam ler nem escrever. Então liam aqui, fechavam aquelas aulas, aquelas aulas normais, à noite, às 7h00 ou 8h00 horas e começavam as aulas na altura.
José Augusto Mendes: Os meus filhos foi aqui que aprenderam a ler. O mais novo foi aqui, tirou a quarta classe. Eu não sei se ele chegou a tirar aqui, parece que teve de ir para a central. Já o mais velho não, ele tirou aqui a quarta classe e depois foi para o antigo liceu, foi para aí.
P: Depois e depois do 25 de Abril, o que é que mudou?
Francisco José Meruje: Depois do 25 de Abril, as coisas correram muito melhor. Quero dizer, esta coletividade já passou e conseguiu resolvê-las. Já teve problemas graves, ainda agora houve um que acabou de ser resolvido aqui com esta direção, de umas direções já muito antigas. Neste momento, a coletividade está saudável em questões financeiras, não deve um tostão a ninguém, graças a Deus, e estamos aqui no nosso cantinho, sem chatearmos ninguém e ninguém nos chatear.
P: E diga-me uma coisa, nesse período, logo a seguir ao 25 de Abril, algumas populações fizeram coisas tipo construir estradas… Aqui também fizeram isso?
Francisco José Meruje: Sim, tivemos aqui o parque, foi feito pela Comissão de Moradores, fizemos aqui no grupo uma comissão de moradores.
P: Quando é que isso foi?
Francisco José Meruje: Isso foi praticamente a seguir ao 25 de abril, talvez dois meses depois do 25 de Abril. Fizemos aqui uma reunião e tal, fez-se umas atas, tudo, foi-se a aprovar onde foi preciso ir e teve a Comissão a trabalhar. A Comissão arranjou aqui este coiso que depois foi entregue à junta de freguesia e ali o poço grande, não sei se conhece, que era ali um poço em que a água ia para a fábrica do Campo Melo para lavarem a lã. Vinha da Serra, tinha as minas todas aqui, ia ali o poço grande, como nós lhe chamámos. Aí a Comissão também teve que intervir, porque o [...], o senhor [...], não é, Queria fazer ali um prédio alto e coisas e a Comissão...
José Augusto Mendes: E ainda foi, já tinha as paredes...
Francisco José Meruje: E teve de se deitar abaixo e a Comissão de Moradores é que fez aquilo, porque senão ficava ali um monstro desgraçado, ainda está, mas não tem água, não tem nada, pronto, e aquilo está ali.
José Augusto Mendes: Fazia-se lá desporto e tudo, havia sempre ali gente naquele tempo. E vinha ele a buscar as miúdas, porque não havia lá miúdas nesse tempo...
Francisco José Meruje: Aquilo era a piscina antiga, a primeira piscina da Covilhã, com bancadas, com balneários...
José Augusto Mendes: Com balneários, com pranchas para saltar e tudo isso. Havia festas aos fins-de-semana, festas mesmo.
Francisco José Meruje: Acabou isso. Fizeram ali aquelas casas todas, que vêm desde ali do princípio até ao fundo de tudo. Era tipo um campo de futebol onde se jogava à bola e tudo. Acabou, isso acabou, queriam fazer um prédio lá, não fizeram, agora o que é que está ali? Está ali um sítio espetacular para se fazerem festas de Verão. E como é que conseguem fazer as festas de Verão quando a Câmara quer dinheiro? É que ali nós podíamos fazer as festas de verão. Agora, com esta epidemia é difícil, mas antigamente ainda se lá fez muitas, mas geralmente eles é que punham a luz, punham tudo, faziam tudo, a Câmara, mas depois começaram a querer que se pagasse. E uma coletividade como esta, era para ver se se ganhava algum dinheiro. Fazia-se lá uns bares, fazia-se uma sardinhada, uma carne entremeada e essas coisas assim de Verão. Aquilo ali era espetacular. Agora puseram uns aparelhos para se fazer ginástica e tal, umas bancadas. Se quiserem, depois quando sairmos irem lá ver e tirar umas fotografias, pode ser que interesse.
P: E digam-me uma coisa, estavam-me a falar que houve uma pessoa da direção que depois foi presidente da Junta de Freguesia.
José Augusto Mendes: Foi o [...], porque foi nessa altura que o grupo começou a ser mais controlado pela polícia. E então a salvação desta coletividade, nessa altura, foi esse [...], era o presidente da Junta. Nós tínhamos reunião, que foi uma sexta-feira, eu chego, que eu morava ali ao pé do poço, e quando chego aqui vejo a polícia com metralhadoras. “O que é que se passa aqui?”, nunca pensando que nós íamos a sair. A direção ia sair, que já cá estava há muito tempo. E a direção que vinha para cá era tudo comunistas, eram os comunistas, era o [...], era tudo, era lá de baixo, era o [...].
E então telefonei para o [...], o [...] morava naquela casa ali, e eu disse: “Oh [...], venha já, passa-se isto assim, assim, assim.” Ele veio logo, chegou aqui: “Eu sou o presidente da Junta.” O chefe da Polícia, assim que viu o Zé Curto, chegou: “Passa-se isto assim, assim. Vocês não abrem já a coletividade, senão… Hoje fica fechada.” Tínhamos assembleia, nem assembleia, nem nada. Fechámos logo tudo, mas o bar ficou aberto. O bar ficou aberto, só fechou a parte onde íamos fazer a assembleia. Fechou-se tudo, eles andavam, estavam por cima, a polícia a cercar tudo e então não houve assembleia.
O [...]nessa noite foi preso, agora o resto não sei o que é que se passou. E depois esse [...], eu andei de mal com o ele, nem lhe falava, porque o gajo disse que eu é que o mandei prender, quando eu nem sequer falei em [...] nem nada. Eu nunca mais lhe falei. Mas depois, mais tarde, fizemos as pazes, porque ele soube que não fui eu.
Francisco José Meruje: Mas isso era bom, porque antigamente havia muita gente interessada em vir para direções aqui, às vezes apareciam duas, três, quatro, cinco listas, agora nem vê-los. Antigamente era uma assembleia que estava aqui às vezes duas e três horas a discutir coisas, como devia ser e agora estamos à espera que apareça alguém, mas é difícil.
P: E o que é que se discutia nessas assembleias com muita gente?
Francisco José Meruje: Discutia-se os anos todos da coletividade, nessa altura que esteve cá a direção, se faziam bem, se faziam mal, podiam ter feito assim, podiam ter feito assado, os com culpas, outros sem culpas, era isto. Depois aparecia um que dizia “isto é uma bolinha de neve que anda tudo à roda”. Havia cá uns cromos, como se costuma dizer agora...
José Augusto Mendes: O bolinha de neve ainda não morreu, ainda é vivo.
P: E havia discussões acesas?
Francisco José Meruje: Acesas mesmo, só que também era diferente, o presidente da Assembleia Geral: “Oiii” – e calavam-se, senão iam lá para fora, mas havia, costumava haver, muitos diálogos, mas eles: “Não, não, não há diálogos.”
P: Mas discutia-se livremente? As pessoas diziam o que achavam?
Francisco José Meruje: Livremente, quem tivesse de dizer, dizia, quem tivesse que apanhar, apanhava, e quem tivesse depois que reportar e dizer que não foi assim, foi assado. Era um debate que parecia a Assembleia da República.
P: E diga-me uma coisa, esta gestão do dinheiro, de pagar os subsídios era uma coisa difícil?
Francisco José Meruje: Sim, sim, muito difícil mesmo.
P: Como é que vocês faziam?
José Augusto Mendes: Quer dizer, esta coletividade tinha dinheiro nessa altura, havia uma vez que não havia, era consoante as direções que tivessem.
Francisco José Meruje: Era consoante o que se recebia da Câmara, o subsídio de Castelo Branco, o subsídio da junta de freguesia, o subsídio… e aí, depois, é que se arranjava de facto algum dinheiro para… E depois havia então os bailes de Carnaval, que era de facto a altura em que a gente tirava o dinheiro para todo o ano de que a coletividade precisava. Bastavam quatro dias. A primeira coisa que a gente fazia era corrermos uns atrás dos outros à bilheteira: “Como é que está? Já pagámos o conjunto?” “Já.” “Agora, a partir daqui é só lucro.”
E pronto, era assim, era assim que fazíamos. Andávamos para saber se as coisas estavam a andar bem ou não. E de facto fizemos aqui coisas espetaculares, vieram aí conjuntos de Coimbra, de Tomar, de vários lados, coisas espetaculares. E olhe, foi-se andando assim até que começaram a vir estes tempos e agora só nos dão dor de cabeça. Embora a gente não esteja na direção, mas dá-nos dor de cabeça também a quem tanto viveu esta coletividade, dá-nos dor de cabeça porque estamos a ver que não há continuação. Este bairro está desertificado, é só pessoas de idade. As pessoas novas, como o presidente, foram todos ali para aquela de Canhoso morar e as filhas deles e tudo.
José Augusto Mendes: E quem teve a culpa disto tudo foi o [...] e sabe porquê? Porque era para fazerem um bairro aqui por cima....
Francisco José Meruje: É, aquilo era terreno, diz ele, que não se podia fazer e agora já andam lá para cima a fazer tudo. Não compreendo.
P: Então mas não há muita gente nova aqui na coletividade?
Francisco José Meruje: Não, não, novos, eu vou lhe dizer, contam-se pelos dedos, que moram aqui em cima, são aí uns 10 ou 12.
P: Mas vocês têm muito cuidado em preservar a memória, têm um museu. Acham que essa memória passa para as pessoas mais novas?
Francisco José Meruje: Passa e eles sabem.
José Augusto Mendes: Só se aparecer, assim como foi com o meu filho. Ele apareceu, falaram-lhe do Covimúsica, e foi capaz de sempre...
P: O que é que é o Covimúsica?
Francisco José Meruje: O Covimúsica é um grupo de música popular portuguesa.
José Augusto Mendes: Eles têm atuado muito aí, na cidade.
Francisco José Meruje: Está praticamente, nesta altura do Verão, quase os fins de semana todos ocupado pela INATEL, para ir ao hotel de Manteigas, das termas, vai lá em cima aos hotéis da Serra e tem saídas aí pelo Fundão, pelo Teixoso...
P: E foi criado aqui?
Francisco José Meruje: Foi criado aqui.
José Augusto Mendes: Foi, foi o meu mais velho que o criou.
Francisco José Meruje: Já há 30 anos, e quantos são, oito ou nove?
José Augusto Mendes: São dez.
Francisco José Meruje: Há feminino e masculino, tocam a guitarra, tem a viola, tem o bombo, tem o pífaro, tem várias coisas.
P: Mas aprenderam a tocar aqui, tinham uma escola de música?
Francisco José Meruje: Tudo aqui, mas aprenderam por eles próprios, é uma coisa que nasceu mesmo deles.
José Augusto Mendes: O meu filho é que sabia tocar um bocadito de viola e começou a tocar.
P: E esse grupo está ligado formalmente à associação?
José Augusto Mendes: Sim, sim, é do Campos Melo, tudo aquilo que eles ganham é para a coletividade, mas quando precisam de comprar alguma coisa é daquele dinheiro que sai. E têm uma aparelhagem, uma mesa de som, já do mais moderno que há, têm tudo.
Joana Dias Pereira: Então até se está atualizar, a coletividade…
Francisco José Meruje: Sim, sim, está a atualizar-se, porque tem uma pessoa à frente que é o neto do Sr. José, à frente daquilo que para a parte de cores e de luz e tudo isso, aquilo é espetacular.
P: Então e pensando que até têm estas coisas novas e modernas, qual é que acham que será o futuro do associativismo?
Francisco José Meruje: Aqui ainda podemos dizer que é um bocado difícil, mas sei que há de facto aí conhecidos, como os Pinheiros Altos, o Rodrigo, a Mata, não sei como é que está.
José Augusto Mendes: Oh, está tudo mal… e ainda esteve pior.
Francisco José Meruje: Agora aqueles que têm muita população, Canhoso, Teixoso, Tordosendo, todos esses têm muita gente ali, muita gente. Para mim, talvez o que tenha mais gente é o dos Pinheiros Altos, o Académico dos Pinheiros Altos, que é de facto o que deve ter mais gente. Depois tem aqui os Leões da Floresta, que é lá em baixo, com os estudantes também se safa. Está depois o Oriental, também é os estudantes, também se safa. Aqui temos a UBI, mas é praticamente dormir e isso tem aqui muita gente, mas vão todos lá para baixo.
José Augusto Mendes: As boîtes é que deram cabo das coletividades, porque os rapazes novos querem é poder pedir até sei lá quanto. Eles pagam tudo e não dizem nada e se for aqui já falam.
Francisco José Meruje: As discotecas é que deram cabo das coletividades. Porque antes de abrirem as discotecas, nós aqui às tardes, aos domingos às tardes, havia uma comissão e fazia uns bailes, e ao sábado à noite.
José Augusto Mendes: Aproveitava-se tudo.
Francisco José Meruje: E aproveitava-se, não era muito o que se pagava. Era um euro de entrada, mas era qualquer coisa, era sempre dinheiro.
José Augusto Mendes: Isto no tempo da televisão, quando começou a haver as televisões, que não havia, o primeiro grupo foi este. O grupo pôs a televisão, as mulheres e tudo, tínhamos a sala que era ali onde está um café, parte do café.
Francisco José Meruje: Tínhamos uma plateia. Os novos só vinham cá quando dava os cowboys e coisas assim, estavam aí, depois iam-se embora. Depois estavam cá as pessoas mais idosas, já podiam assistir à vontade. Mas depois pagava-se 5 tostões, era uma das quotas, rasgava-se uma quota e lá entravam, mas com rigor, não andavam a brincar e a rir de qualquer maneira, estava lá o contínuo, como eu disse, à porta de entrada.
P: Mas isso era o cinema?
Francisco José Meruje: Não, não. Era a televisão, a primeira.
José Augusto Mendes: Quando se comprou a televisão, a primeira televisão era a preto e branco.
P: Mas eu vi que tinha ali uma bobine de cinema.
Francisco José Meruje : Não, também cá houve, davam-se espetáculos, havia um rapaz que morava nestas casas aqui em frente ao grupo, que estava no Inatel. Ele é que estava encarregado de trazer os filmes e rodar aqui. Esta foi oferecida pelo INATEL, esta máquina de filmes.
P: E aí também cobravam entrada?
Francisco José Meruje: Sim, sim, o valor era simbólico, mas pronto era dinheiro. Era dinheiro que entrava, sempre dava qualquer coisa. Todas as semanas havia um filme...
José Augusto Mendes: Aproveitavam-se todos os tostõezinhos que se pudesse. Antigamente para se fazer isto tinha que ser assim, senão não se podia.
Francisco José Meruje: E agora têm que dar às pernas para conseguirem aguentar isto como deve ser e são tempos muito difíceis nesta altura.
José Augusto Mendes: Eu digo ao meu filho “eu tenho amor a isto”, mas tenho que lhe dizer. Ele anda quilómetros durante o dia, porque ele é vendedor e anda quilómetros durante o dia e depois aparece às quinhentas. E eu digo-lhe para ele: “Tu não podes ali andar assim.” Depois vem para aí, ele ajeita-se em pintar e ele .... E então eu digo-lhe muitas vezes: “Deixa aquilo, porque não é agora que sai”.
Francisco José Meruje: Pois não, é verdade, isso é verdade.
José Augusto Mendes: Mas ele tem amor a isto e tem lutado para isso. Por isso, não havia dinheiro, não havia dinheiro e agora têm dinheiro. Mas agora digo eu, há sócios que não merecem. Eu mais o Francisco já fomos aqui prejudicados. Agora não há, mas teve aí um tipo no café, nós fomos, sem fazermos nada, nós fomos metidos ao barulho e não tínhamos culpa nenhuma e esses sócios deixaram até de aqui vir.
Francisco José Meruje: Mas isso é em todo o lado, há sempre. Em todo o lado é assim.
P: Como é que acham que a coletividade marcou a vossa vida? Imaginam a vossa vida sem a coletividade?
Francisco José Meruje: Agora não, isto foram anos e anos aqui a trabalhar bem, eu tinha fins-de-semana que era até às quatro e cinco da manhã, quando era das marchas a fazer as coisas todas. Eu e as outras pessoas que ajudavam. Estávamos aí semanas e semanas, eram dois meses, dois meses de azáfama, a irmos de um lado para o outro fazer isto e aquilo.
José Augusto Mendes: Antigamente trabalhava-se aqui. Éramos todos, faz de conta que era só um. Todos trabalhavam, porque havia sempre um que era o primeiro e então esse é que dava as ordens e era assim, nós concordávamos ou não concordávamos, mas era assim. Havia uma comissão, era organizada, mas havia um: “Vamos fazer isto” e nós ....
P: Como é que era escolhido esse que liderava?
Francisco José Meruje: Era o que tinha mais ideias e o que sabia fazer dessas coisas.
José Augusto Mendes: E depois apresentava ideias e nós apresentávamos ideias, digamos, vamos a fazer isto ... havia sempre ideias. Aliás, nem sempre havia acordo e o Francisco sabe, nessa coisa ele é mais novo do que eu, não é muito mais, claro que faz a diferença, e a gente, as comissões era tudo ok. Era sim senhor. Quando se visse que havia um que era daqueles que andava a desviar, não, tinha que ir embora. E isso era logo de cara. Ali a malta trabalhava, batia as três, batia as quatro, batia as cinco, estávamos sempre com eles...
Francisco José Meruje: Eram tempos magníficos… Isto das marchas também, a pandemia também veio estragar tudo.
José Augusto Mendes: Eu tive o Carnaval. Saía e ia pegar às 8 da manhã, mas apressavam-me para que fosse mais cedo, porque tinha lá o trabalho. Eu às 3 da manhã saía daqui e ia logo pegar ao trabalho sem dormir, sem dormir e isso era quatro noites seguidas.
Francisco José Meruje: Não, era gostar e ter amor à coletividade. Desde que se tenha amor à coletividade e que se goste dela, uma pessoa parte que vive por ela.
José Augusto Mendes: Pode aparecer, é verdade, mas é difícil, é difícil. Apareceu agora o meu filho, vá lá, e o outro, vá lá, e o Covimúsica têm-se aguentado. Já lá vão muitos anos e têm-no aguentado sempre. Ele é que tem sido sempre a base. É ele, o mais velho, foi o que formou o grupo, ele e mais um colega, e o colega anda meio doente. Têm amor por isto.
Francisco José Meruje: E agora, também é verdade, temos aí a zumba, que é uma atividade para pessoas casadas e tudo, enfim, senhoras, que às segundas e quintas feiras fazem aqui a sua magreza, as suas calorias desaparecerem e é mais uma coisa que dá pouco dinheiro, mas que interessa à coletividade.
José Augusto Mendes: São sócias e pagam.
Francisco José Meruje: Têm uma pessoa à frente, que está a tratar disso e que sabe fazer as coisas e às segundas e quintas feiras aqui estão. Não houve durante a pandemia, no ano passado, não houve nada, mas agora que já começou a abrir já fazem, porque não é grande, são 10 ou 12 pessoas e podem estar ali à vontade para fazer exercícios. É assim...
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4 de junho de 2021
P: Nasceu aqui, na vila do Carvalho? Em que ano?
Francisco Bragança: Sim, a 12 de Agosto de 1936.
P: E estudou aqui?
Francisco Bragança: Fiz a terceira classe e depois fui trabalhar, com 10 anos.
P: Para onde?
Francisco Bragança: Para a Covilhã.
P: Para quê?
Francisco Bragança: Lanifícios. Comecei na ultimação e acabei na tinturaria. Trabalhei 50 anos, dos 10 aos 60.
P: Sempre no têxtil?
Francisco Bragança: Sempre. Quando comecei a trabalhar ainda não havia luz na aldeia, não havia transportes, não havia nada. Ia com 10 anos, porque, vamos lá, naquele tempo muito raras eram as pessoas que sabiam ler. A minha mulher é quase dois anos mais nova do que eu e não sabe ler.
P: Também trabalhou na têxtil, a sua mulher?
Francisco Bragança: Sim, muitos anos.
P: E os seus pais também?
Francisco Bragança: OS meus pais também.
P: Também eram daqui?
Francisco Bragança: Eram daqui. O meu sogro e a minha sogra não trabalhavam nos lanifícios, era no campo. Porque o meu sogro andou na guerra de 1914-18 e quando veio, veio doente. Tinha sete filhos e a minha mulher, quando ele veio, tinha cinco ou seis anitos, foi obrigada a ir logo trabalhar. Para se casar, teve de aprender a fazer o nome. Faz à sua maneira, mas faz o nome.
P: E tem filhos?
Francisco Bragança: Tenho dois filhos e uma filha.
P: Ficaram aqui ou foram para fora?
Francisco Bragança: Tive uma filha, que ao fim de três meses morreu-me. Agora tenho uma filha que vai fazer 58 ou 59. A minha filha, não sei, é de 1962. E tenho uma filha que tem 54 anos.
P: Os seus pais ou alguém da sua família fazia aqui parte da banda?
Francisco Bragança: Dois primos direitos. Um depois, mais velho, mas outros esteve cá pouco tempo. Ainda por cá passou um filho meu e uma neta.
P: Também esteve aqui na banda?
Francisco Bragança: Não foi muito tempo, mas esteve.
P: Então e o senhor, pode dizer o seu nome todo, para ficar registado?
Carlos Dâmaso: Carlos Agostinho Dâmaso.
P: E nasceu em que ano?
Carlos Dâmaso: Nasci em 1954, nasci mesmo aqui na vila do Carvalho, não fui ao hospital nem nada, foi mesmo aqui.
P: E estudou aqui?
Carlos Dâmaso: Sim, até à quarta [classe], depois ainda fiz a admissão, ainda estive na Campos Melo algum tempo. Andei lá no curso, mas não acabei, de Eletromecânica.
P: E depois, foi trabalhar para onde?
Carlos Dâmaso: Comecei também aqui, na fábrica aqui em cima. Fui para ao pé deste colega, que já lá estava na serralharia. Mas depois, como o patrão, que era o Francisco Fazenda, admitiu-me mais por causa de eu ter dito que andava a estudar lá no curso de Eletromecânica e tal, comecei a fazer as duas coisas, era eletricista e estava na serralharia com ele.
P: E os seus pais também trabalhavam aqui?
Carlos Dâmaso: Os meus pais trabalhavam naquelas fábricas na vila.
P: Mas eram daqui…
Carlos Dâmaso: A minha mãe sim. O meu pai nasceu na freguesia de São Pedro da Covilhã, mas veio muito cedo aqui para a aldeia, para casa de umas tias.
P: E casou-se?
Carlos Dâmaso: Sim casei, mas já estou viúvo. Em 2001 faleceu a minha esposa.
P: E tem filhos?
Carlos Dâmaso: Tenho um. O meu filho casou, esteve a estudar e vive noutra freguesia.
P: E o senhor?
Jeremias Espinho Roceiro: Jeremias Espinho Roceiro
P: Nasceu aqui também? Em que ano?
Jeremias Espinho Roceiro: Sim, nasci aqui, em 25 de abril de 1958.
P: E estudou aqui?
Jeremias Espinho Roceiro: Fiz aqui a instrução primária. Fiz a quinta classe na altura e depois estive dois anos no Seminário do Fundão. Depois fui para os lanifícios também.
P: Aqui ou na Covilhã?
Jeremias Espinho Roceiro: Na Covilhã. Depois sai para o comércio. Entretanto, a firma onde trabalhava faliu e eu entrei no comércio, numa loja de máquinas e ferramentas.
P: Acabou sua carreira aí?
Jeremias Espinho Roceiro: Sim, aos 60 anos.
P: E casou-se aqui?
Jeremias Espinho Roceiro: Casei aqui duas vezes.
P: E tem filhos?
Jeremias Espinho Roceiro: Tenho duas filhas.
P: E os seus pais também eram daqui?
Jeremias Espinho Roceiro: Sim.
P: E trabalhavam nos lanifícios?
Jeremias Espinho Roceiro: Trabalhavam. A minha mãe pouco, porque casou e éramos nove irmãos. Começou a ter as crianças e acabou por ficar em casa muito cedo. O meu pai é que se fartou de trabalhar. O meu pai foi músico também aqui nesta Filarmónica. Quando deixou a Filarmónica, já estava com à volta dos 80 anos e ainda tocava.
António José Duarte: Sou António José Esteves Duarte, mais conhecido por Tó Zé Duarte, como eu gosto que me tratem. Eu também nasci nas quintas desta aldeia. Vim a esta aldeia a primeira vez quando fui batizado e a segunda vez quando vim para a escola, aos sete anos.
P: Nasceu em que ano?
António José Duarte: Em 1952. Sou casado, tenho dois filhos, um que também passou por aqui pela banda para estudar música e depois estudou diversas coisas e atualmente estão os dois a trabalhar como auxiliares no hospital da Covilhã. Portanto, eu já estou aqui há 53 anos a frequentar esta casa. A primeira vez que vim para cá foi em 1966-67. Havia aqui uns jovens que eu admirava muito vê-los na banda. Foi isso que me incentivou também a vir para cá. Vim aprender solfejo, que eram os próprios músicos que ensinavam solfejo àqueles que entravam, um rapaz que já há muitos anos que nunca mais vi, que era o Jorge. Mas as coisas também não andavam muito bem e depois saí. Voltámos depois mais tarde, já uma quantidade deles, ainda existimos três, que sou eu, o Carlos Dâmaso e o Agostinho, que ainda continuamos cá. E também nessa altura estavam aqui a iniciar as obras da primeira sede desta Casa.
P: Não tinha ninguém da sua família que andasse nesta banda?
António José Duarte: Não, sou filho de pais analfabetos, das quintas, sempre na agricultura, e não sei porquê, foi como disse, a admiração que via naqueles jovens...
P: Que idade é que tinha quando isso aconteceu?
António José Duarte: Tinha aí uns 14 anos quando entrei para esta Casa pela primeira vez.
Jeremias Espinho Roceiro: Eu, para além do meu pai, já tinha mais gente da família na banda, já tinha mais dois irmãos e tinha uma sobrinha.
P: Então e o senhor, com que idade é que começou a tocar na banda?
Francisco Bragança: Eu comecei, entrei nestas coisas, nunca me esquecerei, em 1943. Em 7 de setembro entrei para a escola, nos fins de junho, com 10 anos, fiz a terceira classe, fui logo trabalhar. Não havia luz, não havia estradas em condições, não havia transportes, não havia nada. E eu, com essa idade, frequentava muito um ensaio. Foi o primeiro ensaio que eu conheci e eu, mesmo garoto, era o primeiro a lá chegar só para ver acender o candeeiro. Depois assistia um bocado aos ensaios, porque os ensaios começavam muito mais cedo do que agora começam. Estava ali um bocado, começava a anoitecer, ia para casa. Mas depois, a minha vinda para a filarmónica, já nesse tempo gostava muito da música, já trabalhava, com 11 anos fiz o crisma e estava ali um café, uma oficina de um sapateiro, e os músicos iam fazer as festas no domingo e à segunda-feira.
Ali é que era uma sede, porque naquele tempo éramos distribuídos pelas casas. Uns iam para uma casa, outros para outra e depois à segunda-feira é que estavam ali uns com os outros, chamávamos os patronos. Eu calhei muito mal naquele tempo, cala-te lá, aconteceu-me isto e aquilo, mas era uma família. Quando cheguei aos 11 anos, fiz o crisma e convidei o dono da sapataria para meu padrinho e ele vira-se para um músico que me orientava: “Oh Zé, tens de levar o meu afilhado para a música.” E então, com 11 anos, comecei a aprender, mas esse músico que me começou a ensinar ensinou-me pouco. Era um bom músico, mas eu queria era companhia. Porque nessa altura andava a namorar e de vez em quando ia para Lisboa e ele queria é que eu fosse músico para aquele lugar, porque só havia dois lugares.
P: Qual era o instrumento que tocava?
Francisco Bragança: Saxofone, e ele queria é que eu fosse músico. Foi uma altura que eu comecei cá... no princípio da banda, com o fundador, dizem. Eu andei cá com o fundador muitos anos na música. E ele dizia-me também: “A música começou a ser formada em 1905 ou 1906”. A 1 de janeiro de 1908 é que foi a primeira atuação. Começou com sete músicos, um não conheci, os outros todos conheci. E esse senhor contava que, por diversas coisas, o maestro foi-se embora. Mas depois, naquele tempo, não sei se havia muita festa ou se não havia. O que sei é que por qualquer motivo deixou de ser músico, o homem.
Havia então um mestre da Covilhã, um civil, tinha de vir a pé, não havia luz, não havia transportes, não havia nada. Não estava cá muito tempo. Depois vinha outro, não estava cá muito tempo. Depois, em 1930, veio um primeiro sargento do exército, da Covilhã. E esse senhor vinha sempre fardado. Não havia transportes, vinha sozinho. E naquele tempo, vinha fardado, para não ter medo. Esteve cá uns aninhos. Depois saiu. Veio outro sargento, mas já estava reformado. Veio viver aqui para a aldeia, porque esse senhor era de Famalicão. Era primeiro-sargento do exército. Reformou-se e veio ali para a banda que hoje é de Vale Formoso, antiga aldeia do Mato. Havia duas bandas e acabaram.
P: Duas bandas aqui?
Francisco Bragança: Não, lá. E esse homem veio então para mestre da música. Ele tinha enviuvado e casou aqui com uma senhora nova. Em casa ensinava os músicos. Esteve cá uns aninhos bons. Em 1946-47, começou o homem assim, como é que eu hei de dizer, a idade já avançada, muito pesada e tal. E teve que sair. Veio depois outro sargento para a banda, que esteve muitos anos, quando se formou a banda de uma maneira que chegou a alto nível.
Mas esse senhor era de Chaves e veio para a Covilhã. O homem tinha uma história. Começou a aprender música muito novo, mas o pai era empreiteiro de obras. E o pai queria que ele fosse também empreiteiro. E começou a ir lá a ensinar duas meninas músicas de Chaves e os pais eram tropas. E ele começou a dizer que não queria ser pedreiro e tal, e eles disseram: “Tu queres ir para o exército?” E eles deram-lhe uma assinatura falsa e foi para o exército. E ele, não sei se tinha só a quarta classe se tinha mais estudos, ele era mais inteligente na música. E veio para a Covilhã, mas já como furriel. Quando veio para cá, ainda foi para a banda da Covilhã. Então em 1948 é que veio aqui para a aldeia. Esteve cá até 1961. Depois veio a família, lá de Chaves. Mas o homem também vinha a pé, não havia transportes, não havia nada. Então vinha a pé.
E foi quando eu aprendi, porque o senhor que me ensinou tinha uma taberna e o tal senhor Assis, quando vinha para o ensaio, os ensaios eram à quarta e à sexta, ia lá para a taberna, metia-se nos copos, acabava o ensaio pegava na batuta e pronto. E os músicos é que ensinavam os outros. Continuo a dizer que se calhar não fui muito bem preparado devido ao músico que queria que eu fosse músico. Quando fiz o crisma, com 11 anos, já trabalhava, mas o meu padrinho é que, nunca me esqueci, levou-me ao cinema. Foi a primeira vez que fui ao cinema, ver o Camões. E quando vínhamos, porque naquela sede era só uma sala e dois quartos, um quarto era a direção, um quarto trabalhava o maestro, e era uma sala. Eram bancos compridos e tinha uma tábua onde punham o candeeiro e aí, quando veio a eletricidade, em 1947, foi então quando eu fui para musica, até hoje.
P: E o senhor, quando é que começou?
Carlos Dâmaso: Com 14 anos, portanto, foi em 1968. A gente entrou para aqui em 1967, para o solfejo. Eram os mais antigos que ensinavam o solfejo, aquilo que viam, aquilo que sabiam. Eles não eram mesmo profissionais, assim como nós também não ficámos. E foi assim. Portanto, na altura, era um músico que andava aí, que era o António Tente Souza, que era o pai do tal colega nosso que já mencionamos aí, que era o Agostinho, que já faleceu, e o senhor Fernando Proença, eram os dois que ensinavam o solfejo.
É claro, aprendemos mais ou menos o que eles ensinaram. Se calhar ainda sabiam um bocadinho mais do que eu, eu falo por mim. Portanto, como acabei de dizer, foi em 1968, no dia 8 de Junho, dia da Imaculada Conceição, porque fazíamos sempre a procissão e era a primeira, era a festa da Imaculada Conceição e era quando entravam os miúdos, normalmente entravam nesse dia.
P: Qual era o instrumento que tocava?
Carlos Dâmaso: Comecei com trompete. Andei a tocar trompete até ir para tropa. Depois ausentei-me um bocadinho na tropa, vim da tropa, casei-me, também não vim. Portanto, por volta de 1975 foi quando fui para a tropa, depois casei em 1980, depois nasceu o meu filho e depois vim em 1981, porque já ele tinha um ano. Depois eu era sócio e regressei. Nessa altura, eu já estava assim um bocadinho esquecido, é o que acontece. Na altura, havia muitos trompetes. Por acaso nessa altura havia muitos músicos aí, estavam era à rasca com o contrabaixo. Andava aí um senhor da Atalaia do Campo, que vinha ajudar um senhor que era o Manuel Costa, que tocava contrabaixo.
E ele estava sempre a dizer que não podia, porque também tinha lá banda, que não podia e não sei quê. E eu acabei por vir para o contrabaixo, é mais ou menos uma tuba mas em Fá e em altura um pouco mais do que eu. Mas na altura tive que tornar a reaprender um bocadinho e depois estava a mudar de casa...
Mas aprendi e gostei, e gosto. Só tenho pena que agora não consigo, não me aguento, é assim. Posso contar um episódio que aconteceu comigo e com a minha esposa, que eu estava com a minha esposa, não sei se te lembras, numa das primeiras festas que fizemos. A gente estava todos empolgados. Uma vez íamos fazer uma festa, aquilo nem era quase uma terra, eram umas quintas, sei lá, umas quintas e tal... Na altura, agora já se utiliza muito que as pessoas vão tarde, já se vai mais tarde, mas na altura não, às oito horas era para estar lá. Era a Alvorada. E lá tocámos a Alvorada e depois veio o pequeno-almoço. Lá veio o senhor, ainda com o fato de estar a tratar dos animais e, bom, dois rapazes novos, éramos os únicos que lá íamos, dois rapazes novos, então: ”Eu tenho lá duas cachopas a ver se se desenrascam.” E era verdade, mas verdade. Chegamos lá a casa, estava lá a esposa e as duas filhas. Mas quer dizer, a gente ainda não estava muito virado para ali. Tu tinhas 15 e eu tinha uns 14. É claro, ainda não estávamos muito virados.
Chegamos lá, eles estavam habituados, aqui já não era tanto, mas lá estavam habituados, se calhar, a sopa... Então mas olhe, nós fizemos uns cafezinhos, não sei se estão… Aquilo era praticamente só água com leite, nada de café, mas lá comemos. É uma história assim engraçada.
P: E o senhor também entrou nessa altura?
Jeremias Espinho Roceiro: Não, eu entrei para a banda já tinha 38 anos. Apesar de já cá ter os meus irmãos, tinham começado todos novos, mas eu também tinha outro amor, que era o futebol. E então andei… Não quer dizer que não tivesse o gosto na música, o bichinho estava cá. Mesmo não fazendo parte da filarmónica, assistia a muitos ensaios, quando era sábado e estava aqui. Então depois acabou o futebol...
P: Aqui há um clube de futebol?
Jeremias Espinho Roceiro: Sim, o Carvalhense.
P: Então, quais são as associações que há aqui?
Jeremias Espinho Roceiro: O Carvalhense, que é o clube desportivo. Temos o Grupo dos Amigos Vila de Mouros, que está para a natureza e atividades ao ar livre. Temos o Centro Social, temos o rancho folclórico também. E somos nós.
P: E vocês participam em mais alguma destas associações ou só estão aqui?
Jeremias Espinho Roceiro: Eu, por exemplo, antes de estar aqui, fui dirigente e jogador do Carvalhense, por várias vezes.
P: E esteve nos dois ao mesmo tempo?
Jeremias Espinho Roceiro: Em simultâneo não. Estive nos Amigos Vila de Mouros e na banda.
P: E o senhor começou a ouvir, a gostar de ouvir?
António José Duarte: Eu, como lhe tinha dito, comecei a frequentar esta casa em 1966-7 e depois andámos a aprender o solfejo, eu mais o Carlos Dâmaso, o Agostinho e mais outro jovem, e tivemos a primeira saída a 8 de dezembro de 1968, dia da padroeira aqui na nossa Terra, a Nossa Senhora da Conceição, em que saímos cinco elementos a tocar nesse dia. E destes cinco elementos, já cá só andamos três, que sou eu, o Carlos Dâmaso e o Agostinho. A partir daí, penso que foi o meu início de atividade no associativismo, como o Carlos Dâmaso, sempre estivemos ligados a esta Casa. Começámos a colaborar logo novos em todos os eventos que a Filarmónica fazia, que eram as nossas festas, eram os bailarinos, vivia-se muito dos bailaricos. Tivemos também situações caricatas. Vendíamos o loto, ajudávamos em tudo isso. Comprou-se uma aparelhagem, que na altura custou 16 contos, umas cornetazitas para se fazer uns bailaricos. E as receitas eram para pagar as aparelhagens.
Concluindo, nós que nascemos nas quintas, sempre mais acanhados que os outros, talvez porque não nos atirámos às tais meninas, se calhar se fossemos da aldeia ou da cidade, atirávamo-nos. Mas a gente, sempre mais acanhada e se calhar, já tinha marcado a minha por aqui, nós vendíamos o loto e como sempre havia os espertalhões e quando faltava dinheiro, nós tirávamos o dinheiro do nosso bolso para entregar certinho, era 25 tostões e assim.... e daí bastante sofremos com o loto, que saía sempre ao mesmo, que fazia batota.
Francisco Bragança: Eu entrei em 1948 para a música. Naquele tempo, a música só dava as calças e um casaco e um boné. Mas eu andei cinco anos com um casaco emprestado de um músico mais velho e mais forte. E como já trabalhava, nós éramos obrigados a comprar uma gravata. Eu, como não tinha dinheiro para uma gravata, lá na fábrica arranjaram-me um corte e fizeram-me uma gravata. Nas procissões, nas festas, tínhamos de levar casaco, gravata, boné e não havia um boné para a minha cabeça, que era pequenina. Tive de embrulhar uns jornais para não andar a nadar na cabeça.
Em 2 de Agosto de 1953 vesti o primeiro fardamento novo, foi lá numa marcha que tocámos também, porque eu tinha um primo que era o Francisco Nabais Bragança e eu sou Francisco Neves Bragança. Mas o senhor Assis, tínhamos o fardamento novo, fez uma marcha com o nome do meu primo e pôs o nome Nabais, porque o senhor Assis quando chamava pelo Chico Bragança, era eu. Em 2 de Agosto de 1952 foi o primeiro fardamento que vesti, completo… E no dia 2 de Agosto, no outro dia fazia 17 anos, nunca me esqueci, que até tinha vontade de dormir com o fardamento.
António José Duarte: Eu gostava mais de falar da filarmónica do que de mim. Desde 1968 até 1977, estivemos sempre aqui, certinhos, na banda e com grandes dificuldades chegámos a fazer festas com muitos poucos músicos. Não era fácil. No início de 1978, eu tive de abandonar a banda porque eu comprei uma casita e tal e uma oficina e precisava de ganhar dinheiro para pagar uma dívida. Porque em 1977-78, uma dívida de 1000 contos era muito dinheiro para um jovem de 24 anos, que até pensavam que a gente não pagava. E depois, em 1984-85, mas também não quero deixar aqui de frisar, que eu nunca consegui estar perto da banda, porque sentia que o meu dever e o meu lugar era ali e fazia falta.
Se a banda fosse pela rua de cima eu desviava-me pela rua de baixo ou, se houvesse um concerto, eu ouvia de longe. Eu nunca tive coragem de estar perto da banda porque sabia que o meu lugar era ali e que fazia alguma falta, embora eu nunca fosse grande músico, nunca fui, não nasci dotado para isso, mas gosto da banda e gosto da instituição. Em 1983, fui convidado para os 75 anos e foi mais uma facada que me deram, não se esquecendo de mim. Eu lá participei e até ajudei naquela festa, onde também estiveram presentes. Em 1984-85 fui convidado para uma lista para se candidatar aos órgãos sociais e eu não aceitei, eu disse: “Um dia que eu voltar para aquela Casa, volto para músico, que faz mais falta, não para dirigente.” Era na altura em que havia dirigentes com fartura. E essa lista ganhou e o ex-presidente não se esqueceu das minhas palavras e nunca mais me largou. Nunca mais me largou e eu estou muito grato, porque sempre gostei de cumprir e regressei. Sempre gostei de cumprir e regressei.
Lá estava o senhor Garcês, que nunca me esqueceu. Vim ao ensaio, porque eu tocava clarinete e naquela altura havia necessidade de alguém para tocar tenor e deram-me o tenor. Faltei a um ensaio ou dois e eu disse: “Não posso. Não posso.” Cheguei naquele quartozinho que estava ali à frente e pedi desculpa ao senhor maestro e disse-lhe: “Senhor Assis, já não posso continuar, porque eu preciso de ganhar dinheiro. Tenho muito trabalho e tenho que pagar a quem devo. E para andar aqui a dar mau exemplo, não quero. São estes os meus princípios.” E o homem, que era...: “Não senhor, primeiro trata da sua vida. Trata da sua vida e depois vem quando puder. E vai tocar aos passos da Covilhã, já”. E eu, que mal sabia tirar uma escala, mas ir tocar aos Paços da Covilhã era um orgulho. Era um orgulho... A procissão nos Passos da Covilhã era um orgulho. E eu, pronto, aceitei. Como gosto de honrar sempre os meus compromissos, cumpri sempre o melhor possível e o Sr. Assis lá arranjou formas para que eu continuasse, até hoje.
Em 1977, esta casa levou uma volta muito grande. As coisas não andavam muito bem e por várias vezes as chaves desta instituição, até 1977, foram entregues à Junta de Freguesia. Porque havia muitos dirigentes, mas também, se calhar, não havia os melhores e o senhor Francisco e o senhor António Miguel, que eu sempre muito admirei nesta casa, são gente humilde, talvez, também assim como eu, não os melhores músicos, mas que fizeram parte da banda sempre certinhos e dos órgãos sociais, na altura em que não era nada fácil, não era nada fácil…
E as pessoas cansavam-se, entregavam as chaves à junta. Mas também, de cada vez que entregavam as chaves à junta, aparecia gente boa. E em 1977 apareceu gente que estava ligada à Junta de Freguesia e que tinha um músico, que também era um músico conceituado, e que quem vinha à procura da banda a esta terra, primeiro ia à procura daquele, que era o sr. Zé Quinteiro, que tinha um café. Era muito conhecido e era um bom músico na altura. Ele era presidente da Junta e tinha consciência para arranjar direções e foram buscar o senhor Assis. E este deu uma volta, porque entraram bons elementos ligados à junta e ligados à Filarmónica e fizeram aqui uma série de obras de ampliações, que havia uma parte ampliada e havia mais uma parte. Ampliaram este espaço aqui onde nós estamos e esta instituição congratula-se, porque a Junta de Freguesia esteve muitos anos aqui, nas nossas instalações, embora fossem pagas pela Câmara e através também da junta. Mas estiveram aqui, nas nossas instalações, até conseguirem uma sede própria. E o Centro Social também esteve aqui, nas nossas instalações.
Portanto, foram bons tempos em que as coisas mudaram e mudaram para bem. Mas em 1988 havia uns órgãos sociais com quem nós, os músicos, não estávamos muito satisfeitos. Não estávamos muito satisfeitos e não havia mais listas. E, ao continuarem, não estávamos a ver as coisas assim com muito bons olhos. E então, depois de um ensaio e pela noite fora, discutimos e conversámos. Também o Maestro João, que disse: “Pá, pronto, só vamos conversar e temos que gramar com esta gente. Temos que gramar com esta gente, não há mais ninguém, temos de gramar com esta gente”. E eu disse assim: “E se a gente arranjasse uma lista?” Às três da manhã, e as eleições para as três da tarde de domingo, às quinze de domingo, pensando que não era possível…
E o Maestro disse: “a esta hora, como é que isso é possível?” E eu, que sempre fui aventureiro, levantei-me ao domingo de manhã e comecei a bater às portas. Comecei a bater às portas e conseguiu-se arranjar uma lista e quando foi às três da tarde, as pessoas apresentaram-se aqui, convencidas de que eram os únicos, que era a única lista, e eu apresentei uma lista. Apresentei uma lista, em que não fui presidente, mas que foi o senhor José Pais presidente da direção. Na altura, eu fui presidente da assembleia geral. Portanto, o sr. José Pais foi presidente da direção e eu fui presidente da assembleia geral.
O sr. José Pais esteve quatro anos na direção. Foi um novo ciclo desta casa. Éramos músicos, éramos novos, cheios de vontade e queríamos era que as coisas crescessem. Tínhamos visto a ampliação e agora estava fechado, mas havia ali um terracinho, que nós ouvíamos os nossos antigos dizerem: “Este terreno há-de ser nosso e esta Casa há-de crescer mais para aqui”. E depois, começou-se em 1998, esta Casa até tinha tido uma ampliação e os diretores tinham emprestado dinheiro. Tinham custado 70 contos essas obras e os diretores tinham emprestado sete ou oito contos, que era muito, até agora é. Já tinha um agrupamento musical, que abrilhantava os bailes de carnaval e assim por aí.
Esta Casa tinha as suas tradições, que eram as comemorações no aniversário, era o encomendar das almas na Quaresma, todas as sextas-feiras da Quaresma. Tinha também os seus bailarinos. Tinha uma tradição que se perdeu, que ainda hoje tenho mágoa disso, que ouvi muitas vezes, que era a bandeira da filarmónica, o estandarte, acompanhar os sócios falecidos para o cemitério. Isso perdeu-se, mas ouvia dizer principalmente ao meu pai: “Eu hei-de ser sócio da banda para a bandeira ir ao meu funeral.” Havia essas tradições...
P: E subsídio de funeral, tinham?
António José Duarte: Não tínhamos, mas havia a presença da bandeira. E quando entrámos para a direção, tinha havido aqui um baile e atuavam com uma aparelhagem, uma aparelhagem sonora alugada. Alugada por dez contos, para resolver. Viemos e essa aparelhagem não estava paga, era uma dívida com a Egiptana Musical da Guarda. Falámos com o senhor e já não se pagou o aluguer, porque queríamos aquela aparelhagem por setenta contos. E a aparelhagem passou a ser da Filarmónica.
Esse conjunto, que era o Privativo FR7, tinha uma qualidade extraordinária. E começámos nós, com os nossos carros aqui pelas terras próximas, à procura de serviços para a banda, para a banda e para o conjunto. Íamos, lanchávamos, levávamos os nossos carros, as despesazinhas, tudo à nossa conta, à procura de serviços para nós e para o conjunto e começámos assim a crescer, com mais serviço para a banda, com mais serviço para o conjunto. Aconteceu que este conjunto era tão valioso que também deu dinheiro para uma viola baixo. Era três contos por cada atuação. Comprou-se a viola baixo, comprou-se um orgão, que também era emprestado, e comprou-se a bateria. Ia-se comprar as coisas de manhã para atuarem à noite e isso foi uma loucura. E começámos também a pensar na remodelação do instrumental. Também não tínhamos carrinhas para transportar o material do conjunto e para transportar os jovens e acabei por fazer o pior negócio da minha vida, porque havia um diretor que tinha uma carrinha e essa carrinha não chegava. Comprei uma carrinha para ajudar a transportar os instrumentos do conjunto. Era velha, avariava em todo o lado, fiz quilómetros a pé, não havia telemóveis, não havia nada. Fiz quilómetros a pé a ver de um táxi para trazer os elementos.
Mas pronto, a gente nunca desistia. E pensámos também em remodelar o instrumental. E isso veio também de uma presença de um ministro, um ministro da Energia que veio à Covilhã e também convidaram a Filarmónica para estar lá presente e não havia ninguém disponível. Eu era o presidente da assembleia geral, mas apresentei-me em mais reuniões da direção que o presidente e representei mais vezes a Filarmónica. Eu considerava-me na altura a roda suplente. Acabou a reunião do sábado e não havia ninguém disponível para ir lá. E agora? A seguir ao almoço, eu saí de casa e cheguei aqui à instituição e encontrei dois colegas e fomos lá, à espera do senhor ministro.
Era o senhor Álvaro Ramos presidente da Câmara, o senhor Carlos Pinto já era deputado. E o senhor presidente da Câmara apresentou uma fotografia nossa, que estava lá como uma das melhores, senão a melhor banda do distrito de Castelo Branco. E o senhor deputado, que eu não conhecia: “Então quais são as vossas necessidades? O senhor conhece-me?” “Eu não conheço.” Eu pequenino e ele tão alto. “Então não conhece o Sr. Carlos Pinto?” “Não conheço, já ouvi falar”. Disse ele: “bem ou mal?” “Bem.” “Então, mas quais são as vossas necessidades? Se precisarem alguma coisa de mim…” “Precisamos, é que a nossa banda está a crescer em número de elementos, mas a nível de som estamos muito mal. Precisamos de renovar o instrumental.” “Está bem, sim senhor, então temos que falar nisso. Temos que falar nisso e tal, portanto, temos aqui o senhor ministro que tem de nos ajudar.” Apresentou-se a questão na reunião seguinte e ficou um colega nosso de falar com o senhor Carlos Pinto. Três ou quatro meses depois não o encontrou e acabou por dizer que não queria falar com ele, porque ele nos tinha tirado daqui da freguesia e não sei que mais…
Acabei por pedir autorização, naquela reunião, se me permitiam que fosse eu à procura do homem. Isso foi um sábado à noite, à segunda-feira de manhã encontrei-o. Fui à fábrica e encontrei-o, não estava, pedi para me ligar. Ligou-me nesse mesmo dia e veio a esta terra. Veio a esta terra, apresentámos a questão, enfim, veio então trazer cá o ministro. Veio o ministro da Cultura visitar-nos aqui à nossa sede, quando lhe apresentámos a questão também da remodelação do instrumental. Conseguiu-se depois, através da Câmara, mil contos para ajudar o instrumental e, da Secretaria de Estado da Cultura, seiscentos contos. A visita desse ministro foi aqui. Mas as coisas não se desbloqueavam e o Santana Lopes, que era o secretário de Estado da Cultura, veio a Belmonte. E nós, a banda, fomos convidados para estar lá. E fui eu, que nunca gostei muito de viagens, que ficava sempre doente… Ninguém me quis acompanhar, fui sozinho a Belmonte, à noite, falar com o secretário de Estado da Cultura para ele mexer as coisas lá em Lisboa, porque estávamos à espera de qualquer decisão e que nunca tinha acontecido. O senhor presidente da Câmara pediu para me apresentar, apresentou-me e tomou os seus dados e o que eu sei é que se desbloqueou a situação.
Remodelámos o instrumental em 1990, que se orçamentava por quatro mil contos e nós conseguimos por dois mil contos. Foi um novo ciclo para esta instituição. Foi a tomada de posse do nosso maestro, filho de um músico nosso e filho desta Terra, que ainda hoje o é. O nosso maestro, que foi mais um passo muito importante que nasceu. Também porque nós já fazíamos muitos intercâmbios com outras bandas e com outras instituições e começou-se a desenvolver umas relações que até essa altura não existiam. Criou-se uma amizade, que a gente teve boas relações, amizade, intercâmbios e tudo isso. E um colega nosso, porque nós estávamos para Lisboa, um colega nosso dos órgãos sociais foi a um encontro de bandas também, que tínhamos sido convidados. E foi lá com o diretor, gostou muito de uma banda, foi a banda de Loriga que já estavam para além, para além de nós, com músicos profissionais do exército e de futebol. E gostou muito da banda e propôs que aquela banda cá viesse. Aquela banda foi convidada e nós, já com o desenvolvimento das atividades, tínhamos preparado na fábrica um salão que tinha ardido e tínhamos feito obras de remodelação. Fizemos palcos, fizemos bares, fechámos janelas, fizemos tudo. Este amigo que, como disse, é eletricista, este amigo Carlos Dâmaso, fez uma instalação elétrica para aquilo e foi na fábrica que passámos a desenvolver os nossos eventos, os nossos aniversários, em que chegámos a ter 450 pessoas no almoço de aniversário, porque aqui não tínhamos condições, e passámos a ter sempre uma banda nesse dia connosco, que era o dia 1 de Janeiro, que depois acabou por ser alterado para o dia seguir, porque no dia 1 de Janeiro as pessoas andavam na passagem de ano e às vezes faltavam. E essa banda deu-nos uma lição de que nunca me esqueci, umas palavras que os músicos mais antigos me deram: “Tozé, isto foi para nos rebaixar. Nós sentimo-nos tão pequeninos ao lado deles.” Sentiram que tinha sido para os rebaixar.
Carlos Dâmaso: Não é que o que nós tocávamos não fosse bonito, que eu gostava muito daquelas peças. Eram peças até muito engraçadas, mas eram antigas. E eles com novos ritmos, novas peças... E nós ficamos assim um bocadinho, um bocado a olhar para isso...
António José Duarte: A minha resposta foi só esta: “Não, não é para rebaixar ninguém, é única e simplesmente para mostrar que nós não somos tão bons como pensamos e que temos possibilidades de fazer muito melhor. É preciso é trabalharmos para isso.” E foi daí que veio o novo maestro, com novos conhecimentos, com novas ideias. E foi sempre a crescer a partir daí. E pronto, passámos a fazer os programas de aniversário muito diferentes. No final do mandato do sr. José Pais, em 1992, como em todo o lado, as pessoas vão-se desentendendo, e nós desentendemo-nos e começámos a ficar fartos uns dos outros, não haja a menor dúvida. E as coisas não andavam muito bem e eu, numa reunião de direção, disse assim: Nós, para acabarmos este mandato, que já eram quatro anos e tudo a correr às mil maravilhas, com idas a França, com renovações instrumentais, com investimentos no conjunto brutais, que o último investimento que se fez em aparelhagens custou dois mil contos. Tínhamos a banda, tínhamos o grupo de dança-Jazz, tínhamos o equipamento musical, tínhamos tudo, estávamos no bom caminho.
Então, propus fazermos um aniversário diferente. E o aniversário que começou com uma tarde de Natal, era um mês e tal de comemorações. Começava na tarde de Natal e tínhamos o mês de janeiro todo e encerrava no início de fevereiro, com um artista consagrado, e na tarde de Natal já com artistas de nome, a Mónica Sintra, a Ana Malhoa, tudo. A primeira tarde de Natal que fizemos, tínhamos lembranças para as crianças, trezentas e tal, e crianças a receber, com torneios internos, com provas de atletismo, tudo isso. Quem patrocinou essa tarde de Natal foi a Junta de Freguesia, que nos deu setenta contos só para as prendas. Nesse aniversário fizemos mil e tal contos de patrocínios e depois tivemos uma receita de mil e trezentos ou mil e quatrocentos contos. O encerramento foi com o José Malhoa, lá em cima na fábrica, onde não se cabia. Mil e tal pessoas, foi assim.
E assim terminámos aquele mandato, com a presidência do sr. José Pais, mas que era uma equipa muito unida. Aqui os lugares só contavam no papel, porque a trabalhar, era sempre um trabalho de equipa. Entraram novos órgãos sociais, que fizeram um mandato, fizeram certamente o que toda a gente faz, o melhor possível, mas nós, os músicos, que já estávamos habituados a outra coisa, chegámos ao fim do mandato e não estávamos muito satisfeitos. Principalmente os mais antigos.
Fez-se aqui obra para eu fazer uma lista e não quis fazer uma lista. E, no próprio dia, lá voltávamos ao mesmo: “Vamos ter de os gramar.” E no próprio dia, já no início da Assembleia, os músicos assim mais antigos: “Tozé, Tozé, Tozé, esta gente e tal, não sei que mais…” E eu tive uma intervenção e o resultado dessa intervenção foi que a lista apresentada foi rejeitada com sessenta votos contra e dezasseis a favor e eles eram dezanove. Até três votaram do outro lado. Pronto, mais um ciclo que se inicia nesta casa, em que me senti na obrigação de preparar mais uma lista. Preparou-se a lista e tivemos o cuidado de depois, em reunião, destinar os cargos, onde me pressionaram e me indigitaram para que eu fosse o presidente. E lá se começou um ciclo que nunca… e até hoje, fui o único músico presidente desta casa. Nunca mais houve um músico, não tinha havido e até hoje.
Trouxe benefícios para a casa e trouxe alguns contras para mim. É que eu andava sempre com eles e via o bem e o mal e às vezes a gente tinha de atuar. Mas acho que foi bom, foi bom para todos e decorreu. E a partir daí, eu estive aqui oito anos como presidente da direção. Passaram nos órgãos sociais comigo, a trabalhar comigo, à volta de cento e vinte pessoas. Foram seis listas que eu apresentei. Foram doze anos que estive, oito na direção e quatro na assembleia geral, e conheci como membros dos órgãos sociais à volta de cento e vinte pessoas. Também foi comigo, e connosco, que começámos a meter jovens que nos pediam, que queriam vir trabalhar connosco, que até os mais antigos diziam que eram garotos. Eram garotos, mas gostavam e trabalhavam e cumpriam. Estes oito anos acho que foram uma década de ouro que esta casa teve.
Desde aquela revolução de 1988 até depois com o que nós conseguimos, ter uma banda com 56 elementos. Não cabíamos num autocarro, porque os autocarros eram de 52 lugares, quando saíamos a representar o concelho ou o distrito, ou íamos a França. É que nós é que representávamos o distrito e o concelho em qualquer lado, até nos chegaram a chamar a banda municipal, porque nós estávamos em tudo. Estávamos em todas as inaugurações, até a inaugurações de casas de banho nós fomos. Pagavam-nos e a gente lá ia. Fomos inaugurar umas casas de banho, a um dia de semana, às três da tarde. Telefonaram-me, porque precisavam de uma banda, mas têm de pagar, porque nós temos que pagar aos músicos, porque eles vão perder tempo e fomos lá ganhar 150 contos. O que era preciso era nos pagarem.
Íamos aos partidos políticos, às campanhas, o que tinham era que nos pagar. Chegámos a fazer, nos últimos anos, a envergar a farda 54, 56, 58 vezes no ano. Que dava mais de um vez por semana. Tínhamos festas de dois e três dias. Foi de tal forma que nós tínhamos a banda com 56 elementos, tínhamos o agrupamento musical, tínhamos a dança jazz, tínhamos um grupo de flautas para entreter os meninos que não tinham espaço na banda, para eles não desanimarem. E também tivemos aqui, em 1998, não foi na altura muito à minha vontade, mas eu sempre respeitei as vontades e a democracia e as maiorias e foi decidido criar-se um rancho folclórico nesta Casa. Mas como o senhor acordeonista na altura não gostava nada de ranchos, e para não ser um rancho, ficou grupo de danças e cantares. Tive que aceitar a decisão que foi tomada e esse esse grupo para o fim de alguns dias abortou. Porque o acordeonista, que Deus tem, que já faleceu, não era aquilo que ele queria. Ele pensava que chegava aqui, que formava um grupo de músicos à maneira dele, com violas, com clarinete. Eu até sabia que isto não ia ser possível, que massacrados já nós estávamos com trabalho, quanto mais. E estava a ver que abortava, acabei por integrar também esse grupo. Ainda fiz parte desse grupo também.
Francisco Bragança: Oh, sr. Zé…
José António Duarte: Já lá vai, estou a falar de mim, já lá vamos a seguir. Eu até vos peço que se eu esteja a mentir nalguma coisa, que esteja enganado, que me corrijam. Estamos então a falar de mim, e de outros dirigentes associativos que neste período fizeram parte. Também fiz parte cinco anos do centro social daqui da nossa Vila de Carvalho. Tinha sido criado para ser um infantário e depois as coisas também não andavam muito bem. Eu também só apareço quando elas não andam bem, porque quando estão bem, não faço falta nenhuma.
E foi formada uma Comissão Administrativa, de que fiz parte dois anos e depois mais três anos, junto com o presidente do Conselho Fiscal. Quando foi inaugurado e deu início à atividade que teve sempre, porque deixou de ser um infantário e conseguimos convencer o presidente de que já era mais fácil pegar numa criança e levá-la para a Covilhã, para a creche, do que pegar num idoso e leva-lo para qualquer lado e que era urgente e necessário um centro de dia. Hoje é um lar e é a melhor, a maior empresa desta terra. Acho que o melhor que temos nesta terra é a Filarmónica e o Centro Social. Nessa altura, aqui pensou-se também, e aproveitando também as condições, nós que pensámos sempre na ampliação da sede social, que o sr. Carlos Pinto, como presidente da Câmara, nunca aceitou.
No primeiro mandato nunca aceitou, porque tinha adquirido a fábrica e queria levar todas as instituições para a fábrica e nós sempre recusámos. E daqui ninguém nos tira e se já há alguma rivalidade, uns além e outras aqui, então quando ficarmos porta com porta, sabe Deus… Até diziam que se calhar porta com porta andávamos todos à porrada. Mas já havia um relacionamento muito melhor naquele espaço todo.
E conseguimos, com uma nova câmara, com a presidência do senhor engenheiro Jorge Pombo. Manifestámos que era a nossa vontade de batalhar, aproveitando que não estava lá o Sr. Carlos Pinto, e ele nem sabendo bem do que se tratava aceitou a nossa opinião e mandou elaborar um anteprojeto para ampliação da sede. Na oferta de aniversário quis-nos oferecer esse anteprojeto, feito assim à maneira deles, e apareceu cá no aniversário com esse anteprojeto. Então começámos a trabalhar. Quando o sr. Carlos Pinto se voltou a candidatar e foi visitar as associações: “Quais são os vossos problemas? O que é que vocês precisam?” “A ampliação da sede social.” “Epá e ninguém vos tira isso da cabeça, é para fábrica.” “Não é para a fábrica, não, senhor, é aqui que nós queremos estar.” E eis que havia um elemento da junta, e eles queriam este terreno para fazer aqui uma estrada. “Qual é a última proposta que os senhores nos fazem?” ”Os senhores adquirem-nos este espaço, uma vez que querem fazer a estrada para chegar ali a cima e voltar para trás e que não cabem nas ruas e arranjam-nos um espaço com as dimensões que nós precisamos. Agora nós precisamos de uma sala para ensaiar a banda, escola de música, o rancho, as flautas, a dança-jazz, nós precisamos de espaço, nós precisamos agora.” E o Carlos Pinto disse: “Mas a vocês ninguém vos tira isso da ideia.” Trazia um contabilista e mandou-lhe fazer as contas de um financiamento de 20000 contos, pago pela câmara e nós suportávamos o juro.
Fui considerado sempre um comunista, que não fui, mas também não sou contra, sou isento, não sou filiado em nenhum partido político. Fui o primeiro a assinar um protocolo com o senhor Carlos Pinto, do PSD, que foi deitado pela rua da amargura. Um comunista assinando um protocolo com um gajo do PSD, mas atrás de mim depois começaram a ir muitos. Resumindo e concluindo, assinou-se o protocolo, também era contra a ampliação. Também era contra a ampliação, dizia até: “Quanto maior é a nova, maior é tormenta.” Mas era um sonho dos antigos e também era uma vontade e um dia, que às vezes também era bom que nos explicassem, um dia eu ouvi uma boca, porque a gente já sabe, no terraço alguém dizer: “Os da banda andam aos anos a falar da ampliação, mas nós havemos de fazer a nossa sede primeiro.” Aquilo caiu-me tão mal. Na próxima reunião cheguei e disse: “Vamos ampliar a sede?” e disseram-me: “Oh Tozé, então você foi sempre contra, agora é que vai aqui”. “Não, desta é para ir.” E pegámos nisso e foi, assinou-se o protocolo e jamais se parou.
Resumindo e concluindo, o início das obras foi em novembro de 1999, com o protocolo assinado dos 20000 contos. Com uma obra que tinha um estudo prévio de 38000, segundo o anteprojeto. Foi inaugurada em 7 de julho de 2001, levou dois anos a fazer, foi um ritmo espetacular, ainda com alguns percalços por causa das intempéries. Nada de olhar ao anteprojeto. O salão que vimos lá em baixo tinha menos 40 metros Tinha de ser feito, custou a esta casa 500 contos. Ficou com algumas humidades, ficou, porque passa um ribeiro ali atrás, mas são mais 40m2. E só demos 500 contos ao empreiteiro para deixar tapado tudo aquilo que era rocha e tudo isso.
Teve que se assinar mais um protocolo com a Câmara, que se conseguiu sempre dar a volta com a Câmara Municipal, mais 10000. A Câmara, como já não podia mais, o pesidente Carlos Pinto “se o dinheiro não chega, o dinheiro não chega e temos que andar com isso.” Foi uma candidatura de 18000, para recebermos uns 1500. A junta sempre apoiou pouco, porque também a gente sabe que eles não têm condições, não têm receitas, não têm nada. Conseguimos de subsídios 47500 contos e pelos nossos meios aquilo que nenhuma instituição do concelho conseguiu, pelos nossos meios nós conseguimos à volta de 2500. Custou esta obra, a remodelação, que são 200m² em três pisos. A remodelação da outra parte custou, com todas as continhas feitas até a data de inauguração, 68700 contos.
Quando estas obras tiveram início, esta casa tinha 6500 contos. Resumindo e concluindo, foi inaugurada a 7 de julho de 2001. Estava o meu trabalho feito, as pessoas, algumas, já fartas de mim. Eu também cansado. E a minha família também massacrada, até demais. Saí, saímos, a 28 de Outubro com a obra paga. Faltava pagar uma fatura de 1600 contos ao eletricista porque não apresentou a fatura a tempo. Com 10500 contos no banco e 4000 e tal em caixa. Com mais dinheiro do que quando iniciámos as obras e com um último protocolo, para que os nossos esforços, que era chato terem que ir lá assinar, os três da frente, o presidente, o tesoureiro e o secretário, para irem lá assinar o termo de responsabilidade, para que se alguma coisa corresse mal, pois entravam nos nossos bolsos, deixámos só os juros pagos do protocolo, os 10000 pagos, porque era para 10 anos e tal.
Portanto, penso que foi uma década ou foi uma dúzia de anos do melhor que se pode fazer. E ultimamente, com respeito a mim, estive também ligado a uma IPSS, que foi o Centro Social Cantagalo. Mais uma vez, lá estava o Tozé quando as coisas estavam mal, era uma instituição que estava com 700000 euros de dívida. Contabilizando os juros, ia para um milhão e já tinha perdido o património todo. E foi uma instituição que, disse eu, não é para salvar, que não tem salvação, mas talvez para fazer o funeral, porque os funerais também alguém tem de tratar deles. E em conjunto com a segurança social e a Câmara Municipal, acabámos por decidir colocar os idosos todos em outras instituições e colocar as funcionárias todas empregadas e é essa a nossa atividade.
P: Então, vamos ouvir o senhor Francisco, que está ali desejante de contar coisas...
Francisco Bragança: No princípio, esta Casa começou com problemas com o seguinte: nós estávamos aqui numa casa, com uma sala e dois quartos. A sala para os ensaios, a sala para a direção e a sala para o mestre. Pagávamos 20 escudos de renda. Era de um senhor cá da aldeia que estava em Moçambique. E a música nessa altura não tinha dinheiro. Devia meio ano de renda ao dono da casa. E nós começámos a resolver para amortecer.
Quem não pagava 20 escudos, que já tínhamos meio ano, fomos para uma sede a pagar 300 escudos. Esses 300 escudos arranjámos com uns matraquilhos e um bar e começou a aparecer dinheiro. Então, o proprietário até nos perdoou metade do meio ano. Estávamos aí numa casa, já tinha boas condições, já tinha uma televisão, com o bar e os matraquilhos. E depois, no princípio desta Casa, tivemos um problema, que foi o seguinte. Queriam aqui fazer uma praça por baixo, no fundo. E havia uma comissão que tinha 10 contos. Depois começou-se a fazer já outras coisas e a direção do Carvalhense queria tirar aqui umas fotografias ao local e foi falar na Câmara para eles lhes fazerem uma sede.
O presidente da Junta não gostou, porque passaram por cima dele, e chamou a direção da música, da qual eu fazia parte, se queríamos este terreno, para começarmos a sede e nós aceitámos. E esses 10 contos que era para a praça, não sei se era a Comissão quem tinha esse dinheiro, deu-o à música. E tínhamos cá um presidente da Assembleia que era empreiteiro e quando o presidente da Junta veio ver, lançámos a primeira pedra. Aquele senhor, o presidente da Junta, era caçador, disse que um dia que fosse para a caça, porque a casa era para ficar pequenina. Ele queria uma casa pequenina e exigiu-se pôr um quarto aqui dentro, que nessa altura a gente não tinha sede e depois...
P: Isso foi em que ano?
Francisco Bragança: 1960 e pouco...
António José Duarte: Aí, 64-65…
Francisco Bragança: O que é certo é que nós aceitámos e tivemos então os dez contos. Esse senhor, aproveitou que o presidente da Junta fosse para a caça e os quartos ficaram maiores. Nós começamos assim. E ainda havia de ser maior e exigimos um quarto. E fez-se aqui um quarto para a Junta. O empreiteiro pôs cá o pessoal e a música pagava todos os dias 40 escudos, que já havia transportes, custava quatro escudos, eram cinco operários, 20 escudos para cá, 20 escudos para lá, eram 40 escudos.
Começou-se então a sede, foi-se fazendo, foi-se fazendo, foi-se fazendo… Depois queriam só a sala lá de baixo. E eu disse: “Eu não sei de nada disso, nessas coisas de obras e quintas sou um zero, mas sei uma coisa, a sede já com dois pisos, o telhado é só um.” E eles começaram: “Também és capaz de ter razão.” Fez-se os dois pisos, mas começou-se por arranjar aqui o de cima, depois a arranjar-se o de baixo. Depois pusemos lá um bar. E eu, nessa altura, fazia parte da assembleia, mas havia um músico e de vez em quando chamavam-no à fábrica e outras vezes ele também vinha, porque ele gostava de jogar às cartas, e chamou-me a atenção e diz-me assim: “Olha, faz-me um favor, ficas tu como tesoureiro... eu confio em ti.” Além de ser da assembleia, era tesoureiro interino. E nessa altura eu comecei a perceber uma coisa, porque o dinheiro dos matraquilhos tirava-se à toa. Eu disse assim: “Não, não quero isto.” Quando vínhamos aqui à aldeia, as moedas de um escudo, éramos sempre quatro pessoas ali em cima de uma mesa a contá-lo. Eu levava-o para casa e depois trocava o papel. Eu era o tesoureiro e o homem confiou tanto em mim… Nunca houve azar.
A mesma direção ficou e ele pediu-me para ficar como tesoureiro, e eu disse assim: “Eu como tesoureiro não quero, porque eu como sou pobre, não quero que as pessoas digam, que eu que me posso andar a governar da música.” Chamámos então dois rapazes cá da aldeia, que estavam empregados no Banco Ultramarino, e deu-se os papéis e o dinheiro. Dessa altura passou sempre a ir logo para o Banco Ultramarino. Eu nunca quis um tostão.
E depois dava-se outra coisa, as festas que fazíamos, os serviços, era de boca. Tanto que nós, às vezes, podíamos ir a uma festa, comer o que nos podiam dar. Mas cumpriu-se sempre. E eu, quando passei a ser tesoureiro, levava sempre dois papéis em branco e assinavam quanto me deram e eu assinava quanto recebi. Mas o dinheiro ia para o banco. Daí em diante começaram a arranjar os contratos, e agora está tudo legalizado.
Mas eu também já tinha uma ideia. A casa fez-se, foi-se fazendo, foi-se fazendo até que chegou a altura do doutor José. Estamos numa casa que, agora, só para o céu. Já não pode ser mais nada e estamos muito felizes. Claro que tudo que ele teve, Deus sabe bem, que ele não fez sozinho, trabalhámos a direção com ele e os outros músicos, tivemos de colaborar. E tenho aqui uma lista de presidentes que eu cá conheci, salvo algum que me esqueci. O primeiro sócio, já o conheci só como presidente da Junta, não conheci como presidente, porque quando a música começou a ter presidente, o fundador da banda abalou... Tenho aqui o nome, são 20 e tal pessoas, salvo algum que tenha esquecido.
P: Posso ver? Isto é uma brochura que fizeram em algum aniversário?
Francisco Bragança: É, é.
P: “Comemorações do 100º aniversário.” Digam-me uma coisa, não há mulheres a participar?
António José Duarte: Temos na banda, na banda já há senhoras. A mulher aqui do meu amigo é secretária.
P: Antes do 25 de abril, já havia mulheres?
Francisco Bragança: Não.
António José Duarte: Começou a haver mulheres a partir de 2001, nos órgãos sociais. Na banda, se calhar a partir do 25 de abril.
Francisco Bragança: Antes do 25 de abril, a primeira mulher foi a Zezinha, fomos fazer os Paços à Covilhã e vieram duas meninas de Gouveia, uma casada e a outra veio com companhia e a partir daí é que veio a filha do meu padrinho, primeiro.
António José Duarte: Há quantos anos andamos cá nós sem mulheres?
(discutem quando foi a primeira, terá sido pelos anos 1970)
Francisco Bragança: Chegámos a ter aqui 14 meninas. A minha filha veio para a música com nove anos e vieram mais quatro meninas, fizeram uma entrevista, e eu disse: “Ouve lá, tu não ficavas bem aqui na música?” E elas disseram: “Olha, sim.” Todas aceitaram, mas só uma é que veio. Essa menina, eu comecei a ensinar e ensinava o meu filho. Mas como eu era muito exigente, o meu filho não queria que eu o ensinasse. E depois essa menina veio, chegou o ponto de ter o sétimo ano de Conservatório.
E depois, o pai chamou-me um dia à atenção, e disse-me assim: ”Peço-lhe um favor, você fica como pai da Maria João?” “Isso é que eu não aceito. Sabe porquê? Porque eu nem do meu filho, eu na música sou o pai.” Chegou a um ponto que ela já sabia mais do que eu, quando começou no Conservatório e ainda hoje…
Depois, quando o senhor Assis já estava com uma certa idade, chamou os músicos mais antigos. Qual é que metia à frente da banda? E todos disseram, o senhor está velho, mas nós também estamos a caminhar para a velhos. E havia um ou dois que queriam que fosse essa Maria João, mas houve quem dissesse que não. Houve um músico que disse: “O mais indicado é o João, porque o João é homem e a Maria João é mulher.” Ela depois tirou o curso em História, foi para Torres Vedras e ficávamos sem mestre. Depois casou, parece que foi para Rio Tinto e eu só a vi no funeral do pai. Eu já não a conhecia e ela. A cinco metros do pai, levantou-se e agarrou-se mim a chorar. Estava tão comovida, mais do que eu. Mas eu disse ao pai: “Eu não quero ser pai dela na música, nem do meu filho quero ser pai na música, gosto que andem à vontade.” E eu, com o pouco que aprendi, fui sempre muito exigente e o meu filho não queria aprender comigo. Porque aprendia as coisas de cor e punha assim sem olhar para o livro. Foi quando o entreguei então ao senhor Assis. A Maria João continuou.
P: Qual foi a Importância que esta participação na banda teve na vossa formação pessoal?
Carlos Dâmaso : Sim, a gente forma-se, aprende sempre a ser mais homem vá lá. É a camaradagem, uns com os outros, o convívio, aprende-se sempre. Ficamos mais pessoas.
Francisco Bragança: Aqui nesta Casa foi uma família. Já da fundação da banda até hoje passaram pais, filhos, netos, familiares, passaram todos os familiares pela banda. Uns ainda existem, outros...
P: E estas histórias vão passando dos mais velhos para os mais novos?
Carlos Dâmaso: Estava a falar dos filhos, falo um bocadinho do meu. Quando o meu filho tinha para aí 5,6, 7 anos trazia-o para o ensaio também, nos dias de Verão, nos dias de inverno. Tenho uma história dos dias de Inverno que depois conto. E trazia-o para o ensaio. Existia nessa altura, o Tozé lembra-se perfeitamente, que havia ali um sofá, que um ex-presidente que já faleceu tinha arranjado. E eu trazia-o para o ensaio e começávamos a ensaiar e tal: “Isto é poluição sonora” – era o que ele dizia. Ia para o sofá e deitava-se e deixava-se dormir.
Mas a coisa foi andando, e eu disse: “Oh Luís, tu tens que ir para Filarmónica” e ele lá aceitou e veio. Também não gostava nada do que eu tinha para ensinar, porque eu espingardeava com ele. Mas aí já teve, já tinha o maestro, já ensinava. Lá aprendeu, começou também a tocar trompete. Na altura era o meu filho, o filho do Tozé... eram seis. E eles vieram para aqui e o meu filho começou a tocar trompete.
Foi na altura que abriu a escola profissional na Covilhã. Abriu, eu sei que andam a recrutar os alunos pelas escolas e o meu filho andava no Teixoso, por acaso, porque eu andava a trabalhar na altura para ali. A minha esposa também trabalhava no Teixoso. Tinha lá a minha sogra. Dava mais jeito. O miúdo saia da escola e ia para casa da avó. E chegou lá a Paula, que é a mulher do Luís Ciprião, a recrutar. Ele diz: “Bom, eu já toco numa banda e tal.” “E então não queres ir para a EPAB (Escola Profissional de Artes da Beira)?” Chegou a casa todo convencido e foi para a EPAB. E depois não foi só ele, eram cinco. Foram e progrediram muito. Nessa altura, a banda dava logo outra qualidade.
Agora, pouco a pouco foram saindo todos. O meu filho até agora, atualmente não pode tocar trompete porque teve um problema, não pode fazer muito esforço. Mas muitos deles continuaram. O meu filho, depois foi para Setúbal, para a escola superior e agora é professor de música. Mas já não faz parte. Mas nessa altura, na verdade, essa dúzia de músicos fazia toda a diferença.
António José Duarte: Foi um avanço.
Carlos Dâmaso: Agora, também para variar um bocadinho também, porque o amigo Tozé sabe a história toda e as datas, e tudo isso, porque estava à frente, esteve aqui à frente uns anos. Mas foi aquilo que a gente já aqui disse, todos nós trabalhávamos, mas tínhamos a cabeça, na altura, era ele, sem dúvida, todos nós estávamos, mas ele era o chefe. Todos nós trabalhávamos, quer dizer, eu comecei de facto na direção como vogal, mas depois também fiz parte do Conselho Fiscal, da Assembleia. Fui presidente quer num lado quer noutro. Mas pronto, o facto de ser presidente da Assembleia Geral, por exemplo, não era só vir aqui às assembleias, ou vir às reuniões que eu queria, nós vínhamos às reuniões todas, às assembleias e trabalhávamos no duro, como qualquer um dos outros. Não fazia diferença, nós trabalhávamos no duro com tudo isso, porque até há um caso engraçado, uma vez que convidava um senhor para a Assembleia Geral, para presidente da Assembleia Geral: “Está bem e tal.” “Mas olhe que é para trabalhar.” “Assim já não quero.”
Vou contar uma pequena história, para desanuviar um bocadinho. Uma vez fomos a uma festinha e quando vínhamos de lá, já de noite, passámos numa terra que é Soutelo. Passámos, éramos os dois, na altura… e eles, os mais velhos pararam, “vamos aqui beber um copo”. Ainda não tinha chegado o que tinham bebido na festa, porque quer queiramos quer não, um dia inteiro numa terra, vai-se bebendo. Mas, resultado, nós ouvimos a música, havia um bailarico lá no Soutelo. E eu e o meu amigo Tozé vamos embora para o bar. Eles beberam um copo e foram para o autocarro, não sei quantos, e nós, pronto, não aparecíamos. E vai de lá então o amigo Costa, que era boa pessoa, tocava contrabaixo, chega lá com o cinto e nós tivemos de dar à sola...
Agora mais outra, não custa nada. Quando eu mudei de instrumento, foi mais ou menos na primeira vez que foram a França… E o maestro, na altura era um sargento, e ele “vai mudar para o contrabaixo” e tal. “‘Tá bom.” Havia um livro de solfejo, que era o Freitas Gazul, que era onde se aprendia, por ali. E ele começou ali a perguntar-me e eu lá fui solfejando, leu ali umas três ou quatro páginas. “Já não é preciso, vais para o contrabaixo”. Claro que é preciso mais, quanto mais se souber, melhor. Passou ali uns papelinhos.
Falámos da Maria João, que era uma colega nossa. Era muito jeitosa, era pequenina, era jeitosinha e boa rapariga, boa moça. E ela sabia e então o Maestro disse: “Agora tens aqui este papéis, tu tocas a requinta e ele toca o contrabaixo, que é para se habituarem”. Fizemos assim uma data de vezes. Aproximava-se a ida à França, foi a primeira vez, 1982, e diz ele: “Você também vai.” “Então mas eu vou fazer o quê?». “Para a fotografia.” E eu disse: “Não senhor, quando souber tocar vou, para a fotografia não.”
P: O Francisco vai contar outra história?
Francisco Bragança: O meu filho, quando foi para a central, para a Covilhã… Não sei se já havia a sexta classe aqui na aldeia ou não. Quando foi, havia uma disciplina de música. E ele, um dia, disse ao professor “eu sou músico na aldeia”. E ele não acreditou. Um dia fomos fazer os Paços à Covilhã e o professor passou. Ele vinha comigo e o professor: “Agora é que eu acredito que és músico.” A essa disciplina era sempre um cinco. Depois, o meu filho, quando foi para a tropa, era primeiro cabo músico, com o instrumento aqui da banda. E nessa altura fazíamos muita festa a meio da semana. Ele levava daqui uma carrinha da direção e era sempre dispensado. Tanto que os oficiais na tropa diziam: “Este cabo tem mais confiança com o comandante do que nós.” Um dia chamou-o lá, porque o nome dele é José Duarte de Bragança, e o comandante chamou-o lá e disse: “Ouve lá, és alguma coisa ao D. Duarte de Bragança? Tens aqui o teu futuro, queres continuar aqui na tropa?” E ele disse: “Fico muito agradecido, mas não gosto de estar aqui, não há ambiente.” Era Santa Margarida. Ele veio e arranjou trabalho aqui. Depois, por outro lado, começou a meter currículos. Foi então trabalhar para uma escola para Oeiras, depois começou a meter outros currículos, saiu para a administração interna. Já há perto de 20 anos que lá está. Tenho três netos e três netas. A neta andou aqui na música, mas, confesso, ela não tinha muita vontade de andar na música, só tinha vontade porque estava cá uma colega dela.
P: Qual a importância que a banda tem na comunidade? Qual é que vocês acham que é a importância?
Carlos Dâmaso: Aqui, devo dizer, é a menina dos nossos olhos.
Jeremias Espinho Roceiro: É capaz de não haver, são capazes de se contar pelos dedos de uma mão as famílias que não tenham tido alguém ligado, direta ou indiretamente ligado, aqui à banda. Tem realmente muita importância. As pessoas acarinham muito, sempre acarinharam muito. E, já agora, em relação à questão que tinha posto aqui há um bocadinho. Não tenho grandes histórias, porque não é como os meus colegas, ainda cá só ando há 28 anos. Esta Casa também foi sempre uma história de vida para as pessoas. Os responsáveis sempre procurarem incutir aqui nos seus elementos, não só o fator da aprendizagem da música, mas também o fator da disciplina, que era também muito importante. E eu tenho a certeza que das centenas de pessoas que passaram aqui na nossa banda, muitas delas levaram o cunho daquilo que foi feito em termos de disciplina aqui na nossa Filarmónica e estou ciente que isso lhes vai aproveitar para o resto da vida deles.
António José Duarte: Eu sei que você não disse isso por maldade, quando disse que o Tozé não fez tudo, e eu quero só dar aqui um exemplo. O Dâmaso e toda a gente que trabalhou, e foi uma das primeiras coisas que disse, foi que nunca aqui houve cargos. Vou deixar aqui uma nota de que equipa nós éramos: a placa de inauguração que estava na entrada tinha o meu nome, mandada fazer pela Câmara Municipal da Covilhã, inaugurada pelo senhor presidente da Câmara, sempre a dizer presidente da direção. Estava a placa feita e eu não quis que o meu nome constasse na placa.
Porque era injusto, porque todos trabalhámos e nós até tínhamos o cuidado de quando se escolhia gente para os órgãos sociais, esta casa não tinha transportes, até se escolhia quem tinha carro, que estava a serviço da Filarmónica. Nós, com os nossos carros, assegurámos muitas vezes os transportes. E também já foi no mandato, a partir da década de 1988, que se adquiriu a primeira carrinha para aqui e que depois também acabou por avariar e que depois andámos aqui uma década com os nossos carros rotativos, a fazer os transportes e buscar os músicos à Covilhã e ao Canhoso, em que se pagava táxi. E foi assim que se conseguiu arranjar dinheiro e que se formava equipa e tudo isso.
E queria deixar aqui também uma nota. Nessa da placa não quis o meu nome e depois peço aí o favor de tirar uma fotografia, que foi aquilo que ficou dos elementos relevantes na altura da inauguração. E, não sei se disse também, nós na inauguração, e foi a maior inauguração que eu já vi neste concelho, de obras, foi esta, quando tivemos aqui as oito bandas, quando tivemos aqui mil e tal pessoas e que isto foi um espetáculo que nem todas as instituições se prezam de ter: secretário de Estado da Cultura, representantes de Coimbra, representantes de todo o lado...
E queria deixar aqui uma nota que me passou, que a minha equipa era de tal forma que, enquanto correram aqui as obras de ampliação da sede, nenhum músico, nem o maestro, recebemos uma pequena percentagem de 30% de cada atuação que é dividido por todos, que calha uma ninharia, que quem não falha nenhuma festa chega ao fim de um ano, e não tem nada, tem 100 euros que são gastos por lá, nos copos… Dois anos que todos nós suportámos sem ninguém receber percentagem, sem receber o seu... E quando chegámos a 2001, que conseguimos salvar as contas e tínhamos dinheiro, pagámos a toda a gente, não se ficou a dever um cêntimo, nem percentagem nem nada, por todo o trabalho.
Mas também ninguém tem dúvidas que em todas as equipes há quem trabalhe mais e quem trabalhe menos. Agora, que nós nos conseguimos completar uns aos outros e temos aqui a prova, numa aldeia de gente pobre, de gente das quintas, de gente dos lanifícios, com salários baixos e com tudo isso, a obra que nós temos aqui… Não há muitas instituições que se possam gabar da obra que têm e que está paga. Que há muitas por aí que ainda hoje estão com dificuldade, a câmara a pagar, não são eles próprios. Portanto, isto só se consegue com muito trabalho e com ambiente e com respeito.
A passagem pela Filarmónica, para mim, acho que foi a minha universidade. Eu só fiz a escola até à quarta classe. E nasci nas quintas e sempre ganhava. E foi aqui que eu cheguei e foi aqui que, já seguindo o que me ensinavam em casa e que me exigiam, respeitar os mais idosos, os mais velhos, e aprendi também respeitar uma farda. E aprendi a trabalhar desinteressadamente, a trabalhar para o bem-estar dos outros, que é o mais importante. Portanto, não venham cá com histórias, que nem qualquer pessoa serve para ser dirigente associativo, nem toda a gente chega. Eu dizia muita vez “os dirigentes associativos são diferentes dos outros”. E, falando naquilo que dizia o colega Dâmaso e o colega Jeremias, não sei se haverá alguém que passasse por esta casa a que se possa apontar grandes defeitos. Perfeito ninguém é, mas o que levam daqui uma lição de vida e de respeito.
E o Sr. Francisco disse que não assumia ser pai da outra menina, eu cá nunca cá trouxe meu filho, mas também lhe disse em casa: “Tu portas-te bem, porque eu ali não sou teu pai.” E eles lá portavam-se da melhor maneira, “mas eu cá também não sou teu filho.” Pronto é assim. Agora que nós assumimos aqui muitas vezes, se calhar, um papel mais importante, que até às vezes os próprios pais, de certeza absoluta. Porque aqui sempre se exigiu que as pessoas voltassem bem e que se respeitassem. E quando assim não o fazem, a gente cá está para saltar em cima. A gente cá está para chamar atenção.
E para mim foi uma grande lição, se não fosse a Filarmónica, eu não era conhecido como sou. E há uma coisa que a mim me dá um certo orgulho, e eu já faço sacrifício para cá andar e também já tenho algumas mágoas para com isto, não é com a instituição, é com algumas pessoas que às vezes passam. E aquilo que mais me custa na vida é que se ignore. Às vezes ignora-se e também nunca fui a tribunal e por causa do associativismo já fui três vezes a tribunal.
P: Porquê?
António José Duarte: Porque quando acabei o mandato, alguém estava aqui, por isso é que eu digo, contra a instituição não tenho nada, mas há pessoas que às vezes estão a ocupar lugares… Nesta terra, toda a gente me conhece. E passou por aqui alguém que pensou que eu que me tinha aproveitado ou que tinha aqui havido algum jogo sujo com o empreiteiro. Porque esta obra foi indicada para ser construída com 50%. E foi comprado tudo aquilo que era possível sem IVA. E depois tínhamos uma escrita que não conseguia enganar ninguém, que é uma escrita interna de entradas e saídas, onde estava tudo escarrapachado. Hoje não sei como é que funciona, mas o senhor doutor Luís deixava cinco euros esses cinco euros tinham um documento. E isso ninguém pode esconder e isso é sagrado e numa próxima Assembleia ou num dia qualquer que eu chegar aqui...
E alguém queria talvez chegar a presidente e também passou a palavra que tinha havido aproveitamento, porque essa pessoa dizia que eu nesta terra era um Deus. Não era Deus nenhum, era igual, mas pronto. E pensou em participar ao Ministério Público que andaram... o alvo era eu, depois o secretário e o tesoureiro, depois de oito anos de investigações com muita dificuldade, que não havia um sistema informático como há hoje para arranjar documentos bancários, todos os meus movimentos e daquilo que ganhava e do meu ordenado e da família e tudo isso e dos bens que tinha. Oito anos a ser investigados e a sentar o rabinho no buxo. Para não descobrirem nada, porque não havia nada.
P: Senhor Tozé, posso fazer-lhe uma pergunta? Tem estado a dizer que é de uma área rural e os outros dirigentes com quem eu falei que vêm das áreas rurais, que não são muitos, disseram-me que nas zonas rurais havia práticas de trabalho em conjunto na desfolhada, de irem trabalhar nas quintas uns dos outros. Também teve essa experiência?
António José Duarte: Não quer dizer que um amigo não vá ajudar o outro amigo… Agora isso na questão da agricultura… não há muito trabalho. Eu só queria deixar aqui também mais uma palavrinha sobre os músicos da Filarmónica, que foram a base principal do início da EPAB. E quantos problemas nós, eu principalmente, tive com a EPAB.
O filho do amigo Dâmaso foi chumbado um ano, por castigo, por cumprir os serviços da banda. Porque o senhor Luís Cipriano, quando pedíamos a dispensa verbal, nada, pedíamos por escrito, nada, e não nos dispensavam. Queriam-nos tirar de cá a toda a força para estarem só lá na EPAB e que era para a EPAB seguir. Eu cheguei a receber as convocatórias para reuniões só depois das reuniões, porque tive a coragem de dizer lá no dia de uma reunião: “Quando os senhores vieram para a Covilhã e quando a EPAB nasceu, já cá havia bandas e a banda da Vila de Carvalho já era uma banda conceituada, que os senhores hão de acabar e a banda tem que continuar.” O teu filho chumbou um ano. O meu foi castigado também, até porque acabou por depois fazer a EPAB também e foi para a Inglaterra. Mas daqui da Filarmónica, se não me esqueço, temos pelo menos três professores meus. O meu filho também é licenciado instrumentista e em composição. O Cristóvão, não sei se chegou a tirar alguma licenciatura. E temos agora a Ana Lucas, que é professora também na EPAB. Nós aqui temos seis, pelo menos. O João Luiz que está na Holanda… Muita gente daqui tem saído, portanto.
Pronto, para mim, quero-vos dizer, só me arrependo de passar pelo associativismo por ter feito determinadas situações e apoiado gente que às vezes não merece e que depois acabam por ignorar o trabalho dos outros para ver se conseguem prevalecer alguma coisa. Mas cada um só faz aquilo que pode e temos de nos governar assim.
E ainda tenho de deixar uma nota. Nós, em relação ao associativismo, sempre fizemos muito. Olhe, em 2000, fizemos aqui um colóquio sobre associativismo, aqui na sala de ensaio, O associativismo no novo milénio, quando tivemos aqui trinta e tal associações do concelho. Nós tivemos o representante INATEL e faça um favor, depois de tomar nota disso: nós também somos filiados no INATEL, como CCD, Centro Cultural Desportivo, para que tivéssemos oportunidade de nos poder candidatar a subsídios. Porque numa determinada altura quem não tivesse esse Estatuto não se podia candidatar e nós sempre recebemos alguma coisa de lá e continua-se a receber, mas temos que dizer aqui que também estamos filiados no INATEL e na Federação de bandas. Tivemos o representante do INATEL, tivemos a vereadora da cultura, tivemos o representante do IPJ de Castelo Branco. E estávamos em qualquer parte sobre o associativismo e sempre a debater as nossas ideias e a apresentar as nossas questões.
Portanto, esta Casa é, na nossa freguesia, a menina dos nossos olhos, como dizia, sempre e sempre foi acarinhada de tal forma que, muito novos ainda, hoje já é diferente, mas íamos no cântico das janeiras, que é uma das tradições mais antigas, e sempre se recolhia alguma receita, que era com essa receita com que se colmatavam as despesas do aniversário, onde nós por vezes à uma e às duas da manhã, lá em cima na serra, sem luz, às vezes sem se saber onde se punham os pés e as pessoas, porque era a banda, levantavam-se e abriam-nos a porta e davam-nos dinheiro e davam-nos de comer e beber. Sempre, sempre, acarinhados por todo o povo. Eu não sei se haverá alguém que tenha coragem de dizer que não gosta da banda.
Francisco Bragança: E somos uma instituição de utilidade pública.
António José Duarte: E a medalha de Mérito Cultural. Tenho-lhe a dizer que nesta Casa foi a vez que me senti mais orgulhoso. Na Câmara Municipal, sem ninguém saber, também foi uma batalha para se conseguir desde 1988, quando recebemos a medalha de Mérito Municipal, e quando chamam o representante da Filarmónica para receber a medalha, que eu era o presidente, fardado, e eu começo a deslocar-me para receber a medalha do Mérito e a banda, no corredor; a tocar o Hino à Alegria, foge, fiquei sem palavras, ainda hoje me arrepio. E ver aquela plateia de gente importante e nós da aldeia, tão simples, e tudo a levantar-se e a aplaudir, para mim foi o momento mais cheio que eu senti… e por todo o lado onde a gente passava somos aplaudidos, acarinhados. E só faço votos de que possamos continuar assim, orgulhosos da Filarmónica, orgulhosos do nosso trabalho, de cada um fazer aquilo que pode e consegue, e dizer que isto só é possível se as nossas famílias deixaram.
