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Desenvolvimento comunitário
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4 de junho de 2021
Francisco Bragança, Carlos Agostinho Dâmaso, Jeremias Espinho Roceiro e António José Esteves Duarte
P: Nasceu aqui, na vila do Carvalho? Em que ano? Francisco Bragança: Sim, a 12 de Agosto de 1936. P: E estudou aqui? Francisco Bragança: Fiz a terceira classe e depois fui trabalhar, com 10 anos. P: Para onde? Francisco Bragança: Para a Covilhã. P: Para quê? Francisco Bragança: Lanifícios. Comecei na ultimação e acabei na tinturaria. Trabalhei 50 anos, dos 10 aos 60. P: Sempre no têxtil? Francisco Bragança: Sempre. Quando comecei a trabalhar ainda não havia luz na aldeia, não havia transportes, não havia nada. Ia com 10 anos, porque, vamos lá, naquele tempo muito raras eram as pessoas que sabiam ler. A minha mulher é quase dois anos mais nova do que eu e não sabe ler. P: Também trabalhou na têxtil, a sua mulher? Francisco Bragança: Sim, muitos anos. P: E os seus pais também? Francisco Bragança: OS meus pais também. P: Também eram daqui? Francisco Bragança: Eram daqui. O meu sogro e a minha sogra não trabalhavam nos lanifícios, era no campo. Porque o meu sogro andou na guerra de 1914-18 e quando veio, veio doente. Tinha sete filhos e a minha mulher, quando ele veio, tinha cinco ou seis anitos, foi obrigada a ir logo trabalhar. Para se casar, teve de aprender a fazer o nome. Faz à sua maneira, mas faz o nome. P: E tem filhos? Francisco Bragança: Tenho dois filhos e uma filha. P: Ficaram aqui ou foram para fora? Francisco Bragança: Tive uma filha, que ao fim de três meses morreu-me. Agora tenho uma filha que vai fazer 58 ou 59. A minha filha, não sei, é de 1962. E tenho uma filha que tem 54 anos. P: Os seus pais ou alguém da sua família fazia aqui parte da banda? Francisco Bragança: Dois primos direitos. Um depois, mais velho, mas outros esteve cá pouco tempo. Ainda por cá passou um filho meu e uma neta. P: Também esteve aqui na banda? Francisco Bragança: Não foi muito tempo, mas esteve. P: Então e o senhor, pode dizer o seu nome todo, para ficar registado? Carlos Dâmaso: Carlos Agostinho Dâmaso. P: E nasceu em que ano? Carlos Dâmaso: Nasci em 1954, nasci mesmo aqui na vila do Carvalho, não fui ao hospital nem nada, foi mesmo aqui. P: E estudou aqui? Carlos Dâmaso: Sim, até à quarta [classe], depois ainda fiz a admissão, ainda estive na Campos Melo algum tempo. Andei lá no curso, mas não acabei, de Eletromecânica. P: E depois, foi trabalhar para onde? Carlos Dâmaso: Comecei também aqui, na fábrica aqui em cima. Fui para ao pé deste colega, que já lá estava na serralharia. Mas depois, como o patrão, que era o Francisco Fazenda, admitiu-me mais por causa de eu ter dito que andava a estudar lá no curso de Eletromecânica e tal, comecei a fazer as duas coisas, era eletricista e estava na serralharia com ele. P: E os seus pais também trabalhavam aqui? Carlos Dâmaso: Os meus pais trabalhavam naquelas fábricas na vila. P: Mas eram daqui… Carlos Dâmaso: A minha mãe sim. O meu pai nasceu na freguesia de São Pedro da Covilhã, mas veio muito cedo aqui para a aldeia, para casa de umas tias. P: E casou-se? Carlos Dâmaso: Sim casei, mas já estou viúvo. Em 2001 faleceu a minha esposa. P: E tem filhos? Carlos Dâmaso: Tenho um. O meu filho casou, esteve a estudar e vive noutra freguesia. P: E o senhor? Jeremias Espinho Roceiro: Jeremias Espinho Roceiro P: Nasceu aqui também? Em que ano? Jeremias Espinho Roceiro: Sim, nasci aqui, em 25 de abril de 1958. P: E estudou aqui? Jeremias Espinho Roceiro: Fiz aqui a instrução primária. Fiz a quinta classe na altura e depois estive dois anos no Seminário do Fundão. Depois fui para os lanifícios também. P: Aqui ou na Covilhã? Jeremias Espinho Roceiro: Na Covilhã. Depois sai para o comércio. Entretanto, a firma onde trabalhava faliu e eu entrei no comércio, numa loja de máquinas e ferramentas. P: Acabou sua carreira aí? Jeremias Espinho Roceiro: Sim, aos 60 anos. P: E casou-se aqui? Jeremias Espinho Roceiro: Casei aqui duas vezes. P: E tem filhos? Jeremias Espinho Roceiro: Tenho duas filhas. P: E os seus pais também eram daqui? Jeremias Espinho Roceiro: Sim. P: E trabalhavam nos lanifícios? Jeremias Espinho Roceiro: Trabalhavam. A minha mãe pouco, porque casou e éramos nove irmãos. Começou a ter as crianças e acabou por ficar em casa muito cedo. O meu pai é que se fartou de trabalhar. O meu pai foi músico também aqui nesta Filarmónica. Quando deixou a Filarmónica, já estava com à volta dos 80 anos e ainda tocava. António José Duarte: Sou António José Esteves Duarte, mais conhecido por Tó Zé Duarte, como eu gosto que me tratem. Eu também nasci nas quintas desta aldeia. Vim a esta aldeia a primeira vez quando fui batizado e a segunda vez quando vim para a escola, aos sete anos. P: Nasceu em que ano? António José Duarte: Em 1952. Sou casado, tenho dois filhos, um que também passou por aqui pela banda para estudar música e depois estudou diversas coisas e atualmente estão os dois a trabalhar como auxiliares no hospital da Covilhã. Portanto, eu já estou aqui há 53 anos a frequentar esta casa. A primeira vez que vim para cá foi em 1966-67. Havia aqui uns jovens que eu admirava muito vê-los na banda. Foi isso que me incentivou também a vir para cá. Vim aprender solfejo, que eram os próprios músicos que ensinavam solfejo àqueles que entravam, um rapaz que já há muitos anos que nunca mais vi, que era o Jorge. Mas as coisas também não andavam muito bem e depois saí. Voltámos depois mais tarde, já uma quantidade deles, ainda existimos três, que sou eu, o Carlos Dâmaso e o Agostinho, que ainda continuamos cá. E também nessa altura estavam aqui a iniciar as obras da primeira sede desta Casa. P: Não tinha ninguém da sua família que andasse nesta banda? António José Duarte: Não, sou filho de pais analfabetos, das quintas, sempre na agricultura, e não sei porquê, foi como disse, a admiração que via naqueles jovens... P: Que idade é que tinha quando isso aconteceu? António José Duarte: Tinha aí uns 14 anos quando entrei para esta Casa pela primeira vez. Jeremias Espinho Roceiro: Eu, para além do meu pai, já tinha mais gente da família na banda, já tinha mais dois irmãos e tinha uma sobrinha. P: Então e o senhor, com que idade é que começou a tocar na banda? Francisco Bragança: Eu comecei, entrei nestas coisas, nunca me esquecerei, em 1943. Em 7 de setembro entrei para a escola, nos fins de junho, com 10 anos, fiz a terceira classe, fui logo trabalhar. Não havia luz, não havia estradas em condições, não havia transportes, não havia nada. E eu, com essa idade, frequentava muito um ensaio. Foi o primeiro ensaio que eu conheci e eu, mesmo garoto, era o primeiro a lá chegar só para ver acender o candeeiro. Depois assistia um bocado aos ensaios, porque os ensaios começavam muito mais cedo do que agora começam. Estava ali um bocado, começava a anoitecer, ia para casa. Mas depois, a minha vinda para a filarmónica, já nesse tempo gostava muito da música, já trabalhava, com 11 anos fiz o crisma e estava ali um café, uma oficina de um sapateiro, e os músicos iam fazer as festas no domingo e à segunda-feira. Ali é que era uma sede, porque naquele tempo éramos distribuídos pelas casas. Uns iam para uma casa, outros para outra e depois à segunda-feira é que estavam ali uns com os outros, chamávamos os patronos. Eu calhei muito mal naquele tempo, cala-te lá, aconteceu-me isto e aquilo, mas era uma família. Quando cheguei aos 11 anos, fiz o crisma e convidei o dono da sapataria para meu padrinho e ele vira-se para um músico que me orientava: “Oh Zé, tens de levar o meu afilhado para a música.” E então, com 11 anos, comecei a aprender, mas esse músico que me começou a ensinar ensinou-me pouco. Era um bom músico, mas eu queria era companhia. Porque nessa altura andava a namorar e de vez em quando ia para Lisboa e ele queria é que eu fosse músico para aquele lugar, porque só havia dois lugares. P: Qual era o instrumento que tocava? Francisco Bragança: Saxofone, e ele queria é que eu fosse músico. Foi uma altura que eu comecei cá... no princípio da banda, com o fundador, dizem. Eu andei cá com o fundador muitos anos na música. E ele dizia-me também: “A música começou a ser formada em 1905 ou 1906”. A 1 de janeiro de 1908 é que foi a primeira atuação. Começou com sete músicos, um não conheci, os outros todos conheci. E esse senhor contava que, por diversas coisas, o maestro foi-se embora. Mas depois, naquele tempo, não sei se havia muita festa ou se não havia. O que sei é que por qualquer motivo deixou de ser músico, o homem. Havia então um mestre da Covilhã, um civil, tinha de vir a pé, não havia luz, não havia transportes, não havia nada. Não estava cá muito tempo. Depois vinha outro, não estava cá muito tempo. Depois, em 1930, veio um primeiro sargento do exército, da Covilhã. E esse senhor vinha sempre fardado. Não havia transportes, vinha sozinho. E naquele tempo, vinha fardado, para não ter medo. Esteve cá uns aninhos. Depois saiu. Veio outro sargento, mas já estava reformado. Veio viver aqui para a aldeia, porque esse senhor era de Famalicão. Era primeiro-sargento do exército. Reformou-se e veio ali para a banda que hoje é de Vale Formoso, antiga aldeia do Mato. Havia duas bandas e acabaram. P: Duas bandas aqui? Francisco Bragança: Não, lá. E esse homem veio então para mestre da música. Ele tinha enviuvado e casou aqui com uma senhora nova. Em casa ensinava os músicos. Esteve cá uns aninhos bons. Em 1946-47, começou o homem assim, como é que eu hei de dizer, a idade já avançada, muito pesada e tal. E teve que sair. Veio depois outro sargento para a banda, que esteve muitos anos, quando se formou a banda de uma maneira que chegou a alto nível. Mas esse senhor era de Chaves e veio para a Covilhã. O homem tinha uma história. Começou a aprender música muito novo, mas o pai era empreiteiro de obras. E o pai queria que ele fosse também empreiteiro. E começou a ir lá a ensinar duas meninas músicas de Chaves e os pais eram tropas. E ele começou a dizer que não queria ser pedreiro e tal, e eles disseram: “Tu queres ir para o exército?” E eles deram-lhe uma assinatura falsa e foi para o exército. E ele, não sei se tinha só a quarta classe se tinha mais estudos, ele era mais inteligente na música. E veio para a Covilhã, mas já como furriel. Quando veio para cá, ainda foi para a banda da Covilhã. Então em 1948 é que veio aqui para a aldeia. Esteve cá até 1961. Depois veio a família, lá de Chaves. Mas o homem também vinha a pé, não havia transportes, não havia nada. Então vinha a pé. E foi quando eu aprendi, porque o senhor que me ensinou tinha uma taberna e o tal senhor Assis, quando vinha para o ensaio, os ensaios eram à quarta e à sexta, ia lá para a taberna, metia-se nos copos, acabava o ensaio pegava na batuta e pronto. E os músicos é que ensinavam os outros. Continuo a dizer que se calhar não fui muito bem preparado devido ao músico que queria que eu fosse músico. Quando fiz o crisma, com 11 anos, já trabalhava, mas o meu padrinho é que, nunca me esqueci, levou-me ao cinema. Foi a primeira vez que fui ao cinema, ver o Camões. E quando vínhamos, porque naquela sede era só uma sala e dois quartos, um quarto era a direção, um quarto trabalhava o maestro, e era uma sala. Eram bancos compridos e tinha uma tábua onde punham o candeeiro e aí, quando veio a eletricidade, em 1947, foi então quando eu fui para musica, até hoje. P: E o senhor, quando é que começou? Carlos Dâmaso: Com 14 anos, portanto, foi em 1968. A gente entrou para aqui em 1967, para o solfejo. Eram os mais antigos que ensinavam o solfejo, aquilo que viam, aquilo que sabiam. Eles não eram mesmo profissionais, assim como nós também não ficámos. E foi assim. Portanto, na altura, era um músico que andava aí, que era o António Tente Souza, que era o pai do tal colega nosso que já mencionamos aí, que era o Agostinho, que já faleceu, e o senhor Fernando Proença, eram os dois que ensinavam o solfejo. É claro, aprendemos mais ou menos o que eles ensinaram. Se calhar ainda sabiam um bocadinho mais do que eu, eu falo por mim. Portanto, como acabei de dizer, foi em 1968, no dia 8 de Junho, dia da Imaculada Conceição, porque fazíamos sempre a procissão e era a primeira, era a festa da Imaculada Conceição e era quando entravam os miúdos, normalmente entravam nesse dia. P: Qual era o instrumento que tocava? Carlos Dâmaso: Comecei com trompete. Andei a tocar trompete até ir para tropa. Depois ausentei-me um bocadinho na tropa, vim da tropa, casei-me, também não vim. Portanto, por volta de 1975 foi quando fui para a tropa, depois casei em 1980, depois nasceu o meu filho e depois vim em 1981, porque já ele tinha um ano. Depois eu era sócio e regressei. Nessa altura, eu já estava assim um bocadinho esquecido, é o que acontece. Na altura, havia muitos trompetes. Por acaso nessa altura havia muitos músicos aí, estavam era à rasca com o contrabaixo. Andava aí um senhor da Atalaia do Campo, que vinha ajudar um senhor que era o Manuel Costa, que tocava contrabaixo. E ele estava sempre a dizer que não podia, porque também tinha lá banda, que não podia e não sei quê. E eu acabei por vir para o contrabaixo, é mais ou menos uma tuba mas em Fá e em altura um pouco mais do que eu. Mas na altura tive que tornar a reaprender um bocadinho e depois estava a mudar de casa... Mas aprendi e gostei, e gosto. Só tenho pena que agora não consigo, não me aguento, é assim. Posso contar um episódio que aconteceu comigo e com a minha esposa, que eu estava com a minha esposa, não sei se te lembras, numa das primeiras festas que fizemos. A gente estava todos empolgados. Uma vez íamos fazer uma festa, aquilo nem era quase uma terra, eram umas quintas, sei lá, umas quintas e tal... Na altura, agora já se utiliza muito que as pessoas vão tarde, já se vai mais tarde, mas na altura não, às oito horas era para estar lá. Era a Alvorada. E lá tocámos a Alvorada e depois veio o pequeno-almoço. Lá veio o senhor, ainda com o fato de estar a tratar dos animais e, bom, dois rapazes novos, éramos os únicos que lá íamos, dois rapazes novos, então: ”Eu tenho lá duas cachopas a ver se se desenrascam.” E era verdade, mas verdade. Chegamos lá a casa, estava lá a esposa e as duas filhas. Mas quer dizer, a gente ainda não estava muito virado para ali. Tu tinhas 15 e eu tinha uns 14. É claro, ainda não estávamos muito virados. Chegamos lá, eles estavam habituados, aqui já não era tanto, mas lá estavam habituados, se calhar, a sopa... Então mas olhe, nós fizemos uns cafezinhos, não sei se estão… Aquilo era praticamente só água com leite, nada de café, mas lá comemos. É uma história assim engraçada. P: E o senhor também entrou nessa altura? Jeremias Espinho Roceiro: Não, eu entrei para a banda já tinha 38 anos. Apesar de já cá ter os meus irmãos, tinham começado todos novos, mas eu também tinha outro amor, que era o futebol. E então andei… Não quer dizer que não tivesse o gosto na música, o bichinho estava cá. Mesmo não fazendo parte da filarmónica, assistia a muitos ensaios, quando era sábado e estava aqui. Então depois acabou o futebol... P: Aqui há um clube de futebol? Jeremias Espinho Roceiro: Sim, o Carvalhense. P: Então, quais são as associações que há aqui? Jeremias Espinho Roceiro: O Carvalhense, que é o clube desportivo. Temos o Grupo dos Amigos Vila de Mouros, que está para a natureza e atividades ao ar livre. Temos o Centro Social, temos o rancho folclórico também. E somos nós. P: E vocês participam em mais alguma destas associações ou só estão aqui? Jeremias Espinho Roceiro: Eu, por exemplo, antes de estar aqui, fui dirigente e jogador do Carvalhense, por várias vezes. P: E esteve nos dois ao mesmo tempo? Jeremias Espinho Roceiro: Em simultâneo não. Estive nos Amigos Vila de Mouros e na banda. P: E o senhor começou a ouvir, a gostar de ouvir? António José Duarte: Eu, como lhe tinha dito, comecei a frequentar esta casa em 1966-7 e depois andámos a aprender o solfejo, eu mais o Carlos Dâmaso, o Agostinho e mais outro jovem, e tivemos a primeira saída a 8 de dezembro de 1968, dia da padroeira aqui na nossa Terra, a Nossa Senhora da Conceição, em que saímos cinco elementos a tocar nesse dia. E destes cinco elementos, já cá só andamos três, que sou eu, o Carlos Dâmaso e o Agostinho. A partir daí, penso que foi o meu início de atividade no associativismo, como o Carlos Dâmaso, sempre estivemos ligados a esta Casa. Começámos a colaborar logo novos em todos os eventos que a Filarmónica fazia, que eram as nossas festas, eram os bailarinos, vivia-se muito dos bailaricos. Tivemos também situações caricatas. Vendíamos o loto, ajudávamos em tudo isso. Comprou-se uma aparelhagem, que na altura custou 16 contos, umas cornetazitas para se fazer uns bailaricos. E as receitas eram para pagar as aparelhagens. Concluindo, nós que nascemos nas quintas, sempre mais acanhados que os outros, talvez porque não nos atirámos às tais meninas, se calhar se fossemos da aldeia ou da cidade, atirávamo-nos. Mas a gente, sempre mais acanhada e se calhar, já tinha marcado a minha por aqui, nós vendíamos o loto e como sempre havia os espertalhões e quando faltava dinheiro, nós tirávamos o dinheiro do nosso bolso para entregar certinho, era 25 tostões e assim.... e daí bastante sofremos com o loto, que saía sempre ao mesmo, que fazia batota. Francisco Bragança: Eu entrei em 1948 para a música. Naquele tempo, a música só dava as calças e um casaco e um boné. Mas eu andei cinco anos com um casaco emprestado de um músico mais velho e mais forte. E como já trabalhava, nós éramos obrigados a comprar uma gravata. Eu, como não tinha dinheiro para uma gravata, lá na fábrica arranjaram-me um corte e fizeram-me uma gravata. Nas procissões, nas festas, tínhamos de levar casaco, gravata, boné e não havia um boné para a minha cabeça, que era pequenina. Tive de embrulhar uns jornais para não andar a nadar na cabeça. Em 2 de Agosto de 1953 vesti o primeiro fardamento novo, foi lá numa marcha que tocámos também, porque eu tinha um primo que era o Francisco Nabais Bragança e eu sou Francisco Neves Bragança. Mas o senhor Assis, tínhamos o fardamento novo, fez uma marcha com o nome do meu primo e pôs o nome Nabais, porque o senhor Assis quando chamava pelo Chico Bragança, era eu. Em 2 de Agosto de 1952 foi o primeiro fardamento que vesti, completo… E no dia 2 de Agosto, no outro dia fazia 17 anos, nunca me esqueci, que até tinha vontade de dormir com o fardamento. António José Duarte: Eu gostava mais de falar da filarmónica do que de mim. Desde 1968 até 1977, estivemos sempre aqui, certinhos, na banda e com grandes dificuldades chegámos a fazer festas com muitos poucos músicos. Não era fácil. No início de 1978, eu tive de abandonar a banda porque eu comprei uma casita e tal e uma oficina e precisava de ganhar dinheiro para pagar uma dívida. Porque em 1977-78, uma dívida de 1000 contos era muito dinheiro para um jovem de 24 anos, que até pensavam que a gente não pagava. E depois, em 1984-85, mas também não quero deixar aqui de frisar, que eu nunca consegui estar perto da banda, porque sentia que o meu dever e o meu lugar era ali e fazia falta. Se a banda fosse pela rua de cima eu desviava-me pela rua de baixo ou, se houvesse um concerto, eu ouvia de longe. Eu nunca tive coragem de estar perto da banda porque sabia que o meu lugar era ali e que fazia alguma falta, embora eu nunca fosse grande músico, nunca fui, não nasci dotado para isso, mas gosto da banda e gosto da instituição. Em 1983, fui convidado para os 75 anos e foi mais uma facada que me deram, não se esquecendo de mim. Eu lá participei e até ajudei naquela festa, onde também estiveram presentes. Em 1984-85 fui convidado para uma lista para se candidatar aos órgãos sociais e eu não aceitei, eu disse: “Um dia que eu voltar para aquela Casa, volto para músico, que faz mais falta, não para dirigente.” Era na altura em que havia dirigentes com fartura. E essa lista ganhou e o ex-presidente não se esqueceu das minhas palavras e nunca mais me largou. Nunca mais me largou e eu estou muito grato, porque sempre gostei de cumprir e regressei. Sempre gostei de cumprir e regressei. Lá estava o senhor Garcês, que nunca me esqueceu. Vim ao ensaio, porque eu tocava clarinete e naquela altura havia necessidade de alguém para tocar tenor e deram-me o tenor. Faltei a um ensaio ou dois e eu disse: “Não posso. Não posso.” Cheguei naquele quartozinho que estava ali à frente e pedi desculpa ao senhor maestro e disse-lhe: “Senhor Assis, já não posso continuar, porque eu preciso de ganhar dinheiro. Tenho muito trabalho e tenho que pagar a quem devo. E para andar aqui a dar mau exemplo, não quero. São estes os meus princípios.” E o homem, que era...: “Não senhor, primeiro trata da sua vida. Trata da sua vida e depois vem quando puder. E vai tocar aos passos da Covilhã, já”. E eu, que mal sabia tirar uma escala, mas ir tocar aos Paços da Covilhã era um orgulho. Era um orgulho... A procissão nos Passos da Covilhã era um orgulho. E eu, pronto, aceitei. Como gosto de honrar sempre os meus compromissos, cumpri sempre o melhor possível e o Sr. Assis lá arranjou formas para que eu continuasse, até hoje. Em 1977, esta casa levou uma volta muito grande. As coisas não andavam muito bem e por várias vezes as chaves desta instituição, até 1977, foram entregues à Junta de Freguesia. Porque havia muitos dirigentes, mas também, se calhar, não havia os melhores e o senhor Francisco e o senhor António Miguel, que eu sempre muito admirei nesta casa, são gente humilde, talvez, também assim como eu, não os melhores músicos, mas que fizeram parte da banda sempre certinhos e dos órgãos sociais, na altura em que não era nada fácil, não era nada fácil… E as pessoas cansavam-se, entregavam as chaves à junta. Mas também, de cada vez que entregavam as chaves à junta, aparecia gente boa. E em 1977 apareceu gente que estava ligada à Junta de Freguesia e que tinha um músico, que também era um músico conceituado, e que quem vinha à procura da banda a esta terra, primeiro ia à procura daquele, que era o sr. Zé Quinteiro, que tinha um café. Era muito conhecido e era um bom músico na altura. Ele era presidente da Junta e tinha consciência para arranjar direções e foram buscar o senhor Assis. E este deu uma volta, porque entraram bons elementos ligados à junta e ligados à Filarmónica e fizeram aqui uma série de obras de ampliações, que havia uma parte ampliada e havia mais uma parte. Ampliaram este espaço aqui onde nós estamos e esta instituição congratula-se, porque a Junta de Freguesia esteve muitos anos aqui, nas nossas instalações, embora fossem pagas pela Câmara e através também da junta. Mas estiveram aqui, nas nossas instalações, até conseguirem uma sede própria. E o Centro Social também esteve aqui, nas nossas instalações. Portanto, foram bons tempos em que as coisas mudaram e mudaram para bem. Mas em 1988 havia uns órgãos sociais com quem nós, os músicos, não estávamos muito satisfeitos. Não estávamos muito satisfeitos e não havia mais listas. E, ao continuarem, não estávamos a ver as coisas assim com muito bons olhos. E então, depois de um ensaio e pela noite fora, discutimos e conversámos. Também o Maestro João, que disse: “Pá, pronto, só vamos conversar e temos que gramar com esta gente. Temos que gramar com esta gente, não há mais ninguém, temos de gramar com esta gente”. E eu disse assim: “E se a gente arranjasse uma lista?” Às três da manhã, e as eleições para as três da tarde de domingo, às quinze de domingo, pensando que não era possível… E o Maestro disse: “a esta hora, como é que isso é possível?” E eu, que sempre fui aventureiro, levantei-me ao domingo de manhã e comecei a bater às portas. Comecei a bater às portas e conseguiu-se arranjar uma lista e quando foi às três da tarde, as pessoas apresentaram-se aqui, convencidas de que eram os únicos, que era a única lista, e eu apresentei uma lista. Apresentei uma lista, em que não fui presidente, mas que foi o senhor José Pais presidente da direção. Na altura, eu fui presidente da assembleia geral. Portanto, o sr. José Pais foi presidente da direção e eu fui presidente da assembleia geral. O sr. José Pais esteve quatro anos na direção. Foi um novo ciclo desta casa. Éramos músicos, éramos novos, cheios de vontade e queríamos era que as coisas crescessem. Tínhamos visto a ampliação e agora estava fechado, mas havia ali um terracinho, que nós ouvíamos os nossos antigos dizerem: “Este terreno há-de ser nosso e esta Casa há-de crescer mais para aqui”. E depois, começou-se em 1998, esta Casa até tinha tido uma ampliação e os diretores tinham emprestado dinheiro. Tinham custado 70 contos essas obras e os diretores tinham emprestado sete ou oito contos, que era muito, até agora é. Já tinha um agrupamento musical, que abrilhantava os bailes de carnaval e assim por aí. Esta Casa tinha as suas tradições, que eram as comemorações no aniversário, era o encomendar das almas na Quaresma, todas as sextas-feiras da Quaresma. Tinha também os seus bailarinos. Tinha uma tradição que se perdeu, que ainda hoje tenho mágoa disso, que ouvi muitas vezes, que era a bandeira da filarmónica, o estandarte, acompanhar os sócios falecidos para o cemitério. Isso perdeu-se, mas ouvia dizer principalmente ao meu pai: “Eu hei-de ser sócio da banda para a bandeira ir ao meu funeral.” Havia essas tradições... P: E subsídio de funeral, tinham? António José Duarte: Não tínhamos, mas havia a presença da bandeira. E quando entrámos para a direção, tinha havido aqui um baile e atuavam com uma aparelhagem, uma aparelhagem sonora alugada. Alugada por dez contos, para resolver. Viemos e essa aparelhagem não estava paga, era uma dívida com a Egiptana Musical da Guarda. Falámos com o senhor e já não se pagou o aluguer, porque queríamos aquela aparelhagem por setenta contos. E a aparelhagem passou a ser da Filarmónica. Esse conjunto, que era o Privativo FR7, tinha uma qualidade extraordinária. E começámos nós, com os nossos carros aqui pelas terras próximas, à procura de serviços para a banda, para a banda e para o conjunto. Íamos, lanchávamos, levávamos os nossos carros, as despesazinhas, tudo à nossa conta, à procura de serviços para nós e para o conjunto e começámos assim a crescer, com mais serviço para a banda, com mais serviço para o conjunto. Aconteceu que este conjunto era tão valioso que também deu dinheiro para uma viola baixo. Era três contos por cada atuação. Comprou-se a viola baixo, comprou-se um orgão, que também era emprestado, e comprou-se a bateria. Ia-se comprar as coisas de manhã para atuarem à noite e isso foi uma loucura. E começámos também a pensar na remodelação do instrumental. Também não tínhamos carrinhas para transportar o material do conjunto e para transportar os jovens e acabei por fazer o pior negócio da minha vida, porque havia um diretor que tinha uma carrinha e essa carrinha não chegava. Comprei uma carrinha para ajudar a transportar os instrumentos do conjunto. Era velha, avariava em todo o lado, fiz quilómetros a pé, não havia telemóveis, não havia nada. Fiz quilómetros a pé a ver de um táxi para trazer os elementos. Mas pronto, a gente nunca desistia. E pensámos também em remodelar o instrumental. E isso veio também de uma presença de um ministro, um ministro da Energia que veio à Covilhã e também convidaram a Filarmónica para estar lá presente e não havia ninguém disponível. Eu era o presidente da assembleia geral, mas apresentei-me em mais reuniões da direção que o presidente e representei mais vezes a Filarmónica. Eu considerava-me na altura a roda suplente. Acabou a reunião do sábado e não havia ninguém disponível para ir lá. E agora? A seguir ao almoço, eu saí de casa e cheguei aqui à instituição e encontrei dois colegas e fomos lá, à espera do senhor ministro. Era o senhor Álvaro Ramos presidente da Câmara, o senhor Carlos Pinto já era deputado. E o senhor presidente da Câmara apresentou uma fotografia nossa, que estava lá como uma das melhores, senão a melhor banda do distrito de Castelo Branco. E o senhor deputado, que eu não conhecia: “Então quais são as vossas necessidades? O senhor conhece-me?” “Eu não conheço.” Eu pequenino e ele tão alto. “Então não conhece o Sr. Carlos Pinto?” “Não conheço, já ouvi falar”. Disse ele: “bem ou mal?” “Bem.” “Então, mas quais são as vossas necessidades? Se precisarem alguma coisa de mim…” “Precisamos, é que a nossa banda está a crescer em número de elementos, mas a nível de som estamos muito mal. Precisamos de renovar o instrumental.” “Está bem, sim senhor, então temos que falar nisso. Temos que falar nisso e tal, portanto, temos aqui o senhor ministro que tem de nos ajudar.” Apresentou-se a questão na reunião seguinte e ficou um colega nosso de falar com o senhor Carlos Pinto. Três ou quatro meses depois não o encontrou e acabou por dizer que não queria falar com ele, porque ele nos tinha tirado daqui da freguesia e não sei que mais… Acabei por pedir autorização, naquela reunião, se me permitiam que fosse eu à procura do homem. Isso foi um sábado à noite, à segunda-feira de manhã encontrei-o. Fui à fábrica e encontrei-o, não estava, pedi para me ligar. Ligou-me nesse mesmo dia e veio a esta terra. Veio a esta terra, apresentámos a questão, enfim, veio então trazer cá o ministro. Veio o ministro da Cultura visitar-nos aqui à nossa sede, quando lhe