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3 de Junho de 2021
José Augusto Mendes e Francisco José Fazenda Meruje
P: Se calhar podíamos começar pelo senhor, dizia-me o seu nome todo para ficar registado. José Augusto Mendes: José Augusto Mendes. P: Nasceu aqui na Covilhã? José Augusto Mendes: Nasci mesmo aqui neste bairro. A casa era ali, um barracão, nasci nessa casa, que foi deitada abaixo para fazerem a escola, que era aqui e depois é que passou lá para cima. Era para fazer lá na escola e depois foi feita lá em cima. Nasci em 1933. P: E andou aqui na escola? José Augusto Mendes: Andei na escola aqui? Não. Foi na escola que era ali, numa casa que aqui está ao lado, e andei lá em baixo, porque o grupo começou numa tasca. Foi num barracão que era aqui a seguir ao grupo, que era de um fundador, que era o Manuel da Cruz, que teve aqui as tascas quase todas. Esteve ali na tasca, esteve ali em baixo. E ele, quando organizou este grupo, foi ali num barracão que era lá a tasca. Havia mais tascas ... e depois daí nasceu o grupo. P: E a escola, fazia parte do grupo? José Augusto Mendes: A escola foi só depois, quando arrendaram, porque aquilo estava numa tasca. Foi organizado numa tasca e depois passou a arrendar aqui uma casa, aqui ao lado, e foi aí a escola, que era uma casa que agora é da família aqui do Francisco, que era altos e baixos, tinha rés-do-chão e primeiro andar. Depois daí passou para ali para o Zé Maria Couto, também pertence a essa fundação. P: E andou, fez aí... José Augusto Mendes: Fiz só cá a terceira classe e depois fui para a central. P: E aí na central fez até quando? José Augusto Mendes: Só fiz até à quarta classe, que era o que havia, porque nesses anos era a admissão ao liceu e eu cheguei à quarta classe, ainda estive na admissão ao liceu, mas depois desisti porque fui trabalhar, porque nesse tempo era assim. P: E foi trabalhar para onde? José Augusto Mendes: Fui trabalhar para o Gomes, aquela lá em baixo, na Ultimação, que agora também não há, é um restaurante, etc. E estive aí. P: Qual foi o ofício que foi aprender? José Augusto Mendes: O ofício que fui aprender foi o ofício de acabar as fazendas, era a acabação. P: E trabalhou sempre nessa área? José Augusto Mendes: Depois daí passei a ser chauffeur da Ultimação e trabalhava lá dentro, porque isto antigamente era assim. E davam-me mais um X para eu sair com a camionete e eu saía com a camionete. Depois daí ainda fui para a tropa, quando vim da tropa, a ver se arranjava melhor vida, comecei a andar, chauffeur, continuei a trabalhar nessa Ultimação e depois passei para o Fernando Antunes. Andei a ver de trabalho. Eu não queria ir para a Ultimação, disse: “Eu já não vou mais para a Ultimação.” Fui aprender a tecelão e saía da Ultimação às 4:00 da tarde, ficava à hora ao meio-dia, almoçava, pegava logo ao trabalho, depois saía às 4, às 4 ia trabalhar, a pegar na Rosa e Conceição, que era ali na estrada quando se vai para a floresta, que isso também já acabou, e então eu trabalhava até à meia-noite, até terminar. Aprendi a tecelão, ao fim de aprender a tecelão, andei a ver aí o que é que me podia aparecer. Fui para o longo curso, muito triste, de camionetes, depois fui ao Fernando Antunes, estive lá 34 anos, foi onde eu acabei. E depois, além de ser chauffeur, trabalhava no armazém de fios, que era dar os fios para urdirem as teias para os tecelãos fazerem a fazenda. Depois passei para o armazém de fazendas, que foi onde fiquei. P: E casou? Tem filhos? José Augusto Mendes: Sim, casei. Tenho dois filhos, o Rui e o José Alberto, que andam no Covimusica. P: E a sua mulher, também trabalhava na indústria têxtil? José Augusto Mendes: Trabalhava, era metedeira de fios na Nova Penteação. P: E os seus filhos, qual foi a profissão que seguiram? José Augusto Mendes: O mais novo tem o 12º e o outro foi para Eletromecânica, mas não completou. Enfim... P: E os seus pais, também trabalhavam na têxtil. Também trabalhavam aqui nas fábricas, os seus pais? José Augusto Mendes: Trabalhavam. O meu pai trabalhava na Ultimação, para onde eu fui, porque o meu pai não queria que os filhos fossem trabalhar para ao pé dele. Mas nós lá.... primeiro foi um irmão meu, que já morreu, que era o mais velho, esse é que foi o primeiro, depois eu digo: “Arranja-me lá trabalho para mim.” E arranjou-me. E eu entrei. Quando entrei lá e se isso era.. Nesse tempo, a gente ia, havia pais que era horrível, havia outros que não se incomodavam. P: E a sua mãe também trabalhava na indústria ou ficou em casa? José Augusto Mendes: A minha mãe estava em casa, depois é que passou a trabalhar também na parte da indústria, que era nas máquinas de preparações. P: É religioso, é católico? José Augusto Mendes: Sou. Como a família, não quero outra. P: E é filiado em algum partido? José Augusto Mendes: Não, isso de partidos eu não aceito nada. Eu tenho a minha ideia, partidos não quero cá. P: Então agora o senhor, pode dizer-me o seu nome todo? Francisco José Meruje: Francisco José Fazenda Meruje. Nascido na cidade da Covilhã, desde 1944. Tenho 77 anos. Eu fui já muita coisa. Portanto, casei, tive uma filha, divorciei-me. Estou sozinho. Estou sozinho e bem acompanhado, que ainda é melhor. Trabalhei nos lanifícios. Trabalhei na Argélia. Fui 20 anos aqui diretor, praticamente, uns anos como presidente, outros anos como secretário, outros anos como vogal. Claro que os lanifícios agora são totalmente diferentes do que eram antigamente. O último trabalho que tive foi no Campos Melo, na fábrica Campos Melo, estava no armazém, era o chefe de armazém. E ali o que faziam era só transformar a lã, para ser lavada e depois transformá-la em bobine. P: E é religioso? Francisco José Meruje: Sou religioso, católico, não muito praticante. No entanto, todos os domingos me farto de rezar Pai Nosso e Ave Maria, que estás no Céu. P: E é filiado em algum partido? Francisco José Meruje: Não, mas tenho a minha ideologia, é normal. P: E então digam-me uma coisa, esta vontade de participar nas associações é uma coisa que vem de família, ou seja, os vossos pais ou algum familiar já participava em alguma associação? José Augusto Mendes: Quer dizer, pelo menos o meu pai era, trabalhava, porque o meu pai não sabia ler, portanto, os que não sabiam ler só trabalhavam, não podiam ser diretores, era só trabalhar, e eu vim por causa dos meus pais, porque nesse tempo, nesta coletividade, os garotos não podiam entrar, só acompanhados pelos pais. E então ficavam à porta ou vinham com os pais e a gente começou a tomar assim coisa por esta coletividade, dessa forma. P: E o senhor?. Francisco José Meruje: O meu é diferente, muito diferente. O meu pai era instrutor. P: Era instrutor de quê? Francisco José Meruje: Instrutor de carros de condução. E eu nunca… não tenho carta. E podia ter e nunca quis. Dizia eu para o meu pai: “Oh pai, se eu tiver a carta, se comprar um carro, vou ser utilizado por muita gente para ir aqui e ali, porque eu não sou capaz de dizer que não e assim é dinheiro que poupo.” E então foi assim, a minha mãe praticamente estava em casa, mas tinha uma senhora, que era a dona desses carros e o esposo, e a minha mãe fazia lá a limpeza sempre, portanto, era como se tivesse também junto. Era o [...]. Eu, como atrás lhe disse, nestes 20 anos, praticamente, pertenci à direção, aconteceram coisas espetaculares. Uma delas, sabe muito bem que antes do 25 de Abril, não se podia dizer ai nem ui, entrávamos aqui, mas vínhamos com os pais, de outra maneira não podíamos entrar, só a partir dos 18 anos. E depois, indo mais à frente, aconteceu uma coisa espetacular, quando foi um ano em que resolvemos trazer o Francisco Fanhais aqui à coletividade, antes do 25 de Abril. E esteve quase para fechar a coletividade, adianto já que esteve quase para fechar. Tivemos depois a sorte de ir falando e tal e a coisa não aconteceu. Mas esteve aqui o Comissário da Polícia, estiveram aqui os Pides, estiveram aqui, que a gente depois veio a saber quem eram. Levaram os discos dele, levaram tudo que tínhamos aqui, foi assim. Passámos um mau bocado, nessa altura, mas nunca desistimos, continuámos sempre na mesma. Isto foi feito praticamente por sócios. Foi a fábrica Campos Mello, por isso é que tem o nome, isto era só Grupo Educação e Recreio, e o que é que aconteceu? Aconteceu que isto, estas pessoas que estão aí da primeira direção resolveram juntar-se e ir ao Campos Melo, porque trabalhava muita gente daqui, ali em baixo. Resolveram ir lá e falar com o Campos Melo que queriam construir o grupo e o que é que podia acontecer. Este terreno era dele, ele deu o terreno e deu 20 contos nessa altura, 20 contos era muito dinheiro, que conseguiram pôr a parte de baixo quase toda pronta. E a partir daí, ficou então posto ao Grupo Educação e Recreio Campos Melo. Ainda hoje em dia se vai, em Março, ao cemitério em homenagem dos sócios ao jazigo dele. Nós é que praticamente estamos a tomar conta do jazigo. P: O senhor já não se não se recorda exatamente desse período da fundação? Francisco José Meruje: Não me recordo, recordo-me mais por ler os livros e ouvir contar aqui às pessoas mais velhas. P: E o senhor, recorda-se desse processo de construção? Francisco José Meruje: Ele recorda-se, desculpe lá, ele recorda-se porque quando fizeram o salão lá em baixo, fizeram um palco para dar uns bailes e eles iam para debaixo do palco ver as pernas às senhoras. José Augusto Mendes: Quer dizer, a fundação disto, quando começou e começaram a fazer a sede, já tinha sido o grupo em dois lados. Depois foi quando o Campos Mello, conforme o Francisco disse, deu o terreno e começou. A obra que foi feita era só a entrada, uma pessoa agora entra, essa parte era fechada, mas estava a entrada de frente e era como esta divisão ou mais, mas apanhava altos e baixos e começava, e depois havia aí os bailes. Por debaixo estava a tasca, nesse tempo era tascas, não era bares. Havia a tasca, quando a gente entrava no terreno, depois havia a sala de baile e espetáculos, que já se fazia teatros e tudo, e depois havia o barbeiro, era pequenito, o espaço era pequeno, mas havia de tudo um bocadinho, barbeiro e tudo isso. Isso foi quando começou essa parte. Depois, começou-se a arranjar dinheiro e depois é que fizeram o resto até aqui, como está agora, praticamente, mas ficou tudo em aberto, não havia nada de divisões nem nada e depois fizeram, disso o Francisco já se lembra, porque já foi mais tarde. E então havia uma divisão a esta ponta, puseram lá a barbearia, e já era um café mais ou menos. Depois havia os bailes todos os fins de semana, vinham as sopeiras, antigamente eram as sopeiras, que eram as criadas de servir, chamavam-lhes muitos nomes, e vinham para o baile, que era a matiné, até à 7:00 horas, porque elas depois tinham que ir dar o jantar aos patrões. E então, até essa hora, das 3 às 7 horas, era casa cheia. Francisco José Meruje: Era uma animação. Senhoras, de um lado, homens do outro. José Augusto Mendes: E depois havia os bailes e depois havia, para se arranjar dinheiro, isso já eu pertencia a essas comissões, havia os lances. Havia os rapazes que, esta não queria dançar com ele e depois havia os lances, quem ficasse com o lance ia oferecer... Francisco José Meruje: O lance eram várias coisas, eram flores ou era... José Augusto Mendes: Ou era sabonetes, arranjava-se muito dinheiro assim. E havia então o beberete, que era o chá, as meninas só chá, então iam as meninas ao chá, havia o disco, claro, porque cada um ia buscar a moça para ao café e tinha de pagar. O rapaz é que pagava o chá, um ou dois, o que ela comesse. Francisco José Meruje: Depois tivemos também aqui o rancho folclórico. José Augusto Mendes: Foi, o primeiro rancho folclórico. Isso foi em 1954, andava eu na tropa. Francisco José Meruje: Depois fizeram-se aí muitos casamentos. Mas eram bons tempos, melhores do que estes. José Augusto Mendes: Eu pertenci a esse rancho e mais um colega. E havia a Feira de São Tiago, que era lá em baixo no jardim. Francisco José Meruje: Era no coreto, que agora foi embora daqui da Covilhã, não sei o que é que fizeram ao coreto, era aí, era no Campos Melo, no Oriental, nos Leões, aquilo ao fim havia sempre zaragata, mas depois acabava tudo junto, porque aquilo era aquele é que merecia ganhar, o outro é que merecia ganhar. Era assim. P: Então digam-me uma coisa, na construção da sede era trabalho voluntário, eram os sócios? Francisco José Meruje: Trabalho dos sócios, tudo feito pelos sócios. P: Então e esse dinheiro que angariavam nos bailes em que é que o usavam? Francisco José Meruje: Era precisamente para isso, ia-se fazendo aos poucos as divisões e pronto, havia um plano que estava traçado. Já não era como agora é, que é preciso ir à Câmara para fazer isto e aquilo. Nós temos lá em cima um polidesportivo, um ringue também, não sei se sabe, também lá temos um, também foi assim que se fez. Foram os sócios a trabalhar ali, embora se tivesse uma empresa, que havia coisas que não se sabia, não podiam ser feitas por nós, porque era arrancar pedras, tirar pedras e tudo do terreno. E foi assim que a gente o fez, com a ajuda do Castelo Branco do, como é que se diz, da Câmara, de várias instituições que nos foram dando dinheiro para conseguirmos acabar a obra que lá está em cima. Só que o problema agora passa-se na questão do pagamento do IMI, e isso tem que ser pago e tem que ser tudo. E por isso é que as coletividades estão um bocadinho em baixo, por causa dessas coisas, que deviam ser, que fazem tão bem à população, que deveriam ser isentas dessas coisas, se outras pessoas são e que não fazem tão bem à cidade e aos grupos e às coletividades… É assim e temos que ir vivendo conforme bate o batuque. P: Então começaram com os bailes, o rancho.... José Augusto Mendes: E havia uma cotização também. Eram umas cadernetas, eu não sei se o Chico se lembra, eram umas cadernetas e que com um carimbo punham só pago e mais nada. E depois é que passou então a ser com cortes. Francisco José Meruje: Mas era de facto um tempo diferente do que é este. Havia mais... José Augusto Mendes: Havia mais respeito… Francisco José Meruje: Este bairro era o mais populoso da Covilhã. Acaba por ser um bairro com menos população que há agora. Era uma coisa espetacular, a coletividade todos os dias estava cheia, depois tinha snooker, tinha as damas, tinha o jogo da sueca, tinha várias coisas. José Augusto Mendes: Era o loto, antigamente que isso era... Francisco José Meruje: Fazia-se os bailes de carnaval, era o segundo baile do país, no Carnaval, o melhor era lá em cima na Serra, tínhamos que proibir a entrada às pessoas, porque era aquele salão todo cheio. Às vezes, às 10h30 já ninguém podia entrar. Era uma coisa impressionante. José Augusto Mendes: E depois eram quatro dias. Era começar hoje à 1h00 e só saíamos de manhã às 8 horas. Francisco José Meruje: Sair às 8 horas para o trabalho. Sair do trabalho às 5h00 e ainda varrer tudo para essa noite, para ficar até às 4, 5 da manhã, ir trabalhar, eram quatro dias assim. Mas eram comissões espetaculares. P: Organizavam-se em comissões? Francisco José Meruje: Exatamente, para ajudar a direção. Era uma comissão que estava a tomar conta, por exemplo, ficar lá em baixo para ver se havia algum problema ou não havia e tal e tentar resolver sempre as coisas. José Augusto Mendes: Foi primeiro o teatro e depois é que foi o rancho, o primeiro em 1954, que foi a primeira vez o rancho. P: E o teatro foi quando? José Augusto Mendes: O teatro foi sempre, quando o grupo teve sala para dar espetáculos começou logo. P: Mas eram os sócios que faziam teatro? Francisco José Meruje: Era, um dos primeiros ensaiadores do teatro foi o sr. [...], que foi também presidente. Esse foi ensaiador, foi presidente, foi contínuo, contínuo da coletividade, e que estávamos todos e ele é que fechava, fazia a limpeza, fazia tudo. Isto porque, antigamente, isto tinha funcionários. Tinha funcionários que faziam cumprir as regras dos estatutos. Eu, se viesse à porta, que entrasse ali e ele me visse, o espanador que tinha na mão, ia ele e eu tinha de fugir, porque era assim e não entravam mesmo. Com os pais não havia problemas. Eu só comecei aqui entrar praticamente aos 12 anos, quando o meu pai vinha cá, é que eu vinha com ele. E ficava ali quietinho... José Augusto Mendes: Eu, quando me fiz sócio, tive que fazer os 18 anos, e agora não, fazem-se sócios logo que nascerem. Eu não, ficava ali à entrada, ali estávamos… Francisco José Meruje: Antigamente só aos 18 anos é que se podiam fazer sócios. José Augusto Mendes: Porque se me fizesse sócio nessa altura em que eu entrava com o meu pai, eu agora sou um número baixo, mas pronto, era mais baixo. P: E algum de vocês fez parte do teatro? José Augusto Mendes: Eu fiz, o Xico não, o Xico foi ensaiador. P: E quais eram as peças que faziam e qual é que gostaram mais? Francisco José Meruje: Uma das peças que todos gostámos mais e que estivemos agora a fazer outra vez, há cerca de um ano e tal, foi a Casa de Pais, que tivemos uma menção honrosa e até um diploma e tudo. Teve cá o Ruy de Carvalho, a servir de júri no teatro-cine da Covilhã, tivemos uma menção honrosa, uma senhora que não sabia ler nem escrever e decorou o papel todo, o principal papel todo, só as pessoas a lerem para ela dizer as coisas. José Augusto Mendes: Era minha tia. Eu tinha um meu tio, que era o professor aqui, que era o [...], que era um homem que tinha uma mão deficiente, e ele é que dava aulas aqui. Foi um dos professores aqui da Covilhã, porque quando levava alunos a exame, todos passavam e os outros não passavam. P: Era boa, a escola da coletividade? José Augusto Mendes: Era. Teve cá bons professores, sim senhora. P: Até quando é que durou a escola? José Augusto Mendes: Acabou não foi há muitos anos, que passou lá para cima, que era para ser feita no barracão que deitaram abaixo, onde eu fui criado. Francisco José Meruje: Já não tenho recordação. Isso, depois, a senhora ali nos livros vê lá, se quiser. Há muita coisa que a gente já… P: E vocês, com o teatro e com o rancho, passeavam pelo país? Francisco José Meruje: A Casa de Pais correu aqui a Covilhã toda, todas as coletividades, esta última… P: Qual é a história da Casa de Pais? Francisco José Meruje: A Casa de Pais é um filho que quer virar e está casado com uma mulher, portanto, está casado, é um casal e a mulher manda nele. A mulher é que manda nele e que diz o que há de fazer e o que não há de fazer e quer pôr o velho num sítio qualquer, quando o velho é que está a dar tudo. Depois há dois irmãos que são do outro lado e há outros, há o mais novo que está com o pai e que pega numa espingarda, pega em tudo, ameaças, mas ela manda-se para cima dele, a cunhada. E depois acaba por, pronto, acaba por tudo ficar bem, pedem perdão e tudo. Mas são três atos espetaculares. José Augusto Mendes: Deram-se cá grandes peças de teatro, sempre casa cheia. P: E o rancho, como é que era? José Augusto Mendes: O rancho não era como agora se faz, de nenhuma maneira, era, enfim... Francisco José Meruje: Era bom. P: E vocês, só faziam parte desta associação ou faziam parte de outras? Francisco José Meruje: Não, só desta associação. Somos guerreiros até ao fim do mesmo. José Augusto Mendes: Eu mais o Francisco somos os últimos sócios que estamos sempre aqui. Francisco José Meruje: E depois o Rui arranja-nos estes caldinhos. P: E as mulheres, as mulheres também se envolviam nas comissões? Francisco José Meruje: Sim, sim. Olhe a questão das marchas, por exemplo, estava a dizer à sua colega que aqui o salão estava sempre cheio, tínhamos as mulheres, elas faziam os vestidos, elas faziam tudo, quer dizer, havia sempre uma pessoa como eu que dizia o que queria e como queria e havia pessoas que estavam nas confeções, que trabalhavam nas coleções, traziam as máquinas delas e faziam tudo. Era espetacular o convívio, um convívio espetacular! P: E as mulheres também participavam nas direções? José Augusto Mendes: Sim, sim, sim. Francisco José Meruje: Ainda hoje há, ainda hoje esta direção tem. Tinha pelo menos duas, três, mas agora só duas, a [...]e a [...]. P: Andaram aqui na escola primária também? Francisco José Meruje: A [...]sim, a [...]não. José Augusto Mendes: A [...]é do Canhoso. P: Estou a perguntar acerca das mulheres em geral… Francisco José Meruje: Havia muitas mulheres na escola, tinha a escola dos rapazes e a escola das meninas. Não devia haver mistas nessa altura. P: Então, contem-me lá, estavam-me a dizer que antes do 25 de Abril ainda tiveram alguns problemas com a polícia. José Augusto Mendes: Tivemos sim. Era eu diretor e o [...], que já faleceu, que foi presidente da Junta, e tinha uma loja de mercearias aí nessa rua, quando se vem do Sporting, do antigo Sporting. Tinha aí uma mercearia, éramos nós e eu era presidente. E então há uma sexta-feira, a pior guerra foi essa, essa já não foi com o Francisco. E estava uma direção, nós íamos a sair, já cá estávamos há quatro anos e com isto a andar para trás, porque nós, quando entramos para cá não havia dinheiro. Nós então dávamos aos sócios quando morriam um X, ao sócio era um X, era 700 e depois passou para 1000. E era aos filhos. Pois é, quando nós entrámos não havia dinheiro. No primeiro dia que entrámos nesta porta, aparecem logo a pedir-nos dinheiro, nós não tínhamos dinheiro, sabe o que é que nós fizemos? O [...] diz assim “bom, temos que resolver isto, temos que pagar”. E agarrámos, tu ganhas X, dás X, que eu tenho aqui, e foi assim que pagámos. Eu ganhava menos, dei menos. O [...] deu mais porque podia mais. E pagámos assim os subsídios às pessoas para não cortar. Depois começou a entrar dinheiro, porque nesse tempo tínhamos 3000, 2000 a 3000 sócios, só a quotização dava muito dinheiro. P: Explique-me lá isso dos subsídios, eram subsídios de funeral? Francisco José Meruje: Eram mil escudos o homem... Acabou por depois se eliminar dos estatutos essa cláusula, porque já não tinha importância pagar isso, porque toda a gente, praticamente, tinha os funerais pagos pela caixa, mas o que é certo e verdade é que dávamos os livros para os filhos para a escola, que se davam também todos os anos, isto antes do 25 de abril, aos que estavam mais carenciados. E houve mais coisas que eu agora não estou recordado, na questão de beneficência para as pessoas. P: Mas conte-me lá melhor essa história de quando veio cá o Padre Fanhais.... Francisco José Meruje: Quando veio o Fanhais foi assim, foi anunciado que vinha o Fanhais e até era entrada livre. O salão completamente cheio, as pessoas vieram, mas não sabiam ao que é que vinham. Até eu nem sabia se havia PIDE se não havia PIDE, nessa altura. Ora, sei que fui a uma discoteca comprar o último disco dele, em vinil. Arranjei dentro do palco, com tudo fechado, arranjei um gira-discos, liguei a corrente e enquanto as pessoas entravam e estavam à espera que ele viesse, pus o disco a tocar, sempre ia tocando. Quando ele chega, abrimos as coisas e qual foi o nosso espanto, cantou aquela canção que diz os “polícias cães e os cães polícias” e qualquer coisa assim do género que agora já não me recordo. Vimos um burburinho na sala. Não, não houve assim grande coisa, mas um burburinho e a gente começou logo. Olha, há aqui qualquer coisa. E dissemos ao Francisco Fanhais: “Você vai já embora daqui no seu carro e, por favor, quando chegar ao Barreiro, diga-nos, por favor, se chegou ou não chegou bem, se há algum problema.” Ele saiu daqui e felizmente não houve problemas nenhuns. Ligou-nos, estava tudo bem, mas depois começaram aqui a ser interrogados os membros da direção, embora eu não estivesse na direção, mas os membros da direção foram interrogados. Chegámos à porta: “Aqui ninguém mexe, nem nada”. A partir daí, tivemos a sorte de que a coisa se esqueceu e a coletividade safou-se dessa coisa, mas foi, foi um.... Mas, quer dizer, levaram os discos, levaram o gira-discos, como já tinha dito atrás, levaram tudo o que era revolucionário. E depois avisaram: “Não façam mais disto, porque vocês não podem fazer estas coisas.” ”Mas isto é uma coisa normal, a gente traz as pessoas que podemos trazer aqui para ganharmos algum dinheiro, é o normal.” E ele não quis um tostão. E é assim, acabou assim a história. P: E a biblioteca? Tiveram algum problema com os livros da biblioteca? Francisco José Meruje: Não, não, nunca tivemos problemas na biblioteca. P: Era muito frequentada? Francisco José Meruje: Antigamente era, antigamente. P: Também emprestavam livros para casa? Francisco José Meruje: Sim, exatamente, ficava o nome da pessoa, ficava tudo e entregávamos um papel como ele entregou. José Augusto Mendes: E depois, quem lesse mais tinha um prémio. Francisco José Meruje: Também tinham um prémio. P: E houve pessoas que aprenderam aqui a ler? Francisco José Meruje: Sim, várias, havia a escola da noite para idosos, que não sabiam ler nem escrever. Então liam aqui, fechavam aquelas aulas, aquelas aulas normais, à noite, às 7h00 ou 8h00 horas e começavam as aulas na altura. José Augusto Mendes: Os meus filhos foi aqui que aprenderam a ler. O mais novo foi aqui, tirou a quarta classe. Eu não sei se ele chegou a tirar aqui, parece que teve de ir para a central. Já o mais velho não, ele tirou aqui a quarta classe e depois foi para o antigo liceu, foi para aí. P: Depois e depois do 25 de Abril, o que é que mudou? Francisco José Meruje: Depois do 25 de Abril, as coisas correram muito melhor. Quero dizer, esta coletividade já passou e conseguiu resolvê-las. Já teve problemas graves, ainda agora houve um que acabou de ser resolvido aqui com esta direção, de umas direções já muito antigas. Neste momento, a coletividade está saudável em questões financeiras, não deve um tostão a ninguém, graças a Deus, e estamos aqui no nosso cantinho, sem chatearmos ninguém e ninguém nos chatear. P: E diga-me uma coisa, nesse período, logo a seguir ao 25 de Abril, algumas populações fizeram coisas tipo construir estradas… Aqui também fizeram isso? Francisco José Meruje: Sim, tivemos aqui o parque, foi feito pela Comissão de Moradores, fizemos aqui no grupo uma comissão de moradores. P: Quando é que isso foi? Francisco José Meruje: Isso foi praticamente a seguir ao 25 de abril, talvez dois meses depois do 25 de Abril. Fizemos aqui uma reunião e tal, fez-se umas atas, tudo, foi-se a aprovar onde foi preciso ir e teve a Comissão a trabalhar. A Comissão arranjou aqui este coiso que depois foi entregue à junta de freguesia e ali o poço grande, não sei se conhece, que era ali um poço em que a água ia para a fábrica do Campo Melo para lavarem a lã. Vinha da Serra, tinha as minas todas aqui, ia ali o poço grande, como nós lhe chamámos. Aí a Comissão também teve que intervir, porque o [...], o senhor [...], não é, Queria fazer ali um prédio alto e coisas e a Comissão... José Augusto Mendes: E ainda foi, já tinha as paredes... Francisco José Meruje: E teve de se deitar abaixo e a Comissão de Moradores é que fez aquilo, porque senão ficava ali um monstro desgraçado, ainda está, mas não tem água, não tem nada, pronto, e aquilo está ali. José Augusto Mendes: Fazia-se lá desporto e tudo, havia sempre ali gente naquele tempo. E vinha ele a buscar as miúdas, porque não havia lá miúdas nesse tempo... Francisco José Meruje: Aquilo era a piscina antiga, a primeira piscina da Covilhã, com bancadas, com balneários... José Augusto Mendes: Com balneários, com pranchas para saltar e tudo isso. Havia festas aos fins-de-semana, festas mesmo. Francisco José Meruje: Acabou isso. Fizeram ali aquelas casas todas, que vêm desde ali do princípio até ao fundo de tudo. Era tipo um campo de futebol onde se jogava à bola e tudo. Acabou, isso acabou, queriam fazer um prédio lá, não fizeram, agora o que é que está ali? Está ali um sítio espetacular para se fazerem festas de Verão. E como é que conseguem fazer as festas de Verão quando a Câmara quer dinheiro? É que ali nós podíamos fazer as festas de verão. Agora, com esta epidemia é difícil, mas antigamente ainda se lá fez muitas, mas geralmente eles é que punham a luz, punham tudo, faziam tudo, a Câmara, mas depois começaram a querer que se pagasse. E uma coletividade como esta, era para ver se se ganhava algum dinheiro. Fazia-se lá uns bares, fazia-se uma sardinhada, uma carne entremeada e essas coisas assim de Verão. Aquilo ali era espetacular. Agora puseram uns aparelhos para se fazer ginástica e tal, umas bancadas. Se quiserem, depois quando sairmos irem lá ver e tirar umas fotografias, pode ser que interesse. P: E digam-me uma coisa, estavam-me a falar que houve uma pessoa da direção que depois foi presidente da Junta de Freguesia. José Augusto Mendes: Foi o [...], porque foi nessa altura que o grupo começou a ser mais controlado pela polícia. E então a salvação desta coletividade, nessa altura, foi esse [...], era o presidente da Junta. Nós tínhamos reunião, que foi uma sexta-feira, eu chego, que eu morava ali ao pé do poço, e quando chego aqui vejo a polícia com metralhadoras. “O que é que se passa aqui?”, nunca pensando que nós íamos a sair. A direção ia sair, que já cá estava há muito tempo. E a direção que vinha para cá era tudo comunistas, eram os comunistas, era o [...], era tudo, era lá de baixo, era o [...]