Francisco Bragança: Nós, a nossa aldeia, foi conhecida através da banda. Havia um senhor que ia ao Algarve buscar frutas e um dia ele soube, era o Carvalhinho, ele soube, lá o vendedor disse: “Quem é?” “É o meu sogro.” “De onde é que ele é?” “Da Aldeia do Carvalho”, “Huhhh, tem uma grande banda” – no Algarve! E outra coisa, se a senhora soubesse, com 72 anos e outros com 50 e tal, os sacrifícios que fizemos toda a vida de músicos. Mas nunca me arrependi e nunca hei-de me arrepender, tenho pena de já ter esta idade, porque eu vim três vezes, foi ao princípio, foi ao meio, e com esta idade, porque eu tenho pena, porque a pandemia deu muito cabo de mim. Eu não faltava a um ensaio, não faltava a uma festa, ainda que não tocasse nada, mas eu ia sempre. Agora veja, 72 anos de músico. Como é que a minha mulher, há 61 anos, o que tem passado comigo na música.
Carlos Dâmaso: Sr. Francisco, não é só você que gosta da música, que ela também gosta, senão...
António José Duarte: Há muitas que não gostam.
Francisco Bragança: Em 73 anos, no verão, no domingo, outro domingo, outro sábado, outra quinta-feira, sempre a música. E antigamente, hoje não, mas antigamente, lembro-me perfeitamente: nas festas tínhamos que andar de casaco, gravata, com o boné no braço. Nas procissões, às vezes procissões de mais de uma hora, no Verão, quando chegávamos ao fim do dia, podíamos torcer a camisa. Se esta festa fosse ao sábado, ao domingo tínhamos a mesma camisa. Hoje, felizmente já temos mais camisas. Já podemos ir sem camisa, mas já vamos com o boné. É muito diferente, mas tudo compensa no fim do serviço.
Porque nós, agora não, mas quando íamos para uma festa, antigamente, não havia aqui estrada, tínhamos que ir pela Covilhã. As pessoas já sabiam, olha, a música lá vai para alguma festa. Quando vínhamos, olha a música e acho que dávamos uma volta à aldeia, toda a gente sempre bem disposta. Agora o autocarro fica aqui, já não damos estas voltas. E numa ocasião fomos fazer uma festa e não estava aí a estrada. E as músicas tinham umas estantes e deixámos as estantes no autocarro. Porque muitas vezes deixávamos as estantes lá em cima na garagem, para não andarmos com as estantes. Numa altura, deixámos as estantes no autocarro. No domingo a seguir precisávamos de ir a Coimbra. Levamos as estantes ou não levamos as estantes? Tem que se comprar muitas. Passado um ano apareceram as estantes na Guarda, na central de camionagem. Estavam lá, dentro de um saco. Alguém... No fim, quando comprámos umas estantes é que apareceram as outras estantes, porque naquela altura precisávamos das estantes para tocar.
P: Qual é que acha que é o futuro do associativismo?
Francisco Bragança: Muito, muito mal, que pernas vão falhando. A pandemia deu cabo de mim, fiquei muito em casa.
Carlos Dâmaso: Como estava a dizer, vai ser um pouco difícil, porque os habitantes são menos. Antigamente, como eu costumo dizer, não havia aí nenhum buraquinho onde não se visse gente. E agora não, agora a maior parte das casas estão sem ninguém. Logo, há muito menos gente para vir para cá. Também para se arranjar as direções é sempre um castigo. As pessoas estão acomodadas em casa, não querem os trabalhos que a gente tem ou teve, tudo isso. Mas pronto, com um bocadinho de jeito, depois aqui o Jeremias dirá, porque ele está um bocadinho mais dentro agora da escola de música que temos. Têm vindo miúdos, que não são propriamente daqui, e talvez assim se consiga colmatar, oxalá que sim, a falta de elementos, e esperemos que a coisa vai vingar e espero bem que sim.
Jeremias Roceiro: Ao falar em associativismo, refere-se aqui à nossa banda?
P: Em geral, mas também especificamente aqui.
Jeremias Roceiro: Em geral, nos grandes centros, haverá sempre pessoas para continuarem a dirigir os destinos do associativismo. Em relação aqui à nossa terra, estou um bocado cético em relação a isso. Quer queiramos quer não, temos aqui quatro associações e as pessoas são cada vez menos e são sempre praticamente os mesmos a rodar de umas para as outras, ou então vão-se mantendo aqui nos cargos durante anos e anos. Chega uma altura que tudo satura e as ideias também começam a escassear e estas associações vivem muito também de ideias novas, de sangue novo e da renovação.
P: Vocês até têm um presidente muito novinho.
Jeremias Roceiro: Sim, graças a Deus, e bastante ativo. E vamos ver como é que nós, nós já tínhamos dificuldades quando chegava a altura de fazermos a renovação das direções, tem havido dificuldade e acho que no futuro vai ser um bocado complicado. Em relação ao futuro da nossa banda, nós já tivemos, sempre tivemos, ao longo da vida da banda, altos e baixos, atingimos, se calhar o auge nos anos 80. Em 1980 começou-se a dar a revolução. E depois, a partir daí, temos vindo a notar, também fruto da escassez de elementos para a escola de música…
Já temos que andar aqui nas aldeias vizinhas a recrutar com bastantes custos para a nossa banda, temos que pôr transporte. Isso é complicado. Em relação ao futuro, vamos ver. Esta situação da pandemia, numa altura em que nós estávamos com uma injeção de sangue novo, inclusive de alguns membros que já tinham estado na banda, tinham abandonado por várias razões e conseguimos trazê-los de novo para cá. Nós estávamos e estamos muito contentes com isso. Esta situação da pandemia veio dar aqui mais um abanão e por aquilo que nós estamos a ver, retomámos agora os ensaios, estamos a ver que as coisas estão-se a complicar outra vez
As nossas esperanças estão realmente na escola de música. Vamos ver até que ponto é que nós conseguimos preparar elementos para num futuro, o mais próximo possível, integrarem as fileiras da banda. Porque se nós não conseguimos, acho que vamos passar aqui um bocadinho mal. Está aqui o meu colega ao lado. Estão ali outros colegas, um toca tuba e o outro colega estava no contrabaixo. Nós estávamos aqui a contar com eles e um por um motivo e outro por outro, acatamos com tristeza a decisão deles virem praticamente a abandonar.
Carlos Dâmaso: Vocês vêm com tristeza, com mais tristeza vejo eu. Porque é uma coisa que eu gosto de fazer e agora vejo-me sem poder. É muito difícil. Ainda agora tocou o telefone, quarta-feira, às 15 horas, cirurgia de ambulatório, vou lá levar umas infiltrações, mas não é isso que vai resolver.
Jeremias Roceiro: Mas era o que eu estava a dizer, uns por uns motivos outros por outros, a nossa esperança está realmente na escola de música. Temos aí um punhado muito razoável de novos aprendizes e com vontade, porque eles, contrariamente àquilo que nós estávamos a pensar, eles não desanimaram com este tempo todo de interregno. Quando eles foram convocados, apareceram e tiveram aulas online também, compareciam. E foi com bastante alegria que registámos isso. Vamos ver quanto tempo é nós vamos demorar a prepará-los para efetivos da banda.
P: Vai correr bem…
António José Duarte: Queria dizer, com respeito ao associativismo, vejo com alguma preocupação, relacionada com a parte humana. Porque, por muito mal que se esteja hoje, hoje há mais apoios do que havia no passado. Hoje há mais apoio. Hoje a câmara apoia as atividades e os programas de atividades. E, bem organizados e bem preparados, eles pagam tudo isso. E ainda dá para ganhar algum dinheiro.
Agora, no passado, que me recordo, para se comprar um clarinete para esta casa, que custava oito contos, saía-se a fazer um peditório ao povo. Hoje, as coisas, com os serviços que se vai prestando e com os apoios que vai havendo, as coisas, em questão de apoios, estão mais facilitadas. Agora, em questão de gente estão mais difíceis, uns porque a idade já não permite, estão cansados de ouvir, enxovalhados e difamados. Porque a gente, para estar descansadinhos, estar com a família, é não se meter em problemas. Por aí, acho que vai continuar a haver falta de dirigentes.
Na nossa terra, temos muitas associações que, no meu entender, bastava três associações nesta terra, e com a Igreja, quatro. Era a Filarmónica, derivada à cultura, o Carvalhense, derivado ao desporto, e abrangia-se aqui os Amigos de Vila de Mouros ao Carvalhense, por exemplo. O Rancho Folclórico, com o Grupo Danças e Cantares, que nasceram aqui, e que agora, depois em 2003 ou assim, não houve entendimento e saíram, é mais uma associação.
E depois, é como diz aqui o amigo Jeremias, arranjar dirigentes para tantas as instituições não é fácil e se tivessem todos... e as capacidades que a Filarmónica tem de instalações, abrangia-se aqui e tornava-se aqui uma instituição muito mais forte e com mais capacidade de arranjar dirigentes. Mesmo com respeito à banda, espero que se consiga sempre arranjar dirigentes associativos, há sempre uma parte que é muito importante, que é a base também dos músicos fazerem parte dos órgãos sociais. A banda, espero que seja mesmo um fruto da escola de música, que ao longo dos anos tem sido, mas agora que de outra forma, e outro professor, e outro método de ensino que conseguem desenvolver melhor do que nós, que que foi com um ensino muito fraquinho e que foi também à base da boa vontade e de muito trabalho.
Eles agora são preparados de uma forma que é mais fácil e estão mais motivados e é derivado disso. Agora é complicado, porque chega a uma determinada altura e começam a sair, a estudar para fora e outros começam a namorar e outros um emprego fora, e não se pode esperar por músicos para andar 50 anos e nunca mais 70 e se calhar nunca 20 ou 30, e será por aí. Portanto, terá que haver sempre um trabalho exaustivo na escola, para que haja sempre um colmatar... E espero que outros apoiem o associativismo, que dêem valor às pessoas que se disponibilizam gratuitamente para se entregar ao bem dos outros, porque isto do associativismo é também a felicidade de muita gente. Hoje já não é tanto, porque há os meios para que as pessoas se entretenham em casa. Agora antigamente, era nas coletividades que se juntava, se conversava, se falava de tudo e que se convivia. Hoje até já não há os convívios como antigamente, que a gente trazia um garrafão de vinho e umas febras e assávamos, e passava-se a noite à volta da lareira, não era?
Enfim, mas eu queria deixar aqui também só uma nota com respeito a mim. Uma experiência muito grande, com passagem pela Filarmónica e o associativismo. Mas quero dizer-lhe que a ação social também é muito gratificante. Estamos aqui, na Filarmónica, como acreditamos, numa situação de aprendizagem da música e tudo. E depois, no social é outra aprendizagem, com os avós que têm uma sabedoria do passado e experiência. E que também é muito gratificante, também foi com muito gosto que passei por essa experiência. E nada de arrependimentos, nem da parte da Filarmónica, nem da ação social.
P: O Tozé também não foi de uma Comissão de Melhoramentos da freguesia?
António José Duarte: Eu comecei logo cedo, o meu amigo Carlos sabe, que comecei logo nas fábricas, logo ligado às comissões e logo para o sindicato e comissões de reivindicações e de transportes, estive oito anos também na Assembleia de Freguesia. Não falto a uma assembleia de uma coletividade, não falto a uma Assembleia de Freguesia, gostei sempre, nunca me preocupei em estar a ler jornais da bola.
Mas tudo o que dizia respeito ao nosso concelho, ao associativismo, estive sempre muito ligado, não só da nossa terra, assim como do concelho, estive sempre muito ligado a isso. Até mesmo os políticos, que são uns mentirosos, eu também gosto de os ouvir e de dar a minha opinião. Às vezes até me desafiam para falar e quando eu não intervenho já me dizem: “Tozé…” E depois não gostam do que eu digo. Sempre fui assim, muito frontal e de exprimir aquilo que sinto, o meu ponto de vista, não quero dizer que esteja certo, a maior parte das vezes até estarei errado…
P: Agora estava a falar da contestação. Aqui esta zona, que é uma zona muito industrial, com uma grande tradição operária, também tiveram aqui grandes greves nesta freguesia?
António José Duarte Fiz parte desses piquetes que foram aí feitos na altura e andei sempre debaixo de fogo. Eu fiz parte dessas coisas, mas quando precisava de ganhar dinheiro e alguns precisavam de dormir, eu fazia a parte da manhã e os outros faziam a da tarde, eles dormiam, eu fazia a parte da manhã, logo às 4 e 5 da manhã, para a porta das fábricas a impedir que alguns… Se calhar também não devíamos fazer, que isso também não era grande luta, pronto, mas isso aconteceu na altura. Depois, de tarde vinha para a minha oficina.
P: O Jeremias também ia?
Jeremias Roceiro: Não, piquetes não, fiz muita greve, não é? Mas piquetes por acaso não.
Carlos Dâmaso: Eu sempre disse aqui para o meu amigo: “Oh Tozé, tu gostas mesmo da política e tal”, eu nunca andei muito nessas…
P: Qual é que era o sindicato?
António José Duarte: Quando estava aqui na fábrica, lidava mais com os sindicatos dos lanifícios, que estive ligado aos lanifícios, embora a nossa profissão seja serralharia, mas estávamos ligados ao dos lanifícios. Depois também estive ligado ao metalúrgico, porque, já nos últimos anos, eu era o chefe de serralharia ou chefe de manutenção da empresa. E havia uma situação em que a empresa queria fazer uma remodelação total e queriam então despedir 28 pessoas e queriam reduzir horários de trabalho, não sei que mais e tal. E para aquilo não ser aprovado tinha de haver uma comissão de cinco pessoas, de cinco trabalhadores, e já tinha havido três plenários em que não se tinha conseguido essa comissão. E eu já estava cansado daquilo, qual o espanto dos meus patrões, com muita consideração que tinham por mim, e que está aí, que somos amigos.
Não é muito fácil um trabalhador ser amigo do patrão, mas pronto, eu tive essa sorte de ser. Eu levantei o dedo e “contem comigo”. Era preciso cinco pessoas, apareceram logo dez. E os patrões deram um passo atrás: “Tozé...” Acabou o plenário, a comissão foi formada e eu dirigi-me a eles e disse: “Não se preocupem, os meus princípios são estes, os senhores têm os seus direitos e os trabalhadores também têm os direitos deles e vamos trabalhar para que isto se resolva, porque senão nunca mais se resolve. Agora podem ter a certeza que eu não vou estar contra vocês, nem vou estar a favor, vamos à procura das leis e as leis são para cumprir.” E assim foi feito.
Vi-me aflito com o sindicato, que abandonou o processo. Telefonei, fui apenas a uma reunião. O presidente do sindicato, o Luís Garra, chegou no final, o único que levou um papel era eu e uma esferográfica. Isto nem o que se escreve é verdade, amanhã fará. E pronto e lá esteve e depois o presidente disse: “O Tozé já disse coisas que eu não tinha coragem de dizer.” E nunca mais lá voltou. Olhe, problemas com a segurança social, com a ACT, com o sindicato.
Resumindo e concluindo, tive de dizer frontalmente à jurista da ACT, “como é que uma jurista põe em causa a defesa da lei que está aqui? Em quem é que podemos confiar? A segurança social não resolve, o sindicato não resolve, a ACT não resolve, isto só é resolvido internamente”. Resumindo e concluindo, ficou tudo como começou, não despediram ninguém, não mexeram horários, não mexeram nada. Agradeceram-me ter feito parte: ”Se não fosse você, não saíamos disto”, e ficou tudo igual.
O que é que eles dizem, há direitos de uma parte e de outra, as leis é que mandam. Portanto, no fundo, a minha vida foi quase sempre assim um pouco, até um dia destes fiz uma publicação no Facebook com respeito à nossa freguesia e de uma publicação que o presidente fez, fiz também um comentários, que não costumo fazer e ele telefona-me às 11 da noite para me dar a notícia em primeira mão, por causa do asfalto também da estrada 30 de Junho, que é da minha zona e que estou sempre a chatear-lhe a cabeça e da Câmara. E a minha publicação foi logo apagada…
Tenho a minha mãe numa cadeira de rodas há 10 anos, há 10 anos que, para a deslocarmos numa cadeira de rodas até a minha casa, que não é assim tão longe como isso, que era mais fácil do que metê-la num carro. Tive que arranjar uma rampa para a meter e amarrá-la lá dentro e tal, porque não se consegue andar lá, cheia de buracos. Diz que desta vez que vai ser arranjada e só publiquei. Faço votos para que a nossa mãe, porque nós somos oito irmãos, não criou nenhum professor, nem doutor, mas criou trabalhadores, que também são necessários. Faço votos para que a nossa mãe ainda possa ver e usufruir de um pavimento na sua rua, para poder ter melhor assistência e visitar os filhos.
Política não gosto muito porque os políticos são ... e eu gosto muito das coisas justas.
P: Ninguém é filiado em nenhum partido?
Francisco Bragança: Não, os políticos é tudo...
P: E religião, são todos católicos?
Jeremias Roceiro: Eu sou.
P: Praticantes?
Jeremias Roceiro: Qb.
Carlos Dâmaso: Mais ou menos.
Jeremias Roceiro: Praticar é mais difícil.
Francisco Bragança: Pois, 85, 90%. 100% penso que não há ninguém.
António José Duarte: Mas se quiser também alguma informação sobre o associativismo aqui da Terra, se quiser frisar o Carvalhense, também a fundação e a atividade, eu também... Foi fundado em 1953 e está ligado ao desporto. Está prestes a iniciar umas obras de uma sede social. Sobre os Amigos de Vila Mouros, o Jeremias é mais capacitado do que eu.
Jeremias Roceiro: Fui fundador da associação. Pertenço à equipa de fundadores da Associação dos Amigos de Vila Mouros.
P: Qual é a atividade que desenvolvem?
Jeremias Roceiro: É montanhismo, atividades ao ar livre.
P: Foi fundada em que ano?
Jeremias Roceiro: Não sou capaz de dizer, agora estou um bocado afastado, já estou há uns anitos afastado lá, mas tinha que estar a pensar…
António José Duarte: Mas já foi.., Enfim, eu já era presidente da direção...
Jeremias Roceiro: 25 anos, deve ter uns 25.
António José Duarte: Olhe, nessa altura havia parceiros para a fundação das coisas. O único parceiro desfavorável foi o presidente da direção da Banda Filarmónica. Porque já nesta altura entendia que não era necessário criar mais uma associação, mas depois fiz-me sócio. Convidaram-me a ser sócio: “Oh Tozé, você é contra a Associação Amigos de Vila Mouros, mas tem que se fazer sócio.” “Eu não sou contra a Associação Amigos de Vila Mouros. Fui contra a sua criação. Tal qual como um filho que nos nasce e não é desejado, mas temos de o criar. Portanto, dêem-me uma proposta que eu faço-me sócio.”
Agora, naquela altura entendia, porque também foi criado, e tu também sabes bem disso, porque começaram aqui. E eu admiro a capacidade de agir, que nem toda a gente tem capacidade para estes cargos, porque não há um entendimento. Porque se há um entendimento aqui, podia estar aqui.
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2 de Junho de 2021
P: Onde é que o senhor nasceu?
António Monteiro: Foi aqui na Covilhã.
P: E nasceu em que ano?
António Monteiro: Nasci em 1936. Freguesia de São Pedro e foi aí que eu fui criado. E a partir daí, eu tive um acidente, é a realidade da minha vida e o que foi a minha vida. Foi o nascimento e aos nove anos tive um acidente. E muita gente que não sabe ou não se apercebe, porque eu uso óculos e não se apercebe que eu… De facto, tenho assim ideia… Mas nem vale a pena adiantar mais, porque… pronto.
A partir daí é, é claro, tive uma vida, fui criando, fui subindo na vida, claro. Como garoto, eu cheguei aos nove anos na escola e tive um acidente e depois, a partir daí, dos 9 anos, a escola para mim parou, derivado ao acidente que tive na vista. Comecei a trabalhar, o tempo foi passando e com dificuldades naquele tempo, dificuldades que havia naquele tempo. Nunca nos faltando nada, os meus pais sempre trabalharam e nunca nos deixaram faltar nada, porque éramos sete irmãos. Nunca passámos fome, graças a Deus, e só cá estamos dois agora, éramos sete e já morreram cinco. Encontro-me eu e o meu irmão. Portanto, nesta vida e na situação que está agora, que é muito complicada. No entanto, coletividades, havia muitas coletividades, muitas cá na Covilhã, tinha umas 30 e tal.
P: Diga-me só primeiro: começou a trabalhar em quê?
António Monteiro: E comecei a trabalhar, eu comecei a levar os almoços para as fábricas da indústria. Pronto, eu vou responder à senhora. O meu trabalho, comecei a trabalhar aos 12 anos, comecei a levar os almoços: passava aqui, ia para o Ernesto Cruz, para o Fiadeiro, que eram as fábricas dos lanifícios, levava dois almoços para ganhar algum dinheiro. Aos 12 anos e de chinelos em cima da neve, e a chover, muita chuva, muita chuva e neve e então digo assim. E claro, eu sempre fui um indivíduo que gostei de trabalhar e pronto, deixei de trabalhar aos 65 anos. Pronto, eu quando me aposentei… mas já lá vamos, depois…
É claro, eu comecei a trabalhar e andei a trabalhar, para cá para lá. Fui evoluindo na vida, fui evoluindo, depois fui mudando, digo assim: isto não pode ser, tenho que arranjar um trabalho – e arranjei logo para as fábricas. Fui, fiquei lá no Fiadeiro, portanto na fábrica O Fiadeiro, a trabalhar. Deram-me logo trabalho lá e estive lá, estive lá seguramente meio ano, seguramente meio ano. É claro, naquela altura quem desse mais dinheiro é que a gente… Queríamos mais dinheiro e então a gente mudava. Naquele tempo, isso naquele tempo… Arranjei então [trabalho] na tinturaria. Fui crescendo, fui crescendo, arranjei para a tinturaria. Estive lá também os dois anitos. Fui mudando, mudando para outras fábricas: trabalhei na Carlos Alberto Correia, trabalhei na recauchutagem de pintado. Também deitava sempre a mão a tudo, não é, porque eu sempre gostei de trabalhar. E o último trabalho… Portanto, eu fui, na questão de trabalho, já devido à minha maneira de ser… nunca deixando as coletividades, coletividade que eu me lembro que tinha lá à porta, que era a Estrela de São Pedro, chamavam-lhe o Estrela São Pedro. Comecei a jogar à bola e praticava lá os jogos da sueca e o dominó, com a malta que se juntava ...É claro, as coletividades para mim, foi… Ainda hoje sou um perdido pelas coletividades. E porquê? Porque eu gosto muito e porque eu sou um menineiro. Gosto muito das crianças e dou-me bem com as crianças. Não sei porque sim ou porque não. Eu tenho três netos, tenho dois filhos que… Já lá vamos...
Na Carlos Alberto Correia, voltando à fábrica, aí é que eu me casei. Trabalhava na Carlos Alberto Correia, casei-me aí em 1967. E, é claro, já estava melhor, mas depois daí casei-me, fui jogar à bola, chamaram-me outra vez para ir a jogar bola, porque era bom jogador. Então continuei na tinturaria, de noite, da meia noite para o dia: mais dinheiro, mais dinheiro à hora. Todo contente, todo contente, já casado.
P: A sua mulher também trabalhava na indústria têxtil?
António Monteiro: Sim, a minha esposa também trabalhava, trabalhava no Ernesto Cruz. Casei em 1967, comecei a namorar a minha esposa em 1965. Em 1967 casei. Ela trabalhava no Ernesto Cruz, e eu lá consegui, a minha mulher era doméstica e eu tirei-a de doméstica e pu-la na fábrica, até as empresas fecharem. Depois, então, ela saiu da Ernesto Cruz. Depois, então, naquele tempo já havia a Universidade, e então consegui metê-la na Universidade, na cozinha. Porque a minha esposa era doméstica, trabalhava de doméstica, e então sabia fazer de tudo, e eu consegui metê-la na cantina da Universidade. Esteve lá 20 anos a trabalhar e aí se reformou e eu encantado da vida também, porque depois deu eu sair da outra fábrica, fui para o Santos Pinto, uma fábrica também de lanifícios.
P: Qual era o seu ofício?
António Monteiro: Era tecelão, mas pouco lidava com os teares. Mas lidava com outras máquinas, meadeiras, torcedeiras, embrulhadeiras, eu trabalhava com isso tudo, eu sabia trabalhar com essas coisas todas. Conclusão, a altura das greves, altura das greves… Complicado, complicado… Casado, com o primeiro filho, 1968, foi quando fui para o Santo Pinto. No Santos Pinto é que eu agarrei: é que isto está tão mal, tão mal, eu vou tentar desenrascar-me, e então queria arranjar um trabalho fixo que me dê garantias para que eu pudesse sobreviver na minha vida, e não andar aqui na nas greves, nos lanifícios. E então lá consegui arranjar um lugar na Câmara Municipal da Covilhã, portanto, no Mercado Municipal. Estive lá 20 anos, estou aposentado da Função Pública.
Ora, voltando às coletividades, fui sempre um indivíduo dedicado às coletividades. Como disse, estive no Estrela de São Pedro, que era logo também era ali perto onde eu morava. Quando casei, mudei para a freguesia de Santa Maria e ainda hoje lá moro. 45 anos que morei numa casa, tive que mudar para outra casa, porque a Câmara necessitava de fazer obras. Pronto, consegui mudar. Ora, eu morava ali em Santa Maria, portanto, eu fui morar para o pé da banda. Mas, voltando atrás: quando eu estive no Estrela de São Pedro, éramos muitos amigos, muita rapaziada, que havia ali naquele tempo, andava tudo a brincar nas ruas, que hoje não se vê ninguém a brincar, hoje não se vê nada. É claro, a gente juntava-se nas coletividades, nos bailaricos. E a gente divertia-se nas coletividades, no Estrela de São Pedro. Depois, quando fui para cima, para Santa Maria, tínhamos o Águias de Santa Maria, também onde eu jogava à bola, onde eu joguei à bola muitos anos. E ali estive, no Águias de Santa Maria.
Portanto, estas coisas com o tempo também vão fechando, não é? É de facto pena, esta juventude não ligar às coletividades. Porque ali nas coletividades aprende-se muito, aprende-se muita coisa, muita coisa aparece, muita coisa… Aprende-se o bom e o mau, mas é sempre melhor. Bom, eu estou todo radiante em Santa Maria, com o Águias de Santa Maria. Foi aí, de facto, que eu conheci a minha esposa, nos bailaricos. Estou feliz. Então, tinha o Santa Maria, eu morava ao lado da banda, mesmo ao lado da banda. A banda é minha segunda casa. Eu sou feliz de estar aqui nesta casa, porque me sinto bem, sinto-me feliz. Eu sonho com a banda. Eu quando era mais novo, eu fazia os meus trabalhos. Agora já não sou capaz. Já não sou capaz de fazer o que fazia aqui, nas festas da banda. Aquele Jardim de Santo António que vai lá (já agora, eu também sou António), fazíamos aqui as festas de São João, São Pedro. Andava em cima das árvores, eu fazia, eu era... E às vezes diziam: não caia, não caia. E, quer dizer, a gente às vezes caía, mas levantávamo-nos e lá continuávamos. Queríamos era, de facto, fazer as coisas, que é para ficar uma coisa linda que nós fazíamos aqui. É claro, estas coisas querem muita vontade, querem muito crer para que o que nós fazemos chame mais um amigo, uma menina, um menino. Também cá tive a minha filha.
É claro, e voltando aos filhos: agora tenho dois filhos. Tenho o meu rapaz, que tem 44 anos, é doutor, tem o curso de economista e vive em Braga, está na Câmara de Braga. A minha filha, que tem uma diferença de 7 anos, é doutora, é professora, higienista. Estou feliz, sinto-me feliz. Tenho uma mulher que é uma querida. Eu tenho uma mulher que é uma querida, eu também sou um querido para ela, porque sempre gostei de trabalhar e sempre de viver e sermos educados uns para os outros. Temos que ser educados uns para os outros. Isso sempre foi o meu lema, a educação. Então foi a educação que eu dei aos meus filhos. Os meus filhos estão casados. Tenho a minha filha, que é higienista, que é a [...]. Tem dois meninos. É um casal. O meu filho é o [...], que está na Câmara de Braga, que tem um menino, que é o [...], que tem 15 anos. E então esta vida foi sempre para mim, foi sempre uma vida regalada… Foi não me preocupar com estas coisas. Às vezes, quando há alguma coisa que temos de nos preocupar… Mas levei sempre uma vida regalada, sempre uma vida com serenidade, saber lidar com as pessoas, unirmo-nos e aqui na banda, com estas crianças aqui, que felizmente que há, agarrava, comprava uns rebuçados e “tomem lá meus meninos”. E, de facto, o meu querer era esta casa nunca acabar. Com a idade que tenho, faço 85 anos, gostava de até aos 100 anos andar aqui. Chegar aos 100 anos e sentir: é pá, eu pedi até aos 100 anos e cheguei aos 100 anos e estou aqui, Mas, então, Deus nos dê saúde.
P: Diga-me uma coisa: professa alguma religião, é católico, vai à Igreja.?
António Monteiro: Sou católico. Sou eu e a minha esposa, e vou todos os dias à missa.
P: E é de algum partido político?
António Monteiro: Não.
P: E esta propensão para o associativismo e para as coletividades. Acha que é da família, os seus pais já participavam nas coletividades?
António Monteiro: Quer dizer, isso, a questão dos meus pais... Não, os meus pais, eu nunca tive conhecimento de que, de facto, que os meus pais… Portanto, trabalhavam na lavoura, trabalhavam nas quintas. Nunca tive conhecimento que eles... nesse tempo não se conhecia as coletividades, não é? Não, não havia coletividades.
P: Então, o que é que o motivou a vir para as coletividades?
António Monteiro: Eu, motivar-me em vir para as coletividades? É eu ser uma pessoa… é gostar, gostar de facto de lidar, saber lidar com as pessoas, honestamente, lidar com as pessoas, o convívio em si, isso é que me diz tudo. Agora, é a continuação, é claro, espírito… Tudo tem os seus quês, não é? A continuação das coletividades e arranjarmos sempre uma direção. Alguns ali na direção, já não sei lá quantas vezes… Já me mudaram para vice-presidente, depois volto para trás, depois volto para cima. Sou sempre um indivíduo que ando aqui de um lado para o outro, não é? Está tudo bem, da minha parte está tudo bem.
P: Então e na sua infância, na sua adolescência, as associações foram importantes para a sua formação?
António Monteiro: Sim, foi. A minha formação foi, portanto… a gente vai aprendendo, a gente vai aprendendo uns com os outros, nas coletividades porque, se a gente abandonar a coletividade, se não ligarmos mais a isto, isto acaba por morrer, não é? Não Fui aprendendo alguma coisa, aprendi alguma coisa. A gente está sempre a aprender. Aparece sempre alguém que diz: oh Monteiro, você isto, aquilo… Eu vou mas é embora. Não, não, você não pode ir embora. Temos aqui um professor, porque o Professor [...], para mim é um homem que foi um Deus que apareceu aqui na Covilhã… Isto faz-me lembrar, na coletividade, ainda era naquela além, estava eu estava eu sozinho na sala de direção, quando ele apareceu. Tínhamos lá um empregado e procurou se estava alguém da direção e por acaso estava lá eu e assim: está ali o Sr. Monteiro. E, então, o professor [...] apareceu, estivemos a conversar e isto é que a gente vai aprendendo. Eu estive a conversar com ele ali uma hora e meia, duas horas e digo assim: chegou a hora de irmos ali beber uma cervejinha ali ao bar. Ah, sim senhor. Estivemos lá, voltámos. Eu aprendi e estou aprendendo com ele, com o [...], um grande amigo, grande amigo, grande homem, grande professor, grande doutor, não haja dúvidas que é um grande amigo, eu considero que é um alentejano assim mesmo de gema. Quero dizer com isso que cá me encontro a trabalhar com esta minha satisfação.
P: O que é que foi a coisa mais importante que aprendeu nas coletividades?
António Monteiro: Foi saber lidar com as pessoas. Mais importante foi saber lidar com as pessoas, com as crianças, com as senhoras. Temos aqui uma direção, que eu não tenho dúvida alguma em respeito a isso: aqui com respeito acima de tudo. Aqui não há maldade. Respeitinho acima de tudo.
P: E diga-me uma coisa. Antigamente, quando começou a participar, era um período muito difícil, as pessoas tinham vidas muito difíceis. As coletividades organizavam algum tipo de ajuda com as pessoas? Espetáculos em benefício de um sócio doente, ou coletas em momentos de dificuldades?
António Monteiro: Quer dizer, as dificuldades… sempre houve dificuldades. Debatemo-nos com muitas dificuldades aqui. Só quem por cá passou, o que temos aqui… Um casa, de facto, que só visto. Grande homem, como disse, o senhor [...], também fez para que esta casa, que é uma casa que construíram, uma casa que eu vejo que está cada vez cada vez mais, e mais, melhor e melhor. Ora, o aspeto de dádivas, ofertas, é muito complicado, muito complicado.
P: Antigamente, quando era mais jovem, no tempo antes do 25 de Abril, as coletividades não organizavam formas de entre ajuda entre os sócios, quando um precisava? Ajudavam-se uns aos outros?
António Monteiro: Já nessa altura, de antes do 25 de Abril, já havia aquela união, aquele gosto para termos a nossa coletividade, aquela vontade… Isso já vem daí, esse faz tudo por tudo, esse devemos fazer algo para nós ajudarmos. Isso é que me faz lembrar… que me repugna que uma coisa que às vezes… o passado que é... fazerem estas coisas, a gente preocupar-se com estas, não ter dinheiro, como é que vai ser? Eh pá tem que se resolver, tem que se resolver, de uma maneira ou de outra… A gente fazia muitos sacrifícios para que...
P: Pois, para comprar os instrumentos e essas coisas, era preciso reunir algum dinheiro...
António Monteiro: Claro, muito trabalho, muito trabalho para comprar os instrumentos, muito trabalho e entre ajuda, fazermos uns bailaricos para fazermos dinheiro, fazermos aqui uns almoços para servirmos, para angariarmos dinheiro para estas coisas, para instrumentos.
E temos aí tantos jovens, e não temos de facto dinheiro para comprar instrumentos. E é muito complicado, nós querermos dinheiro para comprar um instrumento e não termos. Portanto, andamos sempre ao faz favor, temos que comprar mais um instrumento, entraram mais duas crianças e não temos instrumentos. Isto é complicado. O maestro também, o Sr. [...], também é um grande… é um jovem. Chegamos a esse ponto, é uma criatura que está mesmo dedicado aqui para a nossa banda. É um grande homem. Tem um grande valor. E ele precisava de mais instrumentos para pôr os garotos a tocar.
P: E lembra-se, antes do 25 de, Abril se as coletividades tinham problemas com a polícia, ou seja, num período mais difícil, lembra-se de algum momento de dificuldades dessa natureza, ou seja, de não conseguir desenvolver todas as atividades que queriam?
António Monteiro: O 25 de Abril, e eu digo para mim, não me diz nada. Eu disse: o 25 para mim, não disse nada. Eu toda a vida trabalhei, e veio o 25 de Abril e continuei a trabalhar. Para mim, é igual.
P: Não nota, não acha que são diferentes os tempos de hoje?
António Monteiro: É diferente uma coisa, uma coisa que é o mais importante, o respeito. Falta de respeito, não há respeito nenhum. Perderam o respeito: os pais para os filhos, [os filhos] com os pais. Falta de respeito. Isso é o essencial, o essencial é o respeito, em nome dos meus filhos, nunca os meus filhos faltaram ao respeito. Nunca eu faltei ao respeito aos meus pais, aos meus irmãos, nunca. Não faltei ao respeito a ninguém. Nasci pobre, criei-me, criaram-me, cheguei este limite pobre, mas sempre com respeitinho.
Os meus pais: meus filhos, vocês dêem-se sempre bem uns com os outros. Se houver algum problema, ajudem-se uns aos outros. A minha mãe teve 17 anos sem ver. E disse: meu filho, eu vou morrer, vou morrer, morrer com 87 anos e tive 17 anos sem ver. E ela disse: meu filho (que eu era o mais querido, não é por dizer, por dizer que eles também não eram queridos, mas eu era mais que estava lá em casa e tinha a minha esposa, que era uma segunda filha). É assim, a minha [...], era a minha querida, era a minha esposa, não faltava lá nada, à minha mãe, com 17, não, com 16 anos sem ver, é de uma dificuldade, não é? E então, diz assim: ó meu querido, a mim só me chamavam Toninho, oh Toninho. É claro, nasceram os meus filhos, o meu Paulinho, que é doutor, é que ia a casa da avó: oh mãe, eu vou ver se a avó precisa de alguma coisa. Nessa altura, isso do 25 de Abril, portanto, nasceu em 67...
P: Eu estava-lhe a perguntar como é que acha que as coletividades evoluíram. Já tem uma experiência tão longa. Quais são as principais diferenças? Aqui a banda está exuberante, não é?
António Monteiro: Sim, a banda e o que é, são as boas vontades, porque isto se não houver boas vontades, não vai a lado nenhum, não é? É de facto mal empregado algumas coletividades terem fechado, à falta de pessoas que queiram trabalhar, humildes, a fazerem para que as coletividades subam e requerer mais da casa em si, haver mais movimento, manter as pessoas para aprenderem qualquer coisa. Porque hoje em dia não se vê nada disso, as pessoas fogem. Não se vêem aí na rua a brincar. Desculpe a expressão, mas só vêem é maldade. O 25 de Abril é que deu cabo disto. A falta de educação para mim foi o 25 de Abril. Eu vivi toda a minha vida no tempo do Salazar, era um respeitinho. A mim o 25 de Abril não me adiantou nada. Eu toda a vida trabalhei, como disse, toda a vida trabalhei e trabalho...
P: E a sua mulher também participou nas coletividades?
António Monteiro: A minha esposa, sim também, também fazia.
P: Ela também assumiu cargos de direção?
António Monteiro: Não, a minha esposa nunca. A minha esposa, no clube Grupo Desportivo da Mata… A minha esposa morava lá em cima ao pé do Grupo Desportivo da Mata. Mas nunca fez, nunca entrou na direção.
P: E que tipo de atividades é que ela desenvolvia lá?
António Monteiro: Lidava com aquela juventude que ali havia, portanto, as senhoras… mas nunca foi uma mulher dedicada, portanto, ajudava, ajudava no que fosse necessário, não é?
P: E estava-me a dizer que fez parte de várias direções, foi aqui sobretudo na banda ou também esteve noutras coletividades?
António Monteiro: Águias de Santa Maria, Estrela de São Pedro.
P: Também teve cargos da direção nessas coletividades?
António Monteiro: Sim, sim. Jogava à bola, fazia tudo.
P: E como é que conciliava essa dedicação, esse trabalho voluntário, com a família, com o trabalho?
António Monteiro: A dedicação era própria mesmo nesse caso, porque eu vivia com a com a juventude em si, eu dizia, casa-coletividade, casa-banda. Ou digamos, Casa-Estrela de São Pedro, porque também vivíamos ali, eu morava em Santa Maria, tínhamos ali a coletividade, o Águias de Santa Maria. O Águias de Santa Maria também era uma coletividade que tinha bilhares, tinha damas para entreter e tudo isso. E então, para passarmos as noites, um bocado da noite. Que me faz lembrar que a Águias de Santa Maria foi a primeira coletividade a ter televisão aqui na Covilhã, salvo erro em 1954. Primeiro a televisão foi para aí, a preto e branco, para o Águias de Santa Maria. A coletividade que a gente… pronto, a gente saía do trabalho e íamos para ali, para acolá, para a coletividade, era Águias de Santa Maria-banda.
Eu jogava à bola lá em cima e vinha para aqui, viver com as crianças aqui, porque a banda era lá, à porta de onde eu morava, mesmo onde eu morava. Eu morava no largo e onde era ali, portanto, o fogo em 1993, salvo erro… Eu ainda lá andei a apagar, com uma mangueira, porque deitaram fogo à banda e ainda lá andei. O que eu fiz por aquela casa quando era diretor, com o Sr. Moreira, muitos anos, e outros mais. Isto na banda lá em cima.
[...]
António Monteiro: Resumindo e concluindo, aquela casa ali era muito boa, era muito boa, mas também lá chovia, e foi na altura que fomos falar com o presidente [...], e ele arranjou, fez o favor de nos arranjar... E então viemos para aqui, aqui a trabalhar, a sujarmo-nos todos, foi um grande sacrifício que fizemos, tudo a correr depois para ir para o lado também. E éramos todos, todos os diretores e mais os sócios, e isto é que era bonito. A gente pedia um favor, um sócio… Depois já bebíamos um copo, depois um dominó, depois um lanchezinho, e pronto vamos lá. Fazia-me feliz e hoje é muito difícil de ver: se for para o jardim, estão ali a beber cerveja. Ninguém vem para aqui. Mas deviam vir aprender qualquer coisa. A música, que é a coisa mais Linda.
P: Estão e o que acha que é o futuro do movimento associativo?
António Monteiro: Olhe, minha Senhora, o futuro? O futuro o dirá, não posso adiantar mais nada.
P: E o que é que desejava que acontecesse?
António Monteiro: Ai, o que é que eu desejo para mim? Sempre o melhor, ter esta casa sempre aberta até eu morrer. Esta casa fica aberta. E se eu for na frente, a minha mulher ter força e nunca deixar de vir a esta casa, que ela também gosta muito aqui da banda. E um dia, quando eu for, levo a banda no meu coração. É aquilo que vejo, que deixo aos meus queridos, é aquilo que eu lá tenho. Olhe, fui contador do Sporting, a minha vida foi sempre a trabalhar, 45 anos a trabalhar, 45 anos a cobrar as quotas do Sporting. Andar de inverno, a chover, a nevar, a fazer sol, pelas ruas. Para o Fundão, para o Paul, Unhais da Serra, Teixoso, Aldeia do Carvalho, 45 anos. E isto porquê? Porque a vida assim dizia, temos que trabalhar para termos alguma coisa.
Meu lema foi este, tenho que trabalhar enquanto puder, enquanto puder trabalho. Cheguei aos 45 anos, fui 45 anos cobrador. Tenho lá diplomas de cobrador, tenho lá diplomas daqui da banca, tenho diplomas do Águias de Santa Maria. Tenho lá um quarto, tenho uma casa grande, tenho tudo exposto. E é isto que faz para mim. É a satisfação que eu tenho. E quando chegar ali a olhar para alguns diplomas: Águias de Santa Maria, São Pedro, Banda da Covilhã, Sporting da Covilhã, 3, 4, dador de sangue, 2. 46 dádivas de sangue. 46! Não é brincadeira nenhuma. Sinto-me feliz. Só preciso é saúde, só preciso é... Apanhei esta malandra desta doença e também peguei à minha esposa. A não é por acaso que tive sorte. Tive sorte porque eu apercebi-me de que estava mesmo doente e disse à minha esposa, eram 11, 11 e meia da manhã: eu não me sinto bem, leva-me para casa, vamos comer e vais me pôr hospital. Tenho uma grande mulher, amiga grande.
P: Imagina a sua vida sem as coletividades, ou seja, as coletividades modelaram a sua vida, a sua vida fazia sentido sem as coletividades?
António Monteiro: A minha vida foi sempre assim, eu vivi sempre a minha vida com as coletividades. Nunca deixei de ir às coletividades. Quando era cobrador do Sporting, eu corria as coletividades todas, eu ia à beira dos sócios. E então, o convívio em si, que se apanha a ligação com as pessoas, com os doutores, com os advogados, com os mais pequenos. E aí é que eu vou aprendendo, aí é que eu aprendi, aí é que me fez ser homem, foi lidar com as pessoas, lidar com os meninos. Sinto-me radiante, sinto-me radiante da maneira como isto, como esta situação está, e vejo o que isto é e como era a antigamente. Hoje em dia temos que ter muito cuidado, estamos a andar por um caminho muito difícil. E então todo o cuidado é pouco.
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1 de junho de 2021
P: O senhor nasceu aqui na Covilhã?
António Moreira: Nasci, nasci, a 4 quilómetros da Covilhã, hoje Canhoso. Mas com a idade de 5 anos vim viver para o centro da cidade, que é mesmo atrás da Câmara Municipal da Covilhã. Ainda hoje tenho a casa onde vivi toda a vida, que é a Taberna do Laranjinha, não sei se conhece, não conhece? Mas pronto, foi aí que foi passada toda a minha juventude, precisamente no centro da cidade, que é mesmo a 50 metros da Câmara Municipal da Covilhã.
P: Viveu sempre aqui na Covilhã?.
António Moreira: Vivi sempre toda a vida aqui. Bem, depois em África como militar e depois, como militar, fui para a Alemanha. Vim de África, fui para Alemanha. Estive seis anos na Alemanha. E depois vim, precisamente continuar o trabalho que tinham tido os meus pais.
P: Qual é que é o trabalho dos seus pais?
António Moreira: O meu pai tinha uma agência funerária, que ainda hoje tenho.
P: E foi sempre essa a sua profissão ou teve outra?
António Moreira: Infelizmente, quando eu tinha 10 anos, o meu pai teve uma doença grave e esteve internado quatro anos. E, então, obrigou-o a vender o negócio, o meu pai, que foi para... E eu a partir daí acabei a minha primária com 10 anos e meio, e o meu pai estava internado num sanatório e a minha mãe, coitadita, é que tinha que trabalhar para todos nós, não é? Não chegava e eu tive que ir a trabalhar. E com 10 anos e meio já estava a trabalhar numa fábrica de lanifícios.
P: Qual é que era o seu ofício?
António Moreira: Era, na altura, indústria de lanifícios, tecelão. Primeiro comecei como aprendiz, mas depois cheguei a tecelão profissional, tenho a carteira de tecelão profissional. Por volta dos 15 anos. E depois fui para África, de África vim, fui para a Alemanha, continuei no mesmo ramo, na fiação na Alemanha, e depois em 1977, vim comprar um negócio que tinha sido do meu pai e tinha vendido a outras pessoas. Fez um circuito - pelo menos mais dois donos - e veio. Ainda hoje tenho muitas peças que eram do meu pai, de 1950. Tenho, nomeadamente, uma carreta que antigamente era uma carreta bonita, cheia de panos. Tenho ainda… eu tenho um centro onde, digamos assim, um museu onde tenho todas essas essas peças, que estão à vista de toda a gente.
P: O seu pai tinha então essa profissão e a sua mãe, qual era a sua profissão?
António Moreira: A minha mãe também trabalhava na indústria de lanifícios. Tinha a mesma profissão do meu pai, na altura. Não, minto, o meu pai tinha a agência funerária. Após o acontecimento do meu pai, tive que ir eu trabalhar e a minha mãe.
P: Qual era o ofício dela?
António Moreira: A minha mãe era exbicadeira, quer dizer, era a tirar… As fazendas tinham pequenos defeitos e ela tirava umas bicas. Exbicadeiras, penso que era assim. Eu não, eu comecei por ser aprendiz, mas depois cheguei a tecelão profissional, tenho a carteira profissional, ainda hoje pertenço aos lanifícios, apesar de já terem passado muitos anos.
P: Depois casou-se, a sua mulher também trabalhou na indústria dos lanifícios?
António Moreira: Também trabalhava na indústria de lanifícios, conhecemo-nos, na altura, com 18 anos. Depois eu vim a casar até antes de ir para o Ultramar. Tive um filho, que ainda hoje temos, graças a Deus. Nasceu, curiosamente… Eu ando a tentar fazer um livro da minha vida, porque tem várias, várias passagens, esta foi uma delas. Veja o que era no tempo do Salazar: por 14 dias não deixaram sequer ver nascer o meu filho. Cheguei a Luanda e 14 dias depois de chegar a Luanda, nasceu o meu filho. Eles não queriam saber disso para nada. Eu a dizer que é que a esposa que estava grávida e que estava à espera do filho que era mais um mês e não… tive que partir, porque felizmente a minha a minha profissão, a minha atividade no Exército também era uma atividade de muita responsabilidade, eu pertencia aos serviços secretos.
Lá, digamos assim, no meu gabinete, onde eu trabalhava, nem o comandante podia lá entrar, tinha de pedir licença, porque...Todas as mensagens que chegavam ao quartel, todas as notícias antes do comandante, sabia eu, e depois eu é que ia com o protocolo a dar para ele assinar, portanto, operador cripto naquela altura era uma especialidade rara, digamos assim, mas que também ainda hoje não sei como é que eu fui, vindo eu... comigo trabalhavam lá muitos já com outro…, com outro cursos académicos, não é? Nomeadamente com a quarta classe, com o quinto ano, com o quarto ano e eu com a quarta classe fui...tirei um curso de escriturário primeiro, que nunca tinha visto uma máquina de escrever, andei no RAL 4 em Leiria, onde tirei a especialidade de escriturário. Vi-me aflito para passar, tinha de andar à procura das letras, mas depois consegui passar aqui e fui para os serviços secretos, que dava-me essa componente de ter, onde quer que andei, tive sempre um gabinete para mim ou outro colega como eu para trabalharmos, nunca podia lá haver mais ninguém.
P: Quando esteve a trabalhar na Alemanha também esteve a trabalhar na indústria têxtil, e quando voltou, voltou a trabalhar na indústria têxtil?
António Moreira: Não, quando vim, vim precisamente já com o objetivo de comprar, porque eu estava a trabalhar lá e o meu pai, coitado, é que me disse: porque é que não me vinha embora, que entretanto o meu filho fez sete anos. Iria matriculá-lo na escola alemã e transmiti isso aos meus pais, na altura: olha vou, vou, vou ficar definitivamente na Alemanha porque o garoto vai começar a escola e depois não é ao meio... Um dia sai daqui, não é? Porque estava numa empresa que tinha 10 mil operários, era uma empresa Internacional. E, nessa altura, o meu pai: porque é que tu não vens que está ali uma funerária que era nossa, que está fechada e que eras capaz de governar.
É, eu tive uma vida... Eu vim, só que, infelizmente, depois passado três anos morreu, depois de eu ter comprado a funerária, portanto, aquele braço direito que eu pensava nele, infelizmente depois ele morreu, mas eu dei a volta por cima e ainda hoje me orgulho de ser, talvez, das maiores funerários do país, nomeadamente a nível Internacional.
Fui pioneiro nos serviços a ir ao estrangeiro buscar portugueses. Ainda hoje vamos para toda a Europa. Tenho uma empresa que anda sempre no estrangeiro, tem o melhor centro funerário do país. Tenho ali, no Tortosendo, uma área de 400 m, que nem em Lisboa há, onde todas as pessoas, e eu conheço bem o país do Minho ao Algarve. Portanto, consegui objetivos muito, muito bons, na minha vida profissional e familiar, claro. Hoje tenho dois filhos que são os meus braços direitos e a minha companheira, há 53 anos que estamos casados, e graças a Deus, tudo tem corrido bem nesse aspeto.
P: Só para terminar esta parte mais biográfica, tem alguma religião?
António Moreira: Sim, sou católico, não um católico praticante, não há tempo para essas coisas, digamos assim, mas sou católico de coração, de batizado e, assim como a minha família toda, toda ela é realmente católica.
P: E tem alguma filiação partidária?
António Moreira: Nunca tive. Sou um amante das liberdades, mas confesso que não me revejo em partido nenhum político. Gosto muito, aprecio muito um bom, um bom político. Dou valor, seja ele da esquerda ou da direita, não, questiono a política deles, mas admiro sempre um bom líder, uma pessoa que faça andar este país para a frente. Foi sempre o meu sentido, os objetivos que eu tive, foi sempre e por isso tenho a medalha de Mérito Municipal e outras medalhas. Tenho precisamente porque fui sempre uma pessoa inovadora que, sempre com vontade de impulsionar as coisas para a frente. Não dou valor a um político medíocre. Infelizmente, temos muitos, mas pronto. Eu gosto muito de analisá-los e depois, quando é a altura da eleição, tanto voto num como voto no outro, voto na pessoa que eu acho com mais competência para ajudar o nosso país.
P: Mas no que diz respeito à filiação associativa, já é outra coisa...
António Moreira: Isso não, isso não. Isso faz parte da minha, digamos assim, da minha criação, da minha educação, daquilo que sou hoje. É uma pena que, infelizmente, o associativismo hoje, como eu disse, esteja a ser maltratado, porque na minha época, há 50, 60 anos atrás, era a formação dos jovens, era no associativismo. Porque todos os jovens trabalhávamos na fábrica, outros noutros sítios, não tínhamos tempo para mais nada, a não ser um bocadinho para o desporto, para a cultura, para enfim, para tudo isso. E naquela altura os jovens praticavam muito, muito desporto. Tínhamos várias... aqui a Covilhã era e ainda é hoje, felizmente, um orgulho para nós, covilhanenses, porque somos, segundo aquilo que eu tenho ouvido dizer, a segunda cidade do país, depois do Barreiro, a segunda cidade do país com mais instituições ou associações. E isso é uma riqueza tremenda numa cidade destas. Infelizmente, que eu começo a ver e tento incutir nos meus filhos, agora nos meus netos para que eles seguissem esse rumo, porque o associativismo é uma escola, aprende-se tudo lá.
P: E essa propensão para a participação associativa é de família, os seus pais já participavam?
António Moreira: Não. A minha mãe, curiosamente, a minha mãe transmitia-me… Naquela altura não havia tantos clubes, não havia quando a minha mãe se criava, mas ela já pertencia ao rancho folclórico e era com agrado que ela às vezes me cantava algumas canções que no tempo que ela era jovem, cantava nesse rancho folclórico do Canhoso, aqui pertinho da Covilhã, a 4 quilómetros. O meu pai nunca lhe ouvi dizer que, confesso, que tivesse se metido nalgum clube. Naquela altura, havia também jogos populares, ele gostava muito dos jogos populares, ainda hoje, tenho um jogo popular lá numa das minhas garagens, que é preciso um espaço, daqui até lá ao fundo, garantidamente, um ringue, que é o chamado jogo da laranjinha, que também está no Facebook, o jogo da Laranjinha. Diz que existe em Lisboa, é mentira, existe na Covilhã também. Embora com pouca gente a perceber aquilo. Mas eu sei jogar à Laranjinha e ainda lá tenho as bolas e tudo com que se jogava à Laranjinha. Na taberna do meu avô havia o jogo da Laranjinha e eu recriei ali naquela casa atrás da Câmara, que hoje é a casa com mais fama na Covilhã, é a Taverna da Laranjinha. Toda ela, se lá for, está toda ela organizada por mim. Hoje aluguei-a a outra pessoa, mas tudo o que está ali foi feito pelas minhas ideias e hoje é com orgulho que digo que as pessoas de todo mundo vêm à Covilhã, vai tudo à Laranjinha porque é uma referência na cidade.
P: Então, estava a dizer que na sua infância e na adolescência o seu associativismo foi muito importante.
António Moreira: Muito importante, tirou-me da rua, tirou-me dos vícios. Veja que nunca fumei, nunca bebi, porque não tinha tempo para isso. Eu saía da fábrica às 6:00 horas, imediatamente chegava, primeiro com 10, 12 anitos, ia para o Águias de Santa Maria, onde aprendi a jogar ténis de mesa, onde depois comecei a jogar futebol e futebol de 11, participei em vários torneios aqui na Covilhã, altura que eram chamados torneios da INATEL, eram equipas que havia aqui na Covilhã, precisamente dos trabalhadores. Na Covilhã havia pelo menos umas sete ou oito equipes e disputávamos sempre um campeonato renhido, digamos assim, de todos os trabalhadores. Não havia ali profissionais. E, então, comecei ali. Depois, mais tarde, gostei muito do basquete, como não se praticava basquete fui para o Clube Desportivo da Covilhã, cheguei a ser federado em basquete, participei em campeonatos da terceira divisão em basquete, joguei andebol, joguei vólei… Vólei pouco... Pronto, quer dizer, eu não tinha tempo, até começar a namorar, o meu tempo livre era sempre a praticar desporto nas coletividades, onde líamos o jornal, onde começámos a ver televisão. A primeira vez que eu vi televisão foi no Águias de Santa Maria, porque ninguém… não havia televisão. Veja que isso era uma riqueza, até que depois fui, pronto, fui para o para o Ultramar, fui para a tropa, e aí esmoreci um bocadinho a nível de participação... Depois, quando vim, como estive pouco tempo em Portugal e fui para a Alemanha... Na Alemanha também não tive qualquer contato com qualquer modalidade desportiva lá.
P: E nesse período, ainda antes de ir para o Ultramar, ou seja, antes do 25 de Abril, que memória guarda desse período? Por exemplo, lembra-se de alguma experiência de repressão sobre o associativismo por parte do regime, de limitações à liberdade associativa, por exemplo?
António Moreira: Naquela altura, sabe, nós éramos praticantes, jovens. A gente via que os diretores tinham receios de vários acontecimentos. Nós, mais jovens, preocupávamo-nos era em praticar desporto. Infelizmente, havia, houve aqui em Santa Maria… lembro-me de alguns elementos que chegaram a ser presos pela PIDE. Acho que era mais a nível do trabalho, do emprego, do que propriamente do associativismo. O associativismo dava-nos liberdade para ver para onde é que a gente ia. Eu penso que no tempo do outro regime que eles davam-nos liberdade, davam-nos cordel, para ver para onde é que nós íamos, e depois se as pessoas estavam a entrar por outros campos é que provavelmente agiriam. Eu nunca tive participação em nada disso, nem também nunca fui contra ninguém, como é óbvio. Hoje fala-se no Salazar, o Salazar teve coisas muito boas e teve muito más, mas há uma delas que eu digo que era muito boa, que era o sentido patriótico, eu acho que ele era um bom português, quer dizer, gostava de Portugal grande. Não era fácil ele conseguir pensar que ficávamos sem Angola ou sem Moçambique. E isso, é um bocado do meu coração, sou português de gema, gostava de ver Portugal grande. A nível do que eu fazia, das coisas, enfim, daquilo que a repressão fazia sobre pessoas que não tinham liberdades e que estavam bem ou estar mal, obviamente não estou de acordo com isso. Eu acho que as pessoas têm a obrigação e o direito e o dever dizer quando estamos bem, quando estamos mal, mas gostava de Portugal grande, eu gostava de um país grande.
P: Costuma-se dizer que eram tempos difíceis, mas que havia muita solidariedade, muita entre ajuda. Isso vivia-se nas coletividades?
António Moreira: Sim, sim, sim, sim, isso sim, era onde havia irmandade… Eu, por exemplo, como não tinha irmãos, os meus irmãos estavam nos meus clubes. Aí a gente… todos eles eram meus irmãos. A gente jogava à bola, fazia isto, fazia aquilo. Éramos todos irmãos. É essa solidariedade que hoje falta nos jovens. Depois também não éramos ricos, pertencíamos todos a uma camada mais ou menos média, média baixa, e as pessoas necessitavam de ter amigos. Nós brincamos uns com os outros sem complexo de superioridade ou de inferioridade. Hoje já, infelizmente, é uma coisa grave. Hoje há destrinças de, enfim… afastou-se muito as pessoas umas das outras, porque é tudo rico, é um país rico, é pobre, mas, mas é tudo rico.
P: E na Alemanha teve alguma experiência associativa?
António Moreira: Na Alemanha, olhe, foi no início daquilo que está a começar, que acontece aqui já no nosso país. Quando eu cheguei à Alemanha, eu fiquei estúpido, porque via que na empresa onde eu trabalhava, que era a Grandstoff, que tinha, como disse, à volta de 10 mil trabalhadores, não se via um alemão, um alemão jovem. Eu trabalhei com muitos alemães durante seis anos, mas todos mais velhos que eu. Porque eu é que era jovem, fui para lá com 24 anos e os alemães, não. Apareciam alemães, às vezes novos, e passado 15 dias iam-se embora. Que é o que está a acontecer com o nosso país. Infelizmente, temos necessidade de importar mão-de-obra jovem, porque não estamos cá hoje. Os que cá temos querem outras atividades, outras profissões mais compensadoras, provavelmente. Aquilo que está a acontecer com os chineses e indianos lá para baixo, é sinónimo daquilo que aconteceu na Alemanha quando eu lá estive.
Eu via que eles procuravam mão-de-obra. Eu trabalhei com pessoas de todo o mundo lá, desde as países… todos os povos… da Turquia, da Grécia, da Indonésia. Não trabalhavam lá franceses nem aqueles países mais… era tudo malta de países pobres à procura de trabalho e nós também. Naquela altura era a mão-de-obra barata portuguesa. Eu fui para lá ganhar, a fazer a mesma atividade. Aqui ganhava 2, lá fui ganhar 10. Era compensatório. Íamos todos à procura de melhorar as nossas vidas. Íamos fazer o que os alemães não queriam fazer.
P: E criaram associações lá, os portugueses?
António Moreira: Tenho um amigo, por acaso morreu há dias, que era o Raposo, ele era de Santarém e criou lá um clube desportivo. Tivemos lá um centro de portugueses, lá na zona onde eu estava. Tínhamos um rancho folclórico a imitar os scalabitanos. Portanto, o português enquadra-se imediatamente em todo o lado, em todo o mundo, à procura das suas raízes, como hoje. Não tem hipótese de ir para o nosso país, então faz... E nós, bem visto os portugueses, felizmente, é um povo que é considerado no mundo inteiro e em todo o lado. Quando chego, sou português, as pessoas aceitam porque somos um país educado e humilde e de brandos costumes, como se costuma dizer, mas somos um povo muito simpático para toda a gente e vê-se no nosso país. Toda a gente gosta de vir a Portugal, porque na realidade o português é maravilhoso.
P: E essas associações que eram criadas entre os imigrantes ajudavam a integrar? A não terem tantas saudades de Portugal?
António Moreira: Naquela altura era mais difícil, penso eu. Nós, na Alemanha, como não tínhamos uma colónia muito grande de portugueses, foi sempre mais difícil.
P: Estava a falar da experiência associativa na Alemanha...
António Moreira: Pois, como eu disse, na Alemanha nunca houve uma colónia muito grande de portugueses. E as cidades onde viviam os alemães eram cidades com pouca gente portuguesa. Era difícil fazer um clube, porque os alemães não iam lá, como é óbvio. Mas, por exemplo, onde eu vivia, em Heinsberg, aí conseguiu-se fazer o centro de português. E com pouca gente, como é normal. Mas com vários objetivos, nomeadamente o rancho folclórico. E ainda se teve lá uma equipa de futebol. Mas como não eram muitos, eu depois também me vim embora, confesso que abandonei, mas sei que acima de tudo… Fez um restaurante, esse meu amigo, que era o Raposo, fez um restaurante, que começou a ter a gente alemã e ele triplicou, quadruplicou, digamos assim, por várias cidades, depois da Alemanha. Atingiu uma bitola enorme de sucesso, esse rapaz, mas tudo começou com o nosso clube, precisamente do grupo de Oberbruch.
P: Tinha-me dito que quando voltou da Alemanha, em 1977, com a sua esposa, que foram logo para o grupo de Educação Mello.
António Moreira: Pois fomos, digamos assim, logo convidados para voltar às nossas origens, não é? Porque foi ali, praticamente, que começámos, no Grupo de Educação Campos Melo, um grupo que simplesmente foi quase a primeira escola na Covilhã, escola primária. Porque foi um grupo feito numa altura difícil lá do, portanto, do antigamente, em que foi doado um terreno por um senhor que era o Melo e Castro, a Fábrica Melo e Castro. Mas depois ali criou-se o primeiro centro de desenvolvimento, na altura, de certeza absoluta, das crianças que viviam naquele bairro e era um bairro de tipo operário e ali formou-se… até tínhamos uma escola primária lá em duas salas cedidas pelo Grupo. A partir daí, claro, que várias modalidades ali surgiram e vários êxitos se conseguiu, desde o teatro até outras modalidades.
Tivemos um grupo de teatro, naquela altura, em 1960, um teatro muito famoso na Covilhã, era lá nesse Grupo Educação e Recreio. E pronto, esteve sempre, ainda hoje é das coletividades com condições acima da média. Tudo feito pelos trabalhadores, pelos operários. Claro que quando regressei, e como fui criado ali também com a minha esposa, naquela zona, fomos convidados logo imediatamente, porque era sócio há muitos anos do clube, e comecei. E a partir daí, a ser por duas vezes presidente da direção do Grupo de Educação Campos Melo, até que depois, então, desloquei-me mais para baixo, para a cidade, para o trabalho, e vim a viver então aqui para a zona da Câmara e aí comecei a frequentar a banda da Covilhã, que teve outros objetivos, já agora na música.
Curiosamente, são coisas que eu nunca tive qualidades, que às vezes digo aqui para os músicos: sou presidente da Assembleia Geral, neste momento, já há alguns 14 anos ou 15 anos, aqui da banda, mas nos discursos costumo dizer aos músicos que eles são artistas. E é engraçado, porque eu tenho muita pena que isto é um dom, o ser músico, como outra modalidade, como o Ronaldo tem aquele dom para o futebol, mas a música é ter-se um dom, que é que as pessoas atingem objetivos maravilhosos. Eu, ainda há bocadinho, dizia ao professor aqui da banda… foi esta semana que fui além a Viseu e numa daquelas ruas lá da parte histórica de Viseu às tantas ouvi a música: eh pá, música bonita aqui está, a cidade está alegre, digamos assim. E fui transitando até que cheguei à rua onde estava um senhor com um acordeão, uma aparelhagenzita a fazer bateria, mas o homem com acordeão dava ali o sainete naquela cidade em que toda a gente passava para um bocadinho ouvir, deixava a moeda. Ele não era ceguinho, não era, não era nem ninguém inválido, mas pronto. Eu penso que aquele artista, porque ele era um artista em vez de estar em casa parado, a dormir ou se calhar sem saber o que havia de fazer, estava ali, dava alegria à cidade, ao povo e ele até as pessoas compensavam com algum dinheiro, com certeza, que ao fim do dia recolheria e servia muito bem.
Isto aqui, a nível da banda da Covilhã, eu fui sem querer metido na primeira direção, como presidente da banda da Covilhã, em 1991. Como eu disse, infelizmente depois ardeu, mas nós não deixámos morrer esta Casa. E hoje tenho muito orgulho do que temos. Porque somos dos melhores do país. Não é uma banda, é uma orquestra, nós hoje vamos ali…. Há ali 100 jovens todos a tocar vários instrumentos. Isto é próprio da sorte que tivemos aqui, com o Professor [...], que sendo alentejano, mas que apanhou aqui a Covilhã… Gosto, e ele é um dedicado a isto, deixa tudo, como vê e está aqui sempre, enfim. Casou, como eu disse, como às vezes lhe digo, ele casou, um excelente professor universitário de Medicina, ele casou com a banda da Covilhã e ele adora isto, pronto.
O que é certo é que a Covilhã tem aqui hoje uma riqueza extraordinária. Crianças de todas as idades aqui estão a tocar, a aprender, quase sem pagarem nada ou, se pagam, é uma ninharia e estão, a sair constantemente daqui artistas, artistas. Porque também tenho outra coisa engraçada, que é verdade. Tenho um amigo que é enfermeiro e dizia-me ele há tempos: o Joãozito, que eu vi nascer, senhor Moreira eu, às vezes, mais outro amigo que temos, eu a tocar viola, ele a tocar concertina, já percorremos quase o mundo inteiro, desde a Nova Zelândia, à Rússia, Austrália, todos esses países... chegamos lá, a gente arranja o dinheiro para a viagem, chegamos lá, paramos lá numa praça, ele a de um lado e eu do outro, com a bandeira portuguesa, ao fim do dia, temos lá sempre dinheiro garantidamente para as despesas que tivemos e até acabamos sempre por nos pagar a viagem. Isto só para dizer que, como eu às vezes digo aqui aos garotos, vocês estão aqui a aprender uma coisa que nunca sabem se amanhã são artistas, são pessoas que ganham a vida estrondosamente em qualquer parte do mundo. E então, eu digo sempre: vocês venham, porque isto é uma arte, tomara eu, eu dava dinheiro para saber tocar um instrumento. Não tenho nenhum, por muito que tivesse tentado, não me saem notas.
P: Não tendo essa vocação, o que é que o motiva a estar tão envolvido na coletividade?
António Moreira: Isto parece incrível, mas eu caí… Nas outras coletividades não, porque eu gosto muito de desporto, eu adoro desporto, futebol, mas acima de tudo, neste momento gosto mais é de ciclismo, o ciclismo... Mas a música foi sem querer, como era ali à porta fui arrastado por um grupo de amigos, que aquilo estava para fechar, e ganhei também o desejo profundo, epá eu adorava, porque na Alemanha, onde eu estive, uma das riquezas que havia lá é que em qualquer aldeia havia uma banda juvenil. Não se viam os da minha idade, não se viam pessoas de idade nas bandas a tocar na rua, era tudo malta... Eu às vezes ia a Colónia, a Dusseldorf, era bandas que havia ali, tudo malta com 20, 25, no máximo 30 anos. Mas, começando ali com sete ou oito anos, tem uma riqueza extraordinária nas bandas lá na Alemanha. E aquilo, é pá... a Covilhã, era engraçado um dia ter uma banda juvenil, sair para a rua com as criancitas a tocar pífaro.
E assim, eu, quando me meti aquela, quando fui para lá convidado, eu disse aos meus companheiros de direção: meus amigos vamos meter mãos à obra, vamos ver se conseguimos fazer uma banda juvenil na Covilhã. É um sonho, amanhã daremos exemplos às outras cidades no país, apresentando na rua ou em qualquer lado uma banda de crianças, porque normalmente é uma tendência para as pessoas de idade é que estão nestas bandas.
Mas donde eu vim, eu via jovens e eu não consegui, na altura, na direção, não consegui fazer isso, porque estive apenas dois ou três anos. Mas depois, a continuidade, como eu disse, aqui do professor, e imediatamente foi-me buscar a mim. Percebi, sabia o amor e tenho sido, digamos assim, tenho ajudado muito mesmo a banda da Covilhã. Fui eu que ofereci as fardas e várias coisas que tenho oferecido, instrumentos e tal, para a banda. E ele sabe que quando a banda, aliás, aqui hoje este edifício, onde nós estamos, só está aqui e a banda está aqui porque deve-se a mim. Ainda há dias o disse ao presidente da Câmara, há uns nove anos ou dez, quando o outro presidente saiu. Nós tomámos aqui posse e a primeira reunião que tivemos foi ir à Câmara Municipal da Covilhã.
E o presidente disse: Moreira, nós… A Câmara não tinha um tostão para nos dar para as obras, porque isto tinha começado em obras, tinha começado havia 15 dias, começaram a destelhar. Isto é curioso, porque isto é um edifício do Estado. Está cedido à Câmara Municipal da Covilhã, porque foi aqui a escola, a biblioteca, etc. muitos anos, por sua vez, a biblioteca, a Câmara Municipal tem um protocolo com a banda, com a cedência de 10 em 10 anos. Este espaço, portanto, nessa altura, eu disse assim: oh meus amigos, então, mas a Câmara Municipal é que tem de fazer as obras que aquilo é um edifício… E o senhor Presidente disse-me assim para mim, e para a professora Irene, e o professor Cavaco, fomos lá: Moreira, nós bem queiramos vos ajudar, nós... A outra Câmara deixou-nos completamente sem um tostão, não temos um tostão na Câmara para vos dar. E também não há na Câmara neste momento ninguém, construtores, que queiram fazer aquela obra, que estava orçamentada em cerca de 120 mil euros, sem a Câmara ter dinheiro. Então, o Presidente da Câmara disse-me: olhe, você é um homem que se relaciona bem na Covilhã com muita gente, que tem feito várias coisas, por que é que você não fala com o empreiteiro e assume a responsabilidade com eles? E daqui a um ano, a Câmara Municipal da Covilhã compromete-se, de hoje a um ano, passar a dar-vos os 3000 euros para ir amortecendo as obras. Agora você tem é que contactar um empreiteiro que queira fazer isso nesse sentido. E assim aconteceu.
Fui ter com um empreiteiro que tinha feito as obras na Taberna do Laranjinha, que há mais de 30 anos que trabalha para mim, e disse: oh Zé, epá, expus-lhe o problema e ele disse, está bem pronto Moreira, eu vou para lá, se precisar de dinheiro, a qualquer altura, eu recorro a você. Pronto, está bem E assim esta casa está aqui, feita e com muito orgulho, aqui a banda a trabalhar é porque eu fiz esta proposta à Câmara e conseguiu-se tudo. Portanto, hoje eu sinto-me extremamente orgulhoso do meu passado em todas as vertentes, mas essencialmente aqui na banda, onde eu, com a minha persistência e as minhas ideias, consegui que hoje tivéssemos uma das melhores bandas do país, mas acima de tudo ver aqui muita gente jovem, com 9, 10 anitos, já andam aí pela rua a tocar e eu fico todo vaidoso, todo baboso, como se costuma dizer, nesse êxito na minha vida também.
P: Disse-me que era sócio de 12 coletividades, quer dizer que é uma pessoa que valoriza muito associativismo. Qual é que acha que é o papel que o associativismo tem na sociedade portuguesa?
António Moreira: Eu, como disse, aprendi a ser homem no associativismo e 80% daquilo que eu sou devo ao associativismo. E estou convencido de que é uma lástima, uma perda irreparável, que estamos a ter, o país não apoiar… Os nossos governos deveriam apoiar o associativismo e as coisas não podem… Os mecenas, os voluntários, hoje não é assim tão fácil, mas eu estou convencido que, se todas estas associações que há nas terras fossem apoiadas, pelo menos pagar-se um diretor ou dois diretores o ordenado para que eles obrigassem - senão perderiam o seu trabalho - aquilo a mexer. Eu acho que não estaríamos como estamos hoje, porque as pessoas preocupavam-se a ir, a incentivar para que os jovens venham, dando-lhes alguma coisa em troca. Como vê, a banda da Covilhã, em pouco tempo… Se este professor [...] neste momento deixasse de vir à banda da Covilhã, eu estou convencido que daqui a dois anos a banda estava outra vez moribunda. Porque ele é um amante, ele gosta disto, não ganha dinheiro aqui, porque ele casou com a banda, como eu digo, mas noutras coletividades, lá em cima, no Campos Melo, lá em baixo, como vai ver, no Grupo Educação Instrução do Rodrigo, é a mesma coisa, uma dificuldade tremenda em arranjar alguém que queira ir para a direção, porque muitas vezes não é falta de jovens que há, há é a falta de dirigentes, os dirigentes de hoje, que durante muitos anos trabalharam gratuitamente, hoje já não estão para isso, têm as suas vidas profissionais e, acima de tudo, familiares, a comodidade, a televisão em casa, os sofás… as coisas são diferentes. Mas se a pessoa tiver que obrigatoriamente ir, porque gosta, mas também porque tira dali alguns dividendos, obviamente que de certeza que as coletividades não irão morrer como estão a morrer. O Estado tem que deitar mão a isto, porque é uma escola que se perde e é irreparável. Porque, continuamos a dizer, hoje os nossos jovens estão cheios de vícios, de coisas más. Os computadores arrastam as crianças horas e dias, quase as 24 horas por dia ali, perante os computadores. E não se aprende nada lá. As novas tecnologias tudo bem, mas o desporto faz muita falta.
O ser humano precisa de praticar várias coisas, desde a música, a cultura, o teatro. Porque obriga a nossa mente a não estar só… Pá, isto assim da nossa vida profissional ou familiar, são aqueles momentos de lazer em que a gente ia sempre à água. Eu gosto imenso, às vezes as pessoas agarram numa bicicleta ou numa canoagem e tal, e vão naqueles...Mas temos que ter muito mais, muito mais, porque estamos a perder, estamos a perder precisamente as escolas. As escolas eram estes clubes, estes clubes, embora muitas vezes sem técnicos de primeira, mas tinham as tais pessoas que gostavam... Eu lembro-me quando comecei a praticar ténis de mesa, não sabia pegar numa raquete, mas havia já mais velhos: olha, é assim, é assim. E eu aprendi. Claro que podia não ser um atleta de primeira, nem estava dedicado a ser um atleta de primeira, mas aprendi. Passava uma hora ou duas horas e meia por dia, se calhar. Podia praticar ténis de mesa ou jogar basquetebol. Saía às 6:00 do trabalho, chegava a casa, comia qualquer coisa, ia para o ringue jogar basquetebol.
Naquele tempo, eu andava saudável. Nunca fumei na minha vida, nunca fumei, nunca bebi. Como eu disse, porque não tinha tempo para essas desgraças. Naquela altura, hoje há outras infelizmente, a droga que tanto nos atemoriza. Naquele tempo, a droga era o tabaco, a bebida eram as drogas daquela altura, e eu, graças a Deus, e transmiti isto, porque tenho dois filhos, um, com 52 anos, outra com 42, que não fumam nem bebem, nem fazem noitadas. E tenho agora quatro netos. Estou a ver se os meto na mesma escola.
P: Diga-me uma coisa, essa transmissão de valores do associativismo, da participação, que passam de pais para filhos e de avós para netos. Essa transmissão também existe dentro das coletividades, ou seja, os sócios mais velhos também transmitem esses valores aos mais novos?
António Moreira: Era assim que acontecia, era assim que acontecia… Hoje, como lhe digo, é uma tristeza. Eu se for ao Campos Melo, que antigamente eu chegava lá às oito da noite, a malta ia beber um cafezinho, mas estávamos ali a jogar às cartas ou a jogar ao dominó ou a jogar a qualquer jogo, mas entretidos. Havia lá sempre, de certeza absoluta, 50, 70 pessoas, todos os dias. Hoje chegamos a qualquer coletividade e há meia dúzia de pessoas. À exceção, não sei se lá em baixo o Oriental, que está ali próximo da universidade, se é frequentado, não sei, confesso que não tenho estado dentro... Mas, hoje, veja a banda da Covilhã. Antigamente, à noite, tinha sempre uma série de pessoas que vinham, que se entretinham a beber um cafezinho, jogávamos uma suecada, enfim. Hoje não vem ninguém. Os de idade acomodam-se ou vão desaparecendo, os jovens não estão motivados para vir para o associativismo, para isto que é tão rico. É uma pena, uma lástima, que esteja a acontecer. Eu confesso: muitas vezes gostaria… se tivesse uns 20 anos batia-me nas câmaras ou até no Estado para que tivéssemos condições para conseguir avançar com as modalidades. Aqui, a Câmara Municipal da Covilhã, fica registado, tem um senhor que é o engenheiro... Ele está a seguir mais ou menos este meu raciocínio. Infelizmente, a pandemia veio tirar estas realidades ainda mais, mas é uma pena, porque ele estava a reunir outra vez as tropas na Covilhã, do associativismo, dando condições, oferecendo condições. Ainda agora ali... Eu também faço parte da Confraria da Covilhã da Cherovia e Panela no forno, portanto, sou vice-presidente, e ainda agora me foi dito que a Câmara atribuiu 3000 euros de compensação à Confraria para que a gente não deixe morrer a Confraria. Isto tem sido… Esta Câmara Municipal, e especialmente este vereador, que está no pelouro da Cultura, que tem sido uma pessoa dinâmica, eu tive algumas conversas com ele nesse sentido, e ele disse: Manuel tem razão pá. Vamos ver…
Mas estes dois anos de pandemia trouxeram, porque estou convencido, porque ele exigia… Eu disse: você não dê dinheiro às coletividades, dê dinheiro a quem pratica, a quem trabalha. Quando, se a pessoa lá tem uma equipa de basquetebol e diz que o basquetebol perdeu isto, deu prejuízo, não sei quê, eu acho bem que a Câmara compense, se tem uma equipe de voleibol é a mesma. Assim sucessivamente. Agora dar dinheiro para as coletividades, algumas aí que infelizmente só tem um bar aberto, que é uma taverna…
Eu acho que não, eu aí nisso não alinho. E então, o Oliveira está a fazer um bom trabalho.
Distribuiu o dinheiro, pela primeira vez, por todas as coletividades, conforme o exercício que estão a ter. Não é como outras câmaras, que davam dinheiro que, portanto, a Câmara daqui sempre deu dinheiro a algumas coletividades. Mas nem sempre com a preocupação de saber se eram aqueles que trabalhavam mais. Muitas vezes era por compadrio, por amizades, para ganhar votos. Este não, não, é um engenheiro, é o engenheiro Oliveira, mas tem sido uma pessoa preocupada com a questão do associativismo e é um presidente dali do Oriental, que também é muito eficaz nesta situação. Ele gosta muito. Tem sido uma pessoa dinâmica também na Cultura. E pronto, ainda há valores, não há já muitos, como no meu tempo em que qualquer pessoa gostava de ser presidente para fazer andar o clube. Hoje dá-se dinheiro é para não se ser presidente, para não chatearem a cabeça, está a ver como é que é?
P: Então, qual é que acha que vai ser o futuro deste movimento?
António Moreira: Eu, a minha perspetiva para os meus netos… As coisas, como eu digo, são cíclicas. Um dia os jovens vão verificar que andam errados com o modo de vida como agora têm. Eu fico muito triste quando a minha mãe, quando eu era jovem e tinha um buraquito numa calça e a minha mãe ia-me logo a cozer o buraquito, porque era uma vergonha andar com um buraquinho na calça. Hoje eu não posso aceitar que os jovens andem aí todos rotos como sejam uns farrapilhas, sem dignidade nenhuma. Eu apreciei muito, apreciava muito do povo inglês, pela maneira como se vestia. E hoje, portanto, os jovens, eu acho que anda sempre à procura do que é pior. Felizmente, como lhe disse, tenho dois filhos e tenho muito orgulho neles, que são exemplo também na cidade, mas muitos pais, que eu sei que têm o mesmo valor que eu e que a minha mulher, e não conseguem fazer o mesmo dos filhos e eu às vezes é com tristeza que vejo-os aí todos sujos, rotos. Pronto, porque aquilo que aprendem hoje é só desgraças. É só desgraças...
Não sei, o associativismo, faço votos para que um dia volte a ser aquilo que foi na minha Juventude, porque eu penso que aí estaria o caminho certo do mundo, do mundo, não é só do nosso país, porque a convivência, a irmandade… Ajudávamo-nos nos momentos de dificuldades, porque todos tínhamos dificuldades, e era muito bom porque havia amor, havia carinho entre as pessoas, havia dedicação, havia paz, havia muitas coisas boas. Estamos a atravessar uma fase difícil no mundo, da minha perspetiva.
E às vezes digo assim para os meus netos: tenho muita pena e eu não consigo alterar isto, mas vou deixar-vos um mundo terrível.
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4 de junho de 2021
José Simões: Eu nasci na freguesia chamada de São Pedro, que depois foi extinta e integrada na União de Freguesias da Covilhã e Canhoso, que fica ali próximo da estação dos caminhos-de-ferro. Nasci em 1940 e vim com sete anos para o Refúgio. Aqui fiz a escolaridade básica, era o chamado primário, e entrei no mundo do trabalho com 11 anos. Fui trabalhar para uma mercearia da cidade. Entretanto, fui progredindo na carreira, mudei de entidade patronal para outra com melhores capacidade, uma loja maior. Depois fui para a tropa fazer o serviço militar e aos 20 anos fui incorporado no serviço militar, ainda não tinha começado a guerra colonial. Eu fui para a tropa em 22 de Janeiro de 1961 e a guerra em Angola começou no dia 15 de Março desse ano. Então eu sou mobilizado para Angola, fui dos primeiros militares a ir para a frente de batalha. Eu não tive lá nenhum tipo de problema, felizmente, vim de lá passado 27 meses, em 1963, com boa saúde, boa disposição, tal como tinha ido, sem traumas de qualquer espécie, nem físicos nem mentais.
E, na altura, em 1961, eu saí daqui do Refúgio, que já vivia aqui desde os sete anos, aqui bem próximo, numa quinta, porque os meus pais eram agricultores, eu nasci no meio da ruralidade. E então eu fui daqui, e estava já a notar-se o embrião para a criação de uma coletividade aqui na zona, que é o Grupo Recreativo Refugiense, que está ali em frente. Eu fui em julho, e em julho/agosto… Eu tenho tudo documentado, eu tenho em meu poder todas as cartas que escrevi, à minha namorada e aos meus pais, e todas aquelas que recebi deles. Tenho tudo em micas, por ordem da data, tenho tudo arquivado. Então eu recebo uma carta da que é hoje minha mulher, hoje e há muitos anos, mas na altura minha namorada, a dizer: olha, já temos um grupo no Refúgio, tu já és sócio, que eu pus-te como sócio. Então eu sou sócio fundador sem nunca ter feito nada por isso, porque entretanto eu estava a fazer o serviço militar.
P: Deixa-me só perguntar uma coisa, depois voltamos ao Refúgio. Ontem falei com um senhor que vinha também de uma zona rural e que me disse que achava que havia certas práticas de entre ajuda entre as pessoas do campo, que podem ter sido importantes para a origem do associativismo. Faziam a desfolhada em conjunto, ajudavam-se nas vinhas uns dos outros… Isso também acontecia aqui no Refúgio?
José Simões: Acontecia, chamava-se ir merecer. Ora eu vou merecer ali o António, merecer era a troca, ele já tinha ou estava para vir fazer um trabalho à minha propriedade e eu ia fazer à dele, era a troca de funções. Havia trabalhos, realmente, como a senhora referiu, a desfolhada, a malha do trigo, do centeio, era uma zona muito rica em trigo e absorvia de facto muita mão-de-obra. Assim como a monda, a monda do trigo, era executado por mulheres, depois havia a ceifa, também era muito desse género, também a merecer.
P: Como é que se organizavam?
José Simões: Aquilo era já tradição, já sabiam. O vizinho do lado já sabia que ia ser convidado, porque também precisava do trabalho do outro. Havia essa troca de trabalhos, que chamava-se, aqui da zona, merecer. Eu vou merecer o Manel, que o Manel já cá veio, vou merecer o Manel, porque ele há de vir aqui. Colaboravam nas malhas, nas ceifas, na monda, tirar as ervas daninhas do milho. O trigo era sachado...
P: As mulheres também faziam isso?
José Simões: As mulheres faziam o trabalho das sachas e das mondas, era só de mulheres. Também faziam essas trocas. Os homens não se metiam nisso, assim como as mulheres não iam ceifar, nem iam cavar. Era um trabalho mais pesado, era entregue a um homem.
P: E elas organizavam-se entre elas?
José Simões: A organização podia ser comum, podia ser o homem a dizer: olha preciso que lá vás ajudar a minha Rosa que ela depois vem cá e tal. Isso podia acontecer, não é que tivesse de ser mulher com mulher, não havia esse preconceito. A sacha era feita por mulheres, a monda era feita por mulheres. A ceifa e o cavar da terra era feita por homens. A malha era feita por homens, com um mangual. O mangual era um utensílio que procedia à debulha do milho ou do trigo. Era bater na palha e os cereais iam caindo. Portanto, a função do homem era malhar e depois vinha a mulher com os vassouros (chamados vassouros, que são umas vassouras de giesta) e varria a eira e juntava a semente. Depois vinha o homem, que fazia a limpeza da semente, com uma pá que limpava a semente e vinha o vento e levava a semente que era mais pesada para um lado e o vento levava os resíduos para o outro. Portanto, só faziam este trabalho quando havia um bocadinho de vento. Esperavam que houvesse vento para desenvolver este trabalho.
P: E quando iam a merecer, iam vários?
José Simões: Iam vários… dependia do trabalho e da extensão da exploração.
P: Como é que se escolhia quem ia? Era por relações de amizade?
José Simões: Era organizado por família, era o primo, era o tio, era o cunhado e os vizinhos mais próximos, que eram amigos.
P: E depois nesses trabalhos, como este que me descreveu, juntava-se bastante gente?
José Simões: Juntava-se bastante gente. Dependia do trabalho, se o trigo era muito. Dependia sempre do espaço.
P: E depois, faziam um convívio?
José Simões: Claro, o convívio era indispensável, à volta da mesa ou da adega, os homens, era indispensável.
P: Então acha que o associativismo pode vir daí?
José Simões: Não sei, isso não sei. Até porque o associativismo vem de tão longe não é, e a senhora tem prova disso, que não sei se é por aí.
P: Mas, por exemplo, especificamente aqui no Refúgio?
José Simões: Aqui no Refúgio, o desporto rei levava muitas pessoas a organizar-se. Portanto, isso era uma fonte de obrigação de reunião, o futebol: 11 para cada lado, era logo 22, mais os suplentes, mais não sei quê, havia logo ali um grupo de 30 ou 40 homens. A mulher, nem pensar, a mulher não jogava à bola.
P: Mas foi sua namorada que o inscreveu.
José Simões: Que me inscreveu, sim, mas jogar à bola não. Depois acabou por haver necessidade de informação. Tinha aparecido a televisão, em 57, as pessoas não tinham capacidade financeira para adquirir o televisor e era o Campé, que era o restaurante do sopas, era o Campé, era o único aqui da zona que tinha uma televisão. O homem que era o dono era assim um bocadinho bruto e metia-se nos copos e quando estavam lá a ver o futebol: tudo para a rua! Estavam a ver a televisão: tudo para a rua. Vou fechar a porta e tal e fechava. E as pessoas começaram a ter mais necessidade ainda de se reunirem à sua vontade, de uma casa onde tivessem o seu televisor e vissem a televisão o tempo que quisessem. Ele fechava à meia-noite. Também à meia-noite a televisão acabava, não era como hoje, e era só um canal. Portanto, isso foi uma das razões. Depois, a guerra do Ultramar também trouxe a necessidade da notícia, saber do acontecimento, do que estava lá a acontecer. É através da televisão que se sabia. Tudo isso foi conjugado para que esta coletividade nascesse.
P: Então, conte-me lá como é que foi: a sua namorada escreveu-lhe a dizer que já o tinha feito sócio...
José Simões: Que já havia o grupo, que já me tinha feito sócio, era já sócio, ela cá pagava a quota de um euro por semana, entretanto eu regressei. Eu fui criado num ambiente rural. O meu pai era um excelente executante de concertina. E eu regressei e toquei concertina. Eu desde que me conheço como pessoa humana que me lembro do meu pai à noite. Acabava o trabalho do campo, que era duro, e chegava e tocava a concertina e a minha mãe cantava e era uma alegria lá em casa. E eu sempre senti essa necessidade da união. Como já tinha nascido aqui um agrupamento, eu integrei-me aqui. Entretanto, veio o ano de 1966 e foi criada aqui uma comissão de festas para comemorar o quinto aniversário do Refúgio, do grupo... Fui convidado e fiz parte, fiz parte de uma comissão de jovens. Fomos para a mesa: o que é que faz? Foi da altura em que começaram a aparecer os conjuntos musicais porque até aí era a grafonola, era o gira-disco, começou a aparecer o conjunto musical, também da província. Ah e tal, vamos buscar conjunto e eu disse: também ficava bem aqui era um rancho folclórico. Eu tinha de facto esse bichinho do folclore. Ai, é difícil...Posso fazê-lo à minha maneira? Ai se fores capaz. Então criei este grupo de folclore, em 1966.
P: Como é que o criou? Com quem?
José Simões: Foi muito fácil, foi fácil. Falei com o meu pai, que era o terror da concertina, falei com um senhor que já tinha organizado umas marchinhas e tal e o homem disse logo que sim. A juventude aderiu toda. Tivemos de selecionar: tu não prestas, que danças mal. Hoje andamos às vezes atrás deles: andai cá que eu dou-vos uma coisinha… Era uma localidade aqui na zona histórica, hoje tem 13 ou 14 pessoas, na altura tinha quinhentas. Havia aqui muita matéria para selecionar. Portanto, foi fácil. Aquilo foi para integrar esses festejos, mas aquilo correu tão bem, que eu já vos falei que havia de continuar e então já fomos ver de um chamado ensaiador, já quase profissional, um homem de acordeão, já com uma capacidade e pronto, arrancámos. Eu conto aqui a história [ofereceu-me uma monografia].
P: A que bom, obrigadíssima. Muito obrigado.
José Simões: Vou-lhe oferecer. Então agora, em 2019, nós temos aqui na coletividade, no rancho, o presidente da Direção ligou-me agora, porque eles não fazem nada sem mim. Ligou-me agora, é o vice, o [...]. O vice-presidente é historiador, é professor e é historiador, tem várias obras e eu desafiei-o: Oh, professor, o senhor tem de fazer aí uma recolha, tem de fazer a história deste agrupamento. E ele disse: Oh, Sr. Simões, e já viu o trabalho que me dá? Então quem tem de fazer é o senhor, se foi o senhor que o criou, foi o senhor que esteve ao longo dos tempos ligado a ele. Eu gosto de escrever, gosto de escrever, eu tenho até outro livro editado, são as minhas memórias de guerra, que tenho vendido para todo o país, para todo mundo quase, que me pedem livros do meu tempo de guerra. Tem uma introdução do Nascimento, curtinha, ali uma introdução ao livro. Consegui que o prefácio fosse feito pelo meu comandante, que tem um valor histórico para mim, e depois conto a minha história da guerra, na primeira pessoa, sem ficção alguma, sempre o real. Lá está, foi aquilo que eu vivi e sofri e passei, os bons e os maus momentos, na guerra eram mais maus do que bons, mas também se passaram alguns bons. Então, está bem, professor, eu sou capaz de escrever e o senhor faz depois uma revisão? Faço. Pronto, e escrevi, então tem aqui a história. E então eu escrevi este livrinho com a história precisamente deste rancho folclórico.
P: E então depois começou a ser uma coisa mais profissional, não é?
José Simões: Profissional não chamarei, porque não há profissionalismo no folclore, mas passamos a ter mais cuidado. Começamos a fazer recolhas próprias das danças, cantigas, ia a muitos colóquios sobre folclore e etnografia. E, mais tarde, candidatámo-nos… muito difícil, uma candidatura muito difícil… a ser membros efetivos da federação do folclore português.
P: Isso foi quando?
José Simões: Isso foi em 1991, já.
José Simões: E essas recolhas começaram logo nos anos 60, ainda?