apresentámos a questão também da remodelação do instrumental. Conseguiu-se depois, através da Câmara, mil contos para ajudar o instrumental e, da Secretaria de Estado da Cultura, seiscentos contos. A visita desse ministro foi aqui. Mas as coisas não se desbloqueavam e o Santana Lopes, que era o secretário de Estado da Cultura, veio a Belmonte. E nós, a banda, fomos convidados para estar lá. E fui eu, que nunca gostei muito de viagens, que ficava sempre doente… Ninguém me quis acompanhar, fui sozinho a Belmonte, à noite, falar com o secretário de Estado da Cultura para ele mexer as coisas lá em Lisboa, porque estávamos à espera de qualquer decisão e que nunca tinha acontecido. O senhor presidente da Câmara pediu para me apresentar, apresentou-me e tomou os seus dados e o que eu sei é que se desbloqueou a situação. Remodelámos o instrumental em 1990, que se orçamentava por quatro mil contos e nós conseguimos por dois mil contos. Foi um novo ciclo para esta instituição. Foi a tomada de posse do nosso maestro, filho de um músico nosso e filho desta Terra, que ainda hoje o é. O nosso maestro, que foi mais um passo muito importante que nasceu. Também porque nós já fazíamos muitos intercâmbios com outras bandas e com outras instituições e começou-se a desenvolver umas relações que até essa altura não existiam. Criou-se uma amizade, que a gente teve boas relações, amizade, intercâmbios e tudo isso. E um colega nosso, porque nós estávamos para Lisboa, um colega nosso dos órgãos sociais foi a um encontro de bandas também, que tínhamos sido convidados. E foi lá com o diretor, gostou muito de uma banda, foi a banda de Loriga que já estavam para além, para além de nós, com músicos profissionais do exército e de futebol. E gostou muito da banda e propôs que aquela banda cá viesse. Aquela banda foi convidada e nós, já com o desenvolvimento das atividades, tínhamos preparado na fábrica um salão que tinha ardido e tínhamos feito obras de remodelação. Fizemos palcos, fizemos bares, fechámos janelas, fizemos tudo. Este amigo que, como disse, é eletricista, este amigo Carlos Dâmaso, fez uma instalação elétrica para aquilo e foi na fábrica que passámos a desenvolver os nossos eventos, os nossos aniversários, em que chegámos a ter 450 pessoas no almoço de aniversário, porque aqui não tínhamos condições, e passámos a ter sempre uma banda nesse dia connosco, que era o dia 1 de Janeiro, que depois acabou por ser alterado para o dia seguir, porque no dia 1 de Janeiro as pessoas andavam na passagem de ano e às vezes faltavam. E essa banda deu-nos uma lição de que nunca me esqueci, umas palavras que os músicos mais antigos me deram: “Tozé, isto foi para nos rebaixar. Nós sentimo-nos tão pequeninos ao lado deles.” Sentiram que tinha sido para os rebaixar. Carlos Dâmaso: Não é que o que nós tocávamos não fosse bonito, que eu gostava muito daquelas peças. Eram peças até muito engraçadas, mas eram antigas. E eles com novos ritmos, novas peças... E nós ficamos assim um bocadinho, um bocado a olhar para isso... António José Duarte: A minha resposta foi só esta: “Não, não é para rebaixar ninguém, é única e simplesmente para mostrar que nós não somos tão bons como pensamos e que temos possibilidades de fazer muito melhor. É preciso é trabalharmos para isso.” E foi daí que veio o novo maestro, com novos conhecimentos, com novas ideias. E foi sempre a crescer a partir daí. E pronto, passámos a fazer os programas de aniversário muito diferentes. No final do mandato do sr. José Pais, em 1992, como em todo o lado, as pessoas vão-se desentendendo, e nós desentendemo-nos e começámos a ficar fartos uns dos outros, não haja a menor dúvida. E as coisas não andavam muito bem e eu, numa reunião de direção, disse assim: Nós, para acabarmos este mandato, que já eram quatro anos e tudo a correr às mil maravilhas, com idas a França, com renovações instrumentais, com investimentos no conjunto brutais, que o último investimento que se fez em aparelhagens custou dois mil contos. Tínhamos a banda, tínhamos o grupo de dança-Jazz, tínhamos o equipamento musical, tínhamos tudo, estávamos no bom caminho. Então, propus fazermos um aniversário diferente. E o aniversário que começou com uma tarde de Natal, era um mês e tal de comemorações. Começava na tarde de Natal e tínhamos o mês de janeiro todo e encerrava no início de fevereiro, com um artista consagrado, e na tarde de Natal já com artistas de nome, a Mónica Sintra, a Ana Malhoa, tudo. A primeira tarde de Natal que fizemos, tínhamos lembranças para as crianças, trezentas e tal, e crianças a receber, com torneios internos, com provas de atletismo, tudo isso. Quem patrocinou essa tarde de Natal foi a Junta de Freguesia, que nos deu setenta contos só para as prendas. Nesse aniversário fizemos mil e tal contos de patrocínios e depois tivemos uma receita de mil e trezentos ou mil e quatrocentos contos. O encerramento foi com o José Malhoa, lá em cima na fábrica, onde não se cabia. Mil e tal pessoas, foi assim. E assim terminámos aquele mandato, com a presidência do sr. José Pais, mas que era uma equipa muito unida. Aqui os lugares só contavam no papel, porque a trabalhar, era sempre um trabalho de equipa. Entraram novos órgãos sociais, que fizeram um mandato, fizeram certamente o que toda a gente faz, o melhor possível, mas nós, os músicos, que já estávamos habituados a outra coisa, chegámos ao fim do mandato e não estávamos muito satisfeitos. Principalmente os mais antigos. Fez-se aqui obra para eu fazer uma lista e não quis fazer uma lista. E, no próprio dia, lá voltávamos ao mesmo: “Vamos ter de os gramar.” E no próprio dia, já no início da Assembleia, os músicos assim mais antigos: “Tozé, Tozé, Tozé, esta gente e tal, não sei que mais…” E eu tive uma intervenção e o resultado dessa intervenção foi que a lista apresentada foi rejeitada com sessenta votos contra e dezasseis a favor e eles eram dezanove. Até três votaram do outro lado. Pronto, mais um ciclo que se inicia nesta casa, em que me senti na obrigação de preparar mais uma lista. Preparou-se a lista e tivemos o cuidado de depois, em reunião, destinar os cargos, onde me pressionaram e me indigitaram para que eu fosse o presidente. E lá se começou um ciclo que nunca… e até hoje, fui o único músico presidente desta casa. Nunca mais houve um músico, não tinha havido e até hoje. Trouxe benefícios para a casa e trouxe alguns contras para mim. É que eu andava sempre com eles e via o bem e o mal e às vezes a gente tinha de atuar. Mas acho que foi bom, foi bom para todos e decorreu. E a partir daí, eu estive aqui oito anos como presidente da direção. Passaram nos órgãos sociais comigo, a trabalhar comigo, à volta de cento e vinte pessoas. Foram seis listas que eu apresentei. Foram doze anos que estive, oito na direção e quatro na assembleia geral, e conheci como membros dos órgãos sociais à volta de cento e vinte pessoas. Também foi comigo, e connosco, que começámos a meter jovens que nos pediam, que queriam vir trabalhar connosco, que até os mais antigos diziam que eram garotos. Eram garotos, mas gostavam e trabalhavam e cumpriam. Estes oito anos acho que foram uma década de ouro que esta casa teve. Desde aquela revolução de 1988 até depois com o que nós conseguimos, ter uma banda com 56 elementos. Não cabíamos num autocarro, porque os autocarros eram de 52 lugares, quando saíamos a representar o concelho ou o distrito, ou íamos a França. É que nós é que representávamos o distrito e o concelho em qualquer lado, até nos chegaram a chamar a banda municipal, porque nós estávamos em tudo. Estávamos em todas as inaugurações, até a inaugurações de casas de banho nós fomos. Pagavam-nos e a gente lá ia. Fomos inaugurar umas casas de banho, a um dia de semana, às três da tarde. Telefonaram-me, porque precisavam de uma banda, mas têm de pagar, porque nós temos que pagar aos músicos, porque eles vão perder tempo e fomos lá ganhar 150 contos. O que era preciso era nos pagarem. Íamos aos partidos políticos, às campanhas, o que tinham era que nos pagar. Chegámos a fazer, nos últimos anos, a envergar a farda 54, 56, 58 vezes no ano. Que dava mais de um vez por semana. Tínhamos festas de dois e três dias. Foi de tal forma que nós tínhamos a banda com 56 elementos, tínhamos o agrupamento musical, tínhamos a dança jazz, tínhamos um grupo de flautas para entreter os meninos que não tinham espaço na banda, para eles não desanimarem. E também tivemos aqui, em 1998, não foi na altura muito à minha vontade, mas eu sempre respeitei as vontades e a democracia e as maiorias e foi decidido criar-se um rancho folclórico nesta Casa. Mas como o senhor acordeonista na altura não gostava nada de ranchos, e para não ser um rancho, ficou grupo de danças e cantares. Tive que aceitar a decisão que foi tomada e esse esse grupo para o fim de alguns dias abortou. Porque o acordeonista, que Deus tem, que já faleceu, não era aquilo que ele queria. Ele pensava que chegava aqui, que formava um grupo de músicos à maneira dele, com violas, com clarinete. Eu até sabia que isto não ia ser possível, que massacrados já nós estávamos com trabalho, quanto mais. E estava a ver que abortava, acabei por integrar também esse grupo. Ainda fiz parte desse grupo também. Francisco Bragança: Oh, sr. Zé… José António Duarte: Já lá vai, estou a falar de mim, já lá vamos a seguir. Eu até vos peço que se eu esteja a mentir nalguma coisa, que esteja enganado, que me corrijam. Estamos então a falar de mim, e de outros dirigentes associativos que neste período fizeram parte. Também fiz parte cinco anos do centro social daqui da nossa Vila de Carvalho. Tinha sido criado para ser um infantário e depois as coisas também não andavam muito bem. Eu também só apareço quando elas não andam bem, porque quando estão bem, não faço falta nenhuma. E foi formada uma Comissão Administrativa, de que fiz parte dois anos e depois mais três anos, junto com o presidente do Conselho Fiscal. Quando foi inaugurado e deu início à atividade que teve sempre, porque deixou de ser um infantário e conseguimos convencer o presidente de que já era mais fácil pegar numa criança e levá-la para a Covilhã, para a creche, do que pegar num idoso e leva-lo para qualquer lado e que era urgente e necessário um centro de dia. Hoje é um lar e é a melhor, a maior empresa desta terra. Acho que o melhor que temos nesta terra é a Filarmónica e o Centro Social. Nessa altura, aqui pensou-se também, e aproveitando também as condições, nós que pensámos sempre na ampliação da sede social, que o sr. Carlos Pinto, como presidente da Câmara, nunca aceitou. No primeiro mandato nunca aceitou, porque tinha adquirido a fábrica e queria levar todas as instituições para a fábrica e nós sempre recusámos. E daqui ninguém nos tira e se já há alguma rivalidade, uns além e outras aqui, então quando ficarmos porta com porta, sabe Deus… Até diziam que se calhar porta com porta andávamos todos à porrada. Mas já havia um relacionamento muito melhor naquele espaço todo. E conseguimos, com uma nova câmara, com a presidência do senhor engenheiro Jorge Pombo. Manifestámos que era a nossa vontade de batalhar, aproveitando que não estava lá o Sr. Carlos Pinto, e ele nem sabendo bem do que se tratava aceitou a nossa opinião e mandou elaborar um anteprojeto para ampliação da sede. Na oferta de aniversário quis-nos oferecer esse anteprojeto, feito assim à maneira deles, e apareceu cá no aniversário com esse anteprojeto. Então começámos a trabalhar. Quando o sr. Carlos Pinto se voltou a candidatar e foi visitar as associações: “Quais são os vossos problemas? O que é que vocês precisam?” “A ampliação da sede social.” “Epá e ninguém vos tira isso da cabeça, é para fábrica.” “Não é para a fábrica, não, senhor, é aqui que nós queremos estar.” E eis que havia um elemento da junta, e eles queriam este terreno para fazer aqui uma estrada. “Qual é a última proposta que os senhores nos fazem?” ”Os senhores adquirem-nos este espaço, uma vez que querem fazer a estrada para chegar ali a cima e voltar para trás e que não cabem nas ruas e arranjam-nos um espaço com as dimensões que nós precisamos. Agora nós precisamos de uma sala para ensaiar a banda, escola de música, o rancho, as flautas, a dança-jazz, nós precisamos de espaço, nós precisamos agora.” E o Carlos Pinto disse: “Mas a vocês ninguém vos tira isso da ideia.” Trazia um contabilista e mandou-lhe fazer as contas de um financiamento de 20000 contos, pago pela câmara e nós suportávamos o juro. Fui considerado sempre um comunista, que não fui, mas também não sou contra, sou isento, não sou filiado em nenhum partido político. Fui o primeiro a assinar um protocolo com o senhor Carlos Pinto, do PSD, que foi deitado pela rua da amargura. Um comunista assinando um protocolo com um gajo do PSD, mas atrás de mim depois começaram a ir muitos. Resumindo e concluindo, assinou-se o protocolo, também era contra a ampliação. Também era contra a ampliação, dizia até: “Quanto maior é a nova, maior é tormenta.” Mas era um sonho dos antigos e também era uma vontade e um dia, que às vezes também era bom que nos explicassem, um dia eu ouvi uma boca, porque a gente já sabe, no terraço alguém dizer: “Os da banda andam aos anos a falar da ampliação, mas nós havemos de fazer a nossa sede primeiro.” Aquilo caiu-me tão mal. Na próxima reunião cheguei e disse: “Vamos ampliar a sede?” e disseram-me: “Oh Tozé, então você foi sempre contra, agora é que vai aqui”. “Não, desta é para ir.” E pegámos nisso e foi, assinou-se o protocolo e jamais se parou. Resumindo e concluindo, o início das obras foi em novembro de 1999, com o protocolo assinado dos 20000 contos. Com uma obra que tinha um estudo prévio de 38000, segundo o anteprojeto. Foi inaugurada em 7 de julho de 2001, levou dois anos a fazer, foi um ritmo espetacular, ainda com alguns percalços por causa das intempéries. Nada de olhar ao anteprojeto. O salão que vimos lá em baixo tinha menos 40 metros Tinha de ser feito, custou a esta casa 500 contos. Ficou com algumas humidades, ficou, porque passa um ribeiro ali atrás, mas são mais 40m2. E só demos 500 contos ao empreiteiro para deixar tapado tudo aquilo que era rocha e tudo isso. Teve que se assinar mais um protocolo com a Câmara, que se conseguiu sempre dar a volta com a Câmara Municipal, mais 10000. A Câmara, como já não podia mais, o pesidente Carlos Pinto “se o dinheiro não chega, o dinheiro não chega e temos que andar com isso.” Foi uma candidatura de 18000, para recebermos uns 1500. A junta sempre apoiou pouco, porque também a gente sabe que eles não têm condições, não têm receitas, não têm nada. Conseguimos de subsídios 47500 contos e pelos nossos meios aquilo que nenhuma instituição do concelho conseguiu, pelos nossos meios nós conseguimos à volta de 2500. Custou esta obra, a remodelação, que são 200m² em três pisos. A remodelação da outra parte custou, com todas as continhas feitas até a data de inauguração, 68700 contos. Quando estas obras tiveram início, esta casa tinha 6500 contos. Resumindo e concluindo, foi inaugurada a 7 de julho de 2001. Estava o meu trabalho feito, as pessoas, algumas, já fartas de mim. Eu também cansado. E a minha família também massacrada, até demais. Saí, saímos, a 28 de Outubro com a obra paga. Faltava pagar uma fatura de 1600 contos ao eletricista porque não apresentou a fatura a tempo. Com 10500 contos no banco e 4000 e tal em caixa. Com mais dinheiro do que quando iniciámos as obras e com um último protocolo, para que os nossos esforços, que era chato terem que ir lá assinar, os três da frente, o presidente, o tesoureiro e o secretário, para irem lá assinar o termo de responsabilidade, para que se alguma coisa corresse mal, pois entravam nos nossos bolsos, deixámos só os juros pagos do protocolo, os 10000 pagos, porque era para 10 anos e tal. Portanto, penso que foi uma década ou foi uma dúzia de anos do melhor que se pode fazer. E ultimamente, com respeito a mim, estive também ligado a uma IPSS, que foi o Centro Social Cantagalo. Mais uma vez, lá estava o Tozé quando as coisas estavam mal, era uma instituição que estava com 700000 euros de dívida. Contabilizando os juros, ia para um milhão e já tinha perdido o património todo. E foi uma instituição que, disse eu, não é para salvar, que não tem salvação, mas talvez para fazer o funeral, porque os funerais também alguém tem de tratar deles. E em conjunto com a segurança social e a Câmara Municipal, acabámos por decidir colocar os idosos todos em outras instituições e colocar as funcionárias todas empregadas e é essa a nossa atividade. P: Então, vamos ouvir o senhor Francisco, que está ali desejante de contar coisas... Francisco Bragança: No princípio, esta Casa começou com problemas com o seguinte: nós estávamos aqui numa casa, com uma sala e dois quartos. A sala para os ensaios, a sala para a direção e a sala para o mestre. Pagávamos 20 escudos de renda. Era de um senhor cá da aldeia que estava em Moçambique. E a música nessa altura não tinha dinheiro. Devia meio ano de renda ao dono da casa. E nós começámos a resolver para amortecer. Quem não pagava 20 escudos, que já tínhamos meio ano, fomos para uma sede a pagar 300 escudos. Esses 300 escudos arranjámos com uns matraquilhos e um bar e começou a aparecer dinheiro. Então, o proprietário até nos perdoou metade do meio ano. Estávamos aí numa casa, já tinha boas condições, já tinha uma televisão, com o bar e os matraquilhos. E depois, no princípio desta Casa, tivemos um problema, que foi o seguinte. Queriam aqui fazer uma praça por baixo, no fundo. E havia uma comissão que tinha 10 contos. Depois começou-se a fazer já outras coisas e a direção do Carvalhense queria tirar aqui umas fotografias ao local e foi falar na Câmara para eles lhes fazerem uma sede. O presidente da Junta não gostou, porque passaram por cima dele, e chamou a direção da música, da qual eu fazia parte, se queríamos este terreno, para começarmos a sede e nós aceitámos. E esses 10 contos que era para a praça, não sei se era a Comissão quem tinha esse dinheiro, deu-o à música. E tínhamos cá um presidente da Assembleia que era empreiteiro e quando o presidente da Junta veio ver, lançámos a primeira pedra. Aquele senhor, o presidente da Junta, era caçador, disse que um dia que fosse para a caça, porque a casa era para ficar pequenina. Ele queria uma casa pequenina e exigiu-se pôr um quarto aqui dentro, que nessa altura a gente não tinha sede e depois... P: Isso foi em que ano? Francisco Bragança: 1960 e pouco... António José Duarte: Aí, 64-65… Francisco Bragança: O que é certo é que nós aceitámos e tivemos então os dez contos. Esse senhor, aproveitou que o presidente da Junta fosse para a caça e os quartos ficaram maiores. Nós começamos assim. E ainda havia de ser maior e exigimos um quarto. E fez-se aqui um quarto para a Junta. O empreiteiro pôs cá o pessoal e a música pagava todos os dias 40 escudos, que já havia transportes, custava quatro escudos, eram cinco operários, 20 escudos para cá, 20 escudos para lá, eram 40 escudos. Começou-se então a sede, foi-se fazendo, foi-se fazendo, foi-se fazendo… Depois queriam só a sala lá de baixo. E eu disse: “Eu não sei de nada disso, nessas coisas de obras e quintas sou um zero, mas sei uma coisa, a sede já com dois pisos, o telhado é só um.” E eles começaram: “Também és capaz de ter razão.” Fez-se os dois pisos, mas começou-se por arranjar aqui o de cima, depois a arranjar-se o de baixo. Depois pusemos lá um bar. E eu, nessa altura, fazia parte da assembleia, mas havia um músico e de vez em quando chamavam-no à fábrica e outras vezes ele também vinha, porque ele gostava de jogar às cartas, e chamou-me a atenção e diz-me assim: “Olha, faz-me um favor, ficas tu como tesoureiro... eu confio em ti.” Além de ser da assembleia, era tesoureiro interino. E nessa altura eu comecei a perceber uma coisa, porque o dinheiro dos matraquilhos tirava-se à toa. Eu disse assim: “Não, não quero isto.” Quando vínhamos aqui à aldeia, as moedas de um escudo, éramos sempre quatro pessoas ali em cima de uma mesa a contá-lo. Eu levava-o para casa e depois trocava o papel. Eu era o tesoureiro e o homem confiou tanto em mim… Nunca houve azar. A mesma direção ficou e ele pediu-me para ficar como tesoureiro, e eu disse assim: “Eu como tesoureiro não quero, porque eu como sou pobre, não quero que as pessoas digam, que eu que me posso andar a governar da música.” Chamámos então dois rapazes cá da aldeia, que estavam empregados no Banco Ultramarino, e deu-se os papéis e o dinheiro. Dessa altura passou sempre a ir logo para o Banco Ultramarino. Eu nunca quis um tostão. E depois dava-se outra coisa, as festas que fazíamos, os serviços, era de boca. Tanto que nós, às vezes, podíamos ir a uma festa, comer o que nos podiam dar. Mas cumpriu-se sempre. E eu, quando passei a ser tesoureiro, levava sempre dois papéis em branco e assinavam quanto me deram e eu assinava quanto recebi. Mas o dinheiro ia para o banco. Daí em diante começaram a arranjar os contratos, e agora está tudo legalizado. Mas eu também já tinha uma ideia. A casa fez-se, foi-se fazendo, foi-se fazendo até que chegou a altura do doutor José. Estamos numa casa que, agora, só para o céu. Já não pode ser mais nada e estamos muito felizes. Claro que tudo que ele teve, Deus sabe bem, que ele não fez sozinho, trabalhámos a direção com ele e os outros músicos, tivemos de colaborar. E tenho aqui uma lista de presidentes que eu cá conheci, salvo algum que me esqueci. O primeiro sócio, já o conheci só como presidente da Junta, não conheci como presidente, porque quando a música começou a ter presidente, o fundador da banda abalou... Tenho aqui o nome, são 20 e tal pessoas, salvo algum que tenha esquecido. P: Posso ver? Isto é uma brochura que fizeram em algum aniversário? Francisco Bragança: É, é. P: “Comemorações do 100º aniversário.” Digam-me uma coisa, não há mulheres a participar? António José Duarte: Temos na banda, na banda já há senhoras. A mulher aqui do meu amigo é secretária. P: Antes do 25 de abril, já havia mulheres? Francisco Bragança: Não. António José Duarte: Começou a haver mulheres a partir de 2001, nos órgãos sociais. Na banda, se calhar a partir do 25 de abril. Francisco Bragança: Antes do 25 de abril, a primeira mulher foi a Zezinha, fomos fazer os Paços à Covilhã e vieram duas meninas de Gouveia, uma casada e a outra veio com companhia e a partir daí é que veio a filha do meu padrinho, primeiro. António José Duarte: Há quantos anos andamos cá nós sem mulheres? (discutem quando foi a primeira, terá sido pelos anos 1970) Francisco Bragança: Chegámos a ter aqui 14 meninas. A minha filha veio para a música com nove anos e vieram mais quatro meninas, fizeram uma entrevista, e eu disse: “Ouve lá, tu não ficavas bem aqui na música?” E elas disseram: “Olha, sim.” Todas aceitaram, mas só uma é que veio. Essa menina, eu comecei a ensinar e ensinava o meu filho. Mas como eu era muito exigente, o meu filho não queria que eu o ensinasse. E depois essa menina veio, chegou o ponto de ter o sétimo ano de Conservatório. E depois, o pai chamou-me um dia à atenção, e disse-me assim: ”Peço-lhe um favor, você fica como pai da Maria João?” “Isso é que eu não aceito. Sabe porquê? Porque eu nem do meu filho, eu na música sou o pai.” Chegou a um ponto que ela já sabia mais do que eu, quando começou no Conservatório e ainda hoje… Depois, quando o senhor Assis já estava com uma certa idade, chamou os músicos mais antigos. Qual é que metia à frente da banda? E todos disseram, o senhor está velho, mas nós também estamos a caminhar para a velhos. E havia um ou dois que queriam que fosse essa Maria João, mas houve quem dissesse que não. Houve um músico que disse: “O mais indicado é o João, porque o João é homem e a Maria João é mulher.” Ela depois tirou o curso em História, foi para Torres Vedras e ficávamos sem mestre. Depois casou, parece que foi para Rio Tinto e eu só a vi no funeral do pai. Eu já não a conhecia e ela. A cinco metros do pai, levantou-se e agarrou-se mim a chorar. Estava tão comovida, mais do que eu. Mas eu disse ao pai: “Eu não quero ser pai dela na música, nem do meu filho quero ser pai na música, gosto que andem à vontade.” E eu, com o pouco que aprendi, fui sempre muito exigente e o meu filho não queria aprender comigo. Porque aprendia as coisas de cor e punha assim sem olhar para o livro. Foi quando o entreguei então ao senhor Assis. A Maria João continuou. P: Qual foi a Importância que esta participação na banda teve na vossa formação pessoal? Carlos Dâmaso : Sim, a gente forma-se, aprende sempre a ser mais homem vá lá. É a camaradagem, uns com os outros, o convívio, aprende-se sempre. Ficamos mais pessoas. Francisco Bragança: Aqui nesta Casa foi uma família. Já da fundação da banda até hoje passaram pais, filhos, netos, familiares, passaram todos os familiares pela banda. Uns ainda existem, outros... P: E estas histórias vão passando dos mais velhos para os mais novos? Carlos Dâmaso: Estava a falar dos filhos, falo um bocadinho do meu. Quando o meu filho tinha para aí 5,6, 7 anos trazia-o para o ensaio também, nos dias de Verão, nos dias de inverno. Tenho uma história dos dias de Inverno que depois conto. E trazia-o para o ensaio. Existia nessa altura, o Tozé lembra-se perfeitamente, que havia ali um sofá, que um ex-presidente que já faleceu tinha arranjado. E eu trazia-o para o ensaio e começávamos a ensaiar e tal: “Isto é poluição sonora” – era o que ele dizia. Ia para o sofá e deitava-se e deixava-se dormir. Mas a coisa foi andando, e eu disse: “Oh Luís, tu tens que ir para Filarmónica” e ele lá aceitou e veio. Também não gostava nada do que eu tinha para ensinar, porque eu espingardeava com ele. Mas aí já teve, já tinha o maestro, já ensinava. Lá aprendeu, começou também a tocar trompete. Na altura era o meu filho, o filho do Tozé... eram seis. E eles vieram para aqui e o meu filho começou a tocar trompete. Foi na altura que abriu a escola profissional na Covilhã. Abriu, eu sei que andam a recrutar os alunos pelas escolas e o meu filho andava no Teixoso, por acaso, porque eu andava a trabalhar na altura para ali. A minha esposa também trabalhava no Teixoso. Tinha lá a minha sogra. Dava mais jeito. O miúdo saia da escola e ia para casa da avó. E chegou lá a Paula, que é a mulher do Luís Ciprião, a recrutar. Ele diz: “Bom, eu já toco numa banda e tal.” “E então não queres ir para a EPAB (Escola Profissional de Artes da Beira)?” Chegou a casa todo convencido e foi para a EPAB. E depois não foi só ele, eram cinco. Foram e progrediram muito. Nessa altura, a banda dava logo outra qualidade. Agora, pouco a pouco foram saindo todos. O meu filho até agora, atualmente não pode tocar trompete porque teve um problema, não pode fazer muito esforço. Mas muitos deles continuaram. O meu filho, depois foi para Setúbal, para a escola superior e agora é professor de música. Mas já não faz parte. Mas nessa altura, na verdade, essa dúzia de músicos fazia toda a diferença. António José Duarte: Foi um avanço. Carlos Dâmaso: Agora, também para variar um bocadinho também, porque o amigo Tozé sabe a história toda e as datas, e tudo isso, porque estava à frente, esteve aqui à frente uns anos. Mas foi aquilo que a gente já aqui disse, todos nós trabalhávamos, mas tínhamos a cabeça, na altura, era ele, sem dúvida, todos nós estávamos, mas ele era o chefe. Todos nós trabalhávamos, quer dizer, eu comecei de facto na direção como vogal, mas depois também fiz parte do Conselho Fiscal, da Assembleia. Fui presidente quer num lado quer noutro. Mas pronto, o facto de ser presidente da Assembleia Geral, por exemplo, não era só vir aqui às assembleias, ou vir às reuniões que eu queria, nós vínhamos às reuniões todas, às assembleias e trabalhávamos no duro, como qualquer um dos outros. Não fazia diferença, nós trabalhávamos no duro com tudo isso, porque até há um caso engraçado, uma vez que convidava um senhor para a Assembleia Geral, para presidente da Assembleia Geral: “Está bem e tal.” “Mas olhe que é para trabalhar.” “Assim já não quero.” Vou contar uma pequena história, para desanuviar um bocadinho. Uma vez fomos a uma festinha e quando vínhamos de lá, já de noite, passámos numa terra que é Soutelo. Passámos, éramos os dois, na altura… e eles, os mais velhos pararam, “vamos aqui beber um copo”. Ainda não tinha chegado o que tinham bebido na festa, porque quer queiramos quer não, um dia inteiro numa terra, vai-se bebendo. Mas, resultado, nós ouvimos a música, havia um bailarico lá no Soutelo. E eu e o meu amigo Tozé vamos embora para o bar. Eles beberam um copo e foram para o autocarro, não sei quantos, e nós, pronto, não aparecíamos. E vai de lá então o amigo Costa, que era boa pessoa, tocava contrabaixo, chega lá com o cinto e nós tivemos de dar à sola... Agora mais outra, não custa nada. Quando eu mudei de instrumento, foi mais ou menos na primeira vez que foram a França… E o maestro, na altura era um sargento, e ele “vai mudar para o contrabaixo” e tal. “‘Tá bom.” Havia um livro de solfejo, que era o Freitas Gazul, que era onde se aprendia, por ali. E ele começou ali a perguntar-me e eu lá fui solfejando, leu ali umas três ou quatro páginas. “Já não é preciso, vais para o contrabaixo”. Claro que é preciso mais, quanto mais se souber, melhor. Passou ali uns papelinhos. Falámos da Maria João, que era uma colega nossa. Era muito jeitosa, era pequenina, era