. E então telefonei para o [...], o [...] morava naquela casa ali, e eu disse: “Oh [...], venha já, passa-se isto assim, assim, assim.” Ele veio logo, chegou aqui: “Eu sou o presidente da Junta.” O chefe da Polícia, assim que viu o Zé Curto, chegou: “Passa-se isto assim, assim. Vocês não abrem já a coletividade, senão… Hoje fica fechada.” Tínhamos assembleia, nem assembleia, nem nada. Fechámos logo tudo, mas o bar ficou aberto. O bar ficou aberto, só fechou a parte onde íamos fazer a assembleia. Fechou-se tudo, eles andavam, estavam por cima, a polícia a cercar tudo e então não houve assembleia. O [...]nessa noite foi preso, agora o resto não sei o que é que se passou. E depois esse [...], eu andei de mal com o ele, nem lhe falava, porque o gajo disse que eu é que o mandei prender, quando eu nem sequer falei em [...] nem nada. Eu nunca mais lhe falei. Mas depois, mais tarde, fizemos as pazes, porque ele soube que não fui eu. Francisco José Meruje: Mas isso era bom, porque antigamente havia muita gente interessada em vir para direções aqui, às vezes apareciam duas, três, quatro, cinco listas, agora nem vê-los. Antigamente era uma assembleia que estava aqui às vezes duas e três horas a discutir coisas, como devia ser e agora estamos à espera que apareça alguém, mas é difícil. P: E o que é que se discutia nessas assembleias com muita gente? Francisco José Meruje: Discutia-se os anos todos da coletividade, nessa altura que esteve cá a direção, se faziam bem, se faziam mal, podiam ter feito assim, podiam ter feito assado, os com culpas, outros sem culpas, era isto. Depois aparecia um que dizia “isto é uma bolinha de neve que anda tudo à roda”. Havia cá uns cromos, como se costuma dizer agora... José Augusto Mendes: O bolinha de neve ainda não morreu, ainda é vivo. P: E havia discussões acesas? Francisco José Meruje: Acesas mesmo, só que também era diferente, o presidente da Assembleia Geral: “Oiii” – e calavam-se, senão iam lá para fora, mas havia, costumava haver, muitos diálogos, mas eles: “Não, não, não há diálogos.” P: Mas discutia-se livremente? As pessoas diziam o que achavam? Francisco José Meruje: Livremente, quem tivesse de dizer, dizia, quem tivesse que apanhar, apanhava, e quem tivesse depois que reportar e dizer que não foi assim, foi assado. Era um debate que parecia a Assembleia da República. P: E diga-me uma coisa, esta gestão do dinheiro, de pagar os subsídios era uma coisa difícil? Francisco José Meruje: Sim, sim, muito difícil mesmo. P: Como é que vocês faziam? José Augusto Mendes: Quer dizer, esta coletividade tinha dinheiro nessa altura, havia uma vez que não havia, era consoante as direções que tivessem. Francisco José Meruje: Era consoante o que se recebia da Câmara, o subsídio de Castelo Branco, o subsídio da junta de freguesia, o subsídio… e aí, depois, é que se arranjava de facto algum dinheiro para… E depois havia então os bailes de Carnaval, que era de facto a altura em que a gente tirava o dinheiro para todo o ano de que a coletividade precisava. Bastavam quatro dias. A primeira coisa que a gente fazia era corrermos uns atrás dos outros à bilheteira: “Como é que está? Já pagámos o conjunto?” “Já.” “Agora, a partir daqui é só lucro.” E pronto, era assim, era assim que fazíamos. Andávamos para saber se as coisas estavam a andar bem ou não. E de facto fizemos aqui coisas espetaculares, vieram aí conjuntos de Coimbra, de Tomar, de vários lados, coisas espetaculares. E olhe, foi-se andando assim até que começaram a vir estes tempos e agora só nos dão dor de cabeça. Embora a gente não esteja na direção, mas dá-nos dor de cabeça também a quem tanto viveu esta coletividade, dá-nos dor de cabeça porque estamos a ver que não há continuação. Este bairro está desertificado, é só pessoas de idade. As pessoas novas, como o presidente, foram todos ali para aquela de Canhoso morar e as filhas deles e tudo. José Augusto Mendes: E quem teve a culpa disto tudo foi o [...] e sabe porquê? Porque era para fazerem um bairro aqui por cima.... Francisco José Meruje: É, aquilo era terreno, diz ele, que não se podia fazer e agora já andam lá para cima a fazer tudo. Não compreendo. P: Então mas não há muita gente nova aqui na coletividade? Francisco José Meruje: Não, não, novos, eu vou lhe dizer, contam-se pelos dedos, que moram aqui em cima, são aí uns 10 ou 12. P: Mas vocês têm muito cuidado em preservar a memória, têm um museu. Acham que essa memória passa para as pessoas mais novas? Francisco José Meruje: Passa e eles sabem. José Augusto Mendes: Só se aparecer, assim como foi com o meu filho. Ele apareceu, falaram-lhe do Covimúsica, e foi capaz de sempre... P: O que é que é o Covimúsica? Francisco José Meruje: O Covimúsica é um grupo de música popular portuguesa. José Augusto Mendes: Eles têm atuado muito aí, na cidade. Francisco José Meruje: Está praticamente, nesta altura do Verão, quase os fins de semana todos ocupado pela INATEL, para ir ao hotel de Manteigas, das termas, vai lá em cima aos hotéis da Serra e tem saídas aí pelo Fundão, pelo Teixoso... P: E foi criado aqui? Francisco José Meruje: Foi criado aqui. José Augusto Mendes: Foi, foi o meu mais velho que o criou. Francisco José Meruje: Já há 30 anos, e quantos são, oito ou nove? José Augusto Mendes: São dez. Francisco José Meruje: Há feminino e masculino, tocam a guitarra, tem a viola, tem o bombo, tem o pífaro, tem várias coisas. P: Mas aprenderam a tocar aqui, tinham uma escola de música? Francisco José Meruje: Tudo aqui, mas aprenderam por eles próprios, é uma coisa que nasceu mesmo deles. José Augusto Mendes: O meu filho é que sabia tocar um bocadito de viola e começou a tocar. P: E esse grupo está ligado formalmente à associação? José Augusto Mendes: Sim, sim, é do Campos Melo, tudo aquilo que eles ganham é para a coletividade, mas quando precisam de comprar alguma coisa é daquele dinheiro que sai. E têm uma aparelhagem, uma mesa de som, já do mais moderno que há, têm tudo. Joana Dias Pereira: Então até se está atualizar, a coletividade… Francisco José Meruje: Sim, sim, está a atualizar-se, porque tem uma pessoa à frente que é o neto do Sr. José, à frente daquilo que para a parte de cores e de luz e tudo isso, aquilo é espetacular. P: Então e pensando que até têm estas coisas novas e modernas, qual é que acham que será o futuro do associativismo? Francisco José Meruje: Aqui ainda podemos dizer que é um bocado difícil, mas sei que há de facto aí conhecidos, como os Pinheiros Altos, o Rodrigo, a Mata, não sei como é que está. José Augusto Mendes: Oh, está tudo mal… e ainda esteve pior. Francisco José Meruje: Agora aqueles que têm muita população, Canhoso, Teixoso, Tordosendo, todos esses têm muita gente ali, muita gente. Para mim, talvez o que tenha mais gente é o dos Pinheiros Altos, o Académico dos Pinheiros Altos, que é de facto o que deve ter mais gente. Depois tem aqui os Leões da Floresta, que é lá em baixo, com os estudantes também se safa. Está depois o Oriental, também é os estudantes, também se safa. Aqui temos a UBI, mas é praticamente dormir e isso tem aqui muita gente, mas vão todos lá para baixo. José Augusto Mendes: As boîtes é que deram cabo das coletividades, porque os rapazes novos querem é poder pedir até sei lá quanto. Eles pagam tudo e não dizem nada e se for aqui já falam. Francisco José Meruje: As discotecas é que deram cabo das coletividades. Porque antes de abrirem as discotecas, nós aqui às tardes, aos domingos às tardes, havia uma comissão e fazia uns bailes, e ao sábado à noite. José Augusto Mendes: Aproveitava-se tudo. Francisco José Meruje: E aproveitava-se, não era muito o que se pagava. Era um euro de entrada, mas era qualquer coisa, era sempre dinheiro. José Augusto Mendes: Isto no tempo da televisão, quando começou a haver as televisões, que não havia, o primeiro grupo foi este. O grupo pôs a televisão, as mulheres e tudo, tínhamos a sala que era ali onde está um café, parte do café. Francisco José Meruje: Tínhamos uma plateia. Os novos só vinham cá quando dava os cowboys e coisas assim, estavam aí, depois iam-se embora. Depois estavam cá as pessoas mais idosas, já podiam assistir à vontade. Mas depois pagava-se 5 tostões, era uma das quotas, rasgava-se uma quota e lá entravam, mas com rigor, não andavam a brincar e a rir de qualquer maneira, estava lá o contínuo, como eu disse, à porta de entrada. P: Mas isso era o cinema? Francisco José Meruje: Não, não. Era a televisão, a primeira. José Augusto Mendes: Quando se comprou a televisão, a primeira televisão era a preto e branco. P: Mas eu vi que tinha ali uma bobine de cinema. Francisco José Meruje : Não, também cá houve, davam-se espetáculos, havia um rapaz que morava nestas casas aqui em frente ao grupo, que estava no Inatel. Ele é que estava encarregado de trazer os filmes e rodar aqui. Esta foi oferecida pelo INATEL, esta máquina de filmes. P: E aí também cobravam entrada? Francisco José Meruje: Sim, sim, o valor era simbólico, mas pronto era dinheiro. Era dinheiro que entrava, sempre dava qualquer coisa. Todas as semanas havia um filme... José Augusto Mendes: Aproveitavam-se todos os tostõezinhos que se pudesse. Antigamente para se fazer isto tinha que ser assim, senão não se podia. Francisco José Meruje: E agora têm que dar às pernas para conseguirem aguentar isto como deve ser e são tempos muito difíceis nesta altura. José Augusto Mendes: Eu digo ao meu filho “eu tenho amor a isto”, mas tenho que lhe dizer. Ele anda quilómetros durante o dia, porque ele é vendedor e anda quilómetros durante o dia e depois aparece às quinhentas. E eu digo-lhe para ele: “Tu não podes ali andar assim.” Depois vem para aí, ele ajeita-se em pintar e ele .... E então eu digo-lhe muitas vezes: “Deixa aquilo, porque não é agora que sai”. Francisco José Meruje: Pois não, é verdade, isso é verdade. José Augusto Mendes: Mas ele tem amor a isto e tem lutado para isso. Por isso, não havia dinheiro, não havia dinheiro e agora têm dinheiro. Mas agora digo eu, há sócios que não merecem. Eu mais o Francisco já fomos aqui prejudicados. Agora não há, mas teve aí um tipo no café, nós fomos, sem fazermos nada, nós fomos metidos ao barulho e não tínhamos culpa nenhuma e esses sócios deixaram até de aqui vir. Francisco José Meruje: Mas isso é em todo o lado, há sempre. Em todo o lado é assim. P: Como é que acham que a coletividade marcou a vossa vida? Imaginam a vossa vida sem a coletividade? Francisco José Meruje: Agora não, isto foram anos e anos aqui a trabalhar bem, eu tinha fins-de-semana que era até às quatro e cinco da manhã, quando era das marchas a fazer as coisas todas. Eu e as outras pessoas que ajudavam. Estávamos aí semanas e semanas, eram dois meses, dois meses de azáfama, a irmos de um lado para o outro fazer isto e aquilo. José Augusto Mendes: Antigamente trabalhava-se aqui. Éramos todos, faz de conta que era só um. Todos trabalhavam, porque havia sempre um que era o primeiro e então esse é que dava as ordens e era assim, nós concordávamos ou não concordávamos, mas era assim. Havia uma comissão, era organizada, mas havia um: “Vamos fazer isto” e nós .... P: Como é que era escolhido esse que liderava? Francisco José Meruje: Era o que tinha mais ideias e o que sabia fazer dessas coisas. José Augusto Mendes: E depois apresentava ideias e nós apresentávamos ideias, digamos, vamos a fazer isto ... havia sempre ideias. Aliás, nem sempre havia acordo e o Francisco sabe, nessa coisa ele é mais novo do que eu, não é muito mais, claro que faz a diferença, e a gente, as comissões era tudo ok. Era sim senhor. Quando se visse que havia um que era daqueles que andava a desviar, não, tinha que ir embora. E isso era logo de cara. Ali a malta trabalhava, batia as três, batia as quatro, batia as cinco, estávamos sempre com eles... Francisco José Meruje: Eram tempos magníficos… Isto das marchas também, a pandemia também veio estragar tudo. José Augusto Mendes: Eu tive o Carnaval. Saía e ia pegar às 8 da manhã, mas apressavam-me para que fosse mais cedo, porque tinha lá o trabalho. Eu às 3 da manhã saía daqui e ia logo pegar ao trabalho sem dormir, sem dormir e isso era quatro noites seguidas. Francisco José Meruje: Não, era gostar e ter amor à coletividade. Desde que se tenha amor à coletividade e que se goste dela, uma pessoa parte que vive por ela. José Augusto Mendes: Pode aparecer, é verdade, mas é difícil, é difícil. Apareceu agora o meu filho, vá lá, e o outro, vá lá, e o Covimúsica têm-se aguentado. Já lá vão muitos anos e têm-no aguentado sempre. Ele é que tem sido sempre a base. É ele, o mais velho, foi o que formou o grupo, ele e mais um colega, e o colega anda meio doente. Têm amor por isto. Francisco José Meruje: E agora, também é verdade, temos aí a zumba, que é uma atividade para pessoas casadas e tudo, enfim, senhoras, que às segundas e quintas feiras fazem aqui a sua magreza, as suas calorias desaparecerem e é mais uma coisa que dá pouco dinheiro, mas que interessa à coletividade. José Augusto Mendes: São sócias e pagam. Francisco José Meruje: Têm uma pessoa à frente, que está a tratar disso e que sabe fazer as coisas e às segundas e quintas feiras aqui estão. Não houve durante a pandemia, no ano passado, não houve nada, mas agora que já começou a abrir já fazem, porque não é grande, são 10 ou 12 pessoas e podem estar ali à vontade para fazer exercícios. É assim... -
2 de Junho de 2021
António Monteiro
P: Onde é que o senhor nasceu? António Monteiro: Foi aqui na Covilhã. P: E nasceu em que ano? António Monteiro: Nasci em 1936. Freguesia de São Pedro e foi aí que eu fui criado. E a partir daí, eu tive um acidente, é a realidade da minha vida e o que foi a minha vida. Foi o nascimento e aos nove anos tive um acidente. E muita gente que não sabe ou não se apercebe, porque eu uso óculos e não se apercebe que eu… De facto, tenho assim ideia… Mas nem vale a pena adiantar mais, porque… pronto. A partir daí é, é claro, tive uma vida, fui criando, fui subindo na vida, claro. Como garoto, eu cheguei aos nove anos na escola e tive um acidente e depois, a partir daí, dos 9 anos, a escola para mim parou, derivado ao acidente que tive na vista. Comecei a trabalhar, o tempo foi passando e com dificuldades naquele tempo, dificuldades que havia naquele tempo. Nunca nos faltando nada, os meus pais sempre trabalharam e nunca nos deixaram faltar nada, porque éramos sete irmãos. Nunca passámos fome, graças a Deus, e só cá estamos dois agora, éramos sete e já morreram cinco. Encontro-me eu e o meu irmão. Portanto, nesta vida e na situação que está agora, que é muito complicada. No entanto, coletividades, havia muitas coletividades, muitas cá na Covilhã, tinha umas 30 e tal. P: Diga-me só primeiro: começou a trabalhar em quê? António Monteiro: E comecei a trabalhar, eu comecei a levar os almoços para as fábricas da indústria. Pronto, eu vou responder à senhora. O meu trabalho, comecei a trabalhar aos 12 anos, comecei a levar os almoços: passava aqui, ia para o Ernesto Cruz, para o Fiadeiro, que eram as fábricas dos lanifícios, levava dois almoços para ganhar algum dinheiro. Aos 12 anos e de chinelos em cima da neve, e a chover, muita chuva, muita chuva e neve e então digo assim. E claro, eu sempre fui um indivíduo que gostei de trabalhar e pronto, deixei de trabalhar aos 65 anos. Pronto, eu quando me aposentei… mas já lá vamos, depois… É claro, eu comecei a trabalhar e andei a trabalhar, para cá para lá. Fui evoluindo na vida, fui evoluindo, depois fui mudando, digo assim: isto não pode ser, tenho que arranjar um trabalho – e arranjei logo para as fábricas. Fui, fiquei lá no Fiadeiro, portanto na fábrica O Fiadeiro, a trabalhar. Deram-me logo trabalho lá e estive lá, estive lá seguramente meio ano, seguramente meio ano. É claro, naquela altura quem desse mais dinheiro é que a gente… Queríamos mais dinheiro e então a gente mudava. Naquele tempo, isso naquele tempo… Arranjei então [trabalho] na tinturaria. Fui crescendo, fui crescendo, arranjei para a tinturaria. Estive lá também os dois anitos. Fui mudando, mudando para outras fábricas: trabalhei na Carlos Alberto Correia, trabalhei na recauchutagem de pintado. Também deitava sempre a mão a tudo, não é, porque eu sempre gostei de trabalhar. E o último trabalho… Portanto, eu fui, na questão de trabalho, já devido à minha maneira de ser… nunca deixando as coletividades, coletividade que eu me lembro que tinha lá à porta, que era a Estrela de São Pedro, chamavam-lhe o Estrela São Pedro. Comecei a jogar à bola e praticava lá os jogos da sueca e o dominó, com a malta que se juntava ...É claro, as coletividades para mim, foi… Ainda hoje sou um perdido pelas coletividades. E porquê? Porque eu gosto muito e porque eu sou um menineiro. Gosto muito das crianças e dou-me bem com as crianças. Não sei porque sim ou porque não. Eu tenho três netos, tenho dois filhos que… Já lá vamos... Na Carlos Alberto Correia, voltando à fábrica, aí é que eu me casei. Trabalhava na Carlos Alberto Correia, casei-me aí em 1967. E, é claro, já estava melhor, mas depois daí casei-me, fui jogar à bola, chamaram-me outra vez para ir a jogar bola, porque era bom jogador. Então continuei na tinturaria, de noite, da meia noite para o dia: mais dinheiro, mais dinheiro à hora. Todo contente, todo contente, já casado. P: A sua mulher também trabalhava na indústria têxtil? António Monteiro: Sim, a minha esposa também trabalhava, trabalhava no Ernesto Cruz. Casei em 1967, comecei a namorar a minha esposa em 1965. Em 1967 casei. Ela trabalhava no Ernesto Cruz, e eu lá consegui, a minha mulher era doméstica e eu tirei-a de doméstica e pu-la na fábrica, até as empresas fecharem. Depois, então, ela saiu da Ernesto Cruz. Depois, então, naquele tempo já havia a Universidade, e então consegui metê-la na Universidade, na cozinha. Porque a minha esposa era doméstica, trabalhava de doméstica, e então sabia fazer de tudo, e eu consegui metê-la na cantina da Universidade. Esteve lá 20 anos a trabalhar e aí se reformou e eu encantado da vida também, porque depois deu eu sair da outra fábrica, fui para o Santos Pinto, uma fábrica também de lanifícios. P: Qual era o seu ofício? António Monteiro: Era tecelão, mas pouco lidava com os teares. Mas lidava com outras máquinas, meadeiras, torcedeiras, embrulhadeiras, eu trabalhava com isso tudo, eu sabia trabalhar com essas coisas todas. Conclusão, a altura das greves, altura das greves… Complicado, complicado… Casado, com o primeiro filho, 1968, foi quando fui para o Santo Pinto. No Santos Pinto é que eu agarrei: é que isto está tão mal, tão mal, eu vou tentar desenrascar-me, e então queria arranjar um trabalho fixo que me dê garantias para que eu pudesse sobreviver na minha vida, e não andar aqui na nas greves, nos lanifícios. E então lá consegui arranjar um lugar na Câmara Municipal da Covilhã, portanto, no Mercado Municipal. Estive lá 20 anos, estou aposentado da Função Pública. Ora, voltando às coletividades, fui sempre um indivíduo dedicado às coletividades. Como disse, estive no Estrela de São Pedro, que era logo também era ali perto onde eu morava. Quando casei, mudei para a freguesia de Santa Maria e ainda hoje lá moro. 45 anos que morei numa casa, tive que mudar para outra casa, porque a Câmara necessitava de fazer obras. Pronto, consegui mudar. Ora, eu morava ali em Santa Maria, portanto, eu fui morar para o pé da banda. Mas, voltando atrás: quando eu estive no Estrela de São Pedro, éramos muitos amigos, muita rapaziada, que havia ali naquele tempo, andava tudo a brincar nas ruas, que hoje não se vê ninguém a brincar, hoje não se vê nada. É claro, a gente juntava-se nas coletividades, nos bailaricos. E a gente divertia-se nas coletividades, no Estrela de São Pedro. Depois, quando fui para cima, para Santa Maria, tínhamos o Águias de Santa Maria, também onde eu jogava à bola, onde eu joguei à bola muitos anos. E ali estive, no Águias de Santa Maria. Portanto, estas coisas com o tempo também vão fechando, não é? É de facto pena, esta juventude não ligar às coletividades. Porque ali nas coletividades aprende-se muito, aprende-se muita coisa, muita coisa aparece, muita coisa… Aprende-se o bom e o mau, mas é sempre melhor. Bom, eu estou todo radiante em Santa Maria, com o Águias de Santa Maria. Foi aí, de facto, que eu conheci a minha esposa, nos bailaricos. Estou feliz. Então, tinha o Santa Maria, eu morava ao lado da banda, mesmo ao lado da banda. A banda é minha segunda casa. Eu sou feliz de estar aqui nesta casa, porque me sinto bem, sinto-me feliz. Eu sonho com a banda. Eu quando era mais novo, eu fazia os meus trabalhos. Agora já não sou capaz. Já não sou capaz de fazer o que fazia aqui, nas festas da banda. Aquele Jardim de Santo António que vai lá (já agora, eu também sou António), fazíamos aqui as festas de São João, São Pedro. Andava em cima das árvores, eu fazia, eu era... E às vezes diziam: não caia, não caia. E, quer dizer, a gente às vezes caía, mas levantávamo-nos e lá continuávamos. Queríamos era, de facto, fazer as coisas, que é para ficar uma coisa linda que nós fazíamos aqui. É claro, estas coisas querem muita vontade, querem muito crer para que o que nós fazemos chame mais um amigo, uma menina, um menino. Também cá tive a minha filha. É claro, e voltando aos filhos: agora tenho dois filhos. Tenho o meu rapaz, que tem 44 anos, é doutor, tem o curso de economista e vive em Braga, está na Câmara de Braga. A minha filha, que tem uma diferença de 7 anos, é doutora, é professora, higienista. Estou feliz, sinto-me feliz. Tenho uma mulher que é uma querida. Eu tenho uma mulher que é uma querida, eu também sou um querido para ela, porque sempre gostei de trabalhar e sempre de viver e sermos educados uns para os outros. Temos que ser educados uns para os outros. Isso sempre foi o meu lema, a educação. Então foi a educação que eu dei aos meus filhos. Os meus filhos estão casados. Tenho a minha filha, que é higienista, que é a [...]. Tem dois meninos. É um casal. O meu filho é o [...], que está na Câmara de Braga, que tem um menino, que é o [...], que tem 15 anos. E então esta vida foi sempre para mim, foi sempre uma vida regalada… Foi não me preocupar com estas coisas. Às vezes, quando há alguma coisa que temos de nos preocupar… Mas levei sempre uma vida regalada, sempre uma vida com serenidade, saber lidar com as pessoas, unirmo-nos e aqui na banda, com estas crianças aqui, que felizmente que há, agarrava, comprava uns rebuçados e “tomem lá meus meninos”. E, de facto, o meu querer era esta casa nunca acabar. Com a idade que tenho, faço 85 anos, gostava de até aos 100 anos andar aqui. Chegar aos 100 anos e sentir: é pá, eu pedi até aos 100 anos e cheguei aos 100 anos e estou aqui, Mas, então, Deus nos dê saúde. P: Diga-me uma coisa: professa alguma religião, é católico, vai à Igreja.? António Monteiro: Sou católico. Sou eu e a minha esposa, e vou todos os dias à missa. P: E é de algum partido político? António Monteiro: Não. P: E esta propensão para o associativismo e para as coletividades. Acha que é da família, os seus pais já participavam nas coletividades? António Monteiro: Quer dizer, isso, a questão dos meus pais... Não, os meus pais, eu nunca tive conhecimento de que, de facto, que os meus pais… Portanto, trabalhavam na lavoura, trabalhavam nas quintas. Nunca tive conhecimento que eles... nesse tempo não se conhecia as coletividades, não é? Não, não havia coletividades. P: Então, o que é que o motivou a vir para as coletividades? António Monteiro: Eu, motivar-me em vir para as coletividades? É eu ser uma pessoa… é gostar, gostar de facto de lidar, saber lidar com as pessoas, honestamente, lidar com as pessoas, o convívio em si, isso é que me diz tudo. Agora, é a continuação, é claro, espírito… Tudo tem os seus quês, não é? A continuação das coletividades e arranjarmos sempre uma direção. Alguns ali na direção, já não sei lá quantas vezes… Já me mudaram para vice-presidente, depois volto para trás, depois volto para cima. Sou sempre um indivíduo que ando aqui de um lado para o outro, não é? Está tudo bem, da minha parte está tudo bem. P: Então e na sua infância, na sua adolescência, as associações foram importantes para a sua formação? António Monteiro: Sim, foi. A minha formação foi, portanto… a gente vai aprendendo, a gente vai aprendendo uns com os outros, nas coletividades porque, se a gente abandonar a coletividade, se não ligarmos mais a isto, isto acaba por morrer, não é? Não Fui aprendendo alguma coisa, aprendi alguma coisa. A gente está sempre a aprender. Aparece sempre alguém que diz: oh Monteiro, você isto, aquilo… Eu vou mas é embora. Não, não, você não pode ir embora. Temos aqui um professor, porque o Professor [...], para mim é um homem que foi um Deus que apareceu aqui na Covilhã… Isto faz-me lembrar, na coletividade, ainda era naquela além, estava eu estava eu sozinho na sala de direção, quando ele apareceu. Tínhamos lá um empregado e procurou se estava alguém da direção e por acaso estava lá eu e assim: está ali o Sr. Monteiro. E, então, o professor [...] apareceu, estivemos a conversar e isto é que a gente vai aprendendo. Eu estive a conversar com ele ali uma hora e meia, duas horas e digo assim: chegou a hora de irmos ali beber uma cervejinha ali ao bar. Ah, sim senhor. Estivemos lá, voltámos. Eu aprendi e estou aprendendo com ele, com o [...], um grande amigo, grande amigo, grande homem, grande professor, grande doutor, não haja dúvidas que é um grande amigo, eu considero que é um alentejano assim mesmo de gema. Quero dizer com isso que cá me encontro a trabalhar com esta minha satisfação. P: O que é que foi a coisa mais importante que aprendeu nas coletividades? António Monteiro: Foi saber lidar com as pessoas. Mais importante foi saber lidar com as pessoas, com as crianças, com as senhoras. Temos aqui uma direção, que eu não tenho dúvida alguma em respeito a isso: aqui com respeito acima de tudo. Aqui não há maldade. Respeitinho acima de tudo. P: E diga-me uma coisa. Antigamente, quando começou a participar, era um período muito difícil, as pessoas tinham vidas muito difíceis. As coletividades organizavam algum tipo de ajuda com as pessoas? Espetáculos em benefício de um sócio doente, ou coletas em momentos de dificuldades? António Monteiro: Quer dizer, as dificuldades… sempre houve dificuldades. Debatemo-nos com muitas dificuldades aqui. Só quem por cá passou, o que temos aqui… Um casa, de facto, que só visto. Grande homem, como disse, o senhor [...], também fez para que esta casa, que é uma casa que construíram, uma casa que eu vejo que está cada vez cada vez mais, e mais, melhor e melhor. Ora, o aspeto de dádivas, ofertas, é muito complicado, muito complicado. P: Antigamente, quando era mais jovem, no tempo antes do 25 de Abril, as coletividades não organizavam formas de entre ajuda entre os sócios, quando um precisava? Ajudavam-se uns aos outros? António Monteiro: Já nessa altura, de antes do 25 de Abril, já havia aquela união, aquele gosto para termos a nossa coletividade, aquela vontade… Isso já vem daí, esse faz tudo por tudo, esse devemos fazer algo para nós ajudarmos. Isso é que me faz lembrar… que me repugna que uma coisa que às vezes… o passado que é... fazerem estas coisas, a gente preocupar-se com estas, não ter dinheiro, como é que vai ser? Eh pá tem que se resolver, tem que se resolver, de uma maneira ou de outra… A gente fazia muitos sacrifícios para que... P: Pois, para comprar os instrumentos e essas coisas, era preciso reunir algum dinheiro... António Monteiro: Claro, muito trabalho, muito trabalho para comprar os instrumentos, muito trabalho e entre ajuda, fazermos uns bailaricos para fazermos dinheiro, fazermos aqui uns almoços para servirmos, para angariarmos dinheiro para estas coisas, para instrumentos. E temos aí tantos jovens, e não temos de facto dinheiro para comprar instrumentos. E é muito complicado, nós querermos dinheiro para comprar um instrumento e não termos. Portanto, andamos sempre ao faz favor, temos que comprar mais um instrumento, entraram mais duas crianças e não temos instrumentos. Isto é complicado. O maestro também, o Sr. [...], também é um grande… é um jovem. Chegamos a esse ponto, é uma criatura que está mesmo dedicado aqui para a nossa banda. É um grande homem. Tem um grande valor. E ele precisava de mais instrumentos para pôr os garotos a tocar. P: E lembra-se, antes do 25 de, Abril se as coletividades tinham problemas com a polícia, ou seja, num período mais difícil, lembra-se de algum momento de dificuldades dessa natureza, ou seja, de não conseguir desenvolver todas as atividades que queriam? António Monteiro: O 25 de Abril, e eu digo para mim, não me diz nada. Eu disse: o 25 para mim, não disse nada. Eu toda a vida trabalhei, e veio o 25 de Abril e continuei a trabalhar. Para mim, é igual. P: Não nota, não acha que são diferentes os tempos de hoje? António Monteiro: É diferente uma coisa, uma coisa que é o mais importante, o respeito. Falta de respeito, não há respeito nenhum. Perderam o respeito: os pais para os filhos, [os filhos] com os pais. Falta de respeito. Isso é o essencial, o essencial é o respeito, em nome dos meus filhos, nunca os meus filhos faltaram ao respeito. Nunca eu faltei ao respeito aos meus pais, aos meus irmãos, nunca. Não faltei ao respeito a ninguém. Nasci pobre, criei-me, criaram-me, cheguei este limite pobre, mas sempre com respeitinho. Os meus pais: meus filhos, vocês dêem-se sempre bem uns com os outros. Se houver algum problema, ajudem-se uns aos outros. A minha mãe teve 17 anos sem ver. E disse: meu filho, eu vou morrer, vou morrer, morrer com 87 anos e tive 17 anos sem ver. E ela disse: meu filho (que eu era o mais querido, não é por dizer, por dizer que eles também não eram queridos, mas eu era mais que estava lá em casa e tinha a minha esposa, que era uma segunda filha). É assim, a minha [...], era a minha querida, era a minha esposa, não faltava lá nada, à minha mãe, com 17, não, com 16 anos sem ver, é de uma dificuldade, não é? E então, diz assim: ó meu querido, a mim só me chamavam Toninho, oh Toninho. É claro, nasceram os meus filhos, o meu Paulinho, que é doutor, é que ia a casa da avó: oh mãe, eu vou ver se a avó precisa de alguma coisa. Nessa altura, isso do 25 de Abril, portanto, nasceu em 67... P: Eu estava-lhe a perguntar como é que acha que as coletividades evoluíram. Já tem uma experiência tão longa. Quais são as principais diferenças? Aqui a banda está exuberante, não é? António Monteiro: Sim, a banda e o que é, são as boas vontades, porque isto se não houver boas vontades, não vai a lado nenhum, não é? É de facto mal empregado algumas coletividades terem fechado, à falta de pessoas que queiram trabalhar, humildes, a fazerem para que as coletividades subam e requerer mais da casa em si, haver mais movimento, manter as pessoas para aprenderem qualquer coisa. Porque hoje em dia não se vê nada disso, as pessoas fogem. Não se vêem aí na rua a brincar. Desculpe a expressão, mas só vêem é maldade. O 25 de Abril é que deu cabo disto. A falta de educação para mim foi o 25 de Abril. Eu vivi toda a minha vida no tempo do Salazar, era um respeitinho. A mim o 25 de Abril não me adiantou nada. Eu toda a vida trabalhei, como disse, toda a vida trabalhei e trabalho... P: E a sua mulher também participou nas coletividades? António Monteiro: A minha esposa, sim também, também fazia. P: Ela também assumiu cargos de direção? António Monteiro: Não, a minha esposa nunca. A minha esposa, no clube Grupo Desportivo da Mata… A minha esposa morava lá em cima ao pé do Grupo Desportivo da Mata. Mas nunca fez, nunca entrou na direção. P: E que tipo de atividades é que ela desenvolvia lá? António Monteiro: Lidava com aquela juventude que ali havia, portanto, as senhoras… mas nunca foi uma mulher dedicada, portanto, ajudava, ajudava no que fosse necessário, não é? P: E estava-me a dizer que fez parte de várias direções, foi aqui sobretudo na banda ou também esteve noutras coletividades? António Monteiro: Águias de Santa Maria, Estrela de São Pedro. P: Também teve cargos da direção nessas coletividades? António Monteiro: Sim, sim. Jogava à bola, fazia tudo. P: E como é que conciliava essa dedicação, esse trabalho voluntário, com a família, com o trabalho? António Monteiro: A dedicação era própria mesmo nesse caso, porque eu vivia com a com a juventude em si, eu dizia, casa-coletividade, casa-banda. Ou digamos, Casa-Estrela de São Pedro, porque também vivíamos ali, eu morava em Santa Maria, tínhamos ali a coletividade, o Águias de Santa Maria. O Águias de Santa Maria também era uma coletividade que tinha bilhares, tinha damas para entreter e tudo isso. E então, para passarmos as noites, um bocado da noite. Que me faz lembrar que a Águias de Santa Maria foi a primeira coletividade a ter televisão aqui na Covilhã, salvo erro em 1954. Primeiro a televisão foi para aí, a preto e branco, para o Águias de Santa Maria. A coletividade que a gente… pronto, a gente saía do trabalho e íamos para ali, para acolá, para a coletividade, era Águias de Santa Maria-banda. Eu jogava à bola lá em cima e vinha para aqui, viver com as crianças aqui, porque a banda era lá, à porta de onde eu morava, mesmo onde eu morava. Eu morava no largo e onde era ali, portanto, o fogo em 1993, salvo erro… Eu ainda lá andei a apagar, com uma mangueira, porque deitaram fogo à banda e ainda lá andei. O que eu fiz por aquela casa quando era diretor, com o Sr. Moreira, muitos anos, e outros mais. Isto na banda lá em cima. [...] António Monteiro: Resumindo e concluindo, aquela casa ali era muito boa, era muito boa, mas também lá chovia, e foi na altura que fomos falar com o presidente [...], e ele arranjou, fez o favor de nos arranjar... E então viemos para aqui, aqui a trabalhar, a sujarmo-nos todos, foi um grande sacrifício que fizemos, tudo a correr depois para ir para o lado também. E éramos todos, todos os diretores e mais os sócios, e isto é que era bonito. A gente pedia um favor, um sócio… Depois já bebíamos um copo, depois um dominó, depois um lanchezinho, e pronto vamos lá. Fazia-me feliz e hoje é muito difícil de ver: se for para o jardim, estão ali a beber cerveja. Ninguém vem para aqui. Mas deviam vir aprender qualquer coisa. A música, que é a coisa mais Linda. P: Estão e o que acha que é o futuro do movimento associativo? António Monteiro: Olhe, minha Senhora, o futuro? O futuro o dirá, não posso adiantar mais nada. P: E o que é que desejava que acontecesse? António Monteiro: Ai, o que é que eu desejo para mim? Sempre o melhor, ter esta casa sempre aberta até eu morrer. Esta casa fica aberta. E se eu for na frente, a minha mulher ter força e nunca deixar de vir a esta casa, que ela também gosta muito aqui da banda. E um dia, quando eu for, levo a banda no meu coração. É aquilo que vejo, que deixo aos meus queridos, é aquilo que eu lá tenho. Olhe, fui contador do Sporting, a minha vida foi sempre a trabalhar, 45 anos a trabalhar, 45 anos a cobrar as quotas do Sporting. Andar de inverno, a chover, a nevar, a fazer sol, pelas ruas. Para o Fundão, para o Paul, Unhais da Serra, Teixoso, Aldeia do Carvalho, 45 anos. E isto porquê? Porque a vida assim dizia, temos que trabalhar para termos alguma coisa. Meu lema foi este, tenho que trabalhar enquanto puder, enquanto puder trabalho. Cheguei aos 45 anos, fui 45 anos cobrador. Tenho lá diplomas de cobrador, tenho lá diplomas daqui da banca, tenho diplomas do Águias de Santa Maria. Tenho lá um quarto, tenho uma casa grande, tenho tudo exposto. E é isto que faz para mim. É a satisfação que eu tenho. E quando chegar ali a olhar para alguns diplomas: Águias de Santa Maria, São Pedro, Banda da Covilhã, Sporting da Covilhã, 3, 4, dador de sangue, 2. 46 dádivas de sangue. 46! Não é brincadeira nenhuma. Sinto-me feliz. Só preciso é saúde, só preciso é... Apanhei esta malandra desta doença e também peguei à minha esposa. A não é por acaso que tive sorte. Tive sorte porque eu apercebi-me de que estava mesmo doente e disse à minha esposa, eram 11, 11 e meia da manhã: eu não me sinto bem, leva-me para casa, vamos comer e vais me pôr hospital. Tenho uma grande mulher, amiga grande. P: Imagina a sua vida sem as coletividades, ou seja, as coletividades modelaram a sua vida, a sua vida fazia sentido sem as coletividades? António Monteiro: A minha vida foi sempre assim, eu vivi sempre a minha vida com as coletividades. Nunca deixei de ir às coletividades. Quando era cobrador do Sporting, eu corria as coletividades todas, eu ia à beira dos sócios. E então, o convívio em si, que se apanha a ligação com as pessoas, com os doutores, com os advogados, com os mais pequenos. E aí é que eu vou aprendendo, aí é que eu aprendi, aí é que me fez ser homem, foi lidar com as pessoas, lidar com os meninos. Sinto-me radiante, sinto-me radiante da maneira como isto, como esta situação está, e vejo o que isto é e como era a antigamente. Hoje em dia temos que ter muito cuidado, estamos a andar por um caminho muito difícil. E então todo o cuidado é pouco. -