José Simões: Começaram logo, começaram em 66. Em 66 houve um arranque, depois os fatos que os elementos tinham usado, tinha sido tudo emprestado das várias coletividades, um tinha um fato, outro tinha outro e nós tivemos de devolver. Entretanto, em 1967, eu casei. Casei, fui viver para a cidade, fica um pouquinho… hoje é perto, na altura não havia automóveis como hoje. Da cidade aqui eram três quilómetros. Entretanto, eu venho para a cidade, o meu pai faleceu com 52 anos. Aquilo não durou muito, e parou, teve uma paragem. E então reorganizámo-nos em 1969, já com um traje próprio, com recolhas próprias, como sempre melhorando.
P: Como é que fizeram? Como é que angariaram dinheiro para comprar os trajes?
José Simões: Saímos várias equipas a fazer um peditório aqui às pessoas. Toda a gente dava, toda a gente queria o seu rancho folclórico – 20 escudos, 50 escudos, 10 escudos, tudo. Comprámos os tecidos, mandámos fazer, foi tudo gratuito, a confecção foi toda gratuita, portanto tivemos de adquirir os tecidos. O calçado tivemos de comprar.
P: E baseavam-se no quê, para desenhar os fatos?
José Simões: Eram baseados em fotografias da época. Eu tenho fotografias dos meus avós, dos meus bisavós, que serviram muito, eu e outras pessoas. E depois fizemos o apelo às pessoas que tivessem em casa roupas dos antepassados e, sei lá, das arcas, como eram. Era por aí…
P: Porque a ideia era fazerem um fato que fosse aqui da região?
José Simões: Da região e daquela época, de finais do século XIX e até aos anos 20, 30 do século XX.
P: Porque é que era esse período?
José Simões: Era o período em que começou a haver a consciência de que era preciso preservar. Até aí não havia grandes motivos para isso. E então foram criados organismos, mais tarde, na altura a FNAT, que é hoje INATEL, começou a preocupar-se um bocado com isso. Ainda no tempo do Salazar, talvez para desviar também atenções, está a ver? Criou várias coletividades até aqui na cidade. Essas coletividades tinham habitualmente o futebol para os homens e o folclore para as mulheres, e não só.
P: Mas era para desviar as atenções do quê?
José Simões: Desviar as atenções da contestação e trazer o povo contente.
P: Havia muita contestação aqui na Covilhã?
José Simões: Havia, aqui havia muita. Os lanifícios traziam muita contestação. Houve uma altura em que o primeiro de Maio só era reconhecido na Covilhã, só era celebrado na Covilhã. O resto do país, com medo das represálias... E mais tarde foi proibido também. Vinha por aí a PIDE, a GNR e tal, ia às fábricas ver quem estava a trabalhar. O patrão dizia: falta cá o Manel, o Jaquim e tal. Quem são eles? E tinham lá à porta e levavam-nos
P: E então a FNAT criou estes ranchos?
José Simões: Criou estas coletividades e apoiava o folclore e o futebol, eram as áreas....
P: E vocês tiveram apoio da Fnac?
José Simões: Não, não tivemos, na altura. Porque entretanto, parece que havia liberdade, mas não havia tanta como isso… Como na freguesia de São Martinho havia já uma coletividade, que era o Oriental de São Martinho, e então já havia essa coletividade inscrita, não podia haver uma segunda. E então tivemos de ir por outro lado e conseguiu-se. Conseguimos através do Governo Civil e não ficámos integrados na FNAT, ficamos nas colectividades de cultura e recreio.
P: Ou seja, conseguiram oficializar estatutos como uma coletividade de cultura e recreio?
José Simões: Sim, sim, era mais o Governo Civil que dava ordens que podiam abrir e funcionar. Os estatutos e tal, assinados pelo governador civil, e mais tarde houve então a inscrição nas colectividades de cultura e recreio.
P: E tinham sede?
José Simões: Tínhamos sede ali, quando viraram para aqui, a sede está lá, fechada praticamente. Muito grande, muito boa, mas aquilo é um corpo sem alma neste momento.
P: Do clube recreativo do qual faziam parte?
José Simões: No grupo de recreativo do qual fazíamos, mas fomos obrigados a sair, há nove anos só, estivemos ali ligados. Agora foi instituído um estatuto próprio, mas nessas coletividade hoje vai uma direção que gosta de folclore, depois vai outra que já não liga nada, então é posto de parte.
P: Então e nessa altura integravam o clube recreativo?
José Simões: Integrávamos com estatuto próprio, nós tínhamos os nossos dirigentes dentro do grupo.
P: Logo nessa altura, em 1966?
José Simões: Não, nessa altura não se pensava muito nisso aqui, era tudo a monte. Em 1985 é que se começou a fazer essa revisão.
P: Então até ao 25 de abril estavam junto do Clube?
José Simões: Até ao 25 de abril e não só, estivemos até 1985. Contudo, depois criou-se o estatuto próprio para o rancho, ainda tutelado pelo grupo recreativo. E depois, em 2012, é que nos constituímos em associação autónoma.
P: Então, durante esse período em que estavam lá, reuniam e desenvolviam a vossa atividade ali naquela sede?
José Simões: Desenvolvíamos a atividade lá, mas os ensaios normalmente eram feitos fora, aquilo tinha condições para isso, depois agora é que fizeram obras, mas era muito pequenino. Então ensaiávamos na escola, nas garagens dos vizinhos: ah, podem vir aqui para a minha garagem. E íamos lá. Olha, afinal, agora já tenho aqui que meter o carro, já comprei o carro e tal. E íamos procurar outro espaço, foi assim um bocadinho de malas às costas.
P: E também fazia parte da direção do clube?
José Simões: Fiz parte da direção do Refúgio como secretário da Direção durante vários anos e presidente da Direção.
P: Que outras atividades é que o grupo desenvolvia para além do folclore?
José Simões: Desenvolvíamos atletismo. O futebol era quase a brincar. Eu joguei futebol, mas o atletismo era uma coisa a sério, chegámos a estar nos campeonatos nacionais. Eu tenho um irmão que foi na altura oitavo, no Estádio José de Alvalade, nos campeonatos nacionais de atletismo, que pertencia aqui.
P: E isso era desportivo, e a nível cultural, era só o rancho?
José Simões: Só o folclore. Fez-se também teatro esporádico.
P: Organizavam-se em comissões?
José Simões: Era em comissões, que não eram difíceis. No aspeto do teatro, quem fazia os ensaios era o [...], o escritor, é daqui do Refúgio. E então ele é que estava ligado a essa parte, tinha muito jeito, fazia os ensaios, programava tudo o que era essa área de teatro, mas era episódica.
P: E era para fazer espetáculos aqui?
José Simões: Fazíamos aqui. Ele era um indivíduo muito esquerdista na altura, mesmo antes do 25 de abril. E na altura ele ensaiou uma peça que era um comboio. Então fizemos aquela peça, estreou-se aqui, aquilo correu muito bem, muito bonito. Como eu disse, havia muita juventude, estavam prontos para tudo. Muita gente a assistir. E veio uma coletividade de cultura e recreio que é o Campos Melo: epá, vocês têm agora uma peça de teatro. Não foi o Campos, foi o Rodrigo, o Giro do Rodrigo. Têm uma peça de teatro, gostávamos que fossem lá e tal. Está bem. Nós queríamos era ir. Está bem, vamos lá e tal. Então foram tratar dos papéis, era obrigatório na câmara. A Câmara Municipal tinha de dar ordem que ia decorrer aquele espetáculo tal. Quando lá chegámos, aquilo era uma peça proibida, antes do 25 de Abril era proibida. Fomos lá chamados: vocês, o que é que estão aqui a fazer e tal? Nós armados... o outro sabia, que era muito esquerdista, mesmo do Partido Comunista. Olhe, íamos tendo dissabores. Ficámos pela apresentação. Já tínhamos colados cartazes, O Comboio! P:E tal aí pela cidade, quando chega...[ri-se]
P: E tiveram mais problemas assim com a PIDE?
José Simões: Não, nunca tivemos, aquilo acabou por não ser problema. Disseram-nos: isso é proibido. Nós não sabíamos, longe disso, a nossa ideia, de que realmente fosse proibida.
P: E tinham biblioteca?
José Simões: Tinham biblioteca, com limites, com livrinhos que também ofereciam. Iam oferecendo livros e fazendo uma bibliotecazinha. Chegou a ser engraçada.
P: E havia muita gente a ler?
José Simões: Havia muita gente a ler e tinha outra particularidade, aquela coletividade servia para tomarem banho.
P: Muitas tinham isso, não é?
José Simões: Todas tinham, quase todas tinham e estas rurais… esta fazia parte de uma freguesia urbana, mas esta parte muito mais rural e não havia casas de banho. As pessoas ainda andavam com a malga, todos os dias de manhã, a levar os dejetos. E então era o banho, o banho que era semanal. Pagava-se ali uma quantia irrisória para o gás e para a água.
P: E tinham assim mais algum mecanismo de entre ajuda? Havia umas que tinham subsídio de funeral…
José Simões: Havia subsídio de funeral e o respeito que havia na altura pelos mortos. Quando a pessoa morria, não havia música, não havia... Logo que fosse sócio, a televisão é desligada, acabava a televisão. A bandeira era hasteada a meia haste e depois havia...
Houve assim umas coisas episódicas, que eu lembro que organizei lá, quando eu era presidente. Uma exposição de desenho do concelho, que teve uma adesão tremenda. Vimos difícil arranjar espaço para a exposição, andei de escola em escola a pedir, todas as crianças e os professores aderiram, os alunos fizeram muitos desenhos. Pronto, foi uma ligação às escolas, já nessa altura grande, e depois disso não tenho ideia de alguma atividade.
P: Então e depois do 25 de Abril, como é que foi?
José Simões: Depois do 25, até veio liberdades a mais, o rancho folclórico até parou, já tudo queria era discotecas e não sei quantos, mas depois recuperou-se novamente. Houve assim uns desmandos, umas euforias, mas enfim...
P: E quando é que começaram assim com este interesse em preservar esta memória, quando é que isso começou?
José Simões: Olhe, isto já vem de longe. Por minha iniciativa já íamos guardando umas pecinhas, já íamos arranjando… olha, fica aqui guardado numa lojinha, alugámos um espaço. Em 2000, adquirimos esta casa de renda. E começámos a montar aquilo que já tínhamos e fizemos um apelo às pessoas para que entregassem aquilo que lá tinham, que não deitassem fora, que nos dessem, nós reparávamos, se era caso disso, se não tivesse interesse, destruíamos nós. Começou a aparecer, em 2000.
P: E no rancho, tinham a preocupação de ir procurar músicas que fossem tradicionais?
José Simões: Sim, sim, tradicional. Até porque, a partir de 91, como membros efetivos da federação, não podemos pôr música nenhuma que não seja daqui da região. A música, a dança, a cantiga, o traje, o instrumento. É muito rigoroso, nós levámos o processo de integração para aí três anos. Vinham os técnicos e verificavam e chegavam ali e viam uma mulher que a meia devia ter este tamanho e estava assim, era rejeitado. É muito complicado. Eu costumava dizer que o processo de um grupo entrar como sócio efetivo da Federação do Folclore Português é mais difícil do que Portugal ter aderido à CEE. Muito, muito difícil. E mesmo agora, nós agora somos avaliados de dois em dois anos. Vem um grupo de avaliação técnica, cinco ou seis elementos, e nós temos de mostrar tudo: a dança, a cantiga, o traje, tudo, tudo ao pormenor, e depois somos classificados de zero a 10. Nós, na última avaliação, olhe em 2019, depois, em 2020, não houve, depois tinha de haver em 2021. Nós, numa escala de zero a 10, obtivemos 8,95. Muito bom, muito bom, mas temos que ter um cuidado extremo. Não pode haver unhas pintadas, não pode haver sobrancelhas tratadas, não pode haver vernizes, não pode haver pinturas. Nesse dia, as raparigas têm que tirar tudo.
P: E antes, não era tão rigoroso? Como é que vocês faziam a investigação para...
José Simões: Fazíamos, havia, as pessoas chamavam os incentivadores de carreira. Eles é que vinham. Olha, vem lá ensaiar o rancho e tal. Ah está bem, eu vou. Ele trazia as cantigas, que já tinha lá do repertório, que ele tinha recolhido ou não, não havia aquela preocupação tão grande. A partir de 1985 é que eu pus de parte esses ensaiadores, vi que aquilo não era nada. Comecei eu a fazer, a ler e a tentar informar-me bem o que era o folclore e a sua essência e tomei conta do caso. Os gajos não sabem nada, agora sou eu que tomo conta e comecei a aprofundar a informação que pus a prática no terreno.
P: E o que é que descobriu nessa investigação?
José Simões: Descobri que o folclore é uma arte, é também uma ciência e, como tal, ela não deve ser adulterada. Tem de ser o mais fiel possível às nossas raízes. Fiz muita recolha e pus elementos a recolher com as pessoas de 80 anos, 90 anos: olhe, o que é que cantava quando andava a bordar? O que é que cantava quando andava a sachar? E nós, com um gravador, íamos gravando. Olha, como é que se vestia? Olhe, ainda lá tenho uma saia da minha avó. Vá lá buscar: uma fotografia. Era feito desse modo. Era feito assim, ainda hoje se continua a fazer, agora menos. Agora já me vêm perguntar a mim, um ou outro...
P: Eu estava a ver ali naquele livro que tem ali, que é muito interessante, que tem ali músicas do trabalho...
José Simões: Esse foi o primeiro trabalho que nós fizemos, que o grupo fez, tem lá também um CD.
P: Pois é…
José Simões: O livro foi, é, um projeto nosso, do rancho, e do Grupo Recreativo, onde estávamos inseridos na altura, em 2004, e as recolhas eram daquilo que já tínhamos já feito. Depois, passou-se para a pauta musical, que é o trabalho conjunto, está também lá uma parte minha, mas foi coordenado pelo Doutor [...], que é um musicólogo, é mesmo formada em Musicologia Popular. E então, ele era muito nosso amigo e eu fui buscá-lo. Fui buscá-lo para o nosso lado e até agora está a trabalhar num projeto que estamos a desenvolver, está a trabalhar connosco.
P: Qual é esse projeto?
José Simões: Esse projeto é baseado naquela estrutura que foi agora criada de… deixa-me lá ver qual é que é o nome…É uma estrutura regional, vários conselhos se agruparam. Eles agora lançaram um programa, um projeto das coletividades. Nós somos líderes, aquilo tem de ter um líder e depois esse líder tem de arranjar associações dos outros concelhos. Neste caso, são cinco: Covilhã, Guarda, Fundão, Sabugal e Belmonte, estão agrupados os cinco. Comunidades Intermunicipais, é isso. E então vêm propor, é um projeto, é uma candidatura. Vão aparecer e nós estamos a trabalhar nesse sentido. Já escolhemos o tema, reunimos com as coletividades todas e todos apresentaram nomes para o projeto, por acaso foi o meu que foi escolhido. E chamo-lhe Unidos por um fio.
Este fio condutor que nos une e ao mesmo tempo é o fio de lã, que engloba todos estes municípios. Agora, cada grupo, nós, o nosso grupo de folclore, que vai funcionar só com uma cantata, um cantarzinho de música e canto, não mete dança, para facilitar, porque são menos elementos, a logística é outra. E é menos gente a comer, porque o projeto inclui a alimentação, a verba que vão dar, no caso de sermos vencedores, temos que saber distribuir muito bem e quanto menos comerem menos temos de pagar ao restaurante.
Temos um grupo de concertinas, que representa a Guarda. Um grupo de Bombos, que representa o Fundão e Sabugal, é um grupo etnográfico. De Belmonte é um grupo de cantares populares e do Sabugal é também um grupo de folclore, que vai com a tocata. Agora estamos a fazer essa candidatura com muito cuidado e queríamos que ela fosse aprovada. E nós estamos a liderar este processo e então fomos buscar o nosso vice-presidente, que é historiador, o Doutor Jorge Daniel, que é musicólogo. E estamos a trabalhar em conjunto para que essa candidatura possa ter muita força. Tem cinco espetáculos, um em cada concelho, é a obrigatoriedade. Nós já escolhemos o calvário, a capela do calvário.
P: Diga-me uma coisa, estava-me a falar aqui desta cooperação entre associações, isso existe desde quando, ou seja, os ranchos folclóricos já se reuniam antes?
José Simões: Os festivais folclóricos fazemos todos os anos. Nacionais ou internacionais. Nós tínhamos programado para 2020 o Internacional, o Grupo de Espanha e de Portugal. Tínhamos um grupo de Santarém, tínhamos um do Norte, de Gondomar, eram cinco ou seis grupos. Fazemos anualmente.
P: Desde quando é que se começou a fazer isso?
José Simões: Desde 1985.
P: E antes do 25 de Abril, já havia essa interação entre grupos?
José Simões: Havia, mas não estava tão enraizada. Havia, mas muito menos, muito menos. Os festivais do folclore, aliás, só apareceram depois do 25 de Abril. Porque são incentivados pela Federação do Folclore Português e a federação nasceu em 1977. Porque até lá também a associação livre não era admitida, não é?
P: E então nasceu em 77 e começou a organizar essa altura...
José Simões: Em 1977 a Federação do Folclore Português foi criada e começou a haver essa evolução no bom sentido, tanto pela qualidade dos grupos, como também na organização desses eventos.
P: Qual é que foi o primeiro em que vocês participaram?
José Simões: Foi um organizado aqui, no Refúgio. Eu lembro-me que fui à Câmara, em 1985, ao vereador da cultura e digo-lhe eu: oh senhor vereador, nós queremos organizar um festival de folclore. Epa, vocês são doidos, então vocês têm a capacidade? Quantos grupos? Cinco, seis grupos. Vocês não se metam nisso, já viu qual é a capacidade? Deixa isso connosco, deixa isso comigo. E diz ele: então, mas o que é que pretende de nós? Poder dar a notícia, não peço mais nada. Só quero que me monte lá um palco. Não pedem mais nada? Não! Se quiser depois dar mais algo... E organizámos muito bem. Depois, olhe, apareceu-nos alimentação, apareceu-nos tudo. A coisa correu tão bem, em 1985. A partir daí, nunca mais parámos.
P: De ir a outros sítios e de trazer outros cá?
José Simões: Vamos, também. No fundo, é retribuir a vinda, é o ir a merecer.
P: E esse intercâmbio é importante?
José Simões: É, importante, muito importante. É importante e mantém os elementos do grupo focados nesse projeto, que também gostam de sair, gostam de ir a Lisboa, ao Porto, a Paris, como já fomos duas vezes, à Ilha da Madeira, tudo isso. Pronto, se calhar nunca tinham ido lá…
P: E quando vão por exemplo a Paris, são recebidos pelas comunidades portuguesas?
José Simões: Sim, somos recebidos em casa de portugueses. Dormimos em casa dos portugueses.
P: Que também têm ranchos lá?
José Simões: Alguns têm.
P: E nesses festivais internacionais, quem é que participa?
José Simões: Participam grupos que nós convidamos desse resultado, também em permuta. Nós temos ido mais para os nacionais, por uma questão económica, porque fora do país custa mais dinheiro. Mas já tivemos aqui grupos de Badajoz, de Múrcia, fomos a Múrcia. Também já tivemos grupos de Toledo, Badajoz, como eu disse, e agora vamos ter… está contratado no próximo festival que houver, o grupo aqui da região da Extremadura, uma localidadezinha da Extremadura espanhola.
P: Então e nesses festivais fora, juntam-se grupos de várias partes da Europa?
José Simões: Sim, olhe nós, por exemplo, participamos há três anos num festival em Maia, Porto, onde estavam grupos de sete ou oito países. Pois, de Portugal estávamos dois, estava o Refúgio e o organizador. Depois havia do Peru, da Colômbia, de Espanha, da Venezuela… eram oito grupos ao todo, seis países, com Portugal sete.
P: Eu já estive a estudar também as associações nas ex-colónias portuguesas e vi que no passado também havia associações de folclore lá, portugueses, Casa da Madeira. Vocês nunca tiveram intercâmbio com os países das ex-colónias?
José Simões: Não, sabe, nós temos muitos convites, da Polónia, da Roménia… Mas não temos a capacidade económica para nos deslocar. Se tivesse um convite das nossas ex-colónias, também não íamos, com certeza. Eu nunca me apercebi, mas deve ter havido.
P: E assim das comunidades portuguesas que há pelo mundo inteiro.
José Simões: Isso há. Do Brasil, já tivemos aqui um grupo do Brasil.
P: Mas de portugueses que estão no Brasil?
José Simões: Portugueses que estão no Brasil, orientados por uma senhora brasileira. A diretora era uma senhora brasileira. Veio o grupo, o representante deles artístico é o [...]. Morreu há dois anos, veio aqui com eles, por duas vezes…
P: E essa ligação, vocês para além de atuarem uns com os outros, o que é que fazem mais, discutem estas questões do folclore?
José Simões: Habitualmente não há tempo para isso. É chegar lá, trajar, jantar… Os festivais são sábado à noite, habitualmente. As pessoas aqui trabalham até ao meio-dia, uma hora, em alguns casos, temos de esperar. Vamos de autocarro para o Alentejo ou não sei quantos, chegamos lá quase em cima da hora. Há uma sessão solene, sempre agendada com os grupos todos, com o presidente da Câmara, ou alguém que o representa, o presidente da Junta, os grupos todos, representação dos vários grupos. Uma sessão solene. Depois vamos ao jantar e vamos para o palco. E sairmos do palco, toca a tirar o fatinho, vestimos os nossos, meter no autocarro. E chegar aqui às quatro, cinco da manhã.
P: Então diga-me uma coisa: isto do associativismo, porque é que dedicou tanto tempo da sua vida?
José Simões: Por amor ao folclore, especialmente. Embora o associativismo também me diga muito. Eu depois criei aqui o Grupo de Cantar, ligado à Igreja, criei aqui um grupo de teatro, que fizemos quatro anos com a mesma peça em cena, percorremos quase o país todo. Com 60 elementos, eram 60 elementos, o grupo de teatro. O musical.
P: Como é que se chamava?
José Simões: O Nazareno, era baseado na vida de Cristo. Foi baseado, não sei se conhece, numa obra do Frei Hermano da Câmara. Era um fadista de um bairro de Lisboa que enveredou pela vida cristã. Foi para um convento, mas a voz não a deixou cá fora, como é lógico. Então ele tem uma carreira artística muito grande. E criou uma peça ligada à vida de Cristo, que é O Nazareno, uma peça musical. Nós adaptámo-la para o teatro, com instrumentos próprios, acordeão, órgão, viola, tudo organizado por mim. Fiz a encenação, encenei a peça e começámos a ser chamados para muitas outras do país. Nós, o último espetáculo que fizemos, terminámos, porque depois, entretanto, o rapaz do piano era professor, foi daqui para fora. Os professores andam sempre com a mala às costas. Foi parado e tal, pronto ficámos por aí. Fizemos o último espetáculo em Fátima, no anfiteatro Paulo Sexto, com 3500 pessoas a assistir, no Dia Internacional da Juventude. Foi criado por mim, isto é a prova daquilo que eu tenho dedicado à bandeira do associativismo também. E então dá-me muito gosto. Fui aqui também secretário da Direção da Associação Comercial dos Concelhos da Covilhã, Belmonte e Penamacor, durante três mandatos.
P: Qual é a atividade que desenvolvia?
José Simões: Ligados ao comércio, todo o comércio e indústria. Pagavam as suas quotas e depois fazíamos vários eventos, com alguma grandeza, na universidade da cidade da Covilhã, para apresentar um cortejo etnográfico. Coisas várias dessas, o cortejo do trabalho, exposições, ainda existe a associação, hoje com o nome de Associação, na altura Grémio, do comércio. Agora até me vão contratar para fazer um filme para a RTP. Sou personagem num filme que vai passar na RTP no último trimestre deste ano, A Traição do Padre Martinho.
P: Que personagem é que vai fazer?
José Simões: Tio Francisco. Já fiz, já está filmado. O protagonista principal é o Diogo Martins, um autor especialmente de novelas. O Ricardo Carriço, a Eva Barros, o Manuel Marques, que trabalha muito com o Herman, o Rui Mendes, o consagradíssimo Rui Mendes. E depois, havia no meio do elenco todo dois atores não profissionais. Então fizeram um casting, mas não disseram para que era. Puseram-me a ler e depois telefonaram: o senhor está contratado para fazer, vou entrar em contato consigo para acertar valor. Eu julgava que aquilo era de borla. Para acertar valores e combinar, precisamos de si, pelo menos três sessões. Depois ligaram: olhe, já falou o não sei quantos consigo? Já. Era para acertar valores. Olhe, 125 euros por cada sessão, mais alimentação, está bem? Eu até achei muito dinheiro. Olha, então vamos lá ver, 125 × 3, não é? Exatamente. Se for preciso mais alguma? Está bem!
P: E então, foi o teatro, foi os cantares. Quando é que isso foi? Quando é que começou?
José Simões: Isto foi na época de 80. Os cantares foi um bocadinho anterior, foi na década de 70, talvez. Depois criei o grupo de teatro na década 80 e tal. Foi só aquela peça.
P: E os cantares era como, era um coro?
José Simões: Cantares era um coro, vestidinhos com um papillon os homens, as mulheres uma echarpe.
P: E o que é que cantavam?
José Simões: Eram repertórios populares, mas não rígido aqui à região. Cantiga popular, fosse de Lisboa ou do não sei quantos, cantávamos tudo.
P: E onde é que atuavam?
José Simões: Olhe, em vários locais, nunca saímos aqui da zona. E eu lembro-me de um espetáculo que participámos para a Rádio Renascença. Veio aqui fazer um espetáculo à Covilhã, fomos contactados, contratados não, contratados era se ganhássemos dinheiro. E lá fomos fazê-lo, ao ar livre e aqui assim na região, várias pessoas: ah, vocês têm um grupo de cantares, vão lá… Vamos, então não vamos?
P: Então foi o folclore, foram os cantares, foi o teatro e foi isso. Não fez parte das coletividades da Covilhã, quando estava lá a trabalhar, foi sempre aqui no Refúgio?
José Simões: Sempre aqui no Refúgio. Não, na Covilhã só aquela associação comercial, já virada para um patamar mais elevado.
P: Então, e entre todas estas experiências, qual foi aquela que mais o marcou?
José Simões: O que marcou mais foi o grupo de folclore. Mas gostei muito daquela do teatro, o teatro musical, porque foi preciso escolher muita voz, selecionar muita voz. A voz de Cristo, de Maria, dos anjos, do dono do Canal, do Doiro, havia muitas vozes que era preciso selecionar, bem cantadas, tinham de ser bem selecionadas. Isso dava algum trabalho.
P: E diga-me uma coisa, a Covilhã é uma zona muito fabril, toda gente praticamente que eu entrevistei está ligada à indústria de lanifícios…
José Simões: Eu por exemplo nunca estive.
P: Mas aqui o refúgio também?
José Simões: O Refúgio também teve aqui uma fábrica, aquele poema que eu fiz…
Refúgio, local com muita história, vivências e memórias, Terra de trabalhadores, operários e doutores, escritores, poetas, pastores, agricultores, foste refúgio de hebreus, tecestes ....(?)
Fardaste os soldados dos quartéis, produziste finos tecidos, vestiste nobres e mendigos. Foste terra de realeza, de povo e de nobreza. Recebeste El Rei de Portugal, D. Carlos de boa memória, enriqueceste a tua história, transformaste o trigo em farinha, acolheste a Rainha monarca do teu país, Amélia de seu nome, em teu palacete dormiu e o povo a aplaudiu, foste, és terra de tradições, de festas e romarias. Acolheste a festa brava, touros e toureiros numa praça com história construída pelo fogo, pela tristeza do povo. Os tempos transformaram-te, desse resta a história, mas continuas a ter gente com garras e valentia para construir o teu futuro de cada dia.
Cá está, ligada à indústria. O Rei Dom Carlos visitou a indústria em 1891, depois de inaugurar os caminhos-de-ferro da Beira Baixa e dormiu aqui. O nome do Refúgio… Há várias ideias. Ao concreto, acho que ninguém sabe. Parece que a mais lógica, que tenha a ver com o D. Sancho II, o Povoador. Ele tentou povoar esta zona, no caso inóspita, pouco da obra, de montes e tal. Então, todos aqueles que andavam fora da lei ficavam integrados da sociedade, se chegar aqui refúgio. Chegavam aqui, eram fora de lei. Eu quero ser cidadão livre. Eu quero me integrar aqui, pronto. Quero aqui ficar. Essa é uma daquelas que é mais consentânea. Também tem muito a ver com os hebreus, no tempo da Inquisição, parece que aqui também era um bocado o refúgio deles. Mas há muitas versões, não sei qual é a correta…
P: Então, agora, e só para terminar, diga-me, queria saber o que é que acha que será o futuro do associativismo?
José Simões: Olhe, eu já vi isto quase a desaparecer. Depois parece que vejo outra vez a pegar no fio, e que a coisa terá futuro. Enfim, estou convencido que sim. Estou convencido que sim. É verdade que talvez precise de uma reciclagem, porque hoje já ninguém vem à associação para bailar, para dançar. Os bailaricos é na discoteca. Já ninguém vem cá para tomar banho. Já ninguém vem ver um jogo de futebol, tem em causa tudo. Tem 100, 200 canais, sentado no sofá, lá estão em contacto com o mundo. Terá de haver outros motivos que possam atrair as pessoas, isso vai muito da imaginação dos dirigentes. Os dirigentes têm de ter mais sensibilidade do que antigamente. Antigamente qualquer um dava. Porque aquilo era abrir a porta e as pessoas entravam, era pôr o disco a tocar e as pessoas dançavam, era ligar a televisão e a sala estava cheia. Hoje não, mas até tenho esperança.
P: Aqui o vosso rancho está perfeitamente modernizado, até faz candidaturas.
José Simões: Sim exatamente. Agora, nós somos uma associação um bocadinho sui generis, porque não tem aqui uma casa aberta. A senhora vai a qualquer associação e vê os bilhares, as cartas, vamos ajudar, vem outro beber um copo de vinho, um café e tal, é tudo o que é necessário. Nós não temos. É uma associação um bocadinho diferente. Cá dentro estão as 50 pessoas do rancho, os 100 e tal associados que temos e uma capacidade... tivemos de nos munir de dirigentes com alguma ação: o Doutor Vítor Tomás Ferreira, que já foi presidente de junta, que está ligado à Universidade, é um professor, que é um historiador, um professor. Está a ver, tivemos que procurar pessoas, que, não tendo a ver propriamente com o folclore, têm outra capacidade para poder atrair, desenvolver este projeto. Porque depois, bem, este projeto também não é qualquer pessoa que saiba… Portanto, as associações têm necessidade também de ter um corpo dirigente capaz de saber encarar o dia de hoje e de amanhã e ter capacidade para criar condições atraentes para os jovens e para os menos jovens. Se houver essa capacidade, acho que as pessoas continuam a ter necessidade de se reunir.
P: Também acho que sim. Agora só para uma questão estatística, que eu tenho perguntado a todos os dirigentes: professa alguma religião? É católico praticante?
José Simões: Praticante, sim, pode considerar. Não vou todos os dias à missa, mas pode-se considerar que sou católico praticante.
P: E é filiado em algum partido político?
José Simões: Nunca fui filiado. Ou melhor, fui filiado num partido político durante uns tempos, e desisti. A minha filosofia política enquadra-se muito na social-democracia.
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3 de junho de 2021
P: O Sr. José Marques Martins nasceu aqui?
José Marques Martins: Nasci em Tondela, ou melhor, em Canas de Santa Maria, freguesia de Canas de Santa Maria.
P: Em que ano?
José Marques Martins: Em Tondela, em Setembro de 1946. E inicialmente, por curiosidade, apesar de ter nascido oficialmente no dia 29, nasci no dia 11, que é uma data diferente. Tinha que ser. Eu só soube que tinha sido no dia 11 já tinha perto de 30 anos, de maneira que são coisas de histórias, mas que gosto de recordar sempre. Porque a minha mãe, que Deus a tenha, quando eu a convidei para ir para o aniversário: então mãe venho-te buscar ou venho... Que eu já estava casado, e ela: então, quando é que tu fazes anos? Oh mulher, então tu tiveste-me e não sabes? Pois, mas tu não nasceste no dia 29, o teu pai roubou-te na idade, porque antigamente era assim, portanto para dar uma ideia...
P: Os seus pais faziam o quê?
José Marques Martins: O meu pai tinha a profissão de sapateiro, mas foi um grande corredor de bicicleta, treinou e correu Porto-Lisboa. Aliás, se chegar à Folha de Tondela tem lá uma grande... e daí nasceu, talvez venha dos genes dele toda esta história da… e tenho ainda recordações, portanto, dos jornais em que o meu pai correu Porto-Lisboa, correu a Volta a Portugal, na altura do Américo, do Faísca, do Trindade. E então, claro, não era um corredor, mas tinha um grupo desportivo...
P: Já tinha na família a propensão para o associativismo....
José Marques Martins: A minha mãe é doméstica. E depois mais tarde é que ele aprendeu a profissão de sapateiro e a agricultura. E foi isso.
P: E estudou lá...
José Marques Martins: Estudei em Tondela, no Colégio agora escola secundária, e depois saí de lá com 18-19 anos. E então fui apanhado, como todos os outros da mesma idade, para irmos até à guerra, que foram dois anos, cada um com as suas memórias, nem tanto agradáveis, mas pronto, não vamos falar nisso. E quando vim, tive que recomeçar a vida. Foi uma geração sacrificada, aquela geração da altura em que fomos para a guerra. Portanto, nós tínhamos uma forma de estar, porque vivíamos no campo, o nosso crescimento estava dominado por uma certa formatação. Nós, quando queríamos respostas, diziam-nos: porque sim, porque tinha que ser assim, assim é que era. O Colégio onde andei, católico, também tinha a rigidez religiosa de então, muito mais forte. E nós na agricultura fomos crescendo. Claro que depois apareceu ali uma… naquela altura dos Beatles. Depois éramos muita juventude, havia muita juventude, havia mais filhos, não havia televisão, como eu costumo dizer na brincadeira. E então havia muita juventude e por isso nós juntávamo-nos, fazíamos o tal grupinho de futebol, para ir tomar banho para o rio, para ir para os bailaricos, portanto, havia isso. E onde é que nós nos juntávamos? Nas tabernas, que era um sítio onde víamos um Bonanza e outros que tais. A taberna antiga foi sempre um local de encontro, ou lá dentro ou cá fora. Enquanto os mais velhos estavam lá dentro a beber uns canecos e a jogar à sueca, nós estávamos cá fora, porque não tínhamos autoridade de entrar, porque éramos miúdos, mas já queríamos ir e esse foi o nosso crescimento. Depois tudo mudou, quando aparece o 25 de Abril, mais tarde, portanto, abre-se. E, é claro, quem teve condições para progredir na formação, muito bem, quem não teve, ficou sempre naquele estado. Claro que depois houve aquela vontade em termos um futuro melhor e foi quando se abriu a possibilidade de os caminhos para a França, para a Suíça, para a Alemanha, em que as mulheres ficavam a tomar conta da agricultura.
P: Mas o senhor José não emigrou?
José Marques Martins: Era para ter emigrado, mas, felizmente ou não, como tive oportunidades de emprego logo de imediato…
P: Qual é que foi a profissão que depois seguiu?
José Marques Martins: Depois, quando vim, embora tivesse várias opções, mas porque já tinha família constituída, fui para os laboratórios da celulose, em Vila Velha de Ródão. Estive lá três anos e depois de lá é que vim para a Covilhã, para o Instituto de Emprego, antigamente era o Serviço Nacional de Emprego, e ingressei como técnico de emprego e toda a minha... até à minha aposentação. E depois, mais tarde, também me ordenei diácono, portanto, e aí houve razões para essa via, são histórias de vida.
P: Não se casou?
José Marques Martins: Casei pois, os diáconos podiam se casar. Casei e já estou viúvo. Tenho dois filhos e duas netas e, portanto, foi essa história de vida. Aqui caí e há histórias que a gente conta, quando venho aqui para a Covilhã, gostei de vir. Porquê? Porque embora estivesse em Castelo Branco, eu passei aqui de madrugada e há duas imagens que eu guardo da Covilhã, que jamais me esquecerei: que foi ver pelas seis horas da manhã, mais coisa menos coisa, ver os trabalhadores que eu não sabia para onde é que iam, todos em fila, lá iam com uma lancheira na mão. E então perguntei para a minha mulher, que ela andou aqui a estudar, eu não estive: onde é que esta malta vai? Vão trabalhar, vão agora para o turno. E eu achei curioso irem àquela hora todos, mas uma grande fila de gente. E uma outra imagem quando chego ao Souto Alto, quando vinha do Fundão e comecei a olhar para a Covilhã de madrugada e a vi toda Iluminada, que me deu uma semelhança com o Funchal, onde passei quando vim da Guiné, porque nós parámos no Funchal, porque trazíamos uma companhia de caçadores do Funchal, e deixámos lá alguns colegas falecidos. E a imagem que guardo do Funchal é quando eu acordo, pela coxia do barco, vejo também aquela montanha toda iluminada, que tem uma certa semelhança com a Covilhã. E eu disse na altura, talvez dois anos antes de vir para aqui trabalhar, para a mulher de então: olha, gostava de trabalhar aqui, mal eu estava já a pressupor que um dia vinha aqui parar. Cheguei e, como vim para aqui morar e esta foi a casa para onde vim cair e caí aqui, vim para aqui jogar, ainda me lembro, jogar às damas com um vizinho nosso que já faleceu, que era o Fernandes… E havia cá um contínuo que até tinha uma certa dificuldade no andar, o Sr. Pinto. E então a história do associativismo também começa um pouco aí, quando nós estávamos os dois muito bem a jogar e o senhor Pinto chega e diz assim: podem continuar a jogar, mas é bom que se façam sócios da casa, têm ali uma fichazinha. Então, deu-me essa ficha. Mas têm que pagar uma joia, e a joia era, salvo erro, 50 escudos, ou coisa do género, na altura pagava-se a joia. E pronto, e foi no ano de 1973-74, depois apanho o 25 de Abril. Eu ingresso no serviço de emprego em 73. Estou em Lisboa porque venho para fazer a formação em 74, Janeiro, e o 25 de Abril nasce a seguir, portanto, eu apanho toda essa zona, claro.
Depois também gostei de saber o porquê daqui nas fábricas, porque eu vim trabalhar para uma casa e para eu poder ser capaz de poder fazer um serviço melhor, tinha que saber como é que os trabalhadores trabalhavam, porque quando lá estávamos a fazer uma entrevista e aparecia um tosador, aparecia um tecelão, aparecia uma metedeira de fios, aparecia não sei quê, tinha que saber o que é que isso significava para poder ter uma ideia, numa entrevista, do que tinha à frente. Por exemplo, havia cá umas cento e tal fábricas, ou mais um pouco, e eu fui visitá-las todas e fazer um estudo técnico das máquinas. Técnico, isto é: o que é que a metedeira de fios faz? Como é que ela faz? Que instrumentos é que ela utiliza? E depois via tudo isso durante o dia e à noite era aqui no Grupo Instrução e Recreio, no Campos Mello, no Ginásio, e as atividades eram aquelas que, para além do Futebol Sporting da Covilhã, como é evidente, mas eram aquelas que agregavam mais gente. Claro, depois apareceram, mais tarde, outras. Quando apareceu a Universidade, muito mais se abriu. E portanto, saber o porquê disto, talvez também pelo gosto de saber da História daqui, como é que nasce e, portanto, cheguei sempre à conclusão de que é o mesmo em todo o lado. Havia um objetivo comum daquela gente, juntavam-se. Havia um objetivo comum, havia também um cimento que era a solidariedade entre eles e toca de fazer uma coisa que fosse benéfica para os outros, para o bem comum, para eles próprios, e que desse formação àquela gentinha. Foi sempre essa a evolução associativa. Aquilo que, com quem eu conversava, com os mais velhos, era isso: epá, nós queríamos era, queríamos aprender, mas não sabíamos ler, queríamos saber mais, queríamos que os nossos filhos....E eu lembro-me que os meus pais diziam assim: eu não quero que o meu filho ande com uma enxada nas mãos. Possivelmente aqui os tecelões, eu quero que os meus filhos não saiam e não sejam...
P: Queria fazer ao senhor José mais duas questões para estatística. Na realidade, estou a perguntar a toda a gente, se é professa alguma religião.
José Marques Martins: Sou católico.
P: É católico, claro, e se está filiado em algum partido político ou já esteve.
José Marques Martins: No Partido Socialista.
P: E já agora também ao senhor João, ficamos já com estas duas questões: é religioso, professa alguma região?
João José Silva: Católico.
P: Também é católico e é filiado em algum partido político ?
João José Silva: Também no PS.
P: Então vamos começar pelo início. Nasceu aqui na Covilhã?
João José Silva : Sim, nasci, criei, fui criado, fui batizado, fui criado, casei e a minha vida foi sempre praticamente na Covilhã.
P: Nasceu em que ano?
João José Silva: Em 1947, 12 de janeiro de 1947, e fiz sempre aqui a minha vida. Aliás, sou filho da terra. E sou filho dos meus pais. O meu pai era técnico de tecelagem, afinador de teares, e a minha mãe metedeira de fios, ainda há bocado o Marques Martins estava a dizer que não sabia o que era uma metedeira de fios… a minha mãe era realmente metedeira de fios.
P: E o senhor João, também foi trabalhar para a indústria têxtil?
João José Silva: Eu trabalhei relativamente pouco tempo, porque era assim, era difícil na altura. Os meus pais… éramos três irmãos, duas irmãs, comigo três, e era muito complicado, porque na altura os ordenados eram relativamente baixos e viemos morar aqui para o bairro do Rodrigo, onde, na altura, a renda já era um pouco cara em relação àquilo que ganhava o casal. E o meu pai teve que me chamar a atenção e dizer: vocês têm que trabalhar, têm que ajudar a casa. Eu fui trabalhar, comecei a trabalhar com 12 anos. O primeiro emprego foi precisamente, não foi na indústria têxtil, acabei por ir para um gabinete de advogados onde estive, fiz alguma formação e depois apareceu uma outra situação, mudei e acabei depois por ir para a indústria, porque a firma para onde eu fui a seguir encerrou por motivos que desconheço. Então eu, para não estar desempregado, sentia-me um inútil, no termo da palavra. Eu queria realmente era a minha independência, ter algum para poder, ao longo da semana, planear o que eu poderia fazer e então foi quando eu estive, pouco tempo, na indústria, fui cardador, com 18-19 anos. Depois surgiu a hipótese de uma outra situação: convidaram-me para ir para o Sindicato da Indústria de Lanifícios do Distrito de Castelo Branco, onde estive desde 1964 a 1968. Entretanto, fui à inspeção, fiquei aprovado e toca de ir para Angola. Não sei o que lá fui fazer, para Angola, fui forçado, fui obrigado. Estive lá três anos em África. Regressei de África e, claro, a minha preocupação foi arranjar alguém com quem casar. Casei e também já estou viúvo. E pronto, tem sido... ainda andei na escola Campos Mello, mas não concluí, porque era difícil na altura. A gente chegava do emprego às sete da tarde, das nove às sete da tarde. E às 7:30 tínhamos que entrar na escola, na escola Industrial e comercial Campos Mello.
P: Qual é que era o trabalho que tinha na altura?
João José Silva: Na altura estava ligado ao Sindicato dos Lanifícios como funcionário. Entretanto, pronto, não concluí. Reconheço que a própria juventude, os namoriscos... Até acredito que podia ter, podia ter conseguido outras coisas, mas não, porque era muito difícil. Entretanto, depois de ter vindo de África tive um pequeno comércio, uma papelariazinha, que abri na altura. Estive a explorar aquilo durante dois anos, foi quando surgiu a hipótese de ir para o Hospital Distrital da Covilhã, onde estive 40 anos a trabalhar como auxiliar de ação médica. Gostei imenso daquilo que fiz, gostava imenso, adorava a profissão e a prova está que nunca saí do mesmo serviço, não, tive o mesmo trabalho sempre, todo esse tempo. Por incrível que pareça, e não está aqui que não nos ouve, fui apanhar lá o Sr. José Marques Martins com problema de rins.
José Marques Martins: Mal eu sabia que tinhas passado pela minha mão para ir para o hospital, eu sabia que ele era bom…
João José Silva: Sempre dedicado à cidade e o José Marques Martins é uma pessoa que eu conheci de perto, desde 1973. Agora, porque somos vizinhos…
José Marques Martins: Eu andei com as filhas dele ao colo.
João José Silva: Éramos uma família aqui, éramos uma família, toda a gente se dava bem, toda a gente se comunicava, era importante. E o Grupo Rodrigo, quer se queira quer não, ajudou e continua a ajudar muito nessa parte. Não tanto como nessa altura, porque era aqui que a gente se concentrava, era aqui que a gente conversava, era aqui que a gente bebia o nosso café e jogámos ao 21, para saber quem é que pagava os cafés, jogava-se as damas, como o Martins dizia, o snooker, o bilhar livre, as cartas, o dominó...
José Marques Martins: Depois do trabalho, onde é que nós íamos conversar? Tínhamos o jornal e líamos, ouvíamos as histórias e depois começámos a....
João José Silva: Criar amizades…
José Marques Martins: E depois há sempre os mais velhos, aqueles que estão nos órgãos sociais. Quando chegava a altura da revitalização de novos órgãos, iam apontando este e aquele e o outro não sei quantos. Bom, eu falo por mim e pela minha experiência, fomos indo e olha, estive cá desde 1975 até há dois anos atrás. Foi sempre, só tive um interregno de quatro anos. Portanto, depois passei para a Assembleia, que para lá me queriam chutar, mas criámos coisas interessantes e a beleza disto, não sei se concordarás comigo, com certeza de que sim, a beleza disto é que nós, mesmo não tendo a mesma… tendo opiniões diversas, conseguimo-nos juntar para pormos a coisa a funcionar, porque íamos à procura, com a nossa diversidade, de elencarmos um programa que fosse o melhor possível. E deixávamos as diferenças para irmos buscar aquilo que mais nos unia. Hoje, já não vejo, infelizmente, não acho que já não é tanto assim.
João José Silva: E, acima de tudo, estavam os interesses da coletividade e não os interesses.... Exatamente como estar ligado à política. Eu, aliás, apanhei o José Manuel Martins na política, mas era muito antes de mim, o estar na política não queria dizer que a gente que se aproveitasse de alguma coisa como interesse pessoal, nós viemos para aqui para defender os interesses da coletividade. Era extremamente importante.
José Marques Martins: Era engraçado, era belo, primeiro para nós. Vamos lá ver, o associativismo funcionava, não, funciona, porque nós trazíamos a família connosco, não fisicamente, mas vinham connosco, no coração vinha connosco, e nós queríamos que esta casa, que é a casa que vínhamos também trabalhar, que as famílias se sentissem aqui bem e por isso, quando tudo o que nós fazíamos era sempre com o objetivo… tanta vez que nós dizíamos aqui: as nossas esposas são aquelas que nos aguentam para estarmos aqui nos órgãos sociais.
João José Silva: Aliás, a minha até realmente colaborou imenso, e as filhas, no rancho folclórico, nas marchas populares…
José Marques Martins: Na costura, elas faziam tudo e a tua filha, ela também, as danças rítmicas, os miúdos… Quer dizer, elas também cresceram com esse gosto porque viam que os pais tinham gosto e se eles... às vezes eu perguntava: vocês gostam? Vocês andam cá… E, portanto, este gosto passava-se de pais para filhos. Porque era uma coisa linda e tudo o que era feito não era com o intuito de “eu fiz”, não, “nós fizemos”. Nós fizemos, e isso para nós foi...
P: Então e essa propensão que vocês passaram para os vossos filhos, terão herdado dos vossos pais, os vossos pais tinham participação associativa?
João José Silva: Eu no que diz respeito ao meu pai, sim. Foi sempre um....e era trabalhador na indústria de lanifícios, quer dizer, aliás, o movimento operário na Covilhã nessa altura era fortíssimo, como deve calcular. E ele já… ele entrava aqui e eu recordo até uma passagem extremamente importante, importante e desagradável ao mesmo tempo. Aqui na altura só se conseguia, a direção, na altura, só autorizava a admissão de associados que tivessem mais de 17 anos. E o meu pai vinha, eu vinha com o meu pai, mas só podia estar com ele, porque se ele não viesse, não me deixavam entrar e ele ainda arranjou uma chatice porque soube na altura que houve associados que admitiram com menos idade que eu, e só aos 17 anos é que me consegui fazer sócio desta coletividade.
José Marques Martins: Aliás, era aquilo que diziam os estatutos. No meu caso, quer dizer, para além daquilo que o meu pai teve, aqueles genes, eu já via a coisa de outra maneira. Depende também tudo daquilo que nós temos na nossa alma, que vai cá dentro, porque repare: o meu pai também tocava numa banda, numa música, numa filarmónica, na Filarmónica de Tondela, e eu aprendi música também, por aqui, para tocar alguma coisa num órgão, porque me ajudava também nas celebrações. Mas gostei sempre do teatro, porque mesmo nos meus tempos de colégio eu fiz muito teatro, que é o teatro da escola. Fora disto, na minha aldeia, na minha zona, nós criávamos grupos, sem querer, que nem sequer chamávamos associação. Era um grupo em que nós nos defendíamos, em que nós sabíamos as coisas uns dos outros, em que nós nos ajudávamos uns aos outros e aprendemos a ver isso na agricultura, quando este grupo ia ajudar aquele na sacha e nas vindimas e aquele ia no outro. E isso, para nós, quer dizer, para nós era bom. Eu gostava porque também andei nisso, íamos: agora vamos ajudar aquele, depois daquele, vamos ajudar aquele e portanto, quando chegávamos ao fim, à noite, para nós era uma alegria vermos que todos estavam felizes, porque alguém ajudou outro e sabia que aquilo funcionava. Se me perguntassem o que é que isso era, eu hoje reconheço que aí já eram… havia um objetivo comum, havia o bem comum, isso era associação, era uma associação. Só que não era… aqui, quando eu chego à Covilhã, a coisa já era diferente, porque existe uma indústria, existe aquilo que nós também lá sentimos, os industriais daqui começaram a dizer assim: alto, precisamos que os nossos filhos… precisam de ter algo que os ensine, que os forme. Porque se nós não dermos condições aos nossos filhos para se educarem, para se formarem, não vale a pena continuar. Essa foi uma das razões que o associativismo nasceu aqui e lá também, pelo desporto, que é sempre uma escola de educação, em que havia também a parte da música, as letras e quando não havia escolas, era ali que nós íamos aprender.
P: Fale-me mais nessa ideia, é muito interessante essa ideia de quase comunitarismo que existe na agricultura.
José Marques Martins: Sim, muito importante, muito importante. Porque eu sinto isso de nós nos juntarmos em grupos e virmos para as grandes vindimas daquela zona do Dão. Nós íamos em grupos e havia sempre o líder do canto. O canto era aquilo que fazia a agremiação de todos. As desfolhadas, íamos agora a desfolhada, por hipótese, e íamos depois à desfolhada do não sei quantos e então nós todas as noites nos juntávamos e o milho aparecia nas eiras.
E então como é que nós criávamos essa... isso é que que eu trouxe e que me ajudou. O que é que nos ajudava? Nós não íamos para as desfolhadas e estávamos ali feitos monos a desfolhar. Havia uma rivalidade como existe nas associações. A rivalidade de rapaz com a rapariga: eu liderava a parte do canto dos rapazes e picava as raparigas, onde havia uma tal Fernanda, que também picava os rapazes e isso criava... e quando nós damos por nós, já estava o milho, já estava tudo desfolhado, já estavam espigas todas no sitio como devia ser e já estava lá uma mãe, ou uma avozinha, a preparar o bacalhau com cebola e com tomates e com pão para nós comermos tudo no final da desfolhada. Isso era festa, fazíamos essa festa.
E, portanto, isso cresceu connosco e ficou cá. Depois, é claro, aparecerem condições numa zona, como aqui apareceu, condições para trazer à tona aquilo que nós fazíamos, vamos em frente. Ou paramos ou deixamos que isso cristalize… Ou então fazemos aqui.
Eu recordo que uma das primeiras coisas que fiz, que ajudei a fazer, na parte do teatro… fizemos aqui o Grupo Girtec, inclusivamente estive em Évora nessa altura a tirar o curso de animação cultural no teatro Garcia de Rezende, em 76, portanto, que me permitiu algumas luzes. Mas havia essa parte, digamos agrícola, muito interessante em que as pessoas se ajudavam umas às outras…
P: E em meio urbano, também havia essa entreajuda informal?
José Marques Martins: Diferente das aldeias. Aliás, aqui em meio urbano era assim: as pessoas trabalhavam e praticamente onde se reuniam era no final do trabalho ou nas tascas, nas tabernas, que era a Viene, era quase porta sim, porta sim, e depois à noite vinham às coletividades. A coletividade abria às 6:30 da tarde, todos os dias. E quando eu falo aqui num senhor que era, na altura chamavam-se contínuos, agora são empregados ou colaboradores, falámos aqui no senhor [...], era um homem que... de muita postura, de muita responsabilidade, gostava imenso da coletividade ao ponto de sofrer na carne dessa forte união. O que ele sentia pela coletividade e ao pôr-se ao lado dos dirigentes, na altura, era complicado...
Ele foi preso na altura, vieram-no buscar ao Grupo de Rodrigo depois do seu trabalho, a polícia política veio buscá-lo aqui. Porque ele era forte colaborador com a direção, o grupo que esteve na altura...
Quando se criou o grupo estávamos em ditadura e todos nós sabemos que as ditaduras viviam um bocadinho às avessas com o associativismo, porque o associativismo é democrático.
Juntam-se várias ideias, juntam-se várias pessoas com um objetivo comum, mas as ideias fluem… Não há ali um indivíduo que diga: eu é que eu é que comando, é que não sei quê…
Não, todos contribuem. Portanto, a vida associativa é uma vida que se transporta para a cultura, quer dizer, para os objetivos de luta. E é, tal como aqui, as coletividades, qual é que foi a luta aqui? Era o ensino, era a formação e ensino, educação e, neste caso, a lutuosa, como nós também sabemos. Havia razões. E o que era a lutuosa? Coitadas das pessoas… Quando morria alguém não tinham dinheiro, não tinham, sei lá, para mandar tocar um cego, quanto mais, era um objetivo definido, havia uma luta. E já que o governo não conseguia fazer chegar até ao necessitado essa resposta, eram as pessoas que se juntavam numa certa zona para criar essa resposta. E aí, claro, quem tem o poder, não gosta que alguém vá fazer-lhe frente com isso. Isso é verdade e, portanto, o associativismo era isso e daí que veio para aqui. E na altura olhavam-nos com uma certa…
João José Silva: Na altura, quem não era deles, era comunista, tudo era comunista, desde que não fosse… Mas não porque aqui o GIR teve nos seus órgãos sociais, um ministro, na altura.
José Marques Martins: Que foi presidente da Câmara e que oficializou a primeira escola primária aqui no bairro, que foi aqui na coletividade. O que era isso? Era a possibilidade de termos professores oficiais, porque até aí a escola era aqui do grupo, mas não era oficial, só que havia pessoas que ajudaram a dar a escola aos filhos dos funcionários...
João José Silva: Depois foi oficializada…
P: Estudou aqui, o João?
João José Silva: Eu estudei, não aqui no GIR, não. Eu estudei na escola aqui do bairro do Rodrigo, e esse doutor Almeida foi eu quem travou o encerramento da coletividade. Porque era assim, havia um ajuntamento: o que eles estão a fazer na coletividade? Vamos lá ver o que é que se passa? Porque é que vocês estão a reunir? Porque é que vocês têm que estar a reunir? E aí havia desconfianças…
José Marques Martins: Isto foi entre 1921 e 28. E em 1928 é quando a escola é oficializada e, sendo oficializada, já não era fechada de ânimo leve. A partir do momento em se oficializa uma escola, numa instituição, espera lá, isto é o Estado que dá luz verde, se dá luz verde… Porque até aí, é porque houve aí alguém que mexeu os cordelinhos, diga-se em abono da verdade. Agora que o princípio quando, faço ideia, quando isto começou nas tabernas e começaram a querer alugar uma casa aqui e arranjar e não sei quê, é que a PIDE e sei lá que mais o quê andaram de olho acima. O que é que estes indivíduos andam aqui a fazer? O que é que não sei quê, portanto tudo isso era...
João José Silva: Até porque a escola oficial terminou aqui em 1950. Foi quando foi inaugurada a escola do Bairro do Rodrigo, em 1951. Ela tem, precisamente… é quase da mesma altura que o bairro em si. Eu, quando vim para o bairro do Rodrigo, a escola tinha sido inaugurada há um mês ou coisa assim. Foi logo a seguir, ou foi antes… Eu vim a seguir, exatamente. Pronto e depois entrei na escola aqui, com seis anos. Seis para sete.
P: E nesse período antes do 25 de Abril, quais é que eram as principais atividades em que vocês participaram?
José Marques Martins: Eu lembro-me que participei. Eram as damas, eram os jogos de mesa, jogos de…
João José Silva: Snooker, bilhar...
José Marques Martins: Mesa, era jogos de mesa, porque desporto no exterior não havia. Futebol de salão, de 11, não havia. Isso apareceu mais tarde, na abertura, depois… foi o 25 de abril.
João José Silva: Aliás, antes do 25 de Abril, vai me desculpar, dentro desta coletividade foi formada uma outra, que neste momento é o CCD do Rodrigo. O CCD do Rodrigo saiu daqui, formou-se aqui. Porquê? Porque o CCDS, na altura, era um centro de recreios populares ligados à FNAT. E como eles não tinham instalações próprias, tiveram que pedir aqui a cedência de salas ao GIR do Rodrigo, onde eles fizeram os seus estatutos e organizaram-se como coletividade com o auxílio precisamente da FNAT. E aí, o que é que acontecia? Como havia os campeonatos regionais de futebol, que eram patrocinados pela FNAT, só conseguiam entrar se eles tivessem um local, uma sede, um sítio onde pudessem exercer a sua atividade. E essa associação, que funciona aqui, é nossa vizinha, e que está ligada hoje ao INATEL (não sei se já não é INATEL, é fundação), continua viva. E essa associação criou realmente um certo dinamismo a nível de desporto, porque elas estavam direcionadas para o desporto, nós aqui era mais a cultura, o teatro...
José Marques Martins: Já fizemos os primeiros jogos florais da Covilhã, fizemos um jornal também, fizemos um boletim. Hoje, olhando um pouco para trás, João, o associativismo tinha uma grande força, porque não havia mais nada, não havia outras respostas. As pessoas procuravam respostas. Onde é que vinham procurá-las? Era aqui. Estar aqui onde havia o jornal, onde havia a televisão, onde havia um rádio.
João José Silva: Os banhos. Vinham pessoas com a sua toalhinha, era aqui, na parte de baixo.
José Marques Martins: Havia o sapateiro, as máquinas de barbear… Hoje o que é que nós temos? Temos a televisão que nos traz a informação e a contrainformação. E hoje o associativismo é uma forma de estar, portanto, há sempre um objetivo comum. Agora tem de ser recriado com novas formas, já não é como aquela altura. Quando, há um ano atrás, dizia: vamos, temos que fazer isto, ok? Nós vamos fazer, mas temos que fazer de uma outra forma que capte, digamos, que as camadas novas venham. Mas já não é da mesma forma que vinham antigamente. Antigamente vinham à procura de uma resposta, porque não tinham outras. Hoje, sabemos nós, que temos que estar em paralelo com outras respostas e hoje o associativismo vive de outra maneira.
João José Silva: Eu digo mais, e com muita pena, o facto de haver grande alteração em tudo isto, porque as coletividades têm tendência a fechar-se. Com muita pena que eu digo isto. Ou terá que haver aí, o próprio governo…
José Marques Martins: Eu, as coletividades, eu tenho uma outra... Isto agora, por exemplo, as coletividades têm que tomar juízo. Vamos lá ver, antigamente, lembro-me, lembro-me quando tínhamos água da poça, que era a da poça. Nós tínhamos as nossas hortas e o meu pai dizia-me assim: pega no sacho que hoje a água é nossa. Então eu vinha pelo caminho abaixo a calcar as loras dos bichos que era para a água não fugir, que era para a água chegar mais rápido à minha horta e para evitar que ela fosse para a horta do vizinho. Porque a água era pouca, tínhamos que a distribuir e a água era pouca e naquele dia era para nós, então andávamos a vigiar se alguém... Ora bem, nós tínhamos que ser transparentes, mesmo se quiser, tem que ser transparente. Ou os subsídios que possam vir têm que ser com transparência, saber para que é que servem, para onde vão, como é que são utilizados, porque senão estamos sempre naquela dúvida. Fulano que está mais perto da fogueira, aquece-se mais, não sei quê. Isto foi uma moda que andou e é preciso que pare.
Depois também temos uma outra coisa que se torna importante: nós sabemos que nós temos instrumentos e que a outra coletividade não. Tem que haver algo que consiga saber o que é que aquela coletividade precisa e aquela e aquela, e, em vez de andarmos todos a comprar coisinhas diferentes, os instrumentos de uma têm que servir para os instrumentos da outra. É assim que eu entendo. É assim que entendo, porque senão corremos o risco de termos os campos de futebol cheios de tojo e de mato e nas aldeias e corremos o risco de termos grandes instalações em coletividades e termos poucos recursos humanos lá dentro. Eu recordo-me de uma entrevista que uma vez dei, quando esta casa teve a estrutura que tem, é uma beleza, sem dúvida, uma beleza, e paredes novas. Sem dúvida. Eu recordo-me disso. Mais importante do que numa casa aquilo que conta são os recursos humanos, porque se a casa não tiver recursos humanos, fecha, de hoje para manhã fecha, então servirá para outra coisa. Os recursos humanos é a coisa mais importante e trabalhar com recursos humanos dói e é preciso ter capacidade para gerir recursos humanos. Mas, sabendo gerir, nós conseguimos chegar lá desde que as coisas sejam postas na mesa, com toda a clareza. A Câmara subsidia e faz o seu papel. Mas não é, já não é, não pode ser aquele.... Vá lá que agora parece que há uma lei, é uma lei que conseguiram criar, um regulamento, que é importante. Mas o Parlamento… tem que ser feito desta…
João José Silva: A atribuição dos subsídios não é dada assim, como era antigamente. Tem que se apresentar um plano de atividades, mas que não seja um plano de intenções: vamos fazer… Não, tem que dizer no papel porque é que vão fazer isto.
José Marques Martins: Nós temos aqui um evento associativo que é tremendo e que não colhe frutos, não sei porquê: as marchas populares. Juntam-se várias entidades, várias associações, que gostam, que estão interessadas. Junta-se a Câmara. Há um bolo, há uma água da poça para todos. E então cada um, perante um mote próprio, sei lá, aquilo pode-se de hoje para amanhã, criar uma nova forma. Mas vamos, faz-se festa e só não vê quem não quer ver, não é quem não vê, que o que é que uma marcha faz, ao sair de lá de cima do campo das festas e vir até ao Pelourinho e ver aquele mar de gente a ver, que vem ver. Se vêm ver é porque gostam. E a Câmara sente-se ufana, mas são as coletividades, são as associações que estão a fazer todas um trabalho, cada um. E as pessoas vêm, as pessoas aderem. Porque há um objetivo, de fazer festa.
Agora, aquilo que o João dizia é verdade. Se não houver um impulso que dê dinâmica a estas casas, morrem. E morrem porquê? Porque pode haver a cristalização dos órgãos. Isto chega a um ponto que também aborrece. O João esteve aqui muitos anos na direção. Eu tive mais tempo, eu cheguei a um ponto... muitos anos na casa que sentia-me preso, e agora? Não há gente nova e nós, não é que não gostemos da casa, mas o gosto que nós temos por esta casa é, digamos, é ultrapassado por aquilo que nós queríamos, de que outros viessem com novas ideias, como uma forma de estar... E não vêm, não há. E entra-se numa direção com nove elementos e é só quatro ou cinco que às vezes aparecem, sabe Deus com que sacrifício. Porquê? Porque eles próprios também, quando se juntam aqui e… eu não sei o que é que... O João nisso teve muito mais tempo na parte da direção do que eu, mas via, também sei ver. Chegava a um ponto que também se disse: enfim, mas vou trabalhar para quê? Havia a própria pandemia, veio estragar ainda mais. Nós tínhamos aqui a beleza dos Santos populares, aqui neste espaço que depois nós vamos ver, onde fazíamos as sardinhadas, fazíamos essa festa, e isso dava-nos ânimo. Vinha muita gente para a coletividade, sei lá, mais tarde, então vinha, só que veio a pandemia, retirou-nos gente. Agora estamos novamente a começar e, claro, há um elemento que sempre frutificou no associativismo, que é a taberna. A taberna sempre cá ficou. Em todas. Uma associação que não tenha um bar não progride.
João José Silva: Em parte, um bar é na realidade...
José Marques Martins: Um bar é que chama... é o café, a cerveja, as bebidas...
João José Silva: Porque as bebidas são mais baratas...
José Marques Martins: Vem desde os primórdios.
João José Silva : Sim, já vem.
José Marques Martins: Então, o bar tem que lá funcionar, se houver uma associação sem um bar… Nem que lá haja uma máquina de café.
João José Silva: E quando refiro aqui, com pena, que digo que as coletividades têm tempos difíceis é que reparo, e aqui o José Marques é da minha opinião, é que não há pessoas a quererem colaborar. Hoje é… quanto é que é? Não há dirigentes E aí a Confederação, e muito bem, tem trabalhado no sentido de que, aliás já há o estatuto de dirigente associativo… Mas porque é que o dirigente associativo, que ocupa um pouco da sua vida, que quer queira quer não, nós andamos aqui uma vida, nós prejudicamos até inclusivamente o ambiente familiar, porque não estamos lá, porque aqui era a nossa segunda casa. Porque é que não há-de haver um incentivo para que as coletividades se mantenham abertas?
José Marques Martins: Os governos pecaram. Eu não estou a dizer para nos darem uma reforma, nem nada disso.
João José Silva: Porque hoje nota-se as dificuldades. Por exemplo, a Covilhã é rica em associações, como a doutora sabe. Neste momento, posso-lhe dizer que amanhã há Assembleia geral do Grupo, ato Eleitoral para os órgãos sociais, novos órgãos sociais. Posso-lhe dizer que amanhã há n associações que estão precisamente nessa situação: umas não têm direção, têm comissões administrativas, outras têm uma direção, mas à última da hora um não quer, desiste. É essa a parte, e o que é que a quantidade pode oferecer neste momento?
Eu muita vez comentava para o Zé Marques, que é a pessoa com quem a gente, com quem a gente lida e eu lido muito bem, porque é um homem com muita cultura, fez coisas belíssimas aqui no Grupo Rodrigo, o Grupo do Rodrigo muito lhe esta agradecido, é verdade. O que é que o GIR pode oferecer às pessoas para virem à coletividade? Televisão... Aliás, a Confederação pôs aqui um posto público [de internet]. Nós tivemos um posto público aqui, na altura, com computadores, oferta pela Confederação, e também a parte dos instrumentos musicais.
José Marques Martins: Tu estás a tocar num ponto importantíssimo, que é verdade. O dirigente associativo devia ser considerado, não devia ser só considerado na altura de eleições, nem só para grandes discursos escritos ou orais, através da rádio. Mas devia ter uma dignificação diferente. Nem que para isso tivesse que ter, e eu comungo disso, ainda há pouco tempo tirei um curso de evacuação, por causa de defesa de incêndios. Porquê? Porque estou a presidir a um lar e é uma unidade de idosos e de crianças e, portanto, preciso também de saber um pouco disso. Isso significa o quê? Que o dirigente… e sou voluntário, portanto, vamos cair no voluntariado. Ser voluntário significa algo que nós darmos de mão beijada sem ser à espera de usufrutos para o próprio, é para o bem comum. Isso é ser voluntário. Voluntário é quando damos alguma coisa para o bem comum. Agora, o problema é quando, e muitos pensam hoje que se vem para estas casas, para se atingir, digamos, uma elevação, portanto, um posto. Não pode ser. Se vêm com isso, não vale a pena virem. E, por isso, o dirigente associativo tem que ser alguém que tenha que ser dignificado. Como? Há muita forma. Não é com dinheiro, não é com salários, não é nada disso. Mas há dignidade e há posturas e o dirigente associativo teve muito… e há muito que é louvado pelas autarquias. As autarquias devem louvar os dirigentes associativos. E devem louvar por várias maneiras e posso-lhes dizer como é que podem e quais são as razões, por que é que os levam a isso. O que é que nós podemos oferecer? É a pergunta que se coloca: o que é que vocês lá têm para eu ir lá poder ir. Essa é a pergunta que fazem lá fora: o que é que vocês lá têm? Então temos que criar aqui. As autarquias também têm que entender que nós temos instalações onde podemos dar possibilidade de... dar formação, dar informação, fazer formação, fazer apresentações de pinturas, tanta coisa que se pode... se cá vierem hoje 15 indivíduos ver uma sessão de pintura ou uma sessão de leitura, vêm só cá 15 hoje, mas na próxima já vêm sessenta, porque são os 15 vezes 4, ou seja, se a coisa for bem clara, se houver aqui algo que lhes possa oferecer, caramba, custa assim tanto oferecer umas bolachas e um bolo e um porto para as pessoas aparecerem? Quer dizer, não é isso que lhes vai encher o estômago, mas é uma forma de acolher, uma forma de acolhimento e fazer uma leitura, por exemplo, ou mandar uma informação com as vacinas, com tanta coisa que nós temos, tantas dependências que são gratuitas para as autarquias.
João José Silva: O GIR sempre soube receber bem.
José Marques Martins: E onde os órgãos de certeza que se disponibilizariam, de acordo da sua especialidades, a ajudar, mas não, prefere-se pagar. Não estou a dizer que não se pague, tudo bem, mas existem possibilidades. Era uma forma de as associações estarem a servir o bem comum.
Se as próprias autarquias não nos dão... Se só estão à espera que a gente lá chegue com o boné na mão para pedir o subsídio. Eu não gosto muito disso.
00:20:18 Joana Dias Pereira
Então vamos voltar ao passado, pode ser? Embora esta conversa sobre o futuro seja também muito importante. Mas há bocado estava a dizer que também tinha estado antes do 25 de Abril no sindicato.
João José Silva: De 1964 a 68.
P: Que responsabilidades é que tinha?
João José Silva: Eu era um escriturário na altura em que andava assim: eu batia à máquina. 10000 associados que tinha o sindicato, porque eram umas folhas que a gente punha o número daquele operário, a empresa… Por exemplo, posso-lhe dizer: a Nova Penteação, na altura a Penteadora, a Ernesto Cruz, o Alçado e Filho, a Lano Fabril, eram empresas com muitos trabalhadores e eu, a minha função era trabalhar nessas folhas, escrevia os nomes um por um.
Joana Dias Pereira: E depois também esteve no sindicalismo, depois do 25 de abril?
João José Silva: Estive. Fui dirigente sindical em 80 e picos, fui dirigente sindical, estava na área da saúde. E na altura o Mota, que era o responsável daqui do distrito de Castelo Branco, convidou-me e estive ainda… fiz o mandato de dois anos assim. Estive ainda ...
P: Mas eram realidades diferentes, o sindicalismo antes e depois.
João José Silva: Muito diferente. Também a verdade é que às vezes os horários... eu era assim, eu quando aceitei ser dirigente sindical pus essa logo ao Mota: eu não vou tirar tempo nenhum ao trabalho. Eu vou ser dirigente, sim senhora, com muito gosto, mas só vou às vossas reuniões, aos vossos congressos quando tiver folgas ou disponibilidade. Não quero meter nenhum documento a dizer que eu tinha direito a determinadas horas e determinados dias. Nunca, nunca, é assim, como diz aqui o Zé Marques, nunca me aproveitei, nunca precisei de nada para me promover, porque tinha a vida feita. Eu nunca, mesmo a nível do Grupo do Rodrigo, mesmo a nível de política, e o Zé Marques sabe perfeitamente, tivemos ali, colaborámos bastante, andámos ali…
P: E estiveram noutras associações para além do GIR?
José Marques Martins: Dirigente associativo, nunca fui, nunca fui. No serviço do meu do Instituto estive, mas isso...Agora, fora disso, sou sócio, mas não como órgão, lá dentro não…
João José Silva: Eu faço parte de três.
José Marques Martins: Trabalhei alguns anos na Liga Portuguesa contra o Cancro, mais tempo. Depois deixei, na altura em que a minha mulher adoeceu, e passei para outra área, para esta área do diaconado. Mas outras não, porque quer dizer, ou se trabalha numa... isto é como os presidentes administrativos das empresas, ou é um ou é outro, e depois andam a buscar daqui e dali. Havia lá… ainda bem que havia outros. Hoje, possivelmente, se nós se nos convidassem para ir para outras instituições… Mas também já não temos... Eu, pelo menos...
P: O João disse-me que estava também na Liga...
João José Silva: Estou, faço parte, faço voluntariado na Liga Portuguesa contra o Cancro, com muito gosto. E agora, sem ser…, fui convidado para fazer parte da Associação de Diabetes da Serra da Estrela. Estou a colaborar, aliás, sempre gostei de servir a comunidade, faço isso com um amor e carinho… E aí é, também um pouco da minha da minha vida. O Zé Marques teve uma vida muito mais ocupada, é uma sorte, mas ele faz muito bem o que faz e também é uma pessoa, não é por estar aqui presente, mas quero lhe dizer que é um homem com muita valia...
José Marques Martins: Eu entrei para o diaconado, entrei para esta coisa, porque me interessei e estou a trabalhar em várias paróquias e faço a assistência espiritual também na prisão, o que me dá… Ensina-nos saber a vida deles, porque caíram ali, como caíram, o que é que faziam e, portanto, todos nós ficamos com essa ideia. Por outro lado, a nível da minha profissão no instituto, nós ouvíamos aquilo que as pessoas nos diziam e nós éramos túmulos, ou seja, só púnhamos na ficha aquilo que interessava e que era corriqueiro para outro colega ver. Mas, por exemplo, ouvíamos desabafos. Nós passamos aqui alturas de grandes crises, era cíclico, de três em três anos a têxtil tinha uma crise.
João José Silva: E vai-me desculpar, na altura em que estive no sindicato, quando o Martins falou em 60 fábricas, upa, upa. Eu estive no sindicato, na altura eram 123 firmas. Claro que a gente… havia firmas que só tinham cinco teares ou tinham 10 trabalhadores, mas eram consideradas as firmas: 123 firmas, todas elas. Algumas eu recordo perfeitamente.
José Marques Martins: Depois veio a crise das confeções e havia coisas deste género, havia desabafos. Eu estive numa Assembleia, pertenci a uma Assembleia Municipal que esteve retida. Trabalhadores de uma empresa não nos deixaram sair. E ouvia coisas, deste género, naquela altura havia a possibilidade de uma empresa que tinha 700 ou 800 trabalhadores, para poder vingar, tinha que pelo menos metade vir para o subsídio de desemprego e ficava lá outra metade. Então ouvia-se isto: ou vêm todos ou nenhum! Quer dizer, ouvia-se isto, era uma forma de estar. As pessoas… quer dizer porquê? Porque não havia uma informação que fosse transparente e concreta cá para fora, é preciso que seja feita desta maneira. Como agora com as vacinas, quando as informações vêm para o exterior como deve de ser, o povo até aceita. Quando não vêm...
João José Silva: Aliás, o GIR teve aqui nas suas instalações, durante algum tempo, as formações dessas pessoas, como diz o Martins: vais para o desemprego... E eram colocadas aqui a fazer formações que não tinham nada a ver com a profissão que tinham.
José Marques Martins: Nós tínhamos outras entidades e isto era assim: as entidades que nos abriam as portas e que nos facilitavam mais a vida tinham condições. Por outro lado, também havia esta possibilidade de, depois, quando elas começaram a fechar, porque ao princípio as mães, sobretudo as mães e os pais, a menina ou o menino, tinham o quinto ano, tinham de ser telefonista ou empregado de escritório. E eu, tanta vez que eu dizia para elas e para eles: por isso esqueça o emprego de escritório e esqueça o telefone, porque os deficientes também têm o direito a irem para o telefone e nós tínhamos um telefonista. Preparem-se para serem desenhadores, para serem modelistas. Tirem um curso de modelista. Mas porquê? Vêm aí as confeções, começaram a vir as confeções em grande. Claro que depois tiveram que ir tirar o 12º ano para serem modelistas, quer dizer. Portanto, houve um crescimento.
P: E como é que era? Como é que se viviam aqui as greves, as lutas? Isto é uma zona muito operária...
José Marques Martins: Tem graça, os primeiros mil escudos… Logo a seguir ao 25 de Abril, tivemos então, houve ali um aumento de mil escudos. A Covilhã sempre teve essa fama.
João José Silva: Houve uma greve muitíssimo forte, já lá vão uns anos, ainda no tempo do Estado Novo.
José Marques Martins: E antes do 25 de Abril, eu lembro-me, não estava cá a viver mas lembro-me de que a Covilhã… Havia aqui umas reuniões que se faziam.
João José Silva: Porque era muita gente aqui, na altura o movimento operário era fortíssimo, fábricas com 700 e 800, e depois não era só, eram famílias completas...
P: E isso vivia-se aqui no grupo, como é que era?
João José Silva: Sim, sim, aqui, portanto, no grupo entrava-se, comentava-se às escondidas, sempre com receio que o parceiro que estivesse ao lado fosse denunciar, que estava numa reunião, que se ia fazer uma greve.
José Marques Martins: Sabia-se, primeiro porque havia a parte clandestina e numa empresa é muito fácil e havia códigos próprios. Eu recordo-me, lá para os meus lados havia pedreiros, e tinham um código próprio. Quando o patrão chegava, eles tinham um linguajar próprio e as regiões tinham um linguajar próprio, ou seja, uma forma de se exprimir com uma certas palavras que só eles é que entendiam. Quem estava fora ouvia, mas não percebia. E isto é como eu digo muitas vezes, como se diz na Sagrada Escritura, mas não percebem. Só quem é de dentro é que percebe e, portanto, aqui também é a mesma coisa, nas fábricas, nas associações, comentava-se, mas de maneira a que...
João José Silva: Até porque nos seus órgãos, a maior parte deles eram trabalhadores, eram pessoas da indústria de lanifícios, estavam ligados, quer queira quer não, direta ou indiretamente, ligados ao movimento operário, que era forte.
José Marques Martins: E havia outra coisa. As famílias eram muito unidas, ou seja, não, não iam, não havia tantos problemas para onde se ir buscar e falar na vida dos outros. As pessoas não falavam, não comentavam, com receio de que lhes caísse em casa algum agente.
João José Silva: Claro, a gente sabia aqui no Rodrigo quem é que era da PIDE. Estava sinalizado, a gente sabia, mas não tínhamos a garantia absoluta....
José Marques Martins: Eu cheguei cá, chego aqui em Novembro, e em Dezembro sou avisado, alguém me avisa de dois indivíduos da PIDE, alguém me avisa: cautela com sicrano.
João José Silva: Nós tínhamos ... estavam sinalizados por nós, tanto que quando eles entravam aqui… uns não entravam porque não eram sócios e aqueles que entravam, recordo...
José Marques Martins: Nós conversávamos, ouvíamos, mas para com ele parava, ali as coisas paravam.
P: E nessas greves que duravam muito tempo, não havia movimentos de solidariedade para as famílias grevistas?
José Marques Martins: Havia, eu lembro-me, por exemplo, na questão de quem tinha crianças e que as mães não podiam ter leite para as crianças. Então havia os leiteiros, havia uns indivíduos que andavam aí com os potes de leite. E portanto, ouvia às vezes com visitas destas… Não, não, hoje leite tem que ser… só lhe dou tanto, porque a fulana tem lá uma menina pequenina e não ganho nada, o próprio leiteiro tinha assim... e nas lojas nas lojas havia o fiado.
João José Silva: O próprio GIR oferecia no início de cada ano letivo. Oferecia aos filhos dos associados esses livros, àqueles que tinham mais dificuldade.
José Marques Martins: Pois, deixa-me ver, os vicentinos, nós ajudávamos muito. Os vicentinos são... ainda hoje, nós temos grupos que em que temos esse objetivo, nós temos aí zonas e temos famílias a quem ajudamos, quer com pagamentos de água e da luz, com os remédios e também com alimentos. Quer dizer, para além do Banco Alimentar, que aparece.
Mas quando é nessas alturas, nós… quer dizer, ainda se aparece mais e depois até a própria génese das pessoas que vivem aqui, mesmo aqueles que não sendo de cá, mas que já são de cá, por exemplo, o Bairro do Rodrigo, estas casas que foram depois criadas já para outras pessoas que vieram para cá, até eles próprios, portanto, criaram esse élan de ajudar.
João José Silva: E as comissões de moradores e tal, que na altura surgiram… O Rodrigo era um bairro operário. Ninguém lá morava que não fosse operário, exceto as quatro professoras da escola oficial.
P: A comissão de moradores foi fundada quando?
João José Silva: Foi em 76.
José Marques Martins: Sim, certo, fizeram-se coisas bonitas também. Nós fizemos coisas interessantes. Aumentámos a escola e havia um Jardim infantil para onde iam os miúdos. Criou-se aqui, ele começou aqui. As festas populares que se faziam dos Santos,
criámos uma casa mortuária aqui para o bairro, as festas populares de Santo António, onde a coletividade também teve um papel importante, e fizemos um trabalho… Sei lá, a gente diz assim, conseguimos reunir pessoas, mas nós éramos duros. O objetivo tinha que ser cumprido e às vezes afirmávamos: aquilo tinha que ser cumprido, isto é assim e cada um tinha a sua função.
João José Silva: O GIR teve sempre uma ligação à comunidade muito forte. Isso é anteriormente, já não é do tempo dos Zé Marques Martins, porque é uma pessoa que apareceu na cidade em 1973. Antes havia uma festa, que chamavam a festas Zacarias, essa festa, era a festa de chamávamos Zacarias, porque ele é que era o grande impulsionador, um homem ligado ao GIR, mas era a festa das florinhas da rua. Então ele fazia essa festa, ia pelas quintas, dos associados e não só, pedir determinados alimentos e depois vinha para a festa para fazer oferendas. Aquilo era leiloado e o valor daquelas oferendas era entregue às florinhas da rua, que era uma instituição de solidariedade social, onde tinha crianças abandonadas.
José Marques Martins: Essa festa depois foi recriada, recriei-a eu, durante três anos, para fazermos a casa mortuária e a Igreja, também fazíamos os tais leilões e depois fazia-se essa festa e a Festa de Santo António, e fazíamos grandes festas, que vinha para aí gente… Porque é que elas morreram? Morreram porque, quando nós olhámos, foi aí que começámos a notar, que se começou a ver o decréscimo dos órgãos diretivos, das pessoas. Começámos a olhar para o lado, ao princípio juntavam-se ali seis ou sete, oito ou nove ou 10, e depois começámos a olhar para o lado e só havia três ou quatro e depois quem ia já não estava interessado. E depois aquilo tirava-nos tempo, porque as famílias… E por isso é que no associativismo a família tem um papel importante. Nós estamos a falar de dirigentes associativos., A família associativa é para criarmos família, mas as nossas famílias eram o nosso alicerce: olha que eu só chego às tantas horas para comer, olha que eu não sei quê, as nossas famílias eram... Um bom dirigente associativo tem que ter atrás uma família capaz de aceitar e ver as dificuldades que às vezes… às vezes eram três da manhã ainda estávamos aqui... Hoje as famílias destroem-se e não estão tão...
João José Silva: Hoje é completamente diferente. Por isso é que eu digo, com pena, que as coletividades têm que seguir para outro caminho, como diz o Zé Marques, com outros eventos, outras ideias, ou então… Porque não há ...
P: Isso, as mulheres não vinham também?
José Marques Martins: Vinham, sim. As senhoras vinham com outras, não vinham para… Depois, mais tarde, passaram a vir também para órgãos diretivos, mas lá mesmo não se sentiam assim tão bem.
João José Silva: Não, não era fácil arranjar mulheres para os órgãos sociais.
José Marques Martins: Por exemplo, havia um evento, havia o teatro ou havia dança. Vêm as mães com as meninas, vêm as mães… Havia as marchas, até máquinas de costura para aqui vieram para costurar e, portanto, elas colaboravam naquilo que os maridos estavam.... Nós planificamos tudo bem, também entrávamos, mas elas lá faziam, lá compravam, não sei quantos, e aquilo aparecia feito. E depois, no fim, quando fazíamos a festa, de tudo cumprido, dizíamos uns para os outros: epá, mas a malta parece que não fez assim tanto, podíamos ter feito melhor. Quer dizer, tínhamos feito uma coisa em beleza, mas no fim, dizer assim, podíamos ter feito melhor.
João José Silva: É, o movimento associativo é....
José Marques Martins: Hoje não. Hoje faço uma coisa: pá, somos os melhores. Não, aquilo era...
João José Silva: Hoje é assim, não se faz, manda-se fazer. É o grande problema...
José Marques Martins: E depois aparece feito. Há alguém também que faz e esse alguém que faz começa a fugir. O indivíduo, as coisas aparecem feitas, mas o indivíduo começa a fugir. Espera aí, sou só eu? Começa a olhar para o lado e diz assim: mau! Porque depois é aquele que é fustigado, e então começa: não posso. Declina, porque o outro não sabe fazer, porque nunca quis aprender a fazer, porque isto é como os dirigentes associativos, quem vem de novo não é um dirigente associativo sem mais nem menos, tem que se ir modulando e formando com os mais velhos. Porque vai gerir recursos humanos. Ali fora, às vezes há disputas, há bocas, há um ou outro que se porta menos bem, que diz alguma coisa diferente e ser dirigente associativo é saber conciliar às vezes as diferentes ideias. Ser capaz de dizer assim: ele tem razão, realmente é verdade, isso é que é. Ser dirigente associativo não é chegar aqui e dizer assim: vamos fazer aquilo e aqueloutro. Tenho que ir à procura de recursos e saber gerir, e saber gerir é saber chamar as pessoas para um objetivo comum e quando é preciso fazer um objetivo comum, de certeza que se faz. Uma coisa que esta casa sempre teve foi isto: caiu o telhado aqui três vezes, não foi, e as pessoas apareceram.
João José Silva: Uma solidariedade enormíssima, arranjar forças e pessoal, a gente ficou surpreendida mesmo.
José Marques Martins: Havia um objetivo, eles viam que os dirigentes trabalhavam, nós saíamos do nosso serviço e vínhamos para aqui trabalhar: caramba, vamos lá ajudá-los. Eu tenho um exemplo concreto disto, e o João... na direção a que presidi, na altura, eu recordo-me que nos festejos populares, aqui sempre foi uma casa que teve grandes festejos, mas eu recordo-me que nesses anos, e é a experiência que tenho, de quando chegava aí às cinco horas da manhã, seis, e já havia mesas livres, eu pegava num balde de água e limpava as mesas para arrumar e diziam assim alguns colegas meus: epá, deixa isso, amanhã à tarde… E eu assim: não, se fizermos isso agora, a malta dorme melhor. Porque vamos descansados com isto limpo e ninguém saía daqui sem estar tudo limpo e lavado. E foi uma imagem que pegou. Todas as outras direções que vieram, na sua grande maioria, terminavam os festejos e, em vez de se irem ali sentar,, era mais um esforço, eu sei que era, mas também no outro dia, quando aqui chegavam à tarde, para outro dia de festa, era só pegar. Era um sacrifício, mas quer dizer, mas trabalhávamos.
E quando, eu lembro-me de estarem aqui sócios assim: Epá... E havia sócios que: vamos lá dar uma ajuda, andam ali aqueles pobres sozinhos. Quer dizer se nós: Epá deem aqui uma ajuda. Olha, então aqueles não querem fazer nada e agora querem que a gente la vá? Portanto, isto também é ser dirigente associativo...
P: Dar o exemplo, não é?
José Marques Martins: Sim, porque, ora bem, se nós não dermos o exemplo, os mais novos não vêm…
João José Silva: Muitos horários seguidos eu fiz no hospital, porque vinha para aqui trabalhar... Ai é? Queres dança? Então agora vamos fazer 16 horas. Trocava horário para jogar ...
José Marques Martins: O João José, aqui na casa, também passou por aqui e sabe muito bem das dificuldades... E quando às vezes nos pedem… Quer dizer, nós gostamos da casa, gostamos da casa, mas já demos muito pela casa e temos pena que um dia possa fechar. Mas, se pudermos colaborar, contribuir para que isto cresça...
João José Silva: E penso que estamos habilitados para, de alguma maneira, responder àquilo que é solicitado: um pouco da história do GIR, o que ele foi, o que fez. O que poderá vir a fazer, aí já é com as direções...
José Marques Martins: Com as direções, uma ova, com os sócios, a casa faz-se com os sócios. Isto é, a direção pode querer uma coisa e os sócios não. Temos aqui 50 melros e queremos fazer uma coisa diferente…
João José Silva: Sim, sim, mas a direção é que decide.
P: Mas vocês também se organizam em comissões, por exemplo, o teatro?
José Marques Martins: Nessa altura tínhamos as comissões, inclusivamente nas festas, havia comissões, mas havia muita gente, sobretudo nova. Quando eram as festas, quem que nós íamos buscar? Gente nova e fazíamos essas comissões e as comissões criavam o programa. Depois foi o que se… Quem estava à frente das comissões, se começava querer ser independente em demasia, a direção às vezes era ultrapassada e quando dávamos por ela já havia compras feitas assim sem dizer. Agora, no teatro criou-se um grupo muito homogéneo nessa altura.
P: Foi em que altura, na década de 70?
José Marques Martins: Sim, 60-70...
João José Silva: 70 e tal. Não, isso talvez fosse em 80, foi 70-80… E daqui saíram alguns casados e namorados.
José Marques Martins: Casaram. Namoraram e casaram. Porque nós andamos por vários locais a levar o teatro e foi numa altura complicada, porque foi o 25 de Abril, em que nós, eu recordo-me, até tenho uma história, que eu até vim mais cedo para cima, porque foi na altura do 11 de março, que essas histórias todas que houve, e eu estava em Évora a tirar… Uma coisa era a animação cultural, que era o Brecht, que nessa altura era o mais importante, mas quer dizer havia a parte política também que se metia em todo o lado. E aí eu nunca, nunca, nunca enveredei por esses caminhos assim um bocado tortuosos, porque isto era assim, isto é quem quer mentir vai para… sem ofensa para os políticos que todos nós somos um pouco, mas é verdade, promete-se, se pudermos fazer depois mais tarde fazemos. E eu às tantas dizia assim: eu não posso ir aí para a gente, para as aldeias, dizer que arranjo emprego para toda a gente, porque isso é mentira. Eu não posso ir mentir, portanto nós… e estou a dar este exemplo. Isto para dizer que ou se tem vocação para aquilo que é ou então não se anda a fazer e, portanto, uma coisa é realmente ter vocação. A minha esposa e outras senhoras é que pintavam, faziam os vestidos… Se não fosse isso, morria. Então, eu não tinha tempo para, quer dizer: camarim, dá-me, entrega, ABC desenrasquem-se, não sei quê, desenrasquem-se. E pronto, e depois aquilo aparecia, as coisas apareciam e nós confiávamos e não invadíamos a esfera uns dos outros. Ou seja, ela vinha pintada com uma sobrancelha preta e outra… Nós confiávamos, porque todos queriam que saísse o melhor possível. E quando o João diz que, todavia, saíram daqui dois ou três casamentos…
João José Silva: Sim, sim.
José Marques Martins: E depois era muita gente. Nós tínhamos 30 ou 40 elementos e a nossa maneira de gerir todos para...
João José Silva: Dava-nos o prazer de escolher o melhor.
P: E eram operários?
José Marques Martins: Operários, filhos de operários eram todos, e havia um mestre, havia um, sim, mas que tínhamos que gerir aquilo de tal maneira a que ninguém ficasse ofendido. Eu não podia chamar aquele por ser muito bom, tinha de arranjar ali, às vezes, papéis secundários. Mas chegava a um ponto em que era tanta gente…
P: O José fazia de encenador, encenava?
José Marques Martins: Sim, sim, exatamente.
P: Que peças é que encenaram?
José Marques Martins: Oh, sei lá… Os dois irmãos gémeos, um era patrão e o outro era empregado, eram gémeos mesmo. E depois fazer o papel de patrão, de ditador, e depois quando mudavam, já na parte da democracia, ver as diferenças... Depois havia um debate a seguir. Uma outra peça, que foi muito importante, que era aquela que tinha três atos que teve para aí. Depois, nós até fazíamos aqui um teatro que demorava três horas ou mais, nós tínhamos a sala cheia, que era a casa do mestre Simão, era uma delas, eram três atos. Outras que foram encenadas, poemas, havia, sei lá, havia poemas, por exemplo… cantos, danças. Depois começou a haver a parte da dança e depois, claro, as coisas foram mudando, mudando, mudando, estão a ir...
João José Silva: E a seguir foi feita aqui uma grande peça, Jesus Cristo.
José Marques Martins: Também fizemos essa peça de Jesus Cristo superstar, ainda temos aí. O Cristo era um colega, o nosso motorista, o Rui.
P: E faziam debates a seguir às peças?
José Marques Martins: Começámos a fazer os debates já mais com essas do Brecht, porque estava o povo, já mais… em 76/77.
P: Era uma altura em que também as pessoas estavam mais interessadas nessa?
José Marques Martins: Já estavam mais, porque aqui, nós não entrámos logo aí. Entrámos naquela, porque aí o povo começou a querer ufa, ufa, quer dizer abriu-se, porque até 78-77, apesar de 74, 75, 76, ainda...
João José Silva: Ainda estava tudo muito...
José Marques Martins: Mas depois, quer dizer, voltámos novamente e a pôr peças... Fizemos uma sobre as doenças transmissíveis nessa altura também.... Mas era demasiado forte, porque as pessoas tinham medo de fazer perguntas. Olha lá, o que é isso? Sabia-se que, à boca fechada, que a pessoa sofria disto, das doenças transmissíveis ou sexuais, mas não era fácil em público fazer...
P: Então já falaram várias vezes que nesse período pós 25 de Abril, esses anos são anos de grande efervescência cultural e da participação das pessoas. O que é que recordam assim mais marcante desse período?
João José Silva: Não quer dizer que antes não tivesse sido marcante, antes do 25 de abril...