jeitosinha e boa rapariga, boa moça. E ela sabia e então o Maestro disse: “Agora tens aqui este papéis, tu tocas a requinta e ele toca o contrabaixo, que é para se habituarem”. Fizemos assim uma data de vezes. Aproximava-se a ida à França, foi a primeira vez, 1982, e diz ele: “Você também vai.” “Então mas eu vou fazer o quê?». “Para a fotografia.” E eu disse: “Não senhor, quando souber tocar vou, para a fotografia não.” P: O Francisco vai contar outra história? Francisco Bragança: O meu filho, quando foi para a central, para a Covilhã… Não sei se já havia a sexta classe aqui na aldeia ou não. Quando foi, havia uma disciplina de música. E ele, um dia, disse ao professor “eu sou músico na aldeia”. E ele não acreditou. Um dia fomos fazer os Paços à Covilhã e o professor passou. Ele vinha comigo e o professor: “Agora é que eu acredito que és músico.” A essa disciplina era sempre um cinco. Depois, o meu filho, quando foi para a tropa, era primeiro cabo músico, com o instrumento aqui da banda. E nessa altura fazíamos muita festa a meio da semana. Ele levava daqui uma carrinha da direção e era sempre dispensado. Tanto que os oficiais na tropa diziam: “Este cabo tem mais confiança com o comandante do que nós.” Um dia chamou-o lá, porque o nome dele é José Duarte de Bragança, e o comandante chamou-o lá e disse: “Ouve lá, és alguma coisa ao D. Duarte de Bragança? Tens aqui o teu futuro, queres continuar aqui na tropa?” E ele disse: “Fico muito agradecido, mas não gosto de estar aqui, não há ambiente.” Era Santa Margarida. Ele veio e arranjou trabalho aqui. Depois, por outro lado, começou a meter currículos. Foi então trabalhar para uma escola para Oeiras, depois começou a meter outros currículos, saiu para a administração interna. Já há perto de 20 anos que lá está. Tenho três netos e três netas. A neta andou aqui na música, mas, confesso, ela não tinha muita vontade de andar na música, só tinha vontade porque estava cá uma colega dela. P: Qual a importância que a banda tem na comunidade? Qual é que vocês acham que é a importância? Carlos Dâmaso: Aqui, devo dizer, é a menina dos nossos olhos. Jeremias Espinho Roceiro: É capaz de não haver, são capazes de se contar pelos dedos de uma mão as famílias que não tenham tido alguém ligado, direta ou indiretamente ligado, aqui à banda. Tem realmente muita importância. As pessoas acarinham muito, sempre acarinharam muito. E, já agora, em relação à questão que tinha posto aqui há um bocadinho. Não tenho grandes histórias, porque não é como os meus colegas, ainda cá só ando há 28 anos. Esta Casa também foi sempre uma história de vida para as pessoas. Os responsáveis sempre procurarem incutir aqui nos seus elementos, não só o fator da aprendizagem da música, mas também o fator da disciplina, que era também muito importante. E eu tenho a certeza que das centenas de pessoas que passaram aqui na nossa banda, muitas delas levaram o cunho daquilo que foi feito em termos de disciplina aqui na nossa Filarmónica e estou ciente que isso lhes vai aproveitar para o resto da vida deles. António José Duarte: Eu sei que você não disse isso por maldade, quando disse que o Tozé não fez tudo, e eu quero só dar aqui um exemplo. O Dâmaso e toda a gente que trabalhou, e foi uma das primeiras coisas que disse, foi que nunca aqui houve cargos. Vou deixar aqui uma nota de que equipa nós éramos: a placa de inauguração que estava na entrada tinha o meu nome, mandada fazer pela Câmara Municipal da Covilhã, inaugurada pelo senhor presidente da Câmara, sempre a dizer presidente da direção. Estava a placa feita e eu não quis que o meu nome constasse na placa. Porque era injusto, porque todos trabalhámos e nós até tínhamos o cuidado de quando se escolhia gente para os órgãos sociais, esta casa não tinha transportes, até se escolhia quem tinha carro, que estava a serviço da Filarmónica. Nós, com os nossos carros, assegurámos muitas vezes os transportes. E também já foi no mandato, a partir da década de 1988, que se adquiriu a primeira carrinha para aqui e que depois também acabou por avariar e que depois andámos aqui uma década com os nossos carros rotativos, a fazer os transportes e buscar os músicos à Covilhã e ao Canhoso, em que se pagava táxi. E foi assim que se conseguiu arranjar dinheiro e que se formava equipa e tudo isso. E queria deixar aqui também uma nota. Nessa da placa não quis o meu nome e depois peço aí o favor de tirar uma fotografia, que foi aquilo que ficou dos elementos relevantes na altura da inauguração. E, não sei se disse também, nós na inauguração, e foi a maior inauguração que eu já vi neste concelho, de obras, foi esta, quando tivemos aqui as oito bandas, quando tivemos aqui mil e tal pessoas e que isto foi um espetáculo que nem todas as instituições se prezam de ter: secretário de Estado da Cultura, representantes de Coimbra, representantes de todo o lado... E queria deixar aqui uma nota que me passou, que a minha equipa era de tal forma que, enquanto correram aqui as obras de ampliação da sede, nenhum músico, nem o maestro, recebemos uma pequena percentagem de 30% de cada atuação que é dividido por todos, que calha uma ninharia, que quem não falha nenhuma festa chega ao fim de um ano, e não tem nada, tem 100 euros que são gastos por lá, nos copos… Dois anos que todos nós suportámos sem ninguém receber percentagem, sem receber o seu... E quando chegámos a 2001, que conseguimos salvar as contas e tínhamos dinheiro, pagámos a toda a gente, não se ficou a dever um cêntimo, nem percentagem nem nada, por todo o trabalho. Mas também ninguém tem dúvidas que em todas as equipes há quem trabalhe mais e quem trabalhe menos. Agora, que nós nos conseguimos completar uns aos outros e temos aqui a prova, numa aldeia de gente pobre, de gente das quintas, de gente dos lanifícios, com salários baixos e com tudo isso, a obra que nós temos aqui… Não há muitas instituições que se possam gabar da obra que têm e que está paga. Que há muitas por aí que ainda hoje estão com dificuldade, a câmara a pagar, não são eles próprios. Portanto, isto só se consegue com muito trabalho e com ambiente e com respeito. A passagem pela Filarmónica, para mim, acho que foi a minha universidade. Eu só fiz a escola até à quarta classe. E nasci nas quintas e sempre ganhava. E foi aqui que eu cheguei e foi aqui que, já seguindo o que me ensinavam em casa e que me exigiam, respeitar os mais idosos, os mais velhos, e aprendi também respeitar uma farda. E aprendi a trabalhar desinteressadamente, a trabalhar para o bem-estar dos outros, que é o mais importante. Portanto, não venham cá com histórias, que nem qualquer pessoa serve para ser dirigente associativo, nem toda a gente chega. Eu dizia muita vez “os dirigentes associativos são diferentes dos outros”. E, falando naquilo que dizia o colega Dâmaso e o colega Jeremias, não sei se haverá alguém que passasse por esta casa a que se possa apontar grandes defeitos. Perfeito ninguém é, mas o que levam daqui uma lição de vida e de respeito. E o Sr. Francisco disse que não assumia ser pai da outra menina, eu cá nunca cá trouxe meu filho, mas também lhe disse em casa: “Tu portas-te bem, porque eu ali não sou teu pai.” E eles lá portavam-se da melhor maneira, “mas eu cá também não sou teu filho.” Pronto é assim. Agora que nós assumimos aqui muitas vezes, se calhar, um papel mais importante, que até às vezes os próprios pais, de certeza absoluta. Porque aqui sempre se exigiu que as pessoas voltassem bem e que se respeitassem. E quando assim não o fazem, a gente cá está para saltar em cima. A gente cá está para chamar atenção. E para mim foi uma grande lição, se não fosse a Filarmónica, eu não era conhecido como sou. E há uma coisa que a mim me dá um certo orgulho, e eu já faço sacrifício para cá andar e também já tenho algumas mágoas para com isto, não é com a instituição, é com algumas pessoas que às vezes passam. E aquilo que mais me custa na vida é que se ignore. Às vezes ignora-se e também nunca fui a tribunal e por causa do associativismo já fui três vezes a tribunal. P: Porquê? António José Duarte: Porque quando acabei o mandato, alguém estava aqui, por isso é que eu digo, contra a instituição não tenho nada, mas há pessoas que às vezes estão a ocupar lugares… Nesta terra, toda a gente me conhece. E passou por aqui alguém que pensou que eu que me tinha aproveitado ou que tinha aqui havido algum jogo sujo com o empreiteiro. Porque esta obra foi indicada para ser construída com 50%. E foi comprado tudo aquilo que era possível sem IVA. E depois tínhamos uma escrita que não conseguia enganar ninguém, que é uma escrita interna de entradas e saídas, onde estava tudo escarrapachado. Hoje não sei como é que funciona, mas o senhor doutor Luís deixava cinco euros esses cinco euros tinham um documento. E isso ninguém pode esconder e isso é sagrado e numa próxima Assembleia ou num dia qualquer que eu chegar aqui... E alguém queria talvez chegar a presidente e também passou a palavra que tinha havido aproveitamento, porque essa pessoa dizia que eu nesta terra era um Deus. Não era Deus nenhum, era igual, mas pronto. E pensou em participar ao Ministério Público que andaram... o alvo era eu, depois o secretário e o tesoureiro, depois de oito anos de investigações com muita dificuldade, que não havia um sistema informático como há hoje para arranjar documentos bancários, todos os meus movimentos e daquilo que ganhava e do meu ordenado e da família e tudo isso e dos bens que tinha. Oito anos a ser investigados e a sentar o rabinho no buxo. Para não descobrirem nada, porque não havia nada. P: Senhor Tozé, posso fazer-lhe uma pergunta? Tem estado a dizer que é de uma área rural e os outros dirigentes com quem eu falei que vêm das áreas rurais, que não são muitos, disseram-me que nas zonas rurais havia práticas de trabalho em conjunto na desfolhada, de irem trabalhar nas quintas uns dos outros. Também teve essa experiência? António José Duarte: Não quer dizer que um amigo não vá ajudar o outro amigo… Agora isso na questão da agricultura… não há muito trabalho. Eu só queria deixar aqui também mais uma palavrinha sobre os músicos da Filarmónica, que foram a base principal do início da EPAB. E quantos problemas nós, eu principalmente, tive com a EPAB. O filho do amigo Dâmaso foi chumbado um ano, por castigo, por cumprir os serviços da banda. Porque o senhor Luís Cipriano, quando pedíamos a dispensa verbal, nada, pedíamos por escrito, nada, e não nos dispensavam. Queriam-nos tirar de cá a toda a força para estarem só lá na EPAB e que era para a EPAB seguir. Eu cheguei a receber as convocatórias para reuniões só depois das reuniões, porque tive a coragem de dizer lá no dia de uma reunião: “Quando os senhores vieram para a Covilhã e quando a EPAB nasceu, já cá havia bandas e a banda da Vila de Carvalho já era uma banda conceituada, que os senhores hão de acabar e a banda tem que continuar.” O teu filho chumbou um ano. O meu foi castigado também, até porque acabou por depois fazer a EPAB também e foi para a Inglaterra. Mas daqui da Filarmónica, se não me esqueço, temos pelo menos três professores meus. O meu filho também é licenciado instrumentista e em composição. O Cristóvão, não sei se chegou a tirar alguma licenciatura. E temos agora a Ana Lucas, que é professora também na EPAB. Nós aqui temos seis, pelo menos. O João Luiz que está na Holanda… Muita gente daqui tem saído, portanto. Pronto, para mim, quero-vos dizer, só me arrependo de passar pelo associativismo por ter feito determinadas situações e apoiado gente que às vezes não merece e que depois acabam por ignorar o trabalho dos outros para ver se conseguem prevalecer alguma coisa. Mas cada um só faz aquilo que pode e temos de nos governar assim. E ainda tenho de deixar uma nota. Nós, em relação ao associativismo, sempre fizemos muito. Olhe, em 2000, fizemos aqui um colóquio sobre associativismo, aqui na sala de ensaio, O associativismo no novo milénio, quando tivemos aqui trinta e tal associações do concelho. Nós tivemos o representante INATEL e faça um favor, depois de tomar nota disso: nós também somos filiados no INATEL, como CCD, Centro Cultural Desportivo, para que tivéssemos oportunidade de nos poder candidatar a subsídios. Porque numa determinada altura quem não tivesse esse Estatuto não se podia candidatar e nós sempre recebemos alguma coisa de lá e continua-se a receber, mas temos que dizer aqui que também estamos filiados no INATEL e na Federação de bandas. Tivemos o representante do INATEL, tivemos a vereadora da cultura, tivemos o representante do IPJ de Castelo Branco. E estávamos em qualquer parte sobre o associativismo e sempre a debater as nossas ideias e a apresentar as nossas questões. Portanto, esta Casa é, na nossa freguesia, a menina dos nossos olhos, como dizia, sempre e sempre foi acarinhada de tal forma que, muito novos ainda, hoje já é diferente, mas íamos no cântico das janeiras, que é uma das tradições mais antigas, e sempre se recolhia alguma receita, que era com essa receita com que se colmatavam as despesas do aniversário, onde nós por vezes à uma e às duas da manhã, lá em cima na serra, sem luz, às vezes sem se saber onde se punham os pés e as pessoas, porque era a banda, levantavam-se e abriam-nos a porta e davam-nos dinheiro e davam-nos de comer e beber. Sempre, sempre, acarinhados por todo o povo. Eu não sei se haverá alguém que tenha coragem de dizer que não gosta da banda. Francisco Bragança: E somos uma instituição de utilidade pública. António José Duarte: E a medalha de Mérito Cultural. Tenho-lhe a dizer que nesta Casa foi a vez que me senti mais orgulhoso. Na Câmara Municipal, sem ninguém saber, também foi uma batalha para se conseguir desde 1988, quando recebemos a medalha de Mérito Municipal, e quando chamam o representante da Filarmónica para receber a medalha, que eu era o presidente, fardado, e eu começo a deslocar-me para receber a medalha do Mérito e a banda, no corredor; a tocar o Hino à Alegria, foge, fiquei sem palavras, ainda hoje me arrepio. E ver aquela plateia de gente importante e nós da aldeia, tão simples, e tudo a levantar-se e a aplaudir, para mim foi o momento mais cheio que eu senti… e por todo o lado onde a gente passava somos aplaudidos, acarinhados. E só faço votos de que possamos continuar assim, orgulhosos da Filarmónica, orgulhosos do nosso trabalho, de cada um fazer aquilo que pode e consegue, e dizer que isto só é possível se as nossas famílias deixaram. Francisco Bragança: Nós, a nossa aldeia, foi conhecida através da banda. Havia um senhor que ia ao Algarve buscar frutas e um dia ele soube, era o Carvalhinho, ele soube, lá o vendedor disse: “Quem é?” “É o meu sogro.” “De onde é que ele é?” “Da Aldeia do Carvalho”, “Huhhh, tem uma grande banda” – no Algarve! E outra coisa, se a senhora soubesse, com 72 anos e outros com 50 e tal, os sacrifícios que fizemos toda a vida de músicos. Mas nunca me arrependi e nunca hei-de me arrepender, tenho pena de já ter esta idade, porque eu vim três vezes, foi ao princípio, foi ao meio, e com esta idade, porque eu tenho pena, porque a pandemia deu muito cabo de mim. Eu não faltava a um ensaio, não faltava a uma festa, ainda que não tocasse nada, mas eu ia sempre. Agora veja, 72 anos de músico. Como é que a minha mulher, há 61 anos, o que tem passado comigo na música. Carlos Dâmaso: Sr. Francisco, não é só você que gosta da música, que ela também gosta, senão... António José Duarte: Há muitas que não gostam. Francisco Bragança: Em 73 anos, no verão, no domingo, outro domingo, outro sábado, outra quinta-feira, sempre a música. E antigamente, hoje não, mas antigamente, lembro-me perfeitamente: nas festas tínhamos que andar de casaco, gravata, com o boné no braço. Nas procissões, às vezes procissões de mais de uma hora, no Verão, quando chegávamos ao fim do dia, podíamos torcer a camisa. Se esta festa fosse ao sábado, ao domingo tínhamos a mesma camisa. Hoje, felizmente já temos mais camisas. Já podemos ir sem camisa, mas já vamos com o boné. É muito diferente, mas tudo compensa no fim do serviço. Porque nós, agora não, mas quando íamos para uma festa, antigamente, não havia aqui estrada, tínhamos que ir pela Covilhã. As pessoas já sabiam, olha, a música lá vai para alguma festa. Quando vínhamos, olha a música e acho que dávamos uma volta à aldeia, toda a gente sempre bem disposta. Agora o autocarro fica aqui, já não damos estas voltas. E numa ocasião fomos fazer uma festa e não estava aí a estrada. E as músicas tinham umas estantes e deixámos as estantes no autocarro. Porque muitas vezes deixávamos as estantes lá em cima na garagem, para não andarmos com as estantes. Numa altura, deixámos as estantes no autocarro. No domingo a seguir precisávamos de ir a Coimbra. Levamos as estantes ou não levamos as estantes? Tem que se comprar muitas. Passado um ano apareceram as estantes na Guarda, na central de camionagem. Estavam lá, dentro de um saco. Alguém... No fim, quando comprámos umas estantes é que apareceram as outras estantes, porque naquela altura precisávamos das estantes para tocar. P: Qual é que acha que é o futuro do associativismo? Francisco Bragança: Muito, muito mal, que pernas vão falhando. A pandemia deu cabo de mim, fiquei muito em casa. Carlos Dâmaso: Como estava a dizer, vai ser um pouco difícil, porque os habitantes são menos. Antigamente, como eu costumo dizer, não havia aí nenhum buraquinho onde não se visse gente. E agora não, agora a maior parte das casas estão sem ninguém. Logo, há muito menos gente para vir para cá. Também para se arranjar as direções é sempre um castigo. As pessoas estão acomodadas em casa, não querem os trabalhos que a gente tem ou teve, tudo isso. Mas pronto, com um bocadinho de jeito, depois aqui o Jeremias dirá, porque ele está um bocadinho mais dentro agora da escola de música que temos. Têm vindo miúdos, que não são propriamente daqui, e talvez assim se consiga colmatar, oxalá que sim, a falta de elementos, e esperemos que a coisa vai vingar e espero bem que sim. Jeremias Roceiro: Ao falar em associativismo, refere-se aqui à nossa banda? P: Em geral, mas também especificamente aqui. Jeremias Roceiro: Em geral, nos grandes centros, haverá sempre pessoas para continuarem a dirigir os destinos do associativismo. Em relação aqui à nossa terra, estou um bocado cético em relação a isso. Quer queiramos quer não, temos aqui quatro associações e as pessoas são cada vez menos e são sempre praticamente os mesmos a rodar de umas para as outras, ou então vão-se mantendo aqui nos cargos durante anos e anos. Chega uma altura que tudo satura e as ideias também começam a escassear e estas associações vivem muito também de ideias novas, de sangue novo e da renovação. P: Vocês até têm um presidente muito novinho. Jeremias Roceiro: Sim, graças a Deus, e bastante ativo. E vamos ver como é que nós, nós já tínhamos dificuldades quando chegava a altura de fazermos a renovação das direções, tem havido dificuldade e acho que no futuro vai ser um bocado complicado. Em relação ao futuro da nossa banda, nós já tivemos, sempre tivemos, ao longo da vida da banda, altos e baixos, atingimos, se calhar o auge nos anos 80. Em 1980 começou-se a dar a revolução. E depois, a partir daí, temos vindo a notar, também fruto da escassez de elementos para a escola de música… Já temos que andar aqui nas aldeias vizinhas a recrutar com bastantes custos para a nossa banda, temos que pôr transporte. Isso é complicado. Em relação ao futuro, vamos ver. Esta situação da pandemia, numa altura em que nós estávamos com uma injeção de sangue novo, inclusive de alguns membros que já tinham estado na banda, tinham abandonado por várias razões e conseguimos trazê-los de novo para cá. Nós estávamos e estamos muito contentes com isso. Esta situação da pandemia veio dar aqui mais um abanão e por aquilo que nós estamos a ver, retomámos agora os ensaios, estamos a ver que as coisas estão-se a complicar outra vez As nossas esperanças estão realmente na escola de música. Vamos ver até que ponto é que nós conseguimos preparar elementos para num futuro, o mais próximo possível, integrarem as fileiras da banda. Porque se nós não conseguimos, acho que vamos passar aqui um bocadinho mal. Está aqui o meu colega ao lado. Estão ali outros colegas, um toca tuba e o outro colega estava no contrabaixo. Nós estávamos aqui a contar com eles e um por um motivo e outro por outro, acatamos com tristeza a decisão deles virem praticamente a abandonar. Carlos Dâmaso: Vocês vêm com tristeza, com mais tristeza vejo eu. Porque é uma coisa que eu gosto de fazer e agora vejo-me sem poder. É muito difícil. Ainda agora tocou o telefone, quarta-feira, às 15 horas, cirurgia de ambulatório, vou lá levar umas infiltrações, mas não é isso que vai resolver. Jeremias Roceiro: Mas era o que eu estava a dizer, uns por uns motivos outros por outros, a nossa esperança está realmente na escola de música. Temos aí um punhado muito razoável de novos aprendizes e com vontade, porque eles, contrariamente àquilo que nós estávamos a pensar, eles não desanimaram com este tempo todo de interregno. Quando eles foram convocados, apareceram e tiveram aulas online também, compareciam. E foi com bastante alegria que registámos isso. Vamos ver quanto tempo é nós vamos demorar a prepará-los para efetivos da banda. P: Vai correr bem… António José Duarte: Queria dizer, com respeito ao associativismo, vejo com alguma preocupação, relacionada com a parte humana. Porque, por muito mal que se esteja hoje, hoje há mais apoios do que havia no passado. Hoje há mais apoio. Hoje a câmara apoia as atividades e os programas de atividades. E, bem organizados e bem preparados, eles pagam tudo isso. E ainda dá para ganhar algum dinheiro. Agora, no passado, que me recordo, para se comprar um clarinete para esta casa, que custava oito contos, saía-se a fazer um peditório ao povo. Hoje, as coisas, com os serviços que se vai prestando e com os apoios que vai havendo, as coisas, em questão de apoios, estão mais facilitadas. Agora, em questão de gente estão mais difíceis, uns porque a idade já não permite, estão cansados de ouvir, enxovalhados e difamados. Porque a gente, para estar descansadinhos, estar com a família, é não se meter em problemas. Por aí, acho que vai continuar a haver falta de dirigentes. Na nossa terra, temos muitas associações que, no meu entender, bastava três associações nesta terra, e com a Igreja, quatro. Era a Filarmónica, derivada à cultura, o Carvalhense, derivado ao desporto, e abrangia-se aqui os Amigos de Vila de Mouros ao Carvalhense, por exemplo. O Rancho Folclórico, com o Grupo Danças e Cantares, que nasceram aqui, e que agora, depois em 2003 ou assim, não houve entendimento e saíram, é mais uma associação. E depois, é como diz aqui o amigo Jeremias, arranjar dirigentes para tantas as instituições não é fácil e se tivessem todos... e as capacidades que a Filarmónica tem de instalações, abrangia-se aqui e tornava-se aqui uma instituição muito mais forte e com mais capacidade de arranjar dirigentes. Mesmo com respeito à banda, espero que se consiga sempre arranjar dirigentes associativos, há sempre uma parte que é muito importante, que é a base também dos músicos fazerem parte dos órgãos sociais. A banda, espero que seja mesmo um fruto da escola de música, que ao longo dos anos tem sido, mas agora que de outra forma, e outro professor, e outro método de ensino que conseguem desenvolver melhor do que nós, que que foi com um ensino muito fraquinho e que foi também à base da boa vontade e de muito trabalho. Eles agora são preparados de uma forma que é mais fácil e estão mais motivados e é derivado disso. Agora é complicado, porque chega a uma determinada altura e começam a sair, a estudar para fora e outros começam a namorar e outros um emprego fora, e não se pode esperar por músicos para andar 50 anos e nunca mais 70 e se calhar nunca 20 ou 30, e será por aí. Portanto, terá que haver sempre um trabalho exaustivo na escola, para que haja sempre um colmatar... E espero que outros apoiem o associativismo, que dêem valor às pessoas que se disponibilizam gratuitamente para se entregar ao bem dos outros, porque isto do associativismo é também a felicidade de muita gente. Hoje já não é tanto, porque há os meios para que as pessoas se entretenham em casa. Agora antigamente, era nas coletividades que se juntava, se conversava, se falava de tudo e que se convivia. Hoje até já não há os convívios como antigamente, que a gente trazia um garrafão de vinho e umas febras e assávamos, e passava-se a noite à volta da lareira, não era? Enfim, mas eu queria deixar aqui também só uma nota com respeito a mim. Uma experiência muito grande, com passagem pela Filarmónica e o associativismo. Mas quero dizer-lhe que a ação social também é muito gratificante. Estamos aqui, na Filarmónica, como acreditamos, numa situação de aprendizagem da música e tudo. E depois, no social é outra aprendizagem, com os avós que têm uma sabedoria do passado e experiência. E que também é muito gratificante, também foi com muito gosto que passei por essa experiência. E nada de arrependimentos, nem da parte da Filarmónica, nem da ação social. P: O Tozé também não foi de uma Comissão de Melhoramentos da freguesia? António José Duarte: Eu comecei logo cedo, o meu amigo Carlos sabe, que comecei logo nas fábricas, logo ligado às comissões e logo para o sindicato e comissões de reivindicações e de transportes, estive oito anos também na Assembleia de Freguesia. Não falto a uma assembleia de uma coletividade, não falto a uma Assembleia de Freguesia, gostei sempre, nunca me preocupei em estar a ler jornais da bola. Mas tudo o que dizia respeito ao nosso concelho, ao associativismo, estive sempre muito ligado, não só da nossa terra, assim como do concelho, estive sempre muito ligado a isso. Até mesmo os políticos, que são uns mentirosos, eu também gosto de os ouvir e de dar a minha opinião. Às vezes até me desafiam para falar e quando eu não intervenho já me dizem: “Tozé…” E depois não gostam do que eu digo. Sempre fui assim, muito frontal e de exprimir aquilo que sinto, o meu ponto de vista, não quero dizer que esteja certo, a maior parte das vezes até estarei errado… P: Agora estava a falar da contestação. Aqui esta zona, que é uma zona muito industrial, com uma grande tradição operária, também tiveram aqui grandes greves nesta freguesia? António José Duarte Fiz parte desses piquetes que foram aí feitos na altura e andei sempre debaixo de fogo. Eu fiz parte dessas coisas, mas quando precisava de ganhar dinheiro e alguns precisavam de dormir, eu fazia a parte da manhã e os outros faziam a da tarde, eles dormiam, eu fazia a parte da manhã, logo às 4 e 5 da manhã, para a porta das fábricas a impedir que alguns… Se calhar também não devíamos fazer, que isso também não era grande luta, pronto, mas isso aconteceu na altura. Depois, de tarde vinha para a minha oficina. P: O Jeremias também ia? Jeremias Roceiro: Não, piquetes não, fiz muita greve, não é? Mas piquetes por acaso não. Carlos Dâmaso: Eu sempre disse aqui para o meu amigo: “Oh Tozé, tu gostas mesmo da política e tal”, eu nunca andei muito nessas… P: Qual é que era o sindicato? António José Duarte: Quando estava aqui na fábrica, lidava mais com os sindicatos dos lanifícios, que estive ligado aos lanifícios, embora a nossa profissão seja serralharia, mas estávamos ligados ao dos lanifícios. Depois também estive ligado ao metalúrgico, porque, já nos últimos anos, eu era o chefe de serralharia ou chefe de manutenção da empresa. E havia uma situação em que a empresa queria fazer uma remodelação total e queriam então despedir 28 pessoas e queriam reduzir horários de trabalho, não sei que mais e tal. E para aquilo não ser aprovado tinha de haver uma comissão de cinco pessoas, de cinco trabalhadores, e já tinha havido três plenários em que não se tinha conseguido essa comissão. E eu já estava cansado daquilo, qual o espanto dos meus patrões, com muita consideração que tinham por mim, e que está aí, que somos amigos. Não é muito fácil um trabalhador ser amigo do patrão, mas pronto, eu tive essa sorte de ser. Eu levantei o dedo e “contem comigo”. Era preciso cinco pessoas, apareceram logo dez. E os patrões deram um passo atrás: “Tozé...” Acabou o plenário, a comissão foi formada e eu dirigi-me a eles e disse: “Não se preocupem, os meus princípios são estes, os senhores têm os seus direitos e os trabalhadores também têm os direitos deles e vamos trabalhar para que isto se resolva, porque senão nunca mais se resolve. Agora podem ter a certeza que eu não vou estar contra vocês, nem vou estar a favor, vamos à procura das leis e as leis são para cumprir.” E assim foi feito. Vi-me aflito com o sindicato, que abandonou o processo. Telefonei, fui apenas a uma reunião. O presidente do sindicato, o Luís Garra, chegou no final, o único que levou um papel era eu e uma esferográfica. Isto nem o que se escreve é verdade, amanhã fará. E pronto e lá esteve e depois o presidente disse: “O Tozé já disse coisas que eu não tinha coragem de dizer.” E nunca mais lá voltou. Olhe, problemas com a segurança social, com a ACT, com o sindicato. Resumindo e concluindo, tive de dizer frontalmente à jurista da ACT, “como é que uma jurista põe em causa a defesa da lei que está aqui? Em quem é que podemos confiar? A segurança social não resolve, o sindicato não resolve, a ACT não resolve, isto só é resolvido internamente”. Resumindo e concluindo, ficou tudo como começou, não despediram ninguém, não mexeram horários, não mexeram nada. Agradeceram-me ter feito parte: ”Se não fosse você, não saíamos disto”, e ficou tudo igual. O que é que eles dizem, há direitos de uma parte e de outra, as leis é que mandam. Portanto, no fundo, a minha vida foi quase sempre assim um pouco, até um dia destes fiz uma publicação no Facebook com respeito à nossa freguesia e de uma publicação que o presidente fez, fiz também um comentários, que não costumo fazer e ele telefona-me às 11 da noite para me dar a notícia em primeira mão, por causa do asfalto também da estrada 30 de Junho, que é da minha zona e que estou sempre a chatear-lhe a cabeça e da Câmara. E a minha publicação foi logo apagada… Tenho a minha mãe numa cadeira de rodas há 10 anos, há 10 anos que, para a deslocarmos numa cadeira de rodas até a minha casa, que não é assim tão longe como isso, que era mais fácil do que metê-la num carro. Tive que arranjar uma rampa para a meter e amarrá-la lá dentro e tal, porque não se consegue andar lá, cheia de buracos. Diz que desta vez que vai ser arranjada e só publiquei. Faço votos para que a nossa mãe, porque nós somos oito irmãos, não criou nenhum professor, nem doutor, mas criou trabalhadores, que também são necessários. Faço votos para que a nossa mãe ainda possa ver e usufruir de um pavimento na sua rua, para poder ter melhor assistência e visitar os filhos. Política não gosto muito porque os políticos são ... e eu gosto muito das coisas justas. P: Ninguém é filiado em nenhum partido? Francisco Bragança: Não, os políticos é tudo... P: E religião, são todos católicos? Jeremias Roceiro: Eu sou. P: Praticantes? Jeremias Roceiro: Qb. Carlos Dâmaso: Mais ou menos. Jeremias Roceiro: Praticar é mais difícil. Francisco Bragança: Pois, 85, 90%. 100% penso que não há ninguém. António José Duarte: Mas se quiser também alguma informação sobre o associativismo aqui da Terra, se quiser frisar o Carvalhense, também a fundação e a atividade, eu também... Foi fundado em 1953 e está ligado ao desporto. Está prestes a iniciar umas obras de uma sede social. Sobre os Amigos de Vila Mouros, o Jeremias é mais capacitado do que eu. Jeremias Roceiro: Fui fundador da associação. Pertenço à equipa de fundadores da Associação dos Amigos de Vila Mouros. P: Qual é a atividade que desenvolvem? Jeremias Roceiro: É montanhismo, atividades ao ar livre. P: Foi fundada em que ano? Jeremias Roceiro: Não sou capaz de dizer, agora estou um bocado afastado, já estou há uns anitos afastado lá, mas tinha que estar a pensar… António José Duarte: Mas já foi.., Enfim, eu já era presidente da direção... Jeremias Roceiro: 25 anos, deve ter uns 25. António José Duarte: Olhe, nessa altura havia parceiros para a fundação das coisas. O único parceiro desfavorável foi o presidente da direção da Banda Filarmónica. Porque já nesta altura entendia que não era necessário criar mais uma associação, mas depois fiz-me sócio. Convidaram-me a ser sócio: “Oh Tozé, você é contra a Associação Amigos de Vila Mouros, mas tem que se fazer sócio.” “Eu não sou contra a Associação Amigos de Vila Mouros. Fui contra a sua criação. Tal qual como um filho que nos nasce e não é desejado, mas temos de o criar. Portanto, dêem-me uma proposta que eu faço-me sócio.” Agora, naquela altura entendia, porque também foi criado, e tu também sabes bem disso, porque começaram aqui. E eu admiro a capacidade de agir, que nem toda a gente tem capacidade para estes cargos, porque não há um entendimento. Porque se há um entendimento aqui, podia estar aqui. -