1 de junho de 2021
António Manuel Lopes Moreira
P: O senhor nasceu aqui na Covilhã? António Moreira: Nasci, nasci, a 4 quilómetros da Covilhã, hoje Canhoso. Mas com a idade de 5 anos vim viver para o centro da cidade, que é mesmo atrás da Câmara Municipal da Covilhã. Ainda hoje tenho a casa onde vivi toda a vida, que é a Taberna do Laranjinha, não sei se conhece, não conhece? Mas pronto, foi aí que foi passada toda a minha juventude, precisamente no centro da cidade, que é mesmo a 50 metros da Câmara Municipal da Covilhã. P: Viveu sempre aqui na Covilhã?. António Moreira: Vivi sempre toda a vida aqui. Bem, depois em África como militar e depois, como militar, fui para a Alemanha. Vim de África, fui para Alemanha. Estive seis anos na Alemanha. E depois vim, precisamente continuar o trabalho que tinham tido os meus pais. P: Qual é que é o trabalho dos seus pais? António Moreira: O meu pai tinha uma agência funerária, que ainda hoje tenho. P: E foi sempre essa a sua profissão ou teve outra? António Moreira: Infelizmente, quando eu tinha 10 anos, o meu pai teve uma doença grave e esteve internado quatro anos. E, então, obrigou-o a vender o negócio, o meu pai, que foi para... E eu a partir daí acabei a minha primária com 10 anos e meio, e o meu pai estava internado num sanatório e a minha mãe, coitadita, é que tinha que trabalhar para todos nós, não é? Não chegava e eu tive que ir a trabalhar. E com 10 anos e meio já estava a trabalhar numa fábrica de lanifícios. P: Qual é que era o seu ofício? António Moreira: Era, na altura, indústria de lanifícios, tecelão. Primeiro comecei como aprendiz, mas depois cheguei a tecelão profissional, tenho a carteira de tecelão profissional. Por volta dos 15 anos. E depois fui para África, de África vim, fui para a Alemanha, continuei no mesmo ramo, na fiação na Alemanha, e depois em 1977, vim comprar um negócio que tinha sido do meu pai e tinha vendido a outras pessoas. Fez um circuito - pelo menos mais dois donos - e veio. Ainda hoje tenho muitas peças que eram do meu pai, de 1950. Tenho, nomeadamente, uma carreta que antigamente era uma carreta bonita, cheia de panos. Tenho ainda… eu tenho um centro onde, digamos assim, um museu onde tenho todas essas essas peças, que estão à vista de toda a gente. P: O seu pai tinha então essa profissão e a sua mãe, qual era a sua profissão? António Moreira: A minha mãe também trabalhava na indústria de lanifícios. Tinha a mesma profissão do meu pai, na altura. Não, minto, o meu pai tinha a agência funerária. Após o acontecimento do meu pai, tive que ir eu trabalhar e a minha mãe. P: Qual era o ofício dela? António Moreira: A minha mãe era exbicadeira, quer dizer, era a tirar… As fazendas tinham pequenos defeitos e ela tirava umas bicas. Exbicadeiras, penso que era assim. Eu não, eu comecei por ser aprendiz, mas depois cheguei a tecelão profissional, tenho a carteira profissional, ainda hoje pertenço aos lanifícios, apesar de já terem passado muitos anos. P: Depois casou-se, a sua mulher também trabalhou na indústria dos lanifícios? António Moreira: Também trabalhava na indústria de lanifícios, conhecemo-nos, na altura, com 18 anos. Depois eu vim a casar até antes de ir para o Ultramar. Tive um filho, que ainda hoje temos, graças a Deus. Nasceu, curiosamente… Eu ando a tentar fazer um livro da minha vida, porque tem várias, várias passagens, esta foi uma delas. Veja o que era no tempo do Salazar: por 14 dias não deixaram sequer ver nascer o meu filho. Cheguei a Luanda e 14 dias depois de chegar a Luanda, nasceu o meu filho. Eles não queriam saber disso para nada. Eu a dizer que é que a esposa que estava grávida e que estava à espera do filho que era mais um mês e não… tive que partir, porque felizmente a minha a minha profissão, a minha atividade no Exército também era uma atividade de muita responsabilidade, eu pertencia aos serviços secretos. Lá, digamos assim, no meu gabinete, onde eu trabalhava, nem o comandante podia lá entrar, tinha de pedir licença, porque...Todas as mensagens que chegavam ao quartel, todas as notícias antes do comandante, sabia eu, e depois eu é que ia com o protocolo a dar para ele assinar, portanto, operador cripto naquela altura era uma especialidade rara, digamos assim, mas que também ainda hoje não sei como é que eu fui, vindo eu... comigo trabalhavam lá muitos já com outro…, com outro cursos académicos, não é? Nomeadamente com a quarta classe, com o quinto ano, com o quarto ano e eu com a quarta classe fui...tirei um curso de escriturário primeiro, que nunca tinha visto uma máquina de escrever, andei no RAL 4 em Leiria, onde tirei a especialidade de escriturário. Vi-me aflito para passar, tinha de andar à procura das letras, mas depois consegui passar aqui e fui para os serviços secretos, que dava-me essa componente de ter, onde quer que andei, tive sempre um gabinete para mim ou outro colega como eu para trabalharmos, nunca podia lá haver mais ninguém. P: Quando esteve a trabalhar na Alemanha também esteve a trabalhar na indústria têxtil, e quando voltou, voltou a trabalhar na indústria têxtil? António Moreira: Não, quando vim, vim precisamente já com o objetivo de comprar, porque eu estava a trabalhar lá e o meu pai, coitado, é que me disse: porque é que não me vinha embora, que entretanto o meu filho fez sete anos. Iria matriculá-lo na escola alemã e transmiti isso aos meus pais, na altura: olha vou, vou, vou ficar definitivamente na Alemanha porque o garoto vai começar a escola e depois não é ao meio... Um dia sai daqui, não é? Porque estava numa empresa que tinha 10 mil operários, era uma empresa Internacional. E, nessa altura, o meu pai: porque é que tu não vens que está ali uma funerária que era nossa, que está fechada e que eras capaz de governar. É, eu tive uma vida... Eu vim, só que, infelizmente, depois passado três anos morreu, depois de eu ter comprado a funerária, portanto, aquele braço direito que eu pensava nele, infelizmente depois ele morreu, mas eu dei a volta por cima e ainda hoje me orgulho de ser, talvez, das maiores funerários do país, nomeadamente a nível Internacional. Fui pioneiro nos serviços a ir ao estrangeiro buscar portugueses. Ainda hoje vamos para toda a Europa. Tenho uma empresa que anda sempre no estrangeiro, tem o melhor centro funerário do país. Tenho ali, no Tortosendo, uma área de 400 m, que nem em Lisboa há, onde todas as pessoas, e eu conheço bem o país do Minho ao Algarve. Portanto, consegui objetivos muito, muito bons, na minha vida profissional e familiar, claro. Hoje tenho dois filhos que são os meus braços direitos e a minha companheira, há 53 anos que estamos casados, e graças a Deus, tudo tem corrido bem nesse aspeto. P: Só para terminar esta parte mais biográfica, tem alguma religião? António Moreira: Sim, sou católico, não um católico praticante, não há tempo para essas coisas, digamos assim, mas sou católico de coração, de batizado e, assim como a minha família toda, toda ela é realmente católica. P: E tem alguma filiação partidária? António Moreira: Nunca tive. Sou um amante das liberdades, mas confesso que não me revejo em partido nenhum político. Gosto muito, aprecio muito um bom, um bom político. Dou valor, seja ele da esquerda ou da direita, não, questiono a política deles, mas admiro sempre um bom líder, uma pessoa que faça andar este país para a frente. Foi sempre o meu sentido, os objetivos que eu tive, foi sempre e por isso tenho a medalha de Mérito Municipal e outras medalhas. Tenho precisamente porque fui sempre uma pessoa inovadora que, sempre com vontade de impulsionar as coisas para a frente. Não dou valor a um político medíocre. Infelizmente, temos muitos, mas pronto. Eu gosto muito de analisá-los e depois, quando é a altura da eleição, tanto voto num como voto no outro, voto na pessoa que eu acho com mais competência para ajudar o nosso país. P: Mas no que diz respeito à filiação associativa, já é outra coisa... António Moreira: Isso não, isso não. Isso faz parte da minha, digamos assim, da minha criação, da minha educação, daquilo que sou hoje. É uma pena que, infelizmente, o associativismo hoje, como eu disse, esteja a ser maltratado, porque na minha época, há 50, 60 anos atrás, era a formação dos jovens, era no associativismo. Porque todos os jovens trabalhávamos na fábrica, outros noutros sítios, não tínhamos tempo para mais nada, a não ser um bocadinho para o desporto, para a cultura, para enfim, para tudo isso. E naquela altura os jovens praticavam muito, muito desporto. Tínhamos várias... aqui a Covilhã era e ainda é hoje, felizmente, um orgulho para nós, covilhanenses, porque somos, segundo aquilo que eu tenho ouvido dizer, a segunda cidade do país, depois do Barreiro, a segunda cidade do país com mais instituições ou associações. E isso é uma riqueza tremenda numa cidade destas. Infelizmente, que eu começo a ver e tento incutir nos meus filhos, agora nos meus netos para que eles seguissem esse rumo, porque o associativismo é uma escola, aprende-se tudo lá. P: E essa propensão para a participação associativa é de família, os seus pais já participavam? António Moreira: Não. A minha mãe, curiosamente, a minha mãe transmitia-me… Naquela altura não havia tantos clubes, não havia quando a minha mãe se criava, mas ela já pertencia ao rancho folclórico e era com agrado que ela às vezes me cantava algumas canções que no tempo que ela era jovem, cantava nesse rancho folclórico do Canhoso, aqui pertinho da Covilhã, a 4 quilómetros. O meu pai nunca lhe ouvi dizer que, confesso, que tivesse se metido nalgum clube. Naquela altura, havia também jogos populares, ele gostava muito dos jogos populares, ainda hoje, tenho um jogo popular lá numa das minhas garagens, que é preciso um espaço, daqui até lá ao fundo, garantidamente, um ringue, que é o chamado jogo da laranjinha, que também está no Facebook, o jogo da Laranjinha. Diz que existe em Lisboa, é mentira, existe na Covilhã também. Embora com pouca gente a perceber aquilo. Mas eu sei jogar à Laranjinha e ainda lá tenho as bolas e tudo com que se jogava à Laranjinha. Na taberna do meu avô havia o jogo da Laranjinha e eu recriei ali naquela casa atrás da Câmara, que hoje é a casa com mais fama na Covilhã, é a Taverna da Laranjinha. Toda ela, se lá for, está toda ela organizada por mim. Hoje aluguei-a a outra pessoa, mas tudo o que está ali foi feito pelas minhas ideias e hoje é com orgulho que digo que as pessoas de todo mundo vêm à Covilhã, vai tudo à Laranjinha porque é uma referência na cidade. P: Então, estava a dizer que na sua infância e na adolescência o seu associativismo foi muito importante. António Moreira: Muito importante, tirou-me da rua, tirou-me dos vícios. Veja que nunca fumei, nunca bebi, porque não tinha tempo para isso. Eu saía da fábrica às 6:00 horas, imediatamente chegava, primeiro com 10, 12 anitos, ia para o Águias de Santa Maria, onde aprendi a jogar ténis de mesa, onde depois comecei a jogar futebol e futebol de 11, participei em vários torneios aqui na Covilhã, altura que eram chamados torneios da INATEL, eram equipas que havia aqui na Covilhã, precisamente dos trabalhadores. Na Covilhã havia pelo menos umas sete ou oito equipes e disputávamos sempre um campeonato renhido, digamos assim, de todos os trabalhadores. Não havia ali profissionais. E, então, comecei ali. Depois, mais tarde, gostei muito do basquete, como não se praticava basquete fui para o Clube Desportivo da Covilhã, cheguei a ser federado em basquete, participei em campeonatos da terceira divisão em basquete, joguei andebol, joguei vólei… Vólei pouco... Pronto, quer dizer, eu não tinha tempo, até começar a namorar, o meu tempo livre era sempre a praticar desporto nas coletividades, onde líamos o jornal, onde começámos a ver televisão. A primeira vez que eu vi televisão foi no Águias de Santa Maria, porque ninguém… não havia televisão. Veja que isso era uma riqueza, até que depois fui, pronto, fui para o para o Ultramar, fui para a tropa, e aí esmoreci um bocadinho a nível de participação... Depois, quando vim, como estive pouco tempo em Portugal e fui para a Alemanha... Na Alemanha também não tive qualquer contato com qualquer modalidade desportiva lá. P: E nesse período, ainda antes de ir para o Ultramar, ou seja, antes do 25 de Abril, que memória guarda desse período? Por exemplo, lembra-se de alguma experiência de repressão sobre o associativismo por parte do regime, de limitações à liberdade associativa, por exemplo? António Moreira: Naquela altura, sabe, nós éramos praticantes, jovens. A gente via que os diretores tinham receios de vários acontecimentos. Nós, mais jovens, preocupávamo-nos era em praticar desporto. Infelizmente, havia, houve aqui em Santa Maria… lembro-me de alguns elementos que chegaram a ser presos pela PIDE. Acho que era mais a nível do trabalho, do emprego, do que propriamente do associativismo. O associativismo dava-nos liberdade para ver para onde é que a gente ia. Eu penso que no tempo do outro regime que eles davam-nos liberdade, davam-nos cordel, para ver para onde é que nós íamos, e depois se as pessoas estavam a entrar por outros campos é que provavelmente agiriam. Eu nunca tive participação em nada disso, nem também nunca fui contra ninguém, como é óbvio. Hoje fala-se no Salazar, o Salazar teve coisas muito boas e teve muito más, mas há uma delas que eu digo que era muito boa, que era o sentido patriótico, eu acho que ele era um bom português, quer dizer, gostava de Portugal grande. Não era fácil ele conseguir pensar que ficávamos sem Angola ou sem Moçambique. E isso, é um bocado do meu coração, sou português de gema, gostava de ver Portugal grande. A nível do que eu fazia, das coisas, enfim, daquilo que a repressão fazia sobre pessoas que não tinham liberdades e que estavam bem ou estar mal, obviamente não estou de acordo com isso. Eu acho que as pessoas têm a obrigação e o direito e o dever dizer quando estamos bem, quando estamos mal, mas gostava de Portugal grande, eu gostava de um país grande. P: Costuma-se dizer que eram tempos difíceis, mas que havia muita solidariedade, muita entre ajuda. Isso vivia-se nas coletividades? António Moreira: Sim, sim, sim, sim, isso sim, era onde havia irmandade… Eu, por exemplo, como não tinha irmãos, os meus irmãos estavam nos meus clubes. Aí a gente… todos eles eram meus irmãos. A gente jogava à bola, fazia isto, fazia aquilo. Éramos todos irmãos. É essa solidariedade que hoje falta nos jovens. Depois também não éramos ricos, pertencíamos todos a uma camada mais ou menos média, média baixa, e as pessoas necessitavam de ter amigos. Nós brincamos uns com os outros sem complexo de superioridade ou de inferioridade. Hoje já, infelizmente, é uma coisa grave. Hoje há destrinças de, enfim… afastou-se muito as pessoas umas das outras, porque é tudo rico, é um país rico, é pobre, mas, mas é tudo rico. P: E na Alemanha teve alguma experiência associativa? António Moreira: Na Alemanha, olhe, foi no início daquilo que está a começar, que acontece aqui já no nosso país. Quando eu cheguei à Alemanha, eu fiquei estúpido, porque via que na empresa onde eu trabalhava, que era a Grandstoff, que tinha, como disse, à volta de 10 mil trabalhadores, não se via um alemão, um alemão jovem. Eu trabalhei com muitos alemães durante seis anos, mas todos mais velhos que eu. Porque eu é que era jovem, fui para lá com 24 anos e os alemães, não. Apareciam alemães, às vezes novos, e passado 15 dias iam-se embora. Que é o que está a acontecer com o nosso país. Infelizmente, temos necessidade de importar mão-de-obra jovem, porque não estamos cá hoje. Os que cá temos querem outras atividades, outras profissões mais compensadoras, provavelmente. Aquilo que está a acontecer com os chineses e indianos lá para baixo, é sinónimo daquilo que aconteceu na Alemanha quando eu lá estive. Eu via que eles procuravam mão-de-obra. Eu trabalhei com pessoas de todo o mundo lá, desde as países… todos os povos… da Turquia, da Grécia, da Indonésia. Não trabalhavam lá franceses nem aqueles países mais… era tudo malta de países pobres à procura de trabalho e nós também. Naquela altura era a mão-de-obra barata portuguesa. Eu fui para lá ganhar, a fazer a mesma atividade. Aqui ganhava 2, lá fui ganhar 10. Era compensatório. Íamos todos à procura de melhorar as nossas vidas. Íamos fazer o que os alemães não queriam fazer. P: E criaram associações lá, os portugueses? António Moreira: Tenho um amigo, por acaso morreu há dias, que era o Raposo, ele era de Santarém e criou lá um clube desportivo. Tivemos lá um centro de portugueses, lá na zona onde eu estava. Tínhamos um rancho folclórico a imitar os scalabitanos. Portanto, o português enquadra-se imediatamente em todo o lado, em todo o mundo, à procura das suas raízes, como hoje. Não tem hipótese de ir para o nosso país, então faz... E nós, bem visto os portugueses, felizmente, é um povo que é considerado no mundo inteiro e em todo o lado. Quando chego, sou português, as pessoas aceitam porque somos um país educado e humilde e de brandos costumes, como se costuma dizer, mas somos um povo muito simpático para toda a gente e vê-se no nosso país. Toda a gente gosta de vir a Portugal, porque na realidade o português é maravilhoso. P: E essas associações que eram criadas entre os imigrantes ajudavam a integrar? A não terem tantas saudades de Portugal? António Moreira: Naquela altura era mais difícil, penso eu. Nós, na Alemanha, como não tínhamos uma colónia muito grande de portugueses, foi sempre mais difícil. P: Estava a falar da experiência associativa na Alemanha... António Moreira: Pois, como eu disse, na Alemanha nunca houve uma colónia muito grande de portugueses. E as cidades onde viviam os alemães eram cidades com pouca gente portuguesa. Era difícil fazer um clube, porque os alemães não iam lá, como é óbvio. Mas, por exemplo, onde eu vivia, em Heinsberg, aí conseguiu-se fazer o centro de português. E com pouca gente, como é normal. Mas com vários objetivos, nomeadamente o rancho folclórico. E ainda se teve lá uma equipa de futebol. Mas como não eram muitos, eu depois também me vim embora, confesso que abandonei, mas sei que acima de tudo… Fez um restaurante, esse meu amigo, que era o Raposo, fez um restaurante, que começou a ter a gente alemã e ele triplicou, quadruplicou, digamos assim, por várias cidades, depois da Alemanha. Atingiu uma bitola enorme de sucesso, esse rapaz, mas tudo começou com o nosso clube, precisamente do grupo de Oberbruch. P: Tinha-me dito que quando voltou da Alemanha, em 1977, com a sua esposa, que foram logo para o grupo de Educação Mello. António Moreira: Pois fomos, digamos assim, logo convidados para voltar às nossas origens, não é? Porque foi ali, praticamente, que começámos, no Grupo de Educação Campos Melo, um grupo que simplesmente foi quase a primeira escola na Covilhã, escola primária. Porque foi um grupo feito numa altura difícil lá do, portanto, do antigamente, em que foi doado um terreno por um senhor que era o Melo e Castro, a Fábrica Melo e Castro. Mas depois ali criou-se o primeiro centro de desenvolvimento, na altura, de certeza absoluta, das crianças que viviam naquele bairro e era um bairro de tipo operário e ali formou-se… até tínhamos uma escola primária lá em duas salas cedidas pelo Grupo. A partir daí, claro, que várias modalidades ali surgiram e vários êxitos se conseguiu, desde o teatro até outras modalidades. Tivemos um grupo de teatro, naquela altura, em 1960, um teatro muito famoso na Covilhã, era lá nesse Grupo Educação e Recreio. E pronto, esteve sempre, ainda hoje é das coletividades com condições acima da média. Tudo feito pelos trabalhadores, pelos operários. Claro que quando regressei, e como fui criado ali também com a minha esposa, naquela zona, fomos convidados logo imediatamente, porque era sócio há muitos anos do clube, e comecei. E a partir daí, a ser por duas vezes presidente da direção do Grupo de Educação Campos Melo, até que depois, então, desloquei-me mais para baixo, para a cidade, para o trabalho, e vim a viver então aqui para a zona da Câmara e aí comecei a frequentar a banda da Covilhã, que teve outros objetivos, já agora na música. Curiosamente, são coisas que eu nunca tive qualidades, que às vezes digo aqui para os músicos: sou presidente da Assembleia Geral, neste momento, já há alguns 14 anos ou 15 anos, aqui da banda, mas nos discursos costumo dizer aos músicos que eles são artistas. E é engraçado, porque eu tenho muita pena que isto é um dom, o ser músico, como outra modalidade, como o Ronaldo tem aquele dom para o futebol, mas a música é ter-se um dom, que é que as pessoas atingem objetivos maravilhosos. Eu, ainda há bocadinho, dizia ao professor aqui da banda… foi esta semana que fui além a Viseu e numa daquelas ruas lá da parte histórica de Viseu às tantas ouvi a música: eh pá, música bonita aqui está, a cidade está alegre, digamos assim. E fui transitando até que cheguei à rua onde estava um senhor com um acordeão, uma aparelhagenzita a fazer bateria, mas o homem com acordeão dava ali o sainete naquela cidade em que toda a gente passava para um bocadinho ouvir, deixava a moeda. Ele não era ceguinho, não era, não era nem ninguém inválido, mas pronto. Eu penso que aquele artista, porque ele era um artista em vez de estar em casa parado, a dormir ou se calhar sem saber o que havia de fazer, estava ali, dava alegria à cidade, ao povo e ele até as pessoas compensavam com algum dinheiro, com certeza, que ao fim do dia recolheria e servia muito bem. Isto aqui, a nível da banda da Covilhã, eu fui sem querer metido na primeira direção, como presidente da banda da Covilhã, em 1991. Como eu disse, infelizmente depois ardeu, mas nós não deixámos morrer esta Casa. E hoje tenho muito orgulho do que temos. Porque somos dos melhores do país. Não é uma banda, é uma orquestra, nós hoje vamos ali…. Há ali 100 jovens todos a tocar vários instrumentos. Isto é próprio da sorte que tivemos aqui, com o Professor [...], que sendo alentejano, mas que apanhou aqui a Covilhã… Gosto, e ele é um dedicado a isto, deixa tudo, como vê e está aqui sempre, enfim. Casou, como eu disse, como às vezes lhe digo, ele casou, um excelente professor universitário de Medicina, ele casou com a banda da Covilhã e ele adora isto, pronto. O que é certo é que a Covilhã tem aqui hoje uma riqueza extraordinária. Crianças de todas as idades aqui estão a tocar, a aprender, quase sem pagarem nada ou, se pagam, é uma ninharia e estão, a sair constantemente daqui artistas, artistas. Porque também tenho outra coisa engraçada, que é verdade. Tenho um amigo que é enfermeiro e dizia-me ele há tempos: o Joãozito, que eu vi nascer, senhor Moreira eu, às vezes, mais outro amigo que temos, eu a tocar viola, ele a tocar concertina, já percorremos quase o mundo inteiro, desde a Nova Zelândia, à Rússia, Austrália, todos esses países... chegamos lá, a gente arranja o dinheiro para a viagem, chegamos lá, paramos lá numa praça, ele a de um lado e eu do outro, com a bandeira portuguesa, ao fim do dia, temos lá sempre dinheiro garantidamente para as despesas que tivemos e até acabamos sempre por nos pagar a viagem. Isto só para dizer que, como eu às vezes digo aqui aos garotos, vocês estão aqui a aprender uma coisa que nunca sabem se amanhã são artistas, são pessoas que ganham a vida estrondosamente em qualquer parte do mundo. E então, eu digo sempre: vocês venham, porque isto é uma arte, tomara eu, eu dava dinheiro para saber tocar um instrumento. Não tenho nenhum, por muito que tivesse tentado, não me saem notas. P: Não tendo essa vocação, o que é que o motiva a estar tão envolvido na coletividade? António Moreira: Isto parece incrível, mas eu caí… Nas outras coletividades não, porque eu gosto muito de desporto, eu adoro desporto, futebol, mas acima de tudo, neste momento gosto mais é de ciclismo, o ciclismo... Mas a música foi sem querer, como era ali à porta fui arrastado por um grupo de amigos, que aquilo estava para fechar, e ganhei também o desejo profundo, epá eu adorava, porque na Alemanha, onde eu estive, uma das riquezas que havia lá é que em qualquer aldeia havia uma banda juvenil. Não se viam os da minha idade, não se viam pessoas de idade nas bandas a tocar na rua, era tudo malta... Eu às vezes ia a Colónia, a Dusseldorf, era bandas que havia ali, tudo malta com 20, 25, no máximo 30 anos. Mas, começando ali com sete ou oito anos, tem uma riqueza extraordinária nas bandas lá na Alemanha. E aquilo, é pá... a Covilhã, era engraçado um dia ter uma banda juvenil, sair para a rua com as criancitas a tocar pífaro. E assim, eu, quando me meti aquela, quando fui para lá convidado, eu disse aos meus companheiros de direção: meus amigos vamos meter mãos à obra, vamos ver se conseguimos fazer uma banda juvenil na Covilhã. É um sonho, amanhã daremos exemplos às outras cidades no país, apresentando na rua ou em qualquer lado uma banda de crianças, porque normalmente é uma tendência para as pessoas de idade é que estão nestas bandas. Mas donde eu vim, eu via jovens e eu não consegui, na altura, na direção, não consegui fazer isso, porque estive apenas dois ou três anos. Mas depois, a continuidade, como eu disse, aqui do professor, e imediatamente foi-me buscar a mim. Percebi, sabia o amor e tenho sido, digamos assim, tenho ajudado muito mesmo a banda da Covilhã. Fui eu que ofereci as fardas e várias coisas que tenho oferecido, instrumentos e tal, para a banda. E ele sabe que quando a banda, aliás, aqui hoje este edifício, onde nós estamos, só está aqui e a banda está aqui porque deve-se a mim. Ainda há dias o disse ao presidente da Câmara, há uns nove anos ou dez, quando o outro presidente saiu. Nós tomámos aqui posse e a primeira reunião que tivemos foi ir à Câmara Municipal da Covilhã. E o presidente disse: Moreira, nós… A Câmara não tinha um tostão para nos dar para as obras, porque isto tinha começado em obras, tinha começado havia 15 dias, começaram a destelhar. Isto é curioso, porque isto é um edifício do Estado. Está cedido à Câmara Municipal da Covilhã, porque foi aqui a escola, a biblioteca, etc. muitos anos, por sua vez, a biblioteca, a Câmara Municipal tem um protocolo com a banda, com a cedência de 10 em 10 anos. Este espaço, portanto, nessa altura, eu disse assim: oh meus amigos, então, mas a Câmara Municipal é que tem de fazer as obras que aquilo é um edifício… E o senhor Presidente disse-me assim para mim, e para a professora Irene, e o professor Cavaco, fomos lá: Moreira, nós bem queiramos vos ajudar, nós... A outra Câmara deixou-nos completamente sem um tostão, não temos um tostão na Câmara para vos dar. E também não há na Câmara neste momento ninguém, construtores, que queiram fazer aquela obra, que estava orçamentada em cerca de 120 mil euros, sem a Câmara ter dinheiro. Então, o Presidente da Câmara disse-me: olhe, você é um homem que se relaciona bem na Covilhã com muita gente, que tem feito várias coisas, por que é que você não fala com o empreiteiro e assume a responsabilidade com eles? E daqui a um ano, a Câmara Municipal da Covilhã compromete-se, de hoje a um ano, passar a dar-vos os 3000 euros para ir amortecendo as obras. Agora você tem é que contactar um empreiteiro que queira fazer isso nesse sentido. E assim aconteceu. Fui ter com um empreiteiro que tinha feito as obras na Taberna do Laranjinha, que há mais de 30 anos que trabalha para mim, e disse: oh Zé, epá, expus-lhe o problema e ele disse, está bem pronto Moreira, eu vou para lá, se precisar de dinheiro, a qualquer altura, eu recorro a você. Pronto, está bem E assim esta casa está aqui, feita e com muito orgulho, aqui a banda a trabalhar é porque eu fiz esta proposta à Câmara e conseguiu-se tudo. Portanto, hoje eu sinto-me extremamente orgulhoso do meu passado em todas as vertentes, mas essencialmente aqui na banda, onde eu, com a minha persistência e as minhas ideias, consegui que hoje tivéssemos uma das melhores bandas do país, mas acima de tudo ver aqui muita gente jovem, com 9, 10 anitos, já andam aí pela rua a tocar e eu fico todo vaidoso, todo baboso, como se costuma dizer, nesse êxito na minha vida também. P: Disse-me que era sócio de 12 coletividades, quer dizer que é uma pessoa que valoriza muito associativismo. Qual é que acha que é o papel que o associativismo tem na sociedade portuguesa? António Moreira: Eu, como disse, aprendi a ser homem no associativismo e 80% daquilo que eu sou devo ao associativismo. E estou convencido de que é uma lástima, uma perda irreparável, que estamos a ter, o país não apoiar… Os nossos governos deveriam apoiar o associativismo e as coisas não podem… Os mecenas, os voluntários, hoje não é assim tão fácil, mas eu estou convencido que, se todas estas associações que há nas terras fossem apoiadas, pelo menos pagar-se um diretor ou dois diretores o ordenado para que eles obrigassem - senão perderiam o seu trabalho - aquilo a mexer. Eu acho que não estaríamos como estamos hoje, porque as pessoas preocupavam-se a ir, a incentivar para que os jovens venham, dando-lhes alguma coisa em troca. Como vê, a banda da Covilhã, em pouco tempo… Se este professor [...] neste momento deixasse de vir à banda da Covilhã, eu estou convencido que daqui a dois anos a banda estava outra vez moribunda. Porque ele é um amante, ele gosta disto, não ganha dinheiro aqui, porque ele casou com a banda, como eu digo, mas noutras coletividades, lá em cima, no Campos Melo, lá em baixo, como vai ver, no Grupo Educação Instrução do Rodrigo, é a mesma coisa, uma dificuldade tremenda em arranjar alguém que queira ir para a direção, porque muitas vezes não é falta de jovens que há, há é a falta de dirigentes, os dirigentes de hoje, que durante muitos anos trabalharam gratuitamente, hoje já não estão para isso, têm as suas vidas profissionais e, acima de tudo, familiares, a comodidade, a televisão em casa, os sofás… as coisas são diferentes. Mas se a pessoa tiver que obrigatoriamente ir, porque gosta, mas também porque tira dali alguns dividendos, obviamente que de certeza que as coletividades não irão morrer como estão a morrer. O Estado tem que deitar mão a isto, porque é uma escola que se perde e é irreparável. Porque, continuamos a dizer, hoje os nossos jovens estão cheios de vícios, de coisas más. Os computadores arrastam as crianças horas e dias, quase as 24 horas por dia ali, perante os computadores. E não se aprende nada lá. As novas tecnologias tudo bem, mas o desporto faz muita falta. O ser humano precisa de praticar várias coisas, desde a música, a cultura, o teatro. Porque obriga a nossa mente a não estar só… Pá, isto assim da nossa vida profissional ou familiar, são aqueles momentos de lazer em que a gente ia sempre à água. Eu gosto imenso, às vezes as pessoas agarram numa bicicleta ou numa canoagem e tal, e vão naqueles...Mas temos que ter muito mais, muito mais, porque estamos a perder, estamos a perder precisamente as escolas. As escolas eram estes clubes, estes clubes, embora muitas vezes sem técnicos de primeira, mas tinham as tais pessoas que gostavam... Eu lembro-me quando comecei a praticar ténis de mesa, não sabia pegar numa raquete, mas havia já mais velhos: olha, é assim, é assim. E eu aprendi. Claro que podia não ser um atleta de primeira, nem estava dedicado a ser um atleta de primeira, mas aprendi. Passava uma hora ou duas horas e meia por dia, se calhar. Podia praticar ténis de mesa ou jogar basquetebol. Saía às 6:00 do trabalho, chegava a casa, comia qualquer coisa, ia para o ringue jogar basquetebol. Naquele tempo, eu andava saudável. Nunca fumei na minha vida, nunca fumei, nunca bebi. Como eu disse, porque não tinha tempo para essas desgraças. Naquela altura, hoje há outras infelizmente, a droga que tanto nos atemoriza. Naquele tempo, a droga era o tabaco, a bebida eram as drogas daquela altura, e eu, graças a Deus, e transmiti isto, porque tenho dois filhos, um, com 52 anos, outra com 42, que não fumam nem bebem, nem fazem noitadas. E tenho agora quatro netos. Estou a ver se os meto na mesma escola. P: Diga-me uma coisa, essa transmissão de valores do associativismo, da participação, que passam de pais para filhos e de avós para netos. Essa transmissão também existe dentro das coletividades, ou seja, os sócios mais velhos também transmitem esses valores aos mais novos? António Moreira: Era assim que acontecia, era assim que acontecia… Hoje, como lhe digo, é uma tristeza. Eu se for ao Campos Melo, que antigamente eu chegava lá às oito da noite, a malta ia beber um cafezinho, mas estávamos ali a jogar às cartas ou a jogar ao dominó ou a jogar a qualquer jogo, mas entretidos. Havia lá sempre, de certeza absoluta, 50, 70 pessoas, todos os dias. Hoje chegamos a qualquer coletividade e há meia dúzia de pessoas. À exceção, não sei se lá em baixo o Oriental, que está ali próximo da universidade, se é frequentado, não sei, confesso que não tenho estado dentro... Mas, hoje, veja a banda da Covilhã. Antigamente, à noite, tinha sempre uma série de pessoas que vinham, que se entretinham a beber um cafezinho, jogávamos uma suecada, enfim. Hoje não vem ninguém. Os de idade acomodam-se ou vão desaparecendo, os jovens não estão motivados para vir para o associativismo, para isto que é tão rico. É uma pena, uma lástima, que esteja a acontecer. Eu confesso: muitas vezes gostaria… se tivesse uns 20 anos batia-me nas câmaras ou até no Estado para que tivéssemos condições para conseguir avançar com as modalidades. Aqui, a Câmara Municipal da Covilhã, fica registado, tem um senhor que é o engenheiro... Ele está a seguir mais ou menos este meu raciocínio. Infelizmente, a pandemia veio tirar estas realidades ainda mais, mas é uma pena, porque ele estava a reunir outra vez as tropas na Covilhã, do associativismo, dando condições, oferecendo condições. Ainda agora ali... Eu também faço parte da Confraria da Covilhã da Cherovia e Panela no forno, portanto, sou vice-presidente, e ainda agora me foi dito que a Câmara atribuiu 3000 euros de compensação à Confraria para que a gente não deixe morrer a Confraria. Isto tem sido… Esta Câmara Municipal, e especialmente este vereador, que está no pelouro da Cultura, que tem sido uma pessoa dinâmica, eu tive algumas conversas com ele nesse sentido, e ele disse: Manuel tem razão pá. Vamos ver… Mas estes dois anos de pandemia trouxeram, porque estou convencido, porque ele exigia… Eu disse: você não dê dinheiro às coletividades, dê dinheiro a quem pratica, a quem trabalha. Quando, se a pessoa lá tem uma equipa de basquetebol e diz que o basquetebol perdeu isto, deu prejuízo, não sei quê, eu acho bem que a Câmara compense, se tem uma equipe de voleibol é a mesma. Assim sucessivamente. Agora dar dinheiro para as coletividades, algumas aí que infelizmente só tem um bar aberto, que é uma taverna… Eu acho que não, eu aí nisso não alinho. E então, o Oliveira está a fazer um bom trabalho. Distribuiu o dinheiro, pela primeira vez, por todas as coletividades, conforme o exercício que estão a ter. Não é como outras câmaras, que davam dinheiro que, portanto, a Câmara daqui sempre deu dinheiro a algumas coletividades. Mas nem sempre com a preocupação de saber se eram aqueles que trabalhavam mais. Muitas vezes era por compadrio, por amizades, para ganhar votos. Este não, não, é um engenheiro, é o engenheiro Oliveira, mas tem sido uma pessoa preocupada com a questão do associativismo e é um presidente dali do Oriental, que também é muito eficaz nesta situação. Ele gosta muito. Tem sido uma pessoa dinâmica também na Cultura. E pronto, ainda há valores, não há já muitos, como no meu tempo em que qualquer pessoa gostava de ser presidente para fazer andar o clube. Hoje dá-se dinheiro é para não se ser presidente, para não chatearem a cabeça, está a ver como é que é? P: Então, qual é que acha que vai ser o futuro deste movimento? António Moreira: Eu, a minha perspetiva para os meus netos… As coisas, como eu digo, são cíclicas. Um dia os jovens vão verificar que andam errados com o modo de vida como agora têm. Eu fico muito triste quando a minha mãe, quando eu era jovem e tinha um buraquito numa calça e a minha mãe ia-me logo a cozer o buraquito, porque era uma vergonha andar com um buraquinho na calça. Hoje eu não posso aceitar que os jovens andem aí todos rotos como sejam uns farrapilhas, sem dignidade nenhuma. Eu apreciei muito, apreciava muito do povo inglês, pela maneira como se vestia. E hoje, portanto, os jovens, eu acho que anda sempre à procura do que é pior. Felizmente, como lhe disse, tenho dois filhos e tenho muito orgulho neles, que são exemplo também na cidade, mas muitos pais, que eu sei que têm o mesmo valor que eu e que a minha mulher, e não conseguem fazer o mesmo dos filhos e eu às vezes é com tristeza que vejo-os aí todos sujos, rotos. Pronto, porque aquilo que aprendem hoje é só desgraças. É só desgraças... Não sei, o associativismo, faço votos para que um dia volte a ser aquilo que foi na minha Juventude, porque eu penso que aí estaria o caminho certo do mundo, do mundo, não é só do nosso país, porque a convivência, a irmandade… Ajudávamo-nos nos momentos de dificuldades, porque todos tínhamos dificuldades, e era muito bom porque havia amor, havia carinho entre as pessoas, havia dedicação, havia paz, havia muitas coisas boas. Estamos a atravessar uma fase difícil no mundo, da minha perspetiva. E às vezes digo assim para os meus netos: tenho muita pena e eu não consigo alterar isto, mas vou deixar-vos um mundo terrível. -