José Marques Martins: Antes de 73, era marcante, mas vamos lá ver, houve uma grande mudança, houve. Eu recordo-me que eu fui trabalhar de manhã… Eu em 73, como disse, vim. Em 74 estava em Janeiro, estava na feira das indústrias, em Lisboa antiga, e tinha uma colega que era a Zélia, a Zélia que era mulher do Zeca Afonso. E quando viemos fazer a nossa visita a Vendas Novas, ao centro de formação, eu vim no carro dela. Vinha ela e vinham mais dois colegas, e ela, há uma frase que é dita na altura, mas que passou-me ao lado. Estávamos a falar que tínhamos vindo lá de forma, que enfim, muitas dificuldades que tínhamos, não sei quê. E ela sai-se assim: é, mas não vai ser por muito tempo.
João José Silva: Não estava Longe.
José Marques Martins: Nem eu sabia que ela era a mulher de Zeca Afonso, que eu não sabia, sabia que era a Zélia, pronto. Quando depois se dá o 25 de Abril, depois conversámos por telefone e quando nos encontrámos novamente e quando eu soube que era... depois a gente começa a associar. “Não vai ser por muito tempo”, porque já sabia, quer dizer. Quando se dá o 25 de Abril, as pessoas, ao princípio: ah, fica em casa. Mas depois estávamos agarrados à televisão, como estávamos agarrados à BBC de Londres e à Rádio Argel. Eu era daqueles que estava sempre agarrado à Rádio Argel, a ouvir, e a BBC. Eu arranjei um rádio pequenino para ouvir isso, portanto, havia uma ânsia que estava cá dentro. Dá-se o 25 de Abril, dá-se essa possibilidade, e as pessoas, quer dizer, libertam-se...
João José Silva: Com o enjeitamento que houve após o 25 de Abril, nada contra os partidos, mas houve um enjeitamento...
José Marques Martins: As associações crescem, as associações dinamizam-se muito mais, porque as pessoas já falam mais à vontade, já vêm mais à vontade, já vêm ler, já vem perguntar, já vêm que há mais abertura e já se fala sem medo. E aquilo que mais fez com que as associações crescessem foi a liberdade que apareceu, a liberdade de as pessoas se exprimirem e expressarem-se de toda a forma.
João José Silva: Após 25 de Abril, isto era quase todas as semanas, os partidos políticos queriam fazer aqui comícios, congressos, conversas. Alguns outros nem tanto porque, pois começou aqui a surgir o problema de que se o GIR vai ceder as instalações a um determinado grupo político tem que deixar...
José Marques Martins: E aqui nesta casa fez-se, quando ali a capela estava em obras, a eucaristia. E sempre se disse: não, vem para cá, mas também vem para cá uma outra religião, fazer também o seu congresso. Toda a Gente tem direitos, aqui é para sócios, sejam eles o que sejam.
João José Silva: Tanto era o PCP, como o CDS, como o PSD....
José Marques Martins: Aliás, os estatutos dizem isso: não tem credos nem filosofias políticas. E entram aqui sócios de toda... Agora se me perguntarem assim, se para cá viesse a extrema-direita ou alguma coisa com... Também temos nos estatutos como objetivo a defesa do bem comum.
E, portanto, temos essa possibilidade de… As pessoas abriram-se, as pessoas aumentaram, criou-se uma nova forma também de estar na vida. Falava-se mais, começámos a conhecer as dificuldades e os anseios de várias... as festas eram diferentes. Havia, portanto… houve uma abertura mesmo entre os bairros, quer dizer, houve uma explosão, primeiro de alegria. Depois vieram os anos difíceis e quando vêm os anos difíceis, nomeadamente quando vêm as crises e então numa terra destas em que tem uma mono indústria... Apareceu a Universidade, que veio dar vida à cidade, porque isto era uma aldeia pequena. A Universidade veio dar uma vida aqui à Covilhã…
P: Estava a falar da abertura das associações e lembrei-me de uma coisa que referiu há bocado, que tiveram uma articulação com a associação mutualista. Como é que isso foi?
João José Silva: Sim foi. Aliás, eu não tenho conhecimento pessoal, mas sei pelo que me contaram, pessoas que passaram por aqui, dirigentes e não só. Eu posso lhe dizer que, por exemplo, a Associação de Socorros Mútuos emprestou, em determinado ano, um valor de cem escudos, está aí um documento, cem escudos, para que se fosse concluído o resto da obra.
José Marques Martins: Nós servíamos aqui de depósito, de certa maneira, daquilo que eles não tinham condições. E então nós, o grupo, era aqui que eles tinham a sede. A Cruz Vermelha também passou por aqui.
João José Silva: Há uma outra associação que foi formada aqui também, a APPACDM, foi criada aqui. Mas essa dos 100 escudos tem a ver com a mutualista. Porquê? Porque na altura, um ou dois dirigentes do Grupo Rodrigo, por exemplo, estou a lembrar-me do [...] e outros, o [...] e não sei quê, eram dirigentes da associação.
José Marques Martins: Na Cruz Vermelha também se deu o caso, dirigentes desta casa eram dirigentes da Cruz Vermelha.
João José Silva: E, na altura - só para concluir, desculpa - o GIR estava com problemas financeiros para pagar determinado valor e a Associação Mutualista Covilhanense, era assim que se chamava, emprestou ao GIR essa importância, que depois foi paga, há aí um documento, está devidamente aí contabilizado
P: E o próprio GIR? Estávamos ali a ver que também tinha uma função, também tinha essa vocação mutualista, não é? Pelo menos com a questão do subsídio de funeral?
João José Silva: Não havia previdência, a previdência aparece em 1961.
José Marques Martins: A lutuosa aparece para ajudar os funerais, para levar as carretas, porque as famílias não tinham dinheiro: eram 500 escudos, ou 1000, pronto, e depois pararam quando vieram as agências.
João José Silva: As agências não se preocupavam com a previdência, que não havia na altura, preocupava-se era pedir o cartão de associado e com esse cartão é que vinha ao GIR levantar o subsídio anual, que era de 500 escudos, hoje são 1000 escudos ou cinco euros.
José Marques Martins: Hoje, praticamente, ainda está nos estatutos, mas é uma coisa que está só para fazer memória, porque a previdência hoje já funciona de outra maneira, mas está como memória porque foi essa uma das causas da nascença da coletividade. Há duas causas importantes, que é a educação dos filhos dos sócios, e aqui foram os filhos que levaram os pais. Vamos lá ver, os pais primeiro quiseram que a escola fosse aqui feita para educar os filhos, mas depois os filhos vieram para a escola oficial durante o dia e os pais vinham à noite. Os filhos é que levaram os pais a perceberam que também tinham necessidade de aprender.
P: Depois também houve instrução para adultos?
José Marques Martins: O pai e a mãe que vinham para aqui aprender…
P: Isso em que altura?
José Marques Martins: Pois, foi de 1900 a 1928, a escola foi...
P: No vosso tempo ainda havia esses cursos para adultos?
José Marques Martins: Não, no nosso tempo foi só formação.
João José Silva: A escola no GIR acabou em 1950, 49-50.
José Marques Martins: Eu aqui tenho as aulas diurnas para os filhos e as aulas noturnas, que era a dona [...], e depois a escola foi apetrechada e inaugurada pelo presidente da Câmara, o [...], em 1928, portanto, passados sete anos. De 21 até 28 funcionaram aqui alguns indivíduos a dar umas aulas que ensinavam os filhos... outras escolas. Em 1931, portanto, passados três anos, é que o governo reconhece o mérito e dá o estatuto de escola pública.
Então, nessa altura é que foi nomeada uma professora oficial, que era essa dona [...], que era a professora. Quando as escolas do Rodrigo, como tu dizes, em 50 se fizeram aqui, acabou, não tinha razão de ser.
P: Esta questão da memória já deu para perceber que é uma coisa que vocês valorizam muito. Têm ali o museu, os dirigentes conhecem a história, e acham que esta questão da memória é importante para a identidade do movimento, ou seja, os dirigentes vão passando uns para os outros este legado e é uma coisa importante, ou seja, tem aquela ideia de… isto é uma coisa que é tão antiga, esta tradição, a gente tem que continuar isto. Acham que é importante esta questão da história, o peso da história?
José Marques Martins: Essa questão está a pôr, torna-se muito importante. E pode ser até uma das formas de revitalizar novamente também o movimento associativo. Eu, para construir… Qualquer pessoa que tenha dois dedos de testa, para construir o futuro tem que viver bem o presente. E sabendo a memória do passado, aquilo que errou e aquilo que fez de bem, portanto, só assim é que se pode construir. Eu, na minha vida, costumo dizer e prego: peço perdão daquilo que foi mal feito, vivo com muito gosto o meu dia a dia e quero fazer melhor ainda no futuro, mas para isso tenho que ter um saber do que é que foi feito atrás. É altura… E eu parece-me que que nós estamos a cometer uma falha, parece-me, que os órgãos sociais estão a cometer uma falha não só aqui, possivelmente em todos, era de dar a conhecer de facto aos novos toda a história desta casa, porque muitos entram aqui sem conhecer a história, vivem de hoje para a frente, vivem este… Vem aqui ao bar um jovem, mas até aqui houve um caminho, houve um percurso e penso que nós devíamos... Nós temos isso, esta casa tem as fotografias, tem livros. Mas as pessoas não leem, não veem as fotografias e, possivelmente de tempos a tempos, devia-se até passar, sei lá, ou em projetor ou retroprojetor ou qualquer coisa do género, digamos, um tempo do que é que foi isto, como é que isto começou, o que é que era a Covilhã naqueles tempos, em 1920, fotografias daquele tempo. E depois, até, haver às vezes debate e outras coisas do género Não era preciso uma tarde, havia de chamar as pessoas mais antigas, pessoas que passaram por aqui, porque há sócios antigos que passaram e eles conheciam as histórias. E começar a fazer isto. Com quê? Com as escolas. Eu não vou chamar os do secundário nem os universitários. É mais fácil os universitários virem cá do que os alunos do secundário. O universitário já está noutra dimensão e gosta também da parte histórica. Mas as crianças das escolas, os do básico ou os do ciclo vinham cá com todo o gosto. Os professores vinham ouvir, quer dizer, era uma forma de levar os miúdos a verem o que é que os bisavós deles… Olha, o meu avô andou ali. Nós tínhamos aqui um presidente da Câmara que cada vez que vinha aqui, o Carlos Pinto: eu andei nesta escola, andei na escola do presunto, e andou também você. Quer dizer, e essa conversa levava a que, quem sabe, lá os miúdos de hoje para amanhã… Era uma forma de espevitar o gosto pela casa.
João José Silva: O problema é… Estou completamente de acordo com o Zé Marques, mas falta o melhor, falta a parte humana. Porque nós temos que ver as direções que entram para esta… para o GIR do Rodrigo ou para outro qualquer, às vezes têm tempo limitado, vêm com dois anos e por muita vontade que queiram fazer determinados eventos e dar a volta a isto, olha-se para o lado, como disse o Zé Marques: tinha cá 10 agora só cá tenho três. Onde é que estão os outros sete? Cansam-se, hoje. Eu não tenho nada contra a juventude, mas entendo que era preciso um trabalho muito forte. Falo do GIR, porque é um caso que eu conheço muito bem.Havia que procurar chamar para a coletividade pessoas que desenvolvessem esse tipo de trabalho, porque não é fácil a um dirigente associativo ir às escolas e passar a mensagem: epá vão ao GIR Rodrigo que amanhã temos lá a apresentação de um livro ou a passagem de um vídeo para se saber o historial da coletividade. Não é fácil. E o Zé Marques sabe que não é fácil. É assim, as direções são o que são. Não precisam ser doutores. É preciso é que sejam pessoas realmente com uma vontade extrema de que vem para servir a coletividade e não servir-se dela. E ao mesmo tempo, às vezes não têm tempo, trabalham, têm a sua vida. Nós perdemos aqui n horas…
José Marques Martins: Tudo se faz. Olha, vou dar o meu exemplo aqui hoje… Hoje era para estar, de manhã, eu disse para quem me telefonou: espera lá, eu tenho uma celebração às 10:00 e não tinha ainda na altura, mas tinha. Hoje estive no Pezinho. Mas pronto, chegou-se à conclusão que podia ser às 14:00. Isto para dizer que não havendo gente… Mas tu tocaste aí um ponto importante, desde que haja vontade, e de que haja pessoas capazes, nós estamos cá os dois, possivelmente se fossem outros não estariam, mas continuo a dizer que vale a pena investir nesse campo, pegar na gente nova e pô-los em colaboração com os mais velhos e com a riqueza do passado para eles verem: epá de facto estes indivíduos fizeram isto. Caramba, como é que eles conseguiram? Com tão poucos meios conseguiram… E essa é a pergunta que lhes fica e nós, com tantos meios, não conseguimos. Porquê? E aquilo entra e aquilo burila. Talvez eu fale assim, porque como estou numa instituição que tem idosos e tem uma parte infantil e a gente de vez em quando juntamo-los e os mais novitos perguntam e até fazem aquilo, andam lá de bengala e os miúdos também com a bengala atrás dele também, acho eu, a imitá-los. Mas olhamos para aquilo e, sinceramente… um miúdo pegar, vê que o avô, coitadinho, lá anda e quando andam com aqueles com uma cadeira rodas: também quero ir. Quer dizer, os minutos querem andar de cadeira rodas porque... e depois aí o professor tem um papel importante, que é dizer assim: olha, vês, quando ele era assim da tua idade, não sei quê, não tinha esses carrinhos, tinha assim outros bonecos, depois nós temos lá os brinquedos antigos. Aqui também podia ser. Era uma forma de espevitar. Porque nós… Quer dizer, está tudo à espera: quanto é que dá, como tu dizes? Não tem que dar, não pode ser… Mas é uma forma, essa questão que levantou, de que forma é que é indo buscar a nossa história… É importante sabermos a história e os novos, e nós fazermos chegar aos outros essas memórias. Se nós não perdermos, se esta casa perder a memória, esta casa fecha. Mas enquanto esta casa tiver memórias, aí a casa não fecha.
João José Silva: A verdade é que nós andamos há muitos anos, e não sei a história do grupo. Completa não sei.
José Marques Martins: Possivelmente, há muita gente que não sabe, nem os nomes dos primeiros...
João José Silva: Há muita gente que não sabe como é que isto começou..
José Marques Martins: Quando andavam aqui com obras, os livros não estavam ali no meio do lixo. Eu estava em Tondela e, quando vinha, andava no meio do lixo a tirar os livros de atas.
João José Silva: Não há sensibilidade. O que é isto? Papéis...
José Marques Martins: Nós temos que passar a memória, porque se nós não o fizemos, se esta casa não fizer memória do que foi e do que é, fechará no futuro.
João José Silva: É de salientar as pessoas que passaram por aqui e as que vierem no futuro, porque não é fácil. Não é fácil arranjar dirigentes associativos.
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3 de junho de 2021
P: Podia dizer-me o seu nome completo.
Victor Fernandes: Muito bem, eu sou Victor Manuel da Silva Fernandes, sou adjunto de chefe de secção de tinturaria há 42 anos.
P: Nasceu aqui na Covilhã.
Victor Fernandes: Nasci na Covilhã.
P: Em que ano?
Victor Fernandes: Em 1963, de pais que se conheceram nesta coletividade e se casaram nesta coletividade. Eles faziam parte do rancho folclórico. Foi aí que se conheceram e foi daí que se casaram.
P: E começou a trabalhar com que idade? Como foi a sua escolarização?
Victor Fernandes: Eu, aos meus 16 anos, estava a trabalhar, mas nunca deixei de estudar. Portanto, eu trabalhava de dia e estudava à noite. Foi um esforço tremendo. Na altura em que eu nasci, só havia 11º ano, não havia mais e depois de estar casado, e já com filhas, lembrei-me e digo: “Não fico só por aqui, vou fazer também o 12º ano e essas habilitações”, porque tenho curso geral do comércio, tenho o curso complementar de administração e comércio e tenho o técnico de secretariado. Fiquei por aqui.
P: E os seus pais, qual é que era a profissão dos seus pais?
Victor Fernandes: O meu pai era empregado de mesa e a minha mãe trabalhava numa fábrica têxtil.
P: E a sua mulher?
Victor Fernandes: A minha esposa trabalhava numa escola, na Secretaria.
P: E as suas filhas?
Victor Fernandes: As minhas filhas, uma é GNR, foi agora empossada como furriel, e a outra trabalha ao balcão de uma fábrica de panificação.
P: Só mais duas perguntas para uma questão estatística: professa alguma religião?
Victor Fernandes: Tenho uma religião, sou católico praticante e daqui a bocadinho, lá vou a mais um trabalho que tenho que fazer também dentro da Igreja.
P: E faz parte de algum partido político?
Victor Fernandes: Além tempos, fui fundador da Juventude Socialista na Covilhã. Hoje não tenho qualquer partido político. Não me revejo em nenhum partido político. Há coisas boas desde a extrema-esquerda à extrema-direita, mas não há nenhum partido que abarque aquilo que são as minhas convicções.
P: E na igreja, que responsabilidades é que tem?
Victor Fernandes: Eu faço parte do grupo Coral. Tive outras atividades. Fui catequista. Tenho curso de diácono permanente. E acho que já chega, não é?
P: Então vamos à questão da experiência associativa especificamente. Já percebi que esta propensão para se envolver no associativismo é de família, não é? Os seus pais já faziam parte...
Victor Fernandes: É, eles andaram assim por aqui. Sabe que as condições... Esta Casa estava muito dedicada aos tempos livres, à cultura e ao desporto. Nasceu a 8 de abril de 1954 oficialmente, mas já existia antes entre amigos que iam jogar um futebolzinho além, num tipo de cabeço, numa encosta de um cabeço. Portanto, este clube é muito provável que tenha nascido para aí em cinquentas, nos anos 50, ao princípio ou talvez fins dos anos 40. Começaram numa garagem, depois de uma garagem foram já para uma casinha, depois de uma casinha viemos para o sítio onde agora está esta sede, que foi deitada abaixo e agora estamos num prédio novo.
P: Essa história, foram os seus pais que transmitiram essa memória da fundação?
Victor Fernandes: Não só, nós também temos um livro escrito sobre essa situação. Temos a história dos 50 anos. Por acaso não tenho o livro comigo nesta altura, mas temos essa história também.
P: E qual é que é a motivação para além dessa propensão de família? Qual é que foi a principal motivação para ingressar? Quando é que ingressou, com que idade?
Victor Fernandes: Ora eu era muito novo, devia aí ter os meus 15 anitos. Quando faltava alguém na Assembleia Geral, já me chamavam a mim para fazer a ata, que era um bocado complicado, mas eu, como fui sempre ligado às letras, muito mais do que às matemáticas... Para mim, embora fosse novo, era extremamente fácil fazer isso. Tenho impressão de que não há nenhum lugar nesta Casa pelo qual eu ainda não tenha passado. Assim como noutras associações por onde passei.
P: Em que outras associações é que participou?
Victor Fernandes: Estive no Campos Melo, na banda da Covilhã também e fiz parte não dos órgãos sociais, mas sim de outras coisas, no Oriental de São Martinho.
P: E porquê esta multiplicidade de participações?
Victor Fernandes: Primeiro, é o gosto pessoal. Tenho muito gosto em ajudar seja naquilo que for e tenho muito gosto em estar ao serviço das pessoas. Não é uma realidade hoje, mas é uma realidade que nasceu comigo e que me foram incutindo ao longo do tempo. Nunca tive nenhuma estátua, também não a quero, mas acho que isto começou por tudo. Começou por tudo, não era só o gosto, mas depois também uma certa necessidade, porque no tempo do Estado Novo,as casas também tinham poucas condições e isto dava para juntar tudo.
Os Leões tinham chuveiro, tinham a televisão que nós não tínhamos em casa. Depois tinham a sociabilização, que nós em casa, tirando o relacionamento pais-filhos também não tínhamos outra coisa e a sociabilização é muito importante, que se vai perdendo. Hoje as pessoas não vivem nada como era nesse tempo, são mais individualistas, são mais comodistas e pouco se importam com este tipo de casas, o que é uma pena, se um dia este tipo de casas não der para fazer aquilo que têm feito.
Uma das coisas que têm feito é substituir o Estado. Não somos verdadeiramente comparticipados com valores que nos deviam manter, mas nós substituímos o Estado em muita coisa aqui, no acolhimento, por exemplo, é importantíssimo. Hoje a nossa casa é frequentada por milhares de estudantes. Antigamente era mais frequentada só por sócios e eram bastantes. Hoje deixamos que eles façam os seus trabalhos escolares na nossa coletividade. Antigamente, isso era impensável. Mas hoje têm Internet à vontade, aberta, podem fazer o que quiserem e também lhes damos algumas indicações de vida e às vezes põem-nos à frente vários problemas que nós tentamos resolver ou encaminhar para quem os resolva. Isto é uma substituição daquilo que o Estado devia fazer e não faz.
Há muitas outras coisas, que havia na altura que nós também não tínhamos em casa, quando começámos a ter televisão, só tínhamos quatro canais. Nós tínhamos sorte por ter quatro canais, eram dois espanhóis e dois portugueses. Esta zona dava para ter dois canais espanhóis e dois portugueses. Mas havia uma coisa que nós não tínhamos em casa, que era o cinema. E aqui passava-se o cinema para os sócios. É isso era uma maravilha. Embora tivesse hora certa para entrar em casa e às vezes prolongasse um bocadinho e depois vinha a ter um alguns problemazitos... Mas havia o cinema, que era uma coisa bastante importante. Hoje é precisamente o contrário, a maior parte das pessoas às vezes não vem à coletividade porque já tem demasiadas coisas em casa. Por exemplo, eu em minha casa tenho 200 canais, quando eu só vejo dois ou três, eu em minha casa tenho Internet, eu a minha casa tenho todas as condições, tenho a casa de banho, tenho tudo aquilo de que preciso.
E isso levou, como eu muita gente, levou a que as pessoas hoje não adiram tanto ao associativismo. Mas ainda há outra coisa importante para as pessoas não aderirem ao associativismo, que eu acho que é a demografia. Tudo estava concentrado no centro da cidade, hoje em dia não é assim. Porque foram criados muitas casas sociais em redor da cidade - Vila do Carvalho, Teixoso Tortosendo, Boidobra e parte cimeira da Covilhã. E isso levou a que os clubezinhos de bairro, que tinham as pessoas ali, saíssem daqui e fossem para outros lados. Isso causou-nos alguns problemas, principalmente para tentar arranjar pessoas que queiram vir e tomar conta desta e das outras coletividades. Era bastante bom, na altura, se tivessem arranjado as casas onde as pessoas viviam, que eram muito mais felizes do que nos guetos onde os puseram. E hoje estava tudo mais normal, o centro histórico estava cheio, e hoje está vazio e com casas a cair.
P: Diga-me uma coisa, começou então a participar aqui na associação ainda antes do 25 de Abril?
Victor Fernandes: Sim, por aí, antes do 25 de Abril já cá entrava, isto garoto.
P: E como é que era, qual é que era a diferença nessa altura, durante a ditadura?
Victor Fernandes: Aqui não havia o espectro político, havia algumas casas que tinham. Esta nunca esteve ligada à política. Portanto, as pessoas eram submissas e não falavam disso. E como não falavam nisso, não quer dizer que não tivessem liberdade, quer dizer, uma pessoa tinha liberdade falando de tudo, menos em política, e hoje não é bem isto.
Quer dizer, hoje há uma certa liberdade, que acaba por ser tirada a liberdade quando se entra num outro campo, que é a libertinagem. Hoje há muito disso. Há muita gente que destrói. Há muita gente que estraga tudo. Há muita gente que foge com os equipamentos. É tremendo. Quer dizer, isto demonstra que há uma grande diferença entre o passado, sem liberdade, uma liberdade restrita, e um presente com uma liberdade demasiada, onde ninguém tem poder para travar seja quem for. O professor não manda, a polícia não manda, ninguém manda.
Quer dizer, isto é uma confusão tremenda. Isso traz-nos também alguns problemas, a nós. O caso de nos levarem coisas, de partirem coisas... Quer dizer, não pensam nunca que tudo aquilo que façam de mal são os pais também, com os seus impostos, que estão a pagar. Não somos só nós que pagamos, o pouco que recebemos, ou quase nada, dos órgãos, mais até a Câmara Municipal, a Junta de Freguesia, o pouco que recebamos vai dos impostos também dos pais desta gente e dos nossos, não é? E as pessoas não pensam nisso.
P: E nessa altura era uma altura de dificuldades, como disse, as pessoas não tinham algumas necessidades básicas asseguradas. Eu estive a ver que noutras associações, havia mecanismos de entreajuda, por exemplo o subsídio de funeral. Aqui também existiu?
Victor Fernandes: Subsidio de funeral aqui não existia. Eu sei que há clubes, por exemplo o Campos Melo, tinha subsídio de funeral. Aqui, por acaso, nunca foi prática. Podia-se ajudar as pessoas noutras situações, quando se viam com algum problema.
P: Por exemplo, lembra-se de algum exemplo concreto?
Victor Fernandes: Falta de comida... Eu sei que havia, também havia. Embora aqui já fosse uma cidade rica. Os têxteis ganhavam acima da média, na altura. Hoje ganham menos do que toda gente, mas na altura os têxteis ganhavam mais do que o resto, talvez das cidades do interior. E eu posso lhe dizer que havia algumas carências de facto que eram colmatadas, nem que fosse pelos amigos. Hoje, talvez não seja tanto assim. A amizade hoje é um bocadinho diferente. A amizade é o Facebook, é a exposição das coisas nos órgãos sociais. É estarem numa mesa a beber um copo, cada um com o seu telemóvel. Já não há aquele conversa simples que até nos levava a um certo crescimento. Hoje, com esta gente nova, já não existe isso.
P: Foi uma escola, esta instituição? O que é que aprendeu aqui?
Victor Fernandes: Foi sempre uma escola. Costuma-se dizer que o velho sabe muito porque é velho, não é? E nós aprendíamos precisamente com essa gente. Aprendíamos porque eles tinham a escola da vida. E a escola da vida, que eles que nos transmitiam, não era propriamente a escolaridade. Era a escola da vida que eles nos transmitiam e davam-nos valores que hoje é impensável conforme está a nossa educação a ser desenvolvida. Hoje é impensável, era isso que nós queríamos fazer hoje, dar alguns valores às pessoas ao incutir-lhes algumas coisas que eram importantes para a vida delas, só que não conseguimos, porque elas hoje são demasiado autónomas.
P: Que tipo de que atividades é que se Lembra que o clube desenvolvia nessa altura?
Victor Fernandes: Bem, eu já lhe falei no rancho folclórico.
P: Participava no rancho folclórico?
Victor Fernandes: Eu não, os meus pais sim. O meu avô tocava flauta no rancho e os meus pais andavam no rancho. Mas, além do rancho, também tivemos um conjunto de baile. Já nos anos 50, aqui havia muita atividade, o desporto, a cultura. Tínhamos uma boa biblioteca que agora não tenho aqui. Neste momento tenho numa garagem para tentar organizar. Havia muita coisa, desde os Jogos, que também dava para expressão e para agarrar a gente.
P: Quais eram as modalidades que desenvolviam?
Victor Fernandes: Principalmente o futebol, o andebol também. O andebol acho que acabou na Covilhã porque ganhavam sempre os Leões da Floresta. Acabou precisamente por causa disso. Depois, mais tarde, veio o ténis de mesa. Tivemos uma equipa excecionalmente boa e reconhecida a nível nacional. E alguns elementos chegaram a ir ao estrangeiro, principalmente à Rússia e à Espanha.
P: E na parte cultural, tinham teatro, música, tinham uma biblioteca. Como é que foi criada a biblioteca?
Victor Fernandes: Quando cá cheguei, já cá estava. Portanto, a biblioteca devia ter sido criada logo para aí nos primórdios da coletividade, porque eu lembro-me que um dos livros que lá estavam era O Vinho, que salvo erro era do António Pato, que vinha do Partido Comunista e fez parte de daquele bloco contra a ditadura já muito antes até das coletividades serem formadas. Portanto, eu lembro-me desse livro cá estar, bem como outros, claro, mas esse ficou-me na memória.
P: E esses livros não eram proibidos?
Victor Fernandes: Aqueles livros eram proibidos. Pelo menos dos que conheço só esse é que era proibido. Esse de facto era proibido. Não sei onde é que eles o encaixaram, nem onde o foram buscar. Sei que eu já cá o encontrei.
P: No Campos Melo, achei muita piada, estive a ver que davam um prémio aos leitores que liam mais. Aqui também faziam esses incentivos à leitura?
Victor Fernandes: Não, sabe que as pessoas aqui requisitavam os livros, levavam para casa, liam e depois traziam, ou então podiam ler aqui. Embora as condições na altura não fossem o que agora são, mas as pessoas, havia muita gente que lia aqui os livros. No caso do Campos Melo era diferente, a biblioteca Ferreira de Castro era totalmente diferente. O Campos Melo, apesar de tudo, já tinha uma parte política. Eu estou-me a lembrar de uma das pessoas que foi lá colaborador, que esteve preso no tempo da ditadura com o Álvaro Cunhal e outras pessoas assim do género, que era o senhor [...]. E essa pessoa, lembro-me que, como ele contava, foi torturada. Esteve com a água sempre até aos joelhos, o pingo sempre a cair na cabeça, e, portanto, o Campos Melo já tinha uma parte política
Aliás, o Ferreira de Castro também já tinha, ele próprio, também já tinha a sua parte política. E no Campos Melo, de facto, havia esse prémio, eu lembro-me disso, para quem lesse mais. Havia de facto muita gente, já com uma certa cultura, naquela altura, no Grupo Educação e Recreio Campos Melo, tanto que um dos fundadores até era professor. Não sei se já falaram nisso, mas agora não me lembro bem, mas o [...], penso eu, era professor. Eles tinham lá as escolas primárias, tinham duas salas de aula e aí era muito mais simples ter desenvolvido a mente das pessoas.
P: Quando é que passou por lá, pelo Campos Melo?
Victor Fernandes: Olha, a última vez que lá estive foi 1992, a primeira vez foi em 1984.
P: E foi sócio, foi dos órgão sociais?
Victor Fernandes: Ainda sou sócio, fiz parte dos órgãos sociais, por duas ou três vezes. Duas vezes!
P: Como é que conseguia acumular a participação em várias coletividades ao mesmo tempo?
Victor Fernandes: Sabe, umas coisas desenvolvia-se numa e outras coisas desenvolvia-se noutras. Eu também dei a minha colaboração no Grupo Desportivo da Mata, quando estava nos Leões da Floresta, por exemplo. Eu estava aqui na direção dos Leões da Floresta e estava a treinar o grupo desportivo da Mata inter juvenil. Foi sempre uma das coisas. Quando estive no Campos Melo pela primeira vez, a única coisa que tinha de coordenar era a catequese. Não estava a coordenar nada nos Leões, ou melhor, acho que estava na Assembleia Geral dos Leões. Reunia uma vez por ano, portanto, não era por aí que eu deixava de poder dar a minha colaboração no Campos Melo. Era interessante e lembro-me de que um desses mandatos apanhou-me na tropa, e ao fim de semana tinha que ir para fazer turno no Campos Melo. Tinha que vir fazer tudo aquilo que me competia. E mais às vezes mais do que me competia.
P: Então, daquilo que se conseguiu recordar com detalhe, foi desenvolvendo diferentes atividades em diferentes associações. Digam-me lá aquelas que se lembra.
Victor Fernandes: Fui treinador na Mata. Fui treinador no Campos Melo, também de ténis de mesa. Joguei pelo Oriental de São Martinho, joguei pelos Leões da Floresta. Também joguei pelo Campos Melo. Depois acabei por me federar e depois terminei a minha carreira, sempre no ténis de mesa. Jogava uma futeboladazita, quando era mais novo, mas nunca tive grande queda para o futebol, ainda hoje é o dia que não vejo um jogo de futebol. Nunca tive grande queda para isso. Gostava de facto de ténis de mesa. Dava-me um gosto jogar e poder ajudar os outros a jogarem.
P: Mas desenvolveu outro tipo de atividades, tipo responsável pela catequese?
Victor Fernandes: Sim, fui responsável pela catequese, também uma das coisas que me calhava todos os anos era, por exemplo, a preparação para a profissão de fé, que eram 15 dias intensivos de catequese e então iam os grupos todos da paróquia. Conclusão, chegava ali a ter aos cento e alguns, catequizando os 100. E alguns catequizados foram catequistas. Era engraçado, no fundo era engraçado. Naquela altura, também, as pessoas também se moldavam com mais facilidade. Eu estou a ver hoje uma turma, por exemplo com 100 alunos, que essa ninguém devia pôr mão naquilo, não é? Até com 30 já deve ser difícil, quanto mais com cento e qualquer coisa. Naquela altura era mais simples. As pessoas eram diferentes.
P: Isso foi nos anos 80?
Victor Fernandes: Sim, pelos anos 80.
P: E desempenhou mais algum tipo de atividade?
Victor Fernandes: Assim outro tipo de atividade, música sim, porque ajudei a fundar, fui dos fundadores do Covimúsica, lá em cima no Campos Melo. Fui fundador, mais quatro pessoas. Eu tinha viola, os outros não tinham. Eu não sabia tocar viola, emprestava a viola e assim se foi criando. Quer dizer, começou-se com pouco. É engraçado que juntávamos a revolução, aquilo que nós começamos a cantar inicialmente era tudo o que era revolucionário, canções revolucionárias, partidárias e canções da Igreja. Também mais de convívio fraterno de jovens.
P: Esteve alguma ligação à JOC ou à LOC? Também sei que havia alguns grupos.
Victor Fernandes: Não, nunca estive ligado. Conhecia muito bem as pessoas de um lado e do outro, só que diretamente nunca estive ligado, nem à JOC nem à LOC, mas indiretamente estive ligado a toda a gente, porque muitas vezes ia para os encontros com eles. Apesar de não fazer parte, ia para os encontros com eles e sempre me dei bem com eles.
P: Mas desculpe interromper, estava-me a contar das músicas do COVI Musica, isso foi em que ano que começou?
Victor Fernandes: Foi no pós 25 de Abril e talvez já nos anos 80. Fins dos anos 70, princípios dos anos 80. Foi muito interessante.
P: Tocava músicas revolucionárias e da Igreja?
Victor Fernandes: Sim, foi assim que começámos, depois cantava-se uns fadinhos também pelo meio, até que depois voltámo-nos de vez para a música popular portuguesa e daí nunca mais saímos.
P:E como é que era essa relação entre a música revolucionária e da Igreja? É interessante essa...
Victor Fernandes: Sabe que as pessoas... A música revolucionária ainda estava um bocado na mente das pessoas e era bem aceite. A música da Igreja também era bem aceite no contexto, com as pessoas de então. Se fôssemos hoje a cantar qualquer coisa da Igreja e num lado qualquer, certamente ou não aparecia muita gente ou certamente eram capazes de aparecer e, não estando a contar com isso, eram capazes de dar uma assobiadela. Não faço ideia.
As pessoas hoje são muito diferentes, já não é o que era, isso também devido um pouco à ciência. A ciência dá-nos hoje uma perspetiva diferente de algumas coisas, tentou explicar muita coisa, ultrapassou muita coisa, de facto, é verdade, e isso leva um pouco a incredibilidade das pessoas. E hoje as pessoas não ligam muito, pelo menos não estão a ligar muito, até que alguma coisa aconteça e vá tudo, de Santo na mão, às coisas da Igreja.
Mas o que é certo e verdade é que as pessoas não se podem esquecer nem do passado, nem do que foram. E acho que devem dar também uma oportunidade à Igreja, que foi certamente onde nasceram e é certamente onde a maior parte pertence como baptizada na Igreja, certamente.
P: A então essa dupla filiação, sente que faz mais parte de um clube do que do outro ou há uma identidade global do associativismo em que se insere sem fazer distinções entre as coletividades?
Victor Fernandes: Claro, eu nunca fiz distinção entre coletividades. Sei que os mais velhos tinham uma certa rivalidade. Connosco não e o caso mais concreto é, por exemplo, eu telefono muitas vezes ao Francisco e o Francisco telefona-me a mim, como muitas vezes telefona ao Miguel e o Miguel telefona ao Rui, que está no Campos Melo, e muitas vezes ele também fala comigo. Portanto, eu nunca fiz distinções entre coletividades. E estava-me a lembrar do meu amigo, que vai ser amanhã entrevistado, que trocou a entrevista para eu ser entrevistado hoje, porque amanhã vou levar a vacina.
Não posso lá estar, além do Ginásio, do Barroca, que também nos damos excecionalmente bem. Portanto, eu nunca vi diferença seja daquilo que for. Aliás, eu acho que o futuro das coletividades vai ser apoiarem-se umas às outras.
P: Já existia essa colaboração entre as coletividades?
Victor Fernandes: Talvez não houvesse muita. Havia coletividades rivais, como disse. Hoje não vejo rivalidade em lado nenhum. Mas, na altura, havia muita rivalidade. É muito provável que não houvesse muita cooperação umas com as outras. Hoje é totalmente diferente, estamos completamente à vontade. Embora uma pessoa sinta que alguns puxem mais do que outros por alguns cordéis. Não é isso que me vai a pôr contra seja quem seja, cada um mexe os cordéis que quer. Eu não me chateio absolutamente nada com isso.
E se as pessoas forem soltas, certamente irão ter a mesma atitude que eu. E conheço algumas que são soltas também, quer dizer, têm a sua coletividade , mas quando toca a querer ajudar e quando pedimos auxílio, vêm também em nosso auxílio. E isso será o futuro das coletividades. Porque há de se chegar a um ponto, ou eu estou muito enganado, em que não vai haver gente suficiente para estar à frente das coletividades. E então, se as queremos ter abertas, temos que lhes pagar. Pagando-lhes, já não podemos comprar determinadas coisas e como não podemos comprar determinadas coisas, certamente temos que nos valer uns dos outros. Pedir à coletividade uma coisa que ela tem e depois também ceder alguma coisa que ela precisa. E podemos fazer isto entre coletividades.
Eu não acredito que haja alguma coletividade que tenha tudo aquilo de que precisa. Porque não tem, certamente. E isto será um futuro próximo. Eu já não o vejo muito longínquo. Posso estar enganado, mas aquilo que eu vejo até agora, e devido a esta demografia, este movimento de pessoas para outros lados que nos deixa desmembrados, é muito provável que um dia vá acontecer, e se calhar mais breve do que aquilo que pensamos, o manter destas casas tem que ser remunerado. E isso leva certamente àquilo que a senhora disse e que eu também já disse, a que as pessoas se juntem mais para resolver os problemas momentâneos que tenham nas suas casas.
P: Por falar em resolver as coisas em conjunto, logo a seguir ao 25 de Abril também se criaram nestas comunidades, eu acho que em articulação com as coletividades, outros tipos de associações, que eram as comissões de moradores, onde as pessoas se juntavam para resolver problemas dos bairros, teve alguma experiência dessa natureza?
Victor Fernandes: Não, por acaso nunca tive, nem aquele que está mais situado no meio de um bairro. Há pelo menos três que estão no meio de um bairro, ou quatro, que é a Lapa, que é o Académico dos Penedos Altos, que é o Campos Melo e que é o GIR Rodrigo. São os quatro que estão mais inseridos, todas as outras estão um bocadinho mais afastadas do bairro. Embora o Oriental tenha muita coisa ali de volta, não era propriamente um bairro, porque havia se calhar mais gente ali que viesse para aqui do que fosse para lá. Mas eu nunca tive essa experiência de ver essa situação como pôs, nunca tive.
P: E não acha que o facto da Covilhã ser uma zona predominantemente industrial ter quase toda a gente ligada à indústria, ter uma forte tradição operária, que isso marcou de certa maneira o associativismo e que justifica esta profusão de associações?
Victor Fernandes: Eu acho que em princípio certamente marcou as coletividades. Sabe que eram essas pessoas que davam vida a isto tudo. Principalmente quando tinham lacunas que precisavam de ser colmatadas. O caso de em casa não terem aquilo que desejavam e que a coletividade tinha. Vivia-se tempos, poderá dizer-se, difíceis, mas que eram um regalo. Já agora deixo-lhe esta, era um regalo, para quem era um miúdo, ver as pessoas com a sua lancheira, quando tocava as cinco horas da tarde, e ainda havia algumas estradas que ainda eram em terra, e via-se os bandos das pessoas, pareciam bandos de andorinhas, muito engraçado.
E eu era garoto e nunca mais me esqueço de ver aquelas saídas, depois pelo caminho, até se entrava numa taberna e bebia-se um copo. Era muito engraçado. Eu via, só que não bebia e ainda não estava a trabalhar na altura. E depois vinham para as coletividades. As coletividades eram a segunda casa das pessoas. Eu acho que até passavam mais tempo no emprego e nas coletividades do que propriamente em casa.
Só havia uma coisa de mal. Era, na altura, haver poucas senhoras que iam à coletividade. Muito rara era a senhora que entrava na coletividade. E as coletividades podiam ter um dinamismo diferente se as senhoras tivessem posto também a sua cabeça e as suas mãos e todo o seu ser aqui ao serviço das coletividades. Não existia. E ainda hoje, penso que só há uma é que tem senhoras. Não, o Campos Melo tem e o Oriental tem, e penso que não há mais nenhuma.
P: Mas antes do 25 de Abril elas não podiam participar, pois não?
Victor Fernandes: Não participavam absolutamente em nada. Era injusto, acho que era injusto essa parte antes do 25 de Abril. Era um bocado injusto. Uma esposa que entrasse com o marido ainda podia ser tolerada, mas não podia estar muito tempo. Se uma senhora entrasse sozinha num café ou, por exemplo, aqui na coletividade ou noutra coletividade qualquer, isto caía o Carmo e a Trindade. Era muito complicado, porque havia um certo falatório. Depois eram apelidadas de muita coisa que nunca foram na vida.
Isto era aquilo que tínhamos, quer dizer, era a cultura da época. Hoje faz-nos falta o contrário, faz-nos falta as mulheres e não as temos. Eu já não a tenho de maneira nenhuma, porque sou viúvo, mas fazem-nos falta as mulheres, porque têm um sexto sentido às vezes para determinadas coisas que os homens não têm. E isso era uma mais valia para qualquer coletividade ou para qualquer organismo. Não é que ninguém esteja por cima de ninguém, somos todos tratados por igual. Eu sou o presidente, mas estou a par dos outros colegas todos. Não sou mais que ninguém, nem pretendo ser. E fazia-nos cá falta as mulheres.
P: E não houve nenhuma altura em que as mulheres tivessem participado mais?
Victor Fernandes: Houve, principalmente no tempo das marchas populares. Nós também fomos dos clubes que ganhámos mais marchas populares e não ficávamos a dever nada a Lisboa. Digo-lhe que isto estava já num patamar de tal maneira que teve que acabar, porque as pessoas gastavam quatro a cinco vezes mais do que aquilo que iam receber da edilidade covilhanense. Chegou a um ponto que tinha de ter uma rotura qualquer e acabou. E nós víamos aqui as senhoras, não só para dançar, como também para arranjar os fatos e para arranjar essas coisas todas. As pessoas davam-se como voluntárias, por isso era magnífico ver as pessoas todas a trabalharam, andarem aqui dois ou três meses a ensaiar, era lindíssimo. E sabe que as senhoras também trazem muita gente atrás para elas, quer dizer, com elas vinham, os filhos, vinham os netos e isso era uma mais valia para qualquer coletividade. Era um sonho tornado realidade durante esses três meses, esta casa sempre foi muito movimentada, mas durante esses três meses isto extravasava tudo, nem havia quase espaço para as pessoas, porque a sede era muito mais pequena do que agora, agora está em três andares.
P: Qual é que foi o ponto, em que década é que foi o ponto alto das marchas?
Victor Fernandes: Eu não tenho já bem presente isso. Mas já foi, já foi neste século. Portanto, não faço ideia já do ano, porque isto parou há uns tempos. Agora é que andam a começar novamente. Vamos ver se pega, mas há algumas pessoas que já se desabituaram. E algumas pessoas que já não as temos. Como eu disse, já vivem noutros sítios e não estão para aqui andar de caminho. Isso complicou tudo.
P: Qual é que a década, o período em que a atividade associativa foi mais exuberante, em que as pessoas participavam mais?
Victor Fernandes: Sabe, em questão de participação, era mais nos primórdios. Porque isto era um clube de sócios. Ainda hoje é, embora abramos as portas a toda a gente e demos os mesmos direitos a toda a gente. Mas dava gosto ver centenas de sócios a trabalhar para um bem comum. Hoje, se virmos meia dúzia de sócios, já ficamos contentes.
P: Que idade é que tinha nessa altura em que centenas de sócios estavam aqui?
Victor Fernandes: Então, eu devia ter, devia de ser ainda garotito. Eu não podia estar à noite, devia de ser ainda garotinho, às 10h tinha que ir para casa, porque nos punham na rua e às vezes mais cedo. Eu era um garotito, ai com os meus 10 anitos. Dava gosto ver toda esta movimentação e não era só de volta do copito, é que havia muita coisa que se pudesse fazer.
P: Como por exemplo?
Victor Fernandes: Eu dou-lhe, por exemplo, as marchas populares, em cada uma delas as marchas populares davam muito trabalho. Vinha muita gente, isto era uma escola. Ténis de mesa, havia muita gente no ténis. Tínhamos pool, tipo snooker mas já jogado de uma maneira diferente. Tínhamos tiro ao alvo e ainda temos alguns federados que estão inscritos por nós. O que é que uma pessoa quer mais, meu Deus? Tínhamos o andebol, isto tudo ao mesmo tempo, movimentava muita gente.
P: Isso tudo quando tinha os seus 10, 11 anos, ou seja, mais ou menos no 25 de Abril, nasceu em 1963?
Victor Fernandes: Por aí.
P: O 25 de Abril veio fomentar uma maior participação?
Victor Fernandes: Não, penso que não. Penso que não. O 25 de Abril, enquanto as pessoas lutaram por novas regalias foi muito intenso. As pessoas aqui vinham muito. Depois de terem certas regalias, as pessoas começaram-se a afastar mais. Como já lhe contei há pouco, quero dizer, já têm a sua televisão, já têm a sua Internet, têm outras coisas dentro de casa que não tinham anteriormente.
P: Mas quando se fala em lutar pelas regalias fala especificamente, por exemplo, naquelas greves, dos mil escudos por exemplo?
Victor Fernandes: Sim, precisamente, e levaram a alguns aumentos, que levaram a algumas regalias sociais que hoje estão-se a perder todas. Mas na altura conseguiram-se várias regalias para os trabalhadores. Hoje isso é impensável, porque as pessoas não são unidas, como eram aquelas antigamente. Nós hoje, se falarmos numa greve, eu não estou a ver as pessoas a aderirem à greve. Se for na função pública, sim, Mas no privado, eu não estou a ver as pessoas a aderir à greve. Porque as leis, entretanto, foram retrocedendo e as pessoas também têm um certo receio de se manifestar.
Portanto, eu já não sei que ditadura é que é pior, se era a ditadura do passado, se é a ditadura do presente. Não lhe sei dizer muito bem. Eu, como me afastei assim bastante da política, e não quero nada com isso, não sei dizer muito bem. Antigamente, quem não molestasse o governo podia fazer tudo e não tinha problemas. Hoje pode-se fazer tudo e podemos levar com alguns problemas pela frente. Portanto esta juventude que se cuide e que se una.
P: Essas greves, por exemplo dos mil escudos, refletiam-se nas coletividades?
Victor Fernandes: Refletiam-se, as pessoas quanto mais ganhavam mais também gastavam por aqui. E quanto mais regalias tivessem, notava-se, notava-se bem. Até que as regalias já são tantas que já não se nota bem. Há dois opostos. Quando não se tinha isso, foi tendo. Foi-se aplicando, mas agora que se tem de mais, não se aplica ou quase não se aplica e isto é quase um revés. Estamos a voltar atrás nalgumas coisas, mas não naquilo que era.
P: Mas diga-me uma coisa, aqui os sócios deste eram maioritariamente operários e envolveram-se nessas lutas, como é que isso se vivia aqui dentro?
Victor Fernandes: Não, dentro da coletividade, não se vivia isso. Não havia discussões sobre isso nem sobre grandes políticas, porque regra geral, também todos coincidiam mais ou menos à mesma política. Esta era uma das coletividades que era pró-socialista, também porque era de operários. Não havia tanto aquela patente comunista, embora houvesse alguns, mas respeitavam-se todos uns aos outros. Da classe mais à direita não tenho conhecimento, principalmente naquela época.
Hoje, eu acho que são todos cada um pior que o outro. Eu acho que as pessoas hoje nem sequer discutem isso. Já nem sequer há uma certa ligação, nem vejo sequer ninguém a falar sobre um assunto político, seja ele qual for, a não ser comentar alguma coisinha que se passa ali na televisão. Uns estão a favor, outros estão contra, mas dali também não passa.
P: Acha que a memória destas coletividades, esse passado, o facto de ter sido tão importante na vida das pessoas aqui da cidade, como é que essa memória é transmitida? Acha que os mais novos conhecem essa história?
Victor Fernandes: Eu fui contando algumas coisas às minhas filhas, mas se quer que lhe diga frutos também não vejo. Porque nenhuma delas é muito amiga da coletividade. Quando eu às vezes venho: “pronto, lá vais tu.” Às vezes têm esse tipo de atitude, principalmente a mais velha. A mais nova nem tanto. Portanto, eles hoje têm uma maneira diferente e quando às vezes começamos a contar algum bocadinho de história da vida, este pessoal é muito mais aberto e às vezes o que tem na cabeça também o tem logo no coração.
Nós éramos um bocadinho mais acanhados, nem que fosse para não magoar as pessoas. Nós não dizíamos aquilo que pensávamos. Esta gente hoje diz tudo. E como diz tudo, às vezes, se uma pessoa for contar alguma coisa, às vezes até se tornam um bocadinho inconvenientes. Pronto, ou eles ou somos nós. Não sei se eles não estão minimamente preparados para a história, para a história da vida.
P: Aqui nos órgãos sociais, qual é que é mais ou menos a média de idades?
Victor Fernandes: Já deve andar nos 60’s.
P: Mas tem alguns jovens?
Victor Fernandes: Tenho aqui ao pé de mim três jovens.
P: E esses jovens estão interessados ainda no associativismo?
Victor Fernandes: Ouça, eu também ando nisto que é para ver se lhes transmito esse bichinho, que é também para eu chegar e descansar. Acho que todos temos direito e às vezes estar tempo demais num certo sítio cria determinados hábitos e podem ser até prejudiciais. E não quero chegar a esse ponto. Queria que alguém viesse, um sangue novo que desse aqui um ar mais purificado à casa, mesmo que nós tivéssemos por trás a ajudar. Queria que essa gente, depois de moldada, ficasse a tomar conta. E é isso que eu sempre tentei.
Em duas vezes que já fui presidente desta casa, da direção, de outras coisas já tinha sido. Mas da direção, sempre tentei meter jovens, para depois eles ficarem com a sucessão. Da primeira vez, tive êxito, porque ficaram pessoas novas na direção a seguir e com alguns cargos de responsabilidade. Desta vez, estou a rezar para que isso aconteça, mas desta vez também já estou a demonstrar um certo cansaço. Não é só o crer, o andar aqui, mas também já estou a construir um certo cansaço. Queria que alguém tomasse conta desta casa, porque acho que já é tempo. Eu acho que é tempo, porque quando não estou aqui, estou noutro lugar qualquer. E agora já são muitos anos, já vai para seis anos.
P: E estes jovens que estão agora na direção, o que que acha que os motiva a estar agora no associativismo?
Victor Fernandes: Um deles nasceu também assim por aqui. É relativamente novo. Mas nasceu por aqui e foi aqui que jogou futebolzito e foi aqui que se desenvolveu. Portanto, esse tem capacidade já no momento, penso eu, para presidir a uma coletividade. Tem já capacidade para isso. Tem uma pessoa a trabalhar mais diretamente com ele, que que lhe fazia uma tesouraria excecional, porque era um licenciado. E nós sabemos a tesouraria dos anos, embora hoje já não seja como era. Hoje é tudo através da contabilidade organizada, já não há contas de bolso, nem contas de gaveta, isso terminou. Isto é tudo contabilizado ao milímetro, vai tudo para as finanças, tudo direitinho. Hoje não há, não há esse tipo de contas, mas nós sabemos fazer isso pelos anos que temos e também porque a contabilidade na altura, uma pessoa faz isso bem, mas com um licenciado em gestão, certamente se fará melhor.
Eu hoje não tenho um POC na cabeça, quer dizer, não tenho um plano oficial de contabilidade na cabeça, que esta gente mais nova certamente terá. Terá e pode pôr as suas capacidades à prova. Há um outro que é excecionalmente bom, não para gerir, mas é excecionalmente bom para olhar para qualquer coisa e ver aquilo que está bem e que está mal. Também um jovem que se ajeita já muito bem, seja naquilo que for, seja na eletricidade, seja na carpintaria, seja na construção, seja naquilo que for. Temos aqui um outro que é excecional.
Agora precisamos que comecem também. Certamente ainda não será já nos próximos tempos, porque não estou ainda a ver, um ainda está estudar, outro está a tirar um mestrado, portanto, mais um anito.
P: Qual é que aha que é o futuro do associativismo?
Victor Fernandes: Eu vejo o futuro muito negro, sabe, porque as pessoas hão de chegar a um ponto que não têm capacidade para dar mais. E ao não ter capacidade para dar mais, eu já disse há pouco, se querem que isto continue, o mais certo é terem que pagar. Alguém que saiba gerir uma casa. É isso, já não vou ser eu, já vai ser outra pessoa qualquer, mas eu acho que o futuro passará por aí. Ter alguém a dirigir e esse alguém, certamente, tem que ser remunerado. De resto, não estou a ver grande futuro, a não ser que haja um revés muito grande e as pessoas comecem outra vez a necessitar destas casas. Nem que seja transformarem as casas num centro político, não sei.
Mas, se precisarem, são capazes de voltar, se não precisarem, não estou a ver. Pelo menos duas ou três gerações foram completamente desviadas do que eram os contextos sociais. Aquelas belas virtudes que nós tínhamos, que os nossos pais nos incutiram, hoje não têm. Portanto, perdemos pelo menos três décadas. E isto só lá mais para a frente é que vamos fazer aqui isto dar. Eu, certamente, já cá não estarei. Mas quem cá estiver, boa sorte!
P: Então e diga-me, o associativismo marcou a sua vida?
Victor Fernandes: Marcou. Sabe que eu, além de praticamente crescer no associativismo, também marcou a minha vida de toda a maneira e principalmente, antes sim, mas principalmente, depois de 1988. Foi quando me casei, em 1988. A minha esposa dava-me um certo à vontade, porque ela também gostava. Ela chegou a ser diretora desta Casa, já me estava a esquecer. Mais duas meninas, na altura. Agora é que não temos, já foi em 1990, porque coordenavam as marchas populares com a direção. Eu, nessa altura, estava de fora, estava na Comissão de Festas para angariar dinheiro para as marchas populares e também fazia parte da Assembleia Geral.
Em 1988 foi mais profundo. Estava aqui com a minha esposa e era totalmente diferente, era um apoio totalmente diferente. E mesmo depois dela sair daqui, quando começou a ter as filhas. Mesmo depois dela ter saído daqui, nunca me disse, ou nunca me pôs qualquer tipo de entraves, porque ela também gostava disto.
Todos estes tempos foram marcantes, até ao desaire da Covid 19. Isso foi desastroso, vi-me aqui um bocado perdido na noite. Totalmente diferente, não vinham as pessoas, as contas caíam. Foi um pouco aflitivo. Se estivesse uma pessoa menos paciente à frente, não sei se ultrapassaria determinadas situações. Eu cheguei a um ponto que não tinha um cêntimo na caixa. Eu dizia: “Onde é que eu vou arranjar dinheiro para isto?” Hoje está mais ou menos colmatada. Mas foi doloroso. E nunca me senti tão fraco como agora, neste tempo. É engraçado que eu pensava que, quando começasse a desconfinar, as pessoas tinham aprendido alguma coisa com isto. Mas mais uma vez, como me enganei tantas vezes na vida, mais uma vez me enganei. As pessoas continuam a ser individualistas, continuam a ser comodistas, continuam a se servir das coisas e não ligar nenhuma ao que é o associativismo.
P: O que é que foi a coisa mais importante que aprendeu com esta experiência associativa ao longo da vida?
Victor Fernandes: Aquilo que eu aprendi foi a envelhecer aqui e a saber mais. Isto dá-nos uma estaleca diferente para enfrentarmos determinadas coisas. Foi aquilo que talvez mais me tenha marcado. Porque tudo o resto, todas as atividades e tudo isso já lhe falei atrás. Mas aquilo que de facto mais me marcou foi envelhecer aqui, o que me tornou mais aberto para enfrentar as situações que venham por aí, e já vieram algumas.
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4 de junho de 2021
P: Nasceu aqui?
Elias Riscado: Nasci em Alcains, distrito de Castelo Branco. Em 1945, 18 de abril. Vim para aqui porque o meu pai era ligado à construção civil e veio para cá construir um cinema. Fez obras todas concentradas aqui. Vim para cá com quatro anos, tirei o curso técnico têxtil na Escola Industrial Campos Melo. Fui trabalhar para a firma Francisco Alçada, como técnico têxtil na secção de tinturaria. Trabalhei lá, na tinturaria, 33 anos, até que a firma fechou. E depois passei para outra empresa, Rosado & Pereira, onde estive mais 10 anos. Sei que fiz 42 anos na têxtil, a ver cores... Depois reformei-me.
Na escola tinha já alguma atividade. Por nunca me querer ligar a Mocidade Portuguesa, tive problemas. Era chefe de turma, chefe na escola, já tinha um bocado de atividade. Fui filiado no Partido Comunista muitos anos antes do 25 de Abril e também o meu pai, que foi quem me levou para lá. Tive problemas ainda várias vezes com a PIDE. Nunca fui preso, mas fui avisado várias vezes.
E depois apareceu o Grupo Desportivo da Mata. Como estava a dizer, formámos ali a coletividade, formámos um grupo que nem tinha, a bem dizer, nome. Mandámos vir então o azul, porque uns eram do Sporting e outros do Benfica e o azul era para ser nem do Benfica nem do Sporting. A seguir, os velhotes daqui – e eu utilizo o termo velhotes porque é preciso ter consideração por eles, porque eram mesmo pessoas já de uma certa idade mas apoiavam-nos em tudo o que a gente fizesse. Nem que a gente fizesse mal estavam sempre do nosso lado. Chegávamos aqui e acompanhavam-nos para todo o lado. E aquilo acabava sempre mal. Metiam-se nos copos e acabava sempre mal. Depois apareceram as pessoas de meia-idade e formámos aqui o grupo.
Como o Conde tinha aqui uma propriedade perto, a cerca de 200 metros, fomos lá, também com um velhote que nos acompanhou, porque os primeiros equipamentos estavam na casa dele. Era a sede, era lá na casa dele. E fomos lá ao Conde falar e tal, como é que se há de chamar o clube? Então, é um clube desportivo, está aqui no meio da Mata, fica o Clube Desportivo da Mata.
Depois esses mais velhos começaram a encarar a sério a coletividade. Em princípio era para federar na INATEL, FNAT na altura. Mas a FNAT era por zonas e daqui já estavam os Leões, já estava o Oriental na nossa zona. Eram mil e um problemas e ficava uma zona muito pequenina. E então resolvemos... Não fomos para federados e fomos para a partida. Eu acompanhei sempre, na medida em que ainda não tinha 18 anos. Eu estava nas direções, mas era a ajudar o presidente. Até que entrei novamente, quando fiz 18... Os nossos estatutos, na altura, era a religião e mais não sei quê... Depois nós oportunamente modificámos os estatutos e alterámos muita coisa, porque estatutos atuais não se compadeciam com o que estava na entrada.
A primeira modalidade que se praticou aqui foi o basquete, o atletismo, o voleibol. No voleibol chegámos a estar na primeira divisão. No futsal chegámos a estar na primeira divisão. No atletismo corremos em todos os lados: no país inteiro e em Espanha, França, Bélgica, fomos a várias provas.
Tudo isto era suportado por carolice e houve uma altura em que os meus filhos… A minha mulher foi mãe, foi pai, foi tudo. Porque nessa altura era o trabalho e como era chefe de secção tinha facilidade para as oito horas por dia. Depois pagava à noite e tinha que ir à fábrica. E a minha mulher foi pai e mãe para os filhos.
P: E sua mulher também trabalhava na Indústria?
Elias Riscado: Não, a mulher era auxiliar de infantário, aqui na Misericórdia, muitos anos.
P: Estava a dizer que a sua mulher tinha sido mãe e pai...
Elias Riscado: Pois, e às tantas os filhos começaram a... Houve uma altura que os filhos me perguntaram quem é que eram os herdeiros, se eram eles se o clube. Alto lá! O atletismo teve que parar, porque a bem dizer era suportado por mim e por mais um colega da direção. E parou aí, nessa altura. Continuou, mas nuns moldes muito por baixo.
Tivemos depois uma secção de teatro de revista. Fizemos uma revista que correu aqui a região toda e apresentámos no teatro-cine e tudo. Tivemos um grupo de música popular, ainda ali estão os instrumentos. Ando a ver se consigo atuar, porque aquilo estraga-se mais parado do que a trabalhar, anda-se em vias de o pôr outra vez a funcionar. Passaram por aqui muitos elementos de direção. Todos fizeram, à sua maneira, um trabalho meritório. Eu estive aqui na direção 18 anos. Foi quando começámos a construir esta sede e o ringe, ao lado. Depois saí da direção e estive 17 anos como presidente da assembleia-geral. Há coisa de oito anos, isto estava mesmo, mesmo, mesmo... e tive de cá voltar. Eu disse que nunca mais cá metia os pés, que cá não voltava, mas teve de ser. E teve de ser por vários motivos.
Primeiro, porque este prédio não estava legalizado. Ando há 30 anos para legalizar o prédio, foi quando fizeram este projeto do pavilhão. Na altura era o presidente aqui da direção era o [...], e o presidente da Câmara Municipal da Covilhã. Claro que as minhas desavenças com o Carlos Pinto eram notórias, pois ele estava de um lado e eu estava do outro. Mas eu depois desliguei-me completamente da política, nunca quis enveredar pela política. Além de que tive todas as facilidades e mais algumas. Mas gostava do curso que tirei, da profissão que tinha. Disso não abdicava, da minha profissão.
P: Estava-me dizer que já na escola participava.
Elias Riscado: Nas ações da parte estudantil, correr com o diretor da escola, contestar as coisas que estavam mal, talvez até achasse demais. Mas pronto, era um contestatário e isso orientou sempre a minha vida. Na política, fui sempre muito cético. Depois do meu pai morrer disse que não valia a pena andar aqui. Desfiliei-me completamente de partidos, estou à vontade para apoiar quem quiser e bem entender. Tenho apoiado o [...], com quem tenho uma relação excecional. Aliás, com todos os da Câmara. Aliás, na Câmara eu sempre tive relações com os do CDS, do PSD, com toda a gente, nunca tive problemas nenhuns. Com este agora tenho mais, tem um trabalho de maior proximidade em relação aqui com o grupo e estamos em vias de legalizar o grupo.
P: Estava-me a dizer que tinha tido problemas com a polícia política. Teve a ver aqui com a atividade do grupo?
Elias Riscado: Não, não. Nunca misturei uma coisa com a outra. Aliás, nas direções que aqui tive, nem sabiam qual era a minha tendência política. E quando chegavam aqui pedidos, que era do partido que mais atividade tinha, que era mais ativo, quando chegava aqui, dava sempre para trás e passar aqui alguma coisa era difícil, para não me acusarem. Mas eu nunca misturei o grupo com a minha atividade lá fora. Com a mini-atividade, que eu não tinha quase nenhuma.
Fui avisado várias vezes, porque eu não tinha carro, era mais novo, vinha pela estrada à noite e fui avisado. Mas era mais pelas atividades da escola, não era por... Claro que eu fui ao Humberto Delgado e tive de andar a fugir, mas isso era normal e toda a gente andava a fugir aí pela rua.
P: Aqui no grupo não sentiu que houvesse repressão ou vigilância do regime?
Elias Riscado: Alguma. Sabe que nos estatutos fomos obrigados a aceitar a religião? Eu depois mando-lhe isso que ainda se ri com o que está lá escrito. O grupo foi uma vez ou outra, mas não porque eu tivesse uma postura política aqui dentro. Não punha cá politiquices. Fosse quem fosse. Até tinha aqui direções com elementos do CDS, tínhamos cá todos os partidos.
P: E diga-me uma coisa, tinha uma biblioteca, tinha essas atividades culturais. Acha que foi importante para a formação e para a educação?
Elias Riscado: Foi, porque nós estamos inseridos aqui num bairro, que é o bairro da Biquinha, da Caixa. Era um bairro relativamente pobre. A primeira construção que aqui fizemos foi os balneários, feitos por nós, durante a noite, com holofotes. Estava-se em 1974/75 e trabalhávamos até às 2, 3 da manhã. E foi então que desbravámos os terrenos e fomos para os balneários porque era uma necessidade aqui, para as pessoas tomarem banho. Portanto, aos fins-de-semana –sexta, sábado e domingo –, os balneários estavam sempre a funcionar, porque as pessoas em casa não tinham condições e ficava-lhes mais barato vir aqui. Pagavam uma coisa simbólica e ficava mais barato do que estar a gastar água em casa.
P: E tinham outras medidas de ajuda às pessoas, por exemplo subsídios de funeral?
Elias Riscado: Sim, tivemos durante um período, no princípio, e eram 150 escudos de subsídio de funeral. Depois, com o tempo, cortámos isso. E dávamos quando iam para a tropa ou estavam doentes. Dávamos botas, auxiliávamos no que fosse possível. O grupo também não tinha grandes recursos, tinha alguns, mas... Portanto, nesse aspeto o grupo foi criado precisamente por estar assim num bairro pobre. Foi isso que nos levou aos balneários e a essas atividades todas. Precisavam também de televisão, porque não tinham em casa. Estava sempre cheia a sala do pavilhão que tinha a televisão. O princípio foi mesmo direcionado para esse lado.
P: E escola? Chegaram a ter aulas de alguma coisa, ensinar a ler e a escrever?
Elias Riscado: Houve aqui muitos cursos de formação, que proporcionámos aqui. Auxiliámos desde o início a escola aqui do lado, a escola «A Lã e a Neve». Também usam o pavilhão. Agora não, com a pandemia não podem vir, mas vieram sempre, três vezes por semana, fazer ginástica para o salão porque não têm condições. Quando têm visitas de estudo, as nossas carrinhas é que vão. Antigamente recebíamos da Câmara mil euros por mês para isto, mas depois esse apoio foi cortado. Mas nós não cortámos, continuámos a dá-lo, porque temos uma ligação muito grande com a diretora e com o que vai entrar de novo. Eu disse logo: “a gente não vai cortar nada.” Tudo aquilo que a gente dá, mantém-se tudo na mesma, de facto, até ao dia de hoje. Festas de Natal, festas de tudo, são aqui no salão.
P: Naquela altura, antes do 25 de Abril, aqui era uma zona bastante difícil. Estas coletividades tiveram aqui um papel importante?
Elias Riscado: Nós formávamos a coletividade em 1961. Isto era tudo rapaziada, garotos e tal. Oficialmente foi no dia 20 de setembro de 1961 que foi publicado no diário do Governo. Mas nós, já uns dois ou três anos antes, já andávamos aqui a montar, já andávamos aqui aos pontapés à bola. Agora, nessa altura, depois de 1974, quando foi o 25 de Abril, é que arrancámos com as obras aqui. 1974/75, por aí…
Foi inaugurada esta sede em 1981, conforme está. E ali o ringue, como está ali na entrada, é como estava e fez-se aqui muitos torneios, muitos jogos, fez-se tudo. E depois as pessoas, nas tais obras do pavilhão, destruíram tudo. Mas está ali muito aproveitável, porque os alicerces estão todos lá.
P: Nessa altura do 25 de Abril, também se envolveram aqui em algumas obras de melhoramento do bairro?
Elias Riscado: Houve, mas pouco. Esta semana, por acaso, estava na Câmara e falei nisso, porque este bairro não pertencia à Covilhã. Hoje quem é que mora no bairro? As viúvas e os viúvos. Foram lá para baixo, os filhos, tudo lá para baixo. Mas aqui é um bairro mesmo envelhecido. Agora a atividade dos nossos sócios é toda virada lá para baixo, porque daqui já não podemos. Só proporcionando aqui rastreios, para eles não se deslocarem. Temos previsto agora com a Santa Casa da Misericórdia, para o dia 29, o rastreio da diabetes. É aqui no grupo, virado para o bairro. Porque temos um protocolo assinado com a Santa Casa sobre os bairros sociais e nós apanhámos este. Portanto, é aqui que se vai fazer o rastreio, as pessoas vêm cá. Depois vamos com as carrinhas buscá-los para virem cá. É o apoio que podemos dar ao pessoal aqui do bairro.
Nas festas, há um grupo de mulheres, principalmente, são umas seis ou sete, que não há festa nenhuma de São João, bailaricos, sardinhadas em que elas não se apresentem. E têm 80 anos. Elas lá vêm, devagarinho, e depois ao fim a gente vai com as carrinhas pô-las a casa.
P: Quando é que as mulheres começaram a participar?
Elias Riscado: Logo muito cedo. Aqui, o primeiro elemento que entrou para a direção foi – até há uma reportagem no Notícias da Covilhã – uma moça que está na Madeira, a Neusa, que foi diretora aqui, na altura em que estava a estudar na universidade. Já estava a trabalhar, a estagiar no Notícias da Covilhã. Depois houve aqui uma passagem, mas quer dizer, uma percentagem muito pequena, que ainda hoje a percentagem não é daquelas... Hoje, temos cá só um elemento feminino na direção. Já cá tive 2, 3, mas nesta altura só cá está um.
P: E foi quando? Década...
Elias Riscado: 80. Foi, foi.
P: Antes do 25 de Abril não participavam?
Elias Riscado: Não. Vamos lá ver, participavam, na direção mão, mas participavam na parte feminina, mais se calhar do que os masculinos, no apoio às festas. Era mais pessoal feminino do que masculino. Participavam sem estarem metidas na direção. Mas no apoio, nas comissões de apoio, era pessoal feminino. Ainda hoje é mais pessoal feminino do que masculino.
P: Mas eram sócias?
Elias Riscado: Eram sócias e vinham acompanhadas dos sócios e fizeram aí muito, muito trabalho, as mulheres.
P: E acha que participavam mais antes ou depois no 25 de Abril?
Elias Riscado: Antes do 25 de abril, como lhe disse, participavam menos. Isto era menos atividade, até pelos próprios ambientes em casa. Depois quando se começou a alargar mais o leque é que começaram a aparecer mais. Aqui nas obras, quando andávamos aqui, era quase tantas mulheres como homens. Porque esta fotografia aqui era quando andámos a fazer os tais balneários. Porque aí pela ladeira fora, eram umas dezenas, mas umas dezenas largas de pessoal a trabalhar. Mesmo malta nova.
P: E as raparigas também?
Elias Riscado: Muitas. Conseguimos mobilizar esta malta...
P: É de que ano, essa foto?
Elias Riscado: Esta fotografia aqui… Ora, isto começou em 1981, era de 1975, 76 ou 77. Foi quando se derrubou aquele morro para fazer ali o ringue. Mas isto era muito... depois fazíamos uma feijoada, ali no muro, púnhamo-nos ali a comer. Eram melhores tempos do que estes, eram tempos mais sãos. Trabalhava-se mais em conjunto, mais por amor às causas do que hoje. Hoje por qualquer coisa já se quer dinheiro.
P: E o que é que o motivou a dedicar tanto tempo e tanto trabalho voluntário à associação?
Elias Riscado: Isto aqui é um vício que se vai adquirindo. Começa-se por pouco e depois entranha-se de tal maneira que a gente já não consegue... Depois, umas vezes porque isto está mal. Foi o caso agora, que eu tinha prometido à minha mulher que nunca mais cá... Pronto, não queria cá reunir, seria um simples sócio e mais nada. Mas há oito anos, isto estava completamente de rastos, não tinha atividade nenhuma e eu tive de cá voltar. E tinha uma dívida de 20 e tal mil euros. Mas aí pus o [...] entre a espada e a parede. Eu vou lá, volto para lá, porque o [...] era aqui presidente. O [...] trabalhou nas vereações da Câmara, aquilo foi o trampolim para ele ir para lá, como vereador do [...]. E eu disse: “Eu vou para lá, mas acaba-se com a dívida.” E ele comprometeu-se e todos os meses entravam aqui 1724 euros, nunca me esqueço, até pagar aquela dívida.
P: Houve muitas pessoas que participaram aqui e que depois vieram assumir cargos nas autarquias?
Elias Riscado: Houve muita gente. Uns foram para a vereação da Câmara e para a Junta de Freguesia houve uma dezena deles, para várias juntas de freguesia. Não é só na nossa, da Conceição. Em São Martinho e em Santa Maria também participaram alguns. E hoje, nas Juntas de Freguesia, ainda lá estão elementos que passaram por aqui.
P: Acha que o facto de terem estado aqui ensinou-os a gerir?
Elias Riscado: Eu próprio aprendi cá muito. Dei muito, mas também aprendi cá muito. Foi uma escola aqui... Tivemos cinco ou seis elementos que eram mesmo ativistas dos vários grupos, de esquerda ou de direita. E tivemos aqui um elemento, que apanhei na direção, que esteve preso várias vezes. Aliás, dois ou três estiveram presos. Ainda fui aí para baixo, para o Alentejo, foi julgado lá e eu fui abonar o depoimento dele.
P: Isso antes do 25 de Abril?
Elias Riscado: Não, depois do 25 de abril, porque ele era das Brigadas Revolucionárias. E fui lá abonar e levei uns elementos e conseguimos trazê-lo de volta. Depois foi aqui presidente, no grupo. Pronto, tinha aquilo, mas depois desligou-se completamente e chegou à conclusão de que aquilo não levava a nada, só prejudicava a vida deles.
P: Mas estava-me a dizer que era uma escola porque...
Elias Riscado: Era, porque depois esses foram todos criados aqui e agarrámos aqui os que conseguimos libertar desses movimentos todos. Ainda hoje são todos sócios, vêm cá todos quando estão no local, vêm visitar o grupo e eles próprios reconhecem que a formação aqui no grupo, com os elementos que já estavam, mereciam consideração e isso foi o que levou a afastarem-se. Hoje são colaborantes aqui, direitinhos, com as famílias organizadas, não têm problemas nenhuns. Mas aqui formação, formamos aqui muitos alunos. Cursos de formação até em como preencher os impressos, desde as coisas mais simples até às mais complicadas fizemos aqui muito cursos de formação. Entre eles, passou por aqui um elemento que está ali na Santa Casa da Misericórdia e ela fez um bom trabalho.
P: E as assembleias gerais eram muito participadas?
Elias Riscado: Algumas não, mas quando o grupo tem muitos problemas, como foi o caso quando eu estava para voltar, estava a sala cheia. Quando o Elias já cá estava e outros elementos de confiança das direções anteriores, já não vem quase ninguém, passa ao lado. Isso é típico dos sócios: está tudo bem, não precisam de lá ir. Este ano ainda não fizemos a assembleia para as cotas, porque o contabilista organizava tudo como deve ser, este contabilista diz que faltam lá uns papéis por causa da pandemia, mas vamos fazer agora, no final deste mês, a assembleia.
E já sei que os sócios, para contas, ainda menos cá aparecem. Quando é para eleições ainda aparecem…
P: E antigamente eram?
Elias Riscado: Vinha muita gente. Depois do 25 de Abril, toda a gente queria participar em alguma coisa, nem que fosse estar sentado numa cadeira para assistir. Havia muita participação.
P: E porque é que isso acontecia?
Elias Riscado: Bom, porque era a liberdade, depois de estarem oprimidos, não poderem fazer nada e não puderem, a bem dizer, sair de casa…
P: E criavam-se mais comissões a altura?
Elias Riscado: Sim, havia facilidades, mas nós aqui nunca tivemos grandes problemas. Quando organizámos as marchas – nós é que organizávamos as marchas da cidade – isto estava desmobilizado. Arranjámos 20 ou 30 pessoas para organizar as marchas. Não temos problemas com pessoal, às vezes até chegamos a dizer que já temos pessoal que chegue: seja que evento for, se precisarmos de 20 aparecem 25. Não andam por aqui como nós, mas quando são mobilizados aparecem.
P: E antigamente também era assim por comissões?
Elias Riscado: Não, era mais ainda. Aí é que aparecia muita gente. Hoje é preciso estar a chamá-los, a ligar-lhes, a falar com eles. Antigamente era espontâneo, quando sabiam que havia um evento caíam logo aqui. Ou, por outra, andavam cá sempre, com mais assiduidade ou menos assiduidade, andavam cá sempre. Mas apareciam logo. Este grupo, ainda hoje, não tem problemas nesse aspeto.
P: E diga-me uma coisa, qual foi a atividade mais marcante, que se lembra mais, de que gostou mais?
Elias Riscado: Eu, para além da direção, eu acompanhava o atletismo. Fiz milhares e milhares e milhares de quilómetros com o atletismo. Fui monitor da direção geral dos desportos, na altura. Fui monitor mesmo aqui da zona. Dava aulas aqui às escolas todas... Ainda me lembro de quanto é que eu recebia, 500 escudos, que tudo aqui para o grupo, que eu não queria nada. Por um lado, porque também tinha profissão, também nunca precisei e dava para aqui tudo, dava e dou.
P: Foi do que gostou mais, dessa parte do atletismo?
Elias Riscado: Foi do atletismo foi. Porque andámos no nacional. E do futsal, porque quando voltei para cá foi para arrancar com o futsal e hoje estamos a disputar a subida à primeira divisão. Tanto podemos cair na primeira como vamos para a terceira. Primeira, segunda ou terceira, o mais certo é a terceira. Mas também, da parte da revista que fizemos aí, eu acompanhava…
P: Como é que era? Explique-me lá.
Elias Riscado: Era uma revista, um musical. Chama-se As Relíquias. Cantavam, dançavam... A primeira revista foi lá em baixo na serra, ali numa rua, numa casa que era do Sá Pessoa. Depois é que mudámos para aqui, depois de construirmos isto é que viemos para aqui. Mas o palco ali era muito pequenino, estavam todos em cima uns dos outros. Quando íamos para outros palcos, já se libertavam.
P: E eram pessoas aqui do bairro que participavam, que eram os atores e as atrizes?
Elias Riscado: Era, era. Mas ainda participavam na revista umas 12 ou 25 pessoas. Ainda hoje se fala nisso, quando é dos aniversários.
P: Isso foi em que anos?
Elias Riscado: Foi na década de 70... Nós fizemos muitos espetáculos, andamos aí no distrito todo. E gostava agora de voltar com isso, pelo menos pôr a secção de teatro a trabalhar. Já tivemos, no ano passado ainda se fez uma peçazinha.
P: Quando é que começou essa secção de teatro? Foi antes ou depois do 25 de Abril?
Elias Riscado: Antes do 25 de Abril fizemos aí várias peças e depois continuou no 25 de Abril. E agora quero ver se isto dá, termino o mandato no final do ano. Já estou com 76 anos, há dois anos fiz o transplante do fígado, estava a ver que aí é que nunca mais cá punha os pés. Mas recuperei e ainda continuo.
P: Acho que o facto daqui da Covilhã ser uma zona muito industrial, ter uma grande tradição operário, que isso marca o associativismo?
Elias Riscado: Marca, marca, até pelas coletividades e agremiações associativas que tem a Covilhã. No país não deve haver tanta concentração associativa como aqui na Covilhã. Temos 200 e tal associações, o que é muita, muita associação. Porque antigamente a classe operária em qualquer bairrozito criava uma associação. Depois, é claro, essas fundiam-se e criavam uma maior. Mas havia muitas, muitas associações, mesmo de bairro. Depois foram-se alargando para apanhar outras. Mas mesmo assim, no campo desportivo, cultural, recreativo, nos campos todos, há cá muitas.
P: Porque é que os operários se juntavam para fazer estas associações?
Elias Riscado: Se calhar era para conviverem um bocado. Eu estou convencido de que a maior parte era para tentar evoluir um bocadito, sair do marasmo do tear e evoluir um bocadito. Isso é que era o essencial.
P: E acha que essa experiência de terem construído as sedes, de terem feito coisas tão giras, que isso passa para os mais novos, ou seja, os mais velhos contam estas histórias de quando construíram, do trabalho voluntário?
Elias Riscado: Passa, quando vêm estas fotografias, quando fizemos a exposição no ano passado… Há dois anos fizemos uma exposição disso tudo. Lá em baixo estava tudo cheio de um lado e do outro. Mas alguns riam-se, achavam piada como é que a gente andava ali feitos malucos a cortar a serra e a fazer cimento. Hoje também se dedicam a outras coisas, temos os computadores... Ainda hoje se nota, para a gente conseguir uma direção. Porque aqui tenho tido sempre malta nova, sou sempre o mais velho. Para ver se se aproveita um ou outro para continuar. Tinha aqui alguns que via com capacidade de fazer. E pensava: já me posso pôr ao fresco, já posso ir embora. Depois tenta-se trepar depressa. E quando se tenta trepar depressa faz-se asneiras e comete-se erros e quando se faz erros eu não admito. Erros grandes, não é erros pequenos.
P: Então, o que o que é que acha que vai ser o futuro do movimento associativo?
Elias Riscado: Vejo o futuro, talvez seja o futuro daqueles que eu estou a idealizar e que o futuro seja completamente diferente... Eu ainda sou daqueles que tinha de dar o litro pelas associações e pelas coletividades, mas estou a ver que isto caminha para outro campo completamente diferente. A malta nova trabalha, mas a maior parte deles precisa de ter alguém à frente a dizer “o caminho é este”. A assumirem cargos de responsabilidade cada vez vejo menos.
Por outro lado, na Covilhã também está a aparecer a parte feminina. Há associações em que as raparigas, as moças novas, é que já estão num plano muito, muito... Está bem encaminhado. E aquilo que eu penso é nisso. Não é de pá e picareta, porque isso já passou à história, mas aparecer... Aqui na coletividade não sei, para o ano vou ter umas dificuldades tremendas. Está ali um rapaz, que é o tesoureiro, ele não é de cá, é de Mangualde, está a estudar para ter o curso de gestão ou o que é e estou a ver se o meto. Mas eu vou para as reuniões para a câmara, vou para as reuniões em qualquer lado e ele não vem e isso é muito mau, porque a gente se não está à frente não consegue nada. Diz que na Câmara são muito chatos...
P: Então, mas diga-me uma coisa, como é que acha que grupo marcou a sua vida? Imagina sua vida sem este grupo?
Elias Riscado: Ainda há tempos, a minha mulher dizia-me “faz lá um balanço”. E eu: “Oh mulher, não me arrependo de nada, se voltasse atrás fazia o mesmo. Talvez prestasse mais atenção aos filhos do que prestei na altura. Agora, em contrapartida, compenso os netos. Agora deixo tudo para ir com os netos, para levá-los aqui e levá-los ali…
P: Porque é que não se arrepende? O que é que ganhou com esta participação?
Elias Riscado: Ganhei muitos, muitos amigos, inimigos não ganhei nenhum. Estoiro, mas
passados 10 minutos ou 5, já não se passou nada. O que é eu tenho, o que sinto aqui, é não mandar recados para ninguém. Eu é que disparo logo na frente das pessoas. Isso é capaz de ser um defeito ou uma virtude, não sei. Mas seja com quem for, seja com o presidente da Câmara seja com o Ministro, aquilo que eu sinto, eu disparo logo. Mas desconfio que arranjei amigos em vez de inimigos. Pode ser um ou outro, mas penso que não.
P: E para além dos amigos, o que é que ganhou mais?
Elias Riscado: Ganhei experiências para a vida. Fez-me na minha profissão, fez-me outra maneira de ser. Era tudo por igual, desde o trabalhador ao patrão. E foram muitos e muitos, muitas dezenas, ainda hoje, os que estão vivos que, se me encontram, fazem uma festa.
E isso é o essencial para a vida, para a gente resolver os problemas todos. Porque aqui os grupos, as coletividades, as associações, têm problemas e a gente tem que os saber resolver. Portanto, isso dá uma autoridade ao ser humano para o resto da vida, que encara os problemas seja como for. Eu estou convencido, quando tive o problema do fígado, eu já andava há 20 anos a ser tratado. Porque eu trabalhava muito na fábrica, mas também às vezes ia a casa tomar banho e ia para fábrica. Porque eu também ia muito às noites para as discotecas e bebia muito whisky e cerveja. E já lá vão uns 30 anos que não toco numa bebida alcoólica.
Só que agora, quando foi há dois anos, dois anos e meio, fez fevereiro dois anos, que fiz o transplante. Seis meses antes foi-me detetado um cancro no fígado. Fiz uns exames e, quando chego a Coimbra, uma médica daquelas novas ainda – eu sentei-me aqui, a minha mulher ali, o meu filho sentou-se ali – disse-me: “Sr. Elias está bom?” “Eu acho que sim.” “Sabe que tem um cancro?”, logo de rajada. Mas foi logo assim de rajada. Sei, porque uma coisa que tenho é que os exames são meus e abro-os todos. E sei ler as coisas, que tenho uma certa experiência do que lá está escrito. Quando vi lá o nodulozito, pronto…
Depois, com a minha idade, era um problema fazer um transplante. Lisboa e Porto já não faziam e em Coimbra fiz o transplante com 73 anos. Correu tudo bem e passado uns meses, dizia para a minha mulher, “mas quem é me mandou meter-me nisto?”. Andava dois ou três anos, mas levava tudo. Mas depois passou, mas agora já estou...
P: E ainda aqui anda, ainda aqui veio salvar o grupo.
Elias Riscado: Vamos lá ver. Porque eu quero deixar o grupo com a legalização e para a legalização disto é preciso fazer todas as especialidades. Gastar 5000 euros em especialidades, que estão a acabar agora. Vamos ter de gastar mais alguns 5000, porque precisamos de pôr um sistema de incêndios, que a Proteção Civil vem cá inspecionar. Neste corredor aqui, como tem mais de 15 metros, precisa de se meter duas portas corta-fogo. E isso é gastar dinheiro. E depois, já disse, o projeto do pavilhão já está aprovado, pela Câmara e pela Assembleia Municipal. Depois é avançar com o projeto do pavilhão. E eles já me disseram: “Vais avançar com o projeto e depois vais-te embora.” Vamos a ver...
Tenho um neto que se licenciou agora em Direito, com 22 anos, na Faculdade de Direito de Lisboa. Tenho outro bisneto. Não tenho problemas, que ele anda sempre direitinho, não sei se vai para Medicina. Está no 10º, vai para o 11º, é só dezoitos, dezanoves e vintes. O mais pequenito anda aqui na escola, tem 8 anos, costuma ir lá a casa: “Oh avô, já fiz os testes, já me entregaram, tive muito bom!” Agora é tudo para os netos, enquanto puder. O meu filho está a atravessar uma fase… está desempregado, têm de ser os avós.
P: Muito bom. Obrigada.
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2 de junho de 2021
P: Nasceu aqui na Covilhã? Em que ano?
Luzia Lopes: Sim, 1944.
P: E estudou aqui?
Luzia Lopes: Fiz a quarta classe neste sindicato, havia escola para os filhos dos trabalhadores com mais dificuldades, de maneira que fiz até à quarta classe aqui no sindicato e depois era preciso trabalhar, não é?
P: E foi trabalhar para onde?
Luzia Lopes: Fui para o Colégio das freiras aprender costura, porque naquela altura só se podia ir para as fábricas depois dos 14 anos, de maneira que fui para o colégio das freiras aprender algumas coisinhas de costura, que me deram um jeito a mais tarde… E depois daqui para a fábrica depois dos 14 anos.
P: E qual foi a fábrica para onde foi trabalhar?
Luzia Lopes: Pronto, eu fiz a aprendizagem numa fábrica que estava só assim um bocadinho a aguentar-se, o meu primeiro contato foi numa empresa, depois fui para outra empresa. Quando aí, então aprendi a profissão que tinha e depois fui para a fábrica até me reformar, onde estive sempre.
P: Qual era a sua profissão?
Luzia Lopes: Urdideira mecânica. Há aquela máquina que enrola os fios para depois fazer a largura toda da peça que depois ia para o tear e o tear fazia....
P: E foi sempre esse seu ofício até à reforma?
Luzia Lopes: Foi sempre esse até à reforma. Reformei-me por invalidez.
P: E os seus pais também já eram da indústria?
Luzia Lopes: O meu pai era tecelão e a minha mãe era cerzideira. Era metedeira de fios, que agora já se diz que é cerzideira, pronto, ainda bem.
P: E eram ambos daqui da Covilhã, não é?
Luzia Lopes: Sim, sim.
P: E casou, teve filhos?
Luzia Lopes: Tenho 2 filhos e tenho 4 netos.
P: E o seu marido também trabalhava....
Luzia Lopes: O meu marido é alfaiate [ri-se].
P: E trabalhava em casa?
Luzia Lopes: Em casa.
P: E os seus filhos, qual foi depois o percurso que eles fizeram?
Luzia Lopes: O mais velho tem 46 anos neste momento. Também fez só até à sétima classe. Ele não queria estudar e então foi para uma confeção de edredões. Mas depois começámos a aperceber-nos de que ele estava a entusiasmar-se com o dinheiro que ia ganhando, e nós vimos que aquilo era muito limitado para o futuro dele. E foi nessa altura que começaram a aparecer os cursos de formação profissional. Lá o conseguimos convencer a deixar de ganhar aquele dinheiro para investir na formação e hoje é mecânico na Mercedes. Pronto, está bem. O outro já estudou, é engenheiro mecânico, está em Angola. Pronto, está bem.
P: E viveu sempre aqui na Covilhã?
Luzia Lopes: Sim
P: É católica?
Luzia Lopes: Sou católica praticante. Claro, tinha de ser, porque é daí que as coisas depois partem. Não venham com dúvidas: tudo o que é fora, a gente debate-se com dificuldade, porque o ver, julgar e depois o agir, não está de acordo com aquilo que...
P: E filiação partidária, teve alguma?
Luzia Lopes: Não
P: Então e filiação associativa?
Luzia Lopes: Sim, como cristã tive várias coisas. Dei catequese a um grupo de jovens, cerca de 20 anos, Hoje já estão todos… já têm filhos e não sei quê, e depois, fazendo parte daquela equipa do LOC da minha freguesia, demo-nos conta do trabalho que a paróquia tinha feito e que nós colaborámos, demo-nos conta das dificuldades que os pais tinham em tomar conta dos filhos durante as férias, eram 3 meses de férias. É então que nos juntamos e estudamos o assunto e vimos o que é podemos criar neste tempo de férias, chamadas férias grandes na altura e então criamos um espaço...
P: Então estávamos a falar da vida associativa…
Luzia Lopes: Então, a partir daquele aprofundamento, daquele conhecimento da realidade que se vivia naquela zona - é uma zona pobre, havia a necessidade de fazer alguma coisa para ocupar o tempo livre daquelas crianças -, os esforços uniram-se, abriram-se algumas janelas, criou-se um grupo para fazer o levantamento de quantas crianças, o que é que os pais pensavam, procurar o espaço, a que portas a gente havia de bater, por exemplo. Foi esse trabalho todo. Durou 20 anos. Então tivemos de arranjar. Não tínhamos dinheiro para pagar a educadores e então um amigo nosso que era reformado, trabalhava nos serviços, disponibilizou-se para ir ensinar as crianças como se fazia… montava-se uma ficha... Arranjámos uma moça que hoje também já está reformada, também deu o seu contributo e várias pessoas, quer dizer, recorremos de gente que nós conhecíamos para dar um apoio. Por exemplo, o meu marido, à segunda-feira era o dia que menos trabalho tinha e então tomava conta deles. Pronto, então foi muito interessante…
P: Isso foi em que ano? Depois do 25 de Abril?
Luzia Lopes: Sim, sim, já já...
P: Então, mas se calhar começamos antes do 25 de Abril, sim?
Luzia Lopes: Pois, antes do 25 de Abril, a minha caminhada foi de facto na Juventude Operária Católica e foi de facto aí um meu espaço de formação, de sensibilidade, de luta, e procurando onde eu me situava. Como cristã, onde devia ser o meu empenhamento, não era fora das coisas, mas era dentro das coisas, quer nas associações, quer no sindicato, quer na empresa, quer na Igreja. Então, ao nível dessa situação, trabalhando na fábrica, antes do 25 de Abril, já havia alguns mais despertos para estas coisas dos direitos e tal. A gente já ia acompanhando um bocadinho a razão que levava também a falar e a denunciar.
Claro que nós éramos novas, pronto, nós éramos novitas, e foi então assim que se criaram na altura as Comissões de Trabalhadores e aqui eu entrei para uma Comissão de Trabalhadores com outros. Mas a dificuldade em ser mulher no meio dos homens, era que a mentalidade, cuidado… Era que às vezes os homens se deixavam emprenhar pela mentalidade das mulheres ou pela ideia das mulheres.
Pronto, houve aqui assim alguma coisa mas… Quer dizer, se eu estou no meio da massa, eu não podia desistir. Então, a Comissão de Trabalhadores continuou e havia um delegado sindical. E então havia uma coisa que nos fazia muita impressão, era que o delegado sindical vinha ao sindicato, às reuniões e tal, chegava à empresa e em vez de partilhar connosco um bocadinho do que se tinha visto, que se tinha analisado, o que é que iria fazer… Não, imediatamente, eles informavam era a entidade patronal. Não está correto, a gente devia saber primeiro o que é que os leva lá… Até que depois eu fui nomeada delegada sindical.
P: Mas diga-me uma coisa, antes do 25 de Abril já tinha feito parte de alguma Comissão de Trabalhadores, alguma greve?
Luzia Lopes: Não, não, foi só depois.
P: Mas participou nesta greve [greve em Unhais da Serra, 1969]? Então mas participou desta primeira experiência, foi a primeira experiência de luta ?Julgo que em Unhais da Serra...
Luzia Lopes: Não, eu não trabalhava para aí, eu trabalhava já na Covilhã. Eu não trabalhava na Penteadora. Mas tinha conhecimento. Tivemos conhecimento da informação que nos chegava cá, da luta que aquelas mulheres estavam a fazer, mas não estava lá.