4 de junho de 2021
José de Jesus Nunes Simões
José Simões: Eu nasci na freguesia chamada de São Pedro, que depois foi extinta e integrada na União de Freguesias da Covilhã e Canhoso, que fica ali próximo da estação dos caminhos-de-ferro. Nasci em 1940 e vim com sete anos para o Refúgio. Aqui fiz a escolaridade básica, era o chamado primário, e entrei no mundo do trabalho com 11 anos. Fui trabalhar para uma mercearia da cidade. Entretanto, fui progredindo na carreira, mudei de entidade patronal para outra com melhores capacidade, uma loja maior. Depois fui para a tropa fazer o serviço militar e aos 20 anos fui incorporado no serviço militar, ainda não tinha começado a guerra colonial. Eu fui para a tropa em 22 de Janeiro de 1961 e a guerra em Angola começou no dia 15 de Março desse ano. Então eu sou mobilizado para Angola, fui dos primeiros militares a ir para a frente de batalha. Eu não tive lá nenhum tipo de problema, felizmente, vim de lá passado 27 meses, em 1963, com boa saúde, boa disposição, tal como tinha ido, sem traumas de qualquer espécie, nem físicos nem mentais. E, na altura, em 1961, eu saí daqui do Refúgio, que já vivia aqui desde os sete anos, aqui bem próximo, numa quinta, porque os meus pais eram agricultores, eu nasci no meio da ruralidade. E então eu fui daqui, e estava já a notar-se o embrião para a criação de uma coletividade aqui na zona, que é o Grupo Recreativo Refugiense, que está ali em frente. Eu fui em julho, e em julho/agosto… Eu tenho tudo documentado, eu tenho em meu poder todas as cartas que escrevi, à minha namorada e aos meus pais, e todas aquelas que recebi deles. Tenho tudo em micas, por ordem da data, tenho tudo arquivado. Então eu recebo uma carta da que é hoje minha mulher, hoje e há muitos anos, mas na altura minha namorada, a dizer: olha, já temos um grupo no Refúgio, tu já és sócio, que eu pus-te como sócio. Então eu sou sócio fundador sem nunca ter feito nada por isso, porque entretanto eu estava a fazer o serviço militar. P: Deixa-me só perguntar uma coisa, depois voltamos ao Refúgio. Ontem falei com um senhor que vinha também de uma zona rural e que me disse que achava que havia certas práticas de entre ajuda entre as pessoas do campo, que podem ter sido importantes para a origem do associativismo. Faziam a desfolhada em conjunto, ajudavam-se nas vinhas uns dos outros… Isso também acontecia aqui no Refúgio? José Simões: Acontecia, chamava-se ir merecer. Ora eu vou merecer ali o António, merecer era a troca, ele já tinha ou estava para vir fazer um trabalho à minha propriedade e eu ia fazer à dele, era a troca de funções. Havia trabalhos, realmente, como a senhora referiu, a desfolhada, a malha do trigo, do centeio, era uma zona muito rica em trigo e absorvia de facto muita mão-de-obra. Assim como a monda, a monda do trigo, era executado por mulheres, depois havia a ceifa, também era muito desse género, também a merecer. P: Como é que se organizavam? José Simões: Aquilo era já tradição, já sabiam. O vizinho do lado já sabia que ia ser convidado, porque também precisava do trabalho do outro. Havia essa troca de trabalhos, que chamava-se, aqui da zona, merecer. Eu vou merecer o Manel, que o Manel já cá veio, vou merecer o Manel, porque ele há de vir aqui. Colaboravam nas malhas, nas ceifas, na monda, tirar as ervas daninhas do milho. O trigo era sachado... P: As mulheres também faziam isso? José Simões: As mulheres faziam o trabalho das sachas e das mondas, era só de mulheres. Também faziam essas trocas. Os homens não se metiam nisso, assim como as mulheres não iam ceifar, nem iam cavar. Era um trabalho mais pesado, era entregue a um homem. P: E elas organizavam-se entre elas? José Simões: A organização podia ser comum, podia ser o homem a dizer: olha preciso que lá vás ajudar a minha Rosa que ela depois vem cá e tal. Isso podia acontecer, não é que tivesse de ser mulher com mulher, não havia esse preconceito. A sacha era feita por mulheres, a monda era feita por mulheres. A ceifa e o cavar da terra era feita por homens. A malha era feita por homens, com um mangual. O mangual era um utensílio que procedia à debulha do milho ou do trigo. Era bater na palha e os cereais iam caindo. Portanto, a função do homem era malhar e depois vinha a mulher com os vassouros (chamados vassouros, que são umas vassouras de giesta) e varria a eira e juntava a semente. Depois vinha o homem, que fazia a limpeza da semente, com uma pá que limpava a semente e vinha o vento e levava a semente que era mais pesada para um lado e o vento levava os resíduos para o outro. Portanto, só faziam este trabalho quando havia um bocadinho de vento. Esperavam que houvesse vento para desenvolver este trabalho. P: E quando iam a merecer, iam vários? José Simões: Iam vários… dependia do trabalho e da extensão da exploração. P: Como é que se escolhia quem ia? Era por relações de amizade? José Simões: Era organizado por família, era o primo, era o tio, era o cunhado e os vizinhos mais próximos, que eram amigos. P: E depois nesses trabalhos, como este que me descreveu, juntava-se bastante gente? José Simões: Juntava-se bastante gente. Dependia do trabalho, se o trigo era muito. Dependia sempre do espaço. P: E depois, faziam um convívio? José Simões: Claro, o convívio era indispensável, à volta da mesa ou da adega, os homens, era indispensável. P: Então acha que o associativismo pode vir daí? José Simões: Não sei, isso não sei. Até porque o associativismo vem de tão longe não é, e a senhora tem prova disso, que não sei se é por aí. P: Mas, por exemplo, especificamente aqui no Refúgio? José Simões: Aqui no Refúgio, o desporto rei levava muitas pessoas a organizar-se. Portanto, isso era uma fonte de obrigação de reunião, o futebol: 11 para cada lado, era logo 22, mais os suplentes, mais não sei quê, havia logo ali um grupo de 30 ou 40 homens. A mulher, nem pensar, a mulher não jogava à bola. P: Mas foi sua namorada que o inscreveu. José Simões: Que me inscreveu, sim, mas jogar à bola não. Depois acabou por haver necessidade de informação. Tinha aparecido a televisão, em 57, as pessoas não tinham capacidade financeira para adquirir o televisor e era o Campé, que era o restaurante do sopas, era o Campé, era o único aqui da zona que tinha uma televisão. O homem que era o dono era assim um bocadinho bruto e metia-se nos copos e quando estavam lá a ver o futebol: tudo para a rua! Estavam a ver a televisão: tudo para a rua. Vou fechar a porta e tal e fechava. E as pessoas começaram a ter mais necessidade ainda de se reunirem à sua vontade, de uma casa onde tivessem o seu televisor e vissem a televisão o tempo que quisessem. Ele fechava à meia-noite. Também à meia-noite a televisão acabava, não era como hoje, e era só um canal. Portanto, isso foi uma das razões. Depois, a guerra do Ultramar também trouxe a necessidade da notícia, saber do acontecimento, do que estava lá a acontecer. É através da televisão que se sabia. Tudo isso foi conjugado para que esta coletividade nascesse. P: Então, conte-me lá como é que foi: a sua namorada escreveu-lhe a dizer que já o tinha feito sócio... José Simões: Que já havia o grupo, que já me tinha feito sócio, era já sócio, ela cá pagava a quota de um euro por semana, entretanto eu regressei. Eu fui criado num ambiente rural. O meu pai era um excelente executante de concertina. E eu regressei e toquei concertina. Eu desde que me conheço como pessoa humana que me lembro do meu pai à noite. Acabava o trabalho do campo, que era duro, e chegava e tocava a concertina e a minha mãe cantava e era uma alegria lá em casa. E eu sempre senti essa necessidade da união. Como já tinha nascido aqui um agrupamento, eu integrei-me aqui. Entretanto, veio o ano de 1966 e foi criada aqui uma comissão de festas para comemorar o quinto aniversário do Refúgio, do grupo... Fui convidado e fiz parte, fiz parte de uma comissão de jovens. Fomos para a mesa: o que é que faz? Foi da altura em que começaram a aparecer os conjuntos musicais porque até aí era a grafonola, era o gira-disco, começou a aparecer o conjunto musical, também da província. Ah e tal, vamos buscar conjunto e eu disse: também ficava bem aqui era um rancho folclórico. Eu tinha de facto esse bichinho do folclore. Ai, é difícil...Posso fazê-lo à minha maneira? Ai se fores capaz. Então criei este grupo de folclore, em 1966. P: Como é que o criou? Com quem? José Simões: Foi muito fácil, foi fácil. Falei com o meu pai, que era o terror da concertina, falei com um senhor que já tinha organizado umas marchinhas e tal e o homem disse logo que sim. A juventude aderiu toda. Tivemos de selecionar: tu não prestas, que danças mal. Hoje andamos às vezes atrás deles: andai cá que eu dou-vos uma coisinha… Era uma localidade aqui na zona histórica, hoje tem 13 ou 14 pessoas, na altura tinha quinhentas. Havia aqui muita matéria para selecionar. Portanto, foi fácil. Aquilo foi para integrar esses festejos, mas aquilo correu tão bem, que eu já vos falei que havia de continuar e então já fomos ver de um chamado ensaiador, já quase profissional, um homem de acordeão, já com uma capacidade e pronto, arrancámos. Eu conto aqui a história [ofereceu-me uma monografia]. P: A que bom, obrigadíssima. Muito obrigado. José Simões: Vou-lhe oferecer. Então agora, em 2019, nós temos aqui na coletividade, no rancho, o presidente da Direção ligou-me agora, porque eles não fazem nada sem mim. Ligou-me agora, é o vice, o [...]. O vice-presidente é historiador, é professor e é historiador, tem várias obras e eu desafiei-o: Oh, professor, o senhor tem de fazer aí uma recolha, tem de fazer a história deste agrupamento. E ele disse: Oh, Sr. Simões, e já viu o trabalho que me dá? Então quem tem de fazer é o senhor, se foi o senhor que o criou, foi o senhor que esteve ao longo dos tempos ligado a ele. Eu gosto de escrever, gosto de escrever, eu tenho até outro livro editado, são as minhas memórias de guerra, que tenho vendido para todo o país, para todo mundo quase, que me pedem livros do meu tempo de guerra. Tem uma introdução do Nascimento, curtinha, ali uma introdução ao livro. Consegui que o prefácio fosse feito pelo meu comandante, que tem um valor histórico para mim, e depois conto a minha história da guerra, na primeira pessoa, sem ficção alguma, sempre o real. Lá está, foi aquilo que eu vivi e sofri e passei, os bons e os maus momentos, na guerra eram mais maus do que bons, mas também se passaram alguns bons. Então, está bem, professor, eu sou capaz de escrever e o senhor faz depois uma revisão? Faço. Pronto, e escrevi, então tem aqui a história. E então eu escrevi este livrinho com a história precisamente deste rancho folclórico. P: E então depois começou a ser uma coisa mais profissional, não é? José Simões: Profissional não chamarei, porque não há profissionalismo no folclore, mas passamos a ter mais cuidado. Começamos a fazer recolhas próprias das danças, cantigas, ia a muitos colóquios sobre folclore e etnografia. E, mais tarde, candidatámo-nos… muito difícil, uma candidatura muito difícil… a ser membros efetivos da federação do folclore português. P: Isso foi quando? José Simões: Isso foi em 1991, já. José Simões: E essas recolhas começaram logo nos anos 60, ainda? José Simões: Começaram logo, começaram em 66. Em 66 houve um arranque, depois os fatos que os elementos tinham usado, tinha sido tudo emprestado das várias coletividades, um tinha um fato, outro tinha outro e nós tivemos de devolver. Entretanto, em 1967, eu casei. Casei, fui viver para a cidade, fica um pouquinho… hoje é perto, na altura não havia automóveis como hoje. Da cidade aqui eram três quilómetros. Entretanto, eu venho para a cidade, o meu pai faleceu com 52 anos. Aquilo não durou muito, e parou, teve uma paragem. E então reorganizámo-nos em 1969, já com um traje próprio, com recolhas próprias, como sempre melhorando. P: Como é que fizeram? Como é que angariaram dinheiro para comprar os trajes? José Simões: Saímos várias equipas a fazer um peditório aqui às pessoas. Toda a gente dava, toda a gente queria o seu rancho folclórico – 20 escudos, 50 escudos, 10 escudos, tudo. Comprámos os tecidos, mandámos fazer, foi tudo gratuito, a confecção foi toda gratuita, portanto tivemos de adquirir os tecidos. O calçado tivemos de comprar. P: E baseavam-se no quê, para desenhar os fatos? José Simões: Eram baseados em fotografias da época. Eu tenho fotografias dos meus avós, dos meus bisavós, que serviram muito, eu e outras pessoas. E depois fizemos o apelo às pessoas que tivessem em casa roupas dos antepassados e, sei lá, das arcas, como eram. Era por aí… P: Porque a ideia era fazerem um fato que fosse aqui da região? José Simões: Da região e daquela época, de finais do século XIX e até aos anos 20, 30 do século XX. P: Porque é que era esse período? José Simões: Era o período em que começou a haver a consciência de que era preciso preservar. Até aí não havia grandes motivos para isso. E então foram criados organismos, mais tarde, na altura a FNAT, que é hoje INATEL, começou a preocupar-se um bocado com isso. Ainda no tempo do Salazar, talvez para desviar também atenções, está a ver? Criou várias coletividades até aqui na cidade. Essas coletividades tinham habitualmente o futebol para os homens e o folclore para as mulheres, e não só. P: Mas era para desviar as atenções do quê? José Simões: Desviar as atenções da contestação e trazer o povo contente. P: Havia muita contestação aqui na Covilhã? José Simões: Havia, aqui havia muita. Os lanifícios traziam muita contestação. Houve uma altura em que o primeiro de Maio só era reconhecido na Covilhã, só era celebrado na Covilhã. O resto do país, com medo das represálias... E mais tarde foi proibido também. Vinha por aí a PIDE, a GNR e tal, ia às fábricas ver quem estava a trabalhar. O patrão dizia: falta cá o Manel, o Jaquim e tal. Quem são eles? E tinham lá à porta e levavam-nos P: E então a FNAT criou estes ranchos? José Simões: Criou estas coletividades e apoiava o folclore e o futebol, eram as áreas.... P: E vocês tiveram apoio da Fnac? José Simões: Não, não tivemos, na altura. Porque entretanto, parece que havia liberdade, mas não havia tanta como isso… Como na freguesia de São Martinho havia já uma coletividade, que era o Oriental de São Martinho, e então já havia essa coletividade inscrita, não podia haver uma segunda. E então tivemos de ir por outro lado e conseguiu-se. Conseguimos através do Governo Civil e não ficámos integrados na FNAT, ficamos nas colectividades de cultura e recreio. P: Ou seja, conseguiram oficializar estatutos como uma coletividade de cultura e recreio? José Simões: Sim, sim, era mais o Governo Civil que dava ordens que podiam abrir e funcionar. Os estatutos e tal, assinados pelo governador civil, e mais tarde houve então a inscrição nas colectividades de cultura e recreio. P: E tinham sede? José Simões: Tínhamos sede ali, quando viraram para aqui, a sede está lá, fechada praticamente. Muito grande, muito boa, mas aquilo é um corpo sem alma neste momento. P: Do clube recreativo do qual faziam parte? José Simões: No grupo de recreativo do qual fazíamos, mas fomos obrigados a sair, há nove anos só, estivemos ali ligados. Agora foi instituído um estatuto próprio, mas nessas coletividade hoje vai uma direção que gosta de folclore, depois vai outra que já não liga nada, então é posto de parte. P: Então e nessa altura integravam o clube recreativo? José Simões: Integrávamos com estatuto próprio, nós tínhamos os nossos dirigentes dentro do grupo. P: Logo nessa altura, em 1966? José Simões: Não, nessa altura não se pensava muito nisso aqui, era tudo a monte. Em 1985 é que se começou a fazer essa revisão. P: Então até ao 25 de abril estavam junto do Clube? José Simões: Até ao 25 de abril e não só, estivemos até 1985. Contudo, depois criou-se o estatuto próprio para o rancho, ainda tutelado pelo grupo recreativo. E depois, em 2012, é que nos constituímos em associação autónoma. P: Então, durante esse período em que estavam lá, reuniam e desenvolviam a vossa atividade ali naquela sede? José Simões: Desenvolvíamos a atividade lá, mas os ensaios normalmente eram feitos fora, aquilo tinha condições para isso, depois agora é que fizeram obras, mas era muito pequenino. Então ensaiávamos na escola, nas garagens dos vizinhos: ah, podem vir aqui para a minha garagem. E íamos lá. Olha, afinal, agora já tenho aqui que meter o carro, já comprei o carro e tal. E íamos procurar outro espaço, foi assim um bocadinho de malas às costas. P: E também fazia parte da direção do clube? José Simões: Fiz parte da direção do Refúgio como secretário da Direção durante vários anos e presidente da Direção. P: Que outras atividades é que o grupo desenvolvia para além do folclore? José Simões: Desenvolvíamos atletismo. O futebol era quase a brincar. Eu joguei futebol, mas o atletismo era uma coisa a sério, chegámos a estar nos campeonatos nacionais. Eu tenho um irmão que foi na altura oitavo, no Estádio José de Alvalade, nos campeonatos nacionais de atletismo, que pertencia aqui. P: E isso era desportivo, e a nível cultural, era só o rancho? José Simões: Só o folclore. Fez-se também teatro esporádico. P: Organizavam-se em comissões? José Simões: Era em comissões, que não eram difíceis. No aspeto do teatro, quem fazia os ensaios era o [...], o escritor, é daqui do Refúgio. E então ele é que estava ligado a essa parte, tinha muito jeito, fazia os ensaios, programava tudo o que era essa área de teatro, mas era episódica. P: E era para fazer espetáculos aqui? José Simões: Fazíamos aqui. Ele era um indivíduo muito esquerdista na altura, mesmo antes do 25 de abril. E na altura ele ensaiou uma peça que era um comboio. Então fizemos aquela peça, estreou-se aqui, aquilo correu muito bem, muito bonito. Como eu disse, havia muita juventude, estavam prontos para tudo. Muita gente a assistir. E veio uma coletividade de cultura e recreio que é o Campos Melo: epá, vocês têm agora uma peça de teatro. Não foi o Campos, foi o Rodrigo, o Giro do Rodrigo. Têm uma peça de teatro, gostávamos que fossem lá e tal. Está bem. Nós queríamos era ir. Está bem, vamos lá e tal. Então foram tratar dos papéis, era obrigatório na câmara. A Câmara Municipal tinha de dar ordem que ia decorrer aquele espetáculo tal. Quando lá chegámos, aquilo era uma peça proibida, antes do 25 de Abril era proibida. Fomos lá chamados: vocês, o que é que estão aqui a fazer e tal? Nós armados... o outro sabia, que era muito esquerdista, mesmo do Partido Comunista. Olhe, íamos tendo dissabores. Ficámos pela apresentação. Já tínhamos colados cartazes, O Comboio! P:E tal aí pela cidade, quando chega...[ri-se] P: E tiveram mais problemas assim com a PIDE? José Simões: Não, nunca tivemos, aquilo acabou por não ser problema. Disseram-nos: isso é proibido. Nós não sabíamos, longe disso, a nossa ideia, de que realmente fosse proibida. P: E tinham biblioteca? José Simões: Tinham biblioteca, com limites, com livrinhos que também ofereciam. Iam oferecendo livros e fazendo uma bibliotecazinha. Chegou a ser engraçada. P: E havia muita gente a ler? José Simões: Havia muita gente a ler e tinha outra particularidade, aquela coletividade servia para tomarem banho. P: Muitas tinham isso, não é? José Simões: Todas tinham, quase todas tinham e estas rurais… esta fazia parte de uma freguesia urbana, mas esta parte muito mais rural e não havia casas de banho. As pessoas ainda andavam com a malga, todos os dias de manhã, a levar os dejetos. E então era o banho, o banho que era semanal. Pagava-se ali uma quantia irrisória para o gás e para a água. P: E tinham assim mais algum mecanismo de entre ajuda? Havia umas que tinham subsídio de funeral… José Simões: Havia subsídio de funeral e o respeito que havia na altura pelos mortos. Quando a pessoa morria, não havia música, não havia... Logo que fosse sócio, a televisão é desligada, acabava a televisão. A bandeira era hasteada a meia haste e depois havia... Houve assim umas coisas episódicas, que eu lembro que organizei lá, quando eu era presidente. Uma exposição de desenho do concelho, que teve uma adesão tremenda. Vimos difícil arranjar espaço para a exposição, andei de escola em escola a pedir, todas as crianças e os professores aderiram, os alunos fizeram muitos desenhos. Pronto, foi uma ligação às escolas, já nessa altura grande, e depois disso não tenho ideia de alguma atividade. P: Então e depois do 25 de Abril, como é que foi? José Simões: Depois do 25, até veio liberdades a mais, o rancho folclórico até parou, já tudo queria era discotecas e não sei quantos, mas depois recuperou-se novamente. Houve assim uns desmandos, umas euforias, mas enfim... P: E quando é que começaram assim com este interesse em preservar esta memória, quando é que isso começou? José Simões: Olhe, isto já vem de longe. Por minha iniciativa já íamos guardando umas pecinhas, já íamos arranjando… olha, fica aqui guardado numa lojinha, alugámos um espaço. Em 2000, adquirimos esta casa de renda. E começámos a montar aquilo que já tínhamos e fizemos um apelo às pessoas para que entregassem aquilo que lá tinham, que não deitassem fora, que nos dessem, nós reparávamos, se era caso disso, se não tivesse interesse, destruíamos nós. Começou a aparecer, em 2000. P: E no rancho, tinham a preocupação de ir procurar músicas que fossem tradicionais? José Simões: Sim, sim, tradicional. Até porque, a partir de 91, como membros efetivos da federação, não podemos pôr música nenhuma que não seja daqui da região. A música, a dança, a cantiga, o traje, o instrumento. É muito rigoroso, nós levámos o processo de integração para aí três anos. Vinham os técnicos e verificavam e chegavam ali e viam uma mulher que a meia devia ter este tamanho e estava assim, era rejeitado. É muito complicado. Eu costumava dizer que o processo de um grupo entrar como sócio efetivo da Federação do Folclore Português é mais difícil do que Portugal ter aderido à CEE. Muito, muito difícil. E mesmo agora, nós agora somos avaliados de dois em dois anos. Vem um grupo de avaliação técnica, cinco ou seis elementos, e nós temos de mostrar tudo: a dança, a cantiga, o traje, tudo, tudo ao pormenor, e depois somos classificados de zero a 10. Nós, na última avaliação, olhe em 2019, depois, em 2020, não houve, depois tinha de haver em 2021. Nós, numa escala de zero a 10, obtivemos 8,95. Muito bom, muito bom, mas temos que ter um cuidado extremo. Não pode haver unhas pintadas, não pode haver sobrancelhas tratadas, não pode haver vernizes, não pode haver pinturas. Nesse dia, as raparigas têm que tirar tudo. P: E antes, não era tão rigoroso? Como é que vocês faziam a investigação para... José Simões: Fazíamos, havia, as pessoas chamavam os incentivadores de carreira. Eles é que vinham. Olha, vem lá ensaiar o rancho e tal. Ah está bem, eu vou. Ele trazia as cantigas, que já tinha lá do repertório, que ele tinha recolhido ou não, não havia aquela preocupação tão grande. A partir de 1985 é que eu pus de parte esses ensaiadores, vi que aquilo não era nada. Comecei eu a fazer, a ler e a tentar informar-me bem o que era o folclore e a sua essência e tomei conta do caso. Os gajos não sabem nada, agora sou eu que tomo conta e comecei a aprofundar a informação que pus a prática no terreno. P: E o que é que descobriu nessa investigação? José Simões: Descobri que o folclore é uma arte, é também uma ciência e, como tal, ela não deve ser adulterada. Tem de ser o mais fiel possível às nossas raízes. Fiz muita recolha e pus elementos a recolher com as pessoas de 80 anos, 90 anos: olhe, o que é que cantava quando andava a bordar? O que é que cantava quando andava a sachar? E nós, com um gravador, íamos gravando. Olha, como é que se vestia? Olhe, ainda lá tenho uma saia da minha avó. Vá lá buscar: uma fotografia. Era feito desse modo. Era feito assim, ainda hoje se continua a fazer, agora menos. Agora já me vêm perguntar a mim, um ou outro... P: Eu estava a ver ali naquele livro que tem ali, que é muito interessante, que tem ali músicas do trabalho... José Simões: Esse foi o primeiro trabalho que nós fizemos, que o grupo fez, tem lá também um CD. P: Pois é… José Simões: O livro foi, é, um projeto nosso, do rancho, e do Grupo Recreativo, onde estávamos inseridos na altura, em 2004, e as recolhas eram daquilo que já tínhamos já feito. Depois, passou-se para a pauta musical, que é o trabalho conjunto, está também lá uma parte minha, mas foi coordenado pelo Doutor [...], que é um musicólogo, é mesmo formada em Musicologia Popular. E então, ele era muito nosso amigo e eu fui buscá-lo. Fui buscá-lo para o nosso lado e até agora está a trabalhar num projeto que estamos a desenvolver, está a trabalhar connosco. P: Qual é esse projeto? José Simões: Esse projeto é baseado naquela estrutura que foi agora criada de… deixa-me lá ver qual é que é o nome…É uma estrutura regional, vários conselhos se agruparam. Eles agora lançaram um programa, um projeto das coletividades. Nós somos líderes, aquilo tem de ter um líder e depois esse líder tem de arranjar associações dos outros concelhos. Neste caso, são cinco: Covilhã, Guarda, Fundão, Sabugal e Belmonte, estão agrupados os cinco. Comunidades Intermunicipais, é isso. E então vêm propor, é um projeto, é uma candidatura. Vão aparecer e nós estamos a trabalhar nesse sentido. Já escolhemos o tema, reunimos com as coletividades todas e todos apresentaram nomes para o projeto, por acaso foi o meu que foi escolhido. E chamo-lhe Unidos por um fio. Este fio condutor que nos une e ao mesmo tempo é o fio de lã, que engloba todos estes municípios. Agora, cada grupo, nós, o nosso grupo de folclore, que vai funcionar só com uma cantata, um cantarzinho de música e canto, não mete dança, para facilitar, porque são menos elementos, a logística