4 de junho de 2021
José de Jesus Nunes Simões
José Simões: Eu nasci na freguesia chamada de São Pedro, que depois foi extinta e integrada na União de Freguesias da Covilhã e Canhoso, que fica ali próximo da estação dos caminhos-de-ferro. Nasci em 1940 e vim com sete anos para o Refúgio. Aqui fiz a escolaridade básica, era o chamado primário, e entrei no mundo do trabalho com 11 anos. Fui trabalhar para uma mercearia da cidade. Entretanto, fui progredindo na carreira, mudei de entidade patronal para outra com melhores capacidade, uma loja maior. Depois fui para a tropa fazer o serviço militar e aos 20 anos fui incorporado no serviço militar, ainda não tinha começado a guerra colonial. Eu fui para a tropa em 22 de Janeiro de 1961 e a guerra em Angola começou no dia 15 de Março desse ano. Então eu sou mobilizado para Angola, fui dos primeiros militares a ir para a frente de batalha. Eu não tive lá nenhum tipo de problema, felizmente, vim de lá passado 27 meses, em 1963, com boa saúde, boa disposição, tal como tinha ido, sem traumas de qualquer espécie, nem físicos nem mentais. E, na altura, em 1961, eu saí daqui do Refúgio, que já vivia aqui desde os sete anos, aqui bem próximo, numa quinta, porque os meus pais eram agricultores, eu nasci no meio da ruralidade. E então eu fui daqui, e estava já a notar-se o embrião para a criação de uma coletividade aqui na zona, que é o Grupo Recreativo Refugiense, que está ali em frente. Eu fui em julho, e em julho/agosto… Eu tenho tudo documentado, eu tenho em meu poder todas as cartas que escrevi, à minha namorada e aos meus pais, e todas aquelas que recebi deles. Tenho tudo em micas, por ordem da data, tenho tudo arquivado. Então eu recebo uma carta da que é hoje minha mulher, hoje e há muitos anos, mas na altura minha namorada, a dizer: olha, já temos um grupo no Refúgio, tu já és sócio, que eu pus-te como sócio. Então eu sou sócio fundador sem nunca ter feito nada por isso, porque entretanto eu estava a fazer o serviço militar. P: Deixa-me só perguntar uma coisa, depois voltamos ao Refúgio. Ontem falei com um senhor que vinha também de uma zona rural e que me disse que achava que havia certas práticas de entre ajuda entre as pessoas do campo, que podem ter sido importantes para a origem do associativismo. Faziam a desfolhada em conjunto, ajudavam-se nas vinhas uns dos outros… Isso também acontecia aqui no Refúgio? José Simões: Acontecia, chamava-se ir merecer. Ora eu vou merecer ali o António, merecer era a troca, ele já tinha ou estava para vir fazer um trabalho à minha propriedade e eu ia fazer à dele, era a troca de funções. Havia trabalhos, realmente, como a senhora referiu, a desfolhada, a malha do trigo, do centeio, era uma zona muito rica em trigo e absorvia de facto muita mão-de-obra. Assim como a monda, a monda do trigo, era executado por mulheres, depois havia a ceifa, também era muito desse género, também a merecer. P: Como é que se organizavam? José Simões: Aquilo era já tradição, já sabiam. O vizinho do lado já sabia que ia ser convidado, porque também precisava do trabalho do outro. Havia essa troca de trabalhos, que chamava-se, aqui da zona, merecer. Eu vou merecer o Manel, que o Manel já cá veio, vou merecer o Manel, porque ele há de vir aqui. Colaboravam nas malhas, nas ceifas, na monda, tirar as ervas daninhas do milho. O trigo era sachado... P: As mulheres também faziam isso? José Simões: As mulheres faziam o trabalho das sachas e das mondas, era só de mulheres. Também faziam essas trocas. Os homens não se metiam nisso, assim como as mulheres não iam ceifar, nem iam cavar. Era um trabalho mais pesado, era entregue a um homem. P: E elas organizavam-se entre elas? José Simões: A organização podia ser comum, podia ser o homem a dizer: olha preciso que lá vás ajudar a minha Rosa que ela depois vem cá e tal. Isso podia acontecer, não é que tivesse de ser mulher com mulher, não havia esse preconceito. A sacha era feita por mulheres, a monda era feita por mulheres. A ceifa e o cavar da terra era feita por homens. A malha era feita por homens, com um mangual. O mangual era um utensílio que procedia à debulha do milho ou do trigo. Era bater na palha e os cereais iam caindo. Portanto, a função do homem era malhar e depois vinha a mulher com os vassouros (chamados vassouros, que são umas vassouras de giesta) e varria a eira e juntava a semente. Depois vinha o homem, que fazia a limpeza da semente, com uma pá que limpava a semente e vinha o vento e levava a semente que era mais pesada para um lado e o vento levava os resíduos para o outro. Portanto, só faziam este trabalho quando havia um bocadinho de vento. Esperavam que houvesse vento para desenvolver este trabalho. P: E quando iam a merecer, iam vários? José Simões: Iam vários… dependia do trabalho e da extensão da exploração. P: Como é que se escolhia quem ia? Era por relações de amizade? José Simões: Era organizado por família, era o primo, era o tio, era o cunhado e os vizinhos mais próximos, que eram amigos. P: E depois nesses trabalhos, como este que me descreveu, juntava-se bastante gente? José Simões: Juntava-se bastante gente. Dependia do trabalho, se o trigo era muito. Dependia sempre do espaço. P: E depois, faziam um convívio? José Simões: Claro, o convívio era indispensável, à volta da mesa ou da adega, os homens, era indispensável. P: Então acha que o associativismo pode vir daí? José Simões: Não sei, isso não sei. Até porque o associativismo vem de tão longe não é, e a senhora tem prova disso, que não sei se é por aí. P: Mas, por exemplo, especificamente aqui no Refúgio? José Simões: Aqui no Refúgio, o desporto rei levava muitas pessoas a organizar-se. Portanto, isso era uma fonte de obrigação de reunião, o futebol: 11 para cada lado, era logo 22, mais os suplentes, mais não sei quê, havia logo ali um grupo de 30 ou 40 homens. A mulher, nem pensar, a mulher não jogava à bola. P: Mas foi sua namorada que o inscreveu. José Simões: Que me inscreveu, sim, mas jogar à bola não. Depois acabou por haver necessidade de informação. Tinha aparecido a televisão, em 57, as pessoas não tinham capacidade financeira para adquirir o televisor e era o Campé, que era o restaurante do sopas, era o Campé, era o único aqui da zona que tinha uma televisão. O homem que era o dono era assim um bocadinho bruto e metia-se nos copos e quando estavam lá a ver o futebol: tudo para a rua! Estavam a ver a televisão: tudo para a rua. Vou fechar a porta e tal e fechava. E as pessoas começaram a ter mais necessidade ainda de se reunirem à sua vontade, de uma casa onde tivessem o seu televisor e vissem a televisão o tempo que quisessem. Ele fechava à meia-noite. Também à meia-noite a televisão acabava, não era como hoje, e era só um canal. Portanto, isso foi uma das razões. Depois, a guerra do Ultramar também trouxe a necessidade da notícia, saber do acontecimento, do que estava lá a acontecer. É através da televisão que se sabia. Tudo isso foi conjugado para que esta coletividade nascesse. P: Então, conte-me lá como é que foi: a sua namorada escreveu-lhe a dizer que já o tinha feito sócio... José Simões: Que já havia o grupo, que já me tinha feito sócio, era já sócio, ela cá pagava a quota de um euro por semana, entretanto eu regressei. Eu fui criado num ambiente rural. O meu pai era um excelente executante de concertina. E eu regressei e toquei concertina. Eu desde que me conheço como pessoa humana que me lembro do meu pai à noite. Acabava o trabalho do campo, que era duro, e chegava e tocava a concertina e a minha mãe cantava e era uma alegria lá em casa. E eu sempre senti essa necessidade da união. Como já tinha nascido aqui um agrupamento, eu integrei-me aqui. Entretanto, veio o ano de 1966 e foi criada aqui uma comissão de festas para comemorar o quinto aniversário do Refúgio, do grupo... Fui convidado e fiz parte, fiz parte de uma comissão de jovens. Fomos para a mesa: o que é que faz? Foi da altura em que começaram a aparecer os conjuntos musicais porque até aí era a grafonola, era o gira-disco, começou a aparecer o conjunto musical, também da província. Ah e tal, vamos buscar conjunto e eu disse: também ficava bem aqui era um rancho folclórico. Eu tinha de facto esse bichinho do folclore. Ai, é difícil...Posso fazê-lo à minha maneira? Ai se fores capaz. Então criei este grupo de folclore, em 1966. P: Como é que o criou? Com quem? José Simões: Foi muito fácil, foi fácil. Falei com o meu pai, que era o terror da concertina, falei com um senhor que já tinha organizado umas marchinhas e tal e o homem disse logo que sim. A juventude aderiu toda. Tivemos de selecionar: tu não prestas, que danças mal. Hoje andamos às vezes atrás deles: andai cá que eu dou-vos uma coisinha… Era uma localidade aqui na zona histórica, hoje tem 13 ou 14 pessoas, na altura tinha quinhentas. Havia aqui muita matéria para selecionar. Portanto, foi fácil. Aquilo foi para integrar esses festejos, mas aquilo correu tão bem, que eu já vos falei que havia de continuar e então já fomos ver de um chamado ensaiador, já quase profissional, um homem de acordeão, já com uma capacidade e pronto, arrancámos. Eu conto aqui a história [ofereceu-me uma monografia]. P: A que bom, obrigadíssima. Muito obrigado. José Simões: Vou-lhe oferecer. Então agora, em 2019, nós temos aqui na coletividade, no rancho, o presidente da Direção ligou-me agora, porque eles não fazem nada sem mim. Ligou-me agora, é o vice, o [...]. O vice-presidente é historiador, é professor e é historiador, tem várias obras e eu desafiei-o: Oh, professor, o senhor tem de fazer aí uma recolha, tem de fazer a história deste agrupamento. E ele disse: Oh, Sr. Simões, e já viu o trabalho que me dá? Então quem tem de fazer é o senhor, se foi o senhor que o criou, foi o senhor que esteve ao longo dos tempos ligado a ele. Eu gosto de escrever, gosto de escrever, eu tenho até outro livro editado, são as minhas memórias de guerra, que tenho vendido para todo o país, para todo mundo quase, que me pedem livros do meu tempo de guerra. Tem uma introdução do Nascimento, curtinha, ali uma introdução ao livro. Consegui que o prefácio fosse feito pelo meu comandante, que tem um valor histórico para mim, e depois conto a minha história da guerra, na primeira pessoa, sem ficção alguma, sempre o real. Lá está, foi aquilo que eu vivi e sofri e passei, os bons e os maus momentos, na guerra eram mais maus do que bons, mas também se passaram alguns bons. Então, está bem, professor, eu sou capaz de escrever e o senhor faz depois uma revisão? Faço. Pronto, e escrevi, então tem aqui a história. E então eu escrevi este livrinho com a história precisamente deste rancho folclórico. P: E então depois começou a ser uma coisa mais profissional, não é? José Simões: Profissional não chamarei, porque não há profissionalismo no folclore, mas passamos a ter mais cuidado. Começamos a fazer recolhas próprias das danças, cantigas, ia a muitos colóquios sobre folclore e etnografia. E, mais tarde, candidatámo-nos… muito difícil, uma candidatura muito difícil… a ser membros efetivos da federação do folclore português. P: Isso foi quando? José Simões: Isso foi em 1991, já. José Simões: E essas recolhas começaram logo nos anos 60, ainda? José Simões: Começaram logo, começaram em 66. Em 66 houve um arranque, depois os fatos que os elementos tinham usado, tinha sido tudo emprestado das várias coletividades, um tinha um fato, outro tinha outro e nós tivemos de devolver. Entretanto, em 1967, eu casei. Casei, fui viver para a cidade, fica um pouquinho… hoje é perto, na altura não havia automóveis como hoje. Da cidade aqui eram três quilómetros. Entretanto, eu venho para a cidade, o meu pai faleceu com 52 anos. Aquilo não durou muito, e parou, teve uma paragem. E então reorganizámo-nos em 1969, já com um traje próprio, com recolhas próprias, como sempre melhorando. P: Como é que fizeram? Como é que angariaram dinheiro para comprar os trajes? José Simões: Saímos várias equipas a fazer um peditório aqui às pessoas. Toda a gente dava, toda a gente queria o seu rancho folclórico – 20 escudos, 50 escudos, 10 escudos, tudo. Comprámos os tecidos, mandámos fazer, foi tudo gratuito, a confecção foi toda gratuita, portanto tivemos de adquirir os tecidos. O calçado tivemos de comprar. P: E baseavam-se no quê, para desenhar os fatos? José Simões: Eram baseados em fotografias da época. Eu tenho fotografias dos meus avós, dos meus bisavós, que serviram muito, eu e outras pessoas. E depois fizemos o apelo às pessoas que tivessem em casa roupas dos antepassados e, sei lá, das arcas, como eram. Era por aí… P: Porque a ideia era fazerem um fato que fosse aqui da região? José Simões: Da região e daquela época, de finais do século XIX e até aos anos 20, 30 do século XX. P: Porque é que era esse período? José Simões: Era o período em que começou a haver a consciência de que era preciso preservar. Até aí não havia grandes motivos para isso. E então foram criados organismos, mais tarde, na altura a FNAT, que é hoje INATEL, começou a preocupar-se um bocado com isso. Ainda no tempo do Salazar, talvez para desviar também atenções, está a ver? Criou várias coletividades até aqui na cidade. Essas coletividades tinham habitualmente o futebol para os homens e o folclore para as mulheres, e não só. P: Mas era para desviar as atenções do quê? José Simões: Desviar as atenções da contestação e trazer o povo contente. P: Havia muita contestação aqui na Covilhã? José Simões: Havia, aqui havia muita. Os lanifícios traziam muita contestação. Houve uma altura em que o primeiro de Maio só era reconhecido na Covilhã, só era celebrado na Covilhã. O resto do país, com medo das represálias... E mais tarde foi proibido também. Vinha por aí a PIDE, a GNR e tal, ia às fábricas ver quem estava a trabalhar. O patrão dizia: falta cá o Manel, o Jaquim e tal. Quem são eles? E tinham lá à porta e levavam-nos P: E então a FNAT criou estes ranchos? José Simões: Criou estas coletividades e apoiava o folclore e o futebol, eram as áreas.... P: E vocês tiveram apoio da Fnac? José Simões: Não, não tivemos, na altura. Porque entretanto, parece que havia liberdade, mas não havia tanta como isso… Como na freguesia de São Martinho havia já uma coletividade, que era o Oriental de São Martinho, e então já havia essa coletividade inscrita, não podia haver uma segunda. E então tivemos de ir por outro lado e conseguiu-se. Conseguimos através do Governo Civil e não ficámos integrados na FNAT, ficamos nas colectividades de cultura e recreio. P: Ou seja, conseguiram oficializar estatutos como uma coletividade de cultura e recreio? José Simões: Sim, sim, era mais o Governo Civil que dava ordens que podiam abrir e funcionar. Os estatutos e tal, assinados pelo governador civil, e mais tarde houve então a inscrição nas colectividades de cultura e recreio. P: E tinham sede? José Simões: Tínhamos sede ali, quando viraram para aqui, a sede está lá, fechada praticamente. Muito grande, muito boa, mas aquilo é um corpo sem alma neste momento. P: Do clube recreativo do qual faziam parte? José Simões: No grupo de recreativo do qual fazíamos, mas fomos obrigados a sair, há nove anos só, estivemos ali ligados. Agora foi instituído um estatuto próprio, mas nessas coletividade hoje vai uma direção que gosta de folclore, depois vai outra que já não liga nada, então é posto de parte. P: Então e nessa altura integravam o clube recreativo? José Simões: Integrávamos com estatuto próprio, nós tínhamos os nossos dirigentes dentro do grupo. P: Logo nessa altura, em 1966? José Simões: Não, nessa altura não se pensava muito nisso aqui, era tudo a monte. Em 1985 é que se começou a fazer essa revisão. P: Então até ao 25 de abril estavam junto do Clube? José Simões: Até ao 25 de abril e não só, estivemos até 1985. Contudo, depois criou-se o estatuto próprio para o rancho, ainda tutelado pelo grupo recreativo. E depois, em 2012, é que nos constituímos em associação autónoma. P: Então, durante esse período em que estavam lá, reuniam e desenvolviam a vossa atividade ali naquela sede? José Simões: Desenvolvíamos a atividade lá, mas os ensaios normalmente eram feitos fora, aquilo tinha condições para isso, depois agora é que fizeram obras, mas era muito pequenino. Então ensaiávamos na escola, nas garagens dos vizinhos: ah, podem vir aqui para a minha garagem. E íamos lá. Olha, afinal, agora já tenho aqui que meter o carro, já comprei o carro e tal. E íamos procurar outro espaço, foi assim um bocadinho de malas às costas. P: E também fazia parte da direção do clube? José Simões: Fiz parte da direção do Refúgio como secretário da Direção durante vários anos e presidente da Direção. P: Que outras atividades é que o grupo desenvolvia para além do folclore? José Simões: Desenvolvíamos atletismo. O futebol era quase a brincar. Eu joguei futebol, mas o atletismo era uma coisa a sério, chegámos a estar nos campeonatos nacionais. Eu tenho um irmão que foi na altura oitavo, no Estádio José de Alvalade, nos campeonatos nacionais de atletismo, que pertencia aqui. P: E isso era desportivo, e a nível cultural, era só o rancho? José Simões: Só o folclore. Fez-se também teatro esporádico. P: Organizavam-se em comissões? José Simões: Era em comissões, que não eram difíceis. No aspeto do teatro, quem fazia os ensaios era o [...], o escritor, é daqui do Refúgio. E então ele é que estava ligado a essa parte, tinha muito jeito, fazia os ensaios, programava tudo o que era essa área de teatro, mas era episódica. P: E era para fazer espetáculos aqui? José Simões: Fazíamos aqui. Ele era um indivíduo muito esquerdista na altura, mesmo antes do 25 de abril. E na altura ele ensaiou uma peça que era um comboio. Então fizemos aquela peça, estreou-se aqui, aquilo correu muito bem, muito bonito. Como eu disse, havia muita juventude, estavam prontos para tudo. Muita gente a assistir. E veio uma coletividade de cultura e recreio que é o Campos Melo: epá, vocês têm agora uma peça de teatro. Não foi o Campos, foi o Rodrigo, o Giro do Rodrigo. Têm uma peça de teatro, gostávamos que fossem lá e tal. Está bem. Nós queríamos era ir. Está bem, vamos lá e tal. Então foram tratar dos papéis, era obrigatório na câmara. A Câmara Municipal tinha de dar ordem que ia decorrer aquele espetáculo tal. Quando lá chegámos, aquilo era uma peça proibida, antes do 25 de Abril era proibida. Fomos lá chamados: vocês, o que é que estão aqui a fazer e tal? Nós armados... o outro sabia, que era muito esquerdista, mesmo do Partido Comunista. Olhe, íamos tendo dissabores. Ficámos pela apresentação. Já tínhamos colados cartazes, O Comboio! P:E tal aí pela cidade, quando chega...[ri-se] P: E tiveram mais problemas assim com a PIDE? José Simões: Não, nunca tivemos, aquilo acabou por não ser problema. Disseram-nos: isso é proibido. Nós não sabíamos, longe disso, a nossa ideia, de que realmente fosse proibida. P: E tinham biblioteca? José Simões: Tinham biblioteca, com limites, com livrinhos que também ofereciam. Iam oferecendo livros e fazendo uma bibliotecazinha. Chegou a ser engraçada. P: E havia muita gente a ler? José Simões: Havia muita gente a ler e tinha outra particularidade, aquela coletividade servia para tomarem banho. P: Muitas tinham isso, não é? José Simões: Todas tinham, quase todas tinham e estas rurais… esta fazia parte de uma freguesia urbana, mas esta parte muito mais rural e não havia casas de banho. As pessoas ainda andavam com a malga, todos os dias de manhã, a levar os dejetos. E então era o banho, o banho que era semanal. Pagava-se ali uma quantia irrisória para o gás e para a água. P: E tinham assim mais algum mecanismo de entre ajuda? Havia umas que tinham subsídio de funeral… José Simões: Havia subsídio de funeral e o respeito que havia na altura pelos mortos. Quando a pessoa morria, não havia música, não havia... Logo que fosse sócio, a televisão é desligada, acabava a televisão. A bandeira era hasteada a meia haste e depois havia... Houve assim umas coisas episódicas, que eu lembro que organizei lá, quando eu era presidente. Uma exposição de desenho do concelho, que teve uma adesão tremenda. Vimos difícil arranjar espaço para a exposição, andei de escola em escola a pedir, todas as crianças e os professores aderiram, os alunos fizeram muitos desenhos. Pronto, foi uma ligação às escolas, já nessa altura grande, e depois disso não tenho ideia de alguma atividade. P: Então e depois do 25 de Abril, como é que foi? José Simões: Depois do 25, até veio liberdades a mais, o rancho folclórico até parou, já tudo queria era discotecas e não sei quantos, mas depois recuperou-se novamente. Houve assim uns desmandos, umas euforias, mas enfim... P: E quando é que começaram assim com este interesse em preservar esta memória, quando é que isso começou? José Simões: Olhe, isto já vem de longe. Por minha iniciativa já íamos guardando umas pecinhas, já íamos arranjando… olha, fica aqui guardado numa lojinha, alugámos um espaço. Em 2000, adquirimos esta casa de renda. E começámos a montar aquilo que já tínhamos e fizemos um apelo às pessoas para que entregassem aquilo que lá tinham, que não deitassem fora, que nos dessem, nós reparávamos, se era caso disso, se não tivesse interesse, destruíamos nós. Começou a aparecer, em 2000. P: E no rancho, tinham a preocupação de ir procurar músicas que fossem tradicionais? José Simões: Sim, sim, tradicional. Até porque, a partir de 91, como membros efetivos da federação, não podemos pôr música nenhuma que não seja daqui da região. A música, a dança, a cantiga, o traje, o instrumento. É muito rigoroso, nós levámos o processo de integração para aí três anos. Vinham os técnicos e verificavam e chegavam ali e viam uma mulher que a meia devia ter este tamanho e estava assim, era rejeitado. É muito complicado. Eu costumava dizer que o processo de um grupo entrar como sócio efetivo da Federação do Folclore Português é mais difícil do que Portugal ter aderido à CEE. Muito, muito difícil. E mesmo agora, nós agora somos avaliados de dois em dois anos. Vem um grupo de avaliação técnica, cinco ou seis elementos, e nós temos de mostrar tudo: a dança, a cantiga, o traje, tudo, tudo ao pormenor, e depois somos classificados de zero a 10. Nós, na última avaliação, olhe em 2019, depois, em 2020, não houve, depois tinha de haver em 2021. Nós, numa escala de zero a 10, obtivemos 8,95. Muito bom, muito bom, mas temos que ter um cuidado extremo. Não pode haver unhas pintadas, não pode haver sobrancelhas tratadas, não pode haver vernizes, não pode haver pinturas. Nesse dia, as raparigas têm que tirar tudo. P: E antes, não era tão rigoroso? Como é que vocês faziam a investigação para... José Simões: Fazíamos, havia, as pessoas chamavam os incentivadores de carreira. Eles é que vinham. Olha, vem lá ensaiar o rancho e tal. Ah está bem, eu vou. Ele trazia as cantigas, que já tinha lá do repertório, que ele tinha recolhido ou não, não havia aquela preocupação tão grande. A partir de 1985 é que eu pus de parte esses ensaiadores, vi que aquilo não era nada. Comecei eu a fazer, a ler e a tentar informar-me bem o que era o folclore e a sua essência e tomei conta do caso. Os gajos não sabem nada, agora sou eu que tomo conta e comecei a aprofundar a informação que pus a prática no terreno. P: E o que é que descobriu nessa investigação? José Simões: Descobri que o folclore é uma arte, é também uma ciência e, como tal, ela não deve ser adulterada. Tem de ser o mais fiel possível às nossas raízes. Fiz muita recolha e pus elementos a recolher com as pessoas de 80 anos, 90 anos: olhe, o que é que cantava quando andava a bordar? O que é que cantava quando andava a sachar? E nós, com um gravador, íamos gravando. Olha, como é que se vestia? Olhe, ainda lá tenho uma saia da minha avó. Vá lá buscar: uma fotografia. Era feito desse modo. Era feito assim, ainda hoje se continua a fazer, agora menos. Agora já me vêm perguntar a mim, um ou outro... P: Eu estava a ver ali naquele livro que tem ali, que é muito interessante, que tem ali músicas do trabalho... José Simões: Esse foi o primeiro trabalho que nós fizemos, que o grupo fez, tem lá também um CD. P: Pois é… José Simões: O livro foi, é, um projeto nosso, do rancho, e do Grupo Recreativo, onde estávamos inseridos na altura, em 2004, e as recolhas eram daquilo que já tínhamos já feito. Depois, passou-se para a pauta musical, que é o trabalho conjunto, está também lá uma parte minha, mas foi coordenado pelo Doutor [...], que é um musicólogo, é mesmo formada em Musicologia Popular. E então, ele era muito nosso amigo e eu fui buscá-lo. Fui buscá-lo para o nosso lado e até agora está a trabalhar num projeto que estamos a desenvolver, está a trabalhar connosco. P: Qual é esse projeto? José Simões: Esse projeto é baseado naquela estrutura que foi agora criada de… deixa-me lá ver qual é que é o nome…É uma estrutura regional, vários conselhos se agruparam. Eles agora lançaram um programa, um projeto das coletividades. Nós somos líderes, aquilo tem de ter um líder e depois esse líder tem de arranjar associações dos outros concelhos. Neste caso, são cinco: Covilhã, Guarda, Fundão, Sabugal e Belmonte, estão agrupados os cinco. Comunidades Intermunicipais, é isso. E então vêm propor, é um projeto, é uma candidatura. Vão aparecer e nós estamos a trabalhar nesse sentido. Já escolhemos o tema, reunimos com as coletividades todas e todos apresentaram nomes para o projeto, por acaso foi o meu que foi escolhido. E chamo-lhe Unidos por um fio. Este fio condutor que nos une e ao mesmo tempo é o fio de lã, que engloba todos estes municípios. Agora, cada grupo, nós, o nosso grupo de folclore, que vai funcionar só com uma cantata, um cantarzinho de música e canto, não mete dança, para facilitar, porque são menos elementos, a logística é outra. E é menos gente a comer, porque o projeto inclui a alimentação, a verba que vão dar, no caso de sermos vencedores, temos que saber distribuir muito bem e quanto menos comerem menos temos de pagar ao restaurante. Temos um grupo de concertinas, que representa a Guarda. Um grupo de Bombos, que representa o Fundão e Sabugal, é um grupo etnográfico. De Belmonte é um grupo de cantares populares e do Sabugal é também um grupo de folclore, que vai com a tocata. Agora estamos a fazer essa candidatura com muito cuidado e queríamos que ela fosse aprovada. E nós estamos a liderar este processo e então fomos buscar o nosso vice-presidente, que é historiador, o Doutor Jorge Daniel, que é musicólogo. E estamos a trabalhar em conjunto para que essa candidatura possa ter muita força. Tem cinco espetáculos, um em cada concelho, é a obrigatoriedade. Nós já escolhemos o calvário, a capela do calvário. P: Diga-me uma coisa, estava-me a falar aqui desta cooperação entre associações, isso existe desde quando, ou seja, os ranchos folclóricos já se reuniam antes? José Simões: Os festivais folclóricos fazemos todos os anos. Nacionais ou internacionais. Nós tínhamos programado para 2020 o Internacional, o Grupo de Espanha e de Portugal. Tínhamos um grupo de Santarém, tínhamos um do Norte, de Gondomar, eram cinco ou seis grupos. Fazemos anualmente. P: Desde quando é que se começou a fazer isso? José Simões: Desde 1985. P: E antes do 25 de Abril, já havia essa interação entre grupos? José Simões: Havia, mas não estava tão enraizada. Havia, mas muito menos, muito menos. Os festivais do folclore, aliás, só apareceram depois do 25 de Abril. Porque são incentivados pela Federação do Folclore Português e a federação nasceu em 1977. Porque até lá também a associação livre não era admitida, não é? P: E então nasceu em 77 e começou a organizar essa altura... José Simões: Em 1977 a Federação do Folclore Português foi criada e começou a haver essa evolução no bom sentido, tanto pela qualidade dos grupos, como também na organização desses eventos. P: Qual é que foi o primeiro em que vocês participaram? José Simões: Foi um organizado aqui, no Refúgio. Eu lembro-me que fui à Câmara, em 1985, ao vereador da cultura e digo-lhe eu: oh senhor vereador, nós queremos organizar um festival de folclore. Epa, vocês são doidos, então vocês têm a capacidade? Quantos grupos? Cinco, seis grupos. Vocês não se metam nisso, já viu qual é a capacidade? Deixa isso connosco, deixa isso comigo. E diz ele: então, mas o que é que pretende de nós? Poder dar a notícia, não peço mais nada. Só quero que me monte lá um palco. Não pedem mais nada? Não! Se quiser depois dar mais algo... E organizámos muito bem. Depois, olhe, apareceu-nos alimentação, apareceu-nos tudo. A coisa correu tão bem, em 1985. A partir daí, nunca mais parámos. P: De ir a outros sítios e de trazer outros cá? José Simões: Vamos, também. No fundo, é retribuir a vinda, é o ir a merecer. P: E esse intercâmbio é importante? José Simões: É, importante, muito importante. É importante e mantém os elementos do grupo focados nesse projeto, que também gostam de sair, gostam de ir a Lisboa, ao Porto, a Paris, como já fomos duas vezes, à Ilha da Madeira, tudo isso. Pronto, se calhar nunca tinham ido lá… P: E quando vão por exemplo a Paris, são recebidos pelas comunidades portuguesas? José Simões: Sim, somos recebidos em casa de portugueses. Dormimos em casa dos portugueses. P: Que também têm ranchos lá? José Simões: Alguns têm. P: E nesses festivais internacionais, quem é que participa? José Simões: Participam grupos que nós convidamos desse resultado, também em permuta. Nós temos ido mais para os nacionais, por uma questão económica, porque fora do país custa mais dinheiro. Mas já tivemos aqui grupos de Badajoz, de Múrcia, fomos a Múrcia. Também já tivemos grupos de Toledo, Badajoz, como eu disse, e agora vamos ter… está contratado no próximo festival que houver, o grupo aqui da região da Extremadura, uma localidadezinha da Extremadura espanhola. P: Então e nesses festivais fora, juntam-se grupos de várias partes da Europa? José Simões: Sim, olhe nós, por exemplo, participamos há três anos num festival em Maia, Porto, onde estavam grupos de sete ou oito países. Pois, de Portugal estávamos dois, estava o Refúgio e o organizador. Depois havia do Peru, da Colômbia, de Espanha, da Venezuela… eram oito grupos ao todo, seis países, com Portugal sete. P: Eu já estive a estudar também as associações nas ex-colónias portuguesas e vi que no passado também havia associações de folclore lá, portugueses, Casa da Madeira. Vocês nunca tiveram intercâmbio com os países das ex-colónias? José Simões: Não, sabe, nós temos muitos convites, da Polónia, da Roménia… Mas não temos a capacidade económica para nos deslocar. Se tivesse um convite das nossas ex-colónias, também não íamos, com certeza. Eu nunca me apercebi, mas deve ter havido. P: E assim das comunidades portuguesas que há pelo mundo inteiro. José Simões: Isso há. Do Brasil, já tivemos aqui um grupo do Brasil. P: Mas de portugueses que estão no Brasil? José Simões: Portugueses que estão no Brasil, orientados por uma senhora brasileira. A diretora era uma senhora brasileira. Veio o grupo, o representante deles artístico é o [...]