Pronto, e assim começou um bocadinho a nossa ação na empresa. E assim, por eu ter estado nos movimentos operários, nos momentos de reflexão, de participação, de incentivar e tal a estarmos no meio, também me levou um bocadinho a integrar-me nas questões do sindicato, a nível da empresa. Foi então a partir daí que eu fui delegada sindical da empresa, Fernando da Silva Antunes. Já não existe. E foi a partir daí, porque me parece, sempre e ainda hoje, que a gente para exigir também tem de cumprir. E quem está disponível para se dar, tem de ser coerente com aquilo que defende. Não é porque o partido me mandou lá ou deixou de mandar, era porque eu acreditava que o meu contributo, com as minhas colegas de trabalho, com os meus colegas de trabalho, numa perspetiva de respeito, de coerência, de verdade e de dignidade, levava-me a comprometer-me e foi assim que eu comecei a assumir os espaços no sindicato.
Lembro-me que uma vez havia uma greve de duas quintas-feiras. Pronto, decidiu-se no sindicato, naquela altura eu já era delegada sindical, e a luta era porque as nossas empresas tinham metedeiras de fio de cerzir, cerzideiras, em casa, nas casas delas, nas aldeias e tal, mas não eram consideradas trabalhadoras da empresa. Porquê? Porque iam lá pôr os cortes e iam lá buscar. Então, houve duas semanas seguidas, duas quintas-feiras, em que o sindicato propôs uma greve para que as empresas, naquela altura, ainda havia essa força, para que aquelas trabalhadoras fossem consideradas trabalhadoras da empresa, para terem as mesmas regalias que nós tínhamos dentro da empresa: subsídio de férias, essas coisas todas. E na conversa, um dia, encontrei-me lá na casa de banho com uma e perguntei: O que estão a pensar fazer amanhã? Oh, não nos adianta muito vir, então não há ninguém. Pronto, olha, ainda bem, e sabe por quê? Porque normalmente fazem piquetes e os piquetes não é para tratar ninguém mal, mas é para esclarecer as pessoas da razão porque é que a gente está às portas e, sendo assim, não é preciso vir para aqui ninguém. Passou-se, passou-se.
Na outra quinta-feira, eu ia para pegar trabalho e já não me deixaram pegar trabalho. Quando o guarda me disse: oh Luzia, não pega trabalho que o patrão quer falar consigo. Esperei que o patrão me viesse chamar e a razão que ele me apontava era de que estavam ali aquelas raparigas para me acusarem, porque eu que as tinha ameaçado… E eu: desculpe, não foi assim. Em frente delas, a verdade foi esta: isto, isto, isto e isto... Bom, mas, desculpe, e ele voltava a falar e eu calava-me e perguntava: posso falar agora? Pode. É mentira, isto foi assim, assim, assim, assim. Pronto, nós estivemos ali duas horas e meia e nessas duas horas e meia a empresa para e batem à porta do escritório: nós queremos saber por que é que a Luzia está aqui. Se eu já estava um bocadinho a lutar pela verdade, aquilo deu-me uma energia… E o patrão ficou assim comigo: vá-se lá… E eu fui dizendo assim: ó senhor [...], há uma coisa que eu não entendo. Então o que é? O senhor vai à missa, que eu vejo-o lá muita vez, como é que o meu Deus me diz isto e o seu diz-lhe outra coisa? Já ficou um bocadinho... E depois diz-me assim: vá, vá-se lá embora, está a máquina parada, a máquina está parada desde as 8 horas. Mas foi o senhor que me chamou. Mas digo-lhe uma coisa, senhor [...], vale a pena lutar pela verdade, porque por cima da verdade ninguém vai passar. Foi remédio santo…
Pronto, e passado algum tempo ele chamou-me, que eu merecia mais algum dinheiro e que me ia dar 25 tostões. Aceitei aquilo como cumpridora do meu dever, porque eu era responsável, porque pronto, assumia... Mas depois comecei a sentir interiormente, à minha volta, que as coisas não estavam a correr bem, em termos de colegas de trabalho.
Não, isto não pode acontecer, antes quero dormir descansada do que estar a ganhar mais 25 tostões. E então fui lá: então Luzia, passa-se alguma coisa? Vinha-lhe pedir para me tirar os 25 tostões. É o que lhe digo, prefiro dormir descansada. E tirou, também não deu às outras
Pronto, isto criava aqui uma divisão… Não valia a pena.
P: Porque é que acha que foi eleita delegada sindical?
Luzia Lopes: Porque a minha intervenção já na Comissão de trabalhadores, não só nos dava… Nós não podemos ir atrás daquilo que nos mandam. Vamos parar para refletir se esta atitude ou se esta ordem ou se esta informação que vem do sindicato é aquilo que nós achamos… E se for preciso, chamamos... E foi a partir daqui que eles começam a ver que eu tenho outra outra forma de analisar, de ver as coisas... Porque daqui diziam e eu ia atrás disso? Pronto, não, isso não dava.
P: Já tinha havido outra delegada sindical mulher?
Luzia Lopes: Sim, sim. esta [...] foi delegada sindical e muitas outras antigas que a gente conhecia, na altura. Sim, sim, já havia muitas, mas era mais comum serem homens, claro, não tenha dúvida nenhuma. É engraçado, porque eu acho que os homens, como é que eu vou dizer, contentam-se, deixe-me passar o termo, um bocadinho com aquilo que se lhe diz, não têm, não são capazes de parar para ver se isto é o melhor, se isto pode responder agora, mas quais as consequências disto. Muitas vezes aqui nós debatíamos, porque eu acho que se investiu muito pouco na formação. Apostou-se muito na reivindicação, e dar formação às pessoas? Porque nós temos que reivindicar os nossos direitos, mas também temos cumprir os nossos deveres e porque, como cidadãos, como seres humanos que têm dignidade, nós temos que lutar por isto. Por esta razão e não porque o Partido mandasse ou deixasse de mandar.
P: E quando foi o 25 de Abril já estava envolvida no movimento sindical?
Luzia Lopes: Não estava. Foi a partir daí que eu me envolvi. Para nós, no trabalho, foi um dia para lembrar o resto da nossa vida. Que a gente acompanhava... Foi viver.
P: E depois, o que que aconteceu nesse período revolucionário, na sua empresa?
Luzia Lopes: A entidade patronal também se limitava a estar um bocadinho mais calma, para ver onde é que isto ia dar. Só que na altura nós tínhamos um dirigente sindical (que já faleceu) que já antes se falava e debatíamos e conversávamos e tal, e a gente já estava a acompanhar um bocadinho a realidade do trabalho. Há coisas de que a gente se vai lembrando. Eu lembro-me de uma vez, estávamos numa reunião da LOC, no grupo onde estava a nossa [...], a [...] era delegada sindical, e nós tínhamos a ordem de trabalhos do sindicato e, no grupo, refletíamos: olha, atenção a isto, porque isto pode nos levar para aqui. A nossa posição é como cristãos, a nossa atitude não pode ser a atitude de um partido. Mas às vezes acontecia-nos, às vezes eu ficava até um bocadinho arreliada... E então dava-se aqui uma volta que as pessoas ficavam um bocadinho com a noção de que era preciso ir por ali, se não foi isso que nós refletimos.
Nós refletimos, nós aprendemos, ensinamos, desfrutámos do que o ver, o julgar e depois o agir de acordo com aquilo que nós estamos a refletir. E, como cristãos, nós não podemos andar uns por um lado e outros por outro.
Vou contar uma história muito interessante. Um dia, era aqui em baixo e viemos a uma Assembleia Geral. Era um sábado, na altura, e depois eu dava catequese às cinco horas, e eram quase cinco horas. Estava muita gente, naquela altura, estas assembleias eram… Dava gosto. Assim, pronto, eu tenho de me ir embora e estava um senhor à minha frente, que trabalhou até com o [...], e eu...oh, eu tenho que me ir embora já, que tenho de dar catequese às cinco e meia. Catequese? Sim. Mas chego à Igreja, e tive o mesmo efeito. Digo assim à dona [...]: Hoje já me descuidei um bocadinho, eu estive no sindicato. No sindicato?
Por isso, eram coisas… Quando nós achávamos e refletíamos que era no meio da massa que as coisas se transformam, não é fazer aquilo que os outros dizem, mas é aquilo em que eu acredito, passa por aqui também. Pronto, e tivemos assim algumas coisas, como por exemplo, fazermos parte de um departamento das mulheres e ser um homem a coordenar as coisas?
P: Isso onde?
Luzia Lopes: Na União de sindicatos.
P: E depois o que é que fizeram?
Luzia Lopes: Então, claro, o homem não dava conta de nós [ri-se]. Um homem não dava conta de nós, não é? E pronto, foi assim. E há outras. Uma vez estávamos também a preparar o Dia Internacional das Mulheres e conseguimos passar um bocadinho, o parar para refletir, vamos lá com calma, isto é importante, não é importante… O que é que nós vamos fazer, que tipo de luta nós vamos fazer, e às tantas estavam em minoria e começaram a chegar mulheres.
E de onde é que você vem? Oh, foi o meu marido, que estava no partido, e telefonou-me para eu vir...E isso ainda nos veio dar mais razão de que o ser e estar disponível e o agir tem que ser de acordo com a dignidade da pessoa, seja ela preta ou branca.
P: Então, já percebi que aqui havia uma certa tensão entre o movimento católico e os delegados sindicais ligados ao Partido Comunista. Mas foram trabalhando em conjunto...
Luzia Lopes: Tinha de ser, até porque, por exemplo, nunca o Partido Comunista fez - nunca não é bem o termo, nalguns anos faziam - uma lista sem virem convidar-nos a nós. Porque era importante estar alguém da Igreja em nome da lista e eu disse ao [...], pela mesma razão que me vens convidar para eu estar aí é a mesma razão que eu te digo que não é necessário estar lá. Porque era um bocadinho para compor o ramo. Pronto e aqui às vezes havia… e nunca alinhámos. Pronto, juntos na ação, quando é preciso estar ao lado dos trabalhadores da luta, que é preciso reivindicar. Claro que nunca foi nada dado de mão beijada, mas não alinharmos só para alinhar, questionarmos, porque assim é que as pessoas cresceram. Olhe, não sei se estou a responder.
P: Agora queria fazer outras perguntas, mais de nível pessoal. Qual é que acha que foi a propensão para participar nestes movimentos? Já tinha pessoas de família que estivessem envolvidas?
Luzia Lopes: Atenção, a minha mãe tinha quatro filhos. Teve quatro filhos, dois já partiram e ainda somos dois. E nenhum se envolveu por aqui. Eu, a minha mãe dizia assim muita vez: tinha dois filhos, veio a menina, deve ter sido… Eu vim com alguma missão. Pronto, e eu sinto… e eu comecei quer na Comunidade, depois na JOC, as caminhadas da JOC, o aprofundar, comecei a tomar uma consciência maior de classe, que era preciso pôr em prática. Pronto, e foi a partir um bocadinho… Por isso é que digo: a JOC ajudou-me a situar-me como pessoa, a lutar pelo que eu tinha direito, no respeito pelas pessoas, mas sobretudo pela dignidade da pessoa. Portanto, para mim foi a minha escola.
P: Foi muito importante na sua formação pessoal?
Luzia Lopes: Muito, ainda hoje. Eu estou na LOC, mas ainda hoje a gente aprende uma coisa: dificilmente nos dizem o contrário, não têm capacidade para dizer o contrário. Isto revela-se na família, revela-se na comunidade. O que é verdade tem que ser verdade até ao fim, revela-se no movimento associativo, por aí fora. E como eu estava a dizer há bocadinho, criámos uns tempos livres nessa altura. Então, uma associação que havia, que eram os brincalhões, que hoje já não existem. E conseguimos falar com a direção e tal, porque era uma associação de bairro. Conhecíamo-nos todos uns aos outros e na altura era fácil, porque a gente andava por ali, os nossos homens eram dirigentes e tal. Então fomos fazer a proposta para que nos deixassem um espaço para angariar os miúdos todos. Foi-nos dada uma salinha térrea, eu trouxe da fábrica umas colas para pôr no chão, para os miúdos se sentarem, fizemos umas almofadas grandes, porque não tínhamos nada… E pronto, e assim começaram os tempos livres, naquele espaço que havia um quintal. Um dia ia-se para a Ribeira lanchar e depois chegava-se e fazia-se uma revisão do que se tinha feito no dia. Outro dia caminhávamos para o monumento de nossa Senhora e fazia-se uma revisão de como é que foi o dia... Fazíamos assim. Isto durou, assim aos saltos, três anos. Entretanto, aparece-nos uma pessoa amiga não sei de onde, que era assistente social, e teve conhecimento do trabalho que estamos a desenvolver e nos procurou para ter conhecimento do que estamos a fazer. Nós já tínhamos feito um acampamento na Serra com as tendas. Quando estavam os pais, todos colaboravam. Foi muito interessante. E então, esta senhora veio-nos abrir as janelas para avançarmos com esta atividade muito mais séria, muito mais dinâmica e também com muito mais apoios. E então, desde irmos às juntas de freguesia, irmos a câmara, abriram-se as portas assim.
Depois, entretanto, aquela associação começou... Só tinham um espaço pequenino e as pessoas valorizavam mais o jogo das cartas. E então começámos a sentir uma pressão. Na altura, outra associação, que é o Oriental de São Martinho, que é uma coletividade com uma dinâmica já bastante grande. E então nós soubemos que a casa do lado tinha sido desocupada, as senhoras tinham morrido e que seria dada ao Oriental… E então nós pusemo-nos em campo, fomos à Junta de Freguesia e por aí lá furamos o esquema e lá nos deram uma sala. Então aí já tivemos educadoras que já nos davam algum contributo, que se tinham formado, mas não tinham sido colocadas. Dávamos assim um contributo através do subsídio de alimentação, que a gente conseguia dar, e então quando começámos a entrar por aqui, aquilo foi mais localizado e aquilo avançou.
P: E foi no âmbito da JOC ou da LOC, que foi pensada essa iniciativa?
Luzia Lopes: Esta iniciativa foi pensada no grupo da LOC. Porque nós tínhamos feito, a Comunidade tinha feito, um projeto. A Comunidade dividiu-se em grupos, nas zonas: tu ficas com esta zona, tu ficas com aquela e nós tínhamos umas folhinhas que dávamos a conhecer, mas era uma aproximação que se fazia com as pessoas que moravam naquela zona. Ora, eu fui criada para além, calhou-me a zona que me dava jeito, pronto.
E então, ainda trabalhava, o grupo nasceu, algumas pessoas que se disponibilizaram fazer … Quantos filhos tinham? O que é que achavam se nós conseguíssemos fazer isto? Porque é que as crianças ficavam tanto tempo em casa? O que é que elas faziam naquele tempo? Eu às vezes ponho-me assim a pensar: de facto, nós já fizemos muita coisa.
Os pais começaram a colaborar, desde cortarem as pernas das mesas da cozinha para pôr as mesas pequeninas e as coisas começaram assim e foi bem. Depois fomos para o Oriental e entretanto dá-se o mesmo problema: os homens precisavam da sala para jogar às cartas e a gente começou a sentir uma pressão. E então a pressão foi de tal maneira, existia uma comissão de pais... Era eu que geria a questão financeira. Os miúdos pagavam X, nós pagávamos à educadora e depois e o resto seria para saídas. Saímos no autocarro da Câmara, fizemos uma visita ao Portugal dos Pequeninos, fizemos muita coisa nos tempos livres de apoio às crianças. Mas depois começámos a sentir, porque as direções dos grupos vão mudando e entrou então uma direção que achava que os tempos livres deviam fazer parte da associação, que era uma coisa que dava nome. Nós não estamos contra que se faça parte, queremos é que tenha uma gestão independente, porque as direções mudam e como de facto, as coisas mesmo acabaram por acabar. Mas pronto, enquanto duraram foram boas…
P: Então, isso já foi no âmbito da LOC. E a JOC, começou a participar na JOC antes do 25 de abril?
Luzia Lopes: Sim!
P: Em que tipo de atividades é que se envolveu no âmbito da JOC?
Luzia Lopes: Nós aprendemos na JOC a fazer cursos, formação para o casamento. Nós aprendíamos como se cosiam as meias, coisinhas que hoje a malta não sabe fazer, mas que alguém nos ia… Naquele grupo, adultos nos iam ensinar algumas coisas, como é que nós nos preparávamos para a vida? Eu acho que foi de uma riqueza, que há coisas nunca mais se perdem, nem se esquecem e não deixam de ter sentido.
P: Mas já trabalhava, Luzia? E no âmbito da JOC, também se discutiam as questões do trabalho?
Luzia Lopes: Com certeza. Pronto, dentro da nossa capacidade de conhecimento, porque nós tínhamos já a gente adulta que já estava no sindicato antes do 25 de Abril e que nos… Eu posso lhe dizer abertamente. Por exemplo, eu lembro-me de quando queríamos ir para alguma atividade da JOC, os nossos pais não tinham dinheiro e então eram as pessoas mais antigas da LOC, e uma delas, como dirigente sindical, foi presidente aqui do sindicato, que nos ia dar 500 escudos para nós irmos às atividades da JOC. Os nossos pais não nos podiam dar dinheiro. Portanto, isto ajuda um bocadinho a formar a nossa consciência, também do que somos e do que podemos aproveitar daquilo que somos.
P: E quais é que eram os tipos de atividades, para além dessa formação para a família, que outros tipos de atividades é que desenvolviam?
Luzia Lopes: Fazíamos encontros alargados com outras dioceses, que depois se refletia no que o grupo fazia, desenvolvia-se no seu âmbito, quer no trabalho quer na comunidade. Então, esses encontros que se faziam a nível nacional, e que depois a gente começa a ter consciência, de facto, que não somos só nós que temos estas dificuldades, em Braga também têm, no Porto também têm, e então passava por aí essa formação. E depois tivemos, tivemos e temos o padre [...], que é um doce. Foi o nosso pai, que tantos buracos tapou, que a gente não se podia movimentar… Mas nunca nos travou. Tem coragem e vai. Vai lá que tu consegues. Este incentivar, “tu és capaz de fazer, fá-lo como tu sabes”. E lá íamos nós para os encontros. É engraçado, como é que, hoje penso, como é que... Naquela altura os meus pais me deixaram ir, não é?
P: E depois traziam esses ensinamentos?
Luzia Lopes: Pronto, e depois a malta reunia-se por vários grupos, fazíamos um encontro alargado e partilhávamos o que é que soubemos da outra diocese, como é que eles tinham reagido, qual tinha sido a revisão de vida que fez Aveiro. Um bocadinho assim nessa linha, porque depois passávamos esta mensagem e este entusiasmo também, para que as pessoas...
P: Explique-me lá isso da revisão de vida, como é que se faz?
Luzia Lopes: Então, a revisão de vida é assim, passa por uma pessoa e por uma realidade que a gente apresente. Por exemplo, havia uma casal em que tinha uma filha em que lhe dava imensos problemas. E isto depois, parecendo que não, contaminava o ambiente em casa, pronto. Um dia chegava alguém e olha: fulana isto assim, assim… Começávamos. Porque é que Isto acontecia? Vamos aqui fazer a revisão, porque é que isto acontece? Acontece porque o pai trabalhava, a mãe trabalhava em casa e não se dava muita atenção ao pormenor dos filhos, ainda hoje acontece. E então chegámos à conclusão de que, de facto, o problema também era dos pais. Pronto, então vimos esta situação.. agora o que é que fazemos? Agora não é só atirar... Como é que nós vamos e por onde é que nós podemos entrar para fazer esta ação para agir perante esta situação? Pronto, e o mais engraçado é que não começámos pelos pais, sendo que eram os pais que precisavam mais, começámos pela miúda. Fomos conversar com a menina. Encontrávamos, partilhávamos as coisas e tal. E a miúda foi percebendo o lugar dela e o respeito para... porque para tu dizeres alguma coisa, tu tens que ter consciência do que estás a fazer. E para provares aos teus pais que é por aqui... então começamos a trabalhar a própria miúda, e depois até veio para a JOC.
São coisas concretas. Por exemplo, as questões do namoro. Era uma coisa que se debatia muito. Eu lembro-me que a primeira vez que comecei a namorar, assim, como é que eu… Foi engraçado, eu fazia anos, a minha mãe não sabe, como é que eu vou fazer? Então fui mais uma colega e dois colegas, a casa dele, lanchar. Ele lá preparou a família. Então queres crer que eu vim para casa e não consegui deitar-me enquanto não disse à minha mãe que tinha ido. Isto dá para perceber…
P: E como é que se articulava esse trabalho da revisão de vida com ação sindical?
Luzia Lopes: A nossa ligação com o sindicato, a partir do 25 de Abril mais concretamente, já passava por aquelas amigas que nós cá tínhamos, que eram da LOC e que já eram dirigentes sindicais há muito tempo e que nos iam passando. Porque a JOC também se encontrava com a LOC, nos grandes encontros encontrava-se, e a gente ia aprendendo como elas faziam. Por isso, a nível da JOC, eu não estive muito dentro do sindicato. Por exemplo, a [...] acho que esteve diretamente ligada, na altura já era dirigente ou foi a partir daí que ficou dirigente livre.
Eu, quando comecei a participar no sindicato, ainda não era, deixe-me passar o termo, a casa do PC. Ainda havia alguma abertura, ainda havia gente aqui consciente. Pronto, esse tal meu colega, que trabalhava lá comigo, que já nos ajudava, ele era dirigente sindical e a gente começou a aprender. Mas depois eles começam também a querer tomar poder. E então queriam-se meter de qualquer maneira, não é? E depois havia aqui assim uma...
Pronto, muitas das vezes a gente ouvia dizer: eles que façam lá… Não, é preciso estar lá para ouvir e qual é o nosso parecer. E passaram-se assim algumas coisas. Eu lembro-me uma vez, estávamos numa Assembleia, e um rapaz, já faleceu também, tinha dificuldade em se exprimir, não tinha o dom da palavra, mas fê-lo como soube, e logo assim: mais valia estares calado. E então aqui a gente refletiu: não, desculpem lá, mas o [...] tem direito a falar como as outras pessoas. Eram pequeninas coisas, mas era a maneira de estar e de ser nas coisas grandes. E não é por acaso que hoje tenho uma relação com o [...], não assim muito grande, mas pronto, mas tenho uma coisa, depois é uma questão afetiva também, ele vem, medita, cresce, a gente vai acompanhando, sem medo nenhum de lhe dizer: tu assim por aqui não vais lá. O nosso ponto de vista é este e discutíamos muita vez, pronto, e ele sabia que era por aqui e não é por acaso que muitas vezes, já não é a primeira vez que que há atitudes destas, deste género, e a gente dá o nosso contributo, com aquilo que sabe e aquilo que fez, não fazer mais aquilo que sabe. Foi aquilo que se fez?
P: A Luzia foi dirigente do sindicato Têxtil da Beira Baixa. Como é que foi, quando é que foi?
Luzia Lopes: Pois… Quando? Eu tenho cartões de dirigente sindical. Na altura em que eu fui dirigente sindical, já tinha passado por ser delegada sindical e membro da Comissão de Trabalhadores, já tinha feito um caminho. E até lhe vou dizer uma coisa. Numa altura em que nós, o grupo, um bocadinho avessa daqueles, criámos uma lista, que era a lista B. Isto porque havia todo um trabalho, todo um acompanhamento que a gente vinha acompanhando que não era por aí, não pode ser só por aí. Os outros também têm direito, pronto, e então um dia nasceu a lista B para concorrer com a lista A. Parece mentira, mas a diferença foram 12 votos. Era meia-noite, estavam em Unhais da Serra a dizerem ao Grupo da LOC que a lista B tinha desistido e eles ficaram: olha, então temos que votar na A. Quando nós nos apresentámos no dia das eleições, na Penteadora de Unhais, para proceder à votação, então, mas pronto, isto é um bocadinho quererem nos tirar o tapete. E aí ganhámos… por 12 votos. Passaram-se muitas coisas, mas pronto é assim, era o que havia. As pessoas também tinham se calhar necessidade de se afirmarem, é da forma como eles achavam, mas não era a minha, nem era a de muita gente. Nós temos também de ter lugar em algum lado.
P: E enquanto dirigente do sindicato têxtil, que tarefas é que tinha?
Luzia Lopes: Pronto, eu estava naquela altura na assembleia, ia às reuniões que faziam. Naquela altura, discutia-se muito o contrato coletivo de trabalho. Era mais nessa linha e a reflexão ia sempre na linha de defender sempre o contrato coletivo de trabalho. Pronto, agora já nada é assim. O contrato coletivo de trabalho é para todos, não é só para aquele ou para aquele, mas seria para todos. E então isso também nos dava um poder de reforçar um bocadinho a nossa luta para que todos tivessem os mesmos direitos, depois começaram a aparecer os contratos de empresa e as coisas começaram a ser diferentes. Mas nos sindicatos, normalmente, nas assembleias, nas reuniões de direção, era assim que funcionava.
P: Lembra-se da greve dos mil escudos? Participou?
Luzia Lopes: Perfeitamente.
P: Como é que foi?
Luzia Lopes: Ainda hoje tenho uma coisinha de louça que eles nos deram, um dia que fizemos… Passado quantos anos? Aqui neste sítio, uma lembrançazinha. Pois foi, e mais uma vez a ação da LOC aqui esteve presente. Eu parece que estou a ver a olhos vistos o [...], que já morreu, que era na altura dirigente sindical, e estávamos lá em baixo, numa coisa que se chamava a FACEC, era um pavilhão onde a malta se encontrava, e lembro-me que chegou a malta de Unhais da Serra num autocarro, que eles ficaram bocadinho a tremer. O direito… nós queríamos os mil escudos, porque era para todos igual. Porque houve sempre diferença de homem para mulher e até nos mesmos setores. E pronto, foi um período forte.
P: As Mulheres também conquistaram os mil escudos?
Luzia Lopes: Sim, sim, foi igual para todos e tivemos umas semanas boas de greve, de fome, mas depois também sentimos a solidariedade vir aí. Foi um marco na minha vida, pelas duas maneiras: primeiro porque provou-se que se as pessoas estiverem unidas nós conseguimos; segundo, porque os mil escudos não eram nada demais para a vida que se estava a ter; e terceiro, sentiu-se a solidariedade. Porque ninguém sozinho consegue fazer nada, mas se a gente sentir que tem outros do nosso lado e a apoiar-nos, pronto, então as coisas conseguem-se.
P: Dê-me lá exemplos dessa solidariedade ...
Luzia Lopes: Por exemplo, a nível do PC, vieram na altura, eles também estavam organizados, e vieram do Alentejo com material, feijão, grão, sardinha, percebe? De vários lados e depois foi distribuído pelas pessoas que mais precisavam. Mas depois também foi um incentivo para nós. Eu lembro-me quando foi das Minas da Panasqueira, quando estiveram em greve, vieram para aqui para o pelourinho, fazer greve, estavam aqui e tal, uns a dormir no chão e eu também peguei em mim e vim buscar um casal, que traziam dois filhos, levei-os a casa, dei-lhes de jantar, tomaram um banho e vim cá pô-los. Pronto, era um bocadinho assim.
P: E também houve outra greve muito importante, dos 29 dias, em 1981.
Luzia Lopes: Foi essa, foi a tal solidariedade. 1981, eu vou-lhe contar. Foi uma greve muito complicada, aí é que houve porrada e eu estava grávida. Eu estava grávida e achei que não me devia ir meter ao barulho lá para baixo para a Paulo de Oliveira, mas estava a ouvir. Ouvíamos nós na rádio e diziam eles: cuidado, tende cuidado que a GNR está a cercar a vila... Isto começa a ferver, eu e mais outras pessoas. Então mas aqueles tipos estão lá sem comer e tal? Então pegámos em malgas de marmelada, pão, e fomos ter Boidobra a pé, eu não sei como é que a gente conseguiu fazer isto, para dar de comer àqueles... e lembro-me que quando lá cheguei, já estava tudo... pronto. Depois o pessoal vinha sair da empresa e a malta estava cá fora para barrar: eh pá, mas depois também há aqueles que são do extremo, às vezes não precisávamos também de atirar pedras nem nada. Eu também sou contra isso. Mas eu quando cheguei lá, já vejo uma colega minha do trabalho com a cabeça a deitar sangue e há um rapaz, que também já morreu, dizia-me assim: foge daqui, que eles vêm aí atrás… Mas eu, então mas eu não fiz mal a ninguém... E a GNR vem ter comigo e diz-me assim: o que está aqui a fazer? Eu não fiz mal a ninguém! Vá já com esta senhora hospital para o hospital e venho com a minha colega, que estava a escorrer sangue para o hospital.
P: Essa foi uma foi uma greve...
Luzia Lopes: Foi, foi muito dura, foi muito dura, mas eu depois também fico com pena porque as pessoas ficam só nesse sítio e não continuamos a desenvolver este espírito, as pessoas ficaram com medo, alguns.... Mas foi, foi muito duro.
P: Mas acha que depois dessa greve foi diferente?
Luzia Lopes: Tinha que ser, tinha que ser diferente. Porque aqueles que iam trabalhar, porque eles iam para ali, foram para aquela empresa, porque havia gente a trabalhar. Ora, não é fácil a gente estar cá fora há tantos dias sem ganhar dinheiro e os outros irem trabalhar e fazerem sábados e domingos. Quer dizer, era uma revolta. Penso que mesmo para as pessoas que estavam lá a trabalhar deve também ter sido uma aprendizagem. Porque não é para se ganhar mais uns tostões que se chega a algum lado. Mas pronto, foram coisas duras. Por exemplo, nós vínhamos às 5 da manhã, para nos juntarmos aqui no sindicato, para irmos para a porta das empresas. Eu sempre disse: não quero porrada, esclareçam as pessoas. Sempre fui sem medo nenhum. Mas assisti a alguma porrada. Mas sempre fui, deixava o meu homem e os meus filhos em casa.
P: Como é que seu marido…
Luzia Lopes: Pois, é muito engraçado, porque... Eu também já casei com algum contrato (ri-se). Eu vinha de uma relação de cinco anos, o dia em que faço cinco anos é o dia em que o meu marido morre. De cinco anos de sofrimento, de luto, o caminho para Lisboa… Eu já tinha namorado o homem que tenho hoje, e digo assim: eu só me caso se eu puder continuar a fazer toda a minha ação, que minha ação que eu tive necessidade de parar agora neste momento. Pronto, ele nunca me impediu, quer na LOC quer no sindicato, nunca me impediu. E às vezes as nossas discussões é porque eu sou mais… como é que eu hei de dizer? Não, tu disseste que era assim, assim é que tem que ser, eu sou mais um bocadinho… porque os homens são mais um bocadinho, até se esquecem do que disseram (ri-se). Estou a falar de mais, mande-me calar...
P: Não, não, não está, está ótimo. Mas diga-me uma coisa, depois dessa greve de 1981, tem sido sobretudo um período difícil, com muitas empresas a fechar. Como é que avalia esse período?
Luzia Lopes: Muito desemprego... Foi muito complicado. A salvação foi a universidade. Foi muito complicado, muito desemprego, casais nas mesmas empresas, muitas lutas, na medida em que se tem capacidade para perceber que a empresa vai abaixo... não querem aguentá-la. A gente tinha noção disso e deixa-se assim por não ter compromisso e fica-se a dever muitos meses às pessoas. Quer dizer, foi terrível. Foi terrível.
P: E como dirigente sindical, esteve envolvida nalgum desses processos?
Luzia Lopes: Nessa altura, se calhar já não estava na União, mas nós nas reuniões aqui acompanhávamos a empresa tal: o patrão disse isto, está-nos a ameaçar.... Nós íamos acompanhando nas assembleias que íamos fazendo, estávamos sempre a par das coisas: na minha, não, pronto. Eu também me reformei com 50 anos, que é outra questão, não sermos preparadas para precaver as doenças profissionais. Nunca ninguém nos tinha falado nisso.
Passado um tempo é que começaram a ver as equipas lá nas empresas. Eu era urdideira mecânica e trabalhava na bordadeira, e então a minha posição era sempre com a perna direita a carregar no pedal para a máquina andar, de maneira que eu fiz isto, fiz uma escoliose.
Andei, andei até que depois, há 20 anos atrás, foi para os ossos, um problema, o micróbio das tuberculoses em vez de ir para o pulmão, foi para aqui, para o meio das vértebras e então fiquei toda coisa, desde partir uma perna a andar... E pronto, se está bem que as máquinas não estavam preparadas para cuidar dos trabalhadores, estavam preparadas para produzir, mas nós também nunca fomos alertadas para a prevenção, para o que a gente podia ir fazendo, por exemplo, sei lá, em vez de estar tanto tempo, podíamos não sei como encontrar ali uma alternativa ou por o estrado mais alto... Quer dizer, não pensávamos, nós não tínhamos capacidade para pensar, podíamos ter evitado muita coisa a nível de saúde.
Eu lembro-me que na altura aquilo era frio, quando fomos para a fábrica nova, que aquilo era frio e puseram uma caldeira grande, uma virada para um lado e outra virada para o outro e que trabalhava com nafta, mas aquilo deitava um cheiro do diacho. Todos se queixavam, todos se queixavam, mas a uns fazia mais diferença do que outros já.
O que é que acontece? Acontece que aquilo fazia uma dor de cabeça, porque o calor vinha diretamente para a nossa cabeça, mas assim isto não pode continuar. Depois chamámos, falámos à entidade patronal e tal: mas também não vos percebo, não há de ser do frio. Pronto calámo-nos bem caladinhos e fomos ao Ministério Trabalho: existe um aparelho na nossa fábrica que faz isto assim, assim… vira-se diretamente para nós e nós não conseguimos trabalhar. Foi lá a fiscalização e aquilo teve que ser fechado.
Por outra vez, aquilo era frio, puseram-nos um radiador por cima, uns araminhos, um radiador numa… (?) assim por cima. Ai caraças, parecemos uns pitos do aviário. Andámos, andámos, isto assim não pode ser: senhor, tire lá os radiadores, porque nós não somos pitos do aviário para estarmos a chocar. Pois o que queria era pô-lo aos pés, se não quiser pôr aos pés não ponha. E então puseram-nos aos pés.
Outra vez, era para fazer umas horas e tal: eu faço se puder, se não puder não faço, as outras faziam, durante o dia podiam andar calminhas, mas depois chegavam as cinco horas.... Eu com o trabalho já pronto: Não, eu não faço. Se for preciso para desenrascar um tecelão, eu fico. Mas para fazer coisa assim, não fico, pronto. O que é que aconteceu? Aconteceu que tive uma semana encostada à máquina sem trabalho e as outras a fazerem horas. Um dia, chega lá o patrão, ainda hoje é filho: veja lá se quer uma cadeira, se calhar não era pior. E não... E pronto, passa a gente por várias coisas assim, não é? Mas que nos dão aqui uma.... (ri-se)
P: Então e depois de se reformar, continuou a participar no movimento sindical ou virou-se mais para a LOC?
Luzia Lopes: Pronto, nos reformados, eu fiquei um bocadinho aquém, porque o problema da minha saúde foi muito complicado. Eu estive três meses e meio nos [Hospital dos ] Covões, fora o tempo em que eu estive aqui nos hospitais. Agora estou a lutar contra uma doença autoimune, sequelas da tuberculose. Continuei com um grupo de jovens na catequese, já não era uma catequese, era grupo de jovens que já tinham feito o Crisma, e na LOC. Convidaram-me muita vez para vir para os reformados, mas eu não achava muita graça. Por exemplo, estou a participar num clube sénior e a gente a aproveitar o tempo da melhor maneira, aquilo que a gente gosta de fazer, cidadania, envelhecimento ativo, informática. Agora ir só para lá para beber o chá, para… Nunca fui para os reformados.
P: E na LOC, depois, que tipo de atividades é que desenvolveu?
Luzia Lopes: E desenvolvemos... Então, temos o Congresso, que é de três em três anos. Há temáticas para cada ano, desses três anos, sobre a dignidade do trabalho, agora este ano o que estamos a pensar, o que se está a trabalhar é as novas tecnologias, o trabalho em casa. Ainda agora vai ser a equipa nacional sobre os prós e os contras do teletrabalho. E há sempre uma altura das reuniões que se faz a revisão de vida. Hoje já são os homens, já são os velhos, já são os filhos, já são os netos: ah… no nosso tempo não era assim. Mas agora, neste tempo, estamos aqui, que resposta é que... Já passa por aqui um bocadinho a nossa ação, porque somos já quase todos reformados, mas achamos que não somos velhos, eu às vezes digo assim lá em casa: eu tenho como velho um idoso. Porque o idoso, pela idade, mas não para, vai estar nestas coisas e tudo o mais. E, por exemplo, no próximo sábado vamos ao passeio promovido pelo grupo. O que é que nós ontem estivemos a dar, a aprender, a trabalhar, a fazer a língua gestual. Nunca tinha pensado nisto. Então e o aprender, não é bom? Não sei se é preciso nem se não, mas aprender é sempre bom.
P: Quais são as responsabilidades que tem agora na LOC?
Luzia Lopes: Agora não tenho nenhuma. Porque também pela idade, que muitos se reformaram e já estão em casa. Então, o que é que nós criámos? Uma equipa interparoquial, com os da Boidobra, com os do Ferro... Não deixámos parar e fizemos uma equipe Interparoquial. Eu continuo como animadora daquele grupo dos meus lados, em que é preciso convocar, é preciso chamar, é preciso dizer: olha, vamos fazer isto. Continuo a fazer um bocadinho a dinamização daquilo que me cabe a mim, no meu lado: olha, já avisaste fulana? Pronto, e outros fazem, outro é o tesoureiro, outra é a coordenadora, e pronto, vamos fazendo assim.
P: E continua a participar nos encontros nacionais?
Luzia Lopes: Não, só vai a equipa nacional. Vou ao Congresso, aos congressos, que são abertos a toda a gente. Só os delegados é que podem votar, mas os convidados podem participar, aí vou. Agora, participar, participar ativamente, só os delegados é que podem votar.
P: Qual é a importância desses momentos, dos congressos?
Luzia Lopes: É muito importante, muito importante. Para já, é um marco importante, nacional. Segundo, é um desafio à própria Igreja e ao movimento sindical. Porque se trata dos problemas dos trabalhadores, da vida dos trabalhadores. E, como trabalhadores cristãos, nós temos um papel, é diferente, mas temos que estar lá. Não somos mais, somos diferentes, vemos as coisas por este lado. Por isso são importantes, porque a gente se encontra com aquela gente toda dos outros lados e porque cada zona tem sua realidade. Embora o tema do trabalho seja a mesma coisa, mas os pontos de vista e as realidades lá podem ser diferentes dos de cá e então são muito importantes, são marcos muito importantes.
P: Diga uma coisa: acha que a JOC e a LOC foram importantes para promover a participação das mulheres na vida social ?
Luzia Lopes: Não tenho dúvida nenhuma. Porque então é o que eu estava a dizer, porque os sindicatos nunca se preocuparam muito com a formação das pessoas, porque uma pessoa formada da cidadania encontra onde se encaixar, naquilo onde eu possa fazer alguma coisa boa, que era mais um poder reivindicativo. E quer queiramos quer não, a mulher tem também um lugar próprio, em todos os lados, quer no movimento sindical, quer na Igreja. Há dificuldades? Há. Em aceitar? Muitas. Mas as mulheres são importantes.
P: Que tipo de dificuldades e como é que os ultrapassou?
Luzia Lopes: Ainda há bocado estava a contar que vinha ao sindicato e diziam: vais dar catequese? E a catequista disse-me a mesma coisa: foste ao sindicato? Porque eram coisas diferentes. As pessoas não tinham de estar, quer dizer, podíamos ser cristãos só na igreja, mas não podíamos ser no momento sindical ou na fábrica, percebe? Havia aqui uma coisa que serve...
Isso foi-se esbatendo. Mas a Igreja também tem caminhado muito, para estar na... porque se não se transforma nada. Porque nem toda a gente vai à missa, nem toda a gente ouve. O padre pode explicar muito bem, mas se não aprender o fundamento das coisas eu não consigo trazer nada cá para fora. Se aquilo não mexer comigo, não transformar comigo, eu não posso dizer ao outro, como é que se faz. Pronto, há todo um caminho a percorrer. Mas eu espero que a gente… É assim, ao perfeito ninguém chega, mas não duvido que a Igreja tem um papel importante na divulgação, na formação e em defender a dignidade de quem trabalha.
P: E acha que os estes movimentos específicos ligados ao mundo do trabalho são bem aceites pelo resto da igreja enquanto instituição?
Luzia Lopes: Nem muito. Sabemos que temos muita estabilidade, há bispos já abertos, com uma mentalidade já aberta, que já chamam as pessoas, já reúnem com as pessoas, já querem ouvir a opinião dos movimentos operários, há bispos já abertos. Não posso dizer que o meu seja. Tentamos dar a volta ao contrário.
P: Como é que dão a volta ao contrário?
Luzia Lopes: É estar, não desistir, ser persistente e ser coerente.
P: Queria perguntar-lhe algumas coisas sobre a questão da Memória, ou seja, tudo isto que nós estamos aqui a falar, estas histórias do antigamente, da resistência, da persistência na luta. Isto é algo que passa dos mais velhos para os mais novos no seio destes movimentos como a JOC e a LOC?
Luzia Lopes: Hoje a atualidade é diferente, mas eu sinto isto mesmo até em relação aos meus filhos. Os meus filhos apanharam muito da minha ação, do meu compromisso. Os meus filhos apanharam muito e quantos são filhos de gente que fazem esta experiência saem de lá grandes militantes. Se me disser, já tenho mais dificuldades com a minha neta. Já tenho, que tem 19 anos. Isto é secundário, o que é preciso é eu estar bem. Agora, mas também não desistirem. E às vezes não conseguimos fazer pela conversa, às vezes só pelo testemunho e pelo estar com os netos. Mas eu tenho a felicidade de que os meus filhos apanharam muito da minha luta e do que sou, é engraçado.
P: E, por exemplo, na catequese, na relação que tem com os mais novos, passa...
Luzia Lopes: Pronto, eu nunca estive com os mais novitos, estive sempre a partir do crisma, já fazem com 15 anos e então muita revisão de vida se fez porque a própria Mensagem do Evangelho nos leva a uma revisão de vida. Eu na escola, como é que eu sou na escola? Como é que eu pratico isto na escola? Como é que eu exijo isto em casa? Esta revisão de vida levada? Eu acho que fui a pessoa mais feliz, porque de facto consegui transmitir... uns são militantes do PS... outra é professora na Universidade, todos fizeram o seu caminho e cada um está no seu, na Figueira, em Lisboa, todos por aí fora, mas é uma relação tão próxima… É uma relação tão próxima que temos um encontro marcado para Novembro, com todos os que passaram por ali. E deixe-me dizer na fábrica, onde eu trabalhei, estes anos todos, dávamo-nos bem. Mesmo que até em determinadas alturas as pessoas não me vissem bem, porque era uma mulher, mas assim... Nós estivemos aqui uma vida inteira, nós fizemos aqui a nossa vida toda, estas horas todas, e agora isto há de acabar assim. E então não é que todos os anos, já lá vão uns aninhos, nos encontramos, fazemos um almoço, alguns já foram. Há dois anos, no dia do almoço, fomos enterrar um. Pronto, encontramo-nos e olha lá... este ano, com a pandemia, não fizemos, mas a ver se a gente este ano… Já comecei a fazer.... Sabe bem, vêm os que estão lá longe. Valorizar estes momentos, porque nós temos ali a nossa vida, fomos para as garotas. E nunca tivemos tempo de perceber, quem tu és.
Então, agora nesta idade vamos-mos encontrar para fazer um bocadinho um convívio. É lindo, rezamos missa de manhã pelos que já partiram e fazemos um almoço.
P: São tudo pessoas muito ligadas à Igreja?
Luzia Lopes: Não, quem não quer ir à missa não vai. Respeitamos cada um e o seu caminho. Agora, a verdade é que nós trabalhámos uma vida inteira todos juntos. Então, não nos há de ligar alguma coisa, nem que seja um convívio para… é interessante. E dizia-se: um dia que tu morreres, calma aí que ainda é cedo, que aquilo que acaba, calma aí que ainda é cedo, já estão todos muito em baixo, velhinhos e tal, temos outros mais novos, que já aparecem depois. Mas isto só para dizer que colhe-se o que semeia. Eu podia não ter a ideia. E até o patrão vai, o filho, o outro já morreu. O [...], quer queiramos, quer não, o senhor fez o caminho connosco. De outra maneira, mas fez. E vai aos almoços.
P: E diga-me uma coisa, há essa fraternidade entre os colegas de fábrica, e acha que os movimentos, como o movimento sindical ou como a LOC, criam uma identificação mais alargada com os trabalhadores de todo o país ou até de todo o mundo?
Luzia Lopes: A LOC está organizada a nível mundial, diocesana, nacional, internacional e mundial. Isso pronto, a nível da LOC, isso faz. Temos muitos militantes da LOC, a nível nacional, que estiveram na central sindical. Muitos. Com algumas dificuldades, mas não desistiram de estar lá. Porque, pronto, eu vejo de uma maneira diferente, mas eu estou cá. Eu quero acreditar que demos um contributo e estamos a dar um contributo aos que estão e aos que ainda possam vir. É verdade que a idade e as maleitas das pessoas nos vão impedindo da dinâmica ser maior, mas quero acreditar que demos e ainda continuamos a dar um contributo para a sociedade.
P: Qual é que acha que é o futuro de movimentos como o movimento sindical ou como a LOC ou a JOC?
Luzia Lopes: O movimento sindical terá sempre... Pronto, o movimento, a JOC, pronto é mais a malta… Hoje, é assim, naquela altura que a gente foi da JOC trabalhava na fábrica, hoje a malta está na universidade, tem outras janelas. O movimento sindical tem sempre o seu espaço. Agora que terá também que ver um bocadinho que as coisas hoje não é só para assinar papel, é preciso esta formação, de pessoa, de cidadã. Porque às vezes, uma coisa é dizer e depois não somos coerentes com aquilo que dizemos, não fazemos o que dizemos. Isso deita por baixo o acreditar em alguma coisa. E nós já nos debatíamos aqui há uns anos sobre isso, que era, nós muitas vezes podemo-nos fazer valer pela nossa maneira de ser, às vezes não é preciso falar muito. Eu agora conheço pouco o movimento sindical, nem sei quem é a presidente agora, não sei se é. Sei que é uma menina. Mas eu acho que todos têm o seu lugar e isto há-de ir para a frente, porque todos têm o seu lugar, tem que ser, porque se os patrões se organizam numa determinada matéria, os trabalhadores têm de fazer a mesma coisa. Tem que se investir na formação em primeiro lugar, é importante. Porque se as pessoas estiverem esclarecidas, são capazes de lutar por aquilo que querem e por aquilo que têm direito.
P: E a LOC ou os movimentos cristãos ligados ao trabalho, qual é que acha que é o futuro desses movimentos?
Luzia Lopes: A JOC tem alguma dificuldade, há grupinhos dispersos. É porque hoje, se eu lhe disser que a mais nova que está na LOC aqui no meu grupo tem 48 anos, de resto é tudo para frente. E temos alguma dificuldade em que as pessoas adiram, porque gostam mais do deixa andar e... mas já nas fábricas era a mesma coisa, porque eles não queriam lutar, eu na minha fábrica não tive grandes problemas, porque era uma fábrica pequena, mas nas grandes fábricas sabemos, se vier para eles também vem para nós. Esta coisa de se encostarem um bocadinho sempre aconteceu. Com os nossos jovens, estou sentir alguma dificuldade, porque sempre cá houve equipas da JOC, mas depois falta de animadores, a falta da Igreja também abrir espaço para eles. Porque não podem ser só ao nível da Comunidade só, têm de se ouvir. Sinto que a JOC está com alguma dificuldade, a LOC também, com a nossa idade já temos alguma dificuldade em... Ainda existe isso? Sim, enquanto formos vivos, mas sentimos que temos o nosso espaço próprio e é pena. Mas é o que eu digo, a malta vai para a universidade, tem outros caminhos, outras propostas, às vezes não são as mais corretas, mas pronto. E a gente sabe, não é?
P: Queria perguntar-lhe se esteve em alguma iniciativa específica relacionada especificamente com a emancipação feminina ou lutas pelo igualdade salarial, em torno da mulher trabalhadora.
Luzia Lopes: Uma vez, uma vez estavam a preparar, acho que já contei esta história, estavam a preparar o Dia da Mulher e estávamos lá em baixo, numa sala. E nós estávamos a discutir o trabalho que tínhamos lá para fazer e começaram a perceber que não havia gente para aprovar aquilo que nos estavam ali a pôr. E, então, começaram a chegar algumas mulheres. Sem nunca cá estarem. E eu perguntei: olha, então de onde é que vem? Foi o meu homem que me telefonou, que estava no Partido...
P: E qual é que era a questão? O que é que estavam a colocar que vocês não queriam?
Luzia Lopes: Pronto? Agora, também, assim, concretamente não me lembro o quê, mas sei que nós participámos, fazíamos parte de um grupo de trabalho na União de Sindicatos sobre as questões da mulher, mas éramos coordenadas pelo homem, que não nos entendia.
Queria impor a letra, mas espera aí, pronto e aquilo e pronto acabou por desistir e aqui acontecia a mesma coisa, pronto, porque pensam que as mulheres eram mais para encherem o para compor o ramo. Mas passaram também por aí grandes mulheres. No meu tempo de jovem, aquela a [...], aquela mulher…
P: O que é que se lembra dela?
Luzia Lopes: Muito alta, ela foi dirigente sindical antes do 25 de Abril, mas foi também dirigente livre da JOC e da LOC. Ela percorria as aldeias, a fazer o seu trabalho de ação para são Romão, para Loriga, Gouveia, para Seia. Ela fazia este trabalho de ir ao encontro.
Hoje a gente toca-se, se vêm, vêm, se não vêm... mas as pessoas iam. As pessoas chamavam-se nesta altura, e chamam-se ainda, dirigentes livres, as pessoas são dirigentes mas são livres e então não têm rendimento. Vão para Gouveia, comem lá em casa da [...] assim. Lembro-me muito bem do trabalho que esta mulher que ela fazia.
P: Mas ela dirigiu algum grupo de trabalho em que tivesse participado, Luzia?
Luzia Lopes: Eu já conheci esta mulher na LOC, quando fui para LOC. Já lá estava, já era dirigente sindical.
P: E trabalhou com ela diretamente?
Luzia Lopes: Na fábrica não. Nos movimentos operários, em termos de LOC, ela era mais velha e eu mais nova.
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2 de junho de 2021
P: Onde é que nasceu?
Casimiro dos Santos: Nasci no Concelho da Pampilhosa da Serra, distrito de Coimbra.
P: Em que ano?
Casimiro dos Santos: 1952.
P: E estudou lá?
Casimiro dos Santos: Estudei lá até acabar a chamada escola primária. Depois fui estudar para Figueira da Foz e Coimbra, que era onde tínhamos o secundário. E depois de Coimbra ainda estive em Lisboa, na universidade, acabei a universidade em Lisboa, em 1980. Foi quando terminei e já tinha trabalhado, tinha acabado o curso como estudante trabalhador. Mas, entretanto, antes de acabar o curso, meteu-se o serviço militar. Portanto, como nota biográfica assim mais pormenorizada, estive na tropa dois anos, 1974 e 1975. Apanhei precisamente o 25 de Abril.
P: E trabalhou no quê antes?
Casimiro dos Santos: Antes de ser professor, trabalhei na Segurança Social como funcionário administrativo.
P: E depois foi toda a vida professor?
Casimiro dos Santos: Depois fui toda a vida, professor, de 1981 até há dois anos atrás.
P: Qual era a área?
Casimiro dos Santos: História, fiz na faculdade de Letras de Lisboa
P: E trabalhou, deu aulas sempre aqui nesta região?
Casimiro dos Santos: Na margem sul do Tejo também. Almada, Seixal, Setúbal, Moita. Estive aí uns 10 anos e depois voltei aqui para a região da Serra e acabei aqui. Depois estive sempre aqui, no distrito de Castelo Branco.
P: E os seus pais, eram também eram daqui desta região?
Casimiro dos Santos: Sim, o meu pai era mineiro na Panasqueira, na Pampilhosa da Serra. Faz ali uma fronteira e está na órbita das Minas da Panasqueira, pelo menos aquelas duas freguesias do norte da Pampilhosa da Serra, de maneira que grande parte da população daquelas freguesias trabalhava nas Minas, daí a pertença àquele universo operário. Operário e camponês ao mesmo tempo.
P: E a sua mãe também?
Casimiro dos Santos: A minha mãe era camponesa e doméstica. Tínhamos propriedades, tínhamos aquela dupla pertença à terra, enquanto pequenos proprietários rurais, mas ao mesmo tempo também ao mundo do trabalho das Minas, enquanto que o meu pai era operário das Minas. Portanto, tínhamos ali uma dupla pertença, digamos assim, não em termos de classe social, pequenos proprietários e operários ao mesmo tempo, aquela duplicidade de ser proprietário de terrenos, mas pequenos proprietários. E, ao mesmo tempo, assalariado, o meu pai.
P: E tem filhos?
Casimiro dos Santos: Tenho dois filhos, um filho e uma filha.
P: E a sua mulher?
Casimiro dos Santos: A minha mulher esteve no ensino. Ela é engenheira técnica agrária, portanto faz tempo no ensino e faz trabalhos por conta própria.
P: Os seus filhos também seguiram para o ensino superior?
Casimiro dos Santos: A minha filha é enfermeira. Está a acabar a especialidade. E o meu filho e técnico de ambiente, está a trabalhar na Câmara de Pampilhosa da Serra, precisamente.
P: Professa alguma religião? É católico?
Casimiro dos Santos: Só agnóstico.
P: E o quanto à filiação partidária?
Casimiro dos Santos: Sou militante do PCP
P: Em relação à filiação associativa?
Casimiro dos Santos: Fui sempre sindicalizado, fui delegado sindical, quase sempre, toda a minha vida profissional. E quando estive em Lisboa, havia um movimento associativo ligado aos concelhos da Beira, Serra, Arganil, Pampilhosa até o Sabugal e a Covilhã também. As casas do concelho agregavam as pessoas que tinham ido para Lisboa desde meados do século, quando se dá aquele grande êxodo rural. Na Pampilhosa da Serra, há aldeias que quase se despovoaram nos anos 40/50 e então associaram-se em estruturas que estavam, mantinham a ligação à aldeia de origem, e em Lisboa tinham a casa do Concelho. Mas mesmo assim, além da casa do Concelho, ainda tinham as chamadas comissões de melhoramentos, ou seja, eram aldeias muito pobres, normalmente, por exemplo, na minha aldeia, nós tínhamos a eletricidade que era produzida a poucos quilómetros, numa barragem de Santa Luzia que abastecia as Minas da Panasqueira e a indústria da Covilhã e a aldeia não tinha eletricidade, até 1970. Está a ver, portanto, isso fez com que os moradores de Lisboa, das aldeias que estavam em Lisboa a trabalhar, ao verem a distância, a falta de vias de comunicação, o fraco desenvolvimento, o atraso no tempo do Salazar, organizaram-se nas Casas do Concelho. Claro que o regime procurou mais ou menos meter a mão e de alguma maneira, condicionar. Havia alguns que até eram da União Nacional. Alguns dirigentes dessas casas do Concelho. Portanto, o regime aproveitava isso, introduzia-se lá dentro. Mas mesmo assim, serviu perfeitamente para criar um algum… a partir do sentimento de pertença às aldeias e da consciência de que havia um atraso muito grande nesta interioridade destes concelhos, fez com que este associativismo criasse de alguma maneira um espírito comunitário. E conseguiram-se alguns melhoramentos, muitas vezes junto das câmaras municipais, junto dos ministérios. Tinham alguma influência.
P: E o Casimiro desenvolveu atividades nesse movimento?
Casimiro dos Santos: Eu, quando estive em Lisboa, a partir dos 18 anos, pertencia a uma das comissões de melhoramentos da minha aldeia, precisamente. E, portanto, fazíamos festas, tanto na aldeia como na cidade, em Lisboa. E essa era uma maneira de conseguir agregar a população para festas, convívios, etc. E, ao mesmo tempo, procurávamos junto da autarquia, isto já depois do 25 de Abril, já estávamos numa fase posterior, conseguíamos ter alguma influência como movimento associativo, como comissões, algumas até são instituições de utilidade pública. Conseguíamos ter alguma influência junto das autarquias, como comissões de moradores. Entretanto, normalmente funcionavam com sede em Lisboa e uma delegação nas aldeias. Outras vezes era o contrário. A partir de 25 de Abril transformou-se a coisa, a sede já era nas aldeias, porque já havia alguma iniciativa nas próprias localidades e Lisboa era uma delegação. Ainda hoje se faz esse convívio, entre a população que está lá e a população que mora ainda nas aldeias, muito poucos, só os idosos. Mas esse sentimento de pertença ainda está lá. Por isso é que muitos originários dessas aldeias mantêm a casita na aldeia, mantêm aquilo arranjadinho e tal, e continuam a vir passar as férias nas aldeias. Isso é muito interessante, porque esse sentimento de pertença não se apagou.
P: Acha que essa propensão para a participação associativa é uma coisa de família? Ou seja, os seus pais já tinham alguma participação nestes movimentos?
Casimiro dos Santos: Sim, não é só uma coisa de família, é uma tendência de ver necessidade e as populações se associarem de alguma maneira. Mas o meu pai já era sócio da Comissão, participava nas atividades, etecetera.
P: E em greves, lutas no âmbito das Minas da Panasqueira, também participava?
Casimiro dos Santos: O meu pai trabalhou lá até precisamente ao 25 de Abril. O meu pai tem uma longa história, porque ele foi trabalhar ainda no início dos anos 40. Ele foi trabalhar para as minas apenas um jovem ainda, quase uma criança. Estava a sair da adolescência quando foi trabalhar para lá para a empresa. Entretanto, a empresa teve... Em 1939 houve uma greve terrível, a greve do carbureto, em que os mineiros tiveram que fazer uma greve porque eram obrigados a providenciar eles próprios, às suas expensas, a iluminação lá dentro, através do carbureto. Tinham uma lâmpada que era o gasômetro, que funcionava a gás acetileno. É água, o gás acetileno e eles tinham aquela chama, ainda não havia as lâmpadas elétricas. É, e então eles tinham que comprar o carbureto, tal como levavam o farnel lá para dentro. Em 1939, muitos mineiros da Panasqueira tinham vindo de Espanha. Alguns estavam lá imigrantes, eram mineiros portugueses, por exemplo, nas Astúrias, nas Minas de carvão, etecetera. Portanto, há ali um grupo de, eu diria, pessoas já com uma consciência social e consciência de classe mais elevada, e em 39 fizeram uma greve que os levou a conseguirem uma vitória. A greve do carbureto. Depois disso, muitos foram identificados, muitos foram presos. E foram despedidos e as lutas lá ficaram muito esmorecidas.
Até 1945, mesmo no final da guerra. Entretanto, a empresa teve imensos lucros e aquele mundo do Volfrâmio desenvolveu muito, houve fortunas que se fizeram. Houve pessoas, camponeses, mineiros, que fizeram fortunas ou com o contrabando do volfrâmio, a vender volfrâmio aos alemães que estavam aí. E, portanto, aquela era uma pequena cidade, quase, as Minas da Panasqueira. Despovoou-se no fim da guerra, quando a empresa fechou, uma vez que as vendas foram abaixo, mas elas tinham estado estado em alta. E o meu pai nessa altura foi trabalhar para Lisboa, onde tínhamos lá parentes e tal, e foi trabalhar para Almada, para uma fábrica de cortiça, daquelas fábricas da Cova da Piedade. Uma vez, estive lá com ele, no sítio, já a fábrica estava abandonada, aquelas fábricas da cortiça. Quando a mina reabre em 1947, ele regressa cá e continuou o trabalho ali, até se reformar em 1970.
Portanto, aquele tempo das lutas ele não apanhou, ou antes, tenho impressão de que ainda apanhou ali qualquer coisita em jovem, em 39, e quando foi o 25 de Abril e as lutas se acendem lá, portanto, ele já não está na empresa. Portanto, ele não apanhou esse tempo, mas foi extremamente explorado. Foi uma exploração terrível, 40 anos.
P: E na sua infância, vivia nesse universo?
Casimiro dos Santos: Sim, sim.
P: Havia alguma associação, alguma instituição, em que tenha participado?
Casimiro dos Santos: Tudo o que era o mundo operário estava reprimido, portanto só em setenta é que houve alguma liberdade sindical, era uma repressão muito grande, as coletividades que existiam nas aldeias ou eram as casas do povo, ou as tais comissões de melhoramentos das aldeias da Pampilhosa da Serra, e nas aldeias do concelho da Covilhã e no Fundão havia já algumas associações, os ranchos folclóricos, os grupos etnográficos, que tinham alguma expressão e normalmente eram as juntas de freguesia que promoviam essas coisas. Primeiro ligados ao regime. Aquele movimento do António Ferro, dos ranchos folclóricos e tal, toda aquela história do folclore. E os concursos das aldeias mais portuguesas, etc. Portanto, era nesse sentido tudo controlado pelo regime. Normalmente, as outras, da Pampilhosa da Serra, o tal sentimento da ligação a Lisboa. Curiosamente, a emigração era muito para Lisboa e pouco para Coimbra e quase nada para o Porto. Era mais para a zona de Lisboa, para as fábricas de cortiça. Muitos, muitos vão trabalhar para as fábricas de cortiça. Eu tive imensos familiares que foram para lá, tanto do lado da minha mãe como do meu pai. Muita gente da Beira, e depois alguns vão para a indústria hoteleira, ainda hoje têm restaurantes, tabernas, etc., na Cova da Piedade, que é gente daqui desta Serra, da Pampilhosa, de Arganil, Tábua, desta área aqui.
P: Então vamos detalhar a sua experiência própria enquanto ativista antes do 25 de Abril. Para além dessa comissão de melhoramentos, ainda não teve participação sindical. Ainda estava a estudar? Ou seja, a sua participação associativa foi mais no pós 25 de Abril…
Casimiro dos Santos: Sim, mas pronto, tínhamos as associações de estudantes, andava ali a UEC (União dos Estudantes Comunistas), isto na faculdade de Letras de Lisboa, quando já havia alguma coisita, semiclandestina. Já havia uma coisa no primeiro de Maio, por exemplo. Recordo-me bem que antes do 25 de Abril, eu estava lá em Lisboa, e festejava-se o primeiro de Maio. Havia aqueles movimentos estudantis contra a guerra colonial, etc. Manifestações que, na Praça do Chile, acabavam dispersas à bastonada e com cães. Assim como o primeiro de maio, normalmente participávamos aí e cheguei a ser uma vez levado para ir para ser identificado no governo civil. Fui apanhado lá no Martim Moniz, não consegui fugir e pirar-me, porque eu morava no Castelo de São Jorge, na casa de uma tia minha. E, portanto, fui apanhado a fugir numa das ruas, eu e outro. Lá fomos levados para o governo civil e identificados. E pronto, foi ali assim uma tarde/noite.
P: Nesse período em que estava a estudar, fazia parte de alguma daquelas associações, tipo os cineclubes, que naquela altura surgiram, as cooperativas editorais?
Casimiro dos Santos: Não cheguei a fazer parte, mas ia assistir a muitas coisas. Na faculdade havia Associação de Estudantes e era só através da Associação de Estudantes. Ainda cheguei a ser convidado para o orfeão, porque eu já tinha participado. Ainda fui lá e tal, mas depois não tinha tempo para essas coisas, porque eu o tempo livre aproveitava para fazer uns biscates, trabalhar e tal. E por isso a minha dupla pertença também como estudante trabalhador, quase sempre. No tempo anterior, eu aproveitava para trabalhar e trabalhei na Feira Popular. Havia sempre… para nos dar uns trocos, uns trabalhinhos extra que eu fazia, na Feira Popular .... Trabalhei numa fábrica de engarrafamento de vinhos, e de gins, etc. onde é hoje o Parque das Nações. Havia ali umas fábricas de vinhos, que eram comercializados, engarrafados e tal. Esses armazéns já não existem, que era o Caldeira Lds, e o outro grande rival, logo a seguir. Portanto, eu trabalhava nas férias, quase sempre ali, portanto, não tinha muito tempo para participar, mas ia assistir sempre que podia a coisas do cineclube, etc. A educação política passava muito por ver filmes e participar em debates sobre os próprios filmes, e participava sempre que podia.
P: Para as associações de estudantes, não teve tempo?
Casimiro dos Santos: Não, não tinha tempo. Eu não tinha tempo para estar na Associação de Estudantes.
P: E no contexto de trabalho participou em alguma?
Casimiro dos Santos: No contexto trabalhando também não, não, aí não estava. Estava mais na parte cultural das aldeias, etecetera, aí estava mais. No mundo estudantil, eu estava, trabalhando, apoiava, assistia, mas não me envolvia muito, mas estava ali assim, numa situação. Eu só estive dois anos antes do 25 de Abril, antes de ser mobilizado para a tropa, no início de 74. Portanto, fiz ali dois anos do curso de Filosofia e mudei para História depois. Quando vim da tropa.
P: E essa participação nesse âmbito das comissões de melhoramentos começou quando?
Casimiro dos Santos: Isso só com os meus 18 anos, um bocadinho antes do 25 de Abril, logo que eu fui para lá. Através dos conterrâneos, quando chego. Eu era dirigente da Casa do Concelho e, pronto, isso foi por influência familiar e por querer de alguma maneira participar naquela ideia da pertença à aldeia, ao mundo rural, ao mundo da Pampilhosa da Serra.
P: Sentiu algum em algum momento algum episódio de repressão ou censura dessa atividade associativa?
Casimiro dos Santos: Não, porque muitos deles eram da União Nacional. Eles eram da União Nacional, quase todos os dirigentes da casa do Concelho da Pampilhosa. O Marcelo Caetano chegou a ir lá fazer uma visita. Mas havia um trabalho subterrâneo, que os mais novos de nós fazíamos lá, de denúncia daquele mundo opressivo, que era a barragem de Santa Luzia produzir eletricidade e as aldeias não terem, etecetera. O Marcelo Caetano pertencia. Os pais dele eram do concelho da Pampilhosa da Serra e, portanto, ele chegava a vir lá fazer visitas oficiais, uma vez ou duas durante o tempo em que ele esteve como primeiro-ministro e ia fazendo promessas. Também lhe devia doer um bocado ver o concelho dele tão atrás em relação aos outros vizinhos e ver as aldeias com os fios da eletricidade que vinham para as fábricas da Covilhã e as aldeias viverem com a candeia de azeite ou petróleo. E, portanto, as aldeias começaram a ser eletrificadas precisamente no consulado de Marcelo Caetano. Ele fez as promessas e tal e com aquelas influências todas. Porque a coisa era quase feudal. A ditadura tinha o seu quê de feudalismo e aí a personalidade do Marcelo Caetano em relação a isso era, portanto, de ligação e de influência através das pessoas. Claro que muitos eram da União Nacional, mas elas estavam interessadas em ter algum progresso na terra, não só pelos lindos olhos dos camponeses, mas porque facilitava a comunicação, o comércio e, se calhar, a criação de mais valias. Até porque havia as resinas, havia as madeiras, começava o eucalipto e, portanto, as vias de comunicação eram essenciais, assim como a energia, portanto, não era pelos lindos olhos ou porque queriam desenvolver a terra. Queriam era fazer negócios com base nos produtos endógenos que lá tinham. As barragens, a energia elétrica, etc., era importante para eles.
P: No período revolucionário houve vários movimentos de auto-organização, justamente para garantir saneamento básico. Isso aconteceu lá?
Casimiro dos Santos: Ai já são as autarquias eleitas democraticamente.
P: E essa Comissão de Melhoramentos ?
Casimiro dos Santos: Essa comissão continuou, continua a existir, ainda existe, eu fui presidente da Assembleia Geral até ao último mandato lá.
P: E a Comissão envolveu-se nalguns...
Casimiro dos Santos: A Comissão envolveu-se e ainda hoje trabalha, vamos lá, quase como comissão de moradores. Trabalha com a autarquia, com a freguesia, com a Junta de Freguesia.
P: Que é que se fez assim de importante nessa altura?
Casimiro dos Santos: Isso foi muito importante. O poder autárquico fez com que as coisas básicas fossem construídas. O saneamento básico, a eletrificação, as estradinhas, todas alcatroadas e em bom estado. Portanto, as infraestruturas básicas estão lá: água, saneamento, etc.
Embora a água não seja de grande qualidade, agora venderam aquilo uma empresa intermunicipal que é AP [Águas de Portugal]. Portanto, as câmaras desligaram-se, mas não foi só a Pampilhosa, foram muitas outras. Portanto, o negócio da água está agora a chegar lá.
E muitas vezes foram as populações que, organizadas, elas próprias, fizeram a captação da água. Isto antes do 25 de Abril. Foi o caso de algumas aldeias que eu conheço, fizeram uma mina, fizeram uma vala, por iniciativa deles próprios, porque havia doenças endémicas como, por exemplo, tifo, por causa de não haver saneamento. Isso é que levou a que as próprias populações se organizassem. A população não era salazarista, nem nada, portanto, muito religiosos e tal. O Salazar é um Santo. Toda aquela propaganda baseada na religião católica. isso foi no país todo. Na zona de influência do operário e das Minas, a Igreja Católica não tinha, não tinha tanta audiência. Até que um dia chega lá um padre que vai beber uns copos para a taberna dos operários das minas e consegue levá-los até à Igreja. Faziam assim, tudo dependia da estratégia dos priores lá das aldeias, mas a igreja católica tinha uma influência extraordinária, enorme. Até porque era através da Igreja Católica que muitos jovens conseguiam ir estudar. Foi o meu caso. Eu fui estudar para o seminário de Coimbra, andei lá alguns anos e aquilo ao mesmo tempo também serviu pela negativa. Quer dizer, aquilo que se apanha de um lado, mas que depois também se reagem, não é, também nos forma. Não é só o que é bom que nos forma, aquilo que é mau também nos forma. No aspeto da rejeição, e ao ver as desigualdades com que a Igreja estava complacente, com a guerra colonial, etecetera. Portanto, a igreja era um apoio grande do regime, era um esteio muito forte do regime e isso ao mesmo tempo, fazia com que tanto o mundo operário como o mundo estudantil fizesse a nega ao regime e, portanto, o apoio ia diminuindo cada vez mais. Já naquela última fase do Marcelo Caetano, quando a guerra colonial se tornou um beco sem saída. Foi isso que acabou por levar ao 25 de abril.
P: E movimentos como a JOC ou a LOC?
Casimiro dos Santos: Não tinham expressão, nem havia Mocidade Portuguesa nem nada disso. Só na sede do concelho, aí é que havia qualquer coisa. Isso não tinha lá, não tinha expressão nenhuma, porque a população estava-se borrifando para essas coisas. Lá iam cumprindo o essencial: ir à missa ao sábado, mas os padres não eram bem vistos pelos operários.
P: Quando é que começa efetivamente a sua participação sindical? Foi durante o período revolucionário?
Casimiro dos Santos: Antes, quando trabalhava na segurança social, no sindicato da função pública.
P: Isso foi quando?
Casimiro dos Santos: Depois do 25 de Abril, ali na década de 70. E eu fiz a tropa em 74-75 e quando saí da tropa comecei a trabalhar e a estudar ao mesmo tempo. Eu trabalhava na Avenida dos Estados Unidos, em Lisboa, e ia à tarde para as aulas, à tardinha. Depois de sair do trabalho. Era delegado sindical na própria função pública.
P: Mas foi já foi posteriormente àquele período mais exuberante do pós-revolução?
Casimiro dos Santos: Estávamos já depois do 25 de Novembro. Eu saí da tropa sete dias depois do 25 de Novembro. Portanto, estive no 25 de Abril, fui para lá em Janeiro de 74, e aqui apanhei estes dois anos do PREC até ao 25 Novembro. Uma semana depois do 25 de Novembro, eles resolveram mandar-me embora, uma leva enorme de gente que estava lá, se calhar a estragar o ambiente que eles queriam ali. E foi aí que eu saí e disse: vou ter que ir trabalhar, não é? E fui trabalhar para a segurança social na altura, depois daquela parte da segurança social, transforma-se na naquilo que é a ARS. E eu fiz ali ainda uns quatro anos. Até acabar o curso, depois concorri e vim para o ensino, até agora.
P: Nesse período de quatro anos em que esteve como delegado sindical na função pública, houve algum movimento importante?
Casimiro dos Santos: Houve greves, algumas, por aumento de salários. Estávamos ali em 78, 79, 80… Houve uma ou duas greves com alguma expressão...
P: Tem alguma memória marcante?
Casimiro dos Santos: Recordo-me de uma greve por causa da integração da segurança social na função pública. Havia ali uma perda de regalias e, portanto, lutou-se pela manutenção de algumas das conquistas que os trabalhadores tinham feito. Mas depois a coisa lá se resolveu através do diálogo na altura do governo do PS, o Mário Soares, o primeiro e o segundo. Portanto, naquela fase transitória, 76, 77, 78.Por aí assim. Mas eu estava ainda a estudar e, portanto, às vezes desdobrava-me entre a faculdade e o trabalho.
P: Depois começou a dar aulas, quando acabou o curso?
Casimiro dos Santos: Sim
P: Primeiro na margem sul do Tejo?
Casimiro dos Santos: Sim, os primeiros 10 anos.
P: E nessa altura foi delegado sindical do Sindicato de Professores?
Casimiro dos Santos: Já estava lá, também, sim.
P: Como é que foi? Quais foram as principais lutas e reivindicações desse período em que participou?
Casimiro dos Santos: Aqueles movimentos dos professores, o estatuto da carreira do centro, principalmente aí. Mas recordo-me de que a principal foi o estatuto da carreira docente. Foi uma luta muito, muito comprida e muito dura. E continua, isso ainda não está resolvido. Resolveu-se, mas depois o estatuto foi sendo alterado. Foi sendo adulterado e ainda hoje, como se sabe.
P: E para além de ser delegado sindical, teve outras funções, outras responsabilidades na estrutura sindical?
Casimiro dos Santos: Não, sempre delegado sindical.
P: Quando veio para cá também?
Casimiro dos Santos: Aqui também. Eu não dava tanta importância ao sindicalismo na altura. Dava uma importância bastante grande, mas estava mais virado para a escola propriamente dita. Portanto, nunca quis ser dirigente sindical. Várias vezes fui convidado para listas para as direções sindicais, mas fiquei sempre como delegado sindical. Nunca quis participar num nível mais elevado.
P: Mas dessa sua participação, qual é a perspetiva que tem sobre, por exemplo, o processo de construção da CGTP e o papel da CGTP na construção da democracia portuguesa?
Casimiro dos Santos: Foi extremamente importante. A fundação da CGTP, em 1970, foi um momento importante no sindicalismo português, na liberdade sindical, que não existia até aí, mas que teve uma importância extraordinária com a fundação da CGTP. Recordo-me perfeitamente e acompanhei bem. Aquele início, já depois do 25 de Abril, a unidade, a unicidade, todo aquele debate que houve em torno, depois acabou por dar mau resultado, porque se criou a UGT dentro daquilo que foi um divisionismo. Na minha opinião, não é? Eu acompanhei isso sempre, esse processo. A adesão do sindicato dos professores. Portanto, depois criou-se, criaram-se muito sindicatos de professores, como sabem. Só aqui na região e nas escolas estão presentes uns quatro ou cinco, portanto. Esta divisão da classe não é benéfica e acaba por dividir os professores, às vezes em situações que não são fundamentais, outras vezes lutam por questiúnculas. Quando é mais importante, às vezes alguns não aderem às lutas mais importantes. Mas, portanto, aquilo que eu acho é que esta divisão sindical só favorece o patronato, digamos assim, neste caso o Ministério da Educação, que acaba por impor a sua política educativa sempre, seja qual for o poder. Daqueles dois partidos que lideram o poder, o bloco central, digamos assim.
P: Outra questão mais transversal, acha que o movimento sindical foi importante para a dignificação das mulheres?
Casimiro dos Santos: Houve demasiados constrangimentos à participação das mulheres. A questão das mulheres no mundo do trabalho, eu creio que ainda há uma mudança muito grande a fazer nas mentalidades. As mentalidades evoluem mais lentamente. E essa mudança das mentalidades, e se calhar fazer-se a nível tanto dos dirigentes sindicais como das próprias mulheres, que às vezes se retraem e não participam tanto como deviam participar. É um caminho muito grande para percorrer. Está no papel e o Estado cumpre. Mas no mundo do trabalho, muitas vezes as mulheres têm receio de participar. Eu li coisas incríveis sobre… aqui assim não, no mundo operário, das fábricas, a questão do assédio, etc., e o retraimento das próprias mulheres na participação na luta. Apesar de que quando as mulheres lutam, lutam, se calhar com mais força do que os homens. Elas iam para aqui, para o Pelourinho, com as crianças às vezes antes dos homens. Aqui elas são terríveis. Nas Minas da Panasqueira, por exemplo - e eu também conheço mais ou menos bem esse universo -, as mulheres, pela questão da maternidade, não podem trabalhar dentro das minas, isso foi uma conquista que muitas encaram com uma certa duplicidade: então a gente não pode lá trabalhar? Mas tínhamos direito ao trabalho...
Mas isto passou-se na Inglaterra, quando os primeiros sindicatos lutaram para que as mulheres não trabalhassem. Não era por causa de uma questão do salário, o trabalho das mulheres nas minas era dos trabalhos mais perigosos e a radiação, isso provocava, por vezes... E conseguiu-se que os patrões não contratassem mulheres. No entanto, nas minas elas trabalhavam no exterior, estavam até em trabalhos mais perigosos, até onde apanhavam mais a silicose, que é a doença dos mineiros aqui na Panasqueira. Na lavaria, na correia, o trabalho da correia é dos meios mais doentios. A correia é um tapete rolante de borracha, correia, chamava a correia o nome comum. E tanto havia mulheres como crianças a trabalhar, umas das outras. Era mais um trabalho para miúdos e miúdas e mulheres do que para os adultos. Como elas estavam proibidas de ir lá dentro por causa das condições de trabalho, que não estava proibido mesmo durante o regime, durante a ditadura, trabalhavam fora. E em que consiste esse trabalho? Vai o minério em bruto de dentro da mina para fora, naquele tapete rolante, e as crianças e as mulheres estavam ali a escolher. Mas a poeira estava a entrar nos pulmões e portanto muitas mulheres chegavam aos 30 anos e já tinham silicose.
Aquele trabalho era um suplemento. Assim, como aqui nas fábricas, elas também não faziam trabalhos em casa, que eram trabalhos de… eram as pegadoras de fios e certos trabalhos que se podia fazer em casa, é para aperfeiçoar o pano, que é também um trabalho muito perigoso porque elas acabavam levando com a poeira lá. Também apanhavam doenças respiratórias. A partir do momento em que há liberdade sindical, os sindicatos começam a falar disso e as mulheres começam a entrar nas direções e só aí é que começam a ganhar uma certa consciência. E havia coisas incríveis... as mulheres não descontavam aquele trabalho que elas faziam para as fábricas, não se descontava para a segurança social, portanto, elas acabavam por não ter reforma nenhuma depois de trabalharem dezenas de anos. Era o domestic system em pleno século XX ainda a funcionar, tal como hoje o teletrabalho.
Eu comparo o domestic system do século XVIII ao teletrabalho atual, é a mesma coisa. Nós estamos a regredir em certos aspetos. E aqui as mulheres eram extremamente exploradas. Mas elas tinham consciência da exploração. E muitas vezes é que as condições subjetivas das próprias mulheres e dos homens dirigentes dos sindicatos, essas condições não permitiam que elas... e que ainda hoje isso acontece, que elas participem em pé de igualdade com os homens. No papel sim, mas na prática não.
P: E, por exemplo, na associação de melhoramento, elas participavam?
Casimiro dos Santos: Participavam naqueles trabalhos femininos, eram elas que estavam lá na cozinha a fazer a comidinha. Hoje já não se verifica, algumas já são dirigentes, mas geralmente, era sempre lá nos trabalhos mais tipicamente “femininos”. Acabavam por ser as cuidadoras, ainda isso se verifica em muitas associações, mas já há mulheres dirigentes.
P: Na sua especificamente?
Casimiro dos Santos: É mesmo nessa em que eu estive na Assembleia Geral. Há uma ou outra situação onde eu, onde eu também estou, que é a Casa do Povo de Casegas, que é aqui no Concelho da Covilhã, em que às vezes há mais mulheres a participar e a organizar coisas do que homens. E até em atividades culturais, num grupo de teatro onde há várias mulheres e expõem ali a sua criatividade, maior que a dos homens, muitas vezes, na arte… fantástico. Temos trabalhado ali muito com mulheres e homens, lado a lado.
Sim, mas aí já é o que hoje se passa. Portanto, se formos lá mais para trás, vemo-las a fazer aqueles trabalhos tipicamente “femininos”, a irem fazer a comida e quando se trata de fazer o almoço, o convívio, etc. e lá estão elas a cozinhar. Mas hoje também há homens lá a participar e passamos às vezes a descascar batatas, a fazer os temperos, enfim, tudo... naquelas coisas que é convívio, cultura e que ao mesmo tempo participação conjunta da comunidade, na Casa do Povo de Casegas, que é onde eu hoje eu passo mais tempo.
P: Quando é que começou a participar nessa associação?
Casimiro dos Santos: Isso foi já nos anos 90 e aí foi a mulher que me levou para lá, e ela também lá está num grupo de teatro, etc. Fazemos lá umas coisitas, em termos culturais, agora estamos a ver se conseguimos arranjar termos lá uma biblioteca. Eu agora estou na parte mais ligada a isto, dos livros. Temos lá muitos livros, que precisam de ser catalogados, muitos livros antigos. Houve algumas doações de pessoas que deram a sua biblioteca quando morreram. Temos lá uma... aquilo já está bem atualizado. Agora andamos a arranjar a infraestrutura que foi a própria casa em si, já tinha 70 e tal anos, portas, janelas, telhado, estas coisas são importantes. E eu agora peguei lá na bibliotecazita, a ver se pomos aquilo como deve ser. Precisamos de umas estantes novas, porque aquelas que lá estão, estão a desconjuntar-se. Aquilo está terrível. Isto agora é o meu hobby.
P: Era a casa do povo ainda criada pelo Estado Novo?
Casimiro dos Santos: Sim, é de 1934. Funcionou como Instituição.
P: Como é que foi a conversão dessas instituições, tipicamente corporativas, em instituições democráticas?
Casimiro dos Santos: Mas isso já houve legislação que que tirou às Casas do Povo aquelas competências de segurança social que elas tinham antes. Portanto, foram integradas na segurança social. Algumas morreram ali. Outras, que tinham já alguma validade, algumas outras funções, valências sociais e associativas, recreativas, continuaram. Foi o que aconteceu com esta.
Deixou de ser financiada pela segurança social, pronto, mas manteve-se como associação. E com o mesmo nome, Casa do Povo. E, entretanto, conseguiu o estatuto de instituição de utilidade pública e mantém-se agora, como qualquer associação. Aqui a Covilhã tem um movimento associativo incrível. E porquê? Por uma questão educativa e de formação, os dirigentes associativos sabiam muito bem que os operários só podiam ganhar consciência social e alguma autonomia se tivessem leitura. Esta leitura é fundamental. Algumas das associações aqui têm ótimas bibliotecas, mesmo com livros que a ditadura, o regime não...
Mas estavam lá e eram lidos: autores como o Aquilino, o Fernando Namora, os neorrealistas... E isto era muito importante porque não havia outra forma, portanto os operários quando acabavam a quarta classe iam para a fábrica trabalhar, havia logo ali trabalho e a maioria não ia estudar, como sabemos. E o associativismo aqui foi uma escola importantíssima. Foi a segunda escola que eles tinham e a leitura era extremamente importante e formou muita gente. Os dirigentes sabiam isso muito bem. Alguns desses dirigentes, uma das preocupações fundamentais era logo uma biblioteca, para lá do teatro, dos saraus, da música, da dança, das filarmónicas...A Casa do Povo tinha uma filarmónica, essa lá de Casegas, como quase todas as associações por aí, isso foi extremamente importante.
P: E tem ideia se antes, não sei como é a transmissão da Memória agora para os novos ativistas,
mas tem ideia se, antes, a Casa do Povo, antes do 25 de Abril, estava ideologicamente completamente controlada pelo regime, ou se também era aproveitada para a consciencialização?
Casimiro dos Santos: Já ia sendo aproveitada por muitos estudantes, gente mais nova que ali a partir dos anos 50/60 começou a fazer atividades. E houve um grupo teatro que se forma, leitura, debates, visitas, excursões, etc. E tudo isso acaba por, a partir dos anos 60 com mais força, 70 e mesmo depois do 25 de Abril, continuaram...
P: Há uma certa continuidade?
Casimiro dos Santos: Há uma certa continuidade, mas atenção, eu recordo-me de que muitas destas bibliotecas no início tinham livros do regime, os discursos do Salazar e aqueles livrinhos que o regime aconselhava. Estava lá isso tudo, as obras do regime, mas começam a vir outras e as direções que se vão sucedendo. Muitos antigos dirigentes sindicais dos anos 20 e 30, alguns que vieram do anarco-sindicalismo, eram dirigentes associativos aqui mais tarde, nos anos 40. Eu por acaso encontrei numa pesquisa que fiz aqui, um dos dirigentes associativos mais importantes aqui, o José Caetano, tinha sido dirigente anarcosindicalista. E, portanto, era uma pessoa com muito prestígio que acabou nas associações.
E ainda, numa das greves dos anos 40, a pedido do regime, a pedido do Sindicato Nacional, conseguem convencer o José Caetano a assinar um manifesto para que a greve acabe. A greve também estava quase num beco sem saída, portanto, não se sabia bem o que é que ia ali surgir, mais repressão ainda... Eles chegaram à conclusão de que o melhor era parar e acreditar nas promessas do regime, do Sindicato Nacional. Por sua vez, o dirigente do Sindicato Nacional também tinha sido dirigente anarcosindicalista, portanto, está a ver o percurso dos anarco-sindicalista… Seria interessante estudar aquilo bem, quase todos acabam nos sindicatos nacionais. O José Caetano não, foi para o movimento associativo e ali continua. Digamos assim, aquela vertente educativa que também vem do anarquismo e vai continuar no associativismo.
Isso foi uma escola importantíssima aqui na terra e no Concelho em geral, se calhar no país todo, mas eu conheci melhor esta região. Em Almada, também, atenção, também tem muito associativismo, que eu também conheci um bocadito, dei aulas na Cova da Piedade, na Caparica, no Seixal.
P: Para além desta participação associativa, de que já falámos, também assumiu cargos políticos nas autarquias? Há alguma relação entre esta propensão para o movimento associativo e para assumir cargos públicos?
Casimiro dos Santos: Quer queiramos quer não, se nós estamos, se queremos participar de alguma maneira, cumprir alguns objetivos que temos, não só pessoais, mas também ideológicos, temos que participar em associações ou mesmo na questão política. Transformar o mundo e não é só ficar em casa a ler um livro, também tem que se ter alguma prática. E isso, seja na política, seja no associativismo, quase sem darmos por ela, estamos lá, quase como genética.
P: Mas a ligação tem a ver tem a ver com....
Casimiro dos Santos: A ligação tem a ver com a ligação ao povo, tem a ver com isso. Quer queiramos quer não, há objetivos comuns. Normalmente , quer dizer, a parte cultural, tem a ver com a minha participação. No meu caso concreto, o aspeto da cultura é o que me interessa mais. E ao fim ao cabo, a questão da qualidade de vida das pessoas, que também passa pela participação em associações, em atividades culturais, etc. Portanto, tudo isso se conflui para essa melhoria da qualidade de vida da população.
P: Existem muitos casos, não é? Até se costuma dizer que muitos dos dirigentes autárquicos do pós 25 de Abril tinham feito a escola da democracia nas coletividades, que há uma relação muito próxima entre a vida associativa e a participação, sobretudo nas autarquias. Há bocado falávamos da Comissão de Melhoramentos e que o poder autárquico também foi muito importante para as questões das infraestruturas. Como é que essa relação se concretizou, entre as comissões de melhoramentos e as novas autarquias do poder local democrático?
Casimiro dos Santos: Essas comissões de melhoramentos acabaram por assumir o papel de associações e muitas vezes associações de moradores, que estão viradas para as condições concretas, infraestruturas, os esgotos, o muro, a ponte que falta ali, as vias de comunicação, o abastecimento de água, etc. Mas também estão viradas para essa qualidade de vida, essas atividades culturais, daí as filarmónicas, etc. E as autarquias aí podem de alguma maneira colaborar com essas instituições, porque, digamos assim, são também uma representação da vida social. Portanto, o poder autárquico hoje também não pode ignorar que as associações estão ali. Porque as associações são também uma representação popular. E o poder autárquico, como estrutura política, com outras capacidades, financiamento, etc., tem que ter essa ligação às associações. Muitas vezes as associações estão mais viradas para o aspeto cultural e recreativo. Porquê? Porque as questões do saneamento básico, as questões das infraestruturas já estão mais ou menos resolvidas, por vezes, outras vezes tem que haver um trabalho contínuo de manutenção. Mas as associações são fundamentais para manter alguma vida, que vida não é só o pão, digamos assim, é também a cultura. E essa parte cultural e recreativa são as associações a todos os níveis, as associações culturais, os reformados, os grupos de teatro, o grupo coral, a Filarmónica, etc.
E algumas das associações têm essas valências todas, como é o caso das aldeias. Nas freguesias rurais, normalmente, algumas que conseguem ter uma banda e um grupo de teatro. Outras ainda têm um grupo de caminheiros. E outras defendem o ambiente também, associações de defesa do ambiente e aqui nós temos várias dessas, os Caminheiros da Rosa Negra, por exemplo. É a natureza, o desporto...os caminheiros da Gardunha, os caminheiros de Casegas, que lá fundámos. Eu também estive na origem dos Caminheiros de Casegas.
Organizamos caminhadas por aquela Serra, a travessia da Serra do Açor, enfim, uma série de atividades. E fazemos caminhadas, já temos ido até aos Pirenéus, por exemplo, ou até às Astúrias, ou até… Ainda não fomos mais Longe, ainda não fizemos nenhuma aos Andes, mas gostávamos de lá ir.
P: Já percebi que a sua participação associativa é variada. Já esteve em vários tipos de instituição ao longo do tempo. De que forma é que acha que essa participação associativa modelou a sua vida a nível pessoal?
Casimiro dos Santos: Eu acho que sou o resultado dessas experiências todas, de alguma maneira. Os meus gostos levaram-me a participar nas coisas, e as coisas também me influenciam a mim. As atividades em que participo de alguma maneira também me formam. Não sou só eu que, de alguma maneira, ao tomar a iniciativa de fazermos uma atividade, posso influenciar. Mas a própria atividade também me influencia e o convívio, a descoberta, tudo isso acaba por ter influência na nossa vida. Quer queiramos quer não, há também um retorno. Para nós, é de satisfação, mas não só de satisfação, também aprendemos, estamos sempre a aprender e com toda a gente.
P: Tenho aqui um conjunto de questões em torno da identidade e da Memória. Penso que, como historiador, também deve ter estas preocupações. A minha primeira pergunta era: costuma-se dizer que esta é uma região muito marcada pela indústria, que a Covilhã tem uma forte tradição operária. De que forma considera que este contexto marcou e marca o associativismo em geral?
Casimiro dos Santos: É como disse, os operários, não tendo outra alternativa para se cultivarem do ponto de vista da leitura, etc., e das atividades recreativas, que não existiam se eles não se associassem. E, portanto, este mundo gregário que aqui se desenvolve, a fábrica, leva-os ao longo do tempo a criarem associações, não só laborais mas também sindicais, de profissão, etc. Mas levam-nos também, na pertença ao bairro, à fábrica, a criar associações recreativas e de lazer e essa parte é extremamente importante. Eu acho que a própria cidade, ao ter toda esta multidão dos operários... quer dizer, a tradição gregária e de associação e associativismo, ela também já viria lá muito atrás. Já viria da Idade Média, com certeza, aqui na Covilhã acho que já vem da Idade Média, quando tínhamos algumas profissões por ruas, como sabemos, como se organizava a coisa, o mundo do trabalho medieval, há aí algumas ruas com nomes ligados mais à indústria de lanifícios, que ao longo das ribeiras... Isso já existe desde a Idade Média. No fundo há um crescimento quantitativo e qualitativo, depois, até chegarmos ao associativismo moderno, já com a revolução industrial. Estas associações, algumas nascem no início do século XX, quando a indústria daqui dá um pulo muito grande, não é? Muitas destas associações que estão aí começam no início do século, anos 20 e 30, por aí. Nos anos 30, muitas delas já existiam, mas elas continuam a ter uma vida.... Também era o único sítio onde os operários, enfim, se podiam libertar um pouco desta opressão da fábrica. Do mundo opressor que é o trabalho, com horários e regras rígidas. E as muitas horas passadas ali, no fim de semana, o domingo não era para ir à missa. No mundo operário não é isso, o mundo operário precisa de outras coisas menos, menos... estar a ouvir ainda a alienação da Igreja Católica, que só é capaz de dizer: sofrei, porque depois temos uma outra vida...
Com o tempo da taberna, e para os tirar do álcool da taberna. Porque a vida dos pobres era muito dura e por vezes não lhes dava futuro de dignidade. E alguma da dignidade é encontrada nestas associações, que tinham outros objetivos e onde não se cultivava o álcool.
O alcoolismo é uma pecha enorme no operariado, que não tinha uma... Isso era terrível. E isto, de alguma maneira, conseguiu retirá-los da taberna.
P: E acha que hoje em dia, já com todo o processo de desindustrialização, encerramento de várias empresas e também alguma transformação do tecido social, acha que essa memória ainda marca o movimento associativo? Essa memória, essa tradição operária?
Casimiro dos Santos: Ainda há algo. Ainda alguma dessa memória está viva. As associações de reformados e tal cultivam muito isso. Mas depois há outras associações que já estão mais viradas para o desporto e para a parte recreativa, etc. Mas continuam na mesma, desporto, jogos, etc. Continuam ainda a cumprir o seu papel. Embora a ligação tão direta ao operariado, à fábrica, já não é tão grande. Até porque as fábricas estão a desaparecer. A sociedade está-se a transformar, portanto, nós temos uma cidade de serviços. Já não é tão gregária, portanto, os trabalhadores estão muito mais… O mundo do trabalho está muito mais fragmentado e, portanto, esse gregarismo operário que existia aqui até à desindustrialização já não é tão grande. As associações vivem com muitas dificuldades, atenção. De alguma maneira, o declínio do gregarismo do mundo operário está-se a refletir no associativismo. O associativismo está a atravessar momentos maus. E, portanto, cultivando a Memória ainda se vai conseguindo alguma coisa, mas muito pouco. Há associações em crise.
P: Mas acha que as associações são um espaço privilegiado para a transmissão da Memória? Ou seja, os ativistas mais velhos passam este legado de anos de resistência?