é outra. E é menos gente a comer, porque o projeto inclui a alimentação, a verba que vão dar, no caso de sermos vencedores, temos que saber distribuir muito bem e quanto menos comerem menos temos de pagar ao restaurante. Temos um grupo de concertinas, que representa a Guarda. Um grupo de Bombos, que representa o Fundão e Sabugal, é um grupo etnográfico. De Belmonte é um grupo de cantares populares e do Sabugal é também um grupo de folclore, que vai com a tocata. Agora estamos a fazer essa candidatura com muito cuidado e queríamos que ela fosse aprovada. E nós estamos a liderar este processo e então fomos buscar o nosso vice-presidente, que é historiador, o Doutor Jorge Daniel, que é musicólogo. E estamos a trabalhar em conjunto para que essa candidatura possa ter muita força. Tem cinco espetáculos, um em cada concelho, é a obrigatoriedade. Nós já escolhemos o calvário, a capela do calvário. P: Diga-me uma coisa, estava-me a falar aqui desta cooperação entre associações, isso existe desde quando, ou seja, os ranchos folclóricos já se reuniam antes? José Simões: Os festivais folclóricos fazemos todos os anos. Nacionais ou internacionais. Nós tínhamos programado para 2020 o Internacional, o Grupo de Espanha e de Portugal. Tínhamos um grupo de Santarém, tínhamos um do Norte, de Gondomar, eram cinco ou seis grupos. Fazemos anualmente. P: Desde quando é que se começou a fazer isso? José Simões: Desde 1985. P: E antes do 25 de Abril, já havia essa interação entre grupos? José Simões: Havia, mas não estava tão enraizada. Havia, mas muito menos, muito menos. Os festivais do folclore, aliás, só apareceram depois do 25 de Abril. Porque são incentivados pela Federação do Folclore Português e a federação nasceu em 1977. Porque até lá também a associação livre não era admitida, não é? P: E então nasceu em 77 e começou a organizar essa altura... José Simões: Em 1977 a Federação do Folclore Português foi criada e começou a haver essa evolução no bom sentido, tanto pela qualidade dos grupos, como também na organização desses eventos. P: Qual é que foi o primeiro em que vocês participaram? José Simões: Foi um organizado aqui, no Refúgio. Eu lembro-me que fui à Câmara, em 1985, ao vereador da cultura e digo-lhe eu: oh senhor vereador, nós queremos organizar um festival de folclore. Epa, vocês são doidos, então vocês têm a capacidade? Quantos grupos? Cinco, seis grupos. Vocês não se metam nisso, já viu qual é a capacidade? Deixa isso connosco, deixa isso comigo. E diz ele: então, mas o que é que pretende de nós? Poder dar a notícia, não peço mais nada. Só quero que me monte lá um palco. Não pedem mais nada? Não! Se quiser depois dar mais algo... E organizámos muito bem. Depois, olhe, apareceu-nos alimentação, apareceu-nos tudo. A coisa correu tão bem, em 1985. A partir daí, nunca mais parámos. P: De ir a outros sítios e de trazer outros cá? José Simões: Vamos, também. No fundo, é retribuir a vinda, é o ir a merecer. P: E esse intercâmbio é importante? José Simões: É, importante, muito importante. É importante e mantém os elementos do grupo focados nesse projeto, que também gostam de sair, gostam de ir a Lisboa, ao Porto, a Paris, como já fomos duas vezes, à Ilha da Madeira, tudo isso. Pronto, se calhar nunca tinham ido lá… P: E quando vão por exemplo a Paris, são recebidos pelas comunidades portuguesas? José Simões: Sim, somos recebidos em casa de portugueses. Dormimos em casa dos portugueses. P: Que também têm ranchos lá? José Simões: Alguns têm. P: E nesses festivais internacionais, quem é que participa? José Simões: Participam grupos que nós convidamos desse resultado, também em permuta. Nós temos ido mais para os nacionais, por uma questão económica, porque fora do país custa mais dinheiro. Mas já tivemos aqui grupos de Badajoz, de Múrcia, fomos a Múrcia. Também já tivemos grupos de Toledo, Badajoz, como eu disse, e agora vamos ter… está contratado no próximo festival que houver, o grupo aqui da região da Extremadura, uma localidadezinha da Extremadura espanhola. P: Então e nesses festivais fora, juntam-se grupos de várias partes da Europa? José Simões: Sim, olhe nós, por exemplo, participamos há três anos num festival em Maia, Porto, onde estavam grupos de sete ou oito países. Pois, de Portugal estávamos dois, estava o Refúgio e o organizador. Depois havia do Peru, da Colômbia, de Espanha, da Venezuela… eram oito grupos ao todo, seis países, com Portugal sete. P: Eu já estive a estudar também as associações nas ex-colónias portuguesas e vi que no passado também havia associações de folclore lá, portugueses, Casa da Madeira. Vocês nunca tiveram intercâmbio com os países das ex-colónias? José Simões: Não, sabe, nós temos muitos convites, da Polónia, da Roménia… Mas não temos a capacidade económica para nos deslocar. Se tivesse um convite das nossas ex-colónias, também não íamos, com certeza. Eu nunca me apercebi, mas deve ter havido. P: E assim das comunidades portuguesas que há pelo mundo inteiro. José Simões: Isso há. Do Brasil, já tivemos aqui um grupo do Brasil. P: Mas de portugueses que estão no Brasil? José Simões: Portugueses que estão no Brasil, orientados por uma senhora brasileira. A diretora era uma senhora brasileira. Veio o grupo, o representante deles artístico é o [...]. Morreu há dois anos, veio aqui com eles, por duas vezes… P: E essa ligação, vocês para além de atuarem uns com os outros, o que é que fazem mais, discutem estas questões do folclore? José Simões: Habitualmente não há tempo para isso. É chegar lá, trajar, jantar… Os festivais são sábado à noite, habitualmente. As pessoas aqui trabalham até ao meio-dia, uma hora, em alguns casos, temos de esperar. Vamos de autocarro para o Alentejo ou não sei quantos, chegamos lá quase em cima da hora. Há uma sessão solene, sempre agendada com os grupos todos, com o presidente da Câmara, ou alguém que o representa, o presidente da Junta, os grupos todos, representação dos vários grupos. Uma sessão solene. Depois vamos ao jantar e vamos para o palco. E sairmos do palco, toca a tirar o fatinho, vestimos os nossos, meter no autocarro. E chegar aqui às quatro, cinco da manhã. P: Então diga-me uma coisa: isto do associativismo, porque é que dedicou tanto tempo da sua vida? José Simões: Por amor ao folclore, especialmente. Embora o associativismo também me diga muito. Eu depois criei aqui o Grupo de Cantar, ligado à Igreja, criei aqui um grupo de teatro, que fizemos quatro anos com a mesma peça em cena, percorremos quase o país todo. Com 60 elementos, eram 60 elementos, o grupo de teatro. O musical. P: Como é que se chamava? José Simões: O Nazareno, era baseado na vida de Cristo. Foi baseado, não sei se conhece, numa obra do Frei Hermano da Câmara. Era um fadista de um bairro de Lisboa que enveredou pela vida cristã. Foi para um convento, mas a voz não a deixou cá fora, como é lógico. Então ele tem uma carreira artística muito grande. E criou uma peça ligada à vida de Cristo, que é O Nazareno, uma peça musical. Nós adaptámo-la para o teatro, com instrumentos próprios, acordeão, órgão, viola, tudo organizado por mim. Fiz a encenação, encenei a peça e começámos a ser chamados para muitas outras do país. Nós, o último espetáculo que fizemos, terminámos, porque depois, entretanto, o rapaz do piano era professor, foi daqui para fora. Os professores andam sempre com a mala às costas. Foi parado e tal, pronto ficámos por aí. Fizemos o último espetáculo em Fátima, no anfiteatro Paulo Sexto, com 3500 pessoas a assistir, no Dia Internacional da Juventude. Foi criado por mim, isto é a prova daquilo que eu tenho dedicado à bandeira do associativismo também. E então dá-me muito gosto. Fui aqui também secretário da Direção da Associação Comercial dos Concelhos da Covilhã, Belmonte e Penamacor, durante três mandatos. P: Qual é a atividade que desenvolvia? José Simões: Ligados ao comércio, todo o comércio e indústria. Pagavam as suas quotas e depois fazíamos vários eventos, com alguma grandeza, na universidade da cidade da Covilhã, para apresentar um cortejo etnográfico. Coisas várias dessas, o cortejo do trabalho, exposições, ainda existe a associação, hoje com o nome de Associação, na altura Grémio, do comércio. Agora até me vão contratar para fazer um filme para a RTP. Sou personagem num filme que vai passar na RTP no último trimestre deste ano, A Traição do Padre Martinho. P: Que personagem é que vai fazer? José Simões: Tio Francisco. Já fiz, já está filmado. O protagonista principal é o Diogo Martins, um autor especialmente de novelas. O Ricardo Carriço, a Eva Barros, o Manuel Marques, que trabalha muito com o Herman, o Rui Mendes, o consagradíssimo Rui Mendes. E depois, havia no meio do elenco todo dois atores não profissionais. Então fizeram um casting, mas não disseram para que era. Puseram-me a ler e depois telefonaram: o senhor está contratado para fazer, vou entrar em contato consigo para acertar valor. Eu julgava que aquilo era de borla. Para acertar valores e combinar, precisamos de si, pelo menos três sessões. Depois ligaram: olhe, já falou o não sei quantos consigo? Já. Era para acertar valores. Olhe, 125 euros por cada sessão, mais alimentação, está bem? Eu até achei muito dinheiro. Olha, então vamos lá ver, 125 × 3, não é? Exatamente. Se for preciso mais alguma? Está bem! P: E então, foi o teatro, foi os cantares. Quando é que isso foi? Quando é que começou? José Simões: Isto foi na época de 80. Os cantares foi um bocadinho anterior, foi na década de 70, talvez. Depois criei o grupo de teatro na década 80 e tal. Foi só aquela peça. P: E os cantares era como, era um coro? José Simões: Cantares era um coro, vestidinhos com um papillon os homens, as mulheres uma echarpe. P: E o que é que cantavam? José Simões: Eram repertórios populares, mas não rígido aqui à região. Cantiga popular, fosse de Lisboa ou do não sei quantos, cantávamos tudo. P: E onde é que atuavam? José Simões: Olhe, em vários locais, nunca saímos aqui da zona. E eu lembro-me de um espetáculo que participámos para a Rádio Renascença. Veio aqui fazer um espetáculo à Covilhã, fomos contactados, contratados não, contratados era se ganhássemos dinheiro. E lá fomos fazê-lo, ao ar livre e aqui assim na região, várias pessoas: ah, vocês têm um grupo de cantares, vão lá… Vamos, então não vamos? P: Então foi o folclore, foram os cantares, foi o teatro e foi isso. Não fez parte das coletividades da Covilhã, quando estava lá a trabalhar, foi sempre aqui no Refúgio? José Simões: Sempre aqui no Refúgio. Não, na Covilhã só aquela associação comercial, já virada para um patamar mais elevado. P: Então, e entre todas estas experiências, qual foi aquela que mais o marcou? José Simões: O que marcou mais foi o grupo de folclore. Mas gostei muito daquela do teatro, o teatro musical, porque foi preciso escolher muita voz, selecionar muita voz. A voz de Cristo, de Maria, dos anjos, do dono do Canal, do Doiro, havia muitas vozes que era preciso selecionar, bem cantadas, tinham de ser bem selecionadas. Isso dava algum trabalho. P: E diga-me uma coisa, a Covilhã é uma zona muito fabril, toda gente praticamente que eu entrevistei está ligada à indústria de lanifícios… José Simões: Eu por exemplo nunca estive. P: Mas aqui o refúgio também? José Simões: O Refúgio também teve aqui uma fábrica, aquele poema que eu fiz… Refúgio, local com muita história, vivências e memórias, Terra de trabalhadores, operários e doutores, escritores, poetas, pastores, agricultores, foste refúgio de hebreus, tecestes ....(?) Fardaste os soldados dos quartéis, produziste finos tecidos, vestiste nobres e mendigos. Foste terra de realeza, de povo e de nobreza. Recebeste El Rei de Portugal, D. Carlos de boa memória, enriqueceste a tua história, transformaste o trigo em farinha, acolheste a Rainha monarca do teu país, Amélia de seu nome, em teu palacete dormiu e o povo a aplaudiu, foste, és terra de tradições, de festas e romarias. Acolheste a festa brava, touros e toureiros numa praça com história construída pelo fogo, pela tristeza do povo. Os tempos transformaram-te, desse resta a história, mas continuas a ter gente com garras e valentia para construir o teu futuro de cada dia. Cá está, ligada à indústria. O Rei Dom Carlos visitou a indústria em 1891, depois de inaugurar os caminhos-de-ferro da Beira Baixa e dormiu aqui. O nome do Refúgio… Há várias ideias. Ao concreto, acho que ninguém sabe. Parece que a mais lógica, que tenha a ver com o D. Sancho II, o Povoador. Ele tentou povoar esta zona, no caso inóspita, pouco da obra, de montes e tal. Então, todos aqueles que andavam fora da lei ficavam integrados da sociedade, se chegar aqui refúgio. Chegavam aqui, eram fora de lei. Eu quero ser cidadão livre. Eu quero me integrar aqui, pronto. Quero aqui ficar. Essa é uma daquelas que é mais consentânea. Também tem muito a ver com os hebreus, no tempo da Inquisição, parece que aqui também era um bocado o refúgio deles. Mas há muitas versões, não sei qual é a correta… P: Então, agora, e só para terminar, diga-me, queria saber o que é que acha que será o futuro do associativismo? José Simões: Olhe, eu já vi isto quase a desaparecer. Depois parece que vejo outra vez a pegar no fio, e que a coisa terá futuro. Enfim, estou convencido que sim. Estou convencido que sim. É verdade que talvez precise de uma reciclagem, porque hoje já ninguém vem à associação para bailar, para dançar. Os bailaricos é na discoteca. Já ninguém vem cá para tomar banho. Já ninguém vem ver um jogo de futebol, tem em causa tudo. Tem 100, 200 canais, sentado no sofá, lá estão em contacto com o mundo. Terá de haver outros motivos que possam atrair as pessoas, isso vai muito da imaginação dos dirigentes. Os dirigentes têm de ter mais sensibilidade do que antigamente. Antigamente qualquer um dava. Porque aquilo era abrir a porta e as pessoas entravam, era pôr o disco a tocar e as pessoas dançavam, era ligar a televisão e a sala estava cheia. Hoje não, mas até tenho esperança. P: Aqui o vosso rancho está perfeitamente modernizado, até faz candidaturas. José Simões: Sim exatamente. Agora, nós somos uma associação um bocadinho sui generis, porque não tem aqui uma casa aberta. A senhora vai a qualquer associação e vê os bilhares, as cartas, vamos ajudar, vem outro beber um copo de vinho, um café e tal, é tudo o que é necessário. Nós não temos. É uma associação um bocadinho diferente. Cá dentro estão as 50 pessoas do rancho, os 100 e tal associados que temos e uma capacidade... tivemos de nos munir de dirigentes com alguma ação: o Doutor Vítor Tomás Ferreira, que já foi presidente de junta, que está ligado à Universidade, é um professor, que é um historiador, um professor. Está a ver, tivemos que procurar pessoas, que, não tendo a ver propriamente com o folclore, têm outra capacidade para poder atrair, desenvolver este projeto. Porque depois, bem, este projeto também não é qualquer pessoa que saiba… Portanto, as associações têm necessidade também de ter um corpo dirigente capaz de saber encarar o dia de hoje e de amanhã e ter capacidade para criar condições atraentes para os jovens e para os menos jovens. Se houver essa capacidade, acho que as pessoas continuam a ter necessidade de se reunir. P: Também acho que sim. Agora só para uma questão estatística, que eu tenho perguntado a todos os dirigentes: professa alguma religião? É católico praticante? José Simões: Praticante, sim, pode considerar. Não vou todos os dias à missa, mas pode-se considerar que sou católico praticante. P: E é filiado em algum partido político? José Simões: Nunca fui filiado. Ou melhor, fui filiado num partido político durante uns tempos, e desisti. A minha filosofia política enquadra-se muito na social-democracia. -
3 de junho de 2021
José Marques Martins e João José Silva
P: O Sr. José Marques Martins nasceu aqui? José Marques Martins: Nasci em Tondela, ou melhor, em Canas de Santa Maria, freguesia de Canas de Santa Maria. P: Em que ano? José Marques Martins: Em Tondela, em Setembro de 1946. E inicialmente, por curiosidade, apesar de ter nascido oficialmente no dia 29, nasci no dia 11, que é uma data diferente. Tinha que ser. Eu só soube que tinha sido no dia 11 já tinha perto de 30 anos, de maneira que são coisas de histórias, mas que gosto de recordar sempre. Porque a minha mãe, que Deus a tenha, quando eu a convidei para ir para o aniversário: então mãe venho-te buscar ou venho... Que eu já estava casado, e ela: então, quando é que tu fazes anos? Oh mulher, então tu tiveste-me e não sabes? Pois, mas tu não nasceste no dia 29, o teu pai roubou-te na idade, porque antigamente era assim, portanto para dar uma ideia... P: Os seus pais faziam o quê? José Marques Martins: O meu pai tinha a profissão de sapateiro, mas foi um grande corredor de bicicleta, treinou e correu Porto-Lisboa. Aliás, se chegar à Folha de Tondela tem lá uma grande... e daí nasceu, talvez venha dos genes dele toda esta história da… e tenho ainda recordações, portanto, dos jornais em que o meu pai correu Porto-Lisboa, correu a Volta a Portugal, na altura do Américo, do Faísca, do Trindade. E então, claro, não era um corredor, mas tinha um grupo desportivo... P: Já tinha na família a propensão para o associativismo.... José Marques Martins: A minha mãe é doméstica. E depois mais tarde é que ele aprendeu a profissão de sapateiro e a agricultura. E foi isso. P: E estudou lá... José Marques Martins: Estudei em Tondela, no Colégio agora escola secundária, e depois saí de lá com 18-19 anos. E então fui apanhado, como todos os outros da mesma idade, para irmos até à guerra, que foram dois anos, cada um com as suas memórias, nem tanto agradáveis, mas pronto, não vamos falar nisso. E quando vim, tive que recomeçar a vida. Foi uma geração sacrificada, aquela geração da altura em que fomos para a guerra. Portanto, nós tínhamos uma forma de estar, porque vivíamos no campo, o nosso crescimento estava dominado por uma certa formatação. Nós, quando queríamos respostas, diziam-nos: porque sim, porque tinha que ser assim, assim é que era. O Colégio onde andei, católico, também tinha a rigidez religiosa de então, muito mais forte. E nós na agricultura fomos crescendo. Claro que depois apareceu ali uma… naquela altura dos Beatles. Depois éramos muita juventude, havia muita juventude, havia mais filhos, não havia televisão, como eu costumo dizer na brincadeira. E então havia muita juventude e por isso nós juntávamo-nos, fazíamos o tal grupinho de futebol, para ir tomar banho para o rio, para ir para os bailaricos, portanto, havia isso. E onde é que nós nos juntávamos? Nas tabernas, que era um sítio onde víamos um Bonanza e outros que tais. A taberna antiga foi sempre um local de encontro, ou lá dentro ou cá fora. Enquanto os mais velhos estavam lá dentro a beber uns canecos e a jogar à sueca, nós estávamos cá fora, porque não tínhamos autoridade de entrar, porque éramos miúdos, mas já queríamos ir e esse foi o nosso crescimento. Depois tudo mudou, quando aparece o 25 de Abril, mais tarde, portanto, abre-se. E, é claro, quem teve condições para progredir na formação, muito bem, quem não teve, ficou sempre naquele estado. Claro que depois houve aquela vontade em termos um futuro melhor e foi quando se abriu a possibilidade de os caminhos para a França, para a Suíça, para a Alemanha, em que as mulheres ficavam a tomar conta da agricultura. P: Mas o senhor José não emigrou? José Marques Martins: Era para ter emigrado, mas, felizmente ou não, como tive oportunidades de emprego logo de imediato… P: Qual é que foi a profissão que depois seguiu? José Marques Martins: Depois, quando vim, embora tivesse várias opções, mas porque já tinha família constituída, fui para os laboratórios da celulose, em Vila Velha de Ródão. Estive lá três anos e depois de lá é que vim para a Covilhã, para o Instituto de Emprego, antigamente era o Serviço Nacional de Emprego, e ingressei como técnico de emprego e toda a minha... até à minha aposentação. E depois, mais tarde, também me ordenei diácono, portanto, e aí houve razões para essa via, são histórias de vida. P: Não se casou? José Marques Martins: Casei pois, os diáconos podiam se casar. Casei e já estou viúvo. Tenho dois filhos e duas netas e, portanto, foi essa história de vida. Aqui caí e há histórias que a gente conta, quando venho aqui para a Covilhã, gostei de vir. Porquê? Porque embora estivesse em Castelo Branco, eu passei aqui de madrugada e há duas imagens que eu guardo da Covilhã, que jamais me esquecerei: que foi ver pelas seis horas da manhã, mais coisa menos coisa, ver os trabalhadores que eu não sabia para onde é que iam, todos em fila, lá iam com uma lancheira na mão. E então perguntei para a minha mulher, que ela andou aqui a estudar, eu não estive: onde é que esta malta vai? Vão trabalhar, vão agora para o turno. E eu achei curioso irem àquela hora todos, mas uma grande fila de gente. E uma outra imagem quando chego ao Souto Alto, quando vinha do Fundão e comecei a olhar para a Covilhã de madrugada e a vi toda Iluminada, que me deu uma semelhança com o Funchal, onde passei quando vim da Guiné, porque nós parámos no Funchal, porque trazíamos uma companhia de caçadores do Funchal, e deixámos lá alguns colegas falecidos. E a imagem que guardo do Funchal é quando eu acordo, pela coxia do barco, vejo também aquela montanha toda iluminada, que tem uma certa semelhança com a Covilhã. E eu disse na altura, talvez dois anos antes de vir para aqui trabalhar, para a mulher de então: olha, gostava de trabalhar aqui, mal eu estava já a pressupor que um dia vinha aqui parar. Cheguei e, como vim para aqui morar e esta foi a casa para onde vim cair e caí aqui, vim para aqui jogar, ainda me lembro, jogar às damas com um vizinho nosso que já faleceu, que era o Fernandes… E havia cá um contínuo que até tinha uma certa dificuldade no andar, o Sr. Pinto. E então a história do associativismo também começa um pouco aí, quando nós estávamos os dois muito bem a jogar e o senhor Pinto chega e diz assim: podem continuar a jogar, mas é bom que se façam sócios da casa, têm ali uma fichazinha. Então, deu-me essa ficha. Mas têm que pagar uma joia, e a joia era, salvo erro, 50 escudos, ou coisa do género, na altura pagava-se a joia. E pronto, e foi no ano de 1973-74, depois apanho o 25 de Abril. Eu ingresso no serviço de emprego em 73. Estou em Lisboa porque venho para fazer a formação em 74, Janeiro, e o 25 de Abril nasce a seguir, portanto, eu apanho toda essa zona, claro. Depois também gostei de saber o porquê daqui nas fábricas, porque eu vim trabalhar para uma casa e para eu poder ser capaz de poder fazer um serviço melhor, tinha que saber como é que os trabalhadores trabalhavam, porque quando lá estávamos a fazer uma entrevista e aparecia um tosador, aparecia um tecelão, aparecia uma metedeira de fios, aparecia não sei quê, tinha que saber o que é que isso significava para poder ter uma ideia, numa entrevista, do que tinha à frente. Por exemplo, havia cá umas cento e tal fábricas, ou mais um pouco, e eu fui visitá-las todas e fazer um estudo técnico das máquinas. Técnico, isto é: o que é que a metedeira de fios faz? Como é que ela faz? Que instrumentos é que ela utiliza? E depois via tudo isso durante o dia e à noite era aqui no Grupo Instrução e Recreio, no Campos Mello, no Ginásio, e as atividades eram aquelas que, para além do Futebol Sporting da Covilhã, como é evidente, mas eram aquelas que agregavam mais gente. Claro, depois apareceram, mais tarde, outras. Quando apareceu a Universidade, muito mais se abriu. E portanto, saber o porquê disto, talvez também pelo gosto de saber da História daqui, como é que nasce e, portanto, cheguei sempre à conclusão de que é o mesmo em todo o lado. Havia um objetivo comum daquela gente, juntavam-se. Havia um objetivo comum, havia também um cimento que era a solidariedade entre eles e toca de fazer uma coisa que fosse benéfica para os outros, para o bem comum, para eles próprios, e que desse formação àquela gentinha. Foi sempre essa a evolução associativa. Aquilo que, com quem eu conversava, com os mais velhos, era isso: epá, nós queríamos era, queríamos aprender, mas não sabíamos ler, queríamos saber mais, queríamos que os nossos filhos....E eu lembro-me que os meus pais diziam assim: eu não quero que o meu filho ande com uma enxada nas mãos. Possivelmente aqui os tecelões, eu quero que os meus filhos não saiam e não sejam... P: Queria fazer ao senhor José mais duas questões para estatística. Na realidade, estou a perguntar a toda a gente, se é professa alguma religião. José Marques Martins: Sou católico. P: É católico, claro, e se está filiado em algum partido político ou já esteve. José Marques Martins: No Partido Socialista. P: E já agora também ao senhor João, ficamos já com estas duas questões: é religioso, professa alguma região? João José Silva: Católico. P: Também é católico e é filiado em algum partido político ? João José Silva: Também no PS. P: Então vamos começar pelo início. Nasceu aqui na Covilhã? João José Silva : Sim, nasci, criei, fui criado, fui batizado, fui criado, casei e a minha vida foi sempre praticamente na Covilhã. P: Nasceu em que ano? João José Silva: Em 1947, 12 de janeiro de 1947, e fiz sempre aqui a minha vida. Aliás, sou filho da terra. E sou filho dos meus pais. O meu pai era técnico de tecelagem, afinador de teares, e a minha mãe metedeira de fios, ainda há bocado o Marques Martins estava a dizer que não sabia o que era uma metedeira de fios… a minha mãe era realmente metedeira de fios. P: E o senhor João, também foi trabalhar para a indústria têxtil? João José Silva: Eu trabalhei relativamente pouco tempo, porque era assim, era difícil na altura. Os meus pais… éramos três irmãos, duas irmãs, comigo três, e era muito complicado, porque na altura os ordenados eram relativamente baixos e viemos morar aqui para o bairro do Rodrigo, onde, na altura, a renda já era um pouco cara em relação àquilo que ganhava o casal. E o meu pai teve que me chamar a atenção e dizer: vocês têm que trabalhar, têm que ajudar a casa. Eu fui trabalhar, comecei a trabalhar com 12 anos. O primeiro emprego foi precisamente, não foi na indústria têxtil, acabei por ir para um gabinete de advogados onde estive, fiz alguma formação e depois apareceu uma outra situação, mudei e acabei depois por ir para a indústria, porque a firma para onde eu fui a seguir encerrou por motivos que desconheço. Então eu, para não estar desempregado, sentia-me um inútil, no termo da palavra. Eu queria realmente era a minha independência, ter algum para poder, ao longo da semana, planear o que eu poderia fazer e então foi quando eu estive, pouco tempo, na indústria, fui cardador, com 18-19 anos. Depois surgiu a hipótese de uma outra situação: convidaram-me para ir para o Sindicato da Indústria de Lanifícios do Distrito de Castelo Branco, onde estive desde 1964 a 1968. Entretanto, fui à inspeção, fiquei aprovado e toca de ir para Angola. Não sei o que lá fui fazer, para Angola, fui forçado, fui obrigado. Estive lá três anos em África. Regressei de África e, claro, a minha preocupação foi arranjar alguém com quem casar. Casei e também já estou viúvo. E pronto, tem sido... ainda andei na escola Campos Mello, mas não concluí, porque era difícil na altura. A gente chegava do emprego às sete da tarde, das nove às sete da tarde. E às 7:30 tínhamos que entrar na escola, na escola Industrial e comercial Campos Mello. P: Qual é que era o trabalho que tinha na altura? João José Silva: Na altura estava ligado ao Sindicato dos Lanifícios como funcionário. Entretanto, pronto, não concluí. Reconheço que a própria juventude, os namoriscos... Até acredito que podia ter, podia ter conseguido outras coisas, mas não, porque era muito difícil. Entretanto, depois de ter vindo de África tive um pequeno comércio, uma papelariazinha, que abri na altura. Estive a explorar aquilo durante dois anos, foi quando surgiu a hipótese de ir para o Hospital Distrital da Covilhã, onde estive 40 anos a trabalhar como auxiliar de ação médica. Gostei imenso daquilo que fiz, gostava imenso, adorava a profissão e a prova está que nunca saí do mesmo serviço, não, tive o mesmo trabalho sempre, todo esse tempo. Por incrível que pareça, e não está aqui que não nos ouve, fui apanhar lá o Sr. José Marques Martins com problema de rins. José Marques Martins: Mal eu sabia que tinhas passado pela minha mão para ir para o hospital, eu sabia que ele era bom… João José Silva: Sempre dedicado à cidade e o José Marques Martins é uma pessoa que eu conheci de perto, desde 1973. Agora, porque somos vizinhos… José Marques Martins: Eu andei com as filhas dele ao colo. João José Silva: Éramos uma família aqui, éramos uma família, toda a gente se dava bem, toda a gente se comunicava, era importante. E o Grupo Rodrigo, quer se queira quer não, ajudou e continua a ajudar muito nessa parte. Não tanto como nessa altura, porque era aqui que a gente se concentrava, era aqui que a gente conversava, era aqui que a gente bebia o nosso café e jogámos ao 21, para saber quem é que pagava os cafés, jogava-se as damas, como o Martins dizia, o snooker, o bilhar livre, as cartas, o dominó... José Marques Martins: Depois do trabalho, onde é que nós íamos conversar? Tínhamos o jornal e líamos, ouvíamos as histórias e depois começámos a.... João José Silva: Criar amizades… José Marques Martins: E depois há sempre os mais velhos, aqueles