. Morreu há dois anos, veio aqui com eles, por duas vezes… P: E essa ligação, vocês para além de atuarem uns com os outros, o que é que fazem mais, discutem estas questões do folclore? José Simões: Habitualmente não há tempo para isso. É chegar lá, trajar, jantar… Os festivais são sábado à noite, habitualmente. As pessoas aqui trabalham até ao meio-dia, uma hora, em alguns casos, temos de esperar. Vamos de autocarro para o Alentejo ou não sei quantos, chegamos lá quase em cima da hora. Há uma sessão solene, sempre agendada com os grupos todos, com o presidente da Câmara, ou alguém que o representa, o presidente da Junta, os grupos todos, representação dos vários grupos. Uma sessão solene. Depois vamos ao jantar e vamos para o palco. E sairmos do palco, toca a tirar o fatinho, vestimos os nossos, meter no autocarro. E chegar aqui às quatro, cinco da manhã. P: Então diga-me uma coisa: isto do associativismo, porque é que dedicou tanto tempo da sua vida? José Simões: Por amor ao folclore, especialmente. Embora o associativismo também me diga muito. Eu depois criei aqui o Grupo de Cantar, ligado à Igreja, criei aqui um grupo de teatro, que fizemos quatro anos com a mesma peça em cena, percorremos quase o país todo. Com 60 elementos, eram 60 elementos, o grupo de teatro. O musical. P: Como é que se chamava? José Simões: O Nazareno, era baseado na vida de Cristo. Foi baseado, não sei se conhece, numa obra do Frei Hermano da Câmara. Era um fadista de um bairro de Lisboa que enveredou pela vida cristã. Foi para um convento, mas a voz não a deixou cá fora, como é lógico. Então ele tem uma carreira artística muito grande. E criou uma peça ligada à vida de Cristo, que é O Nazareno, uma peça musical. Nós adaptámo-la para o teatro, com instrumentos próprios, acordeão, órgão, viola, tudo organizado por mim. Fiz a encenação, encenei a peça e começámos a ser chamados para muitas outras do país. Nós, o último espetáculo que fizemos, terminámos, porque depois, entretanto, o rapaz do piano era professor, foi daqui para fora. Os professores andam sempre com a mala às costas. Foi parado e tal, pronto ficámos por aí. Fizemos o último espetáculo em Fátima, no anfiteatro Paulo Sexto, com 3500 pessoas a assistir, no Dia Internacional da Juventude. Foi criado por mim, isto é a prova daquilo que eu tenho dedicado à bandeira do associativismo também. E então dá-me muito gosto. Fui aqui também secretário da Direção da Associação Comercial dos Concelhos da Covilhã, Belmonte e Penamacor, durante três mandatos. P: Qual é a atividade que desenvolvia? José Simões: Ligados ao comércio, todo o comércio e indústria. Pagavam as suas quotas e depois fazíamos vários eventos, com alguma grandeza, na universidade da cidade da Covilhã, para apresentar um cortejo etnográfico. Coisas várias dessas, o cortejo do trabalho, exposições, ainda existe a associação, hoje com o nome de Associação, na altura Grémio, do comércio. Agora até me vão contratar para fazer um filme para a RTP. Sou personagem num filme que vai passar na RTP no último trimestre deste ano, A Traição do Padre Martinho. P: Que personagem é que vai fazer? José Simões: Tio Francisco. Já fiz, já está filmado. O protagonista principal é o Diogo Martins, um autor especialmente de novelas. O Ricardo Carriço, a Eva Barros, o Manuel Marques, que trabalha muito com o Herman, o Rui Mendes, o consagradíssimo Rui Mendes. E depois, havia no meio do elenco todo dois atores não profissionais. Então fizeram um casting, mas não disseram para que era. Puseram-me a ler e depois telefonaram: o senhor está contratado para fazer, vou entrar em contato consigo para acertar valor. Eu julgava que aquilo era de borla. Para acertar valores e combinar, precisamos de si, pelo menos três sessões. Depois ligaram: olhe, já falou o não sei quantos consigo? Já. Era para acertar valores. Olhe, 125 euros por cada sessão, mais alimentação, está bem? Eu até achei muito dinheiro. Olha, então vamos lá ver, 125 × 3, não é? Exatamente. Se for preciso mais alguma? Está bem! P: E então, foi o teatro, foi os cantares. Quando é que isso foi? Quando é que começou? José Simões: Isto foi na época de 80. Os cantares foi um bocadinho anterior, foi na década de 70, talvez. Depois criei o grupo de teatro na década 80 e tal. Foi só aquela peça. P: E os cantares era como, era um coro? José Simões: Cantares era um coro, vestidinhos com um papillon os homens, as mulheres uma echarpe. P: E o que é que cantavam? José Simões: Eram repertórios populares, mas não rígido aqui à região. Cantiga popular, fosse de Lisboa ou do não sei quantos, cantávamos tudo. P: E onde é que atuavam? José Simões: Olhe, em vários locais, nunca saímos aqui da zona. E eu lembro-me de um espetáculo que participámos para a Rádio Renascença. Veio aqui fazer um espetáculo à Covilhã, fomos contactados, contratados não, contratados era se ganhássemos dinheiro. E lá fomos fazê-lo, ao ar livre e aqui assim na região, várias pessoas: ah, vocês têm um grupo de cantares, vão lá… Vamos, então não vamos? P: Então foi o folclore, foram os cantares, foi o teatro e foi isso. Não fez parte das coletividades da Covilhã, quando estava lá a trabalhar, foi sempre aqui no Refúgio? José Simões: Sempre aqui no Refúgio. Não, na Covilhã só aquela associação comercial, já virada para um patamar mais elevado. P: Então, e entre todas estas experiências, qual foi aquela que mais o marcou? José Simões: O que marcou mais foi o grupo de folclore. Mas gostei muito daquela do teatro, o teatro musical, porque foi preciso escolher muita voz, selecionar muita voz. A voz de Cristo, de Maria, dos anjos, do dono do Canal, do Doiro, havia muitas vozes que era preciso selecionar, bem cantadas, tinham de ser bem selecionadas. Isso dava algum trabalho. P: E diga-me uma coisa, a Covilhã é uma zona muito fabril, toda gente praticamente que eu entrevistei está ligada à indústria de lanifícios… José Simões: Eu por exemplo nunca estive. P: Mas aqui o refúgio também? José Simões: O Refúgio também teve aqui uma fábrica, aquele poema que eu fiz… Refúgio, local com muita história, vivências e memórias, Terra de trabalhadores, operários e doutores, escritores, poetas, pastores, agricultores, foste refúgio de hebreus, tecestes ....(?) Fardaste os soldados dos quartéis, produziste finos tecidos, vestiste nobres e mendigos. Foste terra de realeza, de povo e de nobreza. Recebeste El Rei de Portugal, D. Carlos de boa memória, enriqueceste a tua história, transformaste o trigo em farinha, acolheste a Rainha monarca do teu país, Amélia de seu nome, em teu palacete dormiu e o povo a aplaudiu, foste, és terra de tradições, de festas e romarias. Acolheste a festa brava, touros e toureiros numa praça com história construída pelo fogo, pela tristeza do povo. Os tempos transformaram-te, desse resta a história, mas continuas a ter gente com garras e valentia para construir o teu futuro de cada dia. Cá está, ligada à indústria. O Rei Dom Carlos visitou a indústria em 1891, depois de inaugurar os caminhos-de-ferro da Beira Baixa e dormiu aqui. O nome do Refúgio… Há várias ideias. Ao concreto, acho que ninguém sabe. Parece que a mais lógica, que tenha a ver com o D. Sancho II, o Povoador. Ele tentou povoar esta zona, no caso inóspita, pouco da obra, de montes e tal. Então, todos aqueles que andavam fora da lei ficavam integrados da sociedade, se chegar aqui refúgio. Chegavam aqui, eram fora de lei. Eu quero ser cidadão livre. Eu quero me integrar aqui, pronto. Quero aqui ficar. Essa é uma daquelas que é mais consentânea. Também tem muito a ver com os hebreus, no tempo da Inquisição, parece que aqui também era um bocado o refúgio deles. Mas há muitas versões, não sei qual é a correta… P: Então, agora, e só para terminar, diga-me, queria saber o que é que acha que será o futuro do associativismo? José Simões: Olhe, eu já vi isto quase a desaparecer. Depois parece que vejo outra vez a pegar no fio, e que a coisa terá futuro. Enfim, estou convencido que sim. Estou convencido que sim. É verdade que talvez precise de uma reciclagem, porque hoje já ninguém vem à associação para bailar, para dançar. Os bailaricos é na discoteca. Já ninguém vem cá para tomar banho. Já ninguém vem ver um jogo de futebol, tem em causa tudo. Tem 100, 200 canais, sentado no sofá, lá estão em contacto com o mundo. Terá de haver outros motivos que possam atrair as pessoas, isso vai muito da imaginação dos dirigentes. Os dirigentes têm de ter mais sensibilidade do que antigamente. Antigamente qualquer um dava. Porque aquilo era abrir a porta e as pessoas entravam, era pôr o disco a tocar e as pessoas dançavam, era ligar a televisão e a sala estava cheia. Hoje não, mas até tenho esperança. P: Aqui o vosso rancho está perfeitamente modernizado, até faz candidaturas. José Simões: Sim exatamente. Agora, nós somos uma associação um bocadinho sui generis, porque não tem aqui uma casa aberta. A senhora vai a qualquer associação e vê os bilhares, as cartas, vamos ajudar, vem outro beber um copo de vinho, um café e tal, é tudo o que é necessário. Nós não temos. É uma associação um bocadinho diferente. Cá dentro estão as 50 pessoas do rancho, os 100 e tal associados que temos e uma capacidade... tivemos de nos munir de dirigentes com alguma ação: o Doutor Vítor Tomás Ferreira, que já foi presidente de junta, que está ligado à Universidade, é um professor, que é um historiador, um professor. Está a ver, tivemos que procurar pessoas, que, não tendo a ver propriamente com o folclore, têm outra capacidade para poder atrair, desenvolver este projeto. Porque depois, bem, este projeto também não é qualquer pessoa que saiba… Portanto, as associações têm necessidade também de ter um corpo dirigente capaz de saber encarar o dia de hoje e de amanhã e ter capacidade para criar condições atraentes para os jovens e para os menos jovens. Se houver essa capacidade, acho que as pessoas continuam a ter necessidade de se reunir. P: Também acho que sim. Agora só para uma questão estatística, que eu tenho perguntado a todos os dirigentes: professa alguma religião? É católico praticante? José Simões: Praticante, sim, pode considerar. Não vou todos os dias à missa, mas pode-se considerar que sou católico praticante. P: E é filiado em algum partido político? José Simões: Nunca fui filiado. Ou melhor, fui filiado num partido político durante uns tempos, e desisti. A minha filosofia política enquadra-se muito na social-democracia. -
3 de junho de 2021
José Marques Martins e João José Silva
P: O Sr. José Marques Martins nasceu aqui? José Marques Martins: Nasci em Tondela, ou melhor, em Canas de Santa Maria, freguesia de Canas de Santa Maria. P: Em que ano? José Marques Martins: Em Tondela, em Setembro de 1946. E inicialmente, por curiosidade, apesar de ter nascido oficialmente no dia 29, nasci no dia 11, que é uma data diferente. Tinha que ser. Eu só soube que tinha sido no dia 11 já tinha perto de 30 anos, de maneira que são coisas de histórias, mas que gosto de recordar sempre. Porque a minha mãe, que Deus a tenha, quando eu a convidei para ir para o aniversário: então mãe venho-te buscar ou venho... Que eu já estava casado, e ela: então, quando é que tu fazes anos? Oh mulher, então tu tiveste-me e não sabes? Pois, mas tu não nasceste no dia 29, o teu pai roubou-te na idade, porque antigamente era assim, portanto para dar uma ideia... P: Os seus pais faziam o quê? José Marques Martins: O meu pai tinha a profissão de sapateiro, mas foi um grande corredor de bicicleta, treinou e correu Porto-Lisboa. Aliás, se chegar à Folha de Tondela tem lá uma grande... e daí nasceu, talvez venha dos genes dele toda esta história da… e tenho ainda recordações, portanto, dos jornais em que o meu pai correu Porto-Lisboa, correu a Volta a Portugal, na altura do Américo, do Faísca, do Trindade. E então, claro, não era um corredor, mas tinha um grupo desportivo... P: Já tinha na família a propensão para o associativismo.... José Marques Martins: A minha mãe é doméstica. E depois mais tarde é que ele aprendeu a profissão de sapateiro e a agricultura. E foi isso. P: E estudou lá... José Marques Martins: Estudei em Tondela, no Colégio agora escola secundária, e depois saí de lá com 18-19 anos. E então fui apanhado, como todos os outros da mesma idade, para irmos até à guerra, que foram dois anos, cada um com as suas memórias, nem tanto agradáveis, mas pronto, não vamos falar nisso. E quando vim, tive que recomeçar a vida. Foi uma geração sacrificada, aquela geração da altura em que fomos para a guerra. Portanto, nós tínhamos uma forma de estar, porque vivíamos no campo, o nosso crescimento estava dominado por uma certa formatação. Nós, quando queríamos respostas, diziam-nos: porque sim, porque tinha que ser assim, assim é que era. O Colégio onde andei, católico, também tinha a rigidez religiosa de então, muito mais forte. E nós na agricultura fomos crescendo. Claro que depois apareceu ali uma… naquela altura dos Beatles. Depois éramos muita juventude, havia muita juventude, havia mais filhos, não havia televisão, como eu costumo dizer na brincadeira. E então havia muita juventude e por isso nós juntávamo-nos, fazíamos o tal grupinho de futebol, para ir tomar banho para o rio, para ir para os bailaricos, portanto, havia isso. E onde é que nós nos juntávamos? Nas tabernas, que era um sítio onde víamos um Bonanza e outros que tais. A taberna antiga foi sempre um local de encontro, ou lá dentro ou cá fora. Enquanto os mais velhos estavam lá dentro a beber uns canecos e a jogar à sueca, nós estávamos cá fora, porque não tínhamos autoridade de entrar, porque éramos miúdos, mas já queríamos ir e esse foi o nosso crescimento. Depois tudo mudou, quando aparece o 25 de Abril, mais tarde, portanto, abre-se. E, é claro, quem teve condições para progredir na formação, muito bem, quem não teve, ficou sempre naquele estado. Claro que depois houve aquela vontade em termos um futuro melhor e foi quando se abriu a possibilidade de os caminhos para a França, para a Suíça, para a Alemanha, em que as mulheres ficavam a tomar conta da agricultura. P: Mas o senhor José não emigrou? José Marques Martins: Era para ter emigrado, mas, felizmente ou não, como tive oportunidades de emprego logo de imediato… P: Qual é que foi a profissão que depois seguiu? José Marques Martins: Depois, quando vim, embora tivesse várias opções, mas porque já tinha família constituída, fui para os laboratórios da celulose, em Vila Velha de Ródão. Estive lá três anos e depois de lá é que vim para a Covilhã, para o Instituto de Emprego, antigamente era o Serviço Nacional de Emprego, e ingressei como técnico de emprego e toda a minha... até à minha aposentação. E depois, mais tarde, também me ordenei diácono, portanto, e aí houve razões para essa via, são histórias de vida. P: Não se casou? José Marques Martins: Casei pois, os diáconos podiam se casar. Casei e já estou viúvo. Tenho dois filhos e duas netas e, portanto, foi essa história de vida. Aqui caí e há histórias que a gente conta, quando venho aqui para a Covilhã, gostei de vir. Porquê? Porque embora estivesse em Castelo Branco, eu passei aqui de madrugada e há duas imagens que eu guardo da Covilhã, que jamais me esquecerei: que foi ver pelas seis horas da manhã, mais coisa menos coisa, ver os trabalhadores que eu não sabia para onde é que iam, todos em fila, lá iam com uma lancheira na mão. E então perguntei para a minha mulher, que ela andou aqui a estudar, eu não estive: onde é que esta malta vai? Vão trabalhar, vão agora para o turno. E eu achei curioso irem àquela hora todos, mas uma grande fila de gente. E uma outra imagem quando chego ao Souto Alto, quando vinha do Fundão e comecei a olhar para a Covilhã de madrugada e a vi toda Iluminada, que me deu uma semelhança com o Funchal, onde passei quando vim da Guiné, porque nós parámos no Funchal, porque trazíamos uma companhia de caçadores do Funchal, e deixámos lá alguns colegas falecidos. E a imagem que guardo do Funchal é quando eu acordo, pela coxia do barco, vejo também aquela montanha toda iluminada, que tem uma certa semelhança com a Covilhã. E eu disse na altura, talvez dois anos antes de vir para aqui trabalhar, para a mulher de então: olha, gostava de trabalhar aqui, mal eu estava já a pressupor que um dia vinha aqui parar. Cheguei e, como vim para aqui morar e esta foi a casa para onde vim cair e caí aqui, vim para aqui jogar, ainda me lembro, jogar às damas com um vizinho nosso que já faleceu, que era o Fernandes… E havia cá um contínuo que até tinha uma certa dificuldade no andar, o Sr. Pinto. E então a história do associativismo também começa um pouco aí, quando nós estávamos os dois muito bem a jogar e o senhor Pinto chega e diz assim: podem continuar a jogar, mas é bom que se façam sócios da casa, têm ali uma fichazinha. Então, deu-me essa ficha. Mas têm que pagar uma joia, e a joia era, salvo erro, 50 escudos, ou coisa do género, na altura pagava-se a joia. E pronto, e foi no ano de 1973-74, depois apanho o 25 de Abril. Eu ingresso no serviço de emprego em 73. Estou em Lisboa porque venho para fazer a formação em 74, Janeiro, e o 25 de Abril nasce a seguir, portanto, eu apanho toda essa zona, claro. Depois também gostei de saber o porquê daqui nas fábricas, porque eu vim trabalhar para uma casa e para eu poder ser capaz de poder fazer um serviço melhor, tinha que saber como é que os trabalhadores trabalhavam, porque quando lá estávamos a fazer uma entrevista e aparecia um tosador, aparecia um tecelão, aparecia uma metedeira de fios, aparecia não sei quê, tinha que saber o que é que isso significava para poder ter uma ideia, numa entrevista, do que tinha à frente. Por exemplo, havia cá umas cento e tal fábricas, ou mais um pouco, e eu fui visitá-las todas e fazer um estudo técnico das máquinas. Técnico, isto é: o que é que a metedeira de fios faz? Como é que ela faz? Que instrumentos é que ela utiliza? E depois via tudo isso durante o dia e à noite era aqui no Grupo Instrução e Recreio, no Campos Mello, no Ginásio, e as atividades eram aquelas que, para além do Futebol Sporting da Covilhã, como é evidente, mas eram aquelas que agregavam mais gente. Claro, depois apareceram, mais tarde, outras. Quando apareceu a Universidade, muito mais se abriu. E portanto, saber o porquê disto, talvez também pelo gosto de saber da História daqui, como é que nasce e, portanto, cheguei sempre à conclusão de que é o mesmo em todo o lado. Havia um objetivo comum daquela gente, juntavam-se. Havia um objetivo comum, havia também um cimento que era a solidariedade entre eles e toca de fazer uma coisa que fosse benéfica para os outros, para o bem comum, para eles próprios, e que desse formação àquela gentinha. Foi sempre essa a evolução associativa. Aquilo que, com quem eu conversava, com os mais velhos, era isso: epá, nós queríamos era, queríamos aprender, mas não sabíamos ler, queríamos saber mais, queríamos que os nossos filhos....E eu lembro-me que os meus pais diziam assim: eu não quero que o meu filho ande com uma enxada nas mãos. Possivelmente aqui os tecelões, eu quero que os meus filhos não saiam e não sejam... P: Queria fazer ao senhor José mais duas questões para estatística. Na realidade, estou a perguntar a toda a gente, se é professa alguma religião. José Marques Martins: Sou católico. P: É católico, claro, e se está filiado em algum partido político ou já esteve. José Marques Martins: No Partido Socialista. P: E já agora também ao senhor João, ficamos já com estas duas questões: é religioso, professa alguma região? João José Silva: Católico. P: Também é católico e é filiado em algum partido político ? João José Silva: Também no PS. P: Então vamos começar pelo início. Nasceu aqui na Covilhã? João José Silva : Sim, nasci, criei, fui criado, fui batizado, fui criado, casei e a minha vida foi sempre praticamente na Covilhã. P: Nasceu em que ano? João José Silva: Em 1947, 12 de janeiro de 1947, e fiz sempre aqui a minha vida. Aliás, sou filho da terra. E sou filho dos meus pais. O meu pai era técnico de tecelagem, afinador de teares, e a minha mãe metedeira de fios, ainda há bocado o Marques Martins estava a dizer que não sabia o que era uma metedeira de fios… a minha mãe era realmente metedeira de fios. P: E o senhor João, também foi trabalhar para a indústria têxtil? João José Silva: Eu trabalhei relativamente pouco tempo, porque era assim, era difícil na altura. Os meus pais… éramos três irmãos, duas irmãs, comigo três, e era muito complicado, porque na altura os ordenados eram relativamente baixos e viemos morar aqui para o bairro do Rodrigo, onde, na altura, a renda já era um pouco cara em relação àquilo que ganhava o casal. E o meu pai teve que me chamar a atenção e dizer: vocês têm que trabalhar, têm que ajudar a casa. Eu fui trabalhar, comecei a trabalhar com 12 anos. O primeiro emprego foi precisamente, não foi na indústria têxtil, acabei por ir para um gabinete de advogados onde estive, fiz alguma formação e depois apareceu uma outra situação, mudei e acabei depois por ir para a indústria, porque a firma para onde eu fui a seguir encerrou por motivos que desconheço. Então eu, para não estar desempregado, sentia-me um inútil, no termo da palavra. Eu queria realmente era a minha independência, ter algum para poder, ao longo da semana, planear o que eu poderia fazer e então foi quando eu estive, pouco tempo, na indústria, fui cardador, com 18-19 anos. Depois surgiu a hipótese de uma outra situação: convidaram-me para ir para o Sindicato da Indústria de Lanifícios do Distrito de Castelo Branco, onde estive desde 1964 a 1968. Entretanto, fui à inspeção, fiquei aprovado e toca de ir para Angola. Não sei o que lá fui fazer, para Angola, fui forçado, fui obrigado. Estive lá três anos em África. Regressei de África e, claro, a minha preocupação foi arranjar alguém com quem casar. Casei e também já estou viúvo. E pronto, tem sido... ainda andei na escola Campos Mello, mas não concluí, porque era difícil na altura. A gente chegava do emprego às sete da tarde, das nove às sete da tarde. E às 7:30 tínhamos que entrar na escola, na escola Industrial e comercial Campos Mello. P: Qual é que era o trabalho que tinha na altura? João José Silva: Na altura estava ligado ao Sindicato dos Lanifícios como funcionário. Entretanto, pronto, não concluí. Reconheço que a própria juventude, os namoriscos... Até acredito que podia ter, podia ter conseguido outras coisas, mas não, porque era muito difícil. Entretanto, depois de ter vindo de África tive um pequeno comércio, uma papelariazinha, que abri na altura. Estive a explorar aquilo durante dois anos, foi quando surgiu a hipótese de ir para o Hospital Distrital da Covilhã, onde estive 40 anos a trabalhar como auxiliar de ação médica. Gostei imenso daquilo que fiz, gostava imenso, adorava a profissão e a prova está que nunca saí do mesmo serviço, não, tive o mesmo trabalho sempre, todo esse tempo. Por incrível que pareça, e não está aqui que não nos ouve, fui apanhar lá o Sr. José Marques Martins com problema de rins. José Marques Martins: Mal eu sabia que tinhas passado pela minha mão para ir para o hospital, eu sabia que ele era bom… João José Silva: Sempre dedicado à cidade e o José Marques Martins é uma pessoa que eu conheci de perto, desde 1973. Agora, porque somos vizinhos… José Marques Martins: Eu andei com as filhas dele ao colo. João José Silva: Éramos uma família aqui, éramos uma família, toda a gente se dava bem, toda a gente se comunicava, era importante. E o Grupo Rodrigo, quer se queira quer não, ajudou e continua a ajudar muito nessa parte. Não tanto como nessa altura, porque era aqui que a gente se concentrava, era aqui que a gente conversava, era aqui que a gente bebia o nosso café e jogámos ao 21, para saber quem é que pagava os cafés, jogava-se as damas, como o Martins dizia, o snooker, o bilhar livre, as cartas, o dominó... José Marques Martins: Depois do trabalho, onde é que nós íamos conversar? Tínhamos o jornal e líamos, ouvíamos as histórias e depois começámos a.... João José Silva: Criar amizades… José Marques Martins: E depois há sempre os mais velhos, aqueles que estão nos órgãos sociais. Quando chegava a altura da revitalização de novos órgãos, iam apontando este e aquele e o outro não sei quantos. Bom, eu falo por mim e pela minha experiência, fomos indo e olha, estive cá desde 1975 até há dois anos atrás. Foi sempre, só tive um interregno de quatro anos. Portanto, depois passei para a Assembleia, que para lá me queriam chutar, mas criámos coisas interessantes e a beleza disto, não sei se concordarás comigo, com certeza de que sim, a beleza disto é que nós, mesmo não tendo a mesma… tendo opiniões diversas, conseguimo-nos juntar para pormos a coisa a funcionar, porque íamos à procura, com a nossa diversidade, de elencarmos um programa que fosse o melhor possível. E deixávamos as diferenças para irmos buscar aquilo que mais nos unia. Hoje, já não vejo, infelizmente, não acho que já não é tanto assim. João José Silva: E, acima de tudo, estavam os interesses da coletividade e não os interesses.... Exatamente como estar ligado à política. Eu, aliás, apanhei o José Manuel Martins na política, mas era muito antes de mim, o estar na política não queria dizer que a gente que se aproveitasse de alguma coisa como interesse pessoal, nós viemos para aqui para defender os interesses da coletividade. Era extremamente importante. José Marques Martins: Era engraçado, era belo, primeiro para nós. Vamos lá ver, o associativismo funcionava, não, funciona, porque nós trazíamos a família connosco, não fisicamente, mas vinham connosco, no coração vinha connosco, e nós queríamos que esta casa, que é a casa que vínhamos também trabalhar, que as famílias se sentissem aqui bem e por isso, quando tudo o que nós fazíamos era sempre com o objetivo… tanta vez que nós dizíamos aqui: as nossas esposas são aquelas que nos aguentam para estarmos aqui nos órgãos sociais. João José Silva: Aliás, a minha até realmente colaborou imenso, e as filhas, no rancho folclórico, nas marchas populares… José Marques Martins: Na costura, elas faziam tudo e a tua filha, ela também, as danças rítmicas, os miúdos… Quer dizer, elas também cresceram com esse gosto porque viam que os pais tinham gosto e se eles... às vezes eu perguntava: vocês gostam? Vocês andam cá… E, portanto, este gosto passava-se de pais para filhos. Porque era uma coisa linda e tudo o que era feito não era com o intuito de “eu fiz”, não, “nós fizemos”. Nós fizemos, e isso para nós foi... P: Então e essa propensão que vocês passaram para os vossos filhos, terão herdado dos vossos pais, os vossos pais tinham participação associativa? João José Silva: Eu no que diz respeito ao meu pai, sim. Foi sempre um....e era trabalhador na indústria de lanifícios, quer dizer, aliás, o movimento operário na Covilhã nessa altura era fortíssimo, como deve calcular. E ele já… ele entrava aqui e eu recordo até uma passagem extremamente importante, importante e desagradável ao mesmo tempo. Aqui na altura só se conseguia, a direção, na altura, só autorizava a admissão de associados que tivessem mais de 17 anos. E o meu pai vinha, eu vinha com o meu pai, mas só podia estar com ele, porque se ele não viesse, não me deixavam entrar e ele ainda arranjou uma chatice porque soube na altura que houve associados que admitiram com menos idade que eu, e só aos 17 anos é que me consegui fazer sócio desta coletividade. José Marques Martins: Aliás, era aquilo que diziam os estatutos. No meu caso, quer dizer, para além daquilo que o meu pai teve, aqueles genes, eu já via a coisa de outra maneira. Depende também tudo daquilo que nós temos na nossa alma, que vai cá dentro, porque repare: o meu pai também tocava numa banda, numa música, numa filarmónica, na Filarmónica de Tondela, e eu aprendi música também, por aqui, para tocar alguma coisa num órgão, porque me ajudava também nas celebrações. Mas gostei sempre do teatro, porque mesmo nos meus tempos de colégio eu fiz muito teatro, que é o teatro da escola. Fora disto, na minha aldeia, na minha zona, nós criávamos grupos, sem querer, que nem sequer chamávamos associação. Era um grupo em que nós nos defendíamos, em que nós sabíamos as coisas uns dos outros, em que nós nos ajudávamos uns aos outros e aprendemos a ver isso na agricultura, quando este grupo ia ajudar aquele na sacha e nas vindimas e aquele ia no outro. E isso, para nós, quer dizer, para nós era bom. Eu gostava porque também andei nisso, íamos: agora vamos ajudar aquele, depois daquele, vamos ajudar aquele e portanto, quando chegávamos ao fim, à noite, para nós era uma alegria vermos que todos estavam felizes, porque alguém ajudou outro e sabia que aquilo funcionava. Se me perguntassem o que é que isso era, eu hoje reconheço que aí já eram… havia um objetivo comum, havia o bem comum, isso era associação, era uma associação. Só que não era… aqui, quando eu chego à Covilhã, a coisa já era diferente, porque existe uma indústria, existe aquilo que nós também lá sentimos, os industriais daqui começaram a dizer assim: alto, precisamos que os nossos filhos… precisam de ter algo que os ensine, que os forme. Porque se nós não dermos condições aos nossos filhos para se educarem, para se formarem, não vale a pena continuar. Essa foi uma das razões que o associativismo nasceu aqui e lá também, pelo desporto, que é sempre uma escola de educação, em que havia também a parte da música, as letras e quando não havia escolas, era ali que nós íamos aprender. P: Fale-me mais nessa ideia, é muito interessante essa ideia de quase comunitarismo que existe na agricultura. José Marques Martins: Sim, muito importante, muito importante. Porque eu sinto isso de nós nos juntarmos em grupos e virmos para as grandes vindimas daquela zona do Dão. Nós íamos em grupos e havia sempre o líder do canto. O canto era aquilo que fazia a agremiação de todos. As desfolhadas, íamos agora a desfolhada, por hipótese, e íamos depois à desfolhada do não sei quantos e então nós todas as noites nos juntávamos e o milho aparecia nas eiras. E então como é que nós criávamos essa... isso é que que eu