Casimiro dos Santos: Eu não sei como é que vai ser o futuro, nem sei se a juventude estará muito recetiva, com o individualismo dominante. Há, entre a Juventude... hoje, os mais jovens não são tão gregários. A vida e leva-os a serem mais gregários na escola, mas depois, a partir de uma certa altura, com a fragmentação individualista, vá lá, eu vou dizer isto, do mundo do trabalho, da vida, eles acabam por não ser tão participativos e há direções que não se conseguem renovar com jovens. Isso é um dos problemas que está a encontrar-se aqui no momento associativo.
E isso é uma crise que se está a passar. Não sei qual será o futuro, mas não vejo muitos jovens nas direções atuais. Portanto, passar o testemunho dos maiores para os mais novos está a ser difícil em muitas associações.
P: Como é que vê, então, o futuro do movimento associativo?
Casimiro dos Santos: Não sei como é que vai ser, mas não o vejo muito risonho. Eu acho que estamos a passar uma crise, uma crise muito grande. Não sei como é que se vai ultrapassar essa crise. Mas nós somos seres sociais e eu estou convencido que se vão encontrar outras formas de fazer isso. Vou-lhe dar um exemplo: nós, lá na Casa do Povo, tínhamos uma banda, uma banda grande, tinha uns 30 ou 40 membros. E havia uma escola de música. A banda tinha fundado uma escola de música. A banda tem cento e tal anos. Esteve parada durante uns tempos, durante a ditadura, depois recomeçou nos anos sessenta. E há poucos anos, pela crise demográfica, porque naquela aldeia - já não nasce uma criança há vários anos, é uma freguesia que só tem gente idosa - muitos dos jovens, dos últimos jovens que lá estavam e que aprenderam música e a tocar um instrumento naquela escola, resolveram, uma vez que já não havia gente suficiente para manter uma banda de 30 elementos, eles formaram uma Street Band, 7 ou 8, muito interessados, pegaram em si próprios, discutiram o assunto e formaram uma street band. E hoje andam por aí, nas Festas, fazem animação de rua. Já não é a banda clássica, mas eles encontram uma forma de ultrapassar isso. Portanto, através da imaginação deles, eu assisti a algumas das reuniões que eles fizeram e vi como eles tiveram a imaginação suficiente para sobreviver e fazer sobreviver a ideia de música de outra forma. Portanto, mantêm-se. Muitas vezes à de encontrar-se, mas no meio disto tudo algumas vão acabar. Eu não sei, mas espero que haja imaginação para conseguir ultrapassar estas crises.
P: E o movimento sindical, especificamente nas questões da memória, por exemplo, aqui houve greves muito marcantes, a greve dos mil escudos, a greve de 1981, essa Memória permanece, ou seja, aqui no meio sindical continua-se a falar nisso, continua-se a contra essa história?
Casimiro dos Santos: Sim, sim, sim, sim, sim. Eu, para as minhas salas, tinha sempre um convidado, que era o Luís garra. Muitas vezes ia às minhas aulas contar a história da greve dos 1000 escudos. E isso, este testemunho, não é só no movimento sindical, mas na comunidade, e neste caso os sindicatos têm alguma coisa a contar também nas escolas, também depende dos professores, dos professores estarem mais ou menos sensibilizados para convidar gente do mundo do trabalho para ir lá falar do trabalho. Ou, até, os alunos irem à fábrica ou ao sindicato conversar com os dirigentes sindicais. Eu acho que isso é muito importante, até para dar um substrato, não só de Memória, mas afetivo e ideológico, ao movimento sindical. O movimento sindical não é só a luta de hoje, é também a luta de amanhã, a luta que é necessário travar amanhã e também tem a ver com as lutas do passado, não é? E é este encadear do tempo que nos projeta para frente. Eu acho que isso, os jovens, os trabalhadores mais novos, muitas vezes não conhecem, por exemplo, essa greve dos mil escudos. Ficam admirados. O quê? vocês fizeram uma greve e tiveram parados tanto tempo para atingir mil escudos? Conseguiram isso, o aumento dos mil escudos? E que é que isso deu como resultado? Ficam muito admirados porque não sabem que os avós deles não tinham frigorífico. E aqueles 1000 escudos permitiram comprar um frigorífico, dar uma dignidade básica à vida das pessoas, dos operários que tinham uma vida muito difícil, estavam sempre no limiar, no fio da navalha da sobrevivência. Aqui foi uma exploração terrível.
P: E para além dessa questão da Memória, a questão do internacionalismo. Acha que o
movimento sindical e iniciativas, por exemplo, como o primeiro de Maio, que são comemoradas à escala Internacional, os congressos nacionais e internacionais, acha que criam de facto assim, ao nível das bases, uma sensação de identidade entre os trabalhadores do país e à escala Internacional?
Casimiro dos Santos: Sim, sim, isso é fundamental. Se não houver esse apelo à Memória de há 100 anos atrás, essa identidade do primeiro de Maio, festejar o primeiro de Maio, isso é fundamental para manter essa identidade e ao mesmo tempo também projetá-la no futuro. Portanto, nós não somos só presente, nós somos o fruto de um movimento também. A sociedade que hoje existe, e eu penso que isso é muito importante, que se mantenha sempre, os congressos e nos Congressos apelar-se a esse culto da Memória, que é muito importante. Porque, muitas vezes, os trabalhadores mais jovens… Nós sabemos que a nossa disciplina de história leva muito pontapé nos programas, nos currículos, muitas vezes é chutada para ter cada vez menos tempo e tal. Portanto, isso não é feito por acaso e às vezes os jovens não saem da escola com as ideias mais ou menos esquematizadas do ponto de vista da evolução histórica humana. No fundo, que lhes permita compreender o mundo em que vivem. Eu acho que os sindicatos e toda esta festa que é o primeiro Maio, as comemorações do 25 de Abril, tudo isto fará, de alguma maneira, parte de uma formação geral, que é construção da Memória identitária de uma comunidade e de uma classe social, os trabalhadores. No fundo, eles acabam de alguma maneira por ir bebendo estas… a comemorar também se aprende e as comemorações têm esse objetivo. Países onde há pouca história, por exemplo, países novos como os Estados Unidos, eles vão buscar tudo, todos os bocadinhos da Memória, ainda que para nós não sejam assim muito significativos, para eles são, porque a identidade constrói-se com estes pedacinhos todos da memória coletiva. Isso é muito importante. Não se pode, não se pode deixar de comemorar essas datas importantes.
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31 de maio de 2021
P: A primeira questão que te colocava era se a propensão para a participação associativa é uma coisa de família, ou seja, se os teus pais ou outros familiares próximos, durante a tua infância, eram ativistas ou associados de alguma ou de algumas coletividades?
Luís Garra: Vamos lá ver, há uma tradição de família, quando, principalmente o meu pai, foi sempre envolvido na vida associativa. Ele foi músico, foi dirigente de uma banda filarmónica, foi jogador de futebol, fez parte da direção da equipa de futebol, isto enquanto esteve na terra, na sua terra de origem, Manteigas. Tanto que eu nasci em Manteigas.
E depois, quando veio para a Covilhã, ele continuou a ter essa atividade. Mas a minha ligação foi sempre muito maior ao movimento sindical. Até posso dizer que a minha ligação depois ao movimento associativo é resultado de uma primeira envolvência no movimento sindical, tirando o facto de ter colaborado na criação da Associação de Trabalhadores-Estudantes da Escola Campos Melo, na Covilhã. Mas obviamente, essencialmente nessa altura, quando eu, imediatamente a seguir ao 25 de Abril, tinha 17 anos, quando se dá o impulso às associações de trabalhadores-estudantes e depois ingresso no MJT, no Movimento da Juventude Trabalhadora. Depois, mais tarde, na União das Juventudes Comunistas. E, portanto, depois todo o trajeto de vida política, depois com certeza lá iremos…
Mas voltando à questão inicial, o meu pai, mesmo em termos sindicais, não sendo aquilo que se pode chamar um resistente antifascista, era uma referência para os seus colegas de trabalho, no que concerne à explicação dos direitos. Ele tinha com ele, ainda antes do 25 de Abril, o contrato coletivo de trabalho que já estava negociado em 1970, 1969 revisto em 1970 e depois em 1973, e, portanto, ele era uma pessoa a quem os seus colegas...
P: Só para ser registado, a profissão do teu pai era...
Luís Garra: Era tecelão, operário têxtil, ligado à indústria de lanifícios. E essa vertente, eu retive-a sempre, como uma pessoa informada e que informava, era esta a sua... Portanto, talvez daí venha uma certa ligação, mas eu creio que a referência principal tem a ver com o meu envolvimento imediatamente a seguir ao 25 de Abril, que me apanha com 17 anos.
P: Na infância, não foste associado de nenhuma associação ou não usufruíste da oferta cultural de nenhuma associação?
Luís Garra: Fui sócio de uma coletividade da minha freguesia, nem era freguesia, era um lugar da freguesia da Covilhã onde eu vivia, que era o CPT de São Vicente de Paulo, no bairro chamado São Vicente de Paulo/Borralheira, hoje Cantagalo. Fui sócio dessa coletividade. Fiz lá teatro muito episodicamente, com 16/17 anos. Porque eu comecei a trabalhar com 10 anos, fui aprender para alfaiate, aos 11 anos ingressei numa fábrica de lanifícios e aos 14 era trabalhador-estudante, trabalhava de dia e estudava de noite.
P: Nesse período, ainda antes do 25 de Abril, quando entraste na fábrica, apercebeste-te dessa luta em torno do contrato coletivo de trabalho?
Luís Garra: Sim. Nessa altura dos 10 anos não, claramente que não, porque eu entrei em 1967 na fábrica. Mas em 1970, em 1973, já me apercebi das movimentações pelo contrato coletivo de trabalho. Aliás, eu tenho uma referência desse envolvimento, porque as assembleias nos sindicatos, já nessa altura, o salão, este andar onde nós estamos, era o salão de reuniões.
O salão de reuniões no sindicato era este andar onde estamos, mas era tudo amplo e a Secretaria era ao fundo do salão. E já nessa altura, em 1973, o salão do sindicato se enchia, incluindo as escadas. Havia reuniões que vinham até à rua. Tem piada que quando eu cheguei, quando comecei a frequentar mais os sindicatos, mesmo já depois do 25 de Abril, já o sindicato ou o salão de reuniões tinha uma aparelhagem com colunas distribuídas no salão e na escada. Porquê? Pois, porque as escadas se enchiam. Portanto, em 1973, tenho perfeita noção disso, eu já era trabalhador-estudante na altura e eu lembro-me de ter ido ao comício da oposição democrática, do MDP/CDE, que foi no teatro-cine, uma sala de cinema muito grande, que tinha perto de 1000 lugares, que foi agora renovado.
Muito honestamente, eu fui de uma forma perfeitamente inconsciente. Não tinha perfeita noção, nenhuma noção para onde é que eu ia. Foi um amigo meu, que foi depois quem me inscreveu no MJT, no movimento da Juventude trabalhadora a seguir ao 25 de Abril, que me disse: “Epá, há uma iniciativa no cinema. Vamos lá então.” Pronto, e vi que era uma sessão da oposição democrática e para ser muito mais sincero, a apreensão da importância daquela iniciativa, só depois do 25 de Abril eu a percebi em toda a sua dimensão. Portanto, não tinha uma cultura política nem ideológica que me permitisse perceber. O meu pai falava muito contra o regime, contra o Salazar, contra o Marcelo. A minha mãe, sendo uma mulher de armas, como se costuma dizer, muito consequente, era mais temerosa, protegia. Estava sempre em casa a refilar e tenho a perfeita noção de quando foi o discurso de Marcelo Caetano das vacas, o chamado discurso “acabaram-se as vacas gordas”, eu estar a protestar porque estávamos a ouvir o que ele disse na televisão. As conversas em família... E ela mandou-me calar e eu não me calei e atirou-me com um sapato à cabeça.
Portanto, tenho perfeita noção dessa altura. Digamos que, não sendo uma cultura, em casa, de grande contestação ao regime, não era de compreensão pelo regime. Isto talvez tudo junto, o ter sentido a injustiça de não ter ido estudar e ter que ir trabalhar e depois sim, fui estudar como trabalhador-estudante. Isso ajudou a criar a minha consciência. Porque eu fui, passe a imodéstia, portanto não era eu que o dizia, era a professora, eram os meus colegas, eu, a par de um outro amigo meu, éramos os melhores alunos da nossa classe. Era assim que se chamava na altura, da nossa classe. E uma parte deles foram fazer o exame de admissão ao liceu e eu fui trabalhar, com 10 anos. Isso, confesso, criou-me uma certa revolta. Porque se eu gostava de estudar, tinha apetência para o estudo e sou impedido de ir estudar, tenho de ir trabalhar, isso gerou em mim, não digo revolta, mas alguma dor me deixou.
P: E estavas a dizer que tinhas criado uma associação ainda imediatamente antes do 25 de Abril de estudantes e trabalhadores?
Luís Garra: A seguir ao 25 de abril, imediatamente a seguir ao 25 de Abril… É quando há o boom das associações de estudantes e também se criou a associação de trabalhadores-estudantes da Escola Campos Melo. Eu fiz parte da pró-Comissão. Creio que era assim que se chamava, já não tenho a certeza. E depois, integrei a primeira direção da associação de trabalhadores-estudantes da Escola Campos Melo, que creio que depois... acho que já nem há ensino noturno. Não sei se ainda há, mas, portanto, nessa altura tinha muitos, muitos... A seguir ao 25 de Abril, houve uma procura muito grande de trabalhadores, de jovens trabalhadores, que não tinham podido, lá está, gostavam de estudar, não tiveram condições de ir estudar para o liceu, tiveram de ir trabalhar. E depois, logo que tiveram a oportunidade, a seguir ao 25 de Abril, foram para a escola.
P: Então vamos agora focar especificamente o período da experiência associativa durante o período revolucionário, entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro. Quais foram as associações em que participaste durante este período específico?
Luís Garra: Foi fundamentalmente a Associação de Trabalhadores-Estudantes.
P: Que tipo de atividade desenvolviam?
Luís Garra: A Associação de Trabalhadores-Estudantes visava defender os direitos e os interesses dos trabalhadores-estudantes dessa escola e depois eu frequentava muito, nunca tive funções diretivas, mas frequentava, como disse, fazia, cheguei a fazer teatro na colectividade. Isto foi antes do 25 de Abril e depois também ainda fiz alguma coisa na coletividade do lugar onde eu vivia. Joguei futebol na equipa da empresa Sá Pessoas & Irmãos/Gitêxtil e em grupos informais que criavam torneios. Mas, essencialmente, a seguir ao 25 de Abril a minha intervenção foi mais de carácter partidário, político-partidário do que propriamente do movimento associativo.
P: E no movimento sindical?
Luís Garra: No movimento sindical foi desde logo. Eu fui eleito para delegado sindical em 1974, mas como tinha 17 anos e os estatutos do sindicato diziam que só se podia exercer funções de direção ou diretivas...
P: Qual era o sindicato?
Luís Garra: Dos Lanifícios do Distrito de Castelo Branco. Só quando fiz 18 anos é que pude vir para delegado sindical. Eu quero assinalar que quando fui eleito delegado sindical foi pelo princípio do mais votado. Portanto, os trabalhadores votavam em quem queriam, não havia listas, era votação aberta. E eu, com 17 anos, fui eleito numa empresa que nessa altura tinha 200 e tal trabalhadores. Depois, mais tarde, fez uma junção de empresas que foi até 500, mas foi pela junção de empresas, da qual fiz parte também da Comissão de Trabalhadores desta junção de empresas.
Mas a seguir, imediatamente a seguir ao 25 de Abril, fui eleito delegado sindical. Não foi aceite no sindicato e nas eleições do ano seguinte, com 18 anos, fui eleito. Depois, aos 19 anos, fui convidado pela direção que estava no sindicato para integrar a Comissão Organizadora do 1º de Maio. Nessa altura, criava-se uma comissão organizadora para o primeiro de Maio. Eu fui convidado, integrei em 1977, se a memória não me falha, eu vim para a direção do Sindicato em 1977 ou 1978. Primeiro, fui eleito para a comissão diretiva do sindicato. Houve um vazio na direção do sindicato e depois eu era delegado sindical na minha empresa e fui convidado para integrar a comissão diretiva e, depois da comissão diretiva, integrei a direção do sindicato até há ano e meio. E agora sou presidente da Mesa da Assembleia Geral.
P: Com certeza que com essas responsabilidades, terás participado e organizado ações de luta muito importantes...
Luís Garra: Sim, eu participei logo, embora não sendo nem delegado sindical nem dirigente, mas participei imediatamente na greve dos 1000 escudos. Participei quer nas assembleias, quer nas votações que houve ao nível de empresa, porque essa foi uma greve que foi decidida em Assembleia Geral do Sindicato, mas que depois foi ratificada por votações feitas nas empresas. E, portanto, eu participei ao nível da minha empresa, daí eu ter sido depois imediatamente eleito delegado sindical, não aceite, como já disse, tinha 17 anos. E, portanto, participei logo na greve dos 1000 escudos, como já tinha participado na manifestação do 25 de Abril na Covilhã.
Tinha um certo sentido de justiça, porque nós ganhávamos muito mal, não tínhamos condições de trabalho, não havia condições dignas, era uma vida muito, muito difícil. Eu conto isto muitas vezes. Antes do 25 de Abril, os meus pais não tinham frigorífico, máquina de lavar roupa nem se falava, só muito mais tarde. Tinham o tanquezinho à porta ... não tinham água. Mesmo para lavar a roupa, tínhamos de ir com cântaros buscar água à fonte. E é claro que a nossa vida era muito difícil. Portanto, isto despertou mais a vontade de trabalhar e estudar, já na escola, como trabalhador-estudante.
Isto permitiu-me ter uma perceção das injustiças, sem nenhuma consciência política, mas as injustiças sentem-se, não é? Isso fez com que, imediatamente a seguir ao 25 de Abril, eu me envolvesse a fundo, de cabeça, como se costuma dizer. Participei nessa greve dos 1000 escudos. Essa greve foi muito importante para nós, porque 1000 escudos de aumento nessa altura foi uma coisa.... Olhe, permitiu que os trabalhadores comprassem o frigorífico, comprassem o fogão a gás, alguns compraram carro, a prestações, mas compraram. Houve uma subida no nível de vida, nas condições de vida, que foi uma coisa fantástica.
Mas não foi importante só para nós, foi importante para o país. Porque foi a partir dessa greve, que teve como desfecho um acordo celebrado no Ministério do Trabalho, na Covilhã, com a vinda do Secretário de Estado de Trabalho, que era o Carlos Carvalhas e do Secretário de Estado, não sei do que é que ele era Secretário de Estado, que era o António Guterres. Tanto que foram eles os dois que vieram à Covilhã para se fazer o acordo entre os sindicatos da Federação de Sindicatos dos Lanifícios, que na altura era dirigida pelo falecido Manuel Correia Lopes e também tinha o Kalidás Barreto, mas também tinha dirigentes aqui da Covilhã. Fez-se esse acordo com a presença desses secretários de Estado, com uma manifestação à porta do Ministério do Trabalho.
Ou seja, os trabalhadores concentraram-se. Para além de estarem em greve, concentraram-se na Praça do Município e vieram à manifestação para a porta do Ministério do Trabalho, que era um jardim público. Lembro-me perfeitamente de participar nessa greve, participar na manifestação, e claro, sem qualquer tipo de intervenção sindical. E depois participei em 1975 na luta do contrato coletivo de trabalho, em que a questão principal já não era tanto o salário, embora também fosse. Porque já tínhamos em 1974 conseguido aquele aumento significativo dos salários, mas era a questão do horário. A palavra de ordem da manifestação, da manifestação nacional dos lanifícios que realizámos na Covilhã, era 40 horas Sim 41 Não. Nessa altura conseguimos, conquistamos as 40 horas de trabalho para o setor dos lanifícios, com 2 dias de descanso, sábado e domingo.
E lembro-me perfeitamente dessa greve e lembro-me depois de outras greves em que participei pelo contrato, sempre pelo contrato coletivo, principalmente pelo contrato coletivo de trabalho. E, que depois já lá irei, à greve de 81, que merece uma referência muito particular. Mas depois também as greves na minha empresa, porque as greves na minha empresa foram imediatamente a seguir ao 25 de Abril. Foram intensas, porque havia um dos sócios, um dos patrões, que era um homem do regime fascista, muito ressabiado com o poder perdido. Ele era vereador da Câmara da Covilhã antes do 25 de Abril. Pertencia à União Nacional. Vivia muito da revanche e começámos a ter salários em atraso e a lutar pelo pagamento de salários.
Só para ter uma ideia: em 1979, eu casei, com 22 anos, e imediatamente fiquei com salários em atraso. Cheguei a estar cinco meses sem salário. E depois eu recebi os salários, resolveu-se a situação e ficou a minha mulher a seguir. Portanto foi assim sempre uma vida, um bocadinho atribulada a esse nível. Ela trabalhava noutra empresa. Depois também tive um processo por causa dessas lutas de salários em atraso, para o pagamento de salários. Eu e mais 19 camaradas de trabalho tivemos um processo disciplinar, suspensão do contrato e suspensão do trabalho durante seis meses. Só que aí houve uma grande solidariedade dos trabalhadores e nós, apesar de estarmos suspensos, nunca houve dia nenhum que não fossemos para a empresa. Não nos deixavam trabalhar, mas nós estávamos lá e, portanto, eram os trabalhadores que se punham ao portão da fábrica, a fazer alas de um lado e do outro para nós entrarmos e, portanto, o patrão nem se atrevia a impedir a nossa entrada.
Foram manifestações de solidariedade, e, quer queiramos quer não, em termos de dirigente sindical, porque nessa altura já era da direção do sindicato, marca-nos de uma forma muito, muito profunda. Porque sentimos na pele, com atos concretos, o que é a importância da solidariedade e, portanto, quando nós falamos da solidariedade nessa situação, já não estamos a falar de uma questão abstrata, de um princípio teórico. Nós estamos a falar de uma experiência. E, portanto, lembro-me perfeitamente de outras lutas na minha empresa, em que eu estive contra a luta. Recordo-me, não posso precisar o ano, mas eu já estava a tempo inteiro no sindicato, já era dirigente sindical a tempo inteiro, em que eu estava em Gouveia, porque nós, entretanto evoluímos de Sindicato dos Lanifícios para Sindicatos Têxteis da Beira Baixa, que passou a representar também os trabalhadores das confeções. Portanto, a dinâmica sindical acompanhou a dinâmica económica. Criámos o sindicato têxtil, que era mais do que os lanifícios, e fazíamos uma parceria com os sindicatos da Beira Alta. E tínhamos um jornal. Eu era o responsável por este jornal. Eu estava em Gouveia a reunir com os...
P: Era o Laneiro?
Luís Garra: Nessa altura, já era O Têxtil. Eu ainda fui responsável pelo Laneiro durante algum tempo, enquanto fui do sindicato dos lanifícios. Eu entrei para a direção em 1977/78. É uma questão de precisarmos melhor... Eu tenho aqui uma confusão de data, mas eu quando entrei para a direção do sindicato, fiquei logo com a responsabilidade do Laneiro e ainda fui o responsável pela sua edição e redação. A redação, quer dizer, não era eu que redigia tudo, mas de acompanhar a redação. E depois, quando criámos o sindicato têxtil, O Têxtil passou a ser o jornal da Beira Interior, Guarda e Castelo Branco. Portanto, eu estava na Guarda, em Gouveia, a reunir com os outros dirigentes do sindicato de Gouveia para prepararmos o jornal seguinte. Telefonam-me a dizer que ia haver um plenário na minha empresa, por causa de uma greve, porque o patrão não queria pagar nem o salário de Dezembro nem o subsídio de Natal. Enfim, só queria pagar 50% do salário de Dezembro e 50% do subsídio de Natal.
Eu vim para o plenário e já estava tudo em polvorosa, queriam greve. E eu estive contra aquela greve, porque eu defendia que primeiro devia-se receber o dinheiro que a empresa queria dar e depois é que se ia lutar pelo resto. Porque se assim não fosse a consequência ia ser o patrão já não pagar nem uma coisa nem outra, e nós, em vez de estarmos a lutar por 50%, estávamos a lutar por 100%. E procurei chamá-los à razão, àquilo que eu considerava a razão. Os trabalhadores foram a votação e eu perdi. E depois foi decidido fazer piquetes na empresa, para guardar, para não deixar sair o produto, ou o produto fabricado e eu, que estive contra a greve, lutei contra ela, mas a primeira pessoa a fazer o primeiro turno do piquete da greve fui eu.
Porquê? Achei que o facto de eu ter sido derrotado nas minhas posições não significava que eu não tivesse de cumprir com as decisões tomadas. Portanto, foi isto que eu passei a fazer. Mas estávamos a falar das lutas mais intensas.
Eu considero que a greve de 1981 ainda entra neste processo. Porquê? Nesta altura já era sindicato têxtil, portanto já não era sindicato dos lanifícios. Eu já era ao mesmo tempo coordenador da União dos Sindicatos e ainda não era presidente do sindicato têxtil. Era membro da direção em 1981. Se não estou em erro, já era vice, já era vice-presidente da direção do sindicato. É porque depois, em 1983, passei a presidente, mas em 1981 eu era vice-presidente e era coordenador da União de Sindicatos de Castelo Branco, desde 1979. Tinha 22 anos quando fui para coordenador da União dos Sindicatos de Castelo Branco.
A greve de 1981 foi provocada porque a associação Patronal ANIL, em Julho, toma a decisão de deixar descontar as quotas dos trabalhadores. E as quotas de Julho eram pagas em Agosto. Em Agosto, as fábricas estavam fechadas para férias, a maioria delas. Portanto, nós, na altura em que eles tomaram essa decisão, percebemos logo que ia haver qualquer coisa, porque aquilo foi conjugado em Agosto.
Em plenas férias aparece um acordo das associações patronais, assinado com o Sindetex, que era o sindicato paralelo e amarelo da UGT, e que nós classificámos que retirava cem direitos do contrato negociado em 1975. Cem direitos, claro que uns mais importantes que outros, portanto, mas retirava direitos. Em Setembro nós decidimos iniciar um processo de luta, que era uma greve de três dias por semana – terça, quarta e quinta. Trabalhávamos, porque, nessa altura, havia o perigo do desconto do fim de semana. Então nós, para não descontarem a semana toda, a decisão que tomamos foi, à segunda e sexta trabalhamos, já não mexem com o fim de semana e fazemos greve à terça, quarta e quinta. Isto desarticulava completamente a produção, porque à segunda-feira não se fazia nada. E à sexta também não, porque estava tudo desarticulado e nós só perdíamos três dias. Isto foi durante 29 dias.
Foi uma luta de 29 dias que suscitou a solidariedade de trabalhadores de todo o país, da siderurgia, dos pescadores, dos trabalhadores agrícolas do Alentejo, dali de Montargil, que vieram apoiar-nos. Porque nós estávamos numa greve muito dolorosa do ponto de vista financeiro, que se prolongou até Novembro e parou assim de uma forma um bocadinho abrupta. Por isso é que aí no guião fala em 28 dias, porque ainda houve um dia, para além dos 28, ainda houve um dia que foi feito, já em desespero de causa, por razões que não vale a pena estar neste momento a esmiuçar, já lá vai o tempo... Quem fazia os avisos era a Federação dos Sindicatos Têxteis, e, estranhamente, nós tomávamos a decisão de greve todas as semanas, ou seja, de uma semana decidíamos para a seguinte, em função do ambiente de greve que havia e não sei por que razões, eu calculo qual foi a razão, a Federação dos Têxteis, na última greve, em vez de marcar três dias, só marcou um. A partir daí, os trabalhadores que queriam três, só foi marcado um...
De qualquer das formas, o que é que nós conseguimos com essa greve? Foi que as empresas, individualmente, viessem assinar documentos com os delegados sindicais de cada uma das empresas e dizer que mantinham intactos os direitos do contrato de 1975. Ou seja, não conseguimos mais aumento, mas durante décadas evitámos a aplicação do contrato da UGT com os cortes de direitos. Portanto, só tem a ver com o processo revolucionário, porque foi uma greve que foi motivada, porque veio pôr em causa o contrato que conquistámos no ano imediatamente a seguir ao 25 de Abril.
P: Já me falou destas lutas grandes em torno do contrato coletivo de trabalho, especificamente a nível local. E no que diz respeito à estruturação nacional do movimento sindical, participou em congressos setoriais nacionais e internacionais?
Luís Garra: Eu participei, lembrou-me. Participei no terceiro Congresso da Federação do Sindicato dos Têxteis e em todos até ao último. Portanto, participei em todos os congressos da Federação dos Sindicatos Têxteis e nunca fui dirigente da Federação, embora tivesse envolvimento direto nos trabalhos da Federação. Portanto, como presidente do Sindicato dos Têxteis, eu participava regularmente em plenários e reuniões, em encontros, em conferências, mas nunca fui da direção. Por opção, porque entendi sempre, que eu era desde 1983 um membro do Conselho Nacional da CGTP e era coordenador da União de Sindicatos de Castelo Branco e sempre entendi que não fazia sentido estar a acumular tantas responsabilidades, que me iriam transformar num dirigente que eu sempre condenei, este tipo de prática sindical que é andar de reunião em reunião a passear conclusões, só a dirigir por cima…
Portanto, eu tive sempre uma conceção do exercício da ação sindical que é a de trabalho concreto no terreno. Ora, quem tem muitas, quem exerce muitas funções ao nível supra, falta-lhe tempo depois para o trabalho na base. E, portanto, entendi sempre que, apesar de muitas vezes solicitado para a direção da Federação, não foi por nenhum desprimor em relação à Federação, mas que havia outros dirigentes do sindicato que poderiam fazer melhor do que eu e foi isso que foi sempre acontecendo, até eu deixar de ser presidente do sindicato. Deixei de ser em 2017.
E, portanto, envolvi-me sempre muito no trabalho da Federação, no trabalho da CGTP. Por duas ou três vezes, pelo menos, me foi colocada a questão de eu ir a tempo inteiro para Lisboa, para a sede central e por razões várias não me senti em condições de ir e fiquei por cá. E não me arrependo. E nessa qualidade de dirigente sindical participei em múltiplas conferências, não estão todas, mas no guião que mandei estão algumas delas…
¬P: Eu gostava de aprofundar em relação a esta iniciativa específica, que é o Congresso, sobretudo neste período revolucionário. Depois de 48 anos em que não havia essa participação democrática, essa experiência de discussão coletiva, queria que me falasses de como foram estes primeiros congressos em que pessoas, dirigentes sindicais de todo o país, se juntavam para discutir questões sobre a economia do país...
Luís Garra: Ora, há um em que eu não participei, mas foi um encontro muito importante que, não tendo sido um Congresso, foi um encontro importante que marcou de uma forma muito clara aquilo que era a política dos sindicatos têxteis a nível nacional para o setor. Havia correntes de opinião muito fortes, que na altura eram muito ativas. Não digo fortes, mas ativas, muito ligadas àquilo que se chamava na altura o esquerdismo, que defendiam a nacionalização de tudo e mais alguma coisa. Estou a falar do encontro de Ofir, no qual eu não participei, mas li as conclusões. Porque foi imediatamente antes de eu vir para a direção do sindicato, não posso precisar o ano em que foi, mas deve ter sido por 1976/77. Esse encontro marca claramente que a Federação Têxtil não quer a nacionalização do setor têxtil e aponta claramente o caminho da reestruturação do setor e da valorização, já nessa altura, da valorização dos trabalhadores, dos salários, etc.
Eu depois, estava-me a esquecer, que participei não no terceiro, mas no segundo Congresso. Porquê? Porque quando eu venho para a direção do sindicato, para a Comissão Diretiva do sindicato, o Congresso da Federação Têxtil é realizado na Covilhã. E eu confesso que foi uma grande atrapalhação, porque nós estávamos na altura numa crise diretiva. Eu e mais cinco camaradas, ou mais quatro (acho que eram mais quatro), fomos para a Comissão diretiva e apanhamos com a preparação e a realização do Congresso em cima. Para mim aquilo era chinês, muito honestamente, era peixinho fora da água. Participei já nesse Congresso, que foi realizado num antigo teatro-cine da Covilhã e que culminou com uma grande iniciativa pública no chamado pavilhão da FAEC, da Feira das Atividades Económicas, que já não existe.
Participei nesse, deve ter sido o segundo, porque o terceiro foi em Guimarães. Não participei no primeiro, que foi o da fusão, porque havia duas federações: já havia a Federação dos Lanifícios e havia a Federação dos Têxteis e, portanto, depois as duas federações fundem-se numa e é nesse Congresso, neste segundo Congresso aqui realizado e que culminou com o comício nas FAEC, que é eleito o coordenador, aquele que foi durante muitos anos coordenador da Federação, o Manuel Freitas, que ainda hoje é da direção da Federação, embora já não sendo coordenador.
Portanto, os congressos foram sempre momentos muito importantes de afirmação da unidade do movimento sindical. Porque o movimento sindical têxtil é um movimento sindical com características muito próprias. Nós falamos do projeto unitário da CGTP, mas se nós queremos uma tradução mais real do que é o caráter unitário da CGTP, é olharmos para a Federação do Sindicatos Têxteis, onde coexistem todas as correntes.
P: Muito bem, estavas a dizer que os congressos eram muito importantes?
Luís Garra: É, porque afirmavam o caráter unitário, principalmente a questão da unidade dos trabalhadores e a unidade orgânica do movimento sindical. Estava a dizer que a CGTP tem a sua marca, é o caso do seu carácter unitário, mas na Federação dos Têxteis esse caráter unitário é muito expressivo. Porquê? Porque estão lá, têm expressão, todas as correntes de opinião que existem no movimento sindical, com equilíbrios muito, muito, complexos. E, portanto, os congressos eram momentos muito fortes, até do ponto de vista emocional.
Eu costumava dizer, mas não é caricatura, é verdade, ultimamente costumava dizer que os nossos congressos já não têm aquele sal que tinham os antigos, já nem se chora. Porque havia, de facto, momentos de grande tensão e muito emotivos, mas também uma afirmação da unidade muito forte. Quando chegávamos ao fim havia um trabalho para o consenso, para procurar linhas de consenso muito, muito fortes. E não havia aquela ideia de: “bom, vamos contar espingardas, temos a maioria, votamos, vota-se a favor, está resolvido”. Não, isso é fácil demais. Eu costumo dizer “fazer isso é fácil demais”, o que é difícil é trabalhar para o consenso, fazer aproximações. E, portanto, os congressos da Federação dos têxteis tinham essa característica.
Depois eram congressos muito difíceis, porque o setor têxtil é muito diversificado do ponto de vista das correntes ideológicas, mas é muito diversificado também de subsetor para subsetor. Falar de lanifícios não é a mesma coisa de falar do têxtil algodoeiro, como não é a mesma coisa de falar de calçado, como não é a mesma coisa falar de confeções ou de cordoaria. Portanto, são subsetores que têm muitas especificidades, muito próprias, e, portanto, que obrigam a que a Federação tenha de ter uma linha de intervenção adequada às especificidades de cada subsetor. Portanto, construir uma linha unificadora da ação, com situações tão diferentes, não era fácil e a Federação dos Têxteis foi conseguindo isso ao longo dos anos.
Os congressos eram momentos muito importantes para afirmar reivindicações e também afirmar modelos de reestruturação para o setor têxtil. Ainda andava muita gente a falar... ainda não se falava de reestruturação do setor e do que se falava era da liquidação do setor e já os Sindicato dos Têxteis, e agora falo também em particular do sindicato a que eu pertencia, aqui Têxtil da Beira Baixa, já nós tínhamos uma linha de intervenção no sentido de que o setor não estava condenado à liquidação, que o setor tinha futuro, que era preciso ser modernizado, que era preciso inovar o produto, os modelos de organização e os métodos. E que era preciso, acima de tudo, dar maior valor aos trabalhadores, à sua qualificação, mas também à sua remuneração.
Portanto, estas foram linhas de intervenção que foram sempre muito claras no nosso horizonte. Nós passámos aqui por vários momentos, muito conturbados em termos de trabalho, que era conciliar a aposta na ação reivindicativa para melhorar salários e combater a chaga do encerramento de empresas. Não é fácil trabalhar assim, porque o exemplo que passa para os trabalhadores que estão nas empresas que estão bem é: “Olha, vê lá o que é que está a passar naquela, também queres cair no desemprego?” Portanto, o contraponto não é um contraponto positivo, é um contraponto negativo. É nós nunca perdemos o Norte. Eu vou usar um palavrão, passo a expressão, mas adotamos aqui um lema do Marquês de Pombal, “tratar dos vivos, enterrar os mortos”, sem deixarmos de ter respeito pelos mortos.
Foi por isso que aqui nós, na Beira Baixa, ao mesmo tempo que nunca abandonámos a luta pela contratação coletiva, pela melhoria dos salários, nunca deixámos de acompanhar os processos de luta dos trabalhadores que estavam com salários em atraso, os que estavam noutras empresas, que estavam ameaçadas de encerramento, a luta pelo emprego, a luta pela laboração das empresas. E nunca deixámos de acompanhar os trabalhadores, mesmo já depois das empresas fechadas, de acompanhar os trabalhadores até ao momento em que tinham de receber os créditos laborais.
Portanto, isto pressupõe uma visão estrutural do que é a intervenção sindical alargada e em que uma questão não pode condicionar a outra e, portanto, o nosso discurso não é fácil. É difícil, por vezes, fazer passar a mensagem, quando o que nós temos à nossa volta é encerramentos, é desemprego, é dramas sociais.
Dizer aos trabalhadores das empresas, “mas isto não é convosco, é com os outros, vocês têm de continuar a lutar”, nem sempre é fácil, mas foi isso que nós fizemos. Não contou com total êxito, porque por isso é que nós somos setores muito assentes no salário mínimo nacional.
Não contou com total êxito, mas a avaliação não tem de ser tanto por aquilo que conquistámos, tem que ser mais por aquilo que evitámos. E o balanço que nós fazemos, e que eu faço, é um balanço, tendo em consideração a conjuntura em que nós trabalhávamos, consideramos que, apesar de tudo, resistimos e resistimos bem. Aliás, eu costumo dizer que este sindicato é um caso de estudo. Em condições normais, o sindicato têxtil da Beira Baixa não tinha razão para existir. Porque éramos 10000 trabalhadores em 1975, só nos lanifícios, agora são 3000-4000, já com as confeções, porque associamos as confeções.
No entanto, o sindicato têxtil hoje continua a ter direção e delegados sindicais. Não tem uma boa situação financeira, mas também não vive com a corda na garganta. Portanto, isto tem a ver com as opções que fomos fazendo ao longo dos anos. Isto não se consegue de ânimo leve. Nem sempre, ao nível nacional, na Federação dos Têxteis, isto foi suficientemente compreendido e houve regiões do país, onde tiveram igualmente problemas graves ao nível do encerramento das empresas, em que a prioridade foi toda dada para acompanhar estas empresas e desguarneceu-se as empresas que continuaram a trabalhar. E nós, por exemplo, hoje podemos dizer que as nossas posições sobre a reestruturação dos lanifícios deram resultado. Porque hoje os lanifícios não são um setor de mão-de-obra intensiva. Ainda não são totalmente de capital intensivo, mas já se aproximam muito. Ou seja, já têm níveis de rentabilidade e de produtividade muito elevados, mais elevados, por exemplo, que na confeção, porque a confeção ainda é um setor de mão-de-obra intensiva.
Portanto, nós não tivemos qualquer tipo de problema quando foi a questão da Integração dos têxteis nas regras da Organização Mundial do Comércio, que nós vimos que aquilo era uma machadada para o setor têxtil em geral e para os lanifícios em particular. Nós fizemos um memorando conjunto, subscrito conjuntamente com a associação patronal, a exigir à União Europeia, a exigir ao Governo português, medidas de apoio ao setor têxtil. Como foi o processo de reestruturação da indústria de lanifícios nos governos de Cavaco Silva? Houve três opções em cima da mesa: uma era salvar tudo indiscriminadamente; outra era salvar as empresas que estavam com dificuldades, que ainda tivessem viabilidade económica e financeira; e a terceira, salvar apenas as que já estavam bem. E nós sabíamos que não era possível salvar tudo. Tínhamos a plena consciência de que não era possível salvar tudo. Mas também sabíamos que aquilo que estava a ser trabalhado era canalizar os apoios financeiros apenas e só para as empresas que já estavam bem. Que ainda por cima eram as empresas que estavam na direção da associação patronal e que tinham ligação direta aos ministérios e que estavam em condições de apresentar as candidaturas aos apoios antes de todos os outros. E foi esta a opção que prevaleceu do Governo de Cavaco Silva. Era o Mira Amaral o ministro da Indústria e da Economia.
P: Podemos voltar um bocadinho atrás, não queria interromper o teu raciocínio, mas gostava só de perceber mais uma ou duas questões em relação ao período revolucionário, uma delas é que eu vi que houve algumas formações sobre o controlo operário...
Luís Garra: Sim, eu era da comissão de trabalhadores da empresa, que foi a impulsionadora deste processo. Eu era delegado sindical e quem era o nosso delegado sindical, que depois ainda passou pela comissão diretiva do sindicato que eu referi, mas nunca chegou a ser membro da direção do sindicato, era o Joaquim Pinto. Esse homem tinha muito jeito, muita aptidão para as contas.
E, portanto, os delegados sindicais e a comissão de trabalhadores da empresa onde eu trabalhava iniciaram o processo de controlo operário daquela empresa. Sabiam exatamente tudo o que se produzia, quando, quanto, para onde se vendia, como se vendia, quanto se vendia e, portanto, nós tínhamos uma informação rigorosa de qual era… Claro que isto deu lugar a experiências e, portanto, depois houve este tipo de iniciativas de formação operária, mas que foram muito influenciadas por essa empresa.
Aliás, a empresa, a Sá Pessoa, era muito referenciada por causa do controlo operário, mas houve outros que não tiveram o mesmo rigor do controlo operário, mas que também tinham uma intervenção que se aproximava. Por exemplo, na maior empresa na altura, que era a Nova Penteação, os delegados sindicais também exerciam uma função e depois houve aqui formação para o controlo operário, sim.
P: Em que consistia, quais eram os conteúdos?
Luís Garra: Eram muitos, eram os elementos elementares de economia, do processo produtivo, do processo de venda, a leitura dos mercados… Portanto, era muito assente em coisas muito rudimentares. Porque estávamos a falar com pessoas que tinham a quarta classe, não podiam ser cursos de profundidade. Mas dava-nos os elementos da análise económica e financeira mínima. Chegámos a ter dentro também do sindicato, havia capacidade financeira para isso, uma avença com uma pessoa ligada à área da economia, que também nos ajudava a ler os relatórios das empresas, os balanços. Tanto que nos permitia depois ter conhecimento sobre as empresas.
Bem, é aí, já não tanto de controlo em cima, porque, como sabes, do que estamos a falar é de controlo em cima no momento....
P: Detalha lá mais... Como é que aconteceu?
Luís Garra: Nós tínhamos força. Portanto, vamos lá ver, para haver o controlo operário é preciso haver força, porque nenhum patrão dá dados se não for obrigado e, portanto, como nós tínhamos muita força na empresa, os delegados sindicais exigiam que a própria empresa fornecesse os dados. Claro que alguns deles podiam estar até viciados, mas como depois este nosso delegado sindical, o [...], fazia um acompanhamento permanente do número de metros que eram tecidos, ele sabia dia a dia qual era o número de metros que eram tecidos. Portanto, depois conseguia ver se a bota batia com a perdigota e tínhamos esse controlo.
Não foi uma coisa que durasse muito tempo. E agora devo dizer que foi muito importante, falou-se muito, mas infelizmente, conforme a correlação de forças se foi alterando, as empresas passaram a resistir mais a dar os dados. A própria legislação, por exemplo, ao nível da segurança social, a legislação dizia que os quadros, as folhas de salários para a segurança social, tinham de ter o visto, a concordância, da comissão dos delegados sindicais. E, portanto, isto também nos permitia, por exemplo, ver o que é que é cada um ganhava, vermos também se o salário que cada um ganhava lá estava todo refletido na folha para a segurança social. A legislação, com Mário Soares, foi toda alterada. Deixou de ser obrigatória a assinatura e daí começaram a aparecer as dívidas à segurança social. Porque nessa altura nós só assinávamos quando víamos o cheque para segurança social. Nessa altura ainda era caixa dos lanifícios, a caixa de previdência do pessoal da indústria dos lanifícios. Nós, só quando víamos o cheque, é que assinávamos a ordem das folhas a seguir com o cheque. Portanto, isto evitava dívidas à segurança social.
A partir do momento em que Mário Soares, e outros que fizeram alterações, que os dados da segurança social passaram a ser sigilosos, etc., etc., tudo isso... Portanto, a alteração da correlação de forças levou também ao abrandamento e, também temos de dizer a verdade, isto não foi em todas as empresas, porque nem em todas as empresas nós tínhamos a mesma força que tínhamos naquela. E nem em todas as empresas tínhamos delegados com a mesma apetência que tínhamos naquela.
Portanto, isto dependia muito da aptidão, da vontade, da persistência. Esse homem era um homem muito vivo, ensinou-me muito.
P: E em relação à participação das mulheres? Estamos a falar de um setor com uma grande percentagem de mão-de-obra feminina, como é que foi a participação das mulheres neste processo, durante o período revolucionário, na vida sindical?
Luís Garra: As mulheres foram fundamentais na luta. Porque as mulheres tinham e começaram a ganhar força em termos de presença no setor dos lanifícios. Nas confeções não se discute, porque 90 e tal por cento são mulheres. Mas nos lanifícios houve todo um processo de entrada das mulheres no mercado de trabalho e teve muito a ver com a falta de mão de obra masculina, mas elas sempre entraram. Desde os anos 40, já havia mulheres nas empresas, mas depois a guerra colonial também trouxe, embora as mulheres estivessem geralmente em funções menos qualificadas. Portanto, é o que ainda hoje de alguma maneira acontece, e acontece uma coisa que hoje ainda existe e já existia nessa altura: é que podemos ter uma secção de 100 pessoas com 99 mulheres e um homem. O chefe é um homem. Portanto, foi sempre uma “guerra”.
Mas porquê? Mas porque é que tem de ser o chefe o homem? As mulheres tinham uma participação na vida económica, na vida da empresa, na atividade produtiva muito forte. Essa força traduziu-se na participação na luta, sempre, portanto, as greves atingiram quase 100%, sempre praticamente, porque as mulheres também aderiam. Ou seja, havia ali uma comunhão entre homens e mulheres na participação, na luta, que não tinha tradução na vida do sindicato.
Quando eu vim para o sindicato, em 15 dirigentes, havia duas mulheres. Esta situação foi-se alterando e hoje, eu não quero dizer que a situação seja de 50/50, mas se não é… E não houve nenhuma preocupação de cotas, foi uma questão perfeitamente natural, claro, pela entrada de mulheres. O facto de o sindicato deixar de ser só de lanifícios para ser também ser de confeções ajudou nessa transformação, não foi apenas os lanifícios, mas mesmo ao nível dos lanifícios, a partir de 1978 começaram a entrar mais mulheres nas direções. Progressivamente e, portanto, com uma inserção muito forte. Agora, nas lutas estiveram sempre.
Não seria correto da minha parte dizer que as mulheres eram um entrave ao desenvolvimento da luta. Pelo contrário, até tinha um problema, se havia era o contrário: é que às vezes custavam a entrar e depois quando entravam já era difícil sair. Eu confesso a minha experiência, para mim era muito mais difícil conduzir uma luta numa empresa só de mulheres, do que mista, de homens e mulheres, ou só de homens. É porque as injustiças que elas sentiam eram tão fortes, tão fortes, que quando decidiam aderir, e se depois, o resultado não era exatamente o que estavam à espera, era muito difícil convencê-las e dizer: “Pá, já temos aqui ganhos e tal, não sei quê”. Porque às vezes estávamos a entrar em becos sem saída, portanto, às vezes, os processos de luta estavam tão radicalizados que, se fossem prolongados por mais algum tempo, não havia saída. E, portanto, às vezes, é preciso saber capitalizar o que já se conseguiu para reagrupar forças para se conseguir o resto. Mas nem sempre se conseguiu, mas eu percebo esta atitude. é que: “bolas, nós demos tanto a isto e agora vamos sair sem conseguir tudo”. Era mais esta postura, mas no resto foi com muita facilidade.
Eu, para mim, foi extremamente fácil. Eu estou a falar dos têxteis, mas posso falar da União de Sindicatos. Quando entrei para a União de Sindicatos não havia uma mulher na direção e hoje são 40 e tal por cento e já chegaram a ser 51 ou já estiveram em maioria. Portanto, mas isto, volto a dizer, não foi uma questão de pôr jarrões a enfeitar uma mesa, foi um processo natural de envolvimento, participação, de responsabilidade.
P: E nos locais de trabalho? Ou seja, não assumiam posições na direção do sindicato, mas na organização das lutas, como delegadas sindicais?
Luís Garra: Havia algumas como delegadas sindicais, mas é como digo, a seguir ao 25 de Abril, elas eram mais de estar na luta do que ser delegadas sindicais. Isto depois foi um processo. Até porque a conciliação entre a vida pessoal e familiar, a própria compreensão dos homens em relação às tarefas da mulher… Uma mulher que viesse para o sindicato era olhada de esguelha, como se costuma dizer. Era apelidada de muita coisa: “Olha, lá anda ela no meio dos homens.” Estas coisas existiam. Portanto, foi preciso uma alteração muito forte de mentalidades, de culturas e, portanto, a participação delas na luta foi sempre superior ao envolvimento delas na direção da luta. Não porque elas não soubessem, mas porque havia todo um ambiente cultural que lhe era adverso. Portanto, e conforme fomos evoluindo, e ainda bem, isto foi-se alterando. Portanto, isto foi um processo.
O 25 de Abril, claro, foi fantástico também para esta abertura, este sentido de abertura. Repare que também referem aí no guião que havia uma comissão feminina. Sim, é verdade. Mas a comissão feminina, do meu ponto de vista, tinha um lado perverso. Que era a forma de as ter ali compartimentadas, mas que não faziam parte da direção do sindicato. Estavam ali compartimentadas para quê? Para organizar os lavores, os cursos de costura e de bordados. Quando cá cheguei ao sindicato, nós tínhamos a secção feminina com duas senhoras, uma que ensinava as mulheres a costurar e a outra a bordar. Foi uma guerra que vocês não imaginam para acabar com aquilo. Aquilo era profundamente sexista, do meu ponto de vista. Eu não pude fazer a abordagem na altura desta forma tão direta como estou aqui a fazer e tivemos de invocar dificuldades financeiras para manter aquela situação e tal, mas aquilo não era nada. Portanto, nós ganhámos mais mulheres a participar quando passaram a ser delegadas sindicais e passaram à direção do que quando era os lavores.
P: Já temos aqui umas incursões no período pós 25 de Abril, mas só para terminar aqui esta secção, quais são as memórias mais marcantes que tu guardas desse período?
Luís Garra: É a liberdade estar na rua, a gente sentir que tinha condições para conquistar direitos, para conquistar melhores salários, para conquistar dignidade, no fundo. É a gente poder sonhar. Sonhar que podíamos ter uma vida melhor, portanto, acho que no fundo foi isto, porque nós vínhamos de uma penumbra de uma vida sem perspetivas.
Eu tirei o curso de técnico têxtil, como trabalhador-estudante. E a seguir ao 25 de Abril envolvo-me diretamente na vida sindical e adeus à carreira profissional. Mas o que me estava reservado era ser um técnico têxtil, mas depois sujeito à subserviência perante o patrão. Era mais um lacaiozito. E o 25 de Abril abre-nos outro horizonte que, mesmo os técnicos passavam a ser eles próprios criativos, responsáveis, mas livres, e não terem de estar sempre sujeitos ali à tutela. Há sempre aqueles que gostam de andar curvados, mas isso é um problema já de cada um.
Agora a vida foi completamente distinta e é evidente que o processo de conquista é muito realizador do ponto de vista da satisfação das nossas necessidades, mas é que o processo de resistência também tem os seus encantos, os seus atrativos. Porque de cada vez que evitamos a perda de um direito é uma alegria incontida, sendo que quando a gente conquista todos sentem. Portanto, se conquistamos um aumento de salários, todos ficam satisfeitos, porque no final do mês sentiram um aumento de salário, não é? E quando nós evitamos a perda de um direito, ninguém sente. Portanto, é mais fácil para um dirigente sindical… é mais fácil o processo de conquista do que o processo de resistência. Mas também dá uma alegria imensa quando nós dizemos, “querias isto, mas não conseguiste”...
P: Então, passando para o período de resistência, nestes 47 anos de democracia houve outras lutas, se calhar agora lutas de resistência, quais é que foram aquelas mais relevantes já no pós 25 de novembro?
Luís Garra: Eu já referi a greve de 1981, essa é a marca. Depois, a ver se me lembro de oferecer um livro do Gabriel Raimundo que escreveu sobre essa greve. É um bocadinho ficcionada, mas tem alguns elementos de realismo sobre aquilo que se passou. Mas depois, essa greve tem uma característica, dado o processo repressivo que se abateu sobre ela. Porque as forças policiais carregaram sobre os grevistas. Houve tiros, houve pessoas feridas com tiros, houve perseguições de patrões a trabalhadores que culminaram com ferimentos de trabalhadores com tiros. E, portanto, foi um processo muito, muito complexo.
Eu, por exemplo, era o porta-voz da greve, não era o presidente do sindicato, mas era o porta-voz da greve e a partir de uma altura iam-me por a casa e iam-me buscar a casa, porque as ameaças sobre mim eram muitas, porque eu era a face visível da greve, embora houvesse dirigentes que tiveram um papel tão destacado ou mais do que o meu. A vantagem dos porta-vozes é que falam, mas depois estão os outros todos ali a dar a cara e o corpo à luta. Você vai entrevistar um homem que teve um papel destacadíssimo, que é o Ramiro Reis, um papel destacadíssimo nessa greve. Se calhar até um papel mais destacado na organização de piquetes, da resistência, do que eu, porque aquilo foi intenso. Eram três dias com piquetes de manhã à noite. Não se dormia. Ia-se à cama 2/3 horas. E era responder a comunicados uns em cima dos outros, contra informação, etc. Portanto, foi um processo muito, muito complexo e exigente, mas também muito formativo.
Mas dizia que essa greve, dado o caráter repressivo que teve, o movimento de solidariedade nacional que estabeleceu, deu confiança para que o movimento sindical tivesse as condições para que em Fevereiro se fizesse a primeira greve geral, em 12 de Fevereiro, de 1982. Foi a partir desta greve aqui, repare nesta questão, não é puxar pelos galões, nem sequer são galões pessoais, são galões coletivos: a greve dos mil escudos em 1974 abre caminho à fixação do salário mínimo, 3300 escudos. Foi essa greve. Eu acabei por não dizer, mas eu escrevi no documento que enviei, abre o caminho à fixação do salário mínimo, porque aqueles 1000 escudos davam exatamente, deram a força necessária às forças progressistas que estavam no governo, à esquerda, que estava no governo para criar e faixar o SMN. A greve de 1981, de resistência, já abre o caminho para que se convocasse a greve geral, com um objetivo muito claro, a demissão do Governo da AD. E é partir deste processo da greve de 1981 que se despertou e se criou as condições de confiança.
Mas a greve de 1982 coloca na ordem do dia a necessidade do desgaste do governo da AD. E cai o governo depois, mais tarde vem a cair. Portanto, isto enche-nos um bocadinho, e desculpem lá, enche-nos um bocadinho o ego. Principalmente porque estivemos no processo e tínhamos consciência do que é que estávamos a fazer, de que esta greve de 1981 tinha um simbolismo muito forte de resistir contra a retirada de direitos conquistados no 25 de Abril. O contrato de 1975 tinha esse simbolismo, mas também tinha esta dimensão mais política.
A estrutura da CGTP foi importante porque a partir do momento que criou o Conselho Nacional, com praticamente todos os coordenadores das uniões, das federações e dos sindicatos nacionais e outros dirigentes, passou a ter uma informação muito mais próxima daquilo que era a realidade do todo nacional. E, portanto, eu sinalizo estas alterações também como muito importantes no trajeto, na afirmação do projeto unitário e na natureza de classe e de massas do movimento sindical. Acho que isto foi muito importante.
Eu lembro-me que nós, no início deste processo, nos primeiros anos em que eu fui membro do Conselho Nacional, dos anteriores eu não posso falar, mas nos primeiros em que eu fui membro do Conselho Nacional, a ideia que eu tenho era de debates muito fortes, muito intensos, discutia-se à vírgula. Porque nós estávamos a construir os enunciados teóricos e programáticos da CGTP.
Porque aquele processo revolucionário permitiu fazer um caminho e aquilo que está escrito hoje também é o resultado da resistência ao fascismo, do processo revolucionário e depois aquilo vai traduzido para o acervo de orientações que hoje a CGTP tem. Mas lembro-me perfeitamente que eram reuniões quase intermináveis, muito desgastantes. Às vezes duravam dois ou três dias, pela noite dentro. Porquê? Porque nós estávamos a construir, sem aquela preocupação de uns imporem aos outros uma orientação, estávamos a construir, preocupados em encontrar as melhores soluções que nos unissem. Eu já não passei por aquela fase, daquela guerra da unicidade. Passei aqui, mas não na CGTP. Passei por esta fase, mais de construção do acervo teórico e de orientações programáticas que nós hoje temos e os momentos em que foi preciso definir linhas de confrontação com o poder político e com o capital.
Aliás, o poder político interpretou sempre os interesses do capital. Nós às vezes dizemos, o poder político e o capital, quando eles no fundo atuaram sempre, às vezes com nuances, dependendo de quem estava no governo, mas no fundamental era uma grande articulação entre o poder económico e o poder político. Ainda hoje essa promiscuidade é uma coisa horrível. Eu hoje sei muito mais dessa promiscuidade do que sabia nessa altura e o que eu hoje vejo, essa promiscuidade, é uma coisa que ofende. Mas esta questão do confronto com o poder político e com o poder económico foi sempre uma questão e, aí, tenho que dizer a verdade: foi sempre possível, mesmo quando era o Partido Socialista sozinho, acompanhado, geralmente mal-acompanhado, que estava no governo, os dirigentes sindicais que tinham como filiação partidária, e ainda têm, o Partido Socialista foram importantes no sentido em que entre o partido e os trabalhadores puseram os trabalhadores à frente. Claro que procurando mitigar sempre o confronto com o partido que estava no governo, mas fazendo uma opção de classe muito forte.
Eu retenho com uma grande saudade aqueles dirigentes sindicais que eram militantes do Partido Socialista e que foram fundadores, criadores da CGTP, e que são construtores deste projeto. Porque foram muito importantes no combate ao divisionismo sindical. Muito importantes. É claro que todos, todos os que lá estivemos, fossem comunistas, fossem socialistas, fossem católicos, fossem de outras correntes, todos eles, foram todos importantes. Mas estes, até pela própria natureza da criação do divisionismo em Portugal, da UGT, dos aliciamentos e até dos impulsos e das pressões que sofreram para irem para a UGT, e eles, ao fazerem a opção pela CGTP, também ajudaram a construir o projeto unitário.
E eu creio que isto é muito importante e eu acho que este projeto, poderei até ser injusto na apreciação que vou fazer, mas se há projeto útil, belo, que foi construído em Portugal é a CGTP. É um projeto de uma criatividade que é distintiva no plano europeu. Eu conheço alguma coisa da construção do movimento sindical europeu. Estive no congresso que decidiu a adesão da CGTP à CES (Confederação Europeia de Sindicatos), o Congresso em Bruxelas. E, portanto, conheço alguma coisa do movimento sindical europeu. Não há um movimento sindical com estas características na Europa, porque nasceu da base. Não é um prolongamento dos partidos, deste ou daquele. É um projeto que é essencialmente unitário, em que os seus dirigentes têm todo o direito a ter partidos, como é óbvio, e ainda bem que fazem opções, eu tenho a minha também, mas isso não dilui esta importância do projeto unitário da CGTP.
P: Queria voltar mais uma vez à questão de género, agora, já pensando nesta evolução. Na pesquisa que fiz, verifiquei que no setor têxtil especificamente foram desenvolvidas algumas iniciativas: houve um encontro da mulher na indústria têxtil. Gostava de perceber como é que foi vivida essa evolução? A luta das mulheres pela igualdade salarial, por exemplo?
Luís Garra: Quando há pouco falava neste processo, entram estas iniciativas todas, que não foram todas apenas no distrito de Castelo Branco. Houve iniciativas de encontros unitários de mulheres que não eram propriamente organizadas pelo movimento sindical, mas onde o movimento sindical também estava. Houve esse encontro que refere, e, portanto, tudo isto faz parte do processo de alteração de mentalidades que foi sendo construído. Embora eu continue a dizer que o maior contributo que foi dado para esta alteração de mentalidades foi o da prática. Porque os encontros são importantes, porque sinalizam orientações, sinalizam objetivos, mas só por si não resolvem, pois é preciso no terreno trabalhar para isso. Eu valorizo muito o trabalho feito no terreno, quando se elegem mulheres para delegadas sindicais, quando se convidam mulheres para as direções sindicais, quando se dão responsabilidades às mulheres. Não apenas serem membros da direção, mas depois deixa lá, está lá, está lá, não sei quê e tal, mas não se dão responsabilidades. Por exemplo, hoje a presidente do sindicato têxtil é uma mulher. Fui substituído por uma mulher, portanto, este é que é o processo.
Os encontros são muito importantes. Eu não estou a desvalorizar, até porque ajudei a organizar alguns, mas depois é preciso que haja trabalho no terreno e que isso passe a ser uma opção e não uma obrigação. Quando a gente faz as coisas por obrigação é uma chatice, parece que estamos a fazer um favor. Não é uma opção. Se as mulheres têm uma presença forte nas empresas, no trabalho, isso tem de ter tradução nas responsabilidades ao nível sindical. Isto é que tem de ser feito. E não foi preciso andar a dizer “sai um homem para entrar uma mulher”. Não foi preciso.
As coisas apareceram, foram evoluindo naturalmente, mas lá está, a opção força. Quando se toma uma opção, naturalmente está-se a forçar as decisões.
P: A outra questão que eu também gostava de perceber melhor é como é que se desenvolveu a articulação entre o movimento sindical e os outros movimentos associativos?
Luís Garra: A cooperativa era a da Nova Penteação, era de uma empresa. Houve uma cooperativa de consumo, mas estava ligada a uma empresa que era a Nova Penteação. Houve até duas, houve uma outra, também na Lanofabril. Eu não tive uma vivência muito forte a esse nível.
P: Mas considerando a tua vivência no movimento associativo em geral, a relação entre o movimento sindical e os outros movimentos associativos?
Luís Garra: Nós tivemos sempre uma relação estreita com o movimento associativo. Porquê? Porque a origem do movimento associativo na Covilhã tem uma componente operária muito forte derivada da própria morfologia da Covilhã. Repara: GER Campos Mello, no cimo da Covilhã, GER quer dizer Grupo Educação e Recreio; GIR do Rodrigo, Grupo de Instrução e Recreio, na parte baixa da cidade. E depois tínhamos as coletividades no centro da cidade, a Banda, o Oriental de São Martinho e depois aquelas já no tempo do fascismo, através daquelas coisas da FNAT, multiplicaram-se em uma série de bairros e freguesias. Mas mesmo essas eram espaços do convívio dos trabalhadores, que não tinham televisão, que não tinham casa de banho, era lá que tomavam banho. Era lá que jogavam às cartas, era lá que também conversavam sobre a vida, sobre a vida dura que tinham.
E, portanto, dado que o sindicato é uma instituição (isto pode ferir os ouvidos dos mais puristas ideológicos), mas eu não tenho problemas que os sindicatos sejam uma instituição da Covilhã. Como, por exemplo, tínhamos uma delegação no Tortosendo, que era uma instituição no Tortosendo. Tínhamos mais a delegação de Unhais da Serra, que era uma instituição em Unhais da Serra. Tínhamos uma delegação em Cebolais de Cima, que era uma instituição em Cebolais de Cima. E eu quero dizer que sou daqueles que defendo que o movimento sindical deve estar implantado nas empresas, os seus espaços prioritários de ação são as empresas, mas é importante que esteja também implantado nos meios em que se insere.
Isto é o tal caráter de instituição, e instituição não significa aculturação, nem significa submissão ao poder. Mas respeito do poder por esta instituição. Portanto, foi assim que eu sempre concebi. Isto vem de antes e manteve-se: o sindicato é reconhecido institucionalmente, está ali a medalha de mérito municipal dado pela Covilhã, pela Câmara da Covilhã. E, portanto, esta ligação, este conceito de instituição, implica ter uma ligação estreita com as coletividades. Por isso somos sócios do INATEL, o sindicato é sócio do INATEL e faz iniciativas com as coletividades e tem relações de cooperação com as coletividades. E, portanto, nós achamos que esta ligação é muito importante, até pelo cordão umbilical que nós temos com elas e elas connosco.
P: E também pela própria multiposicionalidade dos dirigentes, não é?
Luís Garra: É o meu caso, então.
P: O que é que essa realidade de seres dirigente quer sindical quer da coletividade influi na articulação dos movimentos? Ou seja, o facto de haver muitos dirigentes que são simultaneamente de uma coisa e de outra, isso determina um caráter quase conexo aos movimentos?
Luís Garra: As vantagens, o que vem daí, é que nós aprendemos com um movimento associativo de base. Com as coletividades aprendemos muito, no relacionamento, nas relações interpessoais, nas dinâmicas locais e trazes para os sindicatos esta experiência e nós levamos para as coletividades uma conceção de organização de trabalho, de conceito de trabalho coletivo que eles não têm muitas vezes. Eu noto, quando entrei naquele mundo, que todos falavam ao mesmo tempo, não havia ali uma linha de condutora. Eu sabia o que queriam, mas era tudo um bocadinho anárquico e, portanto, a nossa forma de trabalhar mais programada, mais organizada, ajuda também as coletividades. E, portanto, eu acho que há aqui uma reciprocidade, um levar e trazer no bom sentido, que é muito importante. E por vezes nós conseguimos introduzir nas coletividades, não sei se se passa assim a nível nacional, aqui há muito esta ideia de “política não entra” e nós temos formas, até pela nossa experiência de trabalho unitário com os trabalhadores todos, tenham eles a filiação partidária que tiverem, nós depois temos uma capacidade de levar a política não no sentido partidário, mas no sentido dos princípios, para dentro das coletividades, sem rupturas, sem conflitos.
E, claro, nós aprendemos muito nas coletividades. Nas coletividades nós temos uma sensibilidade para as fragilidades, os dramas sociais, que nas empresas por vezes não se manifesta. Nas empresas o que se manifesta é a compra e venda da força de trabalho, das injustiças que ali se geram, mas depois a tradução para o meio onde vivem só se consegue apreender quando estamos junto daquela malta toda. Portanto, às vezes apercebemo-nos de dramas de que não temos noção.
P: Para além dessa dupla participação associativa, também vieste a assumir cargos políticos, depois do 25 de Abril, nomeadamente na autarquia. E como é que é essa relação entre a atividade associativa e a atividade política?
Luís Garra: Do ponto de vista da compreensão pública não é fácil. Porque a ideia de que os sindicatos são dos comunistas, que é a voz corrente, acentua-se de cada vez que os seus dirigentes mais destacados, como era o meu caso, assumia responsabilidades de cariz partidário. Portanto, do ponto de vista prático essa ligação teve alguns problemas. Agora o que nós, o que eu tinha de resolver sempre, era como é que eu falava com os trabalhadores. Qual era a minha posição perante os trabalhadores. E, portanto, aquilo que procurei gerir foi: primeiro, o ter partido é um direito constitucional, que não pode ser negado, senão está-se a violar a Constituição da República. Porque a Constituição diz que os cidadãos podem, as pessoas podem estar filiadas em partidos. Se me estão a dizer que porque sou sindicalista não posso ter partido estão-me a retirar direitos. Implica essa explicação mais pedagógica do ponto de vista político.
Depois, provando que quando eu estava na atividade política não estava a fazer mais do que levar para o plano político os problemas que eles me colocavam no plano social, no plano laboral e no plano sindical. Foi difícil ao princípio, depois as coisas foram sendo percebidas. Mesmo quando deixei de ter este tipo de responsabilidades políticas, porque hoje sou militante de base, não há essa figura, mas não tenho cargos de direção no partido, mas sou militante do partido, como é óbvio. Mesmo nessa altura, quando deixei de ser dirigente do partido, também ninguém me veio perguntar porquê. Ou melhor, quando deixei de ser, não foi por razões sindicais, foi por outras questões que não têm a ver com o movimento sindical. Portanto, essa questão está perfeitamente resolvida.
Do ponto de vista pessoal e do ponto de vista sindical, eu costumo dizer aos dirigentes que um dirigente sindical, pela sua própria função, só consegue ter uma visão transformadora da sociedade se tiver uma boa base de formação ideológica. Porque senão está um misto entre o revoltado e o revolucionário. E os revoltados não fazem revoluções, os revoltados não transformam coisa nenhuma. Quem transforma são os revolucionários e para ser revolucionário tem de ter incorporado em si uma base ideológica.
E quem é que pode dar este suporte ideológico? Quem pode dar este suporte ideológico são os partidos e, no caso concreto, dada a natureza de classe do movimento sindical, o único partido que está em condições de dar uma base ideológica de classe é o PCP. Pela sua própria natureza e pela própria origem do PCP, que nasceu do movimento sindical. Estou a falar do PCP português, não estou a falar dos outros, eu comparo-me é com o partido. Eu costumo dizer, eu usava uma expressão quando foi aquilo a Leste: “Eu estou a Leste do Leste pá. Desculpem lá: eu não fui para o PCP por causa da Rússia nem da União Soviética. Eu fui para o PCP, por aquilo que o PCP era, mais nada”.
Claro que isto é uma forma de dizer, que eu estive lá e sofri a bom sofrer. Eu acho que o sindicalismo me deu uma base para ter intervenção, ação, o partido deu-me a base ideológica para fazer essa ação com sentido transformador. Depois eu fui candidato a deputado como cabeça de lista três vezes, fiz parte da lista uma vez sem ser cabeça de lista, fui candidato à Câmara Municipal, fui presidente da Assembleia de Freguesia e estive mais, para além destes quatro anos como presidente da Assembleia de Freguesia, estive mais de oito anos como membro da Assembleia de Freguesia, na freguesia onde eu vivo. Estive 19 anos na Assembleia Municipal da Covilhã.
Tudo isto foi feito em simultâneo com a vida sindical, com responsabilidades sindicais. Portanto, tive de ter a capacidade de saber fazer muito bem a separação de quando estava a falar o Luís Garra em nome do partido e o Luís Garra em nome do sindicato. Nem sempre é fácil, confesso. Houve ali uns momentos em que às duas por três se gerava a confusão, mas a gente tem que ter o equilíbrio. Se me perguntarem, se eu estivesse noutra região, com maior influência, mais quadros, provavelmente não teria sido necessário fazer este trabalho, desta forma, porque com mais quadros, mais diversidade de tarefas, eu poder-me-ia manter concentrado apenas naquela que mais gostava, que era a tarefa sindical. Estava-me a esquecer, fui também, durante não sei quantos anos, eu tenho escrito, membro do Comité Central do PCP, portanto, estive ainda bastantes anos, saí em 2012.
P: Só para terminar esta secção sobre a tua experiência pessoal, diz-me só de que forma é que achas que esta participação associativa mudou a tua vida?
Luís Garra: Vamos lá ver. Eu não sei. É difícil responder, porque a gente não sabe se não tivesse sido, o que é que eu teria sido. É a vantagem dos historiadores. Portanto, como é que eu vou responder a isso? Eu provavelmente, dado o meio em eu fui criado, um meio pobre, mesmo o lugar onde fui criado era de muitos excluídos, de marginalidade. Provavelmente, se não tem sido esta minha, senão tem sido o 25 de Abril, a minha vontade no fundo de estudar, de estudar também. Porque eu esqueci-me de dizer que tinha tanta vontade de estudar que a minha primeira vocação foi ir para padre, mas depois não fui. Depois disse que não queria ir.
Mas se não tem sido isso, eu provavelmente seria mais um daqueles cidadãos que trabalham, vão para o café, jogam às cartas, têm vícios, outro tipo de vícios. Portanto, a inserção na vida política partidária, a inserção do movimento sindical, a inserção no movimento associativo, deu-me uma dimensão… não me deu riqueza financeira, não permitiu que eu trabalhasse na profissão para que estudei, que era bem remunerada na altura, como técnico têxtil era muito bem remunerado, mas deu-me uma riqueza que de outra maneira não teria, que é a riqueza, primeiro das relações humanas, da perceção do outro e desta possibilidade de estudo permanente, de estudo nalguns casos empírico, noutros casos, porque as responsabilidades obrigavam a ler, a estudar, a interpretar.
Permitiu-me um contato com pessoas de outra cultura, de outros graus académicos, que de outra forma, não teria. Isso é impagável. Isso não tem preço. Portanto, são os tais bens imateriais, não é assim que se diz? São os tais bens imateriais que a gente tem e que não são contabilizáveis. Eu acho que isto foi o melhor que me aconteceu. Do ponto de vista pessoal, alguns dizem: “Olha, foi o pior que te aconteceu, porque perdeste uma carreira profissional muito forte”. E eu, que sou desprendido dos bens materiais, digo que este foi o maior bem que eu tive.
Não estou absolutamente nada arrependido, para desgosto de alguns familiares, nomeadamente a minha companheira, que gostaria e tem direito, teria direito naturalmente a ter outro tipo de vida. Foi uma vida intensa, multifacetada, cheia de grandes experiências, de grandes momentos, de solidariedade. Também de algumas facadinhas, mas isso faz parte da vida, algumas traições. É isto tudo que nos constrói como seres humanos.
Neste momento já estou numa fase mais liberta, ainda tenho responsabilidades nos sindicatos e na União dos Sindicatos, embora já não sendo nem presidente nem coordenador, mas continuo a dar a minha colaboração, contínuo a ser dirigente associativo e estou sempre com projetos para o futuro. Portanto, precisamente porque adquiri esta formação. Isto foi fruto de quem? De todos aqueles com quem trabalhei, todos mesmo, mesmo alguns que disseram mal de mim, porque também esses me ensinaram. Portanto, todos, isso é fruto disso.
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25 de novembro de 2021
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P: Maria do Céu, a sua propensão para a participação associativa é de família? Ou seja, algum familiar seu, o seu pai ou a sua mãe, já tinham alguma participação ou foi a primeira na família?
Maria do Céu Ferreira: A minha mãe foi sempre uma mulher muito decidida e sempre se bateu pelo que achava certo. Naquela altura, a participação das mulheres operárias era zero. Militou na acção católica, foi da JOC, num tempo em que a JOC tinha características muito diferentes das que eu conheci. Eram outros tempos.
O meu pai era um homem de uma grande generosidade, amigo de ajudar e participava nas comissões das festas do seu bairro de nascimento, no clube de futebol. Foi, com outros, fundador do Rancho Rosas da Biqueira, que mais tarde deu origem ao Rancho Folclórico de Gouveia, que ainda hoje existe. Ele foi sócio da Associação de Socorros Mútuos dos Artistas e Operários de Gouveia, da Banda de Música 5 de Outubro, dos Bombeiros e ainda do Desportivo de Gouveia. Nasci no seio de uma família operária com muita dificuldade, a vida era muito difícil porque de um momento para o outro a semana de trabalho era reduzida de seis para quatro dias com perda de salário, o que para uma família de seis pessoas, naquela altura, era a mesma coisa que recorrer ao “fiado”. Recordo-me da empresa onde o meu pai trabalhava, a fábrica do Alçada, ter encerrado e aí as coisas foram muito difíceis, mas também me lembro que o meu pai não ficou parado, porque quando eu nasci, em 1946, ele tinha construído, com a ajuda de pessoas amigas, um tear de madeira para tecer as primeiras mantas para o berço. Ele era tecelão, foi para uma fábrica com sete anos, por isso nunca foi menino e não aprendeu a ler, mas era um artista. Foi o produto saído desse tear que possibilitou ganhar algum dinheiro. Começou a tecer passadeiras e mantas de trapos e vendia. Eu era a filha mais velha, muitas vezes o acompanhei e apercebi-me que havia gente com muito dinheiro, casas riquíssimas, e casas dos pobres, sobretudo nas aldeias da Serra, onde as casas eram térreas e muitos telhados eram ainda de colmo e onde havia muito pouco, vivia-se da venda do carvão, e de uma agricultura de subsistência. Aquele tipo de desigualdades de certo modo marcou-me.
Estas influências todas ficaram…
Aos três anos fui para o patronato. Naquela altura, havia grandes empresas que normalmente faziam creches para os filhos dos trabalhadores. Aqui, na altura, não havia empresas de grande dimensão, não sendo a empresa que construiu e administrou o patronato. Foi uma irmã do patrão da empresa Bellino e Bellino, e cunhada do patrão da empresa Alçada, aquela que encerrou e onde o meu pai trabalhava. Esta senhora [...], solteira, católica, de missa diária, é a fundadora do patronato para as filhas dos operários das fábricas acima mencionadas.
Dos três aos sete anos, a minha educação religiosa passou muito por esta instituição. Depois fui para a escola primária e, no fim das aulas, voltava ao patronato onde fazíamos os deveres de casa, lanchávamos, rezávamos o terço e íamos para casa. Qualquer ATL de hoje não é melhor do que aquele que eu tinha, excepto na questão religiosa. Quando fiz a quarta classe, e porque os meus pais não podiam pagar a continuação dos estudos, mas também não queriam que fosse para a fábrica, continuei no patronato, onde tínhamos um sistema de estudo como se estivéssemos no liceu (em Gouveia, na altura, era o único estabelecimento de ensino), mas em que as disciplinas eram: cultura religiosa, economia doméstica, puericultura, pedagogia, costura e bordados e tudo aquilo que as mulheres tinham que saber fazer em termos de limpeza da casa. Eram estas meninas que depois cuidavam das mais pequenas, da limpeza do patronato, que ajudavam na cozinha, e que era considerado o trabalho prático do que aprendíamos nas aulas.
Tudo isto era orientado por uma assistente social, uma cozinheira e ainda por uma educadora de infância, que na altura não tinha este nome pomposo. Havia rotação de trabalho semanal, hoje aquela menina ia para a cozinha, na semana seguinte ficava a aprender a bordar ou a cuidar das mais pequenas. A minha formação foi nesta área. E claro, aquilo era feito como se estivéssemos numa escola. No Natal, havia testes, na Páscoa havia testes e no fim do ano havia testes com notas expostas e a partir do terceiro e quarto ano havia dois prémios: um prémio de bom comportamento e um prémio das melhores notas.
Não sei porquê a Assistente Social começou a dar-me tarefas, que eram desafios grandes e que eu tentava dar o meu melhor, porque ela acreditava que eu era capaz e isso foi determinante para mim. No final dos períodos, ela obrigava-me a ficar no patronato a estudar. E eu sempre aceitei desafios e não queria deixar quem confiava em mim defraudada. De maneira que logo no segundo ano eu ganhei o prémio das melhores notas. Mas como no segundo ano as regras impediam a atribuição de prémios, não o tive, mas fui o centro das atenções. Ganhei o prémio no terceiro e quarto anos.
No final de cada ano, fazendo coincidir com o dia 15 de agosto, havia missa cantada pelas alunas do patronato, onde participavam todas as forças vivas de Gouveia: desde o presidente da Câmara ao regedor. É claro que isso também me trazia alguns dissabores... Aprendi a bordar, aprendi a costurar, só não aprendi a tocar piano e a falar francês, mas até latim aprendi, por causa das missas.
Posso dizer que tudo o que aprendi foi importante. O que eu estudei em Cultura Religiosa, sobretudo no Antigo Testamento, sobre os Filisteus, a Babilónia, etc., serviu-me quando estudei História para me propor a essa disciplina no antigo 7º ano. Considero-me uma boa gestora de recursos e isso devo à Economia Doméstica, porque ao fim de cada dia tínhamos que escrever, num quadro que existia na cozinha, os preços do que gastámos com a alimentação e dividia-se pelas pessoas que tinham comido e dava o resultado para cada pessoa. Este tipo de coisas é evidente que ficou.
P: O que é que o seu pai lhe contava da participação na Associação de Socorros Mútuos?
Maria do Céu Ferreira: Falava na maçonaria e dos pedreiros livres, que para mim soava a proibição e falava do homem que fundou aquela associação, que tinha ido como degradado para África (participou no 31 e janeiro no Porto) e que quando voltou casado com uma mulher negra, cuja foto está no Centro Republicano Pedro Amaral Botto Machado, era um homem anti regime. Aliás, todos os irmãos, (se for à Voz do Operário, vai ver lá com certeza o nome de Fernão Botto Machado), todos eram anti regime, por isso foi enviado para África. O meu pai, que foi também ardina, nas horas vagas vendia O Século e uma vez foi preso. Ele não sabia ler, o jornal tinha chegado tarde e alguém (hoje penso que podia ser algum viajante) lhe disse: você não vende o jornal mais rápido porque não quer, caiu o governo, anuncie que caiu o governo. E o meu pai anunciou que o governo tinha caído e foi preso. E foi ameaçado. A sorte dele foi mesmo ser analfabeto e ter uma mãe aleijada de um braço e de uma perna. E que ainda por cima era uma filha da roda. A minha avó paterna era filha da roda, eu não sei quem são os meus bisavôs. O meu pai falava nos disto tudo com um certo humor. Teve uma vida cheia de histórias.
Pedreiros livres, maçónicos republicanos, para mim, eram homens bons. O Botto Machado, quando regressa a Gouveia, faz muitas obras em Gouveia. Uma grande avenida, que hoje tem o seu nome, fundou a associação de Socorros Mútuos, fundou uma banda de música, fundou uma escola, tudo isto para que os operários se instruíssem e não fossem para as tabernas, portanto era um homem querido, mas era um homem anti regime. Mesmo durante o regime de Salazar, era quase proibido falar do Botto Machado. Enfim, a associação existia, mas era quase proibido os sócios operários irem lá.
Entretanto, lembro-me que o meu pai era sócio e essa associação, quando o meu pai não trabalhou, foi quem lhe pagou os medicamentos, portanto era uma associação que de certo modo foi pioneira a criar uma estrutura de apoio aos trabalhadores quando adoeciam. Considero-a o embrião do movimento sindical. Lembro-me de uma vez o meu pai me levar para o patronato e estava fechado, teve que me levar para a fábrica onde trabalhava, ainda nem sequer estava na escola, tinha quatro ou cinco anos e eu nunca mais me esqueci daquele ambiente escuro e das condições de trabalho. Quando mais tarde li Charles Dickens recordei tudo aquilo que tinha presenciado em miúda. Eu própria nasci e fui criada com fábricas à minha volta. Sempre me fascinou a fábrica, quando a minha mãe ficava a dar horas, e eu podia ir à fábrica levar-lhe o almoço para poder entrar ali, para poder ver aquilo tudo.
Um dia em casa ouvi a minha mãe dizer que a Sociedade Industrial de Gouveia ia meter pessoal. No dia seguinte era sexta-feira, fui à empresa pedir trabalho. Nesse mesmo dia recebi a notícia que estava admitida. Fi-lo por duas razões: porque era importante o salário para ajudar a família e porque, como militante da JOC, devia estar onde estavam os trabalhadores.
Nesse fim-de-semana fiz a minha bata exactamente igual às das meninas do colégio, com cabeção com umas preguinhas e levei o casaco comprido, que era uma coisa que as operárias não levavam. Para a fábrica levava-se xaile. Fui trabalhar para uma secção de homens, mas com um grupo de mulheres, incluindo a minha mãe. Creio que não fui muito bem aceite, mas foi por pouco tempo. A não aceitação tinha a ver com o facto de vir do patronato e as meninas do patronato não iam para aquela fábrica.
Lembro-me que tirava a roupa que levava e metia a manga da bata, tirava a outra manga e punha a manga... portanto, menina católica, puritana. Era olhada com alguma desconfiança.
Entretanto, introduzi-me bem e pus aquela gente toda a rezar o terço de volta da minha máquina. Portanto, a máquina era uma coisa grande, três mulheres de um lado, três do outro, e no mês de Maria, que era típico, a gente ir ao terço, eu punha a rezar aquela gente toda. O problema foi quando eu, para além de rezar o terço, quando sentia que alguma coisa estava mal, ia ter com o patrão e dizia que as coisas estavam mal. Um dia aumentaram os trabalhadores e a mim também me aumentaram. Mas deram-me 18 escudos e queriam que eu assinasse 21. E eu não assinei. E depois o patrão mandou-me chamar, porque é que não assina? Não assino porque se eu ganho 18 não posso assinar 21. Aliás, eu ainda ontem estive na missa com o senhor e ouvi dizer: dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. O patrão ficava completamente sem resposta. O pior é quando ele começa a perceber que ela reza o terço, mas depois faz-me a vida negra.
Entretanto, na década de 60 é fundada em Gouveia a escola técnica, nocturna. E o sindicato, que era nomeado pelo patronato, paga o bilhete de identidade, paga entrada na escola aos operários/as, porque isto interessava a Gouveia (normalmente os patrões eram os vereadores na Câmara), para que a Escola ficasse em Gouveia e não fosse para Seia, e não tanto a pensar na valorização dos trabalhadores/as. Não era, no caso da Sociedade Industrial de Gouveia (SIG) interessar ter gente culta. Pronto, e o sindicato lá pagou. A mim ninguém me convidou. Não queriam que eu fosse, mas eu matriculei-me e fui para a escola, sem pagamento de ninguém, mas pago por mim.
E, por incrível que pareça, fui a única mulher que acabou o curso. Fiz o curso de quatro anos e ao fim de quatro anos pedi equivalência ao segundo ano do Liceu.
Entretanto, em 1969, com a queda de Salazar, homens ligados aos organismos da Acção Católica, nomeadamente à LOC, formam uma direcção e candidatam-se ao sindicato. Candidataram-se e ganharam. Eram pessoas com quem eu tinha grandes afinidades de amizades familiares. Numa primeira ou segunda reunião, para discutir contratação coletiva, eu convido uma senhora e vamos ao sindicato, participar na reunião. Coloquei o problema: porque é que tinham que ser homens a tratar de problemas que dizem respeito às mulheres, nomeadamente a maternidade? Deram-me uma salva de palmas, que se eu tivesse um buraco tinha-me metido nele. Entretanto, convidaram-me para fazer um comunicado e eu fiz, a apelar às mulheres para participarem. Na segunda reunião eram mais mulheres que homens. Uma coisa linda, linda.
Entretanto, acabei de tirar o curso de fiação, era fiandeira e o patrão quase foi obrigado a promover-me e vou para o armazém, onde continuava a contactar com pessoas com quem tinha trabalhado. O armazém era de apoio à tecelagem e às urdideiras…
P: E a participação na JOC, foi antes?
Maria do Céu Ferreira: Foi muito antes. A participação na JOC, para além das reuniões que havia semanalmente, onde colocávamos os problemas que tínhamos na fábrica, era também onde começámos a ter contactos com outros núcleos e isso foi muito importante. A JOC de Gouveia começou a ter contactos com a JOC da Covilhã, com a JOC de Lisboa, etc. Isto deu-me a possibilidade de perceber o que é que se passava noutros lugares, noutras latitudes, no Porto, em Lisboa. Eu tive sempre muito mais afinidades com as organizações da Covilhã e zona operária do Sul do Tejo, do que com as do Norte.
P: Como é que se estabeleciam esses contactos?
Maria do Céu Ferreira: Era eleita a Direção Nacional da JOC e todos os anos havia pelo menos um ou dois encontros nacionais em que se discutia o plano de ação, que depois as direções diocesanas/ regionais implementavam. Houve uma altura em que eu fui nomeada para dirigir só o trabalho das jovens jocistas. O termo era este: responsável pelas novas. De certo modo, foi isto que me levou primeiro quer para a fábrica quer para o sindicato. Para mim, o sindicato era uma coisa que devia defender os trabalhadores, de tal ordem que uma vez subi ao sindicato e perguntei: se o sindicato tem uma biblioteca, porque é que a biblioteca não está ao serviço dos trabalhadores? O homem que lá estava ficou a olhar para mim, deve ter pensado que era maluca. Porque aquilo era um lugar de homens. Os homens iam lá para ver televisão, ler o jornal e não questionar muito. Porque é evidente que, naquela altura, todas as queixas que se fazia os patrões e a PIDE sabiam, que ninguém tenha dúvidas. Claro que eu não tinha essa ideia, eu tinha a ideia de que se eu não estou a fazer nada de mal, porque é que devo ter medo de dizer o que era a verdade? Era essa inocência, não sei… Para mim, aquilo era o bem, se era algo de bem que eu tinha aprendido na JOC, se era a mensagem de Cristo…
Claro, mas isto começou a ser incómodo. Realmente, a minha empresa começou a ser um alfobre de gente, possivelmente com ideias políticas, mas eu não sabia. Aliás, eu quero dizer que foi uma vez num encontro da JOC que eu ouvi um padre pela primeira vez a falar do Mário Soares e nem sequer ouvi falar de Álvaro Cunhal.
Eu sabia que havia comunistas, sabia que havia alguns em Gouveia, deliciava-me a ouvir as histórias deles. Mas nesta fase, já muito mais perto dos anos 70, as coisas já estavam um bocadinho mais diluídas. A greve de 1946 foi muito dura, esteve muita gente presa, houve muita gente que teve de emigrar internamente e para o estrangeiro, mas também vieram pessoas estranhas de fora para apaziguar, nomeadamente médicos: um foi presidente da Câmara e mais tarde ministro do Interior, até o padre (os que cá estavam, que eram mais progressistas) veio de uma aldeia, e realmente eles conseguiram. A SIG continuou a ser uma empresa com gente unida e que conseguia travar muitas atitudes divisionistas. Quando fui urdideira, o responsável pela secção dava cinco centavos por cada corte urdido. Ora, quem conhece este trabalho sabe que quem urde mais cortes não é quem mais trabalha, então só havia uma forma de todos nos ajudarmos. O dinheiro juntava-se e no final da semana dividia-se. Isto levou a uma grande entre ajuda e deitou por terra aquilo que o chefe pretendia.
P: Era o seu pai que lhe contava sobre a greve de 1946?
Maria do Céu Ferreira: A minha mãe, a minha mãe participou na greve e até dizia que as amigas dela diziam: tu fazes greve porque ainda estás a comer da boda de casamento. A greve foi em abril e a minha mãe tinha casado em 27 de fevereiro. O meu pai creio que não fez greve. Mas o meu pai falava muito na associação de classe. Ele falava da associação de classe muito anterior à greve e até contava a história que o patronato dizia: “ide para vossas reuniões que nós vamos para as nossas”. Nós sabemos da vossa e vós não sabeis das nossas. Os patrões sabiam tudo o que se passava na reunião dos trabalhadores, mas eles não sabiam o que se passava na dos patrões.
E outra: por exemplo, durante a Segunda Grande Guerra, havia um burguês, que era doutor de leis, que eu não conheci, esse dr. dizia: nós cá ainda não comemos nem cães nem gatos, quer dizer que em Portugal não havia guerra, e que não tinham comido nem cães nem gatos. E o povo que passava fome arrombou-lhe a casa para lhe roubar a “tulha”, porque realmente as pessoas tinham fome. Ele não tinha comido cão nem gato, ele, porque ele tinha muita gente da agricultura a trabalhar para ele. Ele tinha terras, portanto dava terra às “terças”. É assim: dois terços é para nós, um terço é para quem produzia. Portanto, eles tinham tudo. Estas histórias, este ambiente na família existia, eu fui muito tocada por ele.
P: Quando começou a participar no sindicato foi na altura da discussão do contrato coletivo de trabalho?
Maria do Céu Ferreira: Sim, eu fui à primeira reunião. Como já disse anteriormente, esta segunda reunião em que já participaram muitas mulheres, foi uma coisa mesmo bonita. Nesta altura eu ainda não era dirigente sindical, ainda não estava na direção do sindicato, mas fazia parte de um grupo que fazia os comunicados, sobretudo quando se tratava de problemas específicos de mulheres. Eu ia para a fábrica às seis e meia da manhã, trabalhava por turnos para estudar à noite, saía às 11 da noite e ainda íamos para o sindicato fazer comunicados. Foi um período muito envolvente, foi uma época muito rica.
Quando, em 1973, há novamente eleições, eu vou para a direção do sindicato e é aí que eu começo a participar na CGTP, embora eu, não sendo da direção do sindicato, já ia às vezes com eles a algumas reuniões. E aí eu começo a trabalhar muito com as pessoas da Covilhã. Aliás, eu sempre gostei da Covilhã, mesmo ao nível da JOC eu reunia muitas vezes na Covilhã e há uma altura em que havia um homem que era da LOC, um homem muito interessante, que era debuxador, e nós deixámos de o ver e eu fiquei sempre com aquela ideia de que ele tinha emigrado, de que ele tinha fugido.
Mais tarde encontrei-o na Festa do Avante! e alguém chamou: Oh [...], anda cá -mas eu conheço o [...]. E perguntei-lhe: não eras tu que estavas na LOC nesta altura e emigraste? Sou eu! Então olha, eu sou a Céu. Foi então que ele me contou que teve mesmo de fugir.
Há todas estas influências ao longo desta caminhada.
P: Esses contactos com a Intersindical foram ainda antes do 25 de abril?
Maria do Céu Ferreira: Sim, eu participei em muitas reuniões antes do 25 de Abril. Eu era menina, porque eu ia de Gouveia com os homens todos e é engraçado porque fui sempre muito bem tratada, no sentido de protecção. Em 8 de dezembro de 1973 há, na Covilhã, um grande encontro do sector dos lanifícios. Eu tinha ido a Lisboa, a uma reunião da Inter, e vim directamente para a Covilhã . Participaram os cinco sindicatos dos lanifícios, que nessa altura já integravam a Intersindical. Era feriado, mas apesar de haver uma certa abertura do regime, a actividade sindical era sempre feita ao fim de semana ou fora do horário de trabalho, e foi nesse encontro que tomei consciência pela primeira vez da presença da PIDE. Estávamos rodeados.