que estão nos órgãos sociais. Quando chegava a altura da revitalização de novos órgãos, iam apontando este e aquele e o outro não sei quantos. Bom, eu falo por mim e pela minha experiência, fomos indo e olha, estive cá desde 1975 até há dois anos atrás. Foi sempre, só tive um interregno de quatro anos. Portanto, depois passei para a Assembleia, que para lá me queriam chutar, mas criámos coisas interessantes e a beleza disto, não sei se concordarás comigo, com certeza de que sim, a beleza disto é que nós, mesmo não tendo a mesma… tendo opiniões diversas, conseguimo-nos juntar para pormos a coisa a funcionar, porque íamos à procura, com a nossa diversidade, de elencarmos um programa que fosse o melhor possível. E deixávamos as diferenças para irmos buscar aquilo que mais nos unia. Hoje, já não vejo, infelizmente, não acho que já não é tanto assim. João José Silva: E, acima de tudo, estavam os interesses da coletividade e não os interesses.... Exatamente como estar ligado à política. Eu, aliás, apanhei o José Manuel Martins na política, mas era muito antes de mim, o estar na política não queria dizer que a gente que se aproveitasse de alguma coisa como interesse pessoal, nós viemos para aqui para defender os interesses da coletividade. Era extremamente importante. José Marques Martins: Era engraçado, era belo, primeiro para nós. Vamos lá ver, o associativismo funcionava, não, funciona, porque nós trazíamos a família connosco, não fisicamente, mas vinham connosco, no coração vinha connosco, e nós queríamos que esta casa, que é a casa que vínhamos também trabalhar, que as famílias se sentissem aqui bem e por isso, quando tudo o que nós fazíamos era sempre com o objetivo… tanta vez que nós dizíamos aqui: as nossas esposas são aquelas que nos aguentam para estarmos aqui nos órgãos sociais. João José Silva: Aliás, a minha até realmente colaborou imenso, e as filhas, no rancho folclórico, nas marchas populares… José Marques Martins: Na costura, elas faziam tudo e a tua filha, ela também, as danças rítmicas, os miúdos… Quer dizer, elas também cresceram com esse gosto porque viam que os pais tinham gosto e se eles... às vezes eu perguntava: vocês gostam? Vocês andam cá… E, portanto, este gosto passava-se de pais para filhos. Porque era uma coisa linda e tudo o que era feito não era com o intuito de “eu fiz”, não, “nós fizemos”. Nós fizemos, e isso para nós foi... P: Então e essa propensão que vocês passaram para os vossos filhos, terão herdado dos vossos pais, os vossos pais tinham participação associativa? João José Silva: Eu no que diz respeito ao meu pai, sim. Foi sempre um....e era trabalhador na indústria de lanifícios, quer dizer, aliás, o movimento operário na Covilhã nessa altura era fortíssimo, como deve calcular. E ele já… ele entrava aqui e eu recordo até uma passagem extremamente importante, importante e desagradável ao mesmo tempo. Aqui na altura só se conseguia, a direção, na altura, só autorizava a admissão de associados que tivessem mais de 17 anos. E o meu pai vinha, eu vinha com o meu pai, mas só podia estar com ele, porque se ele não viesse, não me deixavam entrar e ele ainda arranjou uma chatice porque soube na altura que houve associados que admitiram com menos idade que eu, e só aos 17 anos é que me consegui fazer sócio desta coletividade. José Marques Martins: Aliás, era aquilo que diziam os estatutos. No meu caso, quer dizer, para além daquilo que o meu pai teve, aqueles genes, eu já via a coisa de outra maneira. Depende também tudo daquilo que nós temos na nossa alma, que vai cá dentro, porque repare: o meu pai também tocava numa banda, numa música, numa filarmónica, na Filarmónica de Tondela, e eu aprendi música também, por aqui, para tocar alguma coisa num órgão, porque me ajudava também nas celebrações. Mas gostei sempre do teatro, porque mesmo nos meus tempos de colégio eu fiz muito teatro, que é o teatro da escola. Fora disto, na minha aldeia, na minha zona, nós criávamos grupos, sem querer, que nem sequer chamávamos associação. Era um grupo em que nós nos defendíamos, em que nós sabíamos as coisas uns dos outros, em que nós nos ajudávamos uns aos outros e aprendemos a ver isso na agricultura, quando este grupo ia ajudar aquele na sacha e nas vindimas e aquele ia no outro. E isso, para nós, quer dizer, para nós era bom. Eu gostava porque também andei nisso, íamos: agora vamos ajudar aquele, depois daquele, vamos ajudar aquele e portanto, quando chegávamos ao fim, à noite, para nós era uma alegria vermos que todos estavam felizes, porque alguém ajudou outro e sabia que aquilo funcionava. Se me perguntassem o que é que isso era, eu hoje reconheço que aí já eram… havia um objetivo comum, havia o bem comum, isso era associação, era uma associação. Só que não era… aqui, quando eu chego à Covilhã, a coisa já era diferente, porque existe uma indústria, existe aquilo que nós também lá sentimos, os industriais daqui começaram a dizer assim: alto, precisamos que os nossos filhos… precisam de ter algo que os ensine, que os forme. Porque se nós não dermos condições aos nossos filhos para se educarem, para se formarem, não vale a pena continuar. Essa foi uma das razões que o associativismo nasceu aqui e lá também, pelo desporto, que é sempre uma escola de educação, em que havia também a parte da música, as letras e quando não havia escolas, era ali que nós íamos aprender. P: Fale-me mais nessa ideia, é muito interessante essa ideia de quase comunitarismo que existe na agricultura. José Marques Martins: Sim, muito importante, muito importante. Porque eu sinto isso de nós nos juntarmos em grupos e virmos para as grandes vindimas daquela zona do Dão. Nós íamos em grupos e havia sempre o líder do canto. O canto era aquilo que fazia a agremiação de todos. As desfolhadas, íamos agora a desfolhada, por hipótese, e íamos depois à desfolhada do não sei quantos e então nós todas as noites nos juntávamos e o milho aparecia nas eiras. E então como é que nós criávamos essa... isso é que que eu trouxe e que me ajudou. O que é que nos ajudava? Nós não íamos para as desfolhadas e estávamos ali feitos monos a desfolhar. Havia uma rivalidade como existe nas associações. A rivalidade de rapaz com a rapariga: eu liderava a parte do canto dos rapazes e picava as raparigas, onde havia uma tal Fernanda, que também picava os rapazes e isso criava... e quando nós damos por nós, já estava o milho, já estava tudo desfolhado, já estavam espigas todas no sitio como devia ser e já estava lá uma mãe, ou uma avozinha, a preparar o bacalhau com cebola e com tomates e com pão para nós comermos tudo no final da desfolhada. Isso era festa, fazíamos essa festa. E, portanto, isso cresceu connosco e ficou cá. Depois, é claro, aparecerem condições numa zona, como aqui apareceu, condições para trazer à tona aquilo que nós fazíamos, vamos em frente. Ou paramos ou deixamos que isso cristalize… Ou então fazemos aqui. Eu recordo que uma das primeiras coisas que fiz, que ajudei a fazer, na parte do teatro… fizemos aqui o Grupo Girtec, inclusivamente estive em Évora nessa altura a tirar o curso de animação cultural no teatro Garcia de Rezende, em 76, portanto, que me permitiu algumas luzes. Mas havia essa parte, digamos agrícola, muito interessante em que as pessoas se ajudavam umas às outras… P: E em meio urbano, também havia essa entreajuda informal? José Marques Martins: Diferente das aldeias. Aliás, aqui em meio urbano era assim: as pessoas trabalhavam e praticamente onde se reuniam era no final do trabalho ou nas tascas, nas tabernas, que era a Viene, era quase porta sim, porta sim, e depois à noite vinham às coletividades. A coletividade abria às 6:30 da tarde, todos os dias. E quando eu falo aqui num senhor que era, na altura chamavam-se contínuos, agora são empregados ou colaboradores, falámos aqui no senhor [...], era um homem que... de muita postura, de muita responsabilidade, gostava imenso da coletividade ao ponto de sofrer na carne dessa forte união. O que ele sentia pela coletividade e ao pôr-se ao lado dos dirigentes, na altura, era complicado... Ele foi preso na altura, vieram-no buscar ao Grupo de Rodrigo depois do seu trabalho, a polícia política veio buscá-lo aqui. Porque ele era forte colaborador com a direção, o grupo que esteve na altura... Quando se criou o grupo estávamos em ditadura e todos nós sabemos que as ditaduras viviam um bocadinho às avessas com o associativismo, porque o associativismo é democrático. Juntam-se várias ideias, juntam-se várias pessoas com um objetivo comum, mas as ideias fluem… Não há ali um indivíduo que diga: eu é que eu é que comando, é que não sei quê… Não, todos contribuem. Portanto, a vida associativa é uma vida que se transporta para a cultura, quer dizer, para os objetivos de luta. E é, tal como aqui, as coletividades, qual é que foi a luta aqui? Era o ensino, era a formação e ensino, educação e, neste caso, a lutuosa, como nós também sabemos. Havia razões. E o que era a lutuosa? Coitadas das pessoas… Quando morria alguém não tinham dinheiro, não tinham, sei lá, para mandar tocar um cego, quanto mais, era um objetivo definido, havia uma luta. E já que o governo não conseguia fazer chegar até ao necessitado essa resposta, eram as pessoas que se juntavam numa certa zona para criar essa resposta. E aí, claro, quem tem o poder, não gosta que alguém vá fazer-lhe frente com isso. Isso é verdade e, portanto, o associativismo era isso e daí que veio para aqui. E na altura olhavam-nos com uma certa… João José Silva: Na altura, quem não era deles, era comunista, tudo era comunista, desde que não fosse… Mas não porque aqui o GIR teve nos seus órgãos sociais, um ministro, na altura. José Marques Martins: Que foi presidente da Câmara e que oficializou a primeira escola primária aqui no bairro, que foi aqui na coletividade. O que era isso? Era a possibilidade de termos professores oficiais, porque até aí a escola era aqui do grupo, mas não era oficial, só que havia pessoas que ajudaram a dar a escola aos filhos dos funcionários... João José Silva: Depois foi oficializada… P: Estudou aqui, o João? João José Silva: Eu estudei, não aqui no GIR, não. Eu estudei na escola aqui do bairro do Rodrigo, e esse doutor Almeida foi eu quem travou o encerramento da coletividade. Porque era assim, havia um ajuntamento: o que eles estão a fazer na coletividade? Vamos lá ver o que é que se passa? Porque é que vocês estão a reunir? Porque é que vocês têm que estar a reunir? E aí havia desconfianças… José Marques Martins: Isto foi entre 1921 e 28. E em 1928 é quando a escola é oficializada e, sendo oficializada, já não era fechada de ânimo leve. A partir do momento em se oficializa uma escola, numa instituição, espera lá, isto é o Estado que dá luz verde, se dá luz verde… Porque até aí, é porque houve aí alguém que mexeu os cordelinhos, diga-se em abono da verdade. Agora que o princípio quando, faço ideia, quando isto começou nas tabernas e começaram a querer alugar uma casa aqui e arranjar e não sei quê, é que a PIDE e sei lá que mais o quê andaram de olho acima. O que é que estes indivíduos andam aqui a fazer? O que é que não sei quê, portanto tudo isso era... João José Silva: Até porque a escola oficial terminou aqui em 1950. Foi quando foi inaugurada a escola do Bairro do Rodrigo, em 1951. Ela tem, precisamente… é quase da mesma altura que o bairro em si. Eu, quando vim para o bairro do Rodrigo, a escola tinha sido inaugurada há um mês ou coisa assim. Foi logo a seguir, ou foi antes… Eu vim a seguir, exatamente. Pronto e depois entrei na escola aqui, com seis anos. Seis para sete. P: E nesse período antes do 25 de Abril, quais é que eram as principais atividades em que vocês participaram? José Marques Martins: Eu lembro-me que participei. Eram as damas, eram os jogos de mesa, jogos de… João José Silva: Snooker, bilhar... José Marques Martins: Mesa, era jogos de mesa, porque desporto no exterior não havia. Futebol de salão, de 11, não havia. Isso apareceu mais tarde, na abertura, depois… foi o 25 de abril. João José Silva: Aliás, antes do 25 de Abril, vai me desculpar, dentro desta coletividade foi formada uma outra, que neste momento é o CCD do Rodrigo. O CCD do Rodrigo saiu daqui, formou-se aqui. Porquê? Porque o CCDS, na altura, era um centro de recreios populares ligados à FNAT. E como eles não tinham instalações próprias, tiveram que pedir aqui a cedência de salas ao GIR do Rodrigo, onde eles fizeram os seus estatutos e organizaram-se como coletividade com o auxílio precisamente da FNAT. E aí, o que é que acontecia? Como havia os campeonatos regionais de futebol, que eram patrocinados pela FNAT, só conseguiam entrar se eles tivessem um local, uma sede, um sítio onde pudessem exercer a sua atividade. E essa associação, que funciona aqui, é nossa vizinha, e que está ligada hoje ao INATEL (não sei se já não é INATEL, é fundação), continua viva. E essa associação criou realmente um certo dinamismo a nível de desporto, porque elas estavam direcionadas para o desporto, nós aqui era mais a cultura, o teatro... José Marques Martins: Já fizemos os primeiros jogos florais da Covilhã, fizemos um jornal também, fizemos um boletim. Hoje, olhando um pouco para trás, João, o associativismo tinha uma grande força, porque não havia mais nada, não havia outras respostas. As pessoas procuravam respostas. Onde é que vinham procurá-las? Era aqui. Estar aqui onde havia o jornal, onde havia a televisão, onde havia um rádio. João José Silva: Os banhos. Vinham pessoas com a sua toalhinha, era aqui, na parte de baixo. José Marques Martins: Havia o sapateiro, as máquinas de barbear… Hoje o que é que nós temos? Temos a televisão que nos traz a informação e a contrainformação. E hoje o associativismo é uma forma de estar, portanto, há sempre um objetivo comum. Agora tem de ser recriado com novas formas, já não é como aquela altura. Quando, há um ano atrás, dizia: vamos, temos que fazer isto, ok? Nós vamos fazer, mas temos que fazer de uma outra forma que capte, digamos, que as camadas novas venham. Mas já não é da mesma forma que vinham antigamente. Antigamente vinham à procura de uma resposta, porque não tinham outras. Hoje, sabemos nós, que temos que estar em paralelo com outras respostas e hoje o associativismo vive de outra maneira. João José Silva: Eu digo mais, e com muita pena, o facto de haver grande alteração em tudo isto, porque as coletividades têm tendência a fechar-se. Com muita pena que eu digo isto. Ou terá que haver aí, o próprio governo… José Marques Martins: Eu, as coletividades, eu tenho uma outra... Isto agora, por exemplo, as coletividades têm que tomar juízo. Vamos lá ver, antigamente, lembro-me, lembro-me quando tínhamos água da poça, que era a da poça. Nós tínhamos as nossas hortas e o meu pai dizia-me assim: pega no sacho que hoje a água é nossa. Então eu vinha pelo caminho abaixo a calcar as loras dos bichos que era para a água não fugir, que era para a água chegar mais rápido à minha horta e para evitar que ela fosse para a horta do vizinho. Porque a água era pouca, tínhamos que a distribuir e a água era pouca e naquele dia era para nós, então andávamos a vigiar se alguém... Ora bem, nós tínhamos que ser transparentes, mesmo se quiser, tem que ser transparente. Ou os subsídios que possam vir têm que ser com transparência, saber para que é que servem, para onde vão, como é que são utilizados, porque senão estamos sempre naquela dúvida. Fulano que está mais perto da fogueira, aquece-se mais, não sei quê. Isto foi uma moda que andou e é preciso que pare. Depois também temos uma outra coisa que se torna importante: nós sabemos que nós temos instrumentos e que a outra coletividade não. Tem que haver algo que consiga saber o que é que aquela coletividade precisa e aquela e aquela, e, em vez de andarmos todos a comprar coisinhas diferentes, os instrumentos de uma têm que servir para os instrumentos da outra. É assim que eu entendo. É assim que entendo, porque senão corremos o risco de termos os campos de futebol cheios de tojo e de mato e nas aldeias e corremos o risco de termos grandes instalações em coletividades e termos poucos recursos humanos lá dentro. Eu recordo-me de uma entrevista que uma vez dei, quando esta casa teve a estrutura que tem, é uma beleza, sem dúvida, uma beleza, e paredes novas. Sem dúvida. Eu recordo-me disso. Mais importante do que numa casa aquilo que conta são os recursos humanos, porque se a casa não tiver recursos humanos, fecha, de hoje para manhã fecha, então servirá para outra coisa. Os recursos humanos é a coisa mais importante e trabalhar com recursos humanos dói e é preciso ter capacidade para gerir recursos humanos. Mas, sabendo gerir, nós conseguimos chegar lá desde que as coisas sejam postas na mesa, com toda a clareza. A Câmara subsidia e faz o seu papel. Mas não é, já não é, não pode ser aquele.... Vá lá que agora parece que há uma lei, é uma lei que conseguiram criar, um regulamento, que é importante. Mas o Parlamento… tem que ser feito desta… João José Silva: A atribuição dos subsídios não é dada assim, como era antigamente. Tem que se apresentar um plano de atividades, mas que não seja um plano de intenções: vamos fazer… Não, tem que dizer no papel porque é que vão fazer isto. José Marques Martins: Nós temos aqui um evento associativo que é tremendo e que não colhe frutos, não sei porquê: as marchas populares. Juntam-se várias entidades, várias associações, que gostam, que estão interessadas. Junta-se a Câmara. Há um bolo, há uma água da poça para todos. E então cada um, perante um mote próprio, sei lá, aquilo pode-se de hoje para amanhã, criar uma nova forma. Mas vamos, faz-se festa e só não vê quem não quer ver, não é quem não vê, que o que é que uma marcha faz, ao sair de lá de cima do campo das festas e vir até ao Pelourinho e ver aquele mar de gente a ver, que vem ver. Se vêm ver é porque gostam. E a Câmara sente-se ufana, mas são as coletividades, são as associações que estão a fazer todas um trabalho, cada um. E as pessoas vêm, as pessoas aderem. Porque há um objetivo, de fazer festa. Agora, aquilo que o João dizia é verdade. Se não houver um impulso que dê dinâmica a estas casas, morrem. E morrem porquê? Porque pode haver a cristalização dos órgãos. Isto chega a um ponto que também aborrece. O João esteve aqui muitos anos na direção. Eu tive mais tempo, eu cheguei a um ponto... muitos anos na casa que sentia-me preso, e agora? Não há gente nova e nós, não é que não gostemos da casa, mas o gosto que nós temos por esta casa é, digamos, é ultrapassado por aquilo que nós queríamos, de que outros viessem com novas ideias, como uma forma de estar... E não vêm, não há. E entra-se numa direção com nove elementos e é só quatro ou cinco que às vezes aparecem, sabe Deus com que sacrifício. Porquê? Porque eles próprios também, quando se juntam aqui e… eu não sei o que é que... O João nisso teve muito mais tempo na parte da direção do que eu, mas via, também sei ver. Chegava a um ponto que também se disse: enfim, mas vou trabalhar para quê? Havia a própria pandemia, veio estragar ainda mais. Nós tínhamos aqui a beleza dos Santos populares, aqui neste espaço que depois nós vamos ver, onde fazíamos as sardinhadas, fazíamos essa festa, e isso dava-nos ânimo. Vinha muita gente para a coletividade, sei lá, mais tarde, então vinha, só que veio a pandemia, retirou-nos gente. Agora estamos novamente a começar e, claro, há um elemento que sempre frutificou no associativismo, que é a taberna. A taberna sempre cá ficou. Em todas. Uma associação que não tenha um bar não progride. João José Silva: Em parte, um bar é na realidade... José Marques Martins: Um bar é que chama... é o café, a cerveja, as bebidas... João José Silva: Porque as bebidas são mais baratas... José Marques Martins: Vem desde os primórdios. João José Silva : Sim, já vem. José Marques Martins: Então, o bar tem que lá funcionar, se houver uma associação sem um bar… Nem que lá haja uma máquina de café. João José Silva: E quando refiro aqui, com pena, que digo que as coletividades têm tempos difíceis é que reparo, e aqui o José Marques é da minha opinião, é que não há pessoas a quererem colaborar. Hoje é… quanto é que é? Não há dirigentes E aí a Confederação, e muito bem, tem trabalhado no sentido de que, aliás já há o estatuto de dirigente associativo… Mas porque é que o dirigente associativo, que ocupa um pouco da sua vida, que quer queira quer não, nós andamos aqui uma vida, nós prejudicamos até inclusivamente o ambiente familiar, porque não estamos lá, porque aqui era a nossa segunda casa. Porque é que não há-de haver um incentivo para que as coletividades se mantenham abertas? José Marques Martins: Os governos pecaram. Eu não estou a dizer para nos darem uma reforma, nem nada disso. João José Silva: Porque hoje nota-se as dificuldades. Por exemplo, a Covilhã é rica em associações, como a doutora sabe. Neste momento, posso-lhe dizer que amanhã há Assembleia geral do Grupo, ato Eleitoral para os órgãos sociais, novos órgãos sociais. Posso-lhe dizer que amanhã há n associações que estão precisamente nessa situação: umas não têm direção, têm comissões administrativas, outras têm uma direção, mas à última da hora um não quer, desiste. É essa a parte, e o que é que a quantidade pode oferecer neste momento? Eu muita vez comentava para o Zé Marques, que é a pessoa com quem a gente, com quem a gente lida e eu lido muito bem, porque é um homem com muita cultura, fez coisas belíssimas aqui no Grupo Rodrigo, o Grupo do Rodrigo muito lhe esta agradecido, é verdade. O que é que o GIR pode oferecer às pessoas para virem à coletividade? Televisão... Aliás, a Confederação pôs aqui um posto público [de internet]. Nós tivemos um posto público aqui, na altura, com computadores, oferta pela Confederação, e também a parte dos instrumentos musicais. José Marques Martins: Tu estás a tocar num ponto importantíssimo, que é verdade. O dirigente associativo devia ser considerado, não devia ser só considerado na altura de eleições, nem só para grandes discursos escritos ou orais, através da rádio. Mas devia ter uma dignificação diferente. Nem que para isso tivesse que ter, e eu comungo disso, ainda há pouco tempo tirei um curso de evacuação, por causa de defesa de incêndios. Porquê? Porque estou a presidir a um lar e é uma unidade de idosos e de crianças e, portanto, preciso também de saber um pouco disso. Isso significa o quê? Que o dirigente… e sou voluntário, portanto, vamos cair no voluntariado. Ser voluntário significa algo que nós darmos de mão beijada sem ser à espera de usufrutos para o próprio, é para o bem comum. Isso é ser voluntário. Voluntário é quando damos alguma coisa para o bem comum. Agora, o problema é quando, e muitos pensam hoje que se vem para estas casas, para se atingir, digamos, uma elevação, portanto, um posto. Não pode ser. Se vêm com isso, não vale a pena virem. E, por isso, o dirigente associativo tem que ser alguém que tenha que ser dignificado. Como? Há muita forma. Não é com dinheiro, não é com salários, não é nada disso. Mas há dignidade e há posturas e o dirigente associativo teve muito… e há muito que é louvado pelas autarquias. As autarquias devem louvar os dirigentes associativos. E devem louvar por várias maneiras e posso-lhes dizer como é que podem e quais são as razões, por que é que os levam a isso. O que é que nós podemos oferecer? É a pergunta que se coloca: o que é que vocês lá têm para eu ir lá poder ir. Essa é a pergunta que fazem lá fora: o que é que vocês lá têm? Então temos que criar aqui. As autarquias também têm que entender que nós temos instalações onde podemos dar possibilidade de... dar formação, dar informação, fazer formação, fazer apresentações de pinturas, tanta coisa que se pode... se cá vierem hoje 15 indivíduos ver uma sessão de pintura ou uma sessão de leitura, vêm só cá 15 hoje, mas na próxima já vêm sessenta, porque são os 15 vezes 4, ou seja, se a coisa for bem clara, se houver aqui algo que lhes possa oferecer, caramba, custa assim tanto oferecer umas bolachas e um bolo e um porto para as pessoas aparecerem? Quer dizer, não é isso que lhes vai encher o estômago, mas é uma forma de acolher, uma forma de acolhimento e fazer uma leitura, por exemplo, ou mandar uma informação com as vacinas, com tanta coisa que nós temos, tantas dependências que são gratuitas para as autarquias. João José Silva: O GIR sempre soube receber bem. José Marques Martins: E onde os órgãos de certeza que se disponibilizariam, de acordo da sua especialidades, a ajudar, mas não, prefere-se pagar. Não estou a dizer que não se pague, tudo bem, mas existem possibilidades. Era uma forma de as associações estarem a servir o bem comum. Se as próprias autarquias não nos dão... Se só estão à espera que a gente lá chegue com o boné na mão para pedir o subsídio. Eu não gosto muito disso. 00:20:18 Joana Dias Pereira Então vamos voltar ao passado, pode ser? Embora esta conversa sobre o futuro seja também muito importante. Mas há bocado estava a dizer que também tinha estado antes do 25 de Abril no sindicato. João José Silva: De 1964 a 68. P: Que responsabilidades é que tinha? João José Silva: Eu era um escriturário na altura em que andava assim: eu batia à máquina. 