trouxe e que me ajudou. O que é que nos ajudava? Nós não íamos para as desfolhadas e estávamos ali feitos monos a desfolhar. Havia uma rivalidade como existe nas associações. A rivalidade de rapaz com a rapariga: eu liderava a parte do canto dos rapazes e picava as raparigas, onde havia uma tal Fernanda, que também picava os rapazes e isso criava... e quando nós damos por nós, já estava o milho, já estava tudo desfolhado, já estavam espigas todas no sitio como devia ser e já estava lá uma mãe, ou uma avozinha, a preparar o bacalhau com cebola e com tomates e com pão para nós comermos tudo no final da desfolhada. Isso era festa, fazíamos essa festa. E, portanto, isso cresceu connosco e ficou cá. Depois, é claro, aparecerem condições numa zona, como aqui apareceu, condições para trazer à tona aquilo que nós fazíamos, vamos em frente. Ou paramos ou deixamos que isso cristalize… Ou então fazemos aqui. Eu recordo que uma das primeiras coisas que fiz, que ajudei a fazer, na parte do teatro… fizemos aqui o Grupo Girtec, inclusivamente estive em Évora nessa altura a tirar o curso de animação cultural no teatro Garcia de Rezende, em 76, portanto, que me permitiu algumas luzes. Mas havia essa parte, digamos agrícola, muito interessante em que as pessoas se ajudavam umas às outras… P: E em meio urbano, também havia essa entreajuda informal? José Marques Martins: Diferente das aldeias. Aliás, aqui em meio urbano era assim: as pessoas trabalhavam e praticamente onde se reuniam era no final do trabalho ou nas tascas, nas tabernas, que era a Viene, era quase porta sim, porta sim, e depois à noite vinham às coletividades. A coletividade abria às 6:30 da tarde, todos os dias. E quando eu falo aqui num senhor que era, na altura chamavam-se contínuos, agora são empregados ou colaboradores, falámos aqui no senhor [...], era um homem que... de muita postura, de muita responsabilidade, gostava imenso da coletividade ao ponto de sofrer na carne dessa forte união. O que ele sentia pela coletividade e ao pôr-se ao lado dos dirigentes, na altura, era complicado... Ele foi preso na altura, vieram-no buscar ao Grupo de Rodrigo depois do seu trabalho, a polícia política veio buscá-lo aqui. Porque ele era forte colaborador com a direção, o grupo que esteve na altura... Quando se criou o grupo estávamos em ditadura e todos nós sabemos que as ditaduras viviam um bocadinho às avessas com o associativismo, porque o associativismo é democrático. Juntam-se várias ideias, juntam-se várias pessoas com um objetivo comum, mas as ideias fluem… Não há ali um indivíduo que diga: eu é que eu é que comando, é que não sei quê… Não, todos contribuem. Portanto, a vida associativa é uma vida que se transporta para a cultura, quer dizer, para os objetivos de luta. E é, tal como aqui, as coletividades, qual é que foi a luta aqui? Era o ensino, era a formação e ensino, educação e, neste caso, a lutuosa, como nós também sabemos. Havia razões. E o que era a lutuosa? Coitadas das pessoas… Quando morria alguém não tinham dinheiro, não tinham, sei lá, para mandar tocar um cego, quanto mais, era um objetivo definido, havia uma luta. E já que o governo não conseguia fazer chegar até ao necessitado essa resposta, eram as pessoas que se juntavam numa certa zona para criar essa resposta. E aí, claro, quem tem o poder, não gosta que alguém vá fazer-lhe frente com isso. Isso é verdade e, portanto, o associativismo era isso e daí que veio para aqui. E na altura olhavam-nos com uma certa… João José Silva: Na altura, quem não era deles, era comunista, tudo era comunista, desde que não fosse… Mas não porque aqui o GIR teve nos seus órgãos sociais, um ministro, na altura. José Marques Martins: Que foi presidente da Câmara e que oficializou a primeira escola primária aqui no bairro, que foi aqui na coletividade. O que era isso? Era a possibilidade de termos professores oficiais, porque até aí a escola era aqui do grupo, mas não era oficial, só que havia pessoas que ajudaram a dar a escola aos filhos dos funcionários... João José Silva: Depois foi oficializada… P: Estudou aqui, o João? João José Silva: Eu estudei, não aqui no GIR, não. Eu estudei na escola aqui do bairro do Rodrigo, e esse doutor Almeida foi eu quem travou o encerramento da coletividade. Porque era assim, havia um ajuntamento: o que eles estão a fazer na coletividade? Vamos lá ver o que é que se passa? Porque é que vocês estão a reunir? Porque é que vocês têm que estar a reunir? E aí havia desconfianças… José Marques Martins: Isto foi entre 1921 e 28. E em 1928 é quando a escola é oficializada e, sendo oficializada, já não era fechada de ânimo leve. A partir do momento em se oficializa uma escola, numa instituição, espera lá, isto é o Estado que dá luz verde, se dá luz verde… Porque até aí, é porque houve aí alguém que mexeu os cordelinhos, diga-se em abono da verdade. Agora que o princípio quando, faço ideia, quando isto começou nas tabernas e começaram a querer alugar uma casa aqui e arranjar e não sei quê, é que a PIDE e sei lá que mais o quê andaram de olho acima. O que é que estes indivíduos andam aqui a fazer? O que é que não sei quê, portanto tudo isso era... João José Silva: Até porque a escola oficial terminou aqui em 1950. Foi quando foi inaugurada a escola do Bairro do Rodrigo, em 1951. Ela tem, precisamente… é quase da mesma altura que o bairro em si. Eu, quando vim para o bairro do Rodrigo, a escola tinha sido inaugurada há um mês ou coisa assim. Foi logo a seguir, ou foi antes… Eu vim a seguir, exatamente. Pronto e depois entrei na escola aqui, com seis anos. Seis para sete. P: E nesse período antes do 25 de Abril, quais é que eram as principais atividades em que vocês participaram? José Marques Martins: Eu lembro-me que participei. Eram as damas, eram os jogos de mesa, jogos de… João José Silva: Snooker, bilhar... José Marques Martins: Mesa, era jogos de mesa, porque desporto no exterior não havia. Futebol de salão, de 11, não havia. Isso apareceu mais tarde, na abertura, depois… foi o 25 de abril. João José Silva: Aliás, antes do 25 de Abril, vai me desculpar, dentro desta coletividade foi formada uma outra, que neste momento é o CCD do Rodrigo. O CCD do Rodrigo saiu daqui, formou-se aqui. Porquê? Porque o CCDS, na altura, era um centro de recreios populares ligados à FNAT. E como eles não tinham instalações próprias, tiveram que pedir aqui a cedência de salas ao GIR do Rodrigo, onde eles fizeram os seus estatutos e organizaram-se como coletividade com o auxílio precisamente da FNAT. E aí, o que é que acontecia? Como havia os campeonatos regionais de futebol, que eram patrocinados pela FNAT, só conseguiam entrar se eles tivessem um local, uma sede, um sítio onde pudessem exercer a sua atividade. E essa associação, que funciona aqui, é nossa vizinha, e que está ligada hoje ao INATEL (não sei se já não é INATEL, é fundação), continua viva. E essa associação criou realmente um certo dinamismo a nível de desporto, porque elas estavam direcionadas para o desporto, nós aqui era mais a cultura, o teatro... José Marques Martins: Já fizemos os primeiros jogos florais da Covilhã, fizemos um jornal também, fizemos um boletim. Hoje, olhando um pouco para trás, João, o associativismo tinha uma grande força, porque não havia mais nada, não havia outras respostas. As pessoas procuravam respostas. Onde é que vinham procurá-las? Era aqui. Estar aqui onde havia o jornal, onde havia a televisão, onde havia um rádio. João José Silva: Os banhos. Vinham pessoas com a sua toalhinha, era aqui, na parte de baixo. José Marques Martins: Havia o sapateiro, as máquinas de barbear… Hoje o que é que nós temos? Temos a televisão que nos traz a informação e a contrainformação. E hoje o associativismo é uma forma de estar, portanto, há sempre um objetivo comum. Agora tem de ser recriado com novas formas, já não é como aquela altura. Quando, há um ano atrás, dizia: vamos, temos que fazer isto, ok? Nós vamos fazer, mas temos que fazer de uma outra forma que capte, digamos, que as camadas novas venham. Mas já não é da mesma forma que vinham antigamente. Antigamente vinham à procura de uma resposta, porque não tinham outras. Hoje, sabemos nós, que temos que estar em paralelo com outras respostas e hoje o associativismo vive de outra maneira. João José Silva: Eu digo mais, e com muita pena, o facto de haver grande alteração em tudo isto, porque as coletividades têm tendência a fechar-se. Com muita pena que eu digo isto. Ou terá que haver aí, o próprio governo… José Marques Martins: Eu, as coletividades, eu tenho uma outra... Isto agora, por exemplo, as coletividades têm que tomar juízo. Vamos lá ver, antigamente, lembro-me, lembro-me quando tínhamos água da poça, que era a da poça. Nós tínhamos as nossas hortas e o meu pai dizia-me assim: pega no sacho que hoje a água é nossa. Então eu vinha pelo caminho abaixo a calcar as loras dos bichos que era para a água não fugir, que era para a água chegar mais rápido à minha horta e para evitar que ela fosse para a horta do vizinho. Porque a água era pouca, tínhamos que a distribuir e a água era pouca e naquele dia era para nós, então andávamos a vigiar se alguém... Ora bem, nós tínhamos que ser transparentes, mesmo se quiser, tem que ser transparente. Ou os subsídios que possam vir têm que ser com transparência, saber para que é que servem, para onde vão, como é que são utilizados, porque senão estamos sempre naquela dúvida. Fulano que está mais perto da fogueira, aquece-se mais, não sei quê. Isto foi uma moda que andou e é preciso que pare. Depois também temos uma outra coisa que se torna importante: nós sabemos que nós temos instrumentos e que a outra coletividade não. Tem que haver algo que consiga saber o que é que aquela coletividade precisa e aquela e aquela, e, em vez de andarmos todos a comprar coisinhas diferentes, os instrumentos de uma têm que servir para os instrumentos da outra. É assim que eu entendo. É assim que entendo, porque senão corremos o risco de termos os campos de futebol cheios de tojo e de mato e nas aldeias e corremos o risco de termos grandes instalações em coletividades e termos poucos recursos humanos lá dentro. Eu recordo-me de uma entrevista que uma vez dei, quando esta casa teve a estrutura que tem, é uma beleza, sem dúvida, uma beleza, e paredes novas. Sem dúvida. Eu recordo-me disso. Mais importante do que numa casa aquilo que conta são os recursos humanos, porque se a casa não tiver recursos humanos, fecha, de hoje para manhã fecha, então servirá para outra coisa. Os recursos humanos é a coisa mais importante e trabalhar com recursos humanos dói e é preciso ter capacidade para gerir recursos humanos. Mas, sabendo gerir, nós conseguimos chegar lá desde que as coisas sejam postas na mesa, com toda a clareza. A Câmara subsidia e faz o seu papel. Mas não é, já não é, não pode ser aquele.... Vá lá que agora parece que há uma lei, é uma lei que conseguiram criar, um regulamento, que é importante. Mas o Parlamento… tem que ser feito desta… João José Silva: A atribuição dos subsídios não é dada assim, como era antigamente. Tem que se apresentar um plano de atividades, mas que não seja um plano de intenções: vamos fazer… Não, tem que dizer no papel porque é que vão fazer isto. José Marques Martins: Nós temos aqui um evento associativo que é tremendo e que não colhe frutos, não sei porquê: as marchas populares. Juntam-se várias entidades, várias associações, que gostam, que estão interessadas. Junta-se a Câmara. Há um bolo, há uma água da poça para todos. E então cada um, perante um mote próprio, sei lá, aquilo pode-se de hoje para amanhã, criar uma nova forma. Mas vamos, faz-se festa e só não vê quem não quer ver, não é quem não vê, que o que é que uma marcha faz, ao sair de lá de cima do campo das festas e vir até ao Pelourinho e ver aquele mar de gente a ver, que vem ver. Se vêm ver é porque gostam. E a Câmara sente-se ufana, mas são as coletividades, são as associações que estão a fazer todas um trabalho, cada um. E as pessoas vêm, as pessoas aderem. Porque há um objetivo, de fazer festa. Agora, aquilo que o João dizia é verdade. Se não houver um impulso que dê dinâmica a estas casas, morrem. E morrem porquê? Porque pode haver a cristalização dos órgãos. Isto chega a um ponto que também aborrece. O João esteve aqui muitos anos na direção. Eu tive mais tempo, eu cheguei a um ponto... muitos anos na casa que sentia-me preso, e agora? Não há gente nova e nós, não é que não gostemos da casa, mas o gosto que nós temos por esta casa é, digamos, é ultrapassado por aquilo que nós queríamos, de que outros viessem com novas ideias, como uma forma de estar... E não vêm, não há. E entra-se numa direção com nove elementos e é só quatro ou cinco que às vezes aparecem, sabe Deus com que sacrifício. Porquê? Porque eles próprios também, quando se juntam aqui e… eu não sei o que é que... O João nisso teve muito mais tempo na parte da direção do que eu, mas via, também sei ver. Chegava a um ponto que também se disse: enfim, mas vou trabalhar para quê? Havia a própria pandemia, veio estragar ainda mais. Nós tínhamos aqui a beleza dos Santos populares, aqui neste espaço que depois nós vamos ver, onde fazíamos as sardinhadas, fazíamos essa festa, e isso dava-nos ânimo. Vinha muita gente para a coletividade, sei lá, mais tarde, então vinha, só que veio a pandemia, retirou-nos gente. Agora estamos novamente a começar e, claro, há um elemento que sempre frutificou no associativismo, que é a taberna. A taberna sempre cá ficou. Em todas. Uma associação que não tenha um bar não progride. João José Silva: Em parte, um bar é na realidade... José Marques Martins: Um bar é que chama... é o café, a cerveja, as bebidas... João José Silva: Porque as bebidas são mais baratas... José Marques Martins: Vem desde os primórdios. João José Silva : Sim, já vem. José Marques Martins: Então, o bar tem que lá funcionar, se houver uma associação sem um bar… Nem que lá haja uma máquina de café. João José Silva: E quando refiro aqui, com pena, que digo que as coletividades têm tempos difíceis é que reparo, e aqui o José Marques é da minha opinião, é que não há pessoas a quererem colaborar. Hoje é… quanto é que é? Não há dirigentes E aí a Confederação, e muito bem, tem trabalhado no sentido de que, aliás já há o estatuto de dirigente associativo… Mas porque é que o dirigente associativo, que ocupa um pouco da sua vida, que quer queira quer não, nós andamos aqui uma vida, nós prejudicamos até inclusivamente o ambiente familiar, porque não estamos lá, porque aqui era a nossa segunda casa. Porque é que não há-de haver um incentivo para que as coletividades se mantenham abertas? José Marques Martins: Os governos pecaram. Eu não estou a dizer para nos darem uma reforma, nem nada disso. João José Silva: Porque hoje nota-se as dificuldades. Por exemplo, a Covilhã é rica em associações, como a doutora sabe. Neste momento, posso-lhe dizer que amanhã há Assembleia geral do Grupo, ato Eleitoral para os órgãos sociais, novos órgãos sociais. Posso-lhe dizer que amanhã há n associações que estão precisamente nessa situação: umas não têm direção, têm comissões administrativas, outras têm uma direção, mas à última da hora um não quer, desiste. É essa a parte, e o que é que a quantidade pode oferecer neste momento? Eu muita vez comentava para o Zé Marques, que é a pessoa com quem a gente, com quem a gente lida e eu lido muito bem, porque é um homem com muita cultura, fez coisas belíssimas aqui no Grupo Rodrigo, o Grupo do Rodrigo muito lhe esta agradecido, é verdade. O que é que o GIR pode oferecer às pessoas para virem à coletividade? Televisão... Aliás, a Confederação pôs aqui um posto público [de internet]. Nós tivemos um posto público aqui, na altura, com computadores, oferta pela Confederação, e também a parte dos instrumentos musicais. José Marques Martins: Tu estás a tocar num ponto importantíssimo, que é verdade. O dirigente associativo devia ser considerado, não devia ser só considerado na altura de eleições, nem só para grandes discursos escritos ou orais, através da rádio. Mas devia ter uma dignificação diferente. Nem que para isso tivesse que ter, e eu comungo disso, ainda há pouco tempo tirei um curso de evacuação, por causa de defesa de incêndios. Porquê? Porque estou a presidir a um lar e é uma unidade de idosos e de crianças e, portanto, preciso também de saber um pouco disso. Isso significa o quê? Que o dirigente… e sou voluntário, portanto, vamos cair no voluntariado. Ser voluntário significa algo que nós darmos de mão beijada sem ser à espera de usufrutos para o próprio, é para o bem comum. Isso é ser voluntário. Voluntário é quando damos alguma coisa para o bem comum. Agora, o problema é quando, e muitos pensam hoje que se vem para estas casas, para se atingir, digamos, uma elevação, portanto, um posto. Não pode ser. Se vêm com isso, não vale a pena virem. E, por isso, o dirigente associativo tem que ser alguém que tenha que ser dignificado. Como? Há muita forma. Não é com dinheiro, não é com salários, não é nada disso. Mas há dignidade e há posturas e o dirigente associativo teve muito… e há muito que é louvado pelas autarquias. As autarquias devem louvar os dirigentes associativos. E devem louvar por várias maneiras e posso-lhes dizer como é que podem e quais são as razões, por que é que os levam a isso. O que é que nós podemos oferecer? É a pergunta que se coloca: o que é que vocês lá têm para eu ir lá poder ir. Essa é a pergunta que fazem lá fora: o que é que vocês lá têm? Então temos que criar aqui. As autarquias também têm que entender que nós temos instalações onde podemos dar possibilidade de... dar formação, dar informação, fazer formação, fazer apresentações de pinturas, tanta coisa que se pode... se cá vierem hoje 15 indivíduos ver uma sessão de pintura ou uma sessão de leitura, vêm só cá 15 hoje, mas na próxima já vêm sessenta, porque são os 15 vezes 4, ou seja, se a coisa for bem clara, se houver aqui algo que lhes possa oferecer, caramba, custa assim tanto oferecer umas bolachas e um bolo e um porto para as pessoas aparecerem? Quer dizer, não é isso que lhes vai encher o estômago, mas é uma forma de acolher, uma forma de acolhimento e fazer uma leitura, por exemplo, ou mandar uma informação com as vacinas, com tanta coisa que nós temos, tantas dependências que são gratuitas para as autarquias. João José Silva: O GIR sempre soube receber bem. José Marques Martins: E onde os órgãos de certeza que se disponibilizariam, de acordo da sua especialidades, a ajudar, mas não, prefere-se pagar. Não estou a dizer que não se pague, tudo bem, mas existem possibilidades. Era uma forma de as associações estarem a servir o bem comum. Se as próprias autarquias não nos dão... Se só estão à espera que a gente lá chegue com o boné na mão para pedir o subsídio. Eu não gosto muito disso. 00:20:18 Joana Dias Pereira Então vamos voltar ao passado, pode ser? Embora esta conversa sobre o futuro seja também muito importante. Mas há bocado estava a dizer que também tinha estado antes do 25 de Abril no sindicato. João José Silva: De 1964 a 68. P: Que responsabilidades é que tinha? João José Silva: Eu era um escriturário na altura em que andava assim: eu batia à máquina. 10000 associados que tinha o sindicato, porque eram umas folhas que a gente punha o número daquele operário, a empresa… Por exemplo, posso-lhe dizer: a Nova Penteação, na altura a Penteadora, a Ernesto Cruz, o Alçado e Filho, a Lano Fabril, eram empresas com muitos trabalhadores e eu, a minha função era trabalhar nessas folhas, escrevia os nomes um por um. Joana Dias Pereira: E depois também esteve no sindicalismo, depois do 25 de abril? João José Silva: Estive. Fui dirigente sindical em 80 e picos, fui dirigente sindical, estava na área da saúde. E na altura o Mota, que era o responsável daqui do distrito de Castelo Branco, convidou-me e estive ainda… fiz o mandato de dois anos assim. Estive ainda ... P: Mas eram realidades diferentes, o sindicalismo antes e depois. João José Silva: Muito diferente. Também a verdade é que às vezes os horários... eu era assim, eu quando aceitei ser dirigente sindical pus essa logo ao Mota: eu não vou tirar tempo nenhum ao trabalho. Eu vou ser dirigente, sim senhora, com muito gosto, mas só vou às vossas reuniões, aos vossos congressos quando tiver folgas ou disponibilidade. Não quero meter nenhum documento a dizer que eu tinha direito a determinadas horas e determinados dias. Nunca, nunca, é assim, como diz aqui o Zé Marques, nunca me aproveitei, nunca precisei de nada para me promover, porque tinha a vida feita. Eu nunca, mesmo a nível do Grupo do Rodrigo, mesmo a nível de política, e o Zé Marques sabe perfeitamente, tivemos ali, colaborámos bastante, andámos ali… P: E estiveram noutras associações para além do GIR? José Marques Martins: Dirigente associativo, nunca fui, nunca fui. No serviço do meu do Instituto estive, mas isso...Agora, fora disso, sou sócio, mas não como órgão, lá dentro não… João José Silva: Eu faço parte de três. José Marques Martins: Trabalhei alguns anos na Liga Portuguesa contra o Cancro, mais tempo. Depois deixei, na altura em que a minha mulher adoeceu, e passei para outra área, para esta área do diaconado. Mas outras não, porque quer dizer, ou se trabalha numa... isto é como os presidentes administrativos das empresas, ou é um ou é outro, e depois andam a buscar daqui e dali. Havia lá… ainda bem que havia outros. Hoje, possivelmente, se nós se nos convidassem para ir para outras instituições… Mas também já não temos... Eu, pelo menos... P: O João disse-me que estava também na Liga... João José Silva: Estou, faço parte, faço voluntariado na Liga Portuguesa contra o Cancro, com muito gosto. E agora, sem ser…, fui convidado para fazer parte da Associação de Diabetes da Serra da Estrela. Estou a colaborar, aliás, sempre gostei de servir a comunidade, faço isso com um amor e carinho… E aí é, também um pouco da minha da minha vida. O Zé Marques teve uma vida muito mais ocupada, é uma sorte, mas ele faz muito bem o que faz e também é uma pessoa, não é por estar aqui presente, mas quero lhe dizer que é um homem com muita valia... José Marques Martins: Eu entrei para o diaconado, entrei para esta coisa, porque me interessei e estou a trabalhar em várias paróquias e faço a assistência espiritual também na prisão, o que me dá… Ensina-nos saber a vida deles, porque caíram ali, como caíram, o que é que faziam e, portanto, todos nós ficamos com essa ideia. Por outro lado, a nível da minha profissão no instituto, nós ouvíamos aquilo que as pessoas nos diziam e nós éramos túmulos, ou seja, só púnhamos na ficha aquilo que interessava e que era corriqueiro para outro colega ver. Mas, por exemplo, ouvíamos desabafos. Nós passamos aqui alturas de grandes crises, era cíclico, de três em três anos a têxtil tinha uma crise. João José Silva: E vai-me desculpar, na altura em que estive no sindicato, quando o Martins falou em 60 fábricas, upa, upa. Eu estive no sindicato, na altura eram 123 firmas. Claro que a gente… havia firmas que só tinham cinco teares ou tinham 10 trabalhadores, mas eram consideradas as firmas: 123 firmas, todas elas. Algumas eu recordo perfeitamente. José Marques Martins: Depois veio a crise das confeções e havia coisas deste género, havia desabafos. Eu estive numa Assembleia, pertenci a uma Assembleia Municipal que esteve retida. Trabalhadores de uma empresa não nos deixaram sair. E ouvia coisas, deste género, naquela altura havia a possibilidade de uma empresa que tinha 700 ou 800 trabalhadores, para poder vingar, tinha que pelo menos metade vir para o subsídio de desemprego e ficava lá outra metade. Então ouvia-se isto: ou vêm todos ou nenhum! Quer dizer, ouvia-se isto, era uma forma de estar. As pessoas… quer dizer porquê? Porque não havia uma informação que fosse transparente e concreta cá para fora, é preciso que seja feita desta maneira. Como agora com as vacinas, quando as informações vêm para o exterior como deve de ser, o povo até aceita. Quando não vêm... João José Silva: Aliás, o GIR teve aqui nas suas instalações, durante algum tempo, as formações dessas pessoas, como diz o Martins: vais para o desemprego... E eram colocadas aqui a fazer formações que não tinham nada a ver com a profissão que tinham. José Marques Martins: Nós tínhamos outras entidades e isto era assim: as entidades que nos abriam as portas e que nos facilitavam mais a vida tinham condições. Por outro lado, também havia esta possibilidade de, depois, quando elas começaram a fechar, porque ao princípio as mães, sobretudo as mães e os pais, a menina ou o menino, tinham o quinto ano, tinham de ser telefonista ou empregado de escritório. E eu, tanta vez que eu dizia para elas e para eles: por isso esqueça o emprego de escritório e esqueça o telefone, porque os deficientes também têm o direito a irem para o telefone e nós tínhamos um telefonista. Preparem-se para serem desenhadores, para serem modelistas. Tirem um curso de modelista. Mas porquê? Vêm aí as confeções, começaram a vir as confeções em grande. Claro que depois tiveram que ir tirar o 12º ano para serem modelistas, quer dizer. Portanto, houve um crescimento. P: E como é que era? Como é que se viviam aqui as greves, as lutas? Isto é uma zona muito operária... José Marques Martins: Tem graça, os primeiros mil escudos… Logo a seguir ao 25 de Abril, tivemos então, houve ali um aumento de mil escudos. A Covilhã sempre teve essa fama. João José Silva: Houve uma greve muitíssimo forte, já lá vão uns anos, ainda no tempo do Estado Novo. José Marques Martins: E antes do 25 de Abril, eu lembro-me, não estava cá a viver mas lembro-me de que a Covilhã… Havia aqui umas reuniões que se faziam. João José Silva: Porque era muita gente aqui, na altura o movimento operário era fortíssimo, fábricas com 700 e 800, e depois não era só, eram famílias completas... P: E isso vivia-se aqui no grupo, como é que era? João José Silva: Sim, sim, aqui, portanto, no grupo entrava-se, comentava-se às escondidas, sempre com receio que o parceiro que estivesse ao lado fosse denunciar, que estava numa reunião, que se ia fazer uma greve. José Marques Martins: Sabia-se, primeiro porque havia a parte clandestina e numa empresa é muito fácil e havia códigos próprios. Eu recordo-me, lá para os meus lados havia pedreiros, e tinham um código próprio. Quando o patrão chegava, eles tinham um linguajar próprio e as regiões tinham um linguajar próprio, ou seja, uma forma de se exprimir com uma certas palavras que só eles é que entendiam. Quem estava fora ouvia, mas não percebia. E isto é como eu digo muitas vezes, como se diz na Sagrada Escritura, mas não percebem. Só quem é de dentro é que percebe e, portanto, aqui também é a mesma coisa, nas fábricas, nas associações, comentava-se, mas de maneira a que... João José Silva: Até porque nos seus órgãos, a maior parte deles eram trabalhadores, eram pessoas da indústria de lanifícios, estavam ligados, quer queira quer não, direta ou indiretamente, ligados ao movimento operário, que era forte. José Marques Martins: E havia outra coisa. As famílias eram muito unidas, ou seja, não, não iam, não havia tantos problemas para onde se ir buscar e falar na vida dos outros. As pessoas não falavam, não comentavam, com receio de que lhes caísse em casa algum agente. João José Silva: Claro, a gente sabia aqui no Rodrigo quem é que era da PIDE. Estava sinalizado, a gente sabia, mas não tínhamos a garantia absoluta.... José Marques Martins: Eu cheguei cá, chego aqui em Novembro, e em Dezembro sou avisado, alguém me avisa de dois indivíduos da PIDE, alguém me avisa: cautela com sicrano. João José Silva: Nós tínhamos ... estavam sinalizados por nós, tanto que quando eles entravam aqui… uns não entravam porque não eram sócios e aqueles que entravam, recordo... José Marques Martins: Nós conversávamos, ouvíamos, mas para com ele parava, ali as coisas paravam. P: E nessas greves que duravam muito tempo, não havia movimentos de solidariedade para as famílias grevistas? José Marques Martins: Havia, eu lembro-me, por exemplo, na questão de quem tinha crianças e que as mães não podiam ter leite para as crianças. Então havia os leiteiros, havia uns indivíduos que andavam aí com os potes de leite. E portanto, ouvia às vezes com visitas destas… Não, não, hoje leite tem que ser… só lhe dou tanto, porque a fulana tem lá uma menina pequenina e não ganho nada, o próprio leiteiro tinha assim... e nas lojas nas lojas havia o fiado. João José Silva: O próprio GIR oferecia no início de cada ano letivo. Oferecia aos filhos dos associados esses livros, àqueles que tinham mais dificuldade. José Marques Martins: Pois, deixa-me ver, os vicentinos, nós ajudávamos muito. Os vicentinos são... ainda hoje, nós temos grupos que em que temos esse objetivo, nós temos aí zonas e temos famílias a quem ajudamos, quer com pagamentos de água e da luz, com os remédios e também com alimentos. Quer dizer, para além do Banco Alimentar, que aparece. Mas quando é nessas alturas, nós… quer dizer, ainda se aparece mais e depois até a própria génese das pessoas que vivem aqui, mesmo aqueles que não sendo de cá, mas que já são de cá, por exemplo, o Bairro do Rodrigo, estas casas que foram depois criadas já para outras pessoas que vieram para cá, até eles próprios, portanto, criaram esse élan de ajudar. João José Silva: E as comissões de moradores e tal, que na altura surgiram… O Rodrigo era um bairro operário. Ninguém lá morava que não fosse operário, exceto as quatro professoras da escola oficial. P: A comissão de moradores foi fundada quando? João José Silva: Foi em 76. José Marques Martins: Sim, certo, fizeram-se coisas bonitas também. Nós fizemos coisas interessantes. Aumentámos a escola e havia um Jardim infantil para onde iam os miúdos. Criou-se aqui, ele começou aqui. As festas populares que se faziam dos Santos, criámos uma casa mortuária aqui para o bairro, as festas populares de Santo António, onde a coletividade também teve um papel importante, e fizemos um trabalho… Sei lá, a gente diz assim, conseguimos reunir pessoas, mas nós éramos duros. O objetivo tinha que ser cumprido e às vezes afirmávamos: aquilo tinha que ser cumprido, isto é assim e cada um tinha a sua função. João José Silva: O GIR teve sempre uma ligação à comunidade muito forte. Isso é anteriormente, já não é do tempo dos Zé Marques Martins, porque é uma pessoa que apareceu na cidade em 1973. Antes havia uma festa, que chamavam a festas Zacarias, essa festa, era a festa de chamávamos Zacarias, porque ele é que era o grande impulsionador, um homem ligado ao GIR, mas era a festa das florinhas da rua. Então ele fazia essa festa, ia pelas quintas, dos associados e não só, pedir determinados alimentos e depois vinha para a festa para fazer oferendas. Aquilo era leiloado e o valor daquelas oferendas era entregue às florinhas da rua, que era uma instituição de solidariedade social, onde tinha crianças abandonadas. José Marques Martins: Essa festa depois foi recriada, recriei-a eu, durante três anos, para fazermos a casa mortuária e a Igreja, também fazíamos os tais leilões e depois fazia-se essa festa e a Festa de Santo António, e fazíamos grandes festas, que vinha para aí gente… Porque é que elas morreram? Morreram porque, quando nós olhámos, foi aí que começámos a notar, que se começou a ver o decréscimo dos órgãos diretivos, das pessoas. Começámos a olhar para o lado, ao princípio juntavam-se ali seis ou sete, oito ou nove ou 10, e depois começámos a olhar para o lado e só havia três ou quatro e depois quem ia já não estava interessado. E depois aquilo tirava-nos tempo, porque as famílias… E por isso é que no associativismo a família tem um papel importante. Nós estamos a falar de dirigentes associativos., A família associativa é para criarmos família, mas as nossas famílias eram o nosso alicerce: olha que eu só chego às tantas horas para comer, olha que eu não sei quê, as nossas famílias eram... Um bom dirigente associativo tem que ter atrás uma família capaz de aceitar e ver as dificuldades que às vezes… às vezes eram três da manhã ainda estávamos aqui... Hoje as famílias destroem-se e não estão tão... João José Silva: Hoje é completamente diferente. Por isso é que eu digo, com pena, que as coletividades têm que seguir para outro caminho, como diz o Zé Marques, com outros eventos, outras ideias, ou então… Porque não há ... P: Isso, as mulheres não vinham também? José Marques Martins: Vinham, sim. As senhoras vinham com outras, não vinham para… Depois, mais tarde, passaram a vir também para órgãos diretivos, mas lá mesmo não se sentiam assim tão bem. João José Silva: Não, não era fácil arranjar mulheres para os órgãos sociais. José Marques Martins: Por exemplo, havia um evento, havia o teatro ou havia dança. Vêm as mães com as meninas, vêm as mães… Havia as marchas, até máquinas de costura para aqui vieram para costurar e, portanto, elas colaboravam naquilo que