Aquilo foi um grande encontro para discutir o aumento dos 1000 escudos. Nessa altura, trouxemos circulares para serem distribuídas pelos trabalhadores e qual é o meu espanto? As circulares desapareceram. Perguntei ao presidente, o tal que fez o discurso no Natal e ele foi se desculpando até que aparecem, mas recusava-se a distribuir. Essa fase de dezembro de 1973 a 1974 foi uma fase muito difícil, em que já se notava uma grande pressão, da PIDE, e das forças vivas de Gouveia. Por exemplo, eu entrava no sindicato sempre com polícia à porta, mas naquela altura nem ligava a isso.
Um dia, fui avisada por um amigo: se tens alguma coisa lá em casa que te incomode, é melhor pores fora. O que é que eu tinha em casa que me incomodasse? Assinava as edições D. Quixote, que normalmente saíam e imediatamente eram proibidas. E recebia algumas cartas, por exemplo do Laboratório Bial, e vinha lá dentro propaganda de outros sindicatos e de outra gente, sobretudo do Dia Internacional da Mulher, mulheres que faziam iniciativas e me mandavam. E eu todas essas coisas guardava. Resolvi guardar em casa de um irmão. Vinha eu a voltar para casa com a minha irmã e o meu pai e passam muitos carros. E ao outro dia, a minha irmã que trabalhava num pronto-a-vestir em Gouveia, o presidente da Câmara, que frequentava o estabelecimento perguntou: então menina, ontem você e a mana vinham de onde? Vínhamos de casa do meu irmão. Ele vinha com o Governador Civil. Aí é que eu comecei a sentir, a ter noção da vigilância
Entretanto, no fim de março, todos os técnicos e os quadros intermédios da empresa são aumentados e eu, que era quadro intermédio, não tive aumento. Fui ao escritório falar com um dos patrões e disse: sou quadro intermédio, cumpro o meu dever, como sabe, trabalho muito e não me aumentaram. Responde: nós vamos fazer uma reconversão na fábrica e como a Maria do Céu é a pessoa mais nova e não tem família para governar, vamos despedi-la. E no dia 4 de abril era despedida, com um cheque de pouco mais do que 20 mil escudos e com os maiores elogios. Respondi que o meu despedimento era por ser dirigente sindical e que por essa razão o cheque tinha que ser a dobrar.
Entretanto, participei aos quatro sindicatos dos lanifícios, participei à CGTP e também não foi nada que me admirasse, aliás eu já tinha escrito ao Manuel Lopes dizendo que mais tarde ou mais cedo era normal que fosse isso que ia acontecer. Aliás, nessa altura aconteceu outro despedimento, na Castanheira de Pera. As manifestações de solidariedade foram muitas, quer dos sindicatos quer ainda dos trabalhadores.
Em 17 de Abril realiza-se um plenário pela minha readmissão e pelo aumento de 1000 escudos, com tanta gente que houve muita gente que não conseguiu entrar no sindicato. Nesse dia ficou marcado um outro plenário para o dia 28 de abril de 1974 em instalações que permitissem ter muita gente. Não foi nada fácil ceder instalações, pois o que havia estava dependente de gente do regime. Entretanto, o Governo Civil da Guarda tinha enviado para o sindicato uma contra fé, creio que era assim que se chamava, para me apresentar no Governo Civil no dia 25 de Abril. Eu e um padre. Possivelmente sabiam que, possivelmente, o 1.º de Maio ia ser celebrado e, portanto, era melhor engavetar dois ou três. E isto era geral ao nível do País, como mais tarde se soube.
Entretanto, o 25 de Abril acontece e conseguimos o cinema para fazer a reunião no dia 28, que continuava a ser pelo aumento dos 1000 escudos e pela minha readmissão. E ainda nesse dia 28 foi feita a primeira manifestação em Gouveia depois do 25 de abril, onde pela primeira vez se falou em socialismo e comunismo. Houve ainda uma manifestação de trabalhadores junto à sociedade industrial pela minha readmissão, que foi feita no dia 2 de maio. Uma amiga minha trabalhava no laboratório e foi uma ativista pela minha readmissão, e o patrão que sabia ser minha amiga, vai ter com ela e diz-lhe: pode ir ao sindicato dizer à Maria do Céu que pode vir trabalhar amanhã. E eu cheguei à empresa e entreguei o cheque que eles me tinham dado. Porquê? Porque aquele cheque não era aquilo que me pertencia, era o dobro. E como era o dobro eu não aceitei e por isso esperava que fosse resolvido.
Entretanto, como eu estava despedida, acabei por ir ao seminário e pedir ao padre, que me tinha e tem muita estima e amizade, para poder facultar as aulas do quinto ano para poder fazer algumas cadeiras. E lembro-me que no 25 de abril chego ao seminário e estava o padre [...] à minha espera. Disse-me: há uma revolta em Lisboa, está a haver uma revolução, e eu só lhe pergunto, é da ala Kaúlza ou é da ala Spínola? Como se fossem muito diferentes, não eram muito diferentes, mas na altura as coisas eram assim, porque, entretanto, o Spínola tinha escrito aquele livro Portugal e o Futuro, e ele disse-me: não sei. Mas, entretanto, ao intervalo diz-me: olha, é do Spínola, porque o professor de Física, a mulher é francesa e ouviu na rádio francesa as notícias.
Pronto, e eu vim para casa e digo à minha mãe: olha há uma revolução em Lisboa, eu já não sou presa. E a minha mãe diz-me: o meu filho já não vai para a guerra colonial. O meu irmão mais novo… E digo-lhe eu: olha, mãe, mas atenção, que tu tens dois irmãos, que um é vice-governador de Vila Pery e o outro está na Emissora Nacional. Pois, eu nunca sei do que está em Vila Pery o que será. E realmente era um homem do regime. O que estava na Emissora por acaso era comunista.
Depois do 25 de abril, a história não está feita. Foi um tempo com muitas solicitações, eu pesava 55 quilos, perdi 10 quilos. Porque eu vinha de Lisboa, chegava às 15 horas a casa, à meia-noite metia-me num comboio para chegar a Lisboa de manhã, o meu sistema nervoso não me deixa comer, eu sou assim, foi muito tempo…
P: E o primeiro de maio em Gouveia, como foi?
Maria do Céu Ferreira: Eu não estive no 1º de Maio em Gouveia. O sindicato levou um autocarro para Lisboa, mas aqui ficaram outros dirigentes que o organizaram e foi grande como em todo o lado. Eu, no primeiro de maio, fiz parte da segurança da manifestação em Lisboa e eu escrevi aquilo que eu senti naquela altura, na braçadeira que levei e que guardei até hoje. Depois há o 28 de setembro, depois o 11 de março, eu sempre muito envolvida com o MFA.
P: Conte-me lá como foram essas iniciativas?
Maria do Céu Ferreira: Íamos às aldeias falar com as pessoas, explicar o que tinha sido o 25 de Abril , o que é que os militares cá estavam a fazer. Era essencialmente isso, nalguns casos aqui não houve muita participação, mas a engenharia militar veio abrir caminhos: na dinamização cultural, na alfabetização, na iniciativa contra a marcha [da chamada maioria ] silenciosa, contra os boicotes nas empresas. Foi gratificante sentir que contribuí para a consolidação do 25 de abril. De tal ordem foi o envolvimento que um dos militares que passou por aqui convidou-me para madrinha de casamento.
Quando foi do 11 de março, os militares foram para estrada inspeccionar os carros, quem ia e quem não ia, e nós íamos também.
P: Havia uma relação entre o MFA e os sindicatos?
Maria do Céu Ferreira: Aqui havia, aqui houve sempre e foi de grande ajuda mútua.
P: Quais foram as iniciativas mais importantes em Gouveia?
Maria do Céu Ferreira: Estamos a falar em termos sindicais. As iniciativas mais importantes foram ao nível da empresa. Ao contrário do que se imaginava, a empresa onde trabalhava, apesar de ter feito uma festa no final de 1973, de ter aumentado os quadros técnicos e administrativos, parece que não tinha tanto dinheiro assim. Aquilo era uma sociedade anónima, mas em que uma família tinha a maioria das ações e praticamente essa maioria é que governava. Essa maioria não estava interessada em investir dinheiro e então o que é que fazia? Gastava. Comprou outra empresa, depois do 25 de abril, que se dizia que era para acabar com aquela, e para levar só alguns trabalhadores da S.I. Gouveia, onde estavam, para essa empresa que foi comprada. Associou-se essa empresa a um vendedor e a um empreiteiro e formaram uma empresa de construção civil. Servia para fazer obras de construção civil nas empresas e para onde canalizavam o dinheiro. Essa empresa que foi comprada teve que ser reabilitada, havia dividas... e o cheque que a empresa teve de passar era de 300 contos, quando a obra não tinha sido mais do que 30 contos, isto dito por um dos sócios. Esse vendedor vai a minha casa, à casa do meu pai na altura, para eu denunciar o que estava a ser feito, e eu disse-lhe: tenho muita pena, mas se o senhor não me der papéis eu não vou denunciar. Porque depois também havia o aproveitamento de muita gente, a mandar recados para os outros dizerem. Entretanto esse patrão morreu, mas quando foi o 25 de novembro dizia-se que ele estava no Brasil.
P: Houve alguma tentativa de implementar o controlo operário?
Maria do Céu Ferreira: Na minha empresa criou-se uma cantina, um médico… Esta questão de controlo operário em autogestão não, mas que a gente queria saber como é que era e como não era sim. Criámos a cantina, que ainda durou algum tempo, mas depois acabou a empresa, acabou a cantina. O médico era um verdadeiro socialista, mas de verdade, um homem que lutou contra a ditadura e que também por isso sofreu e foi expulso da função pública e que aceitou vir para a empresa dar consultas. E houve melhorias, é evidente, das condições de trabalho. Era uma empresa muito apoiada pelo antigo regime, a maior parte do trabalho era para a guerra, para a Marinha, para a GNR.
Portanto, para além da instabilidade de o patrão não se adaptar aos novos tempos, de uma quebra de algumas encomendas, houve greves por não pagarem os salários e mesmo assim conseguimos que o Ministério da Indústria desse dinheiro, aí também com a ajuda do MFA. Entretanto, esse patrão morre, fica o cunhado, que não percebia nada, nada, nada de indústria. Portanto, mete-se a família na empresa, só porque é família, não percebia nada. Depois ainda se tentou uma comissão para controlar, mas não resultou. Depois descambaram, porque numa altura em que os trabalhadores queriam que as coisas andassem, inclusivamente quando veio dinheiro para salários, abdicaram dos salários para comprar matéria-prima, esse patrão despede sete ou oito trabalhadores. Aquilo criou um conflito que nunca mais foi sanado e a empresa fecha. E os trabalhadores ficaram três meses à porta da empresa, em tendas, isto foi no princípio de 1981, com grande apoio e solidariedade, mas também com a polícia a fazer guarda para nos demover. Havia um trabalhador que tinha a incumbência de, se viesse a polícia, ir aos bombeiros tocar a sirene. E fez, e foi julgado, mas absolvido.
P: Não está a falar da greve dos 29 dias?
Maria do Céu Ferreira: Não, essa greve aqui não existiu. Essa foi na Covilhã. Aqui é uma outra greve, pela readmissão dos sete trabalhadores, mas já era impossível... A greve terminou, mas depois o patrão fez lock out... Foi uma coisa trágica. Depois fechou, foi muito mau, porque eram 400 trabalhadores, famílias inteiras e na altura o que valeu foi a emigração para a Suíça.
P: No 25 de abril houve algum movimento popular para a construção de infantários, saneamento básico?
Maria do Céu Ferreira: Gouveia era uma terra já com boas infraestruturas, mas por exemplo houve movimentos para mudar nome de ruas e um movimento para criar um lar que era um solar, onde hoje é o museu Abel Manta, mas depois se chegou à conclusão que não havia condições, que aquela casa não tinha condições para ser um lar e a família deu-a para o museu.
Houve ocupações de casas, mas não foram coisas muito duradouras. Não sei qual é a explicação, mas, por exemplo na minha empresa, os quadros técnicos eram quase todos oriundos da Covilhã. Sendo assim, não era fácil haver interesse nesta coisa da toponímia, do lar… Acaba por ser uma pequena burguesia, onde depois é importante ter alguns operários e ter o sindicato.
Mas é também verdade que, nessa altura, o sindicato estava muito virado para as lutas nas empresas, para a luta das 42 horas e meia. Não era muito possível estar em todo o lado. E também na altura foi obrigatório fazer eleições, foram umas eleições terríveis, aí houve grandes clivagens, apareceu a nossa lista, a minha lista, e apareceu uma lista ligada ao patronato. Foi uma campanha que parecia uma campanha eleitoral. Lembro-me que na noite antes das eleições aparecerem uns panfletos a dizer “não votes na Catarina”, Catarina era eu. “Não votes na lista dos comunistas”, que na altura era eu. E estávamos no sindicato e aparecem três ou quatro a querer falar com o presidente da assembleia-geral, já eram umas nove da noite. E nós não o deixámos ir sozinho e fomos com ele. A ideia era roubarem as urnas, era a gente sair dali, ir atrás dele, e roubarem as urnas. E, entretanto, no sindicato já não havia muita gente nessa altura e eu lembro-me de que tinha lá a minha irmã, e ela realmente tem uma grande perspicácia, e disse “olha que eles estão preparados para… olha que eles até lanternas têm”. E eu lembro-me de ter telefonado para o restaurante onde havia um camarada e onde era possível que alguns trabalhadores tivessem ido para lá. “Venham para cá porque isto está rodeado de gente que não ganhou as eleições, mas que está disposta a boicotar estas”. Ganhámos em todo o lado, menos na cidade da Guarda.
P: Qual foi o papel da JOC e da LOC no período revolucionário?
Maria do Céu Ferreira: Eu já não participava na JOC. Eu acho que foi muito pacificador. Os antigos dirigentes antes de mim trabalhavam numa empresa e por lá se mantiveram. Embora um deles fizesse parte do sindicato, da assembleia-geral, era um homem pacificador, não era um radical e travava um bocadinho, mas também não foram anti... Mas nessa altura a LOC também já estava muito desfalcada.
P: Houve uma maior participação das mulheres neste período?
Maria do Céu Ferreira: Sim, sim, sim… Aliás, que já vinha de trás, atenção, já vinha de 1971-1972. Aliás, aquele comunicado foi realmente uma coisa… foi muito bom, nomeadamente quando estivemos três meses à porta da minha empresa. O trabalho das mulheres foi extraordinário. A fazer comida, a revezar-se, a fazerem os turnos. Eu acho que as mulheres às vezes demoram mais a aderir à luta, mas quando aderem é deixá-las ir, é deixá-las andar e às vezes é preciso pôr-lhes travão.
P: Foram organizadas iniciativas específicas relativas à mulher trabalhadora na indústria têxtil, não foram?
Maria do Céu Ferreira: Sim, nos lanifícios fizemos sempre coisas muito giras no 8 de março, embora também aí convidássemos homens. Não era uma coisa só para mulheres. Eu acho que a luta das mulheres tem a ver com os homens, que participam e ajudam. Mesmo nas empresas faziam-se coisas que depois se foram perdendo, também porque o sindicato mudou, as pessoas não foram as mesmas. Eu deixei o sindicato em 1978, fui para a União dos Sindicatos, e depois tive de voltar. Foi bom, acompanhámos sempre as lutas nacionais, a não ser a greve dos 29 dias, que foi mais na Covilhã. Acho que aqui não tínhamos arcaboiço para essa luta.
A Covilhã era uma terra operária mesmo, aqui, a determinada altura, o patronato, mesmo antes do 25 de abril, quando foi da adesão à EFTA, a emigração, a guerra colonial, que levou muitos homens, eles foram buscar as mulheres ao campo. A população feminina era muito rural e isso é também um fenómeno que difere muito da Covilhã. Mas o patronato vai buscá-las não é por acaso, eles sabem muito bem o que fizeram: eles foram busca-las porque sabiam que era ali que deviam investir, porque havia pessoas ali que qualquer tostão era uma coisa ótima.
Já muito depois do 25 de abril, estava eu na União dos Sindicatos, e lembro-me que uma empresa, que era dos vestuários, dizer: “o que ganho aqui gasto tudo aqui.” Se estivesse em casa, o que ganhava era para gastar com aquilo que faria em casa. O que ela gastava em transportes para vir da terra onde vivia para trabalhar, teve de pôr o filho na creche e a mãe num lar. E dizia-me: “contas feitas, só ficam 10 euros, mas é importante eu vir trabalhar.” E isto é verdade. Havia outra que me dizia “o meu pai pagava-me o dinheiro da fábrica para eu não vir trabalhar”. Portanto as situações são diferentes. A minha empresa, por exemplo, tinha pessoal que vinha da Covilhã, mesmo trabalhadores que vinham da Covilhã, não era só técnicos. Com outra visão. Era mais fácil de mobilizar.
P: E quando foi para Guarda, quais eram as diferenças?
Maria do Céu Ferreira: Na União era um bocadinho diferente. Eu fui coordenar vários sindicatos, mas creio que eu consegui, porque antigamente aqui no distrito tínhamos quatro sindicatos, lanifícios, metalúrgicos, rodoviário e o comércio. Claro que depois tínhamos trabalhadores, professores, função pública, que ao longo do tempo também se foram organizando na região. E a minha tarefa era unir essa gente toda. E realmente essa tarefa foi conseguida. Quando eu saí tinha os sindicatos todos praticamente na União, creio que agora também estão praticamente todos.
P: E que tipo de atividades é que desenvolvia a União?
Maria do Céu Ferreira: Desenvolvia atividade de levar à prática aquilo que a CGTP propunha para a região e sempre que um sindicato travava uma luta a União apoiava, inclusivamente aqueles sindicatos que não tinham qualquer tipo de organização, a União apoiava. Pode-me perguntar como é que a União tinha dinheiro. Os sindicatos davam um X por cada trabalhador, a CGTP dava um X. E mais tarde começámos a fazer formação profissional, muito mais tardiamente do que outros setores. E a União da Guarda sempre cumpriu aquilo que era uma prática: dinheiro da formação não é para a atividade sindical.
Porquê? Porque isto podia levar a que a gente descurasse o trabalho sindical, tirava dinheiro daqui, punha aqui. E essa foi também uma tarefa conseguida, a União da Guarda comprou uma sede.
Por exemplo, num conflito que houve numa empresa de metalurgia, em que os patrões queriam pôr os trabalhadores ao turno e os trabalhadores assinaram. Mas quando um trabalhador trabalha ao turno, tem de ter meia hora para comer, essa meia hora tem de entrar no horário de trabalho, e eles não queriam dar, e diziam “então eu não assino”. E houve um conflito, lá fui eu para o Ministério do Trabalho, e jornalistas também, isto quando há “sangue” lá vai tudo. Utilizei os argumentos todos, expondo: “se o Ministério do Trabalho é para defender os trabalhadores e para defender a lei, e a lei está aqui, está escrita. Por outro lado, se não fosse para defender a lei, não valia a pena haver Ministério do Trabalho aqui. Por outro lado, se o patrão quisesse fazer uma empresa com máquinas de costura umas em cima das outras, vocês iam lá e diziam que as máquinas deviam ficar a uma determinada distância. Se fazem isto com as máquinas tem de fazer isto com as pessoas. Se é importante para a empresa trabalhar por turnos, a meia hora tem de ser dada.”
E a gente não chegou a conclusão nenhuma, e eu disse para um doutor “se a gente não chega a conclusão nenhuma, eu sei que o Manuel Carvalho da Silva amanhã vai ter uma reunião com o Diretor Geral do Trabalho em Lisboa e eu vou já mandar-lhe um email com isto para ele ver”. Mal tínhamos chegado à União, já tínhamos um telefonema a dizer “não mande nada, que o problema já está resolvido, agora é só acertar as coisas”. Claro, não podia ser de outra maneira. Pronto, eram estes pequenos grandes conflitos. Organizar manifestações, fazer uma greve, dar apoio aos sindicatos com mais dificuldades, quer financeiras , quer de quadros.
P: Participou na própria estruturação da CGTP ao longo destes mais de 40 anos, quais é que acha que foram os momentos mais importantes?
Maria do Céu Ferreira: É evidente que o momento mais importante foi o 1º de maio de 1974. Se não houvesse movimento sindical organizado na CGTP, o 25 de abril teria sido um golpe de Estado, mas nunca teria sido uma revolução. Também se calhar não foi assim tanto... mas conseguiu-se aquilo que se conseguiu, foi porque havia trabalhadores organizados. Eu lembro-me, por exemplo, de o Álvaro Rana ir à Cova da Moura dizer ao Spínola e a quem lá estava “o primeiro de Maio é feriado”. E o Spínola torceu o nariz e o Álvaro Rana disse “se o senhor não decreta, decretamo-lo nós, porque nós vamos para a rua” e tiveram que decretar.
A primeira greve Geral de 1982, a marcha contra o desemprego, isto para dizer todos estes momentos foram momentos importantes, até os momentos em que a gente se sentia cercada, mas enumerá-los era quase um livro…
P: Como por exemplo?
Maria do Céu Ferreira: Por exemplo quando foi do 28 de setembro, lembro-me do patrão da Vodratex vir ao sindicato pedir-me para ir à empresa explicar o que se estava a passar aos trabalhadores. Porque quando se ouviu falar que havia outro golpe, o pessoal parou. E eu disse ao patrão “o que é que eu vou lá fazer?”, “Vem dizer o que se está a passar”. E fui e isso também mostrava a vitalidade do sindicato e a confiança que os trabalhadores tinham na sua organização de classe. Mas era também uma responsabilidade e um compromisso com a verdade.
P: Participou nos congressos nacionais da CGTP?
Maria do Céu Ferreira: Sim. Por exemplo, o Congresso de todos os Sindicatos foi uma coisa realmente fantástica, de unidade, em que era possível dialogar. Eu acho que a minha geração, a geração que agora tem 70 anos, era gente com convicções muito firmes, mas uma gente com uma capacidade de diálogo muito grande e isso permitiu chegar onde se chegou. O Kalidás era um socialista, puro, o que não o impedia de trabalhar com o Álvaro Rana, que era comunista, e com os católicos. Uma coisa que eu ainda hoje digo, eu lidava com muitos comunistas que não sabia que eram comunistas, mas que tinham um grande respeito pelas minhas convicções enquanto católica. Eu estive na Base-FUT, eu ainda sou da origem da Base-FUT, não continuei na Base-FUT, porque tinha de ir para Lisboa sozinha, não era muito compatível.
P: Também participou nos Centros de Cultura Operária?
Maria do Céu Ferreira: Participei nos Centros de Cultura Operária, sim senhor. Ainda hoje tenho aí montes de revistas e fazíamos reuniões muito giras em que discutíamos artigos. Eu lembro-me de uma discussão muito gira que foi ler o poema do menino do bairro negro, do José Afonso, e depois discutir. Havia os cadernos GDOC, que tenho ainda guardados, que discutíamos reflectindo e que foi de grande valia em termos sindicais.
P: Foi em que altura?
Maria do Céu Ferreira: Foi ainda antes do 25 de abril. Depois do 25 de abril foi mais difícil porque já estava muito envolvida. Os CCOs, que deram origem à Base-FUT foram criados antes, e foi aí que se criaram os cadernos GDOC e se fizeram discussões aturadas.
P: Lembra-se dos encontros dos CCOs em que participou?
Maria do Céu Ferreira: Lembro-me de alguns… . Claro que era tudo gente ligada à JOC, tudo gente que vinha da católica.
P: Onde é que se encontravam?
Maria do Céu Ferreira: Eu acho que alguns encontros já foram onde é hoje a Base-FUT. Eu não tenho a certeza, mas em Lisboa, na Federação dos Lanifícios, na Avenida Almirante Reis, onde é hoje a Inovinter, onde estava muita gente da Católica, em algumas situações serviu para reunir o CCO.
P: Qual é memória mais marcante que tem do período revolucionário?
Maria do Céu Ferreira: Marcante, marcante foi a minha readmissão. Depois foi a conquista do sábado, das 42 horas. Em pleno inverno, aquilo foi uma coisa... as empresas todas paradas ao sábado, os trabalhadores com fogueiras para se aquecerem e eu, com outros dirigentes, a fazermos a volta às empresas... Isto foi no inverno de 1975, foi antes do 25 de novembro, a conquista do sábado foi antes do 25 de novembro.
P: Foi uma greve duradoura?
Maria do Céu Ferreira: Não, nós parámos num sábado e nunca mais trabalhámos ao sábado. Aliás, nós fomos os primeiros do sector a ter as 42 horas de trabalho. O sector têxtil, para conseguir as 44 horas, fez outras manifestações e outras lutas. Os lanifícios conseguiram as 42,5 horas muito rapidamente, porque foi uma luta que envolveu quase 100% dos trabalhadores. E pronto, foi uma luta ganha porque as pessoas aderiam em força.
P: E depois, ao longo do resto do período democrático, qual foi o momento mais marcante?
Maria do Céu Ferreira: Marcante, marcante, foi quando fui para a direcção da CGTP. Não estava nos meus planos e isso pressupunha uma grande responsabilidade. Depois a um nível mais da região, eu acho que muito marcante foi aquele permanecer à porta da minha empresa durante três meses para que nada fosse retirado, mas sobretudo a grande solidariedade que houve, com os sindicatos estrangeiros a enviarem dinheiro para os trabalhadores. Eu acho que nunca mais houve uma iniciativa destas. Os sindicatos europeus manifestaram uma grande solidariedade.
P: Eram estreitas as relações internacionais? Foi a algum congresso internacional?
Maria do Céu Ferreira: Fui ao congresso da CFDT, Já numa fase posterior, A União fez e ainda faz parte de uma estrutura transfronteiriça com os sindicatos aqui deste lado da raia, Trás-os-Montes e Beiras e Galiza e Castela. Aí fui a uma série de encontros com os espanhóis e iniciativas conjuntas que se fizeram. Umas correram muito bem, outras nem tanto...
P: Quais foram as iniciativas que fizeram?
Maria do Céu Ferreira: Foi trazer trabalhadores espanhóis uma semana a Portugal. E aí foi necessário pedir apoios. Por exemplo, estou a lembrar-me: Pinhel emprestou-nos uma pousada para dormir, aqui a minha câmara deu-nos oitenta contos, na altura, para um almoço, e essa parte teve toda de ser trabalhada por nós. Depois eles organizavam a ida dos nossos trabalhadores, mas isso não aconteceu. Portanto, foram recebidas autarquias, houve intercâmbios com outras pessoas com outras formações, e isso foi importante. Teria sido importante os trabalhadores daqui terem contactos com os trabalhadores do lado de lá, mas eles não conseguiram. Fazíamos alguns encontros, mas eu acho que nunca passava muito disso. A ideia que eu tinha era de que a União Europeia tinha dinheiro para este tipo de iniciativas e era importante gastá-lo. Aquilo que nós temos é nosso, é com o dinheiro dos trabalhadores, os sindicatos espanhóis têm realmente ajudas estatais. Portanto, a não ser essas iniciativas de trazermos os trabalhadores para cá e os nossos para lá, para serem os trabalhadores in loco a verem a vivência de cada povo, não achei muito mais do que isso e nós não conseguimos levar os nossos trabalhadores, mas não dependeu de nós.
P: E os sindicatos portugueses também organizaram movimentos de solidariedade com outros? Por exemplo a campanha de solidariedade com os trabalhadores moçambicanos pela federação têxtil, lembra-se disso?
Maria do Céu Ferreira: Sim, mas aqui o próprio sindicato organizou campanhas dessas. Por exemplo, uma campanha de solidariedade a que nos associámos logo após o 25 de Abril foi com os trabalhadores de Gonçalo, que ficaram em autogestão e que depois formaram uma cooperativa. E a gente solidarizou-se não só comprando coisas, mas até fizemos um autocolante que vendemos para angariar dinheiro. Essa foi a primeira iniciativa solidária que fizemos depois do 25 de Abril. Mas com África não era a nível da federação, era ao nível da CGTP. Ao nível da CGTP, eu sei que nós fizemos uma grande campanha de solidariedade e nós contribuímos com muita coisa.
P: Isso foi a seguir ao 25 de abril?
Maria do Céu Ferreira: Não, isso foi muito depois. Assim a seguir ao 25 de abril foi a ajuda aos trabalhadores de Gonçalo, porque os trabalhadores ficaram em autogestão. É engraçado que a Base-FUT veio a Gonçalo e eu acompanhei essa visita. E outras campanhas que fizemos, de solidariedade, foram com a reforma agrária. Fomos passar um fim-de-semana à reforma agrária para ajudar nas colheitas e para os trabalhadores daqui perceberem o que era a reforma agrária e depois recebemos os trabalhadores da reforma agrária, que trouxeram azeite e tudo aquilo que tinham para venderem aqui.
P: Acha que esse tipo de iniciativas ajuda a criar um espírito de solidariedade entre os trabalhadores do país?
Maria do Céu Ferreira: Ajuda, não só a esse nível como também a nível dos trabalhadores de várias empresas que não se conhecem, que são de terras também diferentes. Isso era importante. Uma coisa que também se fazia era convívios com os trabalhadores do distrito. Isso era muito importante e infelizmente perdeu-se.
P: Também faziam torneios de futebol, não era?
Maria do Céu Ferreira: Nós fazíamos isso para o 1º de maio. Quando era o 1º de maio, fazíamos torneios de futebol e no 1º de maio fazíamos o último desafio. E fazíamos estafetas em que se saía de S. Romão e se vinha até Gouveia. Chegámos a ter corredores de grande craveira. Era muito giro, muito importante nessas manifestações do 1º de maio. É evidente, isso perdeu-se desde que eu saí do sindicato, da União, o 1º de maio nunca mais se fez em Gouveia.
P: Porque é que acha que se deixou de fazer?
Maria do Céu Ferreira: Porque Gouveia perdeu todo o seu operariado, os dirigentes sindicais já não são daqui. É preciso trabalhar! Estar no sindicato, receber os bombeiros, receber a banda de música, fazer o discurso para eles, falar do que é o 1º de maio e depois vestir a outra farda e servir a sandes, servir a bebida. Porque se não há quem faça isto... Claro que eu não era sozinha, mas era mais fácil pegar num grupo de mulheres que me ajudavam do que pegar num grupo de homens que estavam ali para dar as medalhas, para pôr as medalhas ao peito dos participantes nas provas desportivas.
P: Acha que as mulheres tinham um papel mais pró-ativo nesse tipo de iniciativas?
Maria do Céu Ferreira: Sim, aqui… Não quer dizer que noutros lados os homens não tivessem, mas aqui, infelizmente, era assim. Eu estava na formação a falar do 1º de maio e dizia “amanhã quem é que me vem ajudar?” E elas vinham. Fazíamos as sandes, quer dizer, era mais fácil comprar as sandes já feitas, mas isso era dinheiro dos trabalhadores, é um problema de gestão. O problema é que hoje, mesmo a nível político, é mais fácil mandar fazer do que fazer, mas não tem tanta piada, além de que se gasta muito mais dinheiro.
P: Acha que as mulheres têm mais propensão para fazer em vez de comprar feito?
Maria do Céu Ferreira: Não direi todas, eu acho que em todos estas coisas, sejam mulheres ou homens, é preciso ganhá-los para isto. Por exemplo, como é que a gente tinha os prémios para dar aos atletas? Mandávamos uma carta às empresas, ao comércio, e depois íamos buscar. Isto dá trabalho. E há gente, que por ser dirigente sindical, considera isto um trabalho menor.
P: Conte-me das campanhas que a CGTP organizava com África.
Maria do Céu Ferreira: Mandava uma circular para o sindicato a pedir, por exemplo, roupa. E tinham o cuidado de pedir roupa que não fossem roupas pesadas, que fossem roupas leves, fossem roupas garridas. E depois, como é evidente, nós aqui fazíamos uma seleção, porque há muita gente que dá farrapos e eu acho que farrapos são farrapos. De Lisboa organizavam-se contentores para enviar para África.
P: Havia a ideia da solidariedade internacionalista, era uma coisa que estava enraizada?
Maria do Céu Ferreira: Sim, eu acho que nós em relação a África, o povo português em relação ao povo moçambicano ou angolano sempre foi solidário. Até porque mesmo gente que fez a guerra colonial, homens, operários, essa gente era muito sensível a participar.
P: Havia um laço privilegiado com as ex-colónias?
Maria do Céu Ferreira: Havia. Eu estou por exemplo a lembrar-me de dois homens que uma vez aparecem no sindicato com muita roupa e diziam assim “isto é para uma terra onde eu estive e que bem precisa”. Acredito também que as pessoas querem desfazer-se do que têm em casa e disso não sou muito apologista. Mas eu acho que com África essa solidariedade existe, de tal ordem que a CGTP às vezes tinha de dizer “agora parem”, porque aquilo também estava sujeito ao espaço dos contentores.
P: E a CGTP enviava para outros sindicatos africanos, era via sindical?
Maria do Céu Ferreira: Não sei, mas deveria ser via as centrais sindicais.
P: Havia contactos frequentes com as centrais sindicais desses países?
Maria do Céu Ferreira: Havia. Eu lembro-me que, por exemplo logo a seguir ao 25 de abril, o [...] foi a Angola e os angolanos enviaram café para os dirigentes e funcionários da CGTP, um bom café. Uma vez vieram do Norte da Europa três dirigentes sindicais, que entraram por Vilar Formoso, e o responsável pelas relações internacionais da CGTP pediu o apoio da União e o meu apoio pessoal e, para além do apoio da União, que tinha a ver com alojamento, eu recebi-os na minha casa, onde ofereci o jantar.
P: A CGTP promove ações de formação para os sindicalistas dos países africanos?
Maria do Céu Ferreira: A CGTP não, o INOVINTER, que é uma escola de formação entre a CGTP e o IEFP, que dá formação a quadros sindicais e formadores. E neste momento já têm uma serie de delegações em Angola. A CGTP deu com certeza formação aos quadros sindicais desses países, o [...] foi pelo menos duas vezes dar formação a Angola.
P: A sua experiência na direção da CGTP foi em que anos?
Maria do Céu Ferreira: A direção da CGTP, em termos de direção, mudou em alguns congressos. Quando eu fui para a CGTP, o Congresso elegia o Secretariado, que era uma estrutura pequena, éramos 14 pessoas, e eu era suplente do Secretariado, mas nunca fui tratada como tal. Participava nas reuniões como se não estivesse nessa qualidade. Depois o Secretariado passou a ser eleito pelo Concelho Geral e, este sim, eleito em congresso. Fiz seis mandatos. Desde 1981 a 2005. Fui à Bulgária, fui fazer dois cursos de formação a Bernau, na antiga RDA, e fui uma vez a Moscovo.
P: Qual foi a importância desses cursos na sua formação enquanto sindicalista?
Maria do Céu Ferreira: Foram muito importantes. Lembro-me de uma professora alemã dizer isto, eles davam formação sindical: “Portugal tem uma linguagem tão rica que é possível fazer um comunicado com palavras completamente diferentes de um comunicado político.” Nunca mais me esqueci disto. Tinha sempre isto muito presente. Era este tipo de formação... Claro que havia uns que a recebiam melhor que outros. Em determinada altura eles tinham traduções feitas por eles e pediam para a gente ler e ver se aquilo em português estava bem, era também o nosso contributo para aquilo que nos davam.
Essa formação na RDA foi importante até para perceber como era difícil ter a televisão do outro lado a entrar pelas suas casas e a influenciar os jovens. Esse casal de professores tinham um filho adolescente e ela dizia-me muitas vezes, ela falava em português: “é muito difícil explicar aos nossos filhos determinado tipo de coisas porque eles não viveram a guerra”. Isto também me levou a compreender a queda do muro de Berlim. As pessoas envelhecem, os mais jovens querem outras coisas, se calhar hoje já estão arrependidos, e essa preocupação de mulher, de mãe, de pessoa de esquerda, que está naquele país e ela tinha dificuldade de transmitir estes valores ao filho. Era também este tipo de vivência, não era só o curso, era também viver com as pessoas.
O povo alemão é um bocadinho frio, mas entretanto uma das vezes que estive lá na Alemanha... Sabe o que é acordar com o hino da CGTP e a diretora da escola vir ter comigo e dar-me um presente? Foi um povo que teve muitas dificuldades, por isso é tudo muito comedido. A gente vê a Merkel, anda sempre com o mesmo estilo de roupa, e um dia uma locutora perguntou-lhe porquê e ela respondeu que é funcionária pública, não é modelo. A outra que está no Parlamento Europeu é igual. Nós não somos assim, não é, damos muito valor a estes artigos...
P: Na direção da CGTP que tarefas é que assumia?
Maria do Céu Ferreira: Estive no departamento das mulheres e estive no departamento de formação sindical.
P: O que é que desenvolveu no departamento das mulheres?
Maria do Céu Ferreira: Preparar as iniciativas, levar à prática e sobretudo receber e analisar tudo o que vinha de fora sobre os problemas das mulheres o que de certo modo levou à criação do CIT – Comissão para Igualdade do Trabalho.
Foi um departamento onde muitos conflitos foram esgrimidos e positivamente para as mulheres, e onde participavam patrões e sindicatos, que tinham de fazer cumprir a lei, por exemplo, a lei da paternidade, um pai tinha direito a ficar com o filho, na altura, 15 dias, os patrões não queriam, não deixavam. Se uma mulher escrevesse para a CIT, ele era obrigado. Por exemplo, com a amamentação a mesma coisa. As mulheres tinham dois tempos para amamentar e o patrão queria que a mulher amamentasse, por exemplo, a meio da manhã, mas essa mulher tinha um filho a dois ou três quilómetros de casa, portanto é evidente que ela preferia, ou no princípio do turno ou no fim do turno, portanto o patrão dava a meio que era para ela não ir. Este tipo de coisas eram discutidas e analisadas e muitas vezes foram resolvidas, pena que se tenham perdido estes benefícios com o governo da troika.
P: E esse departamento das mulheres na CGTP, que tipo de iniciativa é que fazia?
Maria do Céu Ferreira: Celebrávamos o 8 de março, fazíamos conferências sobre a maternidade, a paternidade, até mais do que a igualdade de género, porque isso agora é que está mais presente, mas houve conferências que juntavam centenas de mulheres.
P: Quais é que eram os principais problemas que as mulheres sentiam no trabalho?
Maria do Céu Ferreira: Cada setor tinha problemas específicos mas a discriminação salarial, a discriminação na carreira, esses eram os problemas mais sentidos, a discriminação exatamente por ser mulher e ser mãe é que dificultava sobretudo subir na carreira. Em muitos casos a maternidade não foi possível porque o emprego era mais importante, porque preocupava muito que a maternidade estivesse a diminuir, mas a diminuição da maternidade tem a ver com a entidade patronal não querer admitir mulheres em idade reprodutiva. Havia inquéritos onde perguntavam se iam engravidar ou não, nesta situação a maternidade é uma coisa que pesava, e ainda hoje pesa, não foi só naquela altura. Até mesmo no movimento sindical, nós agora temos uma secretária-geral mulher, mas muitas vezes não era fácil às mulheres assumirem cargos de chefia se não tivessem suporte familiar ou fossem solteiras. Eu não poderia ter feito o que fiz se não tivesse atrás um marido e um filho e, antes do marido e do filho, a família, um pai, uma mãe.
P: E acha que a participação sindical foi importante para a emancipação feminina?
Maria do Céu Ferreira: Sim, não tenho dúvida nenhuma disso. Nem estou a ver hoje, nem naquela altura, sindicatos sem mulheres.
P: Para si pessoalmente, foi importante para a sua emancipação?
Maria do Céu Ferreira: Sim, ao princípio era quase uma missão. Não vou para dirigente sindical porque quero ser dirigente sindical, vou porque estou empenhada numa luta… Não era tanto pela emancipação da mulher, era porque eu como pessoa, como católica, eu tinha que estar lá. E depois o resto foi por acréscimo. Quando eu fui àquela reunião dos homens, é evidente que a direcção do sindicato tinha homens que eu conhecia, eram homens da LOC. Mas foi também este tipo de condições que se calhar outras mulheres não tiveram. Eu não sou nenhuma supermulher, apesar de ser muito combativa, de não aceitar um sim ou um não.
P: Em que medida é que acha que esta participação, esta dedicação neste caso ao movimento sindical, marcou a sua vida pessoa? Imagina a sua vida sem esta participação?
Maria do Céu Ferreira: Eu acho que marcou… Olhe, encontrei o marido no movimento sindical, com quem sou muito feliz. Se não fosse o movimento sindical se calhar não o tinha encontrado. Mas eu hoje olho para trás e fazia tudo de novo, por uma razão. Eu sempre fui muito leal, comigo e com os outros. E este tipo de lealdade hoje também é muito respeitado. Mesmo a nível político, eu nunca fui capaz de ler um papel sem o discutir primeiro. Discuto. Esta linguagem não é a minha, por isso eu não leio isto. E eu tenho a certeza que por isto também sou respeitada. Política é uma coisa muito bonita, mas eu não posso fazer política só porque agora há eleições...
P: Também assumiu cargos políticos na autarquia, não foi?
Maria do Céu Ferreira: Sim, fui candidata a presidente da Câmara Municipal de Gouveia, com o [...] do PSD, imagine. Portanto, era um político de peso, e outro que era o actual presidente da Câmara e que hoje é deputado. Claro, eu sabia que não ia ser eleita, mas adorei participar na campanha. Foi uma campanha muito verdadeira. Mas, por exemplo, o [...] estava na Assembleia Municipal comigo, ele pelo PSD e eu pela CDU. E ele vinha de Coimbra, chegava ao sábado às 14 horas, hora do início da assembleia, ele ouvia a Maria do Céu e depois ele pegava numa ou outra coisa, e fazia a sua intervenção. E é engraçado, na última assembleia antes das eleições em que éramos candidatos, eu vinha para Coimbra fazer um curso, à distância, eu tinha de ir a Coimbra de 15 em 15 dias a uma aula presencial. Eu tinha de ir nesse dia e, portanto, eu disse “eu tenho mesmo de ir embora e não vou ficar para a tarde”. E ele disse isto: “eu tenho dar parabéns à senhora deputada, porque ela foi quem, nesta assembleia, apresentou mais propostas, mais lutou por elas, apesar de estar sozinha.” Respondi: “agradeço que diga isso na campanha, agora aqui?” Até que um dia, há um boletim municipal na Câmara e, a determinada altura, o director da revista pede-me para eu dar uma entrevista e há uma pergunta no final, se eu preferia ter lá o PS ou o PSD. E eu disse, “olhe, politicamente eu estou mais próxima do PS do que do PSD, mas o que teria sido bom era ter ficado o PSD, o PS e a Maria do Céu, que eram sete”.
A partir daí fui pessoa não grata. O [...], que é muito vaidoso, deve ter pensado que por ter feito oposição cerrada ao PS que diria que preferia o PSD. Eu não tinha nada a ver com o PS, mas a minha família política está mais próxima do PS. Aliás, eu fiz parte da primeira direcção do PS em Gouveia, saí quando da discussão da unidade e da unicidade sindical. Escrevi uma carta pública, porque a direcção estava contra a unicidade e não sabia o que era uma coisa e o que era outra.
Esse médico que foi para a minha empresa, era socialista de verdade, dizia: “eu não percebo nada disto. Os ingleses, que são os ingleses, são socialistas e têm uma central sindical única, e nós aqui andamos em guerra.”
P: Foi a questão da unicidade sindical que a fez sair do Partido Socialista e ir para o PCP?
Maria do Céu Ferreira: Eu não entrei para o Partido Comunista nessa altura. A minha entrada teve a ver com uma visita à RDA e com uma votação muito baixa que o Partido teve. O que é facto é que eu, em Gouveia, sou conhecida pela comunista, independentemente se sou filiada ou não, portanto estar filiada foi apenas um proforma. É claro que há coisas com que eu não estou de acordo, mas também tenho espaço para as dizer, não fica nada por dizer.
P: E acha que há uma ligação entre a participação sindical e a participação política?
Maria do Céu Ferreira: Há. Eu, enquanto dirigente sindical, luto pela defesa dos trabalhadores, o Partido Comunista luta pelo mesmo. Quando deixar de lutar eu não estou lá.
P: E as suas funções na autarquia, de que forma é que se relacionam com a atividade sindical?
Maria do Céu Ferreira: A minha intervenção enquanto deputada, para além das questões que têm a ver com o desenvolvimento do concelho, tem também a ver com os interesses dos trabalhadores e pelo facto de ser dirigente sindical sentia de forma diferente, defendia e lutava por elas de forma diferente. Na Assembleia de abril levava sempre uma saudação aos trabalhadores no 1º de Maio, no 25 de Abril idem, se houver uma greve a mesma coisa, mas é muito mais pela valorização da terra, aquilo que está mal e que é preciso pôr bem, é muito mais nesse sentido. Agora, é evidente que a atividade sindical dá um arcaboiço muito grande, dá uma vivência muito grande, saber das preocupações, das empresas, etc. Eu acho que, por exemplo, se na discussão do orçamento, a Câmara não chamar os deputados para discutir o quadro dos trabalhadores, está a fazer uma ilegalidade. Eu dizia “os senhores têm de chamar os deputados, porque isto mexe com os trabalhadores e os deputados têm de dar opinião”. Isto é da lei.
P: E porque acha que a par da motivação para participar no movimento sindical teve também a motivação para participar na política local?
Maria do Céu Ferreira: Primeiro porque gosto muito da minha terra, depois porque antes de ser deputada, por exemplo, e ainda naquele período revolucionário, havia aqui em Gouveia uma reunião com todas as forças vivas da terra para discutir. A Câmara teve cá um geólogo, um arquiteto, para estudar o terreno para a reconversão de algumas coisas, e os sindicatos e outras organizações foram chamadas e logo nessa altura eu percebi que os interesses económicos eram difíceis de conciliar. Aqueles que tinham terras eram uma coisa terrível, queriam transformar parte da reserva agrícola e ecológica em zonas de habitação. E realmente há coisas que eles explicaram que, em determinadas zonas, pelo declive do terreno, etc, não era aconselhável a construção. Não é que mais tarde, quando se constrói o mercado municipal, não é que imediatamente caiu um muro, porque, como os técnicos, diziam há zonas muito vulneráveis.
Depois veio o 25 de novembro, e a participação das organizações representativas foi-se, e isso foi perdido. Por isso nós hoje, a nível de Gouveia, uma terra muito bonita, mas em termos da habitação, antiga, ela está toda a deteriorar-se. Mas o que é que temos? Urbanizações longe do centro da cidade, que levam também pessoas. As pessoas não vêm para o centro. Isto realmente descaracteriza uma terra e Gouveia perdeu imenso, perdeu as fábricas, perdeu muito. Portanto, isso também foi uma coisa que me empurrou. Por isso, fiz uma série de mandatos. Agora acabou. Vou na lista, claro, da autarquia, mas num lugar não elegível.
P: Qual é que acha que é o futuro do movimento sindical?
Maria do Céu Ferreira: Enquanto houver trabalhadores tem de haver sindicatos. É possível que, esta juventude, por exemplo, estou a falar dos jovens que conheço, que têm pouca relação com os sindicatos, e já anteriormente era assim. É sempre quando as pessoas têm problemas. E como eu acredito que os jovens vão ter muitos problemas, infelizmente, vai haver futuro. Evidentemente, com muitas dificuldades, eu não me esqueço que a minha geração foi criada noutra escola, numa escola de luta antes do 25 de abril. Estes jovens agora têm outra formação, têm outra mentalidade, têm a informática à frente deles. Agora, eu digo-lhe uma coisa: eu temo pelo futuro dos jovens. Porque acho que não vai ser fácil para eles. Quando as pessoas começarem a ter problemas, só tem uma porta aonde ir bater. E mais, até podem não ter uma porta, até podem ter que ser eles a organizar-se. A CGTP tem jovens com muito valor, agora é preciso trabalho nas empresas, o trabalho de base, o trabalho com as pessoas é muito importante. Sobretudo saber ouvi-las, discutir, ver como é que seria melhor. Mas eu continuo a acreditar que os sindicatos serão sempre importantes. Aliás, o movimento sindical em Portugal passou por uma fase terrível antes do 25 de abril e não foi por essa razão que os sindicatos acabaram. Antes do 25 de Abril eles reinventaram-se. Os bancários, os seguros, os lanifícios, os metalúrgicos, não tiveram problema nenhum em juntar-se. Esta dinâmica, mais tarde ou mais cedo, vai ser imposta. Já reparou? As reformas agora são aos 68. Um jovem que começa a programar informática agora, acha que até aos 70 anos vai poder fazer isto. Neste momento não há nenhum sindicato para eles. Eu já falei com os camaradas da Inter, a malta tem que começar a organizar esta gente, eles próprios têm noção de que aquilo que eles fazem é de uma tal violência intelectual, que aos 70 anos ninguém está nessa. E como é? Têm de ter futuro... está de acordo?
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16 de novembro de 2021
P: Senhor Francisco, a ideia destas entrevistas é registarmos as experiências de vida, ou seja, experiências que as pessoas têm ao participar no associativismo e a forma como o associativismo enriquece a vida das pessoas e também para percebermos quais são as pessoas que têm maior propensão para participar e, por isso, começava por lhe fazer algumas perguntas sobre a sua vida. Primeiro, gostava que me dissesse, para ficar registado, o seu nome e a sua data de nascimento.
Francisco Duarte: Francisco Manuel Carvalho Duarte. 26 de junho de 1937.
P: Nasceu aqui, na Marinha Grande?
Francisco Duarte: Na Marinha Grande, sem maternidade, nascimento à antiga.
P: Estudou aqui?
Francisco Duarte: Estudei aqui, na altura na Escola Industrial da Marinha Grande. Ainda não era Escola Industrial e Comercial, era só industrial. Acabei por tirar um curso industrial, o chamado curso de vidraria, que ao início havia um curso de vidraria e um curso de pintor de vidros. Eu como tinha a pretensão de ter de facto a profissão de vidreiro, optei pela vidraria. Pois fui vidreiro dos 12 aos 14 anos e era uma profissão que eu, de facto, sonhava com ela e gostava muito de ser vidreiro. Mas um problema cardíaco, na altura também, um médico daquela altura, neste caso, o Doutor Júlio Vieira, que era uma figura carismática também da Marinha Grande, proibiu-me de ser vidreiro. Então, depois optei, naquela altura, pela chamada universidade dos moldes. Iniciei uma outra atividade, exatamente como metalúrgico na Aníbal Abrantes, que era uma fábrica de moldes, a mais importante e a primeira que nasceu na Marinha Grande.
P: E ficou lá sempre?
Francisco Duarte: Fiquei lá durante 10 anos, depois trabalhei mais 10 anos na Emídio Maria da Silva, que era outra empresa também de fabricação de moldes para a matéria plástica e mais 18 anos na Molde Matos. Portanto, tive 38 anos de profissão, uma profissão dura, uma profissão de que eu nunca gostei muito. Portanto, eu sou das muitas pessoas que existem certamente com profissões contrárias à sua vontade. O meu sonho era ser vidreiro, porque gostava muito de vidro. Dava-me um certo gozo interior ver o vidro ser manejado e o equilíbrio do vidro em quente fascinava-me. Mas depois fui para a indústria de moldes, enfim…
Na altura, entrar naquela oficina chamava-se ir para a faculdade dos moldes. E então tive uma carreira de metalúrgico de 38 anos, nos quais fui delegado sindical a partir de 1971. Estava naquela lista de um tal senhor da Marinha chamado Beta, um senhor que lhe chamávamos o Beta. Ele era Alberto, acho, mas chamavam-lhe o Beta, que mais tarde viemos a descobrir que era informador da PIDE. Ele tinha por norma, quando eram as assembleias gerais do sindicato, pedir-me para eu redigir, a mim e a um outro senhor chamado Biscaia, para redigirmos sempre, naquela altura, telegramas de protesto para o Governo. E então soube-se depois 25 de Abril, porque ele foi descoberto, que ele era agente, mesmo agente direto. E lá estava o meu nome para a curto prazo ir dentro, entretanto deu-se 1974 e felizmente acabou.
Depois fui dirigente sindical. Durante 2 anos, fui delegado sindical e depois fui mesmo dirigente, presidente da Assembleia Geral do Sindicato da Indústria Metalúrgica, cuja sede principal funcionava em Vieira de Leiria, uma outra freguesia pertencente à Marinha Grande. Estudei de dia alguns anos, mas poucos, porque as dificuldades económicas eram muitas. E então eu tive de começar a trabalhar na escola, de dia, antes de tirar o curso. Acho que ainda fiz o primeiro ano de dia, já não me recordo bem, mas depois era trabalhador-estudante. Portanto, o meu horário de trabalho era das 8 da manhã às 6 da tarde, com uma hora para almoço e trabalhávamos aos sábados das 8 às 11, mas tínhamos duas horas para irmos para a escola. Portanto, eu saía sempre às 4. Uma das pessoas que me acompanhava até é hoje um empresário famoso, o senhor Henrique Neto, talvez já tenha ouvido falar. E acabei então por tirar o curso à noite. Antes disso, aos 10 anos, fui empregado na taberna, que era o refúgio dos vidreiros. Normalmente, começavam às 8 e acabavam às 3 e iam para as tabernas e era ali que se consumia muito vinho, de facto.
Hoje reconheço que na altura não compreendi que seria assim, que começou aí também há uma certa consciência de que a taberna não era o melhor para os homens, nem para o desenvolvimento do país através deles. Quero eu dizer com isto, pensou-se muito também nas tabernas no movimento associativo. E algumas coletividades, pelo menos aquela a que eu estive mais tempo ligado, começou a ser criada numa taberna de um homem já, naquela altura, com uma cultura razoável e que via mais longe, sabia as condições políticas, em que vivia e porque ele foi também algumas vezes incomodado pela polícia, não numa maneira muito acentuada, mas foi avisado. E penso que também aí começou a haver um bocado a consciência de que seria necessário tirar os homens das tabernas e levá-los para locais onde se pudessem encontrar, o que foi o movimento das coletividades inicialmente.
Depois fui dirigente daquela coletividade, e de facto não houve nada que eu não fizesse. Desde a limpeza aos salões antes de abrir a coletividade para os associados entrarem. Nós tínhamos de fazer limpeza, incluindo casas de banho, tínhamos de fazer tudo. Depois fui segundo secretário, lembro-me de que foi o primeiro posto que tive numa direção. Depois fui tesoureiro. Depois fui presidente uns 6 ou 7 anos. Fui 20 anos presidente da Assembleia Geral e 30 anos ligado ao grupo de teatro, onde iniciei essa atividade como ponto, passando depois para o palco, fazendo variadíssimas peças, uma das quais nos deixou uma recordação muito boa, que foi A Promessa. Porque fomos a um concurso num Orfeão em Leiria e tirámos uma menção honrosa. Foi uma coisa maravilhosa para nós, na altura deu-nos bastante gozo. Trabalhávamos muito de facto nas coletividades.
Havia nessa altura uma maior ligação a nível associativo, apesar de tudo, porque não havia tantos atrativos, tantas coisas que despertassem as pessoas para outras atividades. Havia uma maior ligação entre as associações, apesar de haver bairrismos muito doentios. Porque as questões entre coletividades, pelo menos na Marinha Grande, que é um meio associativo muito grande, como sabe, tem dezenas de coletividades… Mas, apesar de tudo, havia realizações em conjunto que eram muito interessantes, nomeadamente torneios de pingue-pongue, torneios de bilhar, torneios de sueca. E depois havia uma coletividade que, enfim, depois enveredou por um certo elitismo, mas fez um trabalho muito importante. Começou a criar também torneios a nível nacional, nomeadamente no que diz respeito ao ténis de mesa, trazendo equipes, não digo como um Benfica ou o Sporting, para esses torneios. E começaram a haver algumas realizações entre as coletividades, quando havia sempre uma festa final, onde, por exemplo, elegíamos sempre a Rainha das coletividades, ou uma madrinha das coletividades.
Mas a partir daí também começou a criar-se uma certa da consciência política, porque também tínhamos um homem nesse movimento, muito importante do ponto de vista político, que era o Doutor José Henriques Vareda. Certamente que já ouviram falar dele, que é um dos grandes fundadores do Sport Operário Marinhense. E então começou a haver encontros, enfim políticos, com inconformismo relativamente às misérias que se viviam, porque de facto vivia-se miseravelmente.
Eu lembro-me, isto um à parte, mas lembro-me de ter os primeiros sapatos aos 13 anos, e mesmo assim meu pai comprou-me os sapatos com 3 ou 4 números a mais, levaram quase um jornal cada um à frente para as biqueiras, os bicos dos sapatos não irem para cima. E depois umas botas cardadas, umas botas que levavam aquelas cardas todas quando pisávamos mais plano ou cimentado, escorregávamos. Portanto era uma miséria muito grande. Lembro-me da minha mãe, quando comíamos bife de vaca com o ovo estrelado, lembro-me da minha mãe não comer, o bife não chegar para ela. Comíamos eu, as minhas irmãs e o meu pai e eu, pelo menos, lembro-me de encarar isso com certa naturalidade. As pessoas eram conformistas, uma grande parte, fora aqueles que se foram revoltando. Mas isto para dizer também que a consciência política de muitos marinhenses nasceu nas coletividades, foi a partir das coletividades. E que muitos tiveram interesse de se ir informando, de ir conhecendo coisas, e ter constantemente o pensamento na coletividade para realizar coisas.
Eu posso dizer que enquanto fui presidente da coletividade, da SBR Primeiro de Janeiro, da Ordem da Marinha Grande, lembro-me de fazer coisas que me deixam hoje recordações. É claro que eu dei parte da minha vida àquela coletividade. Eu devo dizer-lhe, isto num à parte que talvez não tenha interesse, que estive quase à beira do divórcio, porque eu passava mais tempo na coletividade. Naquela altura fazia-se as festas de arraial e havia uma fonte de rendimento importante, que era a quermesse. Nós íamos pedir prémios e depois vendíamos rifas. Mas aquela quermesse tinha de ser muito bem organizada, pôr números em mil prémios e depois vender rifas, aquilo tudo… E então especializei-me na organização de quermesses, fui 29 anos seguidos diretor da quermesse. Um ano, a minha mulher perguntou-me: “Sempre quero ver qual é o ano em que vou contigo à festa?” Porque eu organizava a quermesse e depois tinha de estar lá no dia das festas, como é natural. Bom, isto, a nível da importância que o associativismo teve na minha vida, foi de uma importância, passo a repetição, elevada, muito elevada.
Ganhei consciência de que tinha de participar na construção de uma sociedade diferente e de alguma maneira ativa, através da minha atividade política. Desde 1974, e até antes, tive atividade política. Aos 15 anos, quando trabalhava na Aníbal Abrantes, já tinha uma missão política. Mas para dizer que, de facto, o associativismo teve uma importância fundamental na formação de muitos homens e também na melhoria da própria sociedade, especialmente a nível desse problema das tabernas, que era uma coisa terrível.
P: E o que é que o trouxe para associativismo, o seu pai já era?
Francisco Duarte: Não, o meu pai nunca foi dirigente de nenhuma associação. O meu pai foi apenas músico de uma banda filarmónica de uma fábrica que existiu. Eu fui influenciado por esse tal senhor que morava lá na Ordem. Porque eu nasci e fui criado até aos 20 anos num lugar chamado Cruzes e depois comecei a namorar uma rapariga da Ordem e, aos 22 anos, casei-me.
Quando eu ia ao barbeiro, o senhor Ilídio Guerra estava sempre presente ali na barbearia, que se chamava barbearia do Arnaldo Martins. E ele discutia muito estes problemas das coletividades e nessa altura já tinha uma casinha pequena, que até era uma casa de habitação, onde começou a Sociedade de Beneficência Primeiro de Janeiro. Eu penso que isto por altura da Guerra Civil de Espanha – 1936, 37. Mas depois veio a ser a coletividade fundada e inaugurada em 1939. Portanto, a data legal do início da Coletividade SBR Primeiro de Janeiro foi em 1939. E esse senhor, até tem hoje o nome de uma rua da Ordem, é que me influenciou de certo modo.
Porque ele tinha algumas conversas já acima do normal. Eu apreendia muito as palavras dele e talvez de uma maneira involuntária ou inconsciente foi-me modificando muita coisa, foi ficando muita coisa do ponto de vista cerebral, passo o inconveniente da palavra, se calhar. Depois convidaram-me, ia lá aos bailaricos com a minha namorada e tal e em 1961 fizeram-me o convite para eu ser pertencer aos corpos gerentes da coletividade. E a partir daí comecei, nunca mais de lá saí, praticamente, até 1996, quando eu já era presidente da Junta de Freguesia.
E numa altura em que a coletividade teve fechada três meses, numa atitude de salvação da própria coletividade, porque aquilo já estavam a pensar ir entregar as chaves à Câmara, eu ainda fui tomar conta daquilo mais uma vez. Na altura não me deu jeito nenhum, que era presidente da Junta e o trabalho chegava bem. Mas fui presidente várias vezes, fui tesoureiro, fui secretário e não me conformava nunca que a coletividade não tivesse uma atividade qualquer. Ou fazia bailes da Primavera ou fazia bailes de aniversário, de eleição da madrinha da coletividade, bailes das chitas, depois fiz, fez a minha direção, mas devo confessar, não estou a envaidecer-me, mas eram coisas da minha autoria. Fiz um MusicOrdem, que era um espetáculo de 15 em 15 dias, onde entrevistávamos sempre uma figura com importância no governo da Marinha Grande. Foi desde o chefe da polícia até ao diretor da Segurança Social, pessoas ligadas ao teatro, como o Norberto Barroca. Fazíamos entrevistas de poesia. Havia sempre um sketch de teatro da minha autoria, com artistas que eu escolhia do próprio grupo. Havia um sketch, depois havia concursos, concursos de assobios, concursos de anedotas. Era uma coisa interessantíssima.
A coletividade da Ordem tem um salão muito grande e tem outro salão idêntico ao lado, são dois salões paralelos. Fazíamos no salão pequeno. E então aquilo de 15 em 15 dias era uma alegria fantástica, pessoas a tentarem cantar, havia um concurso de canto também, interessantíssimo. Depois fizemos também um concurso de fados, que tinha pernas para hoje, se não o tivessem morto... Aqueles bairrismos doentios de que eu falava há pouco, muitas vezes também funcionavam pela negativa. Há pessoas que não podem com o êxito os outros, e os concursos de fado morreram exatamente por os diretores seguintes a mim, nessa época, não estarem muito de acordo com a maneira como funcionavam, porque aquilo era um concurso de fado, tinha eliminatórias ao fim de semana e teve dezenas de concorrentes distritais. E eu penso hoje que aquela realização tinha condições para hoje ser um concurso a nível nacional, porque de facto veio gente de muito lado, até nós ficámos surpresos.
Houve várias semanas em que fazíamos um espetáculo e os concorrentes cantavam e faziam um espetáculo com um júri que escolhia em cada sessão um concorrente para apurar para a final. A final desse espetáculo, desse concurso, foi uma coisa inolvidável naquele salão. É um salão muito grande, tem 100m por 18m de largo. Tinha 90 mesas completamente esgotadas e com gente de pé, com um palco magnificamente ornamentado. Os fadistas de muito nível já, com muita categoria, uma delas que ganhou o prémio, nessa altura já havia prémios, fizemos um prémio pecuniário, mas porque se pensou também que só seria possível algum êxito se houvesse os prémios pecuniários, porque se não houvesse também era difícil. E eu lembro-me que nessa altura o primeiro prémio foi 100 contos, que era uma quantia significativa para aquela altura. Estou a falar de oitenta e poucos.
P: Vamos recuar um bocadinho. Antes do 25 de Abril, no período do fascismo, como é que era a vida das coletividades? Quais eram os constrangimentos?
Francisco Duarte: No teatro, por exemplo, eu cheguei a fazer teatro com dois PIDES na primeira fila, quando fizemos O perdão dos filhos, uma peça chamada perdão dos filhos e aquilo foi à censura e eles puseram lá o lápis azul nalgumas passagens da peça. Nomeadamente a nível cultural, e na área do teatro, tínhamos de ter um cuidado muito grande e de facto aí havia restrições de um grau elevado, que certas peças não podíamos... Mesmo a própria Promessa também teve que ir à censura. E tivemos algumas, porque era o Bernardo Santareno, um escritor, enfim, todos sabemos como é. Lembro-me dessas restrições, nomeadamente a esse respeito.
Também tínhamos na Presidência da Câmara sempre alguém que estava ligado aos problemas políticos e que os comunicava. E então, de vez em quando, experimentavam-nos, pelo menos ao nível da coletividade que eu mais frequentei, e as outras eram idênticas. Aliás, o Sport Operário Marinhense foi das coletividades mais perseguidas antes do 25 de Abril. Tinha visitas da PIDE, baldeavam-lhe a biblioteca toda, porque aquela biblioteca tinha a fama de educar os trabalhadores e de dar uma perspetiva política diferente. E então, também ainda nas bibliotecas, porque nós tínhamos muito interesse também em organizar a biblioteca e muitas vezes fazíamos convites aos próprios associados para sessões de leitura e havia essas sessões de leitura que eram, de facto, vigiadas. O próprio presidente da Câmara tinha alguém no lugar que se inscrevia até para essas sessões. Nós viemos a saber isto tudo depois, passado algum tempo, porque as pessoas também, especialmente depois de 25 de Abril, viemos a saber quem eram. Algumas, nem todas.
E então nós tínhamos constrangimentos quase em tudo, à exceção dos bailes, que me parece que deixavam passar assim mais ao lado. Mas eu falava há pouco no movimento associativo e quando falei na figura do Doutor José Vareda, que começou também a organizar, a politizar muitos dirigentes das coletividades, com encontros na mata, fazíamos festas apropriadas na mata, trazíamos sempre um cantor da revolução, os cantores de intervenção, essencialmente isso, mas os cantores de vanguarda, também se dizia na altura.
E começou a haver uma adesão muito grande também de homens que não tinham nada a ver com o associativismo e depois se foram incorporando. E começou a haver uma consciência política diferente e também, devo dizer que neste percurso todo, muitas tabernas foram perdendo a sua força. Porque havia tabernas por todos os cantos e estavam sempre cheias. O movimento associativo contribui muito também para que esse flagelo, entre aspas, perdesse um bocadinho de força. De maneira que, enfim, penso que o associativismo ajudou muito a ter consciência daquilo que andava a fazer por cá ao de cimo da Terra.
E foi também o associativismo que me levou para as autarquias. Como deve saber, fui presidente da Junta durante quatro mandatos, 20 anos, e fui membro do executivo mais quatro. Fui vereador da Câmara Municipal também durante 6 anos, 2 mandatos, quando os mandatos eram de 3 anos ainda. E fui membro da Assembleia Municipal. Portanto, tenho a vida nesse aspeto bem preenchida e com realizações no associativismo. Hoje, tenho a minha opinião sobre o associativismo. Sou da opinião de que a maioria das coletividades perderam o comboio da evolução da sociedade. Faltou gente pensante, não quer dizer que alterar esta situação seja algo de muito fácil porque, como todos nós sabemos, o povo português, uma grande parte do povo português ainda está numa bitola de cultura um bocado abaixo da média, um bocadinho.
Porque a gente via bem, especialmente quando íamos a algumas povoações com o teatro, víamos bem o atraso cultural de muita gente, o que começou a dificultar também a vida das próprias coletividades. Porque não havia muita gente disponível para ir e começaram também muitos a ter medo, os que frequentavam a Igreja, por exemplo, começaram a ter medo das coletividades e a não frequentar tanto. Havia assim estas contradições. Não sei especificar muito bem isto, este pensamento devia ser mais bem ordenado. Mas, apesar de tudo, hoje penso que há um conformismo muito grande dos próprios dirigentes das coletividades. E tenho de dizer abertamente, gente eleita também para as coletividades com muito poucas competências culturais. Isso, se de facto o poder local, eu na altura em que fui vereador, fui vereador da Cultura, e a primeira, uma das primeiras iniciativas que tive foi a Câmara contratar um animador cultural para trabalhar fora de horas.
Qual seria o funcionamento dele nas próprias coletividades? Cada dia da semana ia a uma coletividade para tentar organizar grupos de teatro, grupos corais, porque a pessoa que foi contratada tinha estas valências todas e estava disponível para ter um horário diferente do normal. Isto para dizer o quê? Se o poder local, de facto, não tomar algumas medidas no sentido de ter técnicos que possam dar uma ajuda às próprias coletividades, não é ajuda material, essa ajuda cultural, vamos chamar-lhe assim…
Tirando uma ou duas coletividades, mas eu apenas classifico o Sport Operário Marinhense, que apesar de ser no outro tempo uma coletividade que mais fez pela cultura e que mais fez para desenvolvimento político das próprias pessoas e que mais fez pelo movimento associativo, depois teve uma mudança muito grande. Hoje, eu considero que é uma coletividade um pouco elitista. Tem muitas atividades, claro, mas nem todos têm acesso a elas porque têm de ser muito bem pagas.
O Operário tem hoje alguns associados (outros já morreram, conheci-os todos) que no tempo antes do 25 de Abril nem à rua onde ficava situada a sede do Operário iam. Após o 25 de Abril, eram sócios do Sport Operário Marinhense. Portanto, há aqui uma contradição. Há aqui uma mudança de atitude própria das pessoas e também uma mudança de carisma da própria coletividade. Começou a ser uma coletividade onde uma grande parte dos empresários e dos novos empresários começaram a ter placas douradas nos placares. Mas, retomando, o discurso anterior, eu penso que nas coletividades de hoje os seus responsáveis são conformistas. Eu, se estivesse hoje numa coletividade, mesmo na minha coletividade, eu tinha de inventar coisas para conseguir que a minha coletividade… Nem que copiasse pela televisão, copiasse programas de televisão para a coletividade ter vida. Agora, ter magníficas instalações, com áreas enormes, meses e meses sem nenhuma atividade, dói-me, a mim dói-me e eu não me conformava.
Eu voltava às coisas antigas, não tinha problema nenhum. Eu não tinha problema nenhum hoje em pôr em realização um grande baile de vestidos de papel, de trajes estapafúrdios, digamos assim. Depois, com um concurso onde estivesse um artista final, um cantor ou um declamador, fosse o que fosse. E eu hoje realizava novamente um rally paper. Fomos dos primeiros a realizar um rally paper. Claro que hoje é complicado, porque a gasolina está muito cara, fazia-se de bicicleta. Também se pode fazer de bicicleta, a um domingo, faz-se um rally paper ciclista. Portanto, isto para dizer o quê?
Apesar de reconhecer que é bastante complicado e difícil as coletividades apanharem o comboio, têm que trabalhar muito. E hoje não há aquela dedicação que havia também naquela altura. Porque naquela altura, como eu lhe disse, nós limpávamos a coletividade e abríamos e estávamos de serviço ao bar, uma equipa por semana, dois dirigentes faziam a semana inteira. Hoje isso é difícil. Eu vejo, por exemplo, na coletividade do meu lugar, já chegou a ter três empregadas, agora tem duas. Eu tenho dúvidas que se ganhe para empregadas, é um bocado complicado. Portanto, esta dedicação às próprias coletividades, que a própria evolução da sociedade também trouxe.
Porque hoje podemos estar num sofá requintado, numa sala quente a ver televisão, e a televisão tem programas para todos os gostos. Temos os computadores e, enfim, centenas de milhares de pessoas que passam serões aos computadores. Há, de facto, muitas atrações e não é fácil levar as pessoas para as coletividades. Agora, realizando alguma coisa de diferente e depois é urgente que alguém tenha a capacidade e a força de unir mais as coletividades, porque as coletividades em conjunto têm muita força. Nem que tenham uma realização por ano de uma grandeza palpável, nem que sejam os tais concertos ou uma danceteria modernizada, bem equipada, para levar lá as pessoas. Pode ser só num sítio, mas explorado por todas. Porque não estou a ver todas as coletividades, por exemplo, a adaptarem as suas instalações a uma pequena danceteria, equipada convenientemente com os psicadélicos e tudo isso, mas é possível pelo menos fazer uma que funcione por todos, com o conjunto de todos.
Mas, aliás, quase todas as coletividades teriam condições para fazer um pequeno espaço, porque hoje as danceterias levam muita gente.
P: Mas não acha que, e voltando um bocadinho ao que tem estado a sublinhar ao longo da sua história, da ligação que havia entre a participação das coletividades e a intervenção política, que essa dimensão, essa ligação também faz parte da identidade das coletividades e que também é muito essa dedicação dos dirigentes também é muito por vocação política, ou seja, também é uma motivação política?
Francisco Duarte: Sem dúvida. Agora nem tanto, mas houve uma época em que os partidos políticos disputavam acerrimamente as direções das coletividades. Havia e continua a haver ligações das coletividades à política, sem dúvida nenhuma, e à atividade política. Agora, vamos lá ver, as coletividades hoje são frequentadas por muito poucas pessoas, por pouca gente. E nalguns casos, gente já de uma certa idade também, com um nível cultural muito abaixo do que era desejável. E que o interesse deles é estarem ali a beber uns copos e a coletividade passa muito tempo despercebida, completamente despercebida.
Posso estar completamente enganado, mas eu penso que para levantar tem de haver alguém, como eu dizia, com a força capaz de organizar, de coletividades terem a mesma vontade no sentido de algumas organizações, organizações com o vulto, que marquem e que possam durar vários anos, desejadas pelo próprio público.
P: Mas diga-nos lá, das suas realizações, daquilo que realizou, há bocado estava a dizer que tem realizações que o marcaram. Quais é que foram aquelas que foram mais marcantes?
Francisco Duarte: E eu devo dizer-lhe que a mais marcante foi esse concurso de fado e foram os vários bailes que nós fazíamos alusivos a qualquer coisa. Fazíamos o Baile da Primavera, por exemplo, e o salão era decorado, tanto o chão como as paredes, com flores da mata. Com mulheres que, voluntárias, que depois também conseguiu-se criar-se um grupo de mulheres que trabalharam imenso. Ainda hoje trabalham em muitas coletividades. Na minha, digamos assim, também acontece ainda isso.
P: Quando é que elas começaram a participar mais?
Francisco Duarte: A partir da década de 80, no caso da minha coletividade. Nas outras, na grande maioria, foi um bocadinho mais tarde. Mas aquela coletividade que também tinha umas instalações mais amplas, digamos assim, e onde se podiam realizar mais coisas e havia mais gente também, porque é o lugar do concelho com mais gente. Tem 7000 habitantes, 7000 habitantes é muita coisa.
P: Como é que elas entraram? O que é que elas vieram fazer? Quais foram as atividades que começaram a desenvolver?
Francisco Duarte: Começaram primeiro nos lavores, nas costuras e nessas coisas. Depois compraram, no caso da coletividade da Honra, compraram uma televisão só para a sala delas. Depois começaram também, quando fazíamos os MusicOrdens, por exemplo, eram elas que faziam a cozinha toda e nas festas faziam a cozinha toda. Depois faziam alguns sorteios para passeios delas. Tinha uma atividade ali que ajudava muita a coletividade. Ajudavam muito o grupo de teatro, era de lá que vinham as costureiras, era de lá que vinham as ajudantes das costureiras, tudo isso. Não tiveram assim realizações de grande vulto, tinham aquela presença delas, que era importante. Eu acho que iam à coletividade quase todos os dias, juntavam-se ali nas suas conversas, enfim, algumas a costurar e outras não.
P: Faziam parte dos órgãos dirigentes?
Francisco Duarte: Muitas fizeram, mas isso já a partir da década de 90. Houve quase sempre mulheres na direção. Ainda hoje há, mas numa percentagem – salvo raras exceções –diminuta. Só houve aqui há uns dez anos, talvez, que era uma direção só praticamente de mulheres. Mulheres não, de raparigas, digamos assim, raparigas muito jovens, ainda muito jovens. É a direção de que eu me lembro que teve mais mulheres, creio que foi essa, creio que na década de 80, já não posso precisar, ou de 90.
P: Fale-me também um bocadinho da sua participação sindical. Disse-me que ainda antes do 25 de Abril foi para o sindicato, ainda o sindicato corporativo, o sindicato nacional. Como é que entrou?
Francisco Duarte: Entrei em 1971, mas aí era delegado sindical. Então íamos às empresas ver o que é que se passava. Na maioria dos casos éramos escorraçados, especialmente quando íamos ali ao Bombarral tentar ver quem eram os aprendizes que trabalhavam nas oficinas sem terem idade. Os próprios operários chegaram a escorraçar-nos, como nos fizerem em Pombal uma vez, por exemplo. Era mais nessa área que trabalhávamos, a de levarmos os problemas à própria direção do sindicato, com reivindicações já salariais, com reivindicações de férias. Porque eu comecei a trabalhar, para ter direito a férias tinha que trabalhar, já não me lembro, mas era uma série de anos para ter 8 dias de férias. Pronto eram essas reivindicações todas, foi-se massacrando, massacrando... Era o sindicato metalúrgico.
P: E a direção do Sindicato Metalúrgico, ainda era uma direção próxima do regime?
Francisco Duarte: Na altura era muito próxima do regime, o presidente era agente da PIDE, agente oficial mesmo…
P: E foi assim até ao 25 de Abril?
Francisco Duarte: E foi assim até ao 25 de Abril. E portanto, como delegado sindical, foi essa atividade que tínhamos nas empresas. E depois fui presidente da Assembleia Geral, mas nessa altura, o presidente da Assembleia Geral trabalhava com a direção do próprio sindicato.
P: Ainda antes do 25 de Abril ou já depois?
Francisco Duarte: Depois do 25 de Abril, já depois do 25 de Abril é que eu fui presidente da Assembleia Geral. Mas na altura o presidente da Assembleia Geral trabalhava também com a direção, ia às reuniões e depois, enfim, tinha um dia por semana que era para ir ao sindicato. E aí também desenvolvia atividade sindical nessas reivindicações, marcando algumas manifestações, também visitando novamente as empresas após o 25 de Abril, ainda com muitas dificuldades de conseguirmos entrar nas empresas, especialmente ali na zona das Meirinhas, Pombal e Bombarral. É onde me lembro de termos maiores dificuldades de lidarmos com os problemas.
Depois também houve um período em que os metalúrgicos marinhenses tentaram que a direção e as instalações do sindicato que fizeram na Vieira de Leiria viessem para a Marinha Grande. Foi uma Assembleia Geral a que até as peixeiras todas foram, porque não queriam de maneira nenhuma o sindicato fora da freguesia da Vieira. Eu também nunca defendi isso e ganharam, eles ganharam e o sindicato continua lá. De maneira que foi uma atividade sindical muito contrariada, muitas vezes, pelo patronato. Fui de facto sempre muito prejudicado, especialmente a nível salarial, ganhava sempre menos do que os outros. E tive uma vez um patrão que me fez uma proposta de eu abandonar a vida política e sindical, que poderia ser chefe da fábrica. Tivemos uma discussão que ainda hoje está na mente dos dois, certamente.
Portanto, ser dirigente sindical, mesmo após 25 de Abril, não era tarefa fácil. Nem eram todos que queriam. Porque éramos discriminados, altamente discriminados, e ganhávamos menos do que os outros. Quando éramos aumentados, era menos do que os outros e tínhamos anos que nem aumentos tínhamos, porque éramos dirigentes sindicais. Eu fui 6 anos, não fui muito tempo, mas foi suficiente para ficar marcado para sempre. Mas, enfim, quem corre por gosto não cansa e sujeita-se a tudo.
P: Como é que foi o 25 de Abril aqui na Marinha Grande?
Francisco Duarte: O 25 de Abril foi um acontecimento inesquecível para toda a gente. Foi de uma alegria transbordante. Eu estava na fábrica, já eram 7 horas e 15 minutos quando soubemos. É evidente que a fábrica parou imediatamente, viemos todos para a rua, nem sabíamos bem o que é que tinha acontecido, uma coisa brilhante. Depois, no 1.º de Maio seguinte então, na Praça Stephens, foi uma coisa inesquecível, eu nunca vi na minha vida tanta gente junta. Eu sei lá, aquilo era gente a perder de vista. Era nas ruas todas que davam para a praça e na praça, no 1.º de Maio ainda mais que no 25 de Abril. Mas foi de facto um acontecimento que nos marcou a todos da maneira indelével. Ainda hoje, quando falamos disso, sentimos a emoção do que foi. Porque eu ainda vivi 37 anos no salazarismo. É, enfim, as dificuldades por que passámos, aquela esperança que nasceu com o 25 de Abril, aquela perspetiva de uma sociedade mais justa… No meu ponto de vista, infelizmente, não tão justa como gostaria. Mas, enfim, cá estamos.
P: Como é que isso se viveu nas coletividades, mesmo aqueles meses do PREC? Como é que isso foi dentro das coletividades?
Francisco Duarte: Não se sentiu muito nas coletividades. Não me recordo bem, mas passou um bocado ao lado das coletividades. Não houve assim grandes movimentações, a não ser algumas reuniões em que pediram as instalações para o efeito, de grupos políticos.
P: Mas não se abriram oportunidades para novos tipos de realizações? Não se participou naquelas organizações populares para o saneamento básico? As coletividades não estiveram envolvidas nesse processo?
P: Tiveram, de certo modo. As coletividades estiveram envolvidas em quase todo o processo político que se desenvolveu, porque as coletidades foram sempre espaços onde qualquer coisa que se organizava tinha de funcionar. Agora, em muitos casos, as próprias direções das coletividades alheavam-se um bocado dos problemas. Eram mais movimentos de associados e não associados, que se reuniam naquelas instalações para algumas realizações. Mas numa grande parte dos casos, as coletividades estavam um bocadinho ao lado.
Agora, as próprias coletividades depois tiveram a sua atividade após o 25 de Abril, que já era de facto uma atividade mais, com uma perspetiva de sociedade diferente. O movimento teatral foi de uma importância muito grande depois do 25 de Abril. Fizeram-se imensos espetáculos com uma perspetiva política muito diferente.
P: Como por exemplo?
Francisco Duarte: As peças de teatro que escolhíamos eram sempre de autores que tinham um cariz político muito. No início de qualquer espetáculo de teatro, íamos apresentar a razão pela qual aquela peça ia ser apresentada, o seu cariz e, enfim, o que podia influenciar na vida das pessoas. Porque as pessoas também não tinham muita capacidade de absorver o conteúdo da própria peça. E havia então esse procedimento: alguém apresentava a peça antes de se iniciar os espetáculos e havia alguns ensaiadores, eu conheci alguns, que quase contavam a peça toda, e era bom para alguns porque, tem de se reconhecer que muita gente que ia ver peças de teatro que saía de lá quase na mesma. Não percebiam muito bem a mensagem. Nesse aspeto foi muito importante.
Depois nós não tínhamos também a possibilidade, do ponto de vista político, de recrutar muita gente, porque as pessoas também não aderiam muito, queriam espetáculos populares. Qualquer espetáculo que nós realizámos na coletividade, não há comparação com os espetáculos de revista à portuguesa que nós fizemos. Nós fizemos quatro revistas à portuguesa, revista popular portuguesa, e, aí sim, do ponto de vista político isso era saliente. O conteúdo dos próprios sketches era marcante.
Nós fazíamos uma peça de teatro e marcávamos logo dois espetáculos, numa casa que levava entre 450 e 500 espetadores. Mas quando era uma revista à portuguesa tínhamos de marcar quatro, porque tínhamos a garantia de quatro espetáculos certos de casa cheia. Portanto, as pessoas, também do ponto de vista político, viveram aquela euforia, aquilo tudo, mas não foi muita gente a aderir a movimentos e realizações. Isso ficou ainda com as pessoas politizadas que já vinham de trás e foram depois ganhando ou conseguindo ganhar alguns para alguma realização.
P: A Marinha Grande é uma zona com uma grande percentagem da população a trabalhar na indústria, ou seja, com uma tradição do movimento operário muito forte. É quase mítica a história do 18 de janeiro. De que forma é que isso marca as características do movimento associativo?
Francisco Duarte: Marca porque os inconformados do ponto de vista político frequentavam todas as coletividades e expressavam a sua vontade de mudar, de as coisas melhorarem. E o povo da Marinha Grande é um povo lutador, não é por acaso que temos dos melhores níveis de vida do distrito, segundo a última averiguação. Mas, estava eu a dizer, esse espírito de luta e de melhorar a vida nunca desapareceu dos habitantes da Marinha Grande e depois aconteceu um fenómeno importantíssimo.
Dois terços da população da Marinha Grande já não são marinhenses. E esses dois terços vieram para cá como os portugueses iam, por exemplo, para a Alemanha, para ganharem dinheiro. Especialmente do Alentejo, muitos alentejanos, muitos ali na zona da Figueira da Foz, e desses lados. Muitos do Tramagal, que vieram para a indústria dos moldes, muita gente de Maceira do Liz, aqui perto, mas enfim, ainda hoje há muitos empresários da indústria dos moldes que são maceirenses. Esse espírito de luta nunca desapareceu da Marinha Grande e ainda hoje se luta.
P: Estava a falar dessas correntes migratórias, qual foi o papel que as coletividades tiveram na integração dessas pessoas que chegavam fora?
Francisco Duarte: Era uma integração natural, porque era um dos pontos que eles procuravam também para conhecer gente e para terem outro conhecimento do sítio em que viviam. O lugar em que eu vivo, por exemplo, é dos que tem mais forasteiros, há muita gente que não tem nada a ver com a Ordem. Das famílias tradicionais do lugar da Ordem praticamente já não existe quase ninguém.
E, então, onde é que era o melhor paradeiro deles? Era a coletividade. Frequentavam a coletividade e aquilo para eles também era novidade, na terra deles não tinham e não tinham tido a possibilidade também de ganharem dinheiro. Eu lembro-me de umas famílias de Lamego que vieram lá para a Ordem e eles diziam: “Oh, senhor Duarte, nós estamos a viver num paraíso” – e eu lembro-me que eles tinham um ordenado miserável na altura, um ordenado muito abaixo da média. Vieram para ajudantes, quando as fábricas ainda trabalhavam a lenha, preparavam a lenha para meter nos gasómetros e tinham um ordenado baixíssimo. Ainda não havia o salário mínimo nacional.
Eles diziam-me que a Marinha Grande era a melhor terra do mundo. Eles viam as chaminés e vinham por aí fora e de facto temos uma grande parte das famílias que estão na Marinha Grande – hoje, claro que já têm agora muitos marinhenses, filhos e netos, já marinhenses – são oriundas de muitos lugares do país.
P: Parece que há um período de clímax do movimento associativo. Como é que essa memória é passada dos dirigentes mais velhos para os mais novos? Vamos voltar mais atrás, para quando entrou. Como é que os dirigentes mais velhos lhe contavam que era que era o associativismo e como é que deveria de ser o associativismo?
Francisco Duarte: A maioria deles não contava nada. Eu, quando entrei numa direção, comecei a ver como é que eles funcionavam. Porque não havia muitos dirigentes associativos com uma perceção da importância que podia ter o movimento associativo na mudança da sociedade. Não se falava, não havia muitos que falassem nesses termos e nessa condição. Havia o tal senhor que eu lhe relatei, o senhor Ilídio Guerra e mais uma meia dúzia, mas esses desapareceram, foram desaparecendo. Depois era mais um espírito de missão de manter a coletividade. Aliás, muitos dirigentes até tinham muito receio da política. Quando se dispensava a coletividade para uma sessão política, mesmo após 25 de Abril, muitos ainda tinham muitas dúvidas em relação àquilo, se devíamos dispensar ou não a coletividade.
Do ponto de vista pessoal, eu fui apreendendo o que é que era o movimento associativo, onde é que se podia chegar e o que é que se podia fazer. E como é que eu, da minha parte, transmiti aos mais novos, que eu tive gente muito nova também nas minhas direções? Fui dando essa perspetiva. Mas muitos não assimilaram. Não quiseram saber, tirando raras exceções. Muitos não quiseram saber disso para nada.
Portanto, o associativismo é passado naturalmente se as pessoas estiverem disponíveis mentalmente para isso. Porque nós não conseguimos convencer ninguém: “Tu vens para o movimento associativo porque o movimento associativo pode contribuir muito para alterar a própria sociedade.” Não se fala muito nesses termos, fala-se mais do progresso da própria coletividade. Independentemente de, atualmente, eu no meu ponto de vista as coletividades fazerem muito pouca coisa.
Eu também sou um bocado contra as coletividades que estão a tornar-se instituições de solidariedade social. Primeiro, não têm condições para isso, não têm a tendência, e depois perdem aquele significado de uma coletividade de cultura, desporto e recreio. Não quer dizer que as coletividades que estão a enveredar nesse sentido que estejam a fazer um mau trabalho à sociedade. Mas deixam de ter aquele carisma de coletividade que havia e que caminhava mais para a mudança da própria sociedade. Acham que estão a desenvolver um bom papel, que estão a prestar um bom serviço à sociedade, nalguns casos nem é de tanta qualidade como isso, deixa muito a desejar. Mas ficaram por ali. E também por isso muita atividade das próprias coletividades vai decaindo.
Isto independentemente de eu continuar a considerar que o movimento associativo atravessa um momento difícil. E é preciso cabeças pensantes para alterar este tipo de situação, mas tem que ser em conjunto, eu não vejo do outro modo. Não podemos individualizar e fazer coisinhas a nível de escola. Independentemente das próprias coletividades terem a sua atividade, é importante começar a haver realizações em conjunto, de grandeza, que deem que falar. E se as coletividades em conjunto conseguirem três ou quatro realizações anuais com essa grandeza, o movimento associativo passa a ter mais aderentes, passa a ter mais gente interessada. E pode não vir interessada, pode não vir com o pensamento no avanço do associativismo em todas as vertentes, mas vai-o ganhando.
O associativismo é, para mim, de uma importância fundamental. Não é por acaso que o país teve mais de 20 mil coletividades e mais de 200 mil dirigentes associativos. Por isso, o associativismo é de uma importância fundamental. Agora eu diria, num derradeiro apelo: temos de salvar o associativismo e temos de ser suficientemente inteligentes para o salvar, porque se o associativismo vai cada vez tendo menos esforço. Eu acho que nesta coletividade, por exemplo, está-se a fazer um trabalho razoável. Mas ainda não é o que devia. Porque deviam ser desenvolvidas mais atividades que fossem da própria coletividade. Porque alugar espaços para Costura e Bordados e trazer umas companhias de teatro que, por sua própria conta, vão fazendo alguns espetáculos…
O que eu gostava de ver aqui era um grupo de teatro da Cumeeira, um grupo de teatro com força, que se impusesse com peças, com coisas boas. O que falta aqui é um cérebro na própria direção, que avance com essas coisas, porque eu digo-lhe com toda franqueza e sem nenhuma atitude de sobranceria: na coletividade da Ordem houve homens que souberam fazer as coisas, mas foram desaparecendo. Mas não houve ninguém que aprendesse aquilo…
Eu escrevi, fui autor e encenador de uma revista à portuguesa, de um Bate Bate, Coração, o grupo tinha 30 pessoas. Se eu não morri naquele período, não morro mais, porque era um trabalho extenuante. Porque também não tinha gente preparada para me ajudar, porque se tivesse... Eu tinha era muita gente no grupo que fazia teatro, porque fazer teatro era bonito e as pessoas batiam palmas e ficavam todos inchados. Mas tinha uma grande parte dos atores amadores que todos os dias de ensaio me faziam a mesma pergunta: “Como é que eu vou daqui para ali? Como é que ponho o braço para cima quando estiver a fazer o discurso de Presidente da Câmara?”
Então, para quem tem a responsabilidade de ensaiar uma revista, de ver as marcações, de ver isso tudo… Era um grupo de 30 pessoas, todos os dias a fazer as mesmas perguntas, e eu não tinha ninguém em quem delegar alguma responsabilidade. Portanto, estas coisas são difíceis. É aqui que eu penso que as câmaras deviam ser ganhas para nos poderem fornecer alguém do ponto de vista intelectual, do ponto de vista cultural, que nos desse uma ajuda quando estes espetáculos aparecem. Agora eu quero dizer o seguinte, não aparece muita gente nas coletividades para fazer isso. E, aliás, esta coletividade tem esta vida toda e tem este esplendor, que para mim tem de facto aqui umas instalações magníficas, graças ao sacrifício de um homem que está aí há tem não sei quantos anos. Quando ele for embora, como é que isto vai ser? Como é que as coisas vão ser? Pronto já se enveredou por outras coisas, alugar os espaços e fazer uns pequenos-almoços, fornecer uns pequenos-almoços. Ter praticamente uma taberna a funcionar também, que há umas sociedades em que as pessoas se juntam para beber do seu copo, mas às vezes são grupos de 15, cada um paga a sua rodada, portanto, fazendo as contas, cada um bebe 15 copos de vinho. São gente que não tem condições para pensar o que quer que seja a não ser ir à coletividade beber um copo.
É uma situação muito difícil. Nós temos de reconhecer, independentemente de sermos o mais positivos possível em relação ao associativismo, temos de reconhecer que o associativismo nestes últimos anos tem vivido anos muito difíceis, muito complicados e, no meu ponto de vista, por falta de capital humano. Temos de alterar o panorama. Isto tem de ser alterado, senão morre. Eu já um outro dia disse, se eu hoje fosse novo e se pudesse ter a possibilidade de vender esta coletividade, vendia. E fazia-a de outra maneira. E hoje ia adaptá-la à juventude e ia haver discotecas e ia haver tudo. Não tenho dúvidas nenhumas. Eu, hoje, se tivesse condições de fazer uma coletividade de novo, eu não fazia nada disto que está aqui, estes salões, estas coisas. Isto já passou, acabou. Os grandes bailes, em que era preciso um salão enorme, isso acabou. Portanto, há que adaptar as instalações, há que pensar o movimento associativo, mas pensar com o sentido que dá muito trabalho e custa muito e tem de se perder muita noite e tem que ser inteligente à força para alterar o panorama, porque senão...
Aliás, a senhora vai entrar hoje em qualquer coletividade a esta hora, tirando o Sport Operário Marinhense, que tem um bar alugado, um bar de alto luxo alugado, em que o associado da coletividade vai lá, cá fora paga por uma cerveja 1 euro e lá paga 2. Mas é a única coletividade que certamente a senhora vai visitar a esta hora e tem lá muita gente e muitos jovens também, porque é o tal elitismo, se assim se pode chamar.
Mas vai às outras coletividades e estão meia-dúzia de gatos sentados a ver a televisão, outros a jogar às cartas E pouco mais. E da parte das direções, conformismo total. Eu também antes dizia, quando era presidente da Junta: “As direções, só para manter espaços abertos, já merecem um subsídio.” Eu era da opinião que o poder local devia pagar, e já aconteceu, pelo menos a água e a luz às coletividades, porque de facto, abrir a coletividade e estar lá já é importante, mesmo que não vão 10, vão lá 5, umas vezes vão mais, outras vezes vão menos, mas é um espaço importante e tem muito a ver com a vida do próprio lugar.