10000 associados que tinha o sindicato, porque eram umas folhas que a gente punha o número daquele operário, a empresa… Por exemplo, posso-lhe dizer: a Nova Penteação, na altura a Penteadora, a Ernesto Cruz, o Alçado e Filho, a Lano Fabril, eram empresas com muitos trabalhadores e eu, a minha função era trabalhar nessas folhas, escrevia os nomes um por um. Joana Dias Pereira: E depois também esteve no sindicalismo, depois do 25 de abril? João José Silva: Estive. Fui dirigente sindical em 80 e picos, fui dirigente sindical, estava na área da saúde. E na altura o Mota, que era o responsável daqui do distrito de Castelo Branco, convidou-me e estive ainda… fiz o mandato de dois anos assim. Estive ainda ... P: Mas eram realidades diferentes, o sindicalismo antes e depois. João José Silva: Muito diferente. Também a verdade é que às vezes os horários... eu era assim, eu quando aceitei ser dirigente sindical pus essa logo ao Mota: eu não vou tirar tempo nenhum ao trabalho. Eu vou ser dirigente, sim senhora, com muito gosto, mas só vou às vossas reuniões, aos vossos congressos quando tiver folgas ou disponibilidade. Não quero meter nenhum documento a dizer que eu tinha direito a determinadas horas e determinados dias. Nunca, nunca, é assim, como diz aqui o Zé Marques, nunca me aproveitei, nunca precisei de nada para me promover, porque tinha a vida feita. Eu nunca, mesmo a nível do Grupo do Rodrigo, mesmo a nível de política, e o Zé Marques sabe perfeitamente, tivemos ali, colaborámos bastante, andámos ali… P: E estiveram noutras associações para além do GIR? José Marques Martins: Dirigente associativo, nunca fui, nunca fui. No serviço do meu do Instituto estive, mas isso...Agora, fora disso, sou sócio, mas não como órgão, lá dentro não… João José Silva: Eu faço parte de três. José Marques Martins: Trabalhei alguns anos na Liga Portuguesa contra o Cancro, mais tempo. Depois deixei, na altura em que a minha mulher adoeceu, e passei para outra área, para esta área do diaconado. Mas outras não, porque quer dizer, ou se trabalha numa... isto é como os presidentes administrativos das empresas, ou é um ou é outro, e depois andam a buscar daqui e dali. Havia lá… ainda bem que havia outros. Hoje, possivelmente, se nós se nos convidassem para ir para outras instituições… Mas também já não temos... Eu, pelo menos... P: O João disse-me que estava também na Liga... João José Silva: Estou, faço parte, faço voluntariado na Liga Portuguesa contra o Cancro, com muito gosto. E agora, sem ser…, fui convidado para fazer parte da Associação de Diabetes da Serra da Estrela. Estou a colaborar, aliás, sempre gostei de servir a comunidade, faço isso com um amor e carinho… E aí é, também um pouco da minha da minha vida. O Zé Marques teve uma vida muito mais ocupada, é uma sorte, mas ele faz muito bem o que faz e também é uma pessoa, não é por estar aqui presente, mas quero lhe dizer que é um homem com muita valia... José Marques Martins: Eu entrei para o diaconado, entrei para esta coisa, porque me interessei e estou a trabalhar em várias paróquias e faço a assistência espiritual também na prisão, o que me dá… Ensina-nos saber a vida deles, porque caíram ali, como caíram, o que é que faziam e, portanto, todos nós ficamos com essa ideia. Por outro lado, a nível da minha profissão no instituto, nós ouvíamos aquilo que as pessoas nos diziam e nós éramos túmulos, ou seja, só púnhamos na ficha aquilo que interessava e que era corriqueiro para outro colega ver. Mas, por exemplo, ouvíamos desabafos. Nós passamos aqui alturas de grandes crises, era cíclico, de três em três anos a têxtil tinha uma crise. João José Silva: E vai-me desculpar, na altura em que estive no sindicato, quando o Martins falou em 60 fábricas, upa, upa. Eu estive no sindicato, na altura eram 123 firmas. Claro que a gente… havia firmas que só tinham cinco teares ou tinham 10 trabalhadores, mas eram consideradas as firmas: 123 firmas, todas elas. Algumas eu recordo perfeitamente. José Marques Martins: Depois veio a crise das confeções e havia coisas deste género, havia desabafos. Eu estive numa Assembleia, pertenci a uma Assembleia Municipal que esteve retida. Trabalhadores de uma empresa não nos deixaram sair. E ouvia coisas, deste género, naquela altura havia a possibilidade de uma empresa que tinha 700 ou 800 trabalhadores, para poder vingar, tinha que pelo menos metade vir para o subsídio de desemprego e ficava lá outra metade. Então ouvia-se isto: ou vêm todos ou nenhum! Quer dizer, ouvia-se isto, era uma forma de estar. As pessoas… quer dizer porquê? Porque não havia uma informação que fosse transparente e concreta cá para fora, é preciso que seja feita desta maneira. Como agora com as vacinas, quando as informações vêm para o exterior como deve de ser, o povo até aceita. Quando não vêm... João José Silva: Aliás, o GIR teve aqui nas suas instalações, durante algum tempo, as formações dessas pessoas, como diz o Martins: vais para o desemprego... E eram colocadas aqui a fazer formações que não tinham nada a ver com a profissão que tinham. José Marques Martins: Nós tínhamos outras entidades e isto era assim: as entidades que nos abriam as portas e que nos facilitavam mais a vida tinham condições. Por outro lado, também havia esta possibilidade de, depois, quando elas começaram a fechar, porque ao princípio as mães, sobretudo as mães e os pais, a menina ou o menino, tinham o quinto ano, tinham de ser telefonista ou empregado de escritório. E eu, tanta vez que eu dizia para elas e para eles: por isso esqueça o emprego de escritório e esqueça o telefone, porque os deficientes também têm o direito a irem para o telefone e nós tínhamos um telefonista. Preparem-se para serem desenhadores, para serem modelistas. Tirem um curso de modelista. Mas porquê? Vêm aí as confeções, começaram a vir as confeções em grande. Claro que depois tiveram que ir tirar o 12º ano para serem modelistas, quer dizer. Portanto, houve um crescimento. P: E como é que era? Como é que se viviam aqui as greves, as lutas? Isto é uma zona muito operária... José Marques Martins: Tem graça, os primeiros mil escudos… Logo a seguir ao 25 de Abril, tivemos então, houve ali um aumento de mil escudos. A Covilhã sempre teve essa fama. João José Silva: Houve uma greve muitíssimo forte, já lá vão uns anos, ainda no tempo do Estado Novo. José Marques Martins: E antes do 25 de Abril, eu lembro-me, não estava cá a viver mas lembro-me de que a Covilhã… Havia aqui umas reuniões que se faziam. João José Silva: Porque era muita gente aqui, na altura o movimento operário era fortíssimo, fábricas com 700 e 800, e depois não era só, eram famílias completas... P: E isso vivia-se aqui no grupo, como é que era? João José Silva: Sim, sim, aqui, portanto, no grupo entrava-se, comentava-se às escondidas, sempre com receio que o parceiro que estivesse ao lado fosse denunciar, que estava numa reunião, que se ia fazer uma greve. José Marques Martins: Sabia-se, primeiro porque havia a parte clandestina e numa empresa é muito fácil e havia códigos próprios. Eu recordo-me, lá para os meus lados havia pedreiros, e tinham um código próprio. Quando o patrão chegava, eles tinham um linguajar próprio e as regiões tinham um linguajar próprio, ou seja, uma forma de se exprimir com uma certas palavras que só eles é que entendiam. Quem estava fora ouvia, mas não percebia. E isto é como eu digo muitas vezes, como se diz na Sagrada Escritura, mas não percebem. Só quem é de dentro é que percebe e, portanto, aqui também é a mesma coisa, nas fábricas, nas associações, comentava-se, mas de maneira a que... João José Silva: Até porque nos seus órgãos, a maior parte deles eram trabalhadores, eram pessoas da indústria de lanifícios, estavam ligados, quer queira quer não, direta ou indiretamente, ligados ao movimento operário, que era forte. José Marques Martins: E havia outra coisa. As famílias eram muito unidas, ou seja, não, não iam, não havia tantos problemas para onde se ir buscar e falar na vida dos outros. As pessoas não falavam, não comentavam, com receio de que lhes caísse em casa algum agente. João José Silva: Claro, a gente sabia aqui no Rodrigo quem é que era da PIDE. Estava sinalizado, a gente sabia, mas não tínhamos a garantia absoluta.... José Marques Martins: Eu cheguei cá, chego aqui em Novembro, e em Dezembro sou avisado, alguém me avisa de dois indivíduos da PIDE, alguém me avisa: cautela com sicrano. João José Silva: Nós tínhamos ... estavam sinalizados por nós, tanto que quando eles entravam aqui… uns não entravam porque não eram sócios e aqueles que entravam, recordo... José Marques Martins: Nós conversávamos, ouvíamos, mas para com ele parava, ali as coisas paravam. P: E nessas greves que duravam muito tempo, não havia movimentos de solidariedade para as famílias grevistas? José Marques Martins: Havia, eu lembro-me, por exemplo, na questão de quem tinha crianças e que as mães não podiam ter leite para as crianças. Então havia os leiteiros, havia uns indivíduos que andavam aí com os potes de leite. E portanto, ouvia às vezes com visitas destas… Não, não, hoje leite tem que ser… só lhe dou tanto, porque a fulana tem lá uma menina pequenina e não ganho nada, o próprio leiteiro tinha assim... e nas lojas nas lojas havia o fiado. João José Silva: O próprio GIR oferecia no início de cada ano letivo. Oferecia aos filhos dos associados esses livros, àqueles que tinham mais dificuldade. José Marques Martins: Pois, deixa-me ver, os vicentinos, nós ajudávamos muito. Os vicentinos são... ainda hoje, nós temos grupos que em que temos esse objetivo, nós temos aí zonas e temos famílias a quem ajudamos, quer com pagamentos de água e da luz, com os remédios e também com alimentos. Quer dizer, para além do Banco Alimentar, que aparece. Mas quando é nessas alturas, nós… quer dizer, ainda se aparece mais e depois até a própria génese das pessoas que vivem aqui, mesmo aqueles que não sendo de cá, mas que já são de cá, por exemplo, o Bairro do Rodrigo, estas casas que foram depois criadas já para outras pessoas que vieram para cá, até eles próprios, portanto, criaram esse élan de ajudar. João José Silva: E as comissões de moradores e tal, que na altura surgiram… O Rodrigo era um bairro operário. Ninguém lá morava que não fosse operário, exceto as quatro professoras da escola oficial. P: A comissão de moradores foi fundada quando? João José Silva: Foi em 76. José Marques Martins: Sim, certo, fizeram-se coisas bonitas também. Nós fizemos coisas interessantes. Aumentámos a escola e havia um Jardim infantil para onde iam os miúdos. Criou-se aqui, ele começou aqui. As festas populares que se faziam dos Santos, criámos uma casa mortuária aqui para o bairro, as festas populares de Santo António, onde a coletividade também teve um papel importante, e fizemos um trabalho… Sei lá, a gente diz assim, conseguimos reunir pessoas, mas nós éramos duros. O objetivo tinha que ser cumprido e às vezes afirmávamos: aquilo tinha que ser cumprido, isto é assim e cada um tinha a sua função. João José Silva: O GIR teve sempre uma ligação à comunidade muito forte. Isso é anteriormente, já não é do tempo dos Zé Marques Martins, porque é uma pessoa que apareceu na cidade em 1973. Antes havia uma festa, que chamavam a festas Zacarias, essa festa, era a festa de chamávamos Zacarias, porque ele é que era o grande impulsionador, um homem ligado ao GIR, mas era a festa das florinhas da rua. Então ele fazia essa festa, ia pelas quintas, dos associados e não só, pedir determinados alimentos e depois vinha para a festa para fazer oferendas. Aquilo era leiloado e o valor daquelas oferendas era entregue às florinhas da rua, que era uma instituição de solidariedade social, onde tinha crianças abandonadas. José Marques Martins: Essa festa depois foi recriada, recriei-a eu, durante três anos, para fazermos a casa mortuária e a Igreja, também fazíamos os tais leilões e depois fazia-se essa festa e a Festa de Santo António, e fazíamos grandes festas, que vinha para aí gente… Porque é que elas morreram? Morreram porque, quando nós olhámos, foi aí que começámos a notar, que se começou a ver o decréscimo dos órgãos diretivos, das pessoas. Começámos a olhar para o lado, ao princípio juntavam-se ali seis ou sete, oito ou nove ou 10, e depois começámos a olhar para o lado e só havia três ou quatro e depois quem ia já não estava interessado. E depois aquilo tirava-nos tempo, porque as famílias… E por isso é que no associativismo a família tem um papel importante. Nós estamos a falar de dirigentes associativos., A família associativa é para criarmos família, mas as nossas famílias eram o nosso alicerce: olha que eu só chego às tantas horas para comer, olha que eu não sei quê, as nossas famílias eram... Um bom dirigente associativo tem que ter atrás uma família capaz de aceitar e ver as dificuldades que às vezes… às vezes eram três da manhã ainda estávamos aqui... Hoje as famílias destroem-se e não estão tão... João José Silva: Hoje é completamente diferente. Por isso é que eu digo, com pena, que as coletividades têm que seguir para outro caminho, como diz o Zé Marques, com outros eventos, outras ideias, ou então… Porque não há ... P: Isso, as mulheres não vinham também? José Marques Martins: Vinham, sim. As senhoras vinham com outras, não vinham para… Depois, mais tarde, passaram a vir também para órgãos diretivos, mas lá mesmo não se sentiam assim tão bem. João José Silva: Não, não era fácil arranjar mulheres para os órgãos sociais. José Marques Martins: Por exemplo, havia um evento, havia o teatro ou havia dança. Vêm as mães com as meninas, vêm as mães… Havia as marchas, até máquinas de costura para aqui vieram para costurar e, portanto, elas colaboravam naquilo que os maridos estavam.... Nós planificamos tudo bem, também entrávamos, mas elas lá faziam, lá compravam, não sei quantos, e aquilo aparecia feito. E depois, no fim, quando fazíamos a festa, de tudo cumprido, dizíamos uns para os outros: epá, mas a malta parece que não fez assim tanto, podíamos ter feito melhor. Quer dizer, tínhamos feito uma coisa em beleza, mas no fim, dizer assim, podíamos ter feito melhor. João José Silva: É, o movimento associativo é.... José Marques Martins: Hoje não. Hoje faço uma coisa: pá, somos os melhores. Não, aquilo era... João José Silva: Hoje é assim, não se faz, manda-se fazer. É o grande problema... José Marques Martins: E depois aparece feito. Há alguém também que faz e esse alguém que faz começa a fugir. O indivíduo, as coisas aparecem feitas, mas o indivíduo começa a fugir. Espera aí, sou só eu? Começa a olhar para o lado e diz assim: mau! Porque depois é aquele que é fustigado, e então começa: não posso. Declina, porque o outro não sabe fazer, porque nunca quis aprender a fazer, porque isto é como os dirigentes associativos, quem vem de novo não é um dirigente associativo sem mais nem menos, tem que se ir modulando e formando com os mais velhos. Porque vai gerir recursos humanos. Ali fora, às vezes há disputas, há bocas, há um ou outro que se porta menos bem, que diz alguma coisa diferente e ser dirigente associativo é saber conciliar às vezes as diferentes ideias. Ser capaz de dizer assim: ele tem razão, realmente é verdade, isso é que é. Ser dirigente associativo não é chegar aqui e dizer assim: vamos fazer aquilo e aqueloutro. Tenho que ir à procura de recursos e saber gerir, e saber gerir é saber chamar as pessoas para um objetivo comum e quando é preciso fazer um objetivo comum, de certeza que se faz. Uma coisa que esta casa sempre teve foi isto: caiu o telhado aqui três vezes, não foi, e as pessoas apareceram. João José Silva: Uma solidariedade enormíssima, arranjar forças e pessoal, a gente ficou surpreendida mesmo. José Marques Martins: Havia um objetivo, eles viam que os dirigentes trabalhavam, nós saíamos do nosso serviço e vínhamos para aqui trabalhar: caramba, vamos lá ajudá-los. Eu tenho um exemplo concreto disto, e o João... na direção a que presidi, na altura, eu recordo-me que nos festejos populares, aqui sempre foi uma casa que teve grandes festejos, mas eu recordo-me que nesses anos, e é a experiência que tenho, de quando chegava aí às cinco horas da manhã, seis, e já havia mesas livres, eu pegava num balde de água e limpava as mesas para arrumar e diziam assim alguns colegas meus: epá, deixa isso, amanhã à tarde… E eu assim: não, se fizermos isso agora, a malta dorme melhor. Porque vamos descansados com isto limpo e ninguém saía daqui sem estar tudo limpo e lavado. E foi uma imagem que pegou. Todas as outras direções que vieram, na sua grande maioria, terminavam os festejos e, em vez de se irem ali sentar,, era mais um esforço, eu sei que era, mas também no outro dia, quando aqui chegavam à tarde, para outro dia de festa, era só pegar. Era um sacrifício, mas quer dizer, mas trabalhávamos. E quando, eu lembro-me de estarem aqui sócios assim: Epá... E havia sócios que: vamos lá dar uma ajuda, andam ali aqueles pobres sozinhos. Quer dizer se nós: Epá deem aqui uma ajuda. Olha, então aqueles não querem fazer nada e agora querem que a gente la vá? Portanto, isto também é ser dirigente associativo... P: Dar o exemplo, não é? José Marques Martins: Sim, porque, ora bem, se nós não dermos o exemplo, os mais novos não vêm… João José Silva: Muitos horários seguidos eu fiz no hospital, porque vinha para aqui trabalhar... Ai é? Queres dança? Então agora vamos fazer 16 horas. Trocava horário para jogar ... José Marques Martins: O João José, aqui na casa, também passou por aqui e sabe muito bem das dificuldades... E quando às vezes nos pedem… Quer dizer, nós gostamos da casa, gostamos da casa, mas já demos muito pela casa e temos pena que um dia possa fechar. Mas, se pudermos colaborar, contribuir para que isto cresça... João José Silva: E penso que estamos habilitados para, de alguma maneira, responder àquilo que é solicitado: um pouco da história do GIR, o que ele foi, o que fez. O que poderá vir a fazer, aí já é com as direções... José Marques Martins: Com as direções, uma ova, com os sócios, a casa faz-se com os sócios. Isto é, a direção pode querer uma coisa e os sócios não. Temos aqui 50 melros e queremos fazer uma coisa diferente… João José Silva: Sim, sim, mas a direção é que decide. P: Mas vocês também se organizam em comissões, por exemplo, o teatro? José Marques Martins: Nessa altura tínhamos as comissões, inclusivamente nas festas, havia comissões, mas havia muita gente, sobretudo nova. Quando eram as festas, quem que nós íamos buscar? Gente nova e fazíamos essas comissões e as comissões criavam o programa. Depois foi o que se… Quem estava à frente das comissões, se começava querer ser independente em demasia, a direção às vezes era ultrapassada e quando dávamos por ela já havia compras feitas assim sem dizer. Agora, no teatro criou-se um grupo muito homogéneo nessa altura. P: Foi em que altura, na década de 70? José Marques Martins: Sim, 60-70... João José Silva: 70 e tal. Não, isso talvez fosse em 80, foi 70-80… E daqui saíram alguns casados e namorados. José Marques Martins: Casaram. Namoraram e casaram. Porque nós andamos por vários locais a levar o teatro e foi numa altura complicada, porque foi o 25 de Abril, em que nós, eu recordo-me, até tenho uma história, que eu até vim mais cedo para cima, porque foi na altura do 11 de março, que essas histórias todas que houve, e eu estava em Évora a tirar… Uma coisa era a animação cultural, que era o Brecht, que nessa altura era o mais importante, mas quer dizer havia a parte política também que se metia em todo o lado. E aí eu nunca, nunca, nunca enveredei por esses caminhos assim um bocado tortuosos, porque isto era assim, isto é quem quer mentir vai para… sem ofensa para os políticos que todos nós somos um pouco, mas é verdade, promete-se, se pudermos fazer depois mais tarde fazemos. E eu às tantas dizia assim: eu não posso ir aí para a gente, para as aldeias, dizer que arranjo emprego para toda a gente, porque isso é mentira. Eu não posso ir mentir, portanto nós… e estou a dar este exemplo. Isto para dizer que ou se tem vocação para aquilo que é ou então não se anda a fazer e, portanto, uma coisa é realmente ter vocação. A minha esposa e outras senhoras é que pintavam, faziam os vestidos… Se não fosse isso, morria. Então, eu não tinha tempo para, quer dizer: camarim, dá-me, entrega, ABC desenrasquem-se, não sei quê, desenrasquem-se. E pronto, e depois aquilo aparecia, as coisas apareciam e nós confiávamos e não invadíamos a esfera uns dos outros. Ou seja, ela vinha pintada com uma sobrancelha preta e outra… Nós confiávamos, porque todos queriam que saísse o melhor possível. E quando o João diz que, todavia, saíram daqui dois ou três casamentos… João José Silva: Sim, sim. José Marques Martins: E depois era muita gente. Nós tínhamos 30 ou 40 elementos e a nossa maneira de gerir todos para... João José Silva: Dava-nos o prazer de escolher o melhor. P: E eram operários? José Marques Martins: Operários, filhos de operários eram todos, e havia um mestre, havia um, sim, mas que tínhamos que gerir aquilo de tal maneira a que ninguém ficasse ofendido. Eu não podia chamar aquele por ser muito bom, tinha de arranjar ali, às vezes, papéis secundários. Mas chegava a um ponto em que era tanta gente… P: O José fazia de encenador, encenava? José Marques Martins: Sim, sim, exatamente. P: Que peças é que encenaram? José Marques Martins: Oh, sei lá… Os dois irmãos gémeos, um era patrão e o outro era empregado, eram gémeos mesmo. E depois fazer o papel de patrão, de ditador, e depois quando mudavam, já na parte da democracia, ver as diferenças... Depois havia um debate a seguir. Uma outra peça, que foi muito importante, que era aquela que tinha três atos que teve para aí. Depois, nós até fazíamos aqui um teatro que demorava três horas ou mais, nós tínhamos a sala cheia, que era a casa do mestre Simão, era uma delas, eram três atos. Outras que foram encenadas, poemas, havia, sei lá, havia poemas, por exemplo… cantos, danças. Depois começou a haver a parte da dança e depois, claro, as coisas foram mudando, mudando, mudando, estão a ir... João José Silva: E a seguir foi feita aqui uma grande peça, Jesus Cristo. José Marques Martins: Também fizemos essa peça de Jesus Cristo superstar, ainda temos aí. O Cristo era um colega, o nosso motorista, o Rui. P: E faziam debates a seguir às peças? José Marques Martins: Começámos a fazer os debates já mais com essas do Brecht, porque estava o povo, já mais… em 76/77. P: Era uma altura em que também as pessoas estavam mais interessadas nessa? José Marques Martins: Já estavam mais, porque aqui, nós não entrámos logo aí. Entrámos naquela, porque aí o povo começou a querer ufa, ufa, quer dizer abriu-se, porque até 78-77, apesar de 74, 75, 76, ainda... João José Silva: Ainda estava tudo muito... José Marques Martins: Mas depois, quer dizer, voltámos novamente e a pôr peças... Fizemos uma sobre as doenças transmissíveis nessa altura também.... Mas era demasiado forte, porque as pessoas tinham medo de fazer perguntas. Olha lá, o que é isso? Sabia-se que, à boca fechada, que a pessoa sofria disto, das doenças transmissíveis ou sexuais, mas não era fácil em público fazer... P: Então já falaram várias vezes que nesse período pós 25 de Abril, esses anos são anos de grande efervescência cultural e da participação das pessoas. O que é que recordam assim mais marcante desse período? João José Silva: Não quer dizer que antes não tivesse sido marcante, antes do 25 de abril... José Marques Martins: Antes de 73, era marcante, mas vamos lá ver, houve uma grande mudança, houve. Eu recordo-me que eu fui trabalhar de manhã… Eu em 73, como disse, vim. Em 74 estava em Janeiro, estava na feira das indústrias, em Lisboa antiga, e tinha uma colega que era a Zélia, a Zélia que era mulher do Zeca Afonso. E quando viemos fazer a nossa visita a Vendas Novas, ao centro de formação, eu vim no carro dela. Vinha ela e vinham mais dois colegas, e ela, há uma frase que é dita na altura, mas que passou-me ao lado. Estávamos a falar que tínhamos vindo lá de forma, que enfim, muitas dificuldades que tínhamos, não sei quê. E ela sai-se assim: é, mas não vai ser por muito tempo. João José Silva: Não estava Longe. José Marques Martins: Nem eu sabia que ela era a mulher de Zeca Afonso, que eu não sabia, sabia que era a Zélia, pronto. Quando depois se dá o 25 de Abril, depois conversámos por telefone e quando nos encontrámos novamente e quando eu soube que era... depois a gente começa a associar. “Não vai ser por muito tempo”, porque já sabia, quer dizer. Quando se dá o 25 de Abril, as pessoas, ao princípio: ah, fica em casa. Mas depois estávamos agarrados à televisão, como estávamos agarrados à BBC de Londres e à Rádio Argel. Eu era daqueles que estava sempre agarrado à Rádio Argel, a ouvir, e a BBC. Eu arranjei um rádio pequenino para ouvir isso, portanto, havia uma ânsia que estava cá dentro. Dá-se o 25 de Abril, dá-se essa possibilidade, e as pessoas, quer dizer, libertam-se... João José Silva: Com o enjeitamento que houve após o 25 de Abril, nada contra os partidos, mas houve um enjeitamento... José Marques Martins: As associações crescem, as associações dinamizam-se muito mais, porque as pessoas já falam mais à vontade, já vêm mais à vontade, já vêm ler, já vem perguntar, já vêm que há mais abertura e já se fala sem medo. E aquilo que mais fez com que as associações crescessem foi a liberdade que apareceu, a liberdade de as pessoas se exprimirem e expressarem-se de toda a forma. João José Silva: Após 25 de Abril, isto era quase todas as semanas, os partidos políticos queriam fazer aqui comícios, congressos, conversas. Alguns outros nem tanto porque, pois começou aqui a surgir o problema de que se o GIR vai ceder as instalações a um determinado grupo político tem que deixar... José Marques Martins: E aqui nesta casa fez-se, quando ali a capela estava em obras, a eucaristia. E sempre se disse: não, vem para cá, mas também vem para cá uma outra religião, fazer também o seu congresso. Toda a Gente tem direitos, aqui é para sócios, sejam eles o que sejam. João José Silva: Tanto era o PCP, como o CDS, como o PSD.... José Marques Martins: Aliás, os estatutos dizem isso: não tem credos nem filosofias políticas. E entram aqui sócios de toda... Agora se me perguntarem assim, se para cá viesse a extrema-direita ou alguma coisa com... Também temos nos estatutos como objetivo a defesa do bem comum. E, portanto, temos essa possibilidade de… As pessoas abriram-se, as pessoas aumentaram, criou-se uma nova forma também de estar na vida. Falava-se mais, começámos a conhecer as dificuldades e os anseios de várias... as festas eram diferentes. Havia, portanto… houve uma abertura mesmo entre os bairros, quer dizer, houve uma explosão, primeiro de alegria. Depois vieram os anos difíceis e quando vêm os anos difíceis, nomeadamente quando vêm as crises e então numa terra destas em que tem uma mono indústria... Apareceu a Universidade, que veio dar vida à cidade, porque isto era uma aldeia pequena. A Universidade veio dar uma vida aqui à Covilhã… P: Estava a falar da abertura das associações e lembrei-me de uma coisa que referiu há bocado, que tiveram uma articulação com a associação mutualista. Como é que isso foi? João José Silva: Sim foi. Aliás, eu não tenho conhecimento pessoal, mas sei pelo que me contaram, pessoas que passaram por aqui, dirigentes e não só. Eu posso lhe dizer que, por exemplo, a Associação de Socorros Mútuos emprestou, em determinado ano, um valor de cem escudos, está aí um documento, cem escudos, para que se fosse concluído o resto da obra. José Marques Martins: Nós servíamos aqui de depósito, de certa maneira, daquilo que eles não tinham condições. E então nós, o grupo, era aqui que eles tinham a sede. A Cruz Vermelha também passou por aqui. João José Silva: Há uma outra associação que foi formada aqui também, a APPACDM, foi criada aqui. Mas essa dos 100 escudos tem a ver com a mutualista. Porquê? Porque na altura, um ou dois dirigentes do Grupo Rodrigo, por exemplo, estou a lembrar-me do [...] e outros, o [...] e não sei quê, eram dirigentes da associação. José Marques Martins: Na Cruz Vermelha também se deu o caso, dirigentes desta casa eram dirigentes da Cruz Vermelha. João José Silva: E, na altura - só para concluir, desculpa - o GIR estava com problemas financeiros para pagar determinado valor e a Associação Mutualista Covilhanense, era assim que se chamava, emprestou ao GIR essa importância, que depois foi paga, há aí um documento, está devidamente aí contabilizado P: E o próprio GIR? Estávamos ali a ver que também tinha uma função, também tinha essa vocação mutualista, não é? Pelo menos com a questão do subsídio de funeral? João José Silva: Não havia previdência, a previdência aparece em 1961. José Marques Martins: A lutuosa aparece para ajudar os funerais, para levar as carretas, porque as famílias não tinham dinheiro: eram 500 escudos, ou 1000, pronto, e depois pararam quando vieram as agências. João José Silva: As agências não se preocupavam com a previdência, que não havia na altura, preocupava-se era pedir o cartão de associado e com esse cartão é que vinha ao GIR levantar o subsídio anual, que era de 500 escudos, hoje são 1000 escudos ou cinco euros. José Marques Martins: Hoje, praticamente, ainda está nos estatutos, mas é uma coisa que está só para fazer memória, porque a previdência hoje já funciona de outra maneira, mas está como memória porque foi essa uma das causas da nascença da coletividade. Há duas causas importantes, que é a educação dos filhos dos sócios, e aqui foram os filhos que levaram os pais. Vamos lá ver, os pais primeiro quiseram que a escola fosse aqui feita para educar os filhos, mas depois os filhos vieram para a escola oficial durante o dia e os pais vinham à noite. Os filhos é que levaram os pais a perceberam que também tinham necessidade de aprender. P: Depois também houve instrução para adultos? José Marques Martins: O pai e a mãe que vinham para aqui aprender… P: Isso em que altura? José Marques Martins: Pois, foi de 1900 a 1928, a escola foi... P: No vosso tempo ainda havia esses cursos para adultos? José Marques Martins: Não, no nosso tempo foi só formação. João José Silva: A escola no GIR acabou em 1950, 49-50. José Marques Martins: Eu aqui tenho as aulas diurnas para os filhos e as aulas noturnas, que era a dona [...], e depois a escola foi apetrechada e inaugurada pelo presidente da Câmara, o [...], em 1928, portanto, passados sete anos. De 21 até 28 funcionaram aqui alguns indivíduos a dar umas aulas que ensinavam os filhos... outras escolas. Em 1931, portanto, passados três anos, é que o governo reconhece o mérito e dá o estatuto de escola pública. Então, nessa altura é que foi nomeada uma professora oficial, que era essa dona [...], que era a professora. Quando as escolas do Rodrigo, como tu dizes, em 50 se fizeram aqui, acabou, não tinha razão de ser. P: Esta questão da memória já deu para perceber que é uma coisa que vocês valorizam muito. Têm ali o museu, os dirigentes conhecem a história, e acham que esta questão da memória é importante para a identidade do movimento, ou seja, os dirigentes vão passando uns para os outros este legado e é uma coisa importante, ou seja, tem aquela ideia de… isto é uma coisa que é tão antiga, esta tradição, a gente tem que continuar isto. Acham que é importante esta questão da história, o peso da história? José Marques Martins: Essa questão está a pôr, torna-se muito importante. E pode ser até uma das formas de revitalizar novamente também o movimento associativo. Eu, para construir… Qualquer pessoa que tenha dois dedos de testa, para construir o futuro tem que viver bem o presente. E sabendo a memória do passado, aquilo que errou e aquilo que fez de bem, portanto, só assim é que se pode construir. Eu, na minha vida, costumo dizer e prego: peço perdão daquilo que foi mal feito, vivo com muito gosto o meu dia a dia e quero fazer melhor ainda no futuro, mas para isso tenho que ter um saber do que é que foi feito atrás. É altura… E eu parece-me que que nós estamos a cometer uma falha, parece-me, que os órgãos sociais estão a cometer uma falha não só aqui, possivelmente em todos, era de dar a conhecer de facto aos novos toda a história desta casa, porque muitos entram aqui sem conhecer a história, vivem de hoje para a frente, vivem este… Vem aqui ao bar um jovem, mas até aqui houve um caminho, houve um percurso e penso que nós devíamos... Nós temos isso, esta casa tem as fotografias, tem livros. Mas as pessoas não leem, não veem as fotografias e, possivelmente de tempos a tempos, devia-se até passar, sei lá, ou em projetor ou retroprojetor ou qualquer coisa do género, digamos, um tempo do que é que foi isto, como é que isto começou, o que é que era a Covilhã naqueles tempos, em 1920, fotografias daquele tempo. E depois, até, haver às vezes debate e outras coisas do género Não era preciso uma tarde, havia de chamar as pessoas mais antigas, pessoas que passaram por aqui, porque há sócios antigos que passaram e eles conheciam as histórias. E começar a fazer isto. Com quê? Com as escolas. Eu não vou chamar os do secundário nem os universitários. É mais fácil os universitários virem cá do que os alunos do secundário. O universitário já está noutra dimensão e gosta também da parte histórica. Mas as crianças das escolas, os do básico ou os do ciclo vinham cá com todo o gosto. Os professores vinham ouvir, quer dizer, era uma forma de levar os miúdos a verem o que é que os bisavós deles… Olha, o meu