os maridos estavam.... Nós planificamos tudo bem, também entrávamos, mas elas lá faziam, lá compravam, não sei quantos, e aquilo aparecia feito. E depois, no fim, quando fazíamos a festa, de tudo cumprido, dizíamos uns para os outros: epá, mas a malta parece que não fez assim tanto, podíamos ter feito melhor. Quer dizer, tínhamos feito uma coisa em beleza, mas no fim, dizer assim, podíamos ter feito melhor. João José Silva: É, o movimento associativo é.... José Marques Martins: Hoje não. Hoje faço uma coisa: pá, somos os melhores. Não, aquilo era... João José Silva: Hoje é assim, não se faz, manda-se fazer. É o grande problema... José Marques Martins: E depois aparece feito. Há alguém também que faz e esse alguém que faz começa a fugir. O indivíduo, as coisas aparecem feitas, mas o indivíduo começa a fugir. Espera aí, sou só eu? Começa a olhar para o lado e diz assim: mau! Porque depois é aquele que é fustigado, e então começa: não posso. Declina, porque o outro não sabe fazer, porque nunca quis aprender a fazer, porque isto é como os dirigentes associativos, quem vem de novo não é um dirigente associativo sem mais nem menos, tem que se ir modulando e formando com os mais velhos. Porque vai gerir recursos humanos. Ali fora, às vezes há disputas, há bocas, há um ou outro que se porta menos bem, que diz alguma coisa diferente e ser dirigente associativo é saber conciliar às vezes as diferentes ideias. Ser capaz de dizer assim: ele tem razão, realmente é verdade, isso é que é. Ser dirigente associativo não é chegar aqui e dizer assim: vamos fazer aquilo e aqueloutro. Tenho que ir à procura de recursos e saber gerir, e saber gerir é saber chamar as pessoas para um objetivo comum e quando é preciso fazer um objetivo comum, de certeza que se faz. Uma coisa que esta casa sempre teve foi isto: caiu o telhado aqui três vezes, não foi, e as pessoas apareceram. João José Silva: Uma solidariedade enormíssima, arranjar forças e pessoal, a gente ficou surpreendida mesmo. José Marques Martins: Havia um objetivo, eles viam que os dirigentes trabalhavam, nós saíamos do nosso serviço e vínhamos para aqui trabalhar: caramba, vamos lá ajudá-los. Eu tenho um exemplo concreto disto, e o João... na direção a que presidi, na altura, eu recordo-me que nos festejos populares, aqui sempre foi uma casa que teve grandes festejos, mas eu recordo-me que nesses anos, e é a experiência que tenho, de quando chegava aí às cinco horas da manhã, seis, e já havia mesas livres, eu pegava num balde de água e limpava as mesas para arrumar e diziam assim alguns colegas meus: epá, deixa isso, amanhã à tarde… E eu assim: não, se fizermos isso agora, a malta dorme melhor. Porque vamos descansados com isto limpo e ninguém saía daqui sem estar tudo limpo e lavado. E foi uma imagem que pegou. Todas as outras direções que vieram, na sua grande maioria, terminavam os festejos e, em vez de se irem ali sentar,, era mais um esforço, eu sei que era, mas também no outro dia, quando aqui chegavam à tarde, para outro dia de festa, era só pegar. Era um sacrifício, mas quer dizer, mas trabalhávamos. E quando, eu lembro-me de estarem aqui sócios assim: Epá... E havia sócios que: vamos lá dar uma ajuda, andam ali aqueles pobres sozinhos. Quer dizer se nós: Epá deem aqui uma ajuda. Olha, então aqueles não querem fazer nada e agora querem que a gente la vá? Portanto, isto também é ser dirigente associativo... P: Dar o exemplo, não é? José Marques Martins: Sim, porque, ora bem, se nós não dermos o exemplo, os mais novos não vêm… João José Silva: Muitos horários seguidos eu fiz no hospital, porque vinha para aqui trabalhar... Ai é? Queres dança? Então agora vamos fazer 16 horas. Trocava horário para jogar ... José Marques Martins: O João José, aqui na casa, também passou por aqui e sabe muito bem das dificuldades... E quando às vezes nos pedem… Quer dizer, nós gostamos da casa, gostamos da casa, mas já demos muito pela casa e temos pena que um dia possa fechar. Mas, se pudermos colaborar, contribuir para que isto cresça... João José Silva: E penso que estamos habilitados para, de alguma maneira, responder àquilo que é solicitado: um pouco da história do GIR, o que ele foi, o que fez. O que poderá vir a fazer, aí já é com as direções... José Marques Martins: Com as direções, uma ova, com os sócios, a casa faz-se com os sócios. Isto é, a direção pode querer uma coisa e os sócios não. Temos aqui 50 melros e queremos fazer uma coisa diferente… João José Silva: Sim, sim, mas a direção é que decide. P: Mas vocês também se organizam em comissões, por exemplo, o teatro? José Marques Martins: Nessa altura tínhamos as comissões, inclusivamente nas festas, havia comissões, mas havia muita gente, sobretudo nova. Quando eram as festas, quem que nós íamos buscar? Gente nova e fazíamos essas comissões e as comissões criavam o programa. Depois foi o que se… Quem estava à frente das comissões, se começava querer ser independente em demasia, a direção às vezes era ultrapassada e quando dávamos por ela já havia compras feitas assim sem dizer. Agora, no teatro criou-se um grupo muito homogéneo nessa altura. P: Foi em que altura, na década de 70? José Marques Martins: Sim, 60-70... João José Silva: 70 e tal. Não, isso talvez fosse em 80, foi 70-80… E daqui saíram alguns casados e namorados. José Marques Martins: Casaram. Namoraram e casaram. Porque nós andamos por vários locais a levar o teatro e foi numa altura complicada, porque foi o 25 de Abril, em que nós, eu recordo-me, até tenho uma história, que eu até vim mais cedo para cima, porque foi na altura do 11 de março, que essas histórias todas que houve, e eu estava em Évora a tirar… Uma coisa era a animação cultural, que era o Brecht, que nessa altura era o mais importante, mas quer dizer havia a parte política também que se metia em todo o lado. E aí eu nunca, nunca, nunca enveredei por esses caminhos assim um bocado tortuosos, porque isto era assim, isto é quem quer mentir vai para… sem ofensa para os políticos que todos nós somos um pouco, mas é verdade, promete-se, se pudermos fazer depois mais tarde fazemos. E eu às tantas dizia assim: eu não posso ir aí para a gente, para as aldeias, dizer que arranjo emprego para toda a gente, porque isso é mentira. Eu não posso ir mentir, portanto nós… e estou a dar este exemplo. Isto para dizer que ou se tem vocação para aquilo que é ou então não se anda a fazer e, portanto, uma coisa é realmente ter vocação. A minha esposa e outras senhoras é que pintavam, faziam os vestidos… Se não fosse isso, morria. Então, eu não tinha tempo para, quer dizer: camarim, dá-me, entrega, ABC desenrasquem-se, não sei quê, desenrasquem-se. E pronto, e depois aquilo aparecia, as coisas apareciam e nós confiávamos e não invadíamos a esfera uns dos outros. Ou seja, ela vinha pintada com uma sobrancelha preta e outra… Nós confiávamos, porque todos queriam que saísse o melhor possível. E quando o João diz que, todavia, saíram daqui dois ou três casamentos… João José Silva: Sim, sim. José Marques Martins: E depois era muita gente. Nós tínhamos 30 ou 40 elementos e a nossa maneira de gerir todos para... João José Silva: Dava-nos o prazer de escolher o melhor. P: E eram operários? José Marques Martins: Operários, filhos de operários eram todos, e havia um mestre, havia um, sim, mas que tínhamos que gerir aquilo de tal maneira a que ninguém ficasse ofendido. Eu não podia chamar aquele por ser muito bom, tinha de arranjar ali, às vezes, papéis secundários. Mas chegava a um ponto em que era tanta gente… P: O José fazia de encenador, encenava? José Marques Martins: Sim, sim, exatamente. P: Que peças é que encenaram? José Marques Martins: Oh, sei lá… Os dois irmãos gémeos, um era patrão e o outro era empregado, eram gémeos mesmo. E depois fazer o papel de patrão, de ditador, e depois quando mudavam, já na parte da democracia, ver as diferenças... Depois havia um debate a seguir. Uma outra peça, que foi muito importante, que era aquela que tinha três atos que teve para aí. Depois, nós até fazíamos aqui um teatro que demorava três horas ou mais, nós tínhamos a sala cheia, que era a casa do mestre Simão, era uma delas, eram três atos. Outras que foram encenadas, poemas, havia, sei lá, havia poemas, por exemplo… cantos, danças. Depois começou a haver a parte da dança e depois, claro, as coisas foram mudando, mudando, mudando, estão a ir... João José Silva: E a seguir foi feita aqui uma grande peça, Jesus Cristo. José Marques Martins: Também fizemos essa peça de Jesus Cristo superstar, ainda temos aí. O Cristo era um colega, o nosso motorista, o Rui. P: E faziam debates a seguir às peças? José Marques Martins: Começámos a fazer os debates já mais com essas do Brecht, porque estava o povo, já mais… em 76/77. P: Era uma altura em que também as pessoas estavam mais interessadas nessa? José Marques Martins: Já estavam mais, porque aqui, nós não entrámos logo aí. Entrámos naquela, porque aí o povo começou a querer ufa, ufa, quer dizer abriu-se, porque até 78-77, apesar de 74, 75, 76, ainda... João José Silva: Ainda estava tudo muito... José Marques Martins: Mas depois, quer dizer, voltámos novamente e a pôr peças... Fizemos uma sobre as doenças transmissíveis nessa altura também.... Mas era demasiado forte, porque as pessoas tinham medo de fazer perguntas. Olha lá, o que é isso? Sabia-se que, à boca fechada, que a pessoa sofria disto, das doenças transmissíveis ou sexuais, mas não era fácil em público fazer... P: Então já falaram várias vezes que nesse período pós 25 de Abril, esses anos são anos de grande efervescência cultural e da participação das pessoas. O que é que recordam assim mais marcante desse período? João José Silva: Não quer dizer que antes não tivesse sido marcante, antes do 25 de abril... José Marques Martins: Antes de 73, era marcante, mas vamos lá ver, houve uma grande mudança, houve. Eu recordo-me que eu fui trabalhar de manhã… Eu em 73, como disse, vim. Em 74 estava em Janeiro, estava na feira das indústrias, em Lisboa antiga, e tinha uma colega que era a Zélia, a Zélia que era mulher do Zeca Afonso. E quando viemos fazer a nossa visita a Vendas Novas, ao centro de formação, eu vim no carro dela. Vinha ela e vinham mais dois colegas, e ela, há uma frase que é dita na altura, mas que passou-me ao lado. Estávamos a falar que tínhamos vindo lá de forma, que enfim, muitas dificuldades que tínhamos, não sei quê. E ela sai-se assim: é, mas não vai ser por muito tempo. João José Silva: Não estava Longe. José Marques Martins: Nem eu sabia que ela era a mulher de Zeca Afonso, que eu não sabia, sabia que era a Zélia, pronto. Quando depois se dá o 25 de Abril, depois conversámos por telefone e quando nos encontrámos novamente e quando eu soube que era... depois a gente começa a associar. “Não vai ser por muito tempo”, porque já sabia, quer dizer. Quando se dá o 25 de Abril, as pessoas, ao princípio: ah, fica em casa. Mas depois estávamos agarrados à televisão, como estávamos agarrados à BBC de Londres e à Rádio Argel. Eu era daqueles que estava sempre agarrado à Rádio Argel, a ouvir, e a BBC. Eu arranjei um rádio pequenino para ouvir isso, portanto, havia uma ânsia que estava cá dentro. Dá-se o 25 de Abril, dá-se essa possibilidade, e as pessoas, quer dizer, libertam-se... João José Silva: Com o enjeitamento que houve após o 25 de Abril, nada contra os partidos, mas houve um enjeitamento... José Marques Martins: As associações crescem, as associações dinamizam-se muito mais, porque as pessoas já falam mais à vontade, já vêm mais à vontade, já vêm ler, já vem perguntar, já vêm que há mais abertura e já se fala sem medo. E aquilo que mais fez com que as associações crescessem foi a liberdade que apareceu, a liberdade de as pessoas se exprimirem e expressarem-se de toda a forma. João José Silva: Após 25 de Abril, isto era quase todas as semanas, os partidos políticos queriam fazer aqui comícios, congressos, conversas. Alguns outros nem tanto porque, pois começou aqui a surgir o problema de que se o GIR vai ceder as instalações a um determinado grupo político tem que deixar... José Marques Martins: E aqui nesta casa fez-se, quando ali a capela estava em obras, a eucaristia. E sempre se disse: não, vem para cá, mas também vem para cá uma outra religião, fazer também o seu congresso. Toda a Gente tem direitos, aqui é para sócios, sejam eles o que sejam. João José Silva: Tanto era o PCP, como o CDS, como o PSD.... José Marques Martins: Aliás, os estatutos dizem isso: não tem credos nem filosofias políticas. E entram aqui sócios de toda... Agora se me perguntarem assim, se para cá viesse a extrema-direita ou alguma coisa com... Também temos nos estatutos como objetivo a defesa do bem comum. E, portanto, temos essa possibilidade de… As pessoas abriram-se, as pessoas aumentaram, criou-se uma nova forma também de estar na vida. Falava-se mais, começámos a conhecer as dificuldades e os anseios de várias... as festas eram diferentes. Havia, portanto… houve uma abertura mesmo entre os bairros, quer dizer, houve uma explosão, primeiro de alegria. Depois vieram os anos difíceis e quando vêm os anos difíceis, nomeadamente quando vêm as crises e então numa terra destas em que tem uma mono indústria... Apareceu a Universidade, que veio dar vida à cidade, porque isto era uma aldeia pequena. A Universidade veio dar uma vida aqui à Covilhã… P: Estava a falar da abertura das associações e lembrei-me de uma coisa que referiu há bocado, que tiveram uma articulação com a associação mutualista. Como é que isso foi? João José Silva: Sim foi. Aliás, eu não tenho conhecimento pessoal, mas sei pelo que me contaram, pessoas que passaram por aqui, dirigentes e não só. Eu posso lhe dizer que, por exemplo, a Associação de Socorros Mútuos emprestou, em determinado ano, um valor de cem escudos, está aí um documento, cem escudos, para que se fosse concluído o resto da obra. José Marques Martins: Nós servíamos aqui de depósito, de certa maneira, daquilo que eles não tinham condições. E então nós, o grupo, era aqui que eles tinham a sede. A Cruz Vermelha também passou por aqui. João José Silva: Há uma outra associação que foi formada aqui também, a APPACDM, foi criada aqui. Mas essa dos 100 escudos tem a ver com a mutualista. Porquê? Porque na altura, um ou dois dirigentes do Grupo Rodrigo, por exemplo, estou a lembrar-me do [...] e outros, o [...] e não sei quê, eram dirigentes da associação. José Marques Martins: Na Cruz Vermelha também se deu o caso, dirigentes desta casa eram dirigentes da Cruz Vermelha. João José Silva: E, na altura - só para concluir, desculpa - o GIR estava com problemas financeiros para pagar determinado valor e a Associação Mutualista Covilhanense, era assim que se chamava, emprestou ao GIR essa importância, que depois foi paga, há aí um documento, está devidamente aí contabilizado P: E o próprio GIR? Estávamos ali a ver que também tinha uma função, também tinha essa vocação mutualista, não é? Pelo menos com a questão do subsídio de funeral? João José Silva: Não havia previdência, a previdência aparece em 1961. José Marques Martins: A lutuosa aparece para ajudar os funerais, para levar as carretas, porque as famílias não tinham dinheiro: eram 500 escudos, ou 1000, pronto, e depois pararam quando vieram as agências. João José Silva: As agências não se preocupavam com a previdência, que não havia na altura, preocupava-se era pedir o cartão de associado e com esse cartão é que vinha ao GIR levantar o subsídio anual, que era de 500 escudos, hoje são 1000 escudos ou cinco euros. José Marques Martins: Hoje, praticamente, ainda está nos estatutos, mas é uma coisa que está só para fazer memória, porque a previdência hoje já funciona de outra maneira, mas está como memória porque foi essa uma das causas da nascença da coletividade. Há duas causas importantes, que é a educação dos filhos dos sócios, e aqui foram os filhos que levaram os pais. Vamos lá ver, os pais primeiro quiseram que a escola fosse aqui feita para educar os filhos, mas depois os filhos vieram para a escola oficial durante o dia e os pais vinham à noite. Os filhos é que levaram os pais a perceberam que também tinham necessidade de aprender. P: Depois também houve instrução para adultos? José Marques Martins: O pai e a mãe que vinham para aqui aprender… P: Isso em que altura? José Marques Martins: Pois, foi de 1900 a 1928, a escola foi... P: No vosso tempo ainda havia esses cursos para adultos? José Marques Martins: Não, no nosso tempo foi só formação. João José Silva: A escola no GIR acabou em 1950, 49-50. José Marques Martins: Eu aqui tenho as aulas diurnas para os filhos e as aulas noturnas, que era a dona [...], e depois a escola foi apetrechada e inaugurada pelo presidente da Câmara, o [...], em 1928, portanto, passados sete anos. De 21 até 28 funcionaram aqui alguns indivíduos a dar umas aulas que ensinavam os filhos... outras escolas. Em 1931, portanto, passados três anos, é que o governo reconhece o mérito e dá o estatuto de escola pública. Então, nessa altura é que foi nomeada uma professora oficial, que era essa dona [...], que era a professora. Quando as escolas do Rodrigo, como tu dizes, em 50 se fizeram aqui, acabou, não tinha razão de ser. P: Esta questão da memória já deu para perceber que é uma coisa que vocês valorizam muito. Têm ali o museu, os dirigentes conhecem a história, e acham que esta questão da memória é importante para a identidade do movimento, ou seja, os dirigentes vão passando uns para os outros este legado e é uma coisa importante, ou seja, tem aquela ideia de… isto é uma coisa que é tão antiga, esta tradição, a gente tem que continuar isto. Acham que é importante esta questão da história, o peso da história? José Marques Martins: Essa questão está a pôr, torna-se muito importante. E pode ser até uma das formas de revitalizar novamente também o movimento associativo. Eu, para construir… Qualquer pessoa que tenha dois dedos de testa, para construir o futuro tem que viver bem o presente. E sabendo a memória do passado, aquilo que errou e aquilo que fez de bem, portanto, só assim é que se pode construir. Eu, na minha vida, costumo dizer e prego: peço perdão daquilo que foi mal feito, vivo com muito gosto o meu dia a dia e quero fazer melhor ainda no futuro, mas para isso tenho que ter um saber do que é que foi feito atrás. É altura… E eu parece-me que que nós estamos a cometer uma falha, parece-me, que os órgãos sociais estão a cometer uma falha não só aqui, possivelmente em todos, era de dar a conhecer de facto aos novos toda a história desta casa, porque muitos entram aqui sem conhecer a história, vivem de hoje para a frente, vivem este… Vem aqui ao bar um jovem, mas até aqui houve um caminho, houve um percurso e penso que nós devíamos... Nós temos isso, esta casa tem as fotografias, tem livros. Mas as pessoas não leem, não veem as fotografias e, possivelmente de tempos a tempos, devia-se até passar, sei lá, ou em projetor ou retroprojetor ou qualquer coisa do género, digamos, um tempo do que é que foi isto, como é que isto começou, o que é que era a Covilhã naqueles tempos, em 1920, fotografias daquele tempo. E depois, até, haver às vezes debate e outras coisas do género Não era preciso uma tarde, havia de chamar as pessoas mais antigas, pessoas que passaram por aqui, porque há sócios antigos que passaram e eles conheciam as histórias. E começar a fazer isto. Com quê? Com as escolas. Eu não vou chamar os do secundário nem os universitários. É mais fácil os universitários virem cá do que os alunos do secundário. O universitário já está noutra dimensão e gosta também da parte histórica. Mas as crianças das escolas, os do básico ou os do ciclo vinham cá com todo o gosto. Os professores vinham ouvir, quer dizer, era uma forma de levar os miúdos a verem o que é que os bisavós deles… Olha, o meu avô andou ali. Nós tínhamos aqui um presidente da Câmara que cada vez que vinha aqui, o Carlos Pinto: eu andei nesta escola, andei na escola do presunto, e andou também você. Quer dizer, e essa conversa levava a que, quem sabe, lá os miúdos de hoje para amanhã… Era uma forma de espevitar o gosto pela casa. João José Silva: O problema é… Estou completamente de acordo com o Zé Marques, mas falta o melhor, falta a parte humana. Porque nós temos que ver as direções que entram para esta… para o GIR do Rodrigo ou para outro qualquer, às vezes têm tempo limitado, vêm com dois anos e por muita vontade que queiram fazer determinados eventos e dar a volta a isto, olha-se para o lado, como disse o Zé Marques: tinha cá 10 agora só cá tenho três. Onde é que estão os outros sete? Cansam-se, hoje. Eu não tenho nada contra a juventude, mas entendo que era preciso um trabalho muito forte. Falo do GIR, porque é um caso que eu conheço muito bem.Havia que procurar chamar para a coletividade pessoas que desenvolvessem esse tipo de trabalho, porque não é fácil a um dirigente associativo ir às escolas e passar a mensagem: epá vão ao GIR Rodrigo que amanhã temos lá a apresentação de um livro ou a passagem de um vídeo para se saber o historial da coletividade. Não é fácil. E o Zé Marques sabe que não é fácil. É assim, as direções são o que são. Não precisam ser doutores. É preciso é que sejam pessoas realmente com uma vontade extrema de que vem para servir a coletividade e não servir-se dela. E ao mesmo tempo, às vezes não têm tempo, trabalham, têm a sua vida. Nós perdemos aqui n horas… José Marques Martins: Tudo se faz. Olha, vou dar o meu exemplo aqui hoje… Hoje era para estar, de manhã, eu disse para quem me telefonou: espera lá, eu tenho uma celebração às 10:00 e não tinha ainda na altura, mas tinha. Hoje estive no Pezinho. Mas pronto, chegou-se à conclusão que podia ser às 14:00. Isto para dizer que não havendo gente… Mas tu tocaste aí um ponto importante, desde que haja vontade, e de que haja pessoas capazes, nós estamos cá os dois, possivelmente se fossem outros não estariam, mas continuo a dizer que vale a pena investir nesse campo, pegar na gente nova e pô-los em colaboração com os mais velhos e com a riqueza do passado para eles verem: epá de facto estes indivíduos fizeram isto. Caramba, como é que eles conseguiram? Com tão poucos meios conseguiram… E essa é a pergunta que lhes fica e nós, com tantos meios, não conseguimos. Porquê? E aquilo entra e aquilo burila. Talvez eu fale assim, porque como estou numa instituição que tem idosos e tem uma parte infantil e a gente de vez em quando juntamo-los e os mais novitos perguntam e até fazem aquilo, andam lá de bengala e os miúdos também com a bengala atrás dele também, acho eu, a imitá-los. Mas olhamos para aquilo e, sinceramente… um miúdo pegar, vê que o avô, coitadinho, lá anda e quando andam com aqueles com uma cadeira rodas: também quero ir. Quer dizer, os minutos querem andar de cadeira rodas porque... e depois aí o professor tem um papel importante, que é dizer assim: olha, vês, quando ele era assim da tua idade, não sei quê, não tinha esses carrinhos, tinha assim outros bonecos, depois nós temos lá os brinquedos antigos. Aqui também podia ser. Era uma forma de espevitar. Porque nós… Quer dizer, está tudo à espera: quanto é que dá, como tu dizes? Não tem que dar, não pode ser… Mas é uma forma, essa questão que levantou, de que forma é que é indo buscar a nossa história… É importante sabermos a história e os novos, e nós fazermos chegar aos outros essas memórias. Se nós não perdermos, se esta casa perder a memória, esta casa fecha. Mas enquanto esta casa tiver memórias, aí a casa não fecha. João José Silva: A verdade é que nós andamos há muitos anos, e não sei a história do grupo. Completa não sei. José Marques Martins: Possivelmente, há muita gente que não sabe, nem os nomes dos primeiros... João José Silva: Há muita gente que não sabe como é que isto começou.. José Marques Martins: Quando andavam aqui com obras, os livros não estavam ali no meio do lixo. Eu estava em Tondela e, quando vinha, andava no meio do lixo a tirar os livros de atas. João José Silva: Não há sensibilidade. O que é isto? Papéis... José Marques Martins: Nós temos que passar a memória, porque se nós não o fizemos, se esta casa não fizer memória do que foi e do que é, fechará no futuro. João José Silva: É de salientar as pessoas que passaram por aqui e as que vierem no futuro, porque não é fácil. Não é fácil arranjar dirigentes associativos. -
3 de junho de 2021
Victor Manuel da Silva Fernandes
P: Podia dizer-me o seu nome completo. Victor Fernandes: Muito bem, eu sou Victor Manuel da Silva Fernandes, sou adjunto de chefe de secção de tinturaria há 42 anos. P: Nasceu aqui na Covilhã. Victor Fernandes: Nasci na Covilhã. P: Em que ano? Victor Fernandes: Em 1963, de pais que se conheceram nesta coletividade e se casaram nesta coletividade. Eles faziam parte do rancho folclórico. Foi aí que se conheceram e foi daí que se casaram. P: E começou a trabalhar com que idade? Como foi a sua escolarização? Victor Fernandes: Eu, aos meus 16 anos, estava a trabalhar, mas nunca deixei de estudar. Portanto, eu trabalhava de dia e estudava à noite. Foi um esforço tremendo. Na altura em que eu nasci, só havia 11º ano, não havia mais e depois de estar casado, e já com filhas, lembrei-me e digo: “Não fico só por aqui, vou fazer também o 12º ano e essas habilitações”, porque tenho curso geral do comércio, tenho o curso complementar de administração e comércio e tenho o técnico de secretariado. Fiquei por aqui. P: E os seus pais, qual é que era a profissão dos seus pais? Victor Fernandes: O meu pai era empregado de mesa e a minha mãe trabalhava numa fábrica têxtil. P: E a sua mulher? Victor Fernandes: A minha esposa trabalhava numa escola, na Secretaria. P: E as suas filhas? Victor Fernandes: As minhas filhas, uma é GNR, foi agora empossada como furriel, e a outra trabalha ao balcão de uma fábrica de panificação. P: Só mais duas perguntas para uma questão estatística: professa alguma religião? Victor Fernandes: Tenho uma religião, sou católico praticante e daqui a bocadinho, lá vou a mais um trabalho que tenho que fazer também dentro da Igreja. P: E faz parte de algum partido político? Victor Fernandes: Além tempos, fui fundador da Juventude Socialista na Covilhã. Hoje não tenho qualquer partido político. Não me revejo em nenhum partido político. Há coisas boas desde a extrema-esquerda à extrema-direita, mas não há nenhum partido que abarque aquilo que são as minhas convicções. P: E na igreja, que responsabilidades é que tem? Victor Fernandes: Eu faço parte do grupo Coral. Tive outras atividades. Fui catequista. Tenho curso de diácono permanente. E acho que já chega, não é? P: Então vamos à questão da experiência associativa especificamente. Já percebi que esta propensão para se envolver no associativismo é de família, não é? Os seus pais já faziam parte... Victor Fernandes: É, eles andaram assim por aqui. Sabe que as condições... Esta Casa estava muito dedicada aos tempos livres, à cultura e ao desporto. Nasceu a 8 de abril de 1954 oficialmente, mas já existia antes entre amigos que iam jogar um futebolzinho além, num tipo de cabeço, numa encosta de um cabeço. Portanto, este clube é muito provável que tenha nascido para aí em cinquentas, nos anos 50, ao princípio ou talvez fins dos anos 40. Começaram numa garagem, depois de uma garagem foram já para uma casinha, depois de uma casinha viemos para o sítio onde agora está esta sede, que foi deitada abaixo e agora estamos num prédio novo. P: Essa história, foram os seus pais que transmitiram essa memória da fundação? Victor Fernandes: Não só, nós também temos um livro escrito sobre essa situação. Temos a história dos 50 anos. Por acaso não tenho o livro comigo nesta altura, mas temos essa história também. P: E qual é que é a motivação para além dessa propensão de família? Qual é que foi a principal motivação para ingressar? Quando é que ingressou, com que idade? Victor Fernandes: Ora eu era muito novo, devia aí ter os meus 15 anitos. Quando faltava alguém na Assembleia Geral, já me chamavam a mim para fazer a ata, que era um bocado complicado, mas eu, como fui sempre ligado às letras, muito mais do que às matemáticas... Para mim, embora fosse novo, era extremamente fácil fazer isso. Tenho impressão de que não há nenhum lugar nesta Casa pelo qual eu ainda não tenha passado. Assim como noutras associações por onde passei. P: Em que outras associações é que participou? Victor Fernandes: Estive no Campos Melo, na banda da Covilhã também e fiz parte não dos órgãos sociais, mas sim de outras coisas, no Oriental de São Martinho. P: E porquê esta multiplicidade de participações? Victor Fernandes: Primeiro, é o gosto pessoal. Tenho muito gosto em ajudar seja naquilo que for e tenho muito gosto em estar ao serviço das pessoas. Não é uma realidade hoje, mas é uma realidade que nasceu comigo e que me foram incutindo ao longo do tempo. Nunca tive nenhuma estátua, também não a quero, mas acho que isto começou por tudo. Começou por tudo, não era só o gosto, mas depois também uma certa necessidade, porque no tempo do Estado Novo,as casas também tinham poucas condições e isto dava para juntar tudo. Os Leões tinham chuveiro, tinham a televisão que nós não tínhamos em casa. Depois tinham a sociabilização, que nós em casa, tirando o relacionamento pais-filhos também não tínhamos outra coisa e a sociabilização é muito importante, que se vai perdendo. Hoje as pessoas não vivem nada como era nesse tempo, são mais individualistas, são mais comodistas e pouco se importam com este tipo de casas, o que é uma pena, se um dia este tipo de casas não der para fazer aquilo que têm feito. Uma das coisas que têm feito é substituir o Estado. Não somos verdadeiramente comparticipados com valores que nos deviam manter, mas nós substituímos o Estado em muita coisa aqui, no acolhimento, por exemplo, é importantíssimo. Hoje a nossa casa é frequentada por milhares de estudantes. Antigamente era mais frequentada só por sócios e eram bastantes. Hoje deixamos que eles façam os seus trabalhos escolares na nossa coletividade. Antigamente, isso era impensável. Mas hoje têm Internet à vontade, aberta, podem fazer o que quiserem e também lhes damos algumas indicações de vida e às vezes põem-nos à frente vários problemas que nós tentamos resolver ou encaminhar para quem os resolva. Isto é uma substituição daquilo que o Estado devia fazer e não faz. Há muitas outras coisas, que havia na altura que nós também não tínhamos em casa, quando começámos a ter televisão, só tínhamos quatro canais. Nós tínhamos sorte por ter quatro canais, eram dois espanhóis e dois portugueses. Esta zona dava para ter dois canais espanhóis e dois portugueses. Mas havia uma coisa que nós não tínhamos em casa, que era o cinema. E aqui passava-se o cinema para os sócios. É isso era uma maravilha. Embora tivesse hora certa para entrar em casa e às vezes prolongasse um bocadinho e depois vinha a ter um alguns problemazitos... Mas havia o cinema, que era uma coisa bastante importante. Hoje é precisamente o contrário, a maior parte das pessoas às vezes não vem à coletividade porque já tem demasiadas coisas em casa. Por exemplo, eu em minha casa tenho 200 canais, quando eu só vejo dois ou três, eu em minha casa tenho Internet, eu a minha casa tenho todas as condições, tenho a casa de banho, tenho tudo aquilo de que preciso. E isso levou, como eu muita gente, levou a que as pessoas hoje não adiram tanto ao associativismo. Mas ainda há outra coisa importante para as pessoas não aderirem ao associativismo, que eu acho que é a demografia. Tudo estava concentrado no centro da cidade, hoje em dia não é assim. Porque foram criados muitas casas sociais em redor da cidade - Vila do Carvalho, Teixoso Tortosendo, Boidobra e parte cimeira da Covilhã. E isso levou a que os clubezinhos de bairro, que tinham as pessoas ali, saíssem daqui e fossem para outros lados. Isso causou-nos alguns problemas, principalmente para tentar arranjar pessoas que queiram vir e tomar conta desta e das outras coletividades. Era bastante bom, na altura, se tivessem arranjado as casas onde as pessoas viviam, que eram muito mais felizes do que nos guetos onde os puseram. E hoje estava tudo mais normal, o centro histórico estava cheio, e hoje está vazio e com casas a cair. P: Diga-me uma coisa, começou então a participar aqui na associação ainda antes do 25 de Abril? Victor Fernandes: Sim, por aí, antes do 25 de Abril já cá entrava, isto garoto. P: E como é que era, qual é que era a diferença nessa altura, durante a ditadura? Victor Fernandes: Aqui não havia o espectro político, havia algumas casas que tinham. Esta nunca esteve ligada à política. Portanto, as pessoas eram submissas e não falavam disso. E como não falavam nisso, não quer dizer que não tivessem liberdade, quer dizer, uma pessoa tinha liberdade falando de tudo, menos em política, e hoje não é bem isto. Quer dizer, hoje há uma certa liberdade, que acaba por ser tirada a liberdade quando se entra num