Porque ali fizeram-se grandes amizades, fizeram-se casamentos, fizeram-se batizados, aconteceu muita coisa nas coletividades, que diz respeito às pessoas do próprio lugar das coletividades. E as próprias coletividades ajudaram muito a desenvolver as famílias. É por isso que também existe ainda hoje aquele bairrismo antigo, que muitas vezes não deixa levar a que haja união para realizações mais ousadas.
P: Muito bem.
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29-11-2021
P: Qual é o seu nome todo?
Etelvina Rosa: Maria Etelvina Rosa Ribeiro, mas o normal é ser Etelvina Rosa.
P: Em que ano e em que dia nasceu?
Etelvina Rosa: 16 de maio de 1955.
P: E nasceu aqui, na Marinha Grande?
Etelvina Rosa: Sim.
P: Fez aqui a escolaridade?
Etelvina Rosa: Fiz só a quarta classe e, depois, já foi aos 50 anos que tirei o nono nas Novas Oportunidades.
P: Depois da quarta classe foi trabalhar, na altura?
Etelvina Rosa: Fui aprender costura tinha 11 aninhos, costura e bordados. E aos 18 anos, na véspera do 25 de Abril, entrei para a fábrica. Tinha 18 e fiz logo em maio os 19.
P: E os seus pais, também trabalhavam aqui na Marinha Grande?
Etelvina Rosa: Nas empresas vidreiras? Sim.
P: E casou-se aqui?
Etelvina Rosa: Casei-me aqui.
P: Tem filhos?
Etelvina Rosa: Uma filha e uma neta.
P: E o seu marido, trabalhou aqui também na indústria vidreira?
Etelvina Rosa: Não, trabalhou nos moldes primeiro. Quando regressou da chamada tropa, ainda trabalhou uns anos nos moldes. Depois foi trabalhar na secção dos moldes, mas na indústria vidreira, na empresa Crisal.
P: E a sua filha, o que é que faz?
Etelvina Rosa: É engenheira florestal.
P: Tem aqui um Pinhal de Leiria para tratar, não é?
Etelvina Rosa: Por acaso esteve até este ano em São Brás de Alportel, a trabalhar na Proteção Civil, agora é que veio para a Marinha Grande, não sei se ainda vai ficar mesmo. Em princípio ficará…
P: Faz parte de algum partido político, tem filiação partidária?
Etelvina Rosa: Sim, do PCP.
P: E religião?
Etelvina Rosa: Não.
P: Então, vamos tentar fazer assim uma linha do tempo. Quando é que começou a participar ativamente em movimentos sociais? Foi antes ou depois do 25 de abril?
Etelvina Rosa: Foi depois. Eu não tinha noções políticas nenhumas. Eu sou filha única. Os meus pais eram assim de terem a menina protegida ali em casa. E, como eu disse, fui trabalhar em fevereiro de 74, apanhei logo uma greve por aumento de salários em março, que coincidiu com o dia do movimento militar das Caldas, que fez a pré-revolução, o tubo de ensaio.
Tínhamos entrado para a fábrica naquela altura 18 a 20 jovens, com idades entre os 18 e 20 anos, e aí é que nós percebemos o sentido político, porque fazendo greve na indústria vidreira, não foi só na fábrica onde eu estava, foi na indústria vidreira, tínhamos a Marinha toda cercada por polícia a cavalo, um aparato tenebroso de se passar nas ruas da Marinha. Isso despertou-nos a percebermos muito bem o porquê das coisas.
A partir do 25 de Abril... Não comecei a participar por ser dirigente de coisa nenhuma. Comecei a participar na atividade normal das lutas reivindicativas. Para o bem ou para o mal, na fábrica Manuel Pereira Roldão os patrões, logo em novembro de 1974, abandonaram a empresa que esteve cinco anos em autogestão, com os trabalhadores a gerirem a empresa. E isso deu-nos um outro sentido, porque era uma empresa que na altura teria mais de 600 trabalhadores e conseguiu-se gerir, porque foi nomeada uma Comissão em que cada secção elegeu um representante, digamos assim, para fazer parte da gestão da empresa e nós trabalhámos durante cinco anos como se fosse uma cooperativa, o que nos deu bastante consciência política.
Cada uma vinha da sua vida, algumas com o quinto ano, que hoje seria o nono, outras apenas com a 4.ª classe, mas não tínhamos qualquer consciência política. E, realmente, vermo-nos ali a braços com a empresa e ter que gerir e tratar de tudo como se fôssemos a entidade patronal deu-nos uma vivência que, para mim, pelo menos, serviu para a vida. Depois o ser delegada sindical é só em 1982, que é o ano em que nasceu a minha filha. Eu casei em 1977, depois em 1982 nasceu a minha filha e, por coincidência, entrei para delegada sindical, que é o representante do sindicato dentro da empresa.
P: Mas conte-me mais detalhadamente essa experiência da autogestão. Fala sempre no feminino, era uma empresa com muitas mulheres?
Etelvina Rosa: Falo no feminino porque a indústria vidreira até há pouco tempo estava dividida, o que nós chamamos a zona quente era só homens, o que nós chamamos zona fria era só mulheres. Por isso é que eu falo no feminino, porque era onde eu estava integrada.
P: O que se faz na zona fria?
Etelvina Rosa: Enquanto na parte do forno é trabalhado o vidro a quente, o fabrico é manual, a cana, o soprar do vidro e o manusear o vidro à mão. A zona fria é a parte dos acabamentos, ou seja, todas as peças têm que ser cortadas, roçadas, têm que ser polidas, lapidadas, pintadas, há uma série de transformações, o fosco também, tudo o que é acabamentos, depois também a embalagem e a expedição, é já a parte final, faz parte da chamada zona fria, com trabalho de mulheres.
De referir uma componente, que ainda perdura nos dias de hoje, que é o salário. Não é que não recebessem pelas tabelas… Olha, nessa altura eram melhor aplicadas que agora, existia o contrato coletivo de trabalho e as empresas eram obrigadas a cumprir as tabelas publicadas, mas como era considerado o trabalho feminino menos qualificado, digamos assim, nestes anos que estamos a falar, não digo que fosse metade o salário de uma mulher, mas era pouco mais que metade do salário de um homem do forno.
Claro que o ser artista vidreiro não é para qualquer um e o trabalho na zona quente é um trabalho que exige especialidade. Mas a roça também é um trabalho específico, porque se a peça não fosse roçada a direito e não fosse polida como deve ser não poderia ir para o cliente, é um trabalho bastante duro, porque em plenas madrugadas de geada, sem qualquer aquecimento é difícil trabalhar. Se os trabalhadores do forno trabalhavam com muito calor, ali trabalhava-se em secções extremamente frias, porque eram muito amplas, e com água gelada, em que as peças tinham que ser manuseadas sempre com água, para não rebentarem, e portanto, este trabalho era duro e não valorizado convenientemente para o tipo de trabalho que estas mulheres exerciam. E aí era mesmo feito por mulheres, o que aconteceu durante décadas é que o chefe era homem [ri-se].
Essa também era questão muito interessante. Se formos ver a história, eram 30 mulheres numa secção, o chefe era homem. Depois isto só se inverteu já no final dos anos 80.
P: Então e o que é que a Etelvina fazia quando entrou na fábrica? Qual é que era a função que desempenhava?
Etelvina Rosa: Eu entrei para a parte da embalagem, a secção de exportação. Portanto, desde escolher as peças, empalhá-las, porque quando eu cheguei ainda muitas das peças não eram embaladas em caixas de cartão, eram empilhadas em palha e depois encaixotadas para seguirem para embarque. Depois passou-se para a caixa de cartão, que já era um trabalho melhorzinho, não era tão difícil e agressivo para as nossas mãos. Devo ter estado ali até aos anos 90.
P: E foi nesse período, nessas funções, que viveu a experiência de autogestão?
Etelvina Rosa: A autogestão só foi cinco anos, de 1974 a 1979. Estava nessa parte da embalagem. Depois, em 1979, entrou o Mário Soares e acabou com a autogestão, assim como com a Reforma Agrária.
P: Como é que esta alteração das relações laborais se refletiu no seu trabalho enquanto delegada sindical?
Etelvina Rosa: É muito difícil falar de nós, mas é mesmo assim, teve de ser com muita persistência, muita teimosia e com o retirar muito à minha vida pessoal. Porque quando as chefias me chamaram e disseram: “A gente precisa de ti agora, aqui, neste posto de trabalho”, a primeira coisa que eu respondi foi “vocês sabem a responsabilidade que eu tenho a nível sindical nesta empresa. Eu não abdico. Portanto, o que eu tiver de fazer, terá que ser feito da mesma forma como sempre o fiz”. “Isso não é impedimento, fará como entender”.
Sabemos que, infelizmente, numa grande parte dos casos, não é fácil ser responsável sindical e chefiar isto ou aquilo, porque no fundo acabava por ter de fazer cumprir ordens superiores.
Eu não era uma chefia superior, mas tinha que fazer esta gestão até mesmo internamente para conseguir ter as peças para levar para fora. E isso implicou eu ter de fazer, no fundo, à minha conta, muitas horas. Porque o normal seria: tenho de sair para uma reunião e saio, ponto. Mas como eu tinha esta responsabilidade, era a última coisa que eu queria que me acontecesse na vida é que alguém me dissesse “esta carga não saiu porque tu não tiveste atenta à situação, não a resolveste atempadamente”.
E então, todas as reuniões sindicais que eram na Marinha, eu não saía diretamente de casa para a reunião, ia sempre à hora que fosse à fábrica deixar as coisas previamente preparadas, porque normalmente eu fazia as cargas e descargas, depois alguém fazia o trabalho de distribuição, mas eu tinha que saber que o que estava nas caixas, por exemplo, eram 100 peças para irem para o fornecedor José, Manuel ou Francisco, eu tinha a certeza, com a guia passada, para alguém as entregar, para amanhã ou passado um dia ou dois serem levantadas. Também o normal era os trabalhadores saírem às cinco da tarde, se eu tivesse que voltar à fábrica, voltava. E estou a dizer isto, que foi sempre da minha responsabilidade, porque ninguém me dizia isto tem de estar feito ou não, se eu estivesse na fábrica, das cinco às seis ou das cinco às sete, eu não apontava uma hora extraordinária. Por isso é que eu digo que fui muito teimosa, no assumir as funções.
Isto para mim também me ajudava na parte sindical, porque numa fábrica de grande dimensão, com setores muito variados, com profissões diferentes, dava para perceber os problemas dos trabalhadores em cada secção. Porque, por exemplo, quando eu entrei para embalagem, eu entrava e saía dentro da secção. Se via alguém era à hora de almoço. Como tinha estas funções, em que tinha de ir às secções todas, tinha a liberdade de passar por diversos setores, conhecer e tentar perceber o tipo de trabalho. Às vezes digo, isto pode parecer que não é bem assim, mas é, eu tive colegas minhas que entraram na mesma altura do que eu e saíram na mesma altura do que eu, e que, como trabalhavam na zona fria, estavam tão compartimentadas que não chegaram a estar perto de um vidreiro a vê-lo trabalhar ao vivo e a cores, não tinham noção da temperatura do forno, da composição de que as peças eram feitas.
E agora, a falar nisto, estou a lembrar-me de uma parte, que também me ensinou muito relativamente ao vidro, quando estávamos na fase de autogestão, isto foi a seguir ao 25 de Abril, que só quem o viveu, acho que a minha geração nisso foi muito privilegiada, porque conheceu o antes, conheceu o 25 de Abril e conhece agora. O ano de 1974 era de uma efervescência e de uma novidade para todo o cidadão português. E era muito comum haver excursões do Porto, de Gaia, de aldeias da Serra da Estrela e dos mais diversos pontos do país, vir visitar a empresa ver trabalhar o vidro e até do estrangeiro vinham excursões, em passeios culturais, chamemos-lhe assim. Vinham aqui, mas também à Reforma Agrária, aproveitavam para vir a Portugal, os que vinham de fora, e um dia iam a um local e outro dia a outro. Eu tinha pouquíssimo tempo de empresa, enfiada lá na tal secção que era só de embalagem, quando na altura os colegas responsáveis falaram comigo para acompanhar os visitantes, porque chegavam às vezes duas camionetes, que eram 100 pessoas, para ir visitar o forno. Tinha de ser limitado, no máximo dos máximos eram 20 pessoas para aquela situação, às vezes já era um grande aglomerado na zona chamada quente. E então tinham que arranjar duas ou três pessoas que fossem os cicerones, digamos assim, a passar pelas secções para tentar perceber o trabalho do fabrico manual.
E quando me chamaram pela primeira vez, eu só sabia que havia copos para meter em caixas e eu era muito envergonhadita à data. “Mas eu não percebo nada disto, o que é que eu vou fazer?” “Tens de ir, tens que acompanhar.” Portanto, isto levou-me a ter de parar ao pé de um vidreiro e dizer: “está a fazer isso, como se faz?” O vidreiro explicava: “é assim, tira-se o vidro do forno, está a fundir a 1000 e tal graus. Eu estou a trabalhá-lo a mais de 700 graus e aqui põe-se a asa e ali corta-se o bico do jarro e ali coloca-se o pé do cálice.” Depois passava por de trás do forno para ver a composição e saber quais eram os ingredientes da composição. Assim toda a minha vida fabril deu-me uma experiência, que eu não quis ter, mas fui tendo.
E, realmente, essa parte foi nos anos da autogestão, que eu tive essa experiência que me foi ajudando ao longo da vida. Depois, quando já estou nas outras funções, também já tinha algum à vontade para ir, até porque tinha que escolher as peças, tinham defeito, estavam tortas ou tinham bolha, ou outo defeito. Portanto, também já tinha à vontade para ir junto do colega trabalhador e dizer como é que isto se resolve sem estarmos a estragar alguma peça. E também lhe dava a ele o à vontade para me colocar os problemas que depois tínhamos de levar a reuniões com a entidade patronal.
P: Quais eram os principais problemas? Quais foram, ao longo dessa experiência de delegada sindical na fábrica, os principais problemas com que se deparou?
Etelvina Rosa: Eu aí tive esse espacinho de tempo que não foi muito, mas que foi gratificante, quando entrou o novo patrão. Já não houve salários em atraso até 1992. Mas há sempre a nota de culpa, porque o trabalhador fez um erro qualquer, ou faltou ao trabalho, ou teve algum problema, porque existem muitas categorias profissionais, de oficial e primeiro ajudante e segundo ajudante, que tem determinados tempos para subir de categoria e até podia não ser por mal, mas o trabalhador já estava a exercer determinada categoria acima do que recebia e não estar a ser pago corretamente. É este tipo de situações que a delegada sindical tem de resolver.
Naquela altura, nem se passou nada de tão grave assim, mas era dentro desta base de situações que íamos tratando. Por exemplo, estávamos a falar das mulheres da roça e do frio, tínhamos de reportar essa situação: “tem de resolver a questão, como pôr ali uns aquecedores a gás ou qualquer coisa que seja, porque é impossível trabalhar naquelas condições. Arranjem condições para que o fio de água que está a correr, não seja só um fio de água gelado.” Eram estas algumas questões. Podem parecer até de somenos importância, mas que para o trabalho são fundamentais, até para ter a rentabilidade produtiva que é precisa nas empresas.
Depois, deve ter sido nos anos 90, que fiz parte já da direção do sindicato, mas a minha postura foi sempre a mesma. Nunca descurei nada do trabalho que tinha de fazer profissionalmente e sempre fiz o que me foi possível em termos sindicais, mais gerais, porque já não era só na empresa Manuel Pereira Roldão, também havia problemas, e muitos, noutras empresas. Também tinha de ir. Claro que não estava a tempo inteiro no sindicato, nada disso, portanto tirava dias, dois ou três por mês, não tirava mais do que isso, mas sempre muito às minhas custas, digamos assim. Depois, com uma filha pequena, também foi preciso gerir muito bem os meus dias, tirando algumas horitas de sono para conseguir que tudo encaixasse e que se levasse à prática.
P: E nesse período da direção do sindicato? Ainda faz parte da direção do sindicato hoje em dia?
Etelvina Rosa: Sim, já agora vou contar um bocadinho da história, depois corta o que entender. Quando entrou o patrão, estes patrões, pronto um é que era o mentor da empresa, em 1986, ele mudou radicalmente o circuito da empresa e lidava com os trabalhadores de igual para igual e foi uma pessoa muito empenhada e, especialmente nos dois primeiros anos de fábrica, ele entrava às 7h00 da manhã e saía à meia-noite. Portanto, ele era uma pessoa com muitas capacidades, na altura tinha 33 anos, salvo erro.
Como já tinha o conhecimento do internacional, ele manteve sempre a parte das encomendas, criou um design novo para as peças de vidro, porque a M.P. Roldão, anteriormente trabalhava numa linha, que era até ali muito competitiva, não só com outras empresas da cristalaria, mas até já com algumas do semiautomático e era incomportável o custo que ficava um copo manual para um semiautomático. E ele alterou muito o trabalho para a cor, com um design para o decorativo, que não tínhamos em mais nenhuma empresa na Marinha Grande, nem noutro sítio do país. Como já não existia ninguém a trabalhar naquele tipo de peças, tínhamos encomendas a perder de vista.
O patrão, sempre muito empenhado em gerir tudo, em passar por todas as secções, a ver ao vivo e a cores os problemas, a estar ali para perceber o que os trabalhadores dizem, porque por vezes não é só o que dizem, é também ver no concreto, reunia com todas as chefias e havia uma coordenação e uma interligação espetacular. Quando a empresa, com a nova gestão, começou a dar frutos, a estar estabilizada e a dar lucros, porque diga-se em abono da verdade que as empresas de cristalaria manual têm de ser mesmo bem geridas, porque não são empresas que deem lucros fabulosos. Têm um custo energético muito grande. A composição do vidro tem um grande custo e então quando é de cor, é muito cara. E para ser competitiva tem que efetivamente ser muito bem gerida, foi o que o patrão fez nos primeiros dois, três anos.
Depois, achou que que já estava noutro patamar da vida e em vez de ser ele a gerir no dia a dia, começou a arranjar o primo, o amigo, um conhecido que mandou de Lisboa, os quais não estavam para se preocupar com a gestão. E então a empresa, que chegou a um patamar excelente, começou outra vez a decair.
E também estou a dizer isto porque tinha conhecimento, porque estava nas funções de andar dentro e fora, que para além das peças de vidro também tinha de ir às cartonagens, carregar caixas, outros materiais e diversas compras, andava com a camionete na rua e tinha essa ligação aos fornecedores, que eram essenciais para a empresa e que durante x tempo eles até iam oferecer os materiais. Depois, já se começou a sentir “só levas o material se pagares primeiro”, é sempre o que acontece antes de faltar o salário, começam a cortar o pagamento aos fornecedores, à Segurança Social.
Ao deixar de gerir por diretamente e achar que podia ser por interposta pessoa, as coisas começaram a correr mal e a empresa quase encerra em 1994. Lá se arranja um outro empresário que ficou com a M. P. Roldão, também não foi nada de especial, encerra em 1997 nas instalações e passa a ser outra empresa, filha daquela e construída na zona industrial, mas que já não tinha, nem de perto nem de Longe, a mesma dinâmica e apostando na produção de cristal, o qual não tinha mercado.
P: Entretanto, foi para a direção do sindicato...
Etelvina Rosa: Deve ter sido também no início dos anos 90. Aí estava na direção, mas a direção normalmente só tem uma pessoa a tempo inteiro, que está mesmo no sindicato a tempo inteiro. Os outros dirigentes têm os quatro créditos sindicais que são do Código do Trabalho há muitos anos e conforme as necessidades utilizamos ou não. Eu estava na mesa da Assembleia Geral e depois estive na direção, nesse formato. Também fui das que passei da Manuel Pereira Roldão para a outra empresa, a Mandata, que encerrou em final de 2002.
P: E durante esse período esteve sempre na direção do sindicato…
Etelvina Rosa: Sim, mas de forma parcial, digamos assim, só com créditos. Depois fiquei no desemprego e assim com mais tempo livre para o trabalho sindical. A minha filha também já estava grande, porque na altura existiam muitas empresas vidreiras do ramo manual com muitos problemas e acabei por dar o meu tempo, recebia o subsídio de desemprego, não recebia mais nada, não estava todos os dias no sindicato, mas sempre que tinha disponibilidade passava alguns dias da semana a ir às empresas, a dar a ajuda necessária aos trabalhadores, até pela experiência boa e má que tive na Manuel Pereira Roldão.
Ajudava a transmitir confiança aos trabalhadores, mas sempre em ligação aos coordenadores do sindicato. Em 2005, reformou-se o coordenador e a direção que ficou entendeu que seria necessário fazer uma proposta para eu ficar na direção, mas então paga pelo sindicato. Fiquei a tempo inteiro a partir de 2005, assumi a coordenação em 2013. Entretanto reformei-me, mas vou ficar até final do mandato que termina em maio de 2022. Portanto, será posto o fim como dirigente do STIV (Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Vidreira).
Nestes anos todos não tive só atividade sindical. Embora acumule trabalho que por vezes nem se consegue dar resposta. Alguns dos meus traumas existenciais têm um bocado a ver com isso, é que até se sabe o que temos para fazer mas depois o tempo útil não dá para tudo.
Eu também comecei a participar, logo a seguir ao 25 de abril, no Movimento Democrático de Mulheres, núcleo da Marinha Grande, que teve uma dinâmica espetacular, não sei se ainda em 1974, mas em 1975 garantidamente. Onde é a Junta de Freguesia da Marinha Grande hoje, era uma casa, não sei quem seriam os donos, estava desabitada à data, e cederam a casa para fazer uma creche. Porque não existiam. As fábricas maiores até tinham para lá uns cubículos e punham para lá uma mulher ou duas a tomar conta das crianças.
As mulheres, para irem de bicicleta para a fábrica, tinham que deixar os miúdos nalgum lado. Havia algumas fábricas que tinham creche, mas as mais pequenas não tinham. Os filhos ficavam com os avós, lá nos terrenos, porque estes tinham agricultura, os miúdos andavam pelos terrenos. E então, uma das primeiras coisas que o núcleo da Marinha Grande do Movimento democrático de Mulheres fez foi implementar uma creche. Não tenho noção se foi até aos anos 80, deve ter sido, quando fizeram uns jardins de infância públicos que existem perto do centro de saúde. Como já existiam alternativas, terminou a creche que o MDM criou. Mas foi assim, ninguém tinha formação de coisa nenhuma, foram as mulheres com algum tempo que se disponibilizaram para tomar conta das crianças e os homens que tinham jeito para carpintaria fizeram as caminhas para as crianças e foi assim durante muitos anos.
O núcleo do MDM envolvia muitas mulheres, fossem elas trabalhadoras das fábricas ou as chamadas trabalhadoras domésticas. E tinham muitas atividades, não se compara aos dias de hoje. Por vezes até nos esquecemos do que foi feito, só quando olhamos para álbuns antigos é que se dá conta. Desde os primeiros de maio com desfile de carros alegóricos e decorados pelas mulheres. As coletividades também participavam com os seus carros. Não havia dia 1 de junho nenhum em que o núcleo não realizasse iniciativas de rua para pôr os jovens e as crianças a pintar, a fazer jogos, entre diversas iniciativas. Também tomavam posição sobre o que acontecia no concelho. Na defesa do Serviço Nacional de Saúde criaram-se parcerias muito engraçadas na altura, porque não existia nada de nada. Até a exigência de ginecologistas para os centros de saúde, que se foram conseguindo, e entretanto se perderam.
Em 1974 ainda estávamos naquela fase em que as mulheres não usavam nada para prevenir a gravidez. Portanto, o que acontecesse, acontecia, se engravidava ou não engravidava. Se engravidava N vezes, as que já não queriam ter mais filhos faziam o aborto clandestino, que depois corria mal, pondo em risco de vida as mulheres. O MDM teve um papel fundamental até se conseguir o direito ao aborto sem penalização. Eu não conhecia o trabalho desenvolvido a nível nacional pelo Movimento Democrático de Mulheres, não sei se foi feito em muitos núcleos. Mas na Marinha tenho ideia de realmente se ter um empenhamento muito forte, em que se conseguia parcerias com médicas, com enfermeiras e depois ir junto das instituições exigir que as necessidades de determinados serviços se concretizassem e as mulheres fossem tratadas convenientemente. E não pertencendo à direção do Movimento Democrático de Mulheres, também participava nas iniciativas que levavam à prática.
Já nos anos 2000, as amigas que pertenciam ao núcleo da Marinha ficaram mais envelhecidas, porque também são eleitas no Congresso Nacional do MDM representantes do distrito – não é por concelho, é por distrito –, também sou eleita para a direção do Movimento Democrático de Mulheres. Isto para dizer que também passei a ter mais responsabilidades e, sendo um acumular de tarefas que nos tira muito do nosso tempo, depois olhamos para trás e fica assim um sentimento “mas eu poderia ter ido passear acolá, podia ter ido à festa não sei de onde e não fui”, porque para participar numa atividade, não faremos outra. Mas isso não me aflige nem penso assim “devia ter feito e não fiz”. Não. Acho que o que fiz, fiz, e enriqueceu-me, porque falando de forma ampla, ter atividades politicas faz-nos perceber a vida de forma diferente e com uma perspetiva mais alargada. Também acho que dei o meu contributo, dentro do que me foi possível, não o desejável, nem o que seria necessário, mas contribuí para que o coletivo no seu todo também melhorasse um bocadinho a vida.
Infelizmente, temos uma situação política que não é de agora, já há uns anos a esta parte não é o que nós pretendíamos, e perdemos alguns direitos conquistados com o 25 de abril. Mas se não fosse a luta, esta força, a teimosia e persistência dos trabalhadores, teríamos perdido muito mais. Acho, mesmo assim, que é um esforço que tem sido feito com bons resultados.
P: Então e neste período desde 2005, em que tem estado a tempo inteiro no sindicato, quais foram as principais lutas que teve que organizar?
Etelvina Rosa: Isso só desfolhando o rol, que as lutas são tantas... Desde 2005, para já não falar nas anteriores, até 2008 ainda existiam aí algumas empresas: a Marividros, a Canividro, a Dâmaso, que era uma empresa em Vieira de Leiria, que produzia as peças mais utilitárias, era na altura o polo de subsistência dos trabalhadores da freguesia da Vieira de Leiria e que de um momento para o outro se viram confrontados com o seu encerramento. Na Dâmaso, assim como outras na Marinha Grande.
Quando hoje, nalgumas empresas, se declara a insolvência, apesar do desânimo dos trabalhadores, estes não lutam, encerrou e fica assim. No nosso concelho realmente houve sempre uma forte resistência ao encerramento das firmas. Por exemplo, estou-me a lembrar que a Dâmaso encerra em 2006 ou 2007 e são outra vez N idas ao Governo Civil, que existia na época, N idas à Assembleia da República, ao Presidente da República. Tentar-se, por tudo e mais alguma coisa, denunciar e procurar alternativas ao encerramento, até o sindicato contactar com alguns empresários: “tens essa fábrica, não queres ficar com aquela também, para que os trabalhadores não fiquem desempregados?”
São lutas que duram meses, têm um desgaste muito grande, depois consegue-se melhor ou pior, por vezes não se consegue ficar com os trabalhadores todos, mas consegue-se ficar com alguns. A Dâmaso acabou por ir mesmo para a insolvência e encerrar. A Marividros, salvo erro em 2008, entra em processo de insolvência, durante meses a fio. Isso é uma outra questão. As insolvências não só não são só porque a empresa já não dá lucro e fecha, as entidades patronais programam que se fecharem e ficarem com as maquinarias, depois abrem ali ao lado, até arranjam uma maneira e abrem no mesmo sítio com outra designação, mas com o mesmo tipo de produção. O fundo de garantia salarial, que existe desde há uns anitos a esta parte, nem sempre existiu e nem sempre teve a mesma dimensão e os trabalhadores, numa insolvência, por norma só vêm a receber uma parte dos créditos que lhe são devidos, por o que resta da massa insolvente ser um montante pequeno.
E então a experiência também nos foi dizendo que é decretada a insolvência, mas ficam os bens. Se os trabalhadores forem cada um para a sua casa à espera que se resolva, quando for para ser vendida a massa insolvente, ela não existe. Porque já foram não sei quantos camiões, carregaram durante a noite ou durante o fim de semana as máquinas e os materiais, apenas existem paredes. E, por exemplo, na Marividros tivemos cinco ou seis meses em que os trabalhadores se revezavam por turnos e estavam dia e noite na empresa, um sítio um bocado ermo, mas guardaram os bens, 24 sobre 24 horas. Claro que tem de ser coordenado com os dirigentes sindicais. Obriga a que os dirigentes sindicais não digam: “Vocês têm que ficar aí” – e os próprios não aparecem. Portanto, tínhamos de nos revezar também, pelo menos um da direção por turno, para estar com os trabalhadores, dando a coragem e a esperança necessária.
Era preciso levar umas sandes, uns sumos, umas águas, até o tribunal decidir sobre o processo. A fábrica manteve o seu recheio e foi vendida totalmente equipada (neste caso, os trabalhadores recebem o total dos valores em divida).
São dois exemplos do que eu estava a referir, das lutas que se fazem deste tipo, porque também nós, quando estamos na direção, o sindicato não é estanque, só o STIV e os seus sócios. Pertencemos ao Movimento Sindical Unitário, à CGTP, temos de ter as ligações às uniões dos Sindicatos, à federação e à própria central sindical, porque tem de existir coordenação. Portanto, há uma série de envolventes que se complementam pelo mesmo bem, mas que nos consome algum tempo, porque as reuniões não são na sede do nosso sindicato, temos de nos dividir.
Mas, já agora, quando estava aqui a falar nesta questão das empresas, estava-me a lembrar de uma parte, que foi fundamental, para o bem e para o mal, e me enriqueceu pessoalmente, embora seja mau o que aconteceu no concreto, que é esta passagem de quando o patrão Carlos Antero, até ao fecho parcial. Porque, como a M. P. Roldão ficou com outro patrão, passou a ser Mandata, uma filha enteada. É que o vidro tem esta condição específica: enquanto se tiver uma empresa de moldes, seja num dia de greve, seja num encerramento, desligou-se a máquina, a máquina ficou parada, está tudo em segurança, fica tudo normal.
As fábricas de vidro têm um forno ou mais. No forno a tanque, se houver uma falha de luz ou uma falha de gás, o vidro solidifica, é como se fosse esta casa cheia de vidro até aqui de composição que, estando quente, está sempre líquida. Mas se houver uma falha de gás ou de energia sem ter um gerador que atue logo, solidifica e já não se pode fazer mais nada. Em finais de 1993, inícios de 1994, ficámos outra vez sem patrão, porque não tinha condições para pagar aos trabalhadores e acabou por abandonar a M.P.R. em dezembro, mais um Natal. Foram uns natais e passagem de ano muito jeitosos.
O que é que os trabalhadores decidiram, sempre em coordenação com os dirigentes do sindicato vidreiro, claro, não poderia ser de outra forma (era impossível levar a luta a bom porto se não fosse assim)? Como não queríamos que o forno encerrasse, porque se o forno fosse desligado então é que aí já não teríamos ninguém interessado em ficar com a empresa, fizemos uma autogestão meia manhosa, mas foi uma autogestão. Porquê? Porque os patrões abandonaram, mas todas as transações de forma legal estavam em nome deles e dependentes da sua assinatura. E então o que é que os trabalhadores decidiram? Não é dizer eles inventaram estar doentes, não é verdade, porque quem fica com salários em atraso não fica bem psicologicamente, nem de saúde. E então, essencialmente, quem era casal, o que estava pior fisicamente ia para a baixa e o outro ficava a trabalhar. Surgiu a ideia, que os trabalhadores aprovaram e decidiram concretizar.
Iam produzindo peças para alguns clientes e até a chamada jarra da solidariedade, que correu o país inteiro, e criámos uma gestão paralela, digamos assim, ou seja, fabricávamos peças que vendíamos. Tínhamos de receber em dinheiro para não passar nada pelos bancos, porque ainda por cima havia dívidas, o dinheiro se entrasse na conta bancária ficava retido. Quando ficámos sem os gestores, a empresa tinha uma carteira de encomendas que ainda hoje me dói, para o estrangeiro, porque os clientes ficaram sem as peças e normalmente até adiantavam o pagamento de meia encomenda e alguns clientes ficaram sem elas.
Os trabalhadores a produzir para o estrangeiro deixaram de ter condições de realizar. Passámos a produzir para empresas pequenas, peças para os candeeiros e outras que tínhamos condições de fabricar, acabavam-se, vendiam-se, recebiam-se, para termos dinheiro para manter o forno a laborar e para a composição. Não era para nós, foi para conseguirmos este circuito, sempre naquela esperança que aparecesse uma entidade que, entretanto, ficasse com a fábrica.
E tinha de ser com a empresa a laborar, porque se o forno estivesse encerrado não era possível, porque depois de estar um vidro solidificado, só à picareta se retira os blocos de vidro. E ainda durou seis meses, em que nós de manhã trabalhávamos, à tarde fazíamos manifestações de rua, que foi quando a polícia também veio dar porrada em todos, fossem manifestantes ou não. Quando sabíamos que havia uma feira numa localidade do distrito, lá íamos nós com uma banquinha e com as pecinhas para venda, para conseguir manter o forno ligado. Toda esta vivência obriga-nos a ter um espírito solidário diferente do comum dos trabalhadores.
P: E conte-me lá melhor como é que foi essa questão da jarra da solidariedade. Foi nesse período que produziram essa peça?
Etelvina Rosa: Sim, porque quando há situações em que os trabalhadores desenvolvem lutas mais visíveis, ao nível dos sindicatos cria-se também um elo solidário. E na altura pensámos: se nós conseguíssemos fazer uma peça que diversos núcleos comprassem, era mais uma ajuda que seria certa. Então os trabalhadores produziam, mas existia a dúvida se teria venda ou não. E realmente funcionou. Eu agora não faço ideia de quantos milhares de peças se fizeram, mas ainda foram uns milhares largos, de uma jarra simples no fabrico, como se fosse um copo grande, com uma gravação dum trabalhador vidreiro. A jarra foi para muitas localidades do país.
Era despachada pelos Correios, aqui mais perto entregávamos diretamente, claro, mas se pediam do Porto 100 ou 200 jarras eram despachadas ou pela empresa ou pelos Correios, para realizarmos receita. Mas o dinheiro era fundamentalmente para manter o forno e comprar a composição que é necessária. Foi uma experiência única no país, a de se trabalhar sem receber salário para manter os postos de trabalho. Pelo menos não tenho conhecimento desta forma de luta noutras empresas.
Sei que há muitas, ainda agora nos têxteis e muitas outras, para o Norte, em que se conseguiu frutos. Mas esta de trabalhar de forma gratuita e conciliar o fabrico das peças e a luta para ir a bom porto realmente creio que é única. E realmente conseguiu-se os objetivos. Quando se foi para esta situação, tínhamos cerca de 300 trabalhadores. E alguns não aguentaram, porque nem todos se aguentam, sem ter uma subsistência diária. Alguns trabalhadores foram arranjando um emprego aqui ou acolá. Mas quando conseguimos a tal nova pessoa que ficasse com a empresa, só ficou com 144 ou 146. Mesmo assim, foi melhor manter aqueles postos de trabalho do que encerrar. Infelizmente, a empresa – à data Mandata – também não durou muito e o senhor que ficou com ela passado uns anitos faleceu prematuramente. Mas acho que é uma luta marcante que deve ficar para a história.
P: E houve outros movimentos de solidariedade semelhantes com casos de empresas que estivessem para fechar assim à escala nacional? Ou seja, pelo que eu tenho estado a perceber, a Etelvina acompanhou outros encerramentos. Houve outros movimentos assim parecidos?
Etelvina Rosa: Sim, terá havido e participei em diversas, agora não me lembro de quais, em que terei participado.
P: Esse tipo de lutas foram lutas marcantes, as lutas para salvar as empresas, fecharam muitas fábricas aqui nestes últimos 40 anos?
Etelvina Rosa: Sim, nos últimos 30 anos fecharam mesmo muitas e depois, se quiser que lhe mande as que fecharam de 2000 para cá – mesmo assim, ainda foram muitas, ainda foi a Ivima, a Manuel Pereira Roldão, a Dâmaso, a Marividros, a Canividro, só no Concelho da Marinha, N empresas, praticamente todas de fabrico manual que encerraram. No concelho, nós podemos dizer que existem vidreiros, porque temos as fábricas de fabrico automático, a que chamamos garrafeiras, mas nem todas fabricam só garrafas, algumas até fizeram um bom dinheiro no ano de 2020, com a pandemia, porque estavam mais vocacionadas para o fabrico de garrafas de azeite, ou boiões dos iogurtes, frascos para o feijão, grão, como aumentou a compra do enlatado, do feijão, do grão, entre outros. As empresas que estavam nesse mercado tiveram encomendas que não conseguiram satisfazer, como se estava em casa, não existiam restaurantes a funcionar, tínhamos de comprar os produtos para fazer o comer em casa. Ou seja, estas empresas não tiveram problemas, mas é na área do fabrico automático que existem no concelho da Marinha Grande algumas empresas.
O sindicato abrange as empresas de vidro a nível nacional, existem a que chamamos transformadores de chapa de vidro, que são as empresas que fazem janelas e portas. Ou seja, é tudo o que abrange o vidro nacional. Agora temos aquela desgraça da Sekurit em Santa Iria da Azóia. Em 2009 fecharam o único forno que que fazia a chapa de vidro e ficaram só com a transformação, não só desta chapa de vidro, mas do vidro automóvel, que também era a única empresa no país que transformava o vidro para qualquer carro, carrinha, ou autocarro.
A direção da empresa resolveu encerrá-la, é mesmo um crime nacional que foi cometido e a forma como foi tratado. Deixaram os trabalhadores ir de férias e no dia que regressam de férias dizem: “têm aqui uma carta em como vão terminar os postos de trabalhos.” Portugal fica assim sem empresa de transformação de chapa de vidro. O sindicato tem dirigentes que trabalham nas empresas de colocação de vidros e não têm matéria-prima agora para satisfazer os clientes. Um dizia: “eu estou a ficar sem trabalho porque o meu patrão tem casas para colocar os vidros, mas não tem o vidro e o que consegue tem o dobro do preço.” Ele até dizia o que era a 12 euros o metro quadrado já está a 20.
P: O que é que o sindicato fez em relação a essa questão?
Etelvina Rosa: O sindicato foi com os trabalhadores reunir com o Governo para evitar que fosse assim, para que o Governo tomasse medidas imediatas. Estivemos em N reuniões com o Secretário de Estado, que até me pareceu bastante empenhado, só que, entendo eu, não foi por acaso que o Grupo Saint Gobain agiu assim de um momento para o outro. Porque entre o dia 25 de agosto – foi quando os trabalhadores receberam a notícia – e, por exemplo, 25 de setembro, foi um mês com os fins de semana que dá poucos dias úteis. Para os trabalhadores é um drama: como é que vão resolver a vida? Mas para um governo tomar posição, mesmo que esteja empenhado – e muitas vezes não está, é a minha opinião –, os dias úteis são curtíssimos. Até nos davam dicas de que se conseguiria manter a empresa com outra produção que não a de vidro, diziam ter alguns contactos que iriam realizar.
Entretanto, também se criou a situação política que está, estamos a insistir com reuniões. Ainda agora, antes de vir, estava a nossa federação a insistir com mais um pedido de reunião ao ministério, mas os secretários de Estado também estão naquela fase em que não sabem se ficam se vão, estão a deixar andar. Os trabalhadores continuam com a luta de rua, com denúncias públicas, do crime que está a ser cometido. Terá uma decisão em concreto que se consegue resolver a bem dos trabalhadores ou não.
P: Diga-me uma coisa, é que a Marinha Grande é uma terra com uma tradição de luta quase mítica, desde o 18 de janeiro de 1934, uma aura. Como é que isso se vive no meio sindical? Esta questão da memória, da tradição de luta, é algo que marca de uma forma específica o movimento sindical, aqui no contexto da Marinha Grande?
Etelvina Rosa: O 18 de Janeiro não vem por acaso. É que os miúdos iam trabalhar aos sete, oito anos. Tanto quanto eu conheço, as raparigas antes dos 12 anos não foram trabalhar, isto é mesmo assim, eu ainda conheci pessoas que contavam a história de levarem os miúdos ao colo até à fábrica. As mães que eram rurais trabalhavam no campo, mas como tinham muitos filhos e precisavam de sobreviver, com sete, oito anos levavam os miúdos para o trabalho. Muitos não aprenderam a ler no tempo dos meus pais. A Marinha, mesmo assim, era onde se aprendia a ler e a escrever, mas se calhar 80% eram rapazes. É que para as raparigas achava-se que não havia necessidade. Os pais dos rapazes ainda os punham a aprender a fazer o nome, mas iam para a fábrica muito novos. Ou seja, quando se chegava aos 16 anos a maturidade da pessoa – atrevo-me a dizer – que era maior que hoje, quando se tem quase 30.
Porque eu nem consigo pôr-me no lugar dos pais em 1934. Hoje, com uma criança de oito anos, andamos com ela ao colo e “coitadinho do menino”. Eu não consigo bem pôr-me na pele do que era uma criança de oito anos a fazer um trabalho tão duro. Porque não ia fazer um trabalhito qualquer, ia fazer o trabalho a que chamamos de fechar o molde, um trabalho extremamente duro, com moldes de madeira maiores que a criança. E, pela vida rude que todos levavam, o adulto que estava ali também não poupava. “Estás aqui, tens que fazer e se não fizeres levas uma lambadazinha que é para ver se amanhã já fazes.” Eu estou a ser muito dura e crua, mas era mesmo assim. Então havia aqui toda uma vivência em que eram muito adultos e tanto é que se casavam logo aos 18 anos e começavam a ter filhos.
Era uma vivência muito diferente da dos dias de hoje, pode-se dizer assim, e existia uma organização política – temos que dar o nome às coisas –, houve uma organização partidária que conseguiu dar alguns nós em termos organizativos para concretizar o 18 de janeiro. Porque até foi considerado um polo na Marinha Grande, mas foi um movimento a nível nacional, que dizem chamado de anarco-sindicalismo. Mas teve tudo a ver, no meu entender, que não tenho nada a ver com o historiador, com a vivência de trabalho duro e mal pago desde muito novos.
Como naquele tempo não havia na mesma empresa dois fornos, em que se um parar para arranjo fica outro a funcionar, só existia um e quando parava para arranjo estavam meses sem forno, porque têm duração curta. E os trabalhadores, qual subsídio de desemprego? Não trabalhas, não há dinheiro. Quando houver forno voltas outra vez. É por isso que algumas estradas da mata foram feitas por vidreiros, mas outros nem isso tinham para sobreviver.
Eu acho que foi assim que se criou, na Marinha, uma raiz de classe operária e o sentimento de que tinham que ser unidos e lutarem pelos seus direitos, pela sua liberdade e dar um pontapé ao sistema fascista. O Salazar, a repressão, o decreto do governo para controlar os sindicatos, retirar o direito à greve, foi todo um despoletar de situações. E ficaram as raízes para o futuro, porque existia muito este sentimento de classe.
E não é inocente que, no pós-25 de Abril, a parte mais à direita da sociedade tenha tentado sempre dividir esse elo operário. Tanto que não é inocente, não serão todas as empresas, mas agora quase todas, não é o patrão e o trabalhador, é o patrão e o “colaborador”. Não é inocente. Até parece muito bonito. Porque colaborar, por exemplo colaborei com MDM sim, mas não estou a colaborar com o meu patrão, estou a vender a minha força de trabalho. É isso e o criar prémios de tudo mais sei lá o quê, há empresas que têm alguns 10 prémios, de produtividade, de performance e muitos outros, em que fazemos a mesma coisa, mas cada um tem um prémio diferente, porque ele é mais bonito ou pinta o cabelo da cor azul.
É tudo um sistema muito complicado e não se perdeu mesmo assim ainda as raízes operárias e o sentido de classe, mas hoje já não é a mesma coisa que era há 40 anos, já não digo há 50. Porque foi fomentado o individualismo. Agora acho que os trabalhadores neste momento também já estão a ter uma postura diferente e a média etária entre os 30 e os 40, até há uns anos achava que se estava bem e ia-se andando, mas agora estão a perceber que não têm futuro na vida se não se puserem à vida pela luta, pela sua própria vida, não é só pelo emprego. Porque há hoje empresas que o que fazem é contratar uma prestadora de serviço para fazer um trabalho qualificado. Nem é para o trabalhador, que não tem futuro, não sabe se está ali um dia, um mês ou um ano, e as próprias empresas têm de começar a perceber que não vão ter trabalhadores qualificados no futuro se continuarem com esta linha.
Se me disserem que se for para varrer esta casa, tanto varro eu ou senhor engenheiro, é a mesma coisa. Mas se tiver de trabalhar o vidro manual, esse então tem que ter muitos anos para se lá chegar, mas mesmo para tomar conta de uma máquina que produz vidro tem que ter uns anitos para saber os chamados truques da máquina e se o vidro está mais grosso ou mais fino ou se sai com bolha ou sai com cordas. Isto tem muito que se lhe diga, e acho que ou os empresários mudam mentalidades ou também eles não vão ficar bem.
P: E outra questão em relação à identidade da Marinha Grande, este papel das mulheres e até a importância que o MDM aqui teve. Acha que também tem a ver com essa consciência de classe? Ou seja, o facto de as mulheres também estarem juntas nas fábricas e terem uma participação nas lutas sindicais, por exemplo, acha que isso também faz que haja uma maior mobilização das mulheres aqui na Marinha Grande?
Etelvina Rosa: Sim, isso é daquelas coisas que, por acaso agora, há dois ou três anos para cá, se tem falado mais no feminino e das lutas das mulheres, mas elas ficaram durante muitos anos esquecidas e era quase como se não existissem, o que não é verdade. E falando só do concelho da Marinha Grande, é o que mais conheço, ainda sobrevivem algumas que até pelas prisões passaram.
Mas eu ainda agora falava do difícil trabalho que era o das mulheres da roça, já da minha geração. Mas indo 10 anitos atrás, ou seja, se for aos anos 60 e já vinha de mais tarde, mas pronto reportando-nos agora a estas épocas dos anos 60 ao final dos anos 70, havia aqui uma outra profissão que era só para mulheres, extremamente difícil, é daquelas que eu também tenho dificuldade em perceber como é que as mulheres aguentavam aquele trabalho um ano inteiro: as fábricas que, à data, produziam garrafões em vidro. Agora eu creio que já não se produzem no nosso país garrafões em vidro. Eram empalhados em palha de vime, não era o plástico que veio nos anos 80. E então, e existem fotos da altura em que as trabalhadoras estão com os vimes, com o garrafão e têm uma caixa de madeira atrás perto delas, com o filhote. O vime tem de ser demolhado para ficar com possibilidade de dobrar e de encaixar. Estamos a imaginar um garrafão que depois vai estreitecendo. O trabalho era pago à peça, ou seja, ainda há pouco tempo algumas mulheres diziam que eram 12 tostões por cada garrafão, referir que em maio de 1958 as empalhadeiras fizeram greve pelo aumento de mais dois tostões por cada garrafão e saíram vitoriosas.
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16 de novembro de 2021
P: Começando pelo registo de alguns dados biográficos. Podia-me dizer o seu nome todo e a sua data de nascimento?
Fernando Alves: Fernando da Conceição Alves e nasci em 1945.
P: Nasceu aqui na Marinha Grande?
Fernando Alves: Não, sou da Martingança, que é uma povoação aqui pertinho, que pertence ao concelho de Alcobaça.
P: E fez lá a escola?
Fernando Alves: Fiz a escola primária e vim para aqui para a Marinha Grande já com 16 anos. O meu pai era negociante e teve um AVC. Não recuperou e eu tive de deixar de estudar, tive que ir trabalhar. Porque naquele tempo não havia segurança social como há agora, e o meu pai não recebia nada. Bom, nós vivíamos todos dele. A minha irmã era professora. Naquele tempo havia as professoras regentes, que eram abaixo das professoras oficiais. E o meu irmão trabalhava numa fundação, era fundidor, mas o meu pai era a base da casa. Quando ele adoeceu, tivemos que vender bens que tínhamos, porque ele teve um ano internado em Coimbra numa clínica para ver se recuperava e tínhamos todos os meses de pagar uma conta. Chegou a uma altura que já não tínhamos dinheiro, vendemos as coisas, pinhais e tal, e já não tínhamos dinheiro. Depois, a minha irmã veio trabalhar para uma empresa aqui na Marinha, onde ganhava mais do que em professora e o meu irmão já trabalhava. O meu pai estava assim, por isso viemos para cá para ser mais fácil aos meus irmãos estarem no emprego.
P: E o senhor Fernando também veio trabalhar nessa altura?
Fernando Alves: Eu comecei a trabalhar com 13/14 anos, não tinha outra hipótese. Eu fui serralheiro de moldes. Primeiro vim para uma fundição de metais, depois para uma oficina de bicicletas e depois acabei a minha carreira numa fábrica de vidros.
P: O seu pai era?
Fernando Alves: O meu pai era negociante de madeiras. E pronto, ficámos assim porquê? Por isso é que às vezes as pessoas não compreendem o 25 de abril. Se soubessem, se tivessem vivido nessa altura compreendiam, porque nós não tínhamos segurança nenhuma, nem fundo de desemprego como há agora.
P: E casou-se aqui na Marinha Grande? O que é que a sua mulher fazia?
Fernando Alves: A minha esposa era filha de um vidreiro, mas como tinha muito bons resultados na escola, havia um organismo que pagava para irem para o liceu e ela conseguiu entrar. Depois foi também trabalhar para uma fábrica, para um escritório.
P: Também na indústria vidreira?
Fernando Alves: Não, nos plásticos. E trabalhou lá muitos anos até se reformar.
P: E tem filhos?
Fernando Alves: Tenho dois filhos.
P: E o que fazem?
Fernando Alves: Um é professor de educação física e o outro tem um bar, não quis estudar. O mais velho nunca quis estudar. Foi para aviação, foi para a tropa mais cedo para eu não obrigar a andar na escola. Andava chateado, tinha 17 anos e foi para aviação, para não ir estudar. Era muito habilidoso, foi eletricista, depois foi vendedor e mais tarde começou a dizer: Eu Não quero trabalhar para ninguém e montou um café.
P: Tem alguma região?
Fernando Alves: Tenho a religião tradicional. Embora eu apoie o Partido Comunista, não sou filiado nem nada. Mas sou de esquerda, estou mais chegado ali. Sou católico, só que não sou praticante, mas por tradição até sou católico, não tenho outra religião.
P: E no associativismo, quais foram as associações em que participou?
Fernando Alves: O associativismo foi uma coisa que nasceu quase comigo. O meu pai foi fundador de um clube lá na minha terra. Aliás era um clube que já estava morto, e ele mais outros reabilitaram aquilo. E eu habituei-me desde muito novito a ver lá por casa bolas de futebol, equipamentos. A minha mãe era também muito habilidosa na costura. O meu pai era guarda-redes e ela é que fazia as joalheiras, os calções e eu fui logo habituado a isso. Depois o meu pai era assinante do jornal do Benfica e eu tinha todas as semanas aquele jornal e lia aquilo e entusiasmei-me com isso. Tinha 12 anos comecei logo ali a juntar um grupo, juntei um grupo de miúdos para comprarmos uma bola de futebol, umas camisolas, para fazermos um clube e nunca mais parei. Depois vim aqui para a Marinha Grande aos 16 anos e para aí ao já aos 19 anos, frequentávamos um café de uns senhores muito simpáticos, que que eram os donos, e começámos a pensar: Vamos fazer aqui um clube e organizarmos um clube. De maneira que depois estive por aqui até aos 22 anos. Depois fui mobilizado, fui para o ultramar. É claro, tinha que continuar no ultramar lá no meu grupo, juntei as pessoas e fiz um clube de futebol, que era o que se fazia lá para jogar contra as outras companhias que apareciam, que andavam no Mato. Depois, quando vim, fui para um clube aqui da Marinha Grande, para ser jogador de futebol.
P: Com quantos anos?
Fernando Alves: Com 25 anos, eu estive lá dos 23 aos 25 anos. Mas nesse clube de futebol, que é o Sport Lisboa e Marinha, era um dos mais conhecidos na altura, aí eu tinha um primo que não me conhecia, porque a família da minha mãe é daqui da Marinha Grande e tenho muitos primos que ainda hoje não me conhecem ou eu não os conheço a eles. E então esse primo quando soube que era meu primo: Tu não vais nada jogar, vais-me ajudar. Mas porque ele era o homem do desporto. Como eu sou agora, era ele. Vais-me ajudar, ficas aqui em diretor. E pronto nunca mais saí dessas coisas. A minha atividade no associativismo é mais no desporto e na política, eu estive 22 anos na Assembleia Municipal e fui 4 anos secretário da Junta de Freguesia. Foi um mandato agora a minha última intervenção. E pronto, agora estou num clube de atletismo que eu fundei há 26 anos.
P: O que o motivou a dedicar tanto da sua vida à participação associativa?
Fernando Alves: Sabe que isto é viciante. Eu agora tenho 76 anos e ando todos os anos a dizer, porque eu sou dirigente da Associação Distrital de Atletismo, ando sempre a dizer que é o último ano, é o último ano, mas depois dá-me pena e também sei que sou um influenciador e tenho medo de que quando eu parar as coisas acabem. Ainda ontem estava numa reunião e disseram: o senhor Fernando vai à Câmara e eu disse: Não, agora não vou eu, vão vocês, vão os mais novos, porque vocês é que têm de dar seguimento a isto – tenho de os entusiasmar, não é? – Eu já estou a passar de moda, agora vocês é que têm de continuar. Isto é como o Carlos [presidente da Associação Cultural e Recreativa da Comeira], isto é viciante, temos pena de deixar as coisas morrer e penso que é isso que me leva a não sair.
Este fim-de-semana vou para Évora, para uma ação de reciclagem digamos assim de juízes, porque também ao mesmo tempo sou juiz de atletismo, sou árbitro e a minha mulher claro. Coitada, teve que entrar porque eu nunca estava em casa. Um dia convidaram-na quando foi aqui a inauguração no Estádio da Marinha, da pista, que fui eu que também trouxe a pista para cá. E os meus colegas: Epá, Fernando, precisamos de uma pessoa para estar ali na entrada a fazer a inscrição dos atletas, diz aí à tua mulher se ela pode dar aqui uma ajuda. E eu disse-lhe e depois convenceram-na, tiveram de volta dela. Às vezes ao domingo, no Verão por exemplo, eu saía com o clube, íamos para longe e ela ficava sozinha com os dois filhos. Ia para a praia. Depois eu dizia-lhe que ia lá ter, mas já chegava tarde, já não me apetecia, ficava em casa. Era uma guerra.
P: A sua mulher foi consigo, acabou por se envolver, há outros casos?
Fernando Alves: Há outros casos também de colegas meus em que as mulheres estão envolvidas. É uma necessidade também, porque – eu não devia dizer isto que vocês ficam todas vaidosas – as mulheres são necessárias porque são mais aplicadas, têm mais atenção às coisas, são mais focadas. A minha mulher, por exemplo, já é mais do que eu no ajuizamento, já é juiz árbitro, porque se dedicou àquilo, estudou e tal. A minha e outras senhoras que estão lá. A chefe dos juízes aqui em Leiria é uma senhora, por exemplo, e por aí pelo país fora há outras com o mesmo cargo.
P: Eu gostava de recuar outra vez ao período mais recuado. Então começou logo aos 12 anos...
Fernando Alves: Comecei aos 12 anos e de uma maneira engraçada, porque sabe, agora os miúdos, nós vamos aí à loja dos chineses ou ao continente e há bolas de futebol baratas. Nós nesse tempo não tínhamos. Nós fazíamos bolas com meias. A minha mãe de vez em quando andava a dar-me umas palmadas, agora já não são palmadas, porque traumatiza os miúdos, mas antes...Eu não me sinto nada traumatizado e levei algumas. Porque eu roubava-lhe as meias, aquelas meias altas que se usavam, não eram meias de vidro, eram daquele tecido mais grosso. No Inverno as senhoras usavam aquelas meias. Como eram grandes, dava para fazer uma bola maior. E nós aí, então, andámos à procura de ferro velho, bocados de ferro e chumbo, para vendermos a um senhor la da terra que comprava, para comprarmos uma bola de borracha, porque a bola de borracha era um tesouro. E começámos por ali, mas assim desta maneira. Porque também não tínhamos ninguém que nos ajudasse como agora há clubes e há esta coisa do desporto para os jovens. Nesse tempo não havia nada, nem nas escolas, nem nada.
Depois eu vim-me embora e ficaram lá os outros miúdos. Eu vim para aqui para a Marinha Grande e procurei logo onde é que havia alguma coisa onde eu me pudesse entreter e isto já era mais evoluído. E então formamos aquele clube de futebol que lhe disse há pouco. Depois, a partir daí fiquei agarrado àquilo. Depois nesse clube havia um senhor que andava em Lisboa a estudar e trouxe a moda do vólei e fizemos uma equipa de vólei. Depois tínhamos ténis de mesa, a minha mulher também foi jogadora de ténis mesa.
P: Isso foi ainda antes do 25 de abril?
Fernando Alves: Isto foi muito antes do 25 de abril. Tive de assinar um papel para ser diretor, em como estava de acordo com a constituição de 1933, porque não havia partidos políticos nem podíamos dizer que as coisas estavam mal. Isto foi quando estive no clube do meu primo, em 1969-70. A primeira vez ainda foi assim, depois isso acabou.
Como era o mundo associativo no período da ditadura?
Fernando Alves: O mundo associativo era tratado com muito cuidado. Esse meu primo já era do contra e então nós, para falarmos, tínhamos de estar a ver quem é que estava por ali, não se falava à vontade, não podíamos dizer coisas que agora são banais, não se podia dizer: Epá ganha-se tão pouco, isto está tão mau, a vida... Depois, mais tarde, viemos a saber que tínhamos lá um senhor que era da PIDE...
Nesse tempo, as coisas não eram como agora, não havia as condições que hoje há. Nem toda a gente tinha automóvel para as deslocações, era um sarilho, tínhamos que andar a pedir a pessoas que já viviam um bocadinho melhor: Epá, no domingo podes ir com os rapazes jogar não sei onde, aqui e ali? Era muito mais difícil que agora, para termos equipamentos, não tínhamos dinheiro... Era preciso ter dedicação e gostar para se conseguir fazer alguma coisa.
P: A Marinha Grande é uma terra com uma grande tradição operária. Qual era a relação entre esse movimento clubístico e o movimento operário?
Fernando Alves: Muitas das coletividades eram realmente os locais onde as pessoas iam para poderem falar à vontade, para falarem da vida, das dificuldades... Havia um clube, e há, que era o Sport Operário Marinhense, que foi uma escola, que teve pessoas políticas, pessoas já com inclinações para a esquerda, onde se aprendia a falar francês e inglês, onde já havia volley, ténis de mesa, etc. Arranjavam maneira de juntar as pessoas ali e depois de as encaminharem, de as instruírem. Foram escolas muito boas para o povo, as coletividades.
P: E não tiveram problemas com a PIDE?
Fernando Alves: Sempre, de vez em quando lá aparecia a PIDE... No Operário, por exemplo, já havia uma biblioteca nesse tempo, onde os livros eram retirados, eram proibidos. Porque assim como havia pessoas de esquerda aqui, também havia informadores.
P: E durante as greves, havia apoio aos grevistas por parte das associações?
Fernando Alves: Havia o possível, mas não tenho conhecimento de haver assim um apoio... Apoio havia era durante a vida toda, durante a vida normal, não é de cada um. A vida de todos os dias. Procuravam trazer as pessoas para a coletividade e depois, aos poucos iam-nos ensinando e comparando a nossa vida com a vida de alguns países estrangeiros. Havia pessoas já com uma instrução superior que eram dirigentes, que andavam sempre vigiados, mas conseguiam passar por entre os pingos da chuva. E realmente as coletividades foram importantíssimas.
P: E havia coletividades que apoiavam os sócios com auxílios mútuos, por exemplo para pagar os funerais?
Fernando Alves: Não tenho informação disso, naquelas que eu conheço. Havia era pessoas particulares que ajudavam e pertenciam às coletividades. Para mim o operário era o foco principal dessa época nesse aspecto.
P: E depois, quando foi o 25 de abril, quais é que foram as grandes transformações? Como é que se viveu aquele período imediatamente a seguir à revolução? Como é que isso foi vivido no meio associativo?
Fernando Alves: Foi vivido com muita alegria e com movimentos, começaram a aparecer as bibliotecas já à vontade, as pessoas já podiam falar, já não havia medo de ninguém. Foi muito bom, a formação começou a aparecer, as modalidades desportivas começaram a diversificar-se, o atletismo, o desporto à porta de casa, o desporto a trazer muita gente, muitos jovens, muito miúdo, foi um tempo de alegria, foi um tempo fantástico. Também muitas greves...alguma confusão.
P: E houve algum projeto pessoal que tenha concretizado nessa altura?
Fernando Alves: Antes do 25 de abril fazia parte de um grupo que se juntava e tinha reuniões num colégio que era liderado por um padre. Ele não sabia que era isso que se passava, foi pedido por um rapaz da JOC, que mais tarde foi preso, já depois do 25 de Abril, porque era do PRP e fez para aí uns assaltos e tal. Ele ia às fábricas, ia às oficinas onde nós trabalhávamos e ia ver as condições de trabalho. Depois ao sábado fazíamos uma reunião à tarde e cada um dizia: Epá, lá na minha fábrica falta isto, falta aquilo. Depois discutíamos, fazíamos grupos, juntávamo-nos todos para as conclusões. E é engraçado que depois passado um tempo, depois do 25 de Abril, foram presos por nós mesmo uns tipos que eram da PIDE e um deles era nosso colega lá. Quando fomos a ver, tínhamos todos o nome registado. Se não fosse o 25 de Abril tínhamos ido presos.
Depois isso deixou de ser necessário, começaram a aparecer os partidos políticos, o Partido Comunista, o Partido Socialista e eles próprios começaram a atrair pessoas, a fazer sessões de esclarecimento.
P: O senhor Fernando participou na JOC?
Fernando Alves: Eram pessoas da JOC, mas nós não sabíamos. Era da Igreja e a igreja católica, como sabe, alinhava com a situação anterior. E eu admirava-me porque esses rapazes eram da JOC, eram religiosos, e foram eles os grandes mentores destas coisas, destas revoltas do povo, das condições de trabalho, das condições de vida.
P: Como é que começou a participar?
Fernando Alves: Depois, por influência desse jovem, que era colega da minha esposa no trabalho, fui também do PRP, que era um partido assim esquerdista mesmo. Inclusivamente eu fui um bocado prejudicado na empresa porque era chefe e sabiam que eu era do PRP. A certa altura, o PRP tinha a ideia da terra queimada, era contra as eleições. E eu andei a distribuir papéis a dizer para não votarmos, uma altura que éramos contra a votação normal, contra as eleições. Nós queríamos que a revolução fosse feita pelo povo e que o povo é que tinha de mandar e tal... A partir daí, nos aumentos de ordenado, etc., passei a não ser igual aos outros...
Eu era muito dedicado, nessa altura já não era serralheiro, era chefe de uma fábrica de vidros e não tive cuidado. Era aquilo que eu queria, que eu ouvia que o povo merecia, porque mesmo na fábrica onde eu trabalhava ganhava-se muito mal e aquilo fazia-me confusão. E eu fui naquela doutrina e depois tramei-me, mas não estou nada arrependido. Só consegui sobreviver até à reforma porque as pessoas tinham dúvidas, porque eu era muito cumpridor. Eu não tinha um horário de trabalho fixo, entrava e saia à hora que queria, mas era o primeiro a chegar à fábrica, fazia cumprir tudo e dizia sempre aos meus colegas de esquerda que trabalhavam lá, porque eu ralhava com as pessoas, chamava a atenção. Eu dizia: Nós temos de ser os melhores, temos de dar o exemplo, para podemos depois falar e exigir. E eles pronto concordavam. E então o Patrão e os meus chefes, os meus chefes eram piores que o meu Patrão, o meu Patrão foi um homem fantástico, arranjavam maneira de dizer mal de mim ao Patrão, aqueles que estavam acima de mim, os intermédios. Tenho mais queixa deles do que do Patrão. O Patrão, quando deixavem que tivesse contato comigo, tudo o que eu lhe dizia ele aceitava.
P: Nessa altura, ainda antes do 25 de abril, as mulheres participavam no movimento associativo?
Fernando Alves: Muito pouco. Lembro-me de algumas que já na fase final, já muito próximo do 25 de abril, a minha mulher, por exemplo, foi uma delas. Eu era da direção do Sport Lisboa e Marinha, ela foi tesoureira, mas eram poucas.
P: Porque acha que era assim?
Fernando Alves: Sabe, naquele tempo...às vezes a minha mulher diz-me: É s machista, quando eu digo alguma coisa. Mas nós éramos mesmo machistas, porque nós...A minha mãe, a vida da minha mãe era estar em casa, não trabalhava, era fazer a comida, lavar a louça, limpar a roupa e não passeava. Não. O meu pai não a levava a lado nenhum. As mulheres eram para estar em casa, cuidar dos filhos...E nós fomos criados assim. Portanto, não me venham exigir que eu não seja um bocadinho machista às vezes porque eu fui assim educado. A minha mãe alguma vez queria que eu fizesse comida, por exemplo, ou que eu andasse lá ou que o meu pai entrasse na cozinha? Porque sabe que as senhoras, mesmo as senhoras, estavam de tal maneira educadas que a cozinha era delas. As mulheres: Aqui vocês não mandam nada, não entram aqui, era onde elas mandavam coitadas. Pronto, era o reino delas, não é? E nós ficávamos todos, os homens ficavam todos contentes. Era menos trabalho. Mas era assim, as mulheres eram um bocado criadas, digamos assim, eram as nossas sopeiras.
P: E acha que o movimento associativo ajudou a mudar essa situação?
Fernando Alves: Muito, ajudou muito, ajudou a mudar as mentalidades. Quando elas começaram a entrar no movimento associativo, começaram a ser reguilas, a exigir, a dizer: Nós também temos direitos e tal. Acho que sim. O movimento associativo foi muito importante nisso. Mesmo neste processo de mudança, foi muito importante. Porque as pessoas também começaram a conviver mais e a falar umas com as outras. Começaram a frequentar. As Mulheres não iam às coletividades. Quem ia eram os homens, para jogar as cartas e beber uns copos e as mulheres ficavam em casa. Pois, eu também sou do tempo em que as mulheres ao domingo (não havia cafés nas aldeias, mas aqui na Marinha já havia) não iam ao café. Eu ainda não levava a minha mulher ao café quando vim da tropa.
Há uma coisa engraçada, quando eu vim da tropa. À sexta-feira à noite, aqui na Marinha, era a noite dos casados. Os homens casados iam dar uma volta para passear e as mulheres ficavam em casa, não iam ao café. E a minha mulher começou a dizer: Eu também quero ir beber um café. E eu não queria, porque depois não estava mais mulher nenhuma, os meus colegas não levavam. Depois gozavam comigo, diziam: Epa, tu estás controlado e não sei quê. E então não queria que ela fosse. Ela um dia há noite agarrou nos filhos, eu tinha dois filhos, e foi para o café. Quando eu cheguei a casa, ela não estava em casa, e eu atei-lhe a porta. Quando ela chegou com os garotos tinha a porta fechada. Onde é que foste? Fui ao café com os meninos. Tu não foste também e tal? E eu depois comecei a pensar: Epá, a gaja tem razão. Mas eu não a queria deixar entrar. Dizia: Agora dormem na rua. E eu já me considerava uma pessoa evoluída, mas ainda estava naquela...e já foi depois do 25 de Abril. Não, não, foi antes, foi quando vim da tropa.
P: E o 25 de Abril, foi um foi um momento de rutura nesse aspeto?
Fernando Alves: Sim, sim, sim, claro, as mulheres conquistaram alguma liberdade. Acho que sim. Foi um momento de justiça. Foi quando se conseguiu começar a fazer alguma coisa em relação às diferenças.
Eu estava-lhe a dizer, os homens iam para a taberna jogar as cartas e depois em cada jogo bebiam um copo de vinho, cada um pagava um e não sei quê. E à tarde as mulheres levavam umas arrochadas, eles chegavam já com os copos. E lá na minha aldeia era hábito as mulheres coitadas levavam... E era engraçado porque não eram os filhos, eram as esposas. É que eles embirravam com as esposas, quando chegavam a casa com os copos. Isto é verdade!!!
P: E o movimento associativo tinha algum papel pedagógico nestas situações?
Fernando Alves: Nesta altura que eu estou a falar, o movimento associativo nas aldeias era zero. Por aqui já havia, mas lá nas aldeias não, nas zonas com menos gente até eram pessoas menos evoluídas. Não havia associativismo. Havia um clube de futebol, por exemplo. Lá na minha zona era a única coisa, mas era só para os homens.
P: E no período revolucionário, lembra-se das mulheres terem organizado alguma iniciativa especificamente para as mulheres?
Fernando Alves: Mais na parte do desporto, mas havia o Movimento Democrático das Mulheres, que se começou a formar. Havia algumas pessoas já com alguma formação política, até por verem os maridos andarem nisso, por terem sofrido por os maridos irem presos. Houve aqui muita gente, muitos operários que foram até para Cabo Verde, morreram lá alguns. Havia ainda, ainda no 25 de abril, o último preso político que foi aqui da Marinha, dos últimos digamos. Portanto, as mulheres tinham consciência de que alguma coisa não estava bem, que os maridos não faziam mal a ninguém porque é que iam presos?
P: E elas organizavam-se para se entreajudarem?
Fernando Alves: Sim, isso sim. Mas isso já vem do 18 de janeiro de 1934, as mulheres tiveram um papel importante nessa altura também.
P: O que se conta do 18 de janeiro?
Fernando Alves: Lembro-me das mulheres irem para o governo civil pedirem comer [emociona-se]. Isto já não é do meu tempo, mas vem à memória... O meu pai era padeiro nessa altura e teve um homem escondido na chaminé do forno quando foi o 18 de janeiro. As pessoas passaram muito mal. Quem me contou foi o meu pai e várias pessoas com quem eu me dava bem.
P: Quem lhe contou foi o seu pai?
Fernando Alves: Sim, o meu pai e várias pessoas com que eu me dava bem. Antes de eu ir para o Ultramar, eu falava muito com um senhor que era o [anonimizado], que era um tipo que esteve preso uma série de vezes, um político do Partido Comunista, um ativista. Andava sempre metido em coisas politicas, embora soubesse que mais dia menos dia o vinham buscar. Nós eramos um grupo de jovens de 18/19 anos e ele contava-nos o que é que passava na prisão, como é que o vinham buscar de noite... E depois também tive uma boa relação com o Dr. Vareda, que era uma pessoa emblemática.
Nós, na tropa, éramos um bocado injetados, que íamos defender o país, que aquilo era Portugal, que eram portugueses. E quando fui mesmo para o mato, para Mueda, comecei a ver as pessoas miseráveis, todos rotos, todos esfarrapados, não sabiam escrever, alguns não falavam português e comecei a pensar: Então isto é que é Portugal? Isto não é Portugal. Eu e alguns colegas meus falávamos sobre a maneira como eram tratados. Por exemplo, os africanos se não pagavam alguma coisa que iam buscar às cantinas, o administrador ia busca-los e batia-lhes como se faz às crianças, com uma régua no rabo. Coitados, eram bichos quase. E comecei a pensar que aquilo não era bem o que dizem, e a revoltar-me de ser obrigado a ir para lá defender uma coisa que não era Portugal e de ver pessoas tão mal tratadas. Não havia empregos, é evidente que não, lá nas aldeias do Mato não havia emprego. As pessoas eram selvagens. E comecei também a mudar de pensamento. Ainda quando quando fomos, ainda íamos com aquele orgulho de defender o país mas depois eu já levava daqui algumas ideias e quando cheguei lá vi que o senhor, o [anonimizado], estava a dizer a verdade, que aquilo que era um crime que andávamos a cometer, mas enfim pronto isso já são outras coisas.
P: Mas conte-nos mais sobre essa experiência do Ultramar?
Fernando Alves: Foi traumatizante porque para mim era impensável que houvesse pessoas ainda a viver como eles viviam, embora soubesse que para Trás-os-Montes não era muito melhor, que havia pessoas que andavam descalças lá no meio da neve, também viviam muito mal. Mas aquilo era o cúmulo, era o máximo, eram tratados como bichos. E eu até dizia a alguns soldados lá do meu pelotão, que que tratavam mal os pretos, Epá, o que é que vocês são mais do que esta gente? Vocês já viram que vocês também são miseráveis lá onde estão? Chamava-lhes muitas vezes a atenção. Porque as pessoas se sentiam superiores aos africanos, só porque eles eram pretos. Eles eram inteligentes. Quando nós íamos ao aldeamento e os víamos, faziam uma fogueira e estavam ali assim, com o olhar perdido, muito distante... Alguns deles eram guerrilheiros que depois, à noite, nos iam atacar. Eram pensadores, diziam umas frases engraçadas. Eles, por exemplo, tinham uma frase, quando andavam a trabalhar e quando chegava a hora de acabarem, quando tinha hora de acabar, deixavam tudo e depois os patrões, as pessoas diziam: Embora a trabalhar, vamos acabar o serviço. Patrão, serviço, nunca acaba, serviço nunca acaba, acaba este e começa outro, queriam eles dizer. O serviço nunca acaba, portanto, não interessava lá estarem a trabalhar mais depressa, porque depois vinha logo outro serviço e a compensação era pouca. Por exemplo, eu tinha colegas, eu nunca fui, vim de férias a Portugal que tinha-me nascido um filho quando eu lá estava ainda e eu tive que vir ver o garoto, E iam para o algodão, para as plantações de algodão, e faziam batota no peso do algodão. Eram incitados a pesar mal o algodão. E o algodão era pago mais barato às pessoas que plantavam que eram africanas. Era mais barato, pago a pior preço do que aos brancos. E era assim pronto, aquilo foi um bocado esquisito. É um bocado traumatizante.
Nós às vezes tínhamos, porque tínhamos que nos defender, não é? Eu, felizmente não matei ninguém, tive a sorte de estar num serviço que não ia para o mato. Mas sei de um rapaz aqui da Marinha, que é cego, que ficou cego lá, que foi comigo. Lembro-me perfeitamente dele dizer a primeira vez que ele alvejou um homem, ficou com desgosto louco. Estava numa emboscada e depois passou um grupo de apoiantes dos “terroristas”, com a comida para eles, porque eles tinham ajudas de outros africanos, e ele apontou. Epá, eu custou-me tanto, eu nem sei se matei um homem, nem se não. Passado dois dias, ele ficou cego com uma mina. Portanto, é claro, ele se não matasse, quem não matasse, morria. Eu vi que as pessoas da Marinha Grande que eram do contra, que tinham razões para ser contra a guerra.
P: Tomou conhecimento da forma como os africanos se organizavam?
Fernando Alves: Eu não sei se tinham associações, porque era tudo clandestino. Eles tinham era, isso eu sei, que eles tinham quarteis, tal qual como nós, organização militar, tal e qual como nós. Diziam-nos que eram grupos de bandoleiros, grupos de terroristas, mas eles tinham quartéis como nós no mato, lá da maneira deles, com palhotas, tinham bases militares com organização. Mais tarde, ainda há pouco tempo vi uma entrevista. Porque depois houve colegas meus que iam lá, no fim da Independência daquilo, iam lá ver as terras onde estiveram e encontraram um grupo, aquilo devia ter sido combinado antes, encontraram um grupo que nos fez uma emboscada onde este rapaz ficou cego. E eles diziam, nós éramos 200 e não sei quantos militares.... E depois estava lá um senhor que era o senhor do armazém de munições, que fornecia as coisas também: Eu não vos fiz mal, eu era do armazém, só dava as coisas que me pediam e tal e havia um: Eu estava com vocês lá em Mueda durante o dia e vinha dar informações depois de noite, lá pelo mato fora, ia dizer quando as colunas estavam para sair. Eu é que avisei quando essa coluna saiu.
Nós estranhávamos às vezes porque nos batuques, porque ao sábado à tarde havia sempre, o entretenimento deles eram os batuques. Andavam a dançar ali à volta com os tambores e nós víamos caras que não víamos durante a semana. Ao sábado andavam ali tantos homens, mas eles eram para nós todos iguais. Podiam ser pessoas de lá, mas estranhávamos porque nos parecia que aparecia mais gente, mais caras diferentes. Epá, parece que não vimos esta cara durante a semana.
Depois havia uma vantagem dos guerrilheiros, porque eles eram nossos empregados, tínhamos empregados africanos, maiatos, para nos levarem a roupa. Eles faziam aqueles serviços, encher os depósitos da água, varrer e limpar o aquartelamento, eles conheciam todos os locais. Houve casos em que faziam desenhos do quartel e mandavam para os guerrilheiros, segundo ouvi dizer.
Em Mueda, mesmo no Norte Moçambique, era uma base. Nós éramos atacados de vez em quando porque era uma base onde estava a engenharia. Os comandos era ali que faziam estadia antes de saírem para operações. Chamavam-lhe a capital da guerra.
P: Foi lá que ganhou consciência política?
Fernando Alves: Sim, foi lá para mim, foi uma escola também. Porque realmente aquilo era uma injustiça.
(...)
Eu estive 22 anos na APU e na CDU, como deputado municipal, e tinham-me muito respeito porque eu nas assembleias na parte política não intervinha muito, intervinha mais nas coisas aqui da terra que estavam mal, as ruas que estavam estragadas e tal. E todos os partidos me respeitavam. Mas um dia tive um azar, há coisas engraçadas. Enervei-me, passei-me por causa de um regulamento que fizeram. E eu que era muito calmo. Era muito bem considerado. Rasguei um documento, porque nós estávamos contra um regulamento que era o REMEU, de que fazia parte uma norma, uma nova lista de preços, por exemplo de fotocópias tiradas na Câmara. Aquilo era uma loucura. Enquanto uma fotocópia de um projeto que numa papelaria custava 50 cêntimos ou coisa assim lá eram 5 euros. Passaram aquilo para muito caro e nós éramos contra, o Partido Comunista. R depois : Epá, não pode ser, isso não pode ser. Depois aquilo foi para uma revisão e eu ia convencido que era para conversarmos sobre os preços e tal e afinal era só para emendar uma frase que estava no regulamento. Epá, eu fiquei danado. Eu não estou de acordo com isto e nem vou falar disto, com licença, e rasguei o documento. Caí logo, pronto, deixaram logo de me ter respeito e com razão.
Mas pronto aguentei esses 22 anos, não sendo filiado no Partido. Isto fica-me mal estar a dizer, mas eu era justo. Eu cheguei a votar ao contrário do meu grupo. Pedia desculpa, porque aqui na Marinha havia uma grande clivagem entre o Partido Comunista e o Partido Socialista. Eram muito rivais, era como o Benfica e o Sporting. E depois, às vezes, nas reuniões de preparação das assembleias: Mas isto é para votar contra. E eu: Epá, mas isto é bom para a Marinha. Epá, mas se fossem eles faziam assim também. Mas eu estou com vocês, porque vocês são melhores do que eles. Epá lá estás tu com a mania do perfeccionismo – mas aceitavam e pronto. E pronto e eu depois nas assembleias: Olhem, o mais que eu posso é abster-me, mas eu não voto contra isto. E nunca me penalizaram, por isso eu tenho muita consideração pelas pessoas do Partido, que ainda agora me nomearam mandatário da lista para a Câmara. Eu avisei logo quando me convidaram, olhem que eu não vou dizer mal dos outros.
P: Esta propensão para ir trabalhar nas autarquias, depois do 25 de abril é uma coisa que aconteceu com várias pessoas que participaram nas associações, acha que há um há uma ligação direta?
Fernando Alves: Há. Eu penso que os melhores políticos são pessoas que começaram no associativismo. Porque também no associativismo há o interesse de ajudar as pessoas. Por exemplo, agora eu e mais colegas meus somos treinadores de miúdos e o nosso interesse é que os miúdos sejam felizes, que ganhem provas, que se sintam bem. Nós não trabalhamos para nós. Também gostamos de ser reconhecidos, porque também é modéstia fingida se eu disser que não gosto de ser reconhecido, porque trabalho, porque me sacrifico para isso, mas é uma alegria quando vejo os miúdos terem êxito. E serem felizes. É emotivo e é isso que nos motiva. [emociona-se].
O jovens, é muito engraçado, quando ganham, quando vão pódio. Às vezes nem é preciso, às vezes até nos treinos, quando atingem aquilo para que estão a trabalhar ou que têm um resultado engraçado, eu noto logo no sorriso. De maneira que penso que também nos partidos políticos, também na política, as pessoas que levam a política a sério, que não andam lá só para ganharem dinheiro ou para serem famosos, penso que querem é fazer as pessoas felizes. Haver condições para viverem bem, terem a rua à porta deles bonita, terem o saneamento para viverem como deve ser. Penso que é para isso que deve ser a política e os políticos devem estar lá para isso. E eu tento, também enquanto estive na política, tentei ser assim.
P: Quando é que começou a participar no trabalho autárquico?
Fernando Alves: Eu sempre, a partir de 1974, ajudei a Câmara no aspeto desportivo. Quando precisavam diziam: Fernando dá aqui uma ajuda nisto ou naquilo. Mas não pertencia a nenhum partido. Em 1991, as pessoas que estavam na Câmara convidaram-me, disseram: Fernando, tens que vir, tens que fazer parte aqui da lista para a Assembleia Municipal. Pediram para eu fazer parte da lista e eu fiz. Aliás, eu em 1987 fui funcionário da autarquia. Pedi licença na empresa onde trabalhava, porque começou-se a desenvolver aí na Marinha Grande um projeto que era um projeto desportivo para os jovens das escolas, as “Jornadas Desportivas da Marinha Grande”. Eu tinha ouvido dizer que no Seixal havia as Olimpíadas do Seixal (ou as Seixalíadas) e comecei a ler coisas sobre aquilo e achei aquilo muito engraçado, o desenvolvimento que aquilo teve. E falei com um vereador da câmara muito antes disto, falei com vereador da Câmara e disse: Epá, devíamos de fazer aqui umas Olimpíadas como fazem no Seixal. E ele, que era professor primário, uma pessoa muito ligada a estas coisas também: Epá, vamos pensar nisso. Depois passado um ou dois anos, ele e um senhor que é o Francisco Duarte, parece-me que também vem aqui, que é um homem também muito ligado ao desporto e à política e à cultura, esse está mais na parte cultural, começou a implementar isso.
Depois, mais tarde, em 1987, pediram-me para eu ir trabalhar para lá, para o gabinete de desporto da Câmara. Eu ganhava na altura 66 contos na fábrica e ali só dava até 42 contos de ordenado, mas eu mesmo assim, como gostava muito daquilo, pedi uma licença de três meses na fábrica e fui para lá. O filho do meu patrão até dizia: Esse gajo vai de certeza para a União Soviética tirar algum curso. Mas depois a minha mulher também me começou a chamar a atenção, porque para eu lá ficar eles começaram a pagar-me horas extraordinárias. Eu levava aquilo muito a sério e depois tínhamos reuniões nos clubes durante a semana, às nove e meia da noite, para organizar coisas. Mas eu só podia ganhar aquilo enquanto estava a trabalhar. Se eu ficasse doente, se fosse para a baixa, ficava a ganhar menos, o subsídio de férias também. Tive que me ir embora. Fiquei a colaborar à mesma, mas saí. Mas fui funcionário público durante três meses.
P: Quando assumiu funções políticas, quais foram as funções que assumiu?
Fernando Alves: Era deputado da assembleia municipal e depois fui secretário da junta de 2013 a 2017.
P: E enquanto assumiu cargos políticos desenvolveu projetos relacionados com o associativismo?
Fernando Alves: Não era para isso que eu lá estava, mas também ajudei. Na altura que estive na Câmara, no 25 de Abril havia sempre uma atividade desportiva e um dia eu falei com o Presidente da Câmara: Epá, se nós fizemos aqui uma prova à noite, uma milha? Em termos de atletismo, havia só provas assim 10000 m, 7200 m. E tínhamos aqui um atleta na Marinha Grande, que tinha sido eu que que eu tinha treinado, que depois foi para os clubes grandes, para o Sporting. Epá, e se houvesse uma prova mais curta? E então inventei a milha, que depois passou a ser à noite e isso foi um êxito. O atleta era o Raimundo Santos, um rapaz que agora é funcionário da câmara também. Mas projetos desportivos participei mas não fiz assim um projeto camarário. Tínhamos as jornadas desportivas e depois o resto era o apoio da câmara, que dava muito apoio ao desporto. Ainda hoje dá.
P: Eu gostava de voltar outra vez às memórias, por exemplo do 18 de Janeiro e outros movimentos que houve antes até de ter nascido. Isso foi-lhe transmitido só pelo seu pai?
Fernando Alves: Não, por pessoas aqui da Marinha Grande, como já lhe disse. Pessoas que tinham participado ou que tinham participado noutras coisas, em várias, que eram de esquerda, daquelas pessoas com quem só falávamos em segredo.
Por exemplo, durante muitos anos, o 18 de Janeiro que agora é festejado à vontade, a maneira de festejar era diferente, algumas pessoas iam para o para o Pinhal, aí para uma zona da mata nacional e à meia-noite deitavam foguetes e tal. Depois a polícia vinha procurá-los, mas eles já tinham saído do local.... Era tudo feito em segredo. E eram essas pessoas que nos contavam, aos mais jovens, que nos iam dizendo, como é que as coisas se passaram. Isso porque, já não é do meu tempo (felizmente que assim ainda cá estou agora).
P: E o que é que contavam? Qual é que eram os pontos mais importantes?
Fernando Alves: Contavam a miséria em que viviam, o trabalho que era mal pago. Não eram compensados devidamente em relação ao trabalho que faziam. E que não havia liberdade. Eu vou-lhe contar uma coisa, nas aldeias não podia haver política, não se falava de política. Eu lembro-me de vez em quando, lá na minha zona, apareciam uns papéis quando era assim o primeiro de Maio, etc. Mas lembro-me uma vez, pelo menos, ou 2, eu apanhar uns papelinhos que falavam do primeiro de Maio. Levei para casa e a minha mãe, Deita já isso tudo fora, não quero nada disso aqui em casa. E o meu pai, como todos os homens ou pelo menos a grande parte, eram salazaristas, admiravam o Doutor Oliveira Salazar. E o meu pai, era padeiro e havia lá um outro padeiro na zona, o meu pai começou a tirar-lhe alguns clientes, pronto, começou a fazer-lhe concorrência e ele foi dizer, que o meu pai era comunista. O meu pai nem sabia o que era isso, nem fazia ideia nenhuma, nem nunca o vi metido em nada dessas coisas. E o meu pai para se safar, para se livrar, teve que pedir um abaixo assinado das pessoas mais importantes lá daquela região, porque estava para ser preso pela PIDE como comunista. O meu pai não sabia nada, nem estava ligado a nada disso. Portanto, já vê a situação que era, bastava uma pessoa dizer, aquele tipo disse isto ou aquilo para ir preso, não é? Portanto, e contavam essas coisas. E eu já tinha isso também de experiência própria. Eu era pequenino, muito pequenino, mas o meu irmão, o meu irmão e a minha irmã também contavam-me e a minha mãe, que passaram uns tempos um bocado.. com medo, porque o meu pai estava mesmo destinado a ir para a prisão, só porque o outro senhor foi dizer que meu pai tinha ligações ou que tinha dito qualquer coisa. Era assim. Havia os chamados bufos, que chamavam os informadores, que ganhavam 600 escudos por mês ou coisa assim nessa altura.
P: E nas associações, tem ideia de que havia muitos informadores?
Fernando Alves: Muitos não haveria, mas havia alguns, havia alguns. Às vezes pessoas muito ignorantes, coitados, que também faziam aquilo porque eram influenciados. Se calhar inconscientemente até, mas era uma forma de ganharem qualquer coisinha E, como sabe, o Salazar, no início da carreira dele, modificou isto e fez algumas coisas em termos de economia e as pessoas tinham algum apreço por ele e diziam que ele tinha sido um bom organizador e deixavam-se levar naquela história.
P: Mas aqui na Marinha Grande devia haver duas tendências?
Fernando Alves: Havia aqueles mais de esquerda, que tinham mais consciência política, e havia aqueles senhores mais importantes.
P: E essa clivagem vivia-se nas associações?
Fernando Alves: Havia o clube dos industriais, por exemplo, mas na periferia era o povo. Era o povo que reinava, porque essas pessoas até nem iam a essas associações. Embora, por exemplo, no operário, havia pessoas já com muita formação, pessoas que lideravam aquilo. Por isso é que o Operário foi uma universidade para muita gente.
P: Lembra de assim de alguma iniciativa que o operário tenha organizado no período 25 de Abril?
Fernando Alves: Vieram figuras importantes para aí fazer, vinham fazer colóquios, vinha muita gente no tempo do senhor Doutor Vareda. Ele convidava escritores, músicos, pessoas assim que vinham falar. Havia sessões muito importantes lá, depois também aquilo deixou de ser assim, desde que esse senhor morreu. Mas tinham iniciativas, muitas iniciativas.
P: Vocês agora têm a sensação de que é difícil passar o testemunho, mas quando vocês eram jovens, não sentiam que os mais velhos também tinham esse receio?
Fernando Alves: Não sentíamos porque éramos jovens. Mas nós também estávamos mais motivados. Era mais fácil motivar-nos porque nós não tínhamos Internet, não tínhamos discotecas, assim como há agora. Não tínhamos estas chamadas de atenção para o divertimento. O que é que nós tínhamos? Tínhamos as coletividades, os bailes. Tínhamos as festas das coletividades, tínhamos bailaricos ao sábado e pouco mais. Tínhamos cinema aqui na Marinha, sempre tivemos cinema, mas isso era durante a semana. Não havia tanto entretenimento como há agora e não havia a Internet. A Internet foi realmente uma coisa que apareceu, que se multiplicou e que chamou muito a atenção dos jovens. Portanto nós, onde é que eu me entretinha? Era realmente nas coletividades, à noite, um bocadinho ver televisão. A televisão também foi um fator a chamar as pessoas às coletividades, porque as pessoas em casa no início não tinham, não tinham televisão, mas isso já vem do antes do 25 de Abril. Não tinham televisão e tinham que ir à coletividade e começaram a habituar-se a ir ali. E assim começou a haver possibilidade de arranjar dirigentes, porque depois as pessoas iam lá e eram influenciadas. Os jovens têm outras formas, outras coisas para se divertirem agora.
P: Mas nem toda a gente estava nas coletividades?
Fernando Alves: Uma grande parte das pessoas ia, a classe operária, era lá que se entretinha. Os homens no fim do trabalho, à noite, iam até lá. A coletividade fazia o papel do café, digamos assim. Era onde as pessoas se juntavam também para conversar. E depois para irem ao bar. Havia os bailes de Carnaval. Na Marinha Grande, era uma coisa muito frequentada, as pessoas viviam aquilo. Pronto era mais fácil. Agora nós temos receio, até porque, pode ser que isto mude, mas nós vemos que neste momento, por exemplo, há coletividades com muitas dificuldades de arranjarem pessoas, há coletividades que estão fechadas. Que eram coletividades com movimento e que estão fechadas. Porque as pessoas também estão 10 e 15 anos e depois também começam a querer descansar ou querer ter alguém que os substitua. E está a ser difícil, está a ser difícil em algumas coletividades, quase em todas. É difícil. Quando nós vamos a ver: Então quem é a direção deste ano? São quase os mesmos que já estiveram aqui há uns anos. Os jovens não são maus por isso, eles têm outra maneira de se juntarem, outra maneira de comunicarem. Tem outras formas de comunicação. Nós antes não tínhamos essas formas de comunicação, não havia telemóveis para mandar mensagens. Tínhamos que falar mesmo uns com os outros, falar pessoalmente.
P: Então o Senhor Fernando como é que acha que será o futuro das coletividades?
Fernando Alves: Olhe, se quer que lhe diga, eu não faço futurologia. Penso que há algumas que vai ser difícil continuarem. Há outras que enfim vão procurando formas, como é este caso aqui. Sabe que aqui o Carlos arranjou forma de combinar, de arranjar uns amigos e fundou aqui um grupo de poesia, que temos de 15 em 15 dias. Pois, é uma coisa erudita demais para a paciência de muita gente e ele conseguiu trazer aqui pessoas para serões poéticos de 15 em 15 dias. Isto também não vai crescer muito, mas pronto. Mas vai tentando fazer assim e há outras coletividades, com certeza que o farão. Eu não tenho conhecimento agora. O Operário tem o teatro, ainda agora estreou uma peça este sábado, uma peça engraçada. E pronto, vai havendo algumas pessoas que ainda vão conseguindo fazer alguma coisa. Mas para isso, é preciso ter uma pessoa com ideias. Tem de haver na direção pelo menos uma pessoa que consiga transmitir aos outros e puxá-los. Mas eu vejo futuro um bocado difícil. No desporto, não tanto. No desporto, os clubes que há têm sempre gente. É diferente nestas coletividades de cultura e recreio, aqui é que eu vejo mais difícil de continuarem, de progredirem.
P: E não há coletividades que têm as duas componentes, cultura, recreio e desporto?
Fernando Alves: O Operário tem. O Império, por exemplo, era uma coletividade aí da Marinha Grande, muito famosa como muito movimento que agora está aflita para arranjar gente. Também tinha ténis de mesa e tinha o teatro, mas lá está, faleceu o senhor, que era o principal dinamizador do teatro, um dos principais aí da Marinha, e aquilo começou a ficar um bocado mais morto. Depois tiveram também um acidente lá, o telhado da sede voou com um Vendaval e a Câmara Municipal da altura também não ajudou e eles estão com dificuldades, porque têm dívidas e enfim. Eu penso que as autarquias têm muita importância nisto. As autarquias têm muita importância no apoio, se derem bastante apoio as coisas ainda vão melhorando.
P: Que tipo de apoio é que acha que as autarquias devem dar ao associativismo?
Fernando Alves: Sei lá, pelo menos apoio monetário que é essencial para elas poderem trabalhar, agora as que estão com dívidas, para poderem arrancar. Agora com a pandemia sofreram muito a nível monetário, a nível económico. Eu pertencia agora a um grupo que foi incumbido pela Câmara de fazer um novo regulamento de apoio às coletividades e aos clubes. E tentámos que as coisas mudassem, que houvesse mais apoio a nível de verbas, mas também apoio com técnicos, para o teatro, para formação, etc.