outro campo, que é a libertinagem. Hoje há muito disso. Há muita gente que destrói. Há muita gente que estraga tudo. Há muita gente que foge com os equipamentos. É tremendo. Quer dizer, isto demonstra que há uma grande diferença entre o passado, sem liberdade, uma liberdade restrita, e um presente com uma liberdade demasiada, onde ninguém tem poder para travar seja quem for. O professor não manda, a polícia não manda, ninguém manda. Quer dizer, isto é uma confusão tremenda. Isso traz-nos também alguns problemas, a nós. O caso de nos levarem coisas, de partirem coisas... Quer dizer, não pensam nunca que tudo aquilo que façam de mal são os pais também, com os seus impostos, que estão a pagar. Não somos só nós que pagamos, o pouco que recebemos, ou quase nada, dos órgãos, mais até a Câmara Municipal, a Junta de Freguesia, o pouco que recebamos vai dos impostos também dos pais desta gente e dos nossos, não é? E as pessoas não pensam nisso. P: E nessa altura era uma altura de dificuldades, como disse, as pessoas não tinham algumas necessidades básicas asseguradas. Eu estive a ver que noutras associações, havia mecanismos de entreajuda, por exemplo o subsídio de funeral. Aqui também existiu? Victor Fernandes: Subsidio de funeral aqui não existia. Eu sei que há clubes, por exemplo o Campos Melo, tinha subsídio de funeral. Aqui, por acaso, nunca foi prática. Podia-se ajudar as pessoas noutras situações, quando se viam com algum problema. P: Por exemplo, lembra-se de algum exemplo concreto? Victor Fernandes: Falta de comida... Eu sei que havia, também havia. Embora aqui já fosse uma cidade rica. Os têxteis ganhavam acima da média, na altura. Hoje ganham menos do que toda gente, mas na altura os têxteis ganhavam mais do que o resto, talvez das cidades do interior. E eu posso lhe dizer que havia algumas carências de facto que eram colmatadas, nem que fosse pelos amigos. Hoje, talvez não seja tanto assim. A amizade hoje é um bocadinho diferente. A amizade é o Facebook, é a exposição das coisas nos órgãos sociais. É estarem numa mesa a beber um copo, cada um com o seu telemóvel. Já não há aquele conversa simples que até nos levava a um certo crescimento. Hoje, com esta gente nova, já não existe isso. P: Foi uma escola, esta instituição? O que é que aprendeu aqui? Victor Fernandes: Foi sempre uma escola. Costuma-se dizer que o velho sabe muito porque é velho, não é? E nós aprendíamos precisamente com essa gente. Aprendíamos porque eles tinham a escola da vida. E a escola da vida, que eles que nos transmitiam, não era propriamente a escolaridade. Era a escola da vida que eles nos transmitiam e davam-nos valores que hoje é impensável conforme está a nossa educação a ser desenvolvida. Hoje é impensável, era isso que nós queríamos fazer hoje, dar alguns valores às pessoas ao incutir-lhes algumas coisas que eram importantes para a vida delas, só que não conseguimos, porque elas hoje são demasiado autónomas. P: Que tipo de que atividades é que se Lembra que o clube desenvolvia nessa altura? Victor Fernandes: Bem, eu já lhe falei no rancho folclórico. P: Participava no rancho folclórico? Victor Fernandes: Eu não, os meus pais sim. O meu avô tocava flauta no rancho e os meus pais andavam no rancho. Mas, além do rancho, também tivemos um conjunto de baile. Já nos anos 50, aqui havia muita atividade, o desporto, a cultura. Tínhamos uma boa biblioteca que agora não tenho aqui. Neste momento tenho numa garagem para tentar organizar. Havia muita coisa, desde os Jogos, que também dava para expressão e para agarrar a gente. P: Quais eram as modalidades que desenvolviam? Victor Fernandes: Principalmente o futebol, o andebol também. O andebol acho que acabou na Covilhã porque ganhavam sempre os Leões da Floresta. Acabou precisamente por causa disso. Depois, mais tarde, veio o ténis de mesa. Tivemos uma equipa excecionalmente boa e reconhecida a nível nacional. E alguns elementos chegaram a ir ao estrangeiro, principalmente à Rússia e à Espanha. P: E na parte cultural, tinham teatro, música, tinham uma biblioteca. Como é que foi criada a biblioteca? Victor Fernandes: Quando cá cheguei, já cá estava. Portanto, a biblioteca devia ter sido criada logo para aí nos primórdios da coletividade, porque eu lembro-me que um dos livros que lá estavam era O Vinho, que salvo erro era do António Pato, que vinha do Partido Comunista e fez parte de daquele bloco contra a ditadura já muito antes até das coletividades serem formadas. Portanto, eu lembro-me desse livro cá estar, bem como outros, claro, mas esse ficou-me na memória. P: E esses livros não eram proibidos? Victor Fernandes: Aqueles livros eram proibidos. Pelo menos dos que conheço só esse é que era proibido. Esse de facto era proibido. Não sei onde é que eles o encaixaram, nem onde o foram buscar. Sei que eu já cá o encontrei. P: No Campos Melo, achei muita piada, estive a ver que davam um prémio aos leitores que liam mais. Aqui também faziam esses incentivos à leitura? Victor Fernandes: Não, sabe que as pessoas aqui requisitavam os livros, levavam para casa, liam e depois traziam, ou então podiam ler aqui. Embora as condições na altura não fossem o que agora são, mas as pessoas, havia muita gente que lia aqui os livros. No caso do Campos Melo era diferente, a biblioteca Ferreira de Castro era totalmente diferente. O Campos Melo, apesar de tudo, já tinha uma parte política. Eu estou-me a lembrar de uma das pessoas que foi lá colaborador, que esteve preso no tempo da ditadura com o Álvaro Cunhal e outras pessoas assim do género, que era o senhor [...]. E essa pessoa, lembro-me que, como ele contava, foi torturada. Esteve com a água sempre até aos joelhos, o pingo sempre a cair na cabeça, e, portanto, o Campos Melo já tinha uma parte política Aliás, o Ferreira de Castro também já tinha, ele próprio, também já tinha a sua parte política. E no Campos Melo, de facto, havia esse prémio, eu lembro-me disso, para quem lesse mais. Havia de facto muita gente, já com uma certa cultura, naquela altura, no Grupo Educação e Recreio Campos Melo, tanto que um dos fundadores até era professor. Não sei se já falaram nisso, mas agora não me lembro bem, mas o [...], penso eu, era professor. Eles tinham lá as escolas primárias, tinham duas salas de aula e aí era muito mais simples ter desenvolvido a mente das pessoas. P: Quando é que passou por lá, pelo Campos Melo? Victor Fernandes: Olha, a última vez que lá estive foi 1992, a primeira vez foi em 1984. P: E foi sócio, foi dos órgão sociais? Victor Fernandes: Ainda sou sócio, fiz parte dos órgãos sociais, por duas ou três vezes. Duas vezes! P: Como é que conseguia acumular a participação em várias coletividades ao mesmo tempo? Victor Fernandes: Sabe, umas coisas desenvolvia-se numa e outras coisas desenvolvia-se noutras. Eu também dei a minha colaboração no Grupo Desportivo da Mata, quando estava nos Leões da Floresta, por exemplo. Eu estava aqui na direção dos Leões da Floresta e estava a treinar o grupo desportivo da Mata inter juvenil. Foi sempre uma das coisas. Quando estive no Campos Melo pela primeira vez, a única coisa que tinha de coordenar era a catequese. Não estava a coordenar nada nos Leões, ou melhor, acho que estava na Assembleia Geral dos Leões. Reunia uma vez por ano, portanto, não era por aí que eu deixava de poder dar a minha colaboração no Campos Melo. Era interessante e lembro-me de que um desses mandatos apanhou-me na tropa, e ao fim de semana tinha que ir para fazer turno no Campos Melo. Tinha que vir fazer tudo aquilo que me competia. E mais às vezes mais do que me competia. P: Então, daquilo que se conseguiu recordar com detalhe, foi desenvolvendo diferentes atividades em diferentes associações. Digam-me lá aquelas que se lembra. Victor Fernandes: Fui treinador na Mata. Fui treinador no Campos Melo, também de ténis de mesa. Joguei pelo Oriental de São Martinho, joguei pelos Leões da Floresta. Também joguei pelo Campos Melo. Depois acabei por me federar e depois terminei a minha carreira, sempre no ténis de mesa. Jogava uma futeboladazita, quando era mais novo, mas nunca tive grande queda para o futebol, ainda hoje é o dia que não vejo um jogo de futebol. Nunca tive grande queda para isso. Gostava de facto de ténis de mesa. Dava-me um gosto jogar e poder ajudar os outros a jogarem. P: Mas desenvolveu outro tipo de atividades, tipo responsável pela catequese? Victor Fernandes: Sim, fui responsável pela catequese, também uma das coisas que me calhava todos os anos era, por exemplo, a preparação para a profissão de fé, que eram 15 dias intensivos de catequese e então iam os grupos todos da paróquia. Conclusão, chegava ali a ter aos cento e alguns, catequizando os 100. E alguns catequizados foram catequistas. Era engraçado, no fundo era engraçado. Naquela altura, também, as pessoas também se moldavam com mais facilidade. Eu estou a ver hoje uma turma, por exemplo com 100 alunos, que essa ninguém devia pôr mão naquilo, não é? Até com 30 já deve ser difícil, quanto mais com cento e qualquer coisa. Naquela altura era mais simples. As pessoas eram diferentes. P: Isso foi nos anos 80? Victor Fernandes: Sim, pelos anos 80. P: E desempenhou mais algum tipo de atividade? Victor Fernandes: Assim outro tipo de atividade, música sim, porque ajudei a fundar, fui dos fundadores do Covimúsica, lá em cima no Campos Melo. Fui fundador, mais quatro pessoas. Eu tinha viola, os outros não tinham. Eu não sabia tocar viola, emprestava a viola e assim se foi criando. Quer dizer, começou-se com pouco. É engraçado que juntávamos a revolução, aquilo que nós começamos a cantar inicialmente era tudo o que era revolucionário, canções revolucionárias, partidárias e canções da Igreja. Também mais de convívio fraterno de jovens. P: Esteve alguma ligação à JOC ou à LOC? Também sei que havia alguns grupos. Victor Fernandes: Não, nunca estive ligado. Conhecia muito bem as pessoas de um lado e do outro, só que diretamente nunca estive ligado, nem à JOC nem à LOC, mas indiretamente estive ligado a toda a gente, porque muitas vezes ia para os encontros com eles. Apesar de não fazer parte, ia para os encontros com eles e sempre me dei bem com eles. P: Mas desculpe interromper, estava-me a contar das músicas do COVI Musica, isso foi em que ano que começou? Victor Fernandes: Foi no pós 25 de Abril e talvez já nos anos 80. Fins dos anos 70, princípios dos anos 80. Foi muito interessante. P: Tocava músicas revolucionárias e da Igreja? Victor Fernandes: Sim, foi assim que começámos, depois cantava-se uns fadinhos também pelo meio, até que depois voltámo-nos de vez para a música popular portuguesa e daí nunca mais saímos. P:E como é que era essa relação entre a música revolucionária e da Igreja? É interessante essa... Victor Fernandes: Sabe que as pessoas... A música revolucionária ainda estava um bocado na mente das pessoas e era bem aceite. A música da Igreja também era bem aceite no contexto, com as pessoas de então. Se fôssemos hoje a cantar qualquer coisa da Igreja e num lado qualquer, certamente ou não aparecia muita gente ou certamente eram capazes de aparecer e, não estando a contar com isso, eram capazes de dar uma assobiadela. Não faço ideia. As pessoas hoje são muito diferentes, já não é o que era, isso também devido um pouco à ciência. A ciência dá-nos hoje uma perspetiva diferente de algumas coisas, tentou explicar muita coisa, ultrapassou muita coisa, de facto, é verdade, e isso leva um pouco a incredibilidade das pessoas. E hoje as pessoas não ligam muito, pelo menos não estão a ligar muito, até que alguma coisa aconteça e vá tudo, de Santo na mão, às coisas da Igreja. Mas o que é certo e verdade é que as pessoas não se podem esquecer nem do passado, nem do que foram. E acho que devem dar também uma oportunidade à Igreja, que foi certamente onde nasceram e é certamente onde a maior parte pertence como baptizada na Igreja, certamente. P: A então essa dupla filiação, sente que faz mais parte de um clube do que do outro ou há uma identidade global do associativismo em que se insere sem fazer distinções entre as coletividades? Victor Fernandes: Claro, eu nunca fiz distinção entre coletividades. Sei que os mais velhos tinham uma certa rivalidade. Connosco não e o caso mais concreto é, por exemplo, eu telefono muitas vezes ao Francisco e o Francisco telefona-me a mim, como muitas vezes telefona ao Miguel e o Miguel telefona ao Rui, que está no Campos Melo, e muitas vezes ele também fala comigo. Portanto, eu nunca fiz distinções entre coletividades. E estava-me a lembrar do meu amigo, que vai ser amanhã entrevistado, que trocou a entrevista para eu ser entrevistado hoje, porque amanhã vou levar a vacina. Não posso lá estar, além do Ginásio, do Barroca, que também nos damos excecionalmente bem. Portanto, eu nunca vi diferença seja daquilo que for. Aliás, eu acho que o futuro das coletividades vai ser apoiarem-se umas às outras. P: Já existia essa colaboração entre as coletividades? Victor Fernandes: Talvez não houvesse muita. Havia coletividades rivais, como disse. Hoje não vejo rivalidade em lado nenhum. Mas, na altura, havia muita rivalidade. É muito provável que não houvesse muita cooperação umas com as outras. Hoje é totalmente diferente, estamos completamente à vontade. Embora uma pessoa sinta que alguns puxem mais do que outros por alguns cordéis. Não é isso que me vai a pôr contra seja quem seja, cada um mexe os cordéis que quer. Eu não me chateio absolutamente nada com isso. E se as pessoas forem soltas, certamente irão ter a mesma atitude que eu. E conheço algumas que são soltas também, quer dizer, têm a sua coletividade , mas quando toca a querer ajudar e quando pedimos auxílio, vêm também em nosso auxílio. E isso será o futuro das coletividades. Porque há de se chegar a um ponto, ou eu estou muito enganado, em que não vai haver gente suficiente para estar à frente das coletividades. E então, se as queremos ter abertas, temos que lhes pagar. Pagando-lhes, já não podemos comprar determinadas coisas e como não podemos comprar determinadas coisas, certamente temos que nos valer uns dos outros. Pedir à coletividade uma coisa que ela tem e depois também ceder alguma coisa que ela precisa. E podemos fazer isto entre coletividades. Eu não acredito que haja alguma coletividade que tenha tudo aquilo de que precisa. Porque não tem, certamente. E isto será um futuro próximo. Eu já não o vejo muito longínquo. Posso estar enganado, mas aquilo que eu vejo até agora, e devido a esta demografia, este movimento de pessoas para outros lados que nos deixa desmembrados, é muito provável que um dia vá acontecer, e se calhar mais breve do que aquilo que pensamos, o manter destas casas tem que ser remunerado. E isso leva certamente àquilo que a senhora disse e que eu também já disse, a que as pessoas se juntem mais para resolver os problemas momentâneos que tenham nas suas casas. P: Por falar em resolver as coisas em conjunto, logo a seguir ao 25 de Abril também se criaram nestas comunidades, eu acho que em articulação com as coletividades, outros tipos de associações, que eram as comissões de moradores, onde as pessoas se juntavam para resolver problemas dos bairros, teve alguma experiência dessa natureza? Victor Fernandes: Não, por acaso nunca tive, nem aquele que está mais situado no meio de um bairro. Há pelo menos três que estão no meio de um bairro, ou quatro, que é a Lapa, que é o Académico dos Penedos Altos, que é o Campos Melo e que é o GIR Rodrigo. São os quatro que estão mais inseridos, todas as outras estão um bocadinho mais afastadas do bairro. Embora o Oriental tenha muita coisa ali de volta, não era propriamente um bairro, porque havia se calhar mais gente ali que viesse para aqui do que fosse para lá. Mas eu nunca tive essa experiência de ver essa situação como pôs, nunca tive. P: E não acha que o facto da Covilhã ser uma zona predominantemente industrial ter quase toda a gente ligada à indústria, ter uma forte tradição operária, que isso marcou de certa maneira o associativismo e que justifica esta profusão de associações? Victor Fernandes: Eu acho que em princípio certamente marcou as coletividades. Sabe que eram essas pessoas que davam vida a isto tudo. Principalmente quando tinham lacunas que precisavam de ser colmatadas. O caso de em casa não terem aquilo que desejavam e que a coletividade tinha. Vivia-se tempos, poderá dizer-se, difíceis, mas que eram um regalo. Já agora deixo-lhe esta, era um regalo, para quem era um miúdo, ver as pessoas com a sua lancheira, quando tocava as cinco horas da tarde, e ainda havia algumas estradas que ainda eram em terra, e via-se os bandos das pessoas, pareciam bandos de andorinhas, muito engraçado. E eu era garoto e nunca mais me esqueço de ver aquelas saídas, depois pelo caminho, até se entrava numa taberna e bebia-se um copo. Era muito engraçado. Eu via, só que não bebia e ainda não estava a trabalhar na altura. E depois vinham para as coletividades. As coletividades eram a segunda casa das pessoas. Eu acho que até passavam mais tempo no emprego e nas coletividades do que propriamente em casa. Só havia uma coisa de mal. Era, na altura, haver poucas senhoras que iam à coletividade. Muito rara era a senhora que entrava na coletividade. E as coletividades podiam ter um dinamismo diferente se as senhoras tivessem posto também a sua cabeça e as suas mãos e todo o seu ser aqui ao serviço das coletividades. Não existia. E ainda hoje, penso que só há uma é que tem senhoras. Não, o Campos Melo tem e o Oriental tem, e penso que não há mais nenhuma. P: Mas antes do 25 de Abril elas não podiam participar, pois não? Victor Fernandes: Não participavam absolutamente em nada. Era injusto, acho que era injusto essa parte antes do 25 de Abril. Era um bocado injusto. Uma esposa que entrasse com o marido ainda podia ser tolerada, mas não podia estar muito tempo. Se uma senhora entrasse sozinha num café ou, por exemplo, aqui na coletividade ou noutra coletividade qualquer, isto caía o Carmo e a Trindade. Era muito complicado, porque havia um certo falatório. Depois eram apelidadas de muita coisa que nunca foram na vida. Isto era aquilo que tínhamos, quer dizer, era a cultura da época. Hoje faz-nos falta o contrário, faz-nos falta as mulheres e não as temos. Eu já não a tenho de maneira nenhuma, porque sou viúvo, mas fazem-nos falta as mulheres, porque têm um sexto sentido às vezes para determinadas coisas que os homens não têm. E isso era uma mais valia para qualquer coletividade ou para qualquer organismo. Não é que ninguém esteja por cima de ninguém, somos todos tratados por igual. Eu sou o presidente, mas estou a par dos outros colegas todos. Não sou mais que ninguém, nem pretendo ser. E fazia-nos cá falta as mulheres. P: E não houve nenhuma altura em que as mulheres tivessem participado mais? Victor Fernandes: Houve, principalmente no tempo das marchas populares. Nós também fomos dos clubes que ganhámos mais marchas populares e não ficávamos a dever nada a Lisboa. Digo-lhe que isto estava já num patamar de tal maneira que teve que acabar, porque as pessoas gastavam quatro a cinco vezes mais do que aquilo que iam receber da edilidade covilhanense. Chegou a um ponto que tinha de ter uma rotura qualquer e acabou. E nós víamos aqui as senhoras, não só para dançar, como também para arranjar os fatos e para arranjar essas coisas todas. As pessoas davam-se como voluntárias, por isso era magnífico ver as pessoas todas a trabalharam, andarem aqui dois ou três meses a ensaiar, era lindíssimo. E sabe que as senhoras também trazem muita gente atrás para elas, quer dizer, com elas vinham, os filhos, vinham os netos e isso era uma mais valia para qualquer coletividade. Era um sonho tornado realidade durante esses três meses, esta casa sempre foi muito movimentada, mas durante esses três meses isto extravasava tudo, nem havia quase espaço para as pessoas, porque a sede era muito mais pequena do que agora, agora está em três andares. P: Qual é que foi o ponto, em que década é que foi o ponto alto das marchas? Victor Fernandes: Eu não tenho já bem presente isso. Mas já foi, já foi neste século. Portanto, não faço ideia já do ano, porque isto parou há uns tempos. Agora é que andam a começar novamente. Vamos ver se pega, mas há algumas pessoas que já se desabituaram. E algumas pessoas que já não as temos. Como eu disse, já vivem noutros sítios e não estão para aqui andar de caminho. Isso complicou tudo. P: Qual é que a década, o período em que a atividade associativa foi mais exuberante, em que as pessoas participavam mais? Victor Fernandes: Sabe, em questão de participação, era mais nos primórdios. Porque isto era um clube de sócios. Ainda hoje é, embora abramos as portas a toda a gente e demos os mesmos direitos a toda a gente. Mas dava gosto ver centenas de sócios a trabalhar para um bem comum. Hoje, se virmos meia dúzia de sócios, já ficamos contentes. P: Que idade é que tinha nessa altura em que centenas de sócios estavam aqui? Victor Fernandes: Então, eu devia ter, devia de ser ainda garotito. Eu não podia estar à noite, devia de ser ainda garotinho, às 10h tinha que ir para casa, porque nos punham na rua e às vezes mais cedo. Eu era um garotito, ai com os meus 10 anitos. Dava gosto ver toda esta movimentação e não era só de volta do copito, é que havia muita coisa que se pudesse fazer. P: Como por exemplo? Victor Fernandes: Eu dou-lhe, por exemplo, as marchas populares, em cada uma delas as marchas populares davam muito trabalho. Vinha muita gente, isto era uma escola. Ténis de mesa, havia muita gente no ténis. Tínhamos pool, tipo snooker mas já jogado de uma maneira diferente. Tínhamos tiro ao alvo e ainda temos alguns federados que estão inscritos por nós. O que é que uma pessoa quer mais, meu Deus? Tínhamos o andebol, isto tudo ao mesmo tempo, movimentava muita gente. P: Isso tudo quando tinha os seus 10, 11 anos, ou seja, mais ou menos no 25 de Abril, nasceu em 1963? Victor Fernandes: Por aí. P: O 25 de Abril veio fomentar uma maior participação? Victor Fernandes: Não, penso que não. Penso que não. O 25 de Abril, enquanto as pessoas lutaram por novas regalias foi muito intenso. As pessoas aqui vinham muito. Depois de terem certas regalias, as pessoas começaram-se a afastar mais. Como já lhe contei há pouco, quero dizer, já têm a sua televisão, já têm a sua Internet, têm outras coisas dentro de casa que não tinham anteriormente. P: Mas quando se fala em lutar pelas regalias fala especificamente, por exemplo, naquelas greves, dos mil escudos por exemplo? Victor Fernandes: Sim, precisamente, e levaram a alguns aumentos, que levaram a algumas regalias sociais que hoje estão-se a perder todas. Mas na altura conseguiram-se várias regalias para os trabalhadores. Hoje isso é impensável, porque as pessoas não são unidas, como eram aquelas antigamente. Nós hoje, se falarmos numa greve, eu não estou a ver as pessoas a aderirem à greve. Se for na função pública, sim, Mas no privado, eu não estou a ver as pessoas a aderir à greve. Porque as leis, entretanto, foram retrocedendo e as pessoas também têm um certo receio de se manifestar. Portanto, eu já não sei que ditadura é que é pior, se era a ditadura do passado, se é a ditadura do presente. Não lhe sei dizer muito bem. Eu, como me afastei assim bastante da política, e não quero nada com isso, não sei dizer muito bem. Antigamente, quem não molestasse o governo podia fazer tudo e não tinha problemas. Hoje pode-se fazer tudo e podemos levar com alguns problemas pela frente. Portanto esta juventude que se cuide e que se una. P: Essas greves, por exemplo dos mil escudos, refletiam-se nas coletividades? Victor Fernandes: Refletiam-se, as pessoas quanto mais ganhavam mais também gastavam por aqui. E quanto mais regalias tivessem, notava-se, notava-se bem. Até que as regalias já são tantas que já não se nota bem. Há dois opostos. Quando não se tinha isso, foi tendo. Foi-se aplicando, mas agora que se tem de mais, não se aplica ou quase não se aplica e isto é quase um revés. Estamos a voltar atrás nalgumas coisas, mas não naquilo que era. P: Mas diga-me uma coisa, aqui os sócios deste eram maioritariamente operários e envolveram-se nessas lutas, como é que isso se vivia aqui dentro? Victor Fernandes: Não, dentro da coletividade, não se vivia isso. Não havia discussões sobre isso nem sobre grandes políticas, porque regra geral, também todos coincidiam mais ou menos à mesma política. Esta era uma das coletividades que era pró-socialista, também porque era de operários. Não havia tanto aquela patente comunista, embora houvesse alguns, mas respeitavam-se todos uns aos outros. Da classe mais à direita não tenho conhecimento, principalmente naquela época. Hoje, eu acho que são todos cada um pior que o outro. Eu acho que as pessoas hoje nem sequer discutem isso. Já nem sequer há uma certa ligação, nem vejo sequer ninguém a falar sobre um assunto político, seja ele qual for, a não ser comentar alguma coisinha que se passa ali na televisão. Uns estão a favor, outros estão contra, mas dali também não passa. P: Acha que a memória destas coletividades, esse passado, o facto de ter sido tão importante na vida das pessoas aqui da cidade, como é que essa memória é transmitida? Acha que os mais novos conhecem essa história? Victor Fernandes: Eu fui contando algumas coisas às minhas filhas, mas se quer que lhe diga frutos também não vejo. Porque nenhuma delas é muito amiga da coletividade. Quando eu às vezes venho: “pronto, lá vais tu.” Às vezes têm esse tipo de atitude, principalmente a mais velha. A mais nova nem tanto. Portanto, eles hoje têm uma maneira diferente e quando às vezes começamos a contar algum bocadinho de história da vida, este pessoal é muito mais aberto e às vezes o que tem na cabeça também o tem logo no coração. Nós éramos um bocadinho mais acanhados, nem que fosse para não magoar as pessoas. Nós não dizíamos aquilo que pensávamos. Esta gente hoje diz tudo. E como diz tudo, às vezes, se uma pessoa for contar alguma coisa, às vezes até se tornam um bocadinho inconvenientes. Pronto, ou eles ou somos nós. Não sei se eles não estão minimamente preparados para a história, para a história da vida. P: Aqui nos órgãos sociais, qual é que é mais ou menos a média de idades? Victor Fernandes: Já deve andar nos 60’s. P: Mas tem alguns jovens? Victor Fernandes: Tenho aqui ao pé de mim três jovens. P: E esses jovens estão interessados ainda no associativismo? Victor Fernandes: Ouça, eu também ando nisto que é para ver se lhes transmito esse bichinho, que é também para eu chegar e descansar. Acho que todos temos direito e às vezes estar tempo demais num certo sítio cria determinados hábitos e podem ser até prejudiciais. E não quero chegar a esse ponto. Queria que alguém viesse, um sangue novo que desse aqui um ar mais purificado à casa, mesmo que nós tivéssemos por trás a ajudar. Queria que essa gente, depois de moldada, ficasse a tomar conta. E é isso que eu sempre tentei. Em duas vezes que já fui presidente desta casa, da direção, de outras coisas já tinha sido. Mas da direção, sempre tentei meter jovens, para depois eles ficarem com a sucessão. Da primeira vez, tive êxito, porque ficaram pessoas novas na direção a seguir e com alguns cargos de responsabilidade. Desta vez, estou a rezar para que isso aconteça, mas desta vez também já estou a demonstrar um certo cansaço. Não é só o crer, o andar aqui, mas também já estou a construir um certo cansaço. Queria que alguém tomasse conta desta casa, porque acho que já é tempo. Eu acho que é tempo, porque quando não estou aqui, estou noutro lugar qualquer. E agora já são muitos anos, já vai para seis anos. P: E estes jovens que estão agora na direção, o que que acha que os motiva a estar agora no associativismo? Victor Fernandes: Um deles nasceu também assim por aqui. É relativamente novo. Mas nasceu por aqui e foi aqui que jogou futebolzito e foi aqui que se desenvolveu. Portanto, esse tem capacidade já no momento, penso eu, para presidir a uma coletividade. Tem já capacidade para isso. Tem uma pessoa a trabalhar mais diretamente com ele, que que lhe fazia uma tesouraria excecional, porque era um licenciado. E nós sabemos a tesouraria dos anos, embora hoje já não seja como era. Hoje é tudo através da contabilidade organizada, já não há contas de bolso, nem contas de gaveta, isso terminou. Isto é tudo contabilizado ao milímetro, vai tudo para as finanças, tudo direitinho. Hoje não há, não há esse tipo de contas, mas nós sabemos fazer isso pelos anos que temos e também porque a contabilidade na altura, uma pessoa faz isso bem, mas com um licenciado em gestão, certamente se fará melhor. Eu hoje não tenho um POC na cabeça, quer dizer, não tenho um plano oficial de contabilidade na cabeça, que esta gente mais nova certamente terá. Terá e pode pôr as suas capacidades à prova. Há um outro que é excecionalmente bom, não para gerir, mas é excecionalmente bom para olhar para qualquer coisa e ver aquilo que está bem e que está mal. Também um jovem que se ajeita já muito bem, seja naquilo que for, seja na eletricidade, seja na carpintaria, seja na construção, seja naquilo que for. Temos aqui um outro que é excecional. Agora precisamos que comecem também. Certamente ainda não será já nos próximos tempos, porque não estou ainda a ver, um ainda está estudar, outro está a tirar um mestrado, portanto, mais um anito. P: Qual é que aha que é o futuro do associativismo? Victor Fernandes: Eu vejo o futuro muito negro, sabe, porque as pessoas hão de chegar a um ponto que não têm capacidade para dar mais. E ao não ter capacidade para dar mais, eu já disse há pouco, se querem que isto continue, o mais certo é terem que pagar. Alguém que saiba gerir uma casa. É isso, já não vou ser eu, já vai ser outra pessoa qualquer, mas eu acho que o futuro passará por aí. Ter alguém a dirigir e esse alguém, certamente, tem que ser remunerado. De resto, não estou a ver grande futuro, a não ser que haja um revés muito grande e as pessoas comecem outra vez a necessitar destas casas. Nem que seja transformarem as casas num centro político, não sei. Mas, se precisarem, são capazes de voltar, se não precisarem, não estou a ver. Pelo menos duas ou três gerações foram completamente desviadas do que eram os contextos sociais. Aquelas belas virtudes que nós tínhamos, que os nossos pais nos incutiram, hoje não têm. Portanto, perdemos pelo menos três décadas. E isto só lá mais para a frente é que vamos fazer aqui isto dar. Eu, certamente, já cá não estarei. Mas quem cá estiver, boa sorte! P: Então e diga-me, o associativismo marcou a sua vida? Victor Fernandes: Marcou. Sabe que eu, além de praticamente crescer no associativismo, também marcou a minha vida de toda a maneira e principalmente, antes sim, mas principalmente, depois de 1988. Foi quando me casei, em 1988. A minha esposa dava-me um certo à vontade, porque ela também gostava. Ela chegou a ser diretora desta Casa, já me estava a esquecer. Mais duas meninas, na altura. Agora é que não temos, já foi em 1990, porque coordenavam as marchas populares com a direção. Eu, nessa altura, estava de fora, estava na Comissão de Festas para angariar dinheiro para as marchas populares e também fazia parte da Assembleia Geral. Em 1988 foi mais profundo. Estava aqui com a minha esposa e era totalmente diferente, era um apoio totalmente diferente. E mesmo depois dela sair daqui, quando começou a ter as filhas. Mesmo depois dela ter saído daqui, nunca me disse, ou nunca me pôs qualquer tipo de entraves, porque ela também gostava disto. Todos estes tempos foram marcantes, até ao desaire da Covid 19. Isso foi desastroso, vi-me aqui um bocado perdido na noite. Totalmente diferente, não vinham as pessoas, as contas caíam. Foi um pouco aflitivo. Se estivesse uma pessoa menos paciente à frente, não sei se ultrapassaria determinadas situações. Eu cheguei a um ponto que não tinha um cêntimo na caixa. Eu dizia: “Onde é que eu vou arranjar dinheiro para isto?” Hoje está mais ou menos colmatada. Mas foi doloroso. E nunca me senti tão fraco como agora, neste tempo. É engraçado que eu pensava que, quando começasse a desconfinar, as pessoas tinham aprendido alguma coisa com isto. Mas mais uma vez, como me enganei tantas vezes na vida, mais uma vez me enganei. As pessoas continuam a ser individualistas, continuam a ser comodistas, continuam a se servir das coisas e não ligar nenhuma ao que é o associativismo. P: O que é que foi a coisa mais importante que aprendeu com esta experiência associativa ao longo da vida? Victor Fernandes: Aquilo que eu aprendi foi a envelhecer aqui e a saber mais. Isto dá-nos uma estaleca diferente para enfrentarmos determinadas coisas. Foi aquilo que talvez mais me tenha marcado. Porque tudo o resto, todas as atividades e tudo isso já lhe falei atrás. Mas aquilo que de facto mais me marcou foi envelhecer aqui, o que me tornou mais aberto para enfrentar as situações que venham por aí, e já vieram algumas.