avô andou ali. Nós tínhamos aqui um presidente da Câmara que cada vez que vinha aqui, o Carlos Pinto: eu andei nesta escola, andei na escola do presunto, e andou também você. Quer dizer, e essa conversa levava a que, quem sabe, lá os miúdos de hoje para amanhã… Era uma forma de espevitar o gosto pela casa. João José Silva: O problema é… Estou completamente de acordo com o Zé Marques, mas falta o melhor, falta a parte humana. Porque nós temos que ver as direções que entram para esta… para o GIR do Rodrigo ou para outro qualquer, às vezes têm tempo limitado, vêm com dois anos e por muita vontade que queiram fazer determinados eventos e dar a volta a isto, olha-se para o lado, como disse o Zé Marques: tinha cá 10 agora só cá tenho três. Onde é que estão os outros sete? Cansam-se, hoje. Eu não tenho nada contra a juventude, mas entendo que era preciso um trabalho muito forte. Falo do GIR, porque é um caso que eu conheço muito bem.Havia que procurar chamar para a coletividade pessoas que desenvolvessem esse tipo de trabalho, porque não é fácil a um dirigente associativo ir às escolas e passar a mensagem: epá vão ao GIR Rodrigo que amanhã temos lá a apresentação de um livro ou a passagem de um vídeo para se saber o historial da coletividade. Não é fácil. E o Zé Marques sabe que não é fácil. É assim, as direções são o que são. Não precisam ser doutores. É preciso é que sejam pessoas realmente com uma vontade extrema de que vem para servir a coletividade e não servir-se dela. E ao mesmo tempo, às vezes não têm tempo, trabalham, têm a sua vida. Nós perdemos aqui n horas… José Marques Martins: Tudo se faz. Olha, vou dar o meu exemplo aqui hoje… Hoje era para estar, de manhã, eu disse para quem me telefonou: espera lá, eu tenho uma celebração às 10:00 e não tinha ainda na altura, mas tinha. Hoje estive no Pezinho. Mas pronto, chegou-se à conclusão que podia ser às 14:00. Isto para dizer que não havendo gente… Mas tu tocaste aí um ponto importante, desde que haja vontade, e de que haja pessoas capazes, nós estamos cá os dois, possivelmente se fossem outros não estariam, mas continuo a dizer que vale a pena investir nesse campo, pegar na gente nova e pô-los em colaboração com os mais velhos e com a riqueza do passado para eles verem: epá de facto estes indivíduos fizeram isto. Caramba, como é que eles conseguiram? Com tão poucos meios conseguiram… E essa é a pergunta que lhes fica e nós, com tantos meios, não conseguimos. Porquê? E aquilo entra e aquilo burila. Talvez eu fale assim, porque como estou numa instituição que tem idosos e tem uma parte infantil e a gente de vez em quando juntamo-los e os mais novitos perguntam e até fazem aquilo, andam lá de bengala e os miúdos também com a bengala atrás dele também, acho eu, a imitá-los. Mas olhamos para aquilo e, sinceramente… um miúdo pegar, vê que o avô, coitadinho, lá anda e quando andam com aqueles com uma cadeira rodas: também quero ir. Quer dizer, os minutos querem andar de cadeira rodas porque... e depois aí o professor tem um papel importante, que é dizer assim: olha, vês, quando ele era assim da tua idade, não sei quê, não tinha esses carrinhos, tinha assim outros bonecos, depois nós temos lá os brinquedos antigos. Aqui também podia ser. Era uma forma de espevitar. Porque nós… Quer dizer, está tudo à espera: quanto é que dá, como tu dizes? Não tem que dar, não pode ser… Mas é uma forma, essa questão que levantou, de que forma é que é indo buscar a nossa história… É importante sabermos a história e os novos, e nós fazermos chegar aos outros essas memórias. Se nós não perdermos, se esta casa perder a memória, esta casa fecha. Mas enquanto esta casa tiver memórias, aí a casa não fecha. João José Silva: A verdade é que nós andamos há muitos anos, e não sei a história do grupo. Completa não sei. José Marques Martins: Possivelmente, há muita gente que não sabe, nem os nomes dos primeiros... João José Silva: Há muita gente que não sabe como é que isto começou.. José Marques Martins: Quando andavam aqui com obras, os livros não estavam ali no meio do lixo. Eu estava em Tondela e, quando vinha, andava no meio do lixo a tirar os livros de atas. João José Silva: Não há sensibilidade. O que é isto? Papéis... José Marques Martins: Nós temos que passar a memória, porque se nós não o fizemos, se esta casa não fizer memória do que foi e do que é, fechará no futuro. João José Silva: É de salientar as pessoas que passaram por aqui e as que vierem no futuro, porque não é fácil. Não é fácil arranjar dirigentes associativos. -
4 de junho de 2021
Elias Luz Riscado
P: Nasceu aqui? Elias Riscado: Nasci em Alcains, distrito de Castelo Branco. Em 1945, 18 de abril. Vim para aqui porque o meu pai era ligado à construção civil e veio para cá construir um cinema. Fez obras todas concentradas aqui. Vim para cá com quatro anos, tirei o curso técnico têxtil na Escola Industrial Campos Melo. Fui trabalhar para a firma Francisco Alçada, como técnico têxtil na secção de tinturaria. Trabalhei lá, na tinturaria, 33 anos, até que a firma fechou. E depois passei para outra empresa, Rosado & Pereira, onde estive mais 10 anos. Sei que fiz 42 anos na têxtil, a ver cores... Depois reformei-me. Na escola tinha já alguma atividade. Por nunca me querer ligar a Mocidade Portuguesa, tive problemas. Era chefe de turma, chefe na escola, já tinha um bocado de atividade. Fui filiado no Partido Comunista muitos anos antes do 25 de Abril e também o meu pai, que foi quem me levou para lá. Tive problemas ainda várias vezes com a PIDE. Nunca fui preso, mas fui avisado várias vezes. E depois apareceu o Grupo Desportivo da Mata. Como estava a dizer, formámos ali a coletividade, formámos um grupo que nem tinha, a bem dizer, nome. Mandámos vir então o azul, porque uns eram do Sporting e outros do Benfica e o azul era para ser nem do Benfica nem do Sporting. A seguir, os velhotes daqui – e eu utilizo o termo velhotes porque é preciso ter consideração por eles, porque eram mesmo pessoas já de uma certa idade mas apoiavam-nos em tudo o que a gente fizesse. Nem que a gente fizesse mal estavam sempre do nosso lado. Chegávamos aqui e acompanhavam-nos para todo o lado. E aquilo acabava sempre mal. Metiam-se nos copos e acabava sempre mal. Depois apareceram as pessoas de meia-idade e formámos aqui o grupo. Como o Conde tinha aqui uma propriedade perto, a cerca de 200 metros, fomos lá, também com um velhote que nos acompanhou, porque os primeiros equipamentos estavam na casa dele. Era a sede, era lá na casa dele. E fomos lá ao Conde falar e tal, como é que se há de chamar o clube? Então, é um clube desportivo, está aqui no meio da Mata, fica o Clube Desportivo da Mata. Depois esses mais velhos começaram a encarar a sério a coletividade. Em princípio era para federar na INATEL, FNAT na altura. Mas a FNAT era por zonas e daqui já estavam os Leões, já estava o Oriental na nossa zona. Eram mil e um problemas e ficava uma zona muito pequenina. E então resolvemos... Não fomos para federados e fomos para a partida. Eu acompanhei sempre, na medida em que ainda não tinha 18 anos. Eu estava nas direções, mas era a ajudar o presidente. Até que entrei novamente, quando fiz 18... Os nossos estatutos, na altura, era a religião e mais não sei quê... Depois nós oportunamente modificámos os estatutos e alterámos muita coisa, porque estatutos atuais não se compadeciam com o que estava na entrada. A primeira modalidade que se praticou aqui foi o basquete, o atletismo, o voleibol. No voleibol chegámos a estar na primeira divisão. No futsal chegámos a estar na primeira divisão. No atletismo corremos em todos os lados: no país inteiro e em Espanha, França, Bélgica, fomos a várias provas. Tudo isto era suportado por carolice e houve uma altura em que os meus filhos… A minha mulher foi mãe, foi pai, foi tudo. Porque nessa altura era o trabalho e como era chefe de secção tinha facilidade para as oito horas por dia. Depois pagava à noite e tinha que ir à fábrica. E a minha mulher foi pai e mãe para os filhos. P: E sua mulher também trabalhava na Indústria? Elias Riscado: Não, a mulher era auxiliar de infantário, aqui na Misericórdia, muitos anos. P: Estava a dizer que a sua mulher tinha sido mãe e pai... Elias Riscado: Pois, e às tantas os filhos começaram a... Houve uma altura que os filhos me perguntaram quem é que eram os herdeiros, se eram eles se o clube. Alto lá! O atletismo teve que parar, porque a bem dizer era suportado por mim e por mais um colega da direção. E parou aí, nessa altura. Continuou, mas nuns moldes muito por baixo. Tivemos depois uma secção de teatro de revista. Fizemos uma revista que correu aqui a região toda e apresentámos no teatro-cine e tudo. Tivemos um grupo de música popular, ainda ali estão os instrumentos. Ando a ver se consigo atuar, porque aquilo estraga-se mais parado do que a trabalhar, anda-se em vias de o pôr outra vez a funcionar. Passaram por aqui muitos elementos de direção. Todos fizeram, à sua maneira, um trabalho meritório. Eu estive aqui na direção 18 anos. Foi quando começámos a construir esta sede e o ringe, ao lado. Depois saí da direção e estive 17 anos como presidente da assembleia-geral. Há coisa de oito anos, isto estava mesmo, mesmo, mesmo... e tive de cá voltar. Eu disse que nunca mais cá metia os pés, que cá não voltava, mas teve de ser. E teve de ser por vários motivos. Primeiro, porque este prédio não estava legalizado. Ando há 30 anos para legalizar o prédio, foi quando fizeram este projeto do pavilhão. Na altura era o presidente aqui da direção era o [...], e o presidente da Câmara Municipal da Covilhã. Claro que as minhas desavenças com o Carlos Pinto eram notórias, pois ele estava de um lado e eu estava do outro. Mas eu depois desliguei-me completamente da política, nunca quis enveredar pela política. Além de que tive todas as facilidades e mais algumas. Mas gostava do curso que tirei, da profissão que tinha. Disso não abdicava, da minha profissão. P: Estava-me dizer que já na escola participava. Elias Riscado: Nas ações da parte estudantil, correr com o diretor da escola, contestar as coisas que estavam mal, talvez até achasse demais. Mas pronto, era um contestatário e isso orientou sempre a minha vida. Na política, fui sempre muito cético. Depois do meu pai morrer disse que não valia a pena andar aqui. Desfiliei-me completamente de partidos, estou à vontade para apoiar quem quiser e bem entender. Tenho apoiado o [...], com quem tenho uma relação excecional. Aliás, com todos os da Câmara. Aliás, na Câmara eu sempre tive relações com os do CDS, do PSD, com toda a gente, nunca tive problemas nenhuns. Com este agora tenho mais, tem um trabalho de maior proximidade em relação aqui com o grupo e estamos em vias de legalizar o grupo. P: Estava-me a dizer que tinha tido problemas com a polícia política. Teve a ver aqui com a atividade do grupo? Elias Riscado: Não, não. Nunca misturei uma coisa com a outra. Aliás, nas direções que aqui tive, nem sabiam qual era a minha tendência política. E quando chegavam aqui pedidos, que era do partido que mais atividade tinha, que era mais ativo, quando chegava aqui, dava sempre para trás e passar aqui alguma coisa era difícil, para não me acusarem. Mas eu nunca misturei o grupo com a minha atividade lá fora. Com a mini-atividade, que eu não tinha quase nenhuma. Fui avisado várias vezes, porque eu não tinha carro, era mais novo, vinha pela estrada à noite e fui avisado. Mas era mais pelas atividades da escola, não era por... Claro que eu fui ao Humberto Delgado e tive de andar a fugir, mas isso era normal e toda a gente andava a fugir aí pela rua. P: Aqui no grupo não sentiu que houvesse repressão ou vigilância do regime? Elias Riscado: Alguma. Sabe que nos estatutos fomos obrigados a aceitar a religião? Eu depois mando-lhe isso que ainda se ri com o que está lá escrito. O grupo foi uma vez ou outra, mas não porque eu tivesse uma postura política aqui dentro. Não punha cá politiquices. Fosse quem fosse. Até tinha aqui direções com elementos do CDS, tínhamos cá todos os partidos. P: E diga-me uma coisa, tinha uma biblioteca, tinha essas atividades culturais. Acha que foi importante para a formação e para a educação? Elias Riscado: Foi, porque nós estamos inseridos aqui num bairro, que é o bairro da Biquinha, da Caixa. Era um bairro relativamente pobre. A primeira construção que aqui fizemos foi os balneários, feitos por nós, durante a noite, com holofotes. Estava-se em 1974/75 e trabalhávamos até às 2, 3 da manhã. E foi então que desbravámos os terrenos e fomos para os balneários porque era uma necessidade aqui, para as pessoas tomarem banho. Portanto, aos fins-de-semana –sexta, sábado e domingo –, os balneários estavam sempre a funcionar, porque as pessoas em casa não tinham condições e ficava-lhes mais barato vir aqui. Pagavam uma coisa simbólica e ficava mais barato do que estar a gastar água em casa. P: E tinham outras medidas de ajuda às pessoas, por exemplo subsídios de funeral? Elias Riscado: Sim, tivemos durante um período, no princípio, e eram 150 escudos de subsídio de funeral. Depois, com o tempo, cortámos isso. E dávamos quando iam para a tropa ou estavam doentes. Dávamos botas, auxiliávamos no que fosse possível. O grupo também não tinha grandes recursos, tinha alguns, mas... Portanto, nesse aspeto o grupo foi criado precisamente por estar assim num bairro pobre. Foi isso que nos levou aos balneários e a essas atividades todas. Precisavam também de televisão, porque não tinham em casa. Estava sempre cheia a sala do pavilhão que tinha a televisão. O princípio foi mesmo direcionado para esse lado. P: E escola? Chegaram a ter aulas de alguma coisa, ensinar a ler e a escrever? Elias Riscado: Houve aqui muitos cursos de formação, que proporcionámos aqui. Auxiliámos desde o início a escola aqui do lado, a escola «A Lã e a Neve». Também usam o pavilhão. Agora não, com a pandemia não podem vir, mas vieram sempre, três vezes por semana, fazer ginástica para o salão porque não têm condições. Quando têm visitas de estudo, as nossas carrinhas é que vão. Antigamente recebíamos da Câmara mil euros por mês para isto, mas depois esse apoio foi cortado. Mas nós não cortámos, continuámos a dá-lo, porque temos uma ligação muito grande com a diretora e com o que vai entrar de novo. Eu disse logo: “a gente não vai cortar nada.” Tudo aquilo que a gente dá, mantém-se tudo na mesma, de facto, até ao dia de hoje. Festas de Natal, festas de tudo, são aqui no salão. P: Naquela altura, antes do 25 de Abril, aqui era uma zona bastante difícil. Estas coletividades tiveram aqui um papel importante? Elias Riscado: Nós formávamos a coletividade em 1961. Isto era tudo rapaziada, garotos e tal. Oficialmente foi no dia 20 de setembro de 1961 que foi publicado no diário do Governo. Mas nós, já uns dois ou três anos antes, já andávamos aqui a montar, já andávamos aqui aos pontapés à bola. Agora, nessa altura, depois de 1974, quando foi o 25 de Abril, é que arrancámos com as obras aqui. 1974/75, por aí… Foi inaugurada esta sede em 1981, conforme está. E ali o ringue, como está ali na entrada, é como estava e fez-se aqui muitos torneios, muitos jogos, fez-se tudo. E depois as pessoas, nas tais obras do pavilhão, destruíram tudo. Mas está ali muito aproveitável, porque os alicerces estão todos lá. P: Nessa altura do 25 de Abril, também se envolveram aqui em algumas obras de melhoramento do bairro? Elias Riscado: Houve, mas pouco. Esta semana, por acaso, estava na Câmara e falei nisso, porque este bairro não pertencia à Covilhã. Hoje quem é que mora no bairro? As viúvas e os viúvos. Foram lá para baixo, os filhos, tudo lá para baixo. Mas aqui é um bairro mesmo envelhecido. Agora a atividade dos nossos sócios é toda virada lá para baixo, porque daqui já não podemos. Só proporcionando aqui rastreios, para eles não se deslocarem. Temos previsto agora com a Santa Casa da Misericórdia, para o dia 29, o rastreio da diabetes. É aqui no grupo, virado para o bairro. Porque temos um protocolo assinado com a Santa Casa sobre os bairros sociais e nós apanhámos este. Portanto, é aqui que se vai fazer o rastreio, as pessoas vêm cá. Depois vamos com as carrinhas buscá-los para virem cá. É o apoio que podemos dar ao pessoal aqui do bairro. Nas festas, há um grupo de mulheres, principalmente, são umas seis ou sete, que não há festa nenhuma de São João, bailaricos, sardinhadas em que elas não se apresentem. E têm 80 anos. Elas lá vêm, devagarinho, e depois ao fim a gente vai com as carrinhas pô-las a casa. P: Quando é que as mulheres começaram a participar? Elias Riscado: Logo muito cedo. Aqui, o primeiro elemento que entrou para a direção foi – até há uma reportagem no Notícias da Covilhã – uma moça que está na Madeira, a Neusa, que foi diretora aqui, na altura em que estava a estudar na universidade. Já estava a trabalhar, a estagiar no Notícias da Covilhã. Depois houve aqui uma passagem, mas quer dizer, uma percentagem muito pequena, que ainda hoje a percentagem não é daquelas... Hoje, temos cá só um elemento feminino na direção. Já cá tive 2, 3, mas nesta altura só cá está um. P: E foi quando? Década... Elias Riscado: 80. Foi, foi. P: Antes do 25 de Abril não participavam? Elias Riscado: Não. Vamos lá ver, participavam, na direção mão, mas participavam na parte feminina, mais se calhar do que os masculinos, no apoio às festas. Era mais pessoal feminino do que masculino. Participavam sem estarem metidas na direção. Mas no apoio, nas comissões de apoio, era pessoal feminino. Ainda hoje é mais pessoal feminino do que masculino. P: Mas eram sócias? Elias Riscado: Eram sócias e vinham acompanhadas dos sócios e fizeram aí muito, muito trabalho, as mulheres. P: E acha que participavam mais antes ou depois no 25 de Abril? Elias Riscado: Antes do 25 de abril, como lhe disse, participavam menos. Isto era menos atividade, até pelos próprios ambientes em casa. Depois quando se começou a alargar mais o leque é que começaram a aparecer mais. Aqui nas obras, quando andávamos aqui, era quase tantas mulheres como homens. Porque esta fotografia aqui era quando andámos a fazer os tais balneários. Porque aí pela ladeira fora, eram umas dezenas, mas umas dezenas largas de pessoal a trabalhar. Mesmo malta nova. P: E as raparigas também? Elias Riscado: Muitas. Conseguimos mobilizar esta malta... P: É de que ano, essa foto? Elias Riscado: Esta fotografia aqui… Ora, isto começou em 1981, era de 1975, 76 ou 77. Foi quando se derrubou aquele morro para fazer ali o ringue. Mas isto era muito... depois fazíamos uma feijoada, ali no muro, púnhamo-nos ali a comer. Eram melhores tempos do que estes, eram tempos mais sãos. Trabalhava-se mais em conjunto, mais por amor às causas do que hoje. Hoje por qualquer coisa já se quer dinheiro. P: E o que é que o motivou a dedicar tanto tempo e tanto trabalho voluntário à associação? Elias Riscado: Isto aqui é um vício que se vai adquirindo. Começa-se por pouco e depois entranha-se de tal maneira que a gente já não consegue... Depois, umas vezes porque isto está mal. Foi o caso agora, que eu tinha prometido à minha mulher que nunca mais cá... Pronto, não queria cá reunir, seria um simples sócio e mais nada. Mas há oito anos, isto estava completamente de rastos, não tinha atividade nenhuma e eu tive de cá voltar. E tinha uma dívida de 20 e tal mil euros. Mas aí pus o [...] entre a espada e a parede. Eu vou lá, volto para lá, porque o [...] era aqui presidente. O [...] trabalhou nas vereações da Câmara, aquilo foi o trampolim para ele ir para lá, como vereador do [...]. E eu disse: “Eu vou para lá, mas acaba-se com a dívida.” E ele comprometeu-se e todos os meses entravam aqui 1724 euros, nunca me esqueço, até pagar aquela dívida. P: Houve muitas pessoas que participaram aqui e que depois vieram assumir cargos nas autarquias? Elias Riscado: Houve muita gente. Uns foram para a vereação da Câmara e para a Junta de Freguesia houve uma dezena deles, para várias juntas de freguesia. Não é só na nossa, da Conceição. Em São Martinho e em Santa Maria também participaram alguns. E hoje, nas Juntas de Freguesia, ainda lá estão elementos que passaram por aqui. P: Acha que o facto de terem estado aqui ensinou-os a gerir? Elias Riscado: Eu próprio aprendi cá muito. Dei muito, mas também aprendi cá muito. Foi uma escola aqui... Tivemos cinco ou seis elementos que eram mesmo ativistas dos vários grupos, de esquerda ou de direita. E tivemos aqui um elemento, que apanhei na direção, que esteve preso várias vezes. Aliás, dois ou três estiveram presos. Ainda fui aí para baixo, para o Alentejo, foi julgado lá e eu fui abonar o depoimento dele. P: Isso antes do 25 de Abril? Elias Riscado: Não, depois do 25 de abril, porque ele era das Brigadas Revolucionárias. E fui lá abonar e levei uns elementos e conseguimos trazê-lo de volta. Depois foi aqui presidente, no grupo. Pronto, tinha aquilo, mas depois desligou-se completamente e chegou à conclusão de que aquilo não levava a nada, só prejudicava a vida deles. P: Mas estava-me a dizer que era uma escola porque... Elias Riscado: Era, porque depois esses foram todos criados aqui e agarrámos aqui os que conseguimos libertar desses movimentos todos. Ainda hoje são todos sócios, vêm cá todos quando estão no local, vêm visitar o grupo e eles próprios reconhecem que a formação aqui no grupo, com os elementos que já estavam, mereciam consideração e isso foi o que levou a afastarem-se. Hoje são colaborantes aqui, direitinhos, com as famílias organizadas, não têm problemas nenhuns. Mas aqui formação, formamos aqui muitos alunos. Cursos de formação até em como preencher os impressos, desde as coisas mais simples até às mais complicadas fizemos aqui muito cursos de formação. Entre eles, passou por aqui um elemento que está ali na Santa Casa da Misericórdia e ela fez um bom trabalho. P: E as assembleias gerais eram muito participadas? Elias Riscado: Algumas não, mas quando o grupo tem muitos problemas, como foi o caso quando eu estava para voltar, estava a sala cheia. Quando o Elias já cá estava e outros elementos de confiança das direções anteriores, já não vem quase ninguém, passa ao lado. Isso é típico dos sócios: está tudo bem, não precisam de lá ir. Este ano ainda não fizemos a assembleia para as cotas, porque o contabilista organizava tudo como deve ser, este contabilista diz que faltam lá uns papéis por causa da pandemia, mas vamos fazer agora, no final deste mês, a assembleia. E já sei que os sócios, para contas, ainda menos cá aparecem. Quando é para eleições ainda aparecem… P: E antigamente eram? Elias Riscado: Vinha muita gente. Depois do 25 de Abril, toda a gente queria participar em alguma coisa, nem que fosse estar sentado numa cadeira para assistir. Havia muita participação. P: E porque é que isso acontecia? Elias Riscado: Bom, porque era a liberdade, depois de estarem oprimidos, não poderem fazer nada e não puderem, a bem dizer, sair de casa… P: E criavam-se mais comissões a altura? Elias Riscado: Sim, havia facilidades, mas nós aqui nunca tivemos grandes problemas. Quando organizámos as marchas – nós é que organizávamos as marchas da cidade – isto estava desmobilizado. Arranjámos 20 ou 30 pessoas para organizar as marchas. Não temos problemas com pessoal, às vezes até chegamos a dizer que já temos pessoal que chegue: seja que evento for, se precisarmos de 20 aparecem 25. Não andam por aqui como nós, mas quando são mobilizados aparecem. P: E antigamente também era assim por comissões? Elias Riscado: Não, era mais ainda. Aí é que aparecia muita gente. Hoje é preciso estar a chamá-los, a ligar-lhes, a falar com eles. Antigamente era espontâneo, quando sabiam que havia um evento caíam logo aqui. Ou, por outra, andavam cá sempre, com mais assiduidade ou menos assiduidade, andavam cá sempre. Mas apareciam logo. Este grupo, ainda hoje, não tem problemas nesse aspeto. P: E diga-me uma coisa, qual foi a atividade mais marcante, que se lembra mais, de que gostou mais? Elias Riscado: Eu, para além da direção, eu acompanhava o atletismo. Fiz milhares e milhares e milhares de quilómetros com o atletismo. Fui monitor da direção geral dos desportos, na altura. Fui monitor mesmo aqui da zona. Dava aulas aqui às escolas todas... Ainda me lembro de quanto é que eu recebia, 500 escudos, que tudo aqui para o grupo, que eu não queria nada. Por um lado, porque também tinha profissão, também nunca precisei e dava para aqui tudo, dava e dou. P: Foi do que gostou mais, dessa parte do atletismo? Elias Riscado: Foi do atletismo foi. Porque andámos no nacional. E do futsal, porque quando voltei para cá foi para arrancar com o futsal e hoje estamos a disputar a subida à primeira divisão. Tanto podemos cair na primeira como vamos para a terceira. Primeira, segunda ou terceira, o mais certo é a terceira. Mas também, da parte da revista que fizemos aí, eu acompanhava… P: Como é que era? Explique-me lá. Elias Riscado: Era uma revista, um musical. Chama-se As Relíquias. Cantavam, dançavam... A primeira revista foi lá em baixo na serra, ali numa rua, numa casa que era do Sá Pessoa. Depois é que mudámos para aqui, depois de construirmos isto é que viemos para aqui. Mas o palco ali era muito pequenino, estavam todos em cima uns dos outros. Quando íamos para outros palcos, já se libertavam. P: E eram pessoas aqui do bairro que participavam, que eram os atores e as atrizes? Elias Riscado: Era, era. Mas ainda participavam na revista umas 12 ou 25 pessoas. Ainda hoje se fala nisso, quando é dos aniversários. P: Isso foi em que anos? Elias Riscado: Foi na década de 70... Nós fizemos muitos espetáculos, andamos aí no distrito todo. E gostava agora de voltar com isso, pelo menos pôr a secção de teatro a trabalhar. Já tivemos, no ano passado ainda se fez uma peçazinha. P: Quando é que começou essa secção de teatro? Foi antes ou depois do 25 de Abril? Elias Riscado: Antes do 25 de Abril fizemos aí várias peças e depois continuou no 25 de Abril. E agora quero ver se isto dá, termino o mandato no final do ano. Já estou com 76 anos, há dois anos fiz o transplante do fígado, estava a ver que aí é que nunca mais cá punha os pés. Mas recuperei e ainda continuo. P: Acho que o facto daqui da Covilhã ser uma zona muito industrial, ter uma grande tradição operário, que isso marca o associativismo? Elias Riscado: Marca, marca, até pelas coletividades e agremiações associativas que tem a Covilhã. No país não deve haver tanta concentração associativa como aqui na Covilhã. Temos 200 e tal associações, o que é muita, muita associação. Porque antigamente a classe operária em qualquer bairrozito criava uma associação. Depois, é claro, essas fundiam-se e criavam uma maior. Mas havia muitas, muitas associações, mesmo de bairro. Depois foram-se alargando para apanhar outras. Mas mesmo assim, no campo desportivo, cultural, recreativo, nos campos todos, há cá muitas. P: Porque é que os operários se juntavam para fazer estas associações? Elias Riscado: Se calhar era para conviverem um bocado. Eu estou convencido de que a maior parte era para tentar evoluir um bocadito, sair do marasmo do tear e evoluir um bocadito. Isso é que era o essencial. P: E acha que essa experiência de terem construído as sedes, de terem feito coisas tão giras, que isso passa para os mais novos, ou seja, os mais velhos contam estas histórias de quando construíram, do trabalho voluntário? Elias Riscado: Passa, quando vêm estas fotografias, quando fizemos a exposição no ano passado… Há dois anos fizemos uma exposição disso tudo. Lá em baixo estava tudo cheio de um lado e do outro. Mas alguns riam-se, achavam piada como é que a gente andava ali feitos malucos a cortar a serra e a fazer cimento. Hoje também se dedicam a outras coisas, temos os computadores... Ainda hoje se nota, para a gente conseguir uma direção. Porque aqui tenho tido sempre malta nova, sou sempre o mais velho. Para ver se se aproveita um ou outro para continuar. Tinha aqui alguns que via com capacidade de fazer. E pensava: já me posso pôr ao fresco, já posso ir embora. Depois tenta-se trepar depressa. E quando se tenta trepar depressa faz-se asneiras e comete-se erros e quando se faz erros eu não admito. Erros grandes, não é erros pequenos. P: Então, o que o que é que acha que vai ser o futuro do movimento associativo? Elias Riscado: Vejo o futuro, talvez seja o futuro daqueles que eu estou a idealizar e que o futuro seja completamente diferente... Eu ainda sou daqueles que tinha de dar o litro pelas associações e pelas coletividades, mas estou a ver que isto caminha para outro campo completamente diferente. A malta nova trabalha, mas a maior parte deles precisa de ter alguém à frente a dizer “o caminho é este”. A assumirem cargos de responsabilidade cada vez vejo menos. Por outro lado, na Covilhã também está a aparecer a parte feminina. Há associações em que as raparigas, as moças novas, é que já estão num plano muito, muito... Está bem encaminhado. E aquilo que eu penso é nisso. Não é de pá e picareta, porque isso já passou à história, mas aparecer... Aqui na coletividade não sei, para o ano vou ter umas dificuldades tremendas. Está ali um rapaz, que é o tesoureiro, ele não é de cá, é de Mangualde, está a estudar para ter o curso de gestão ou o que é e estou a ver se o meto. Mas eu vou para as reuniões para a câmara, vou para as reuniões em qualquer lado e ele não vem e isso é muito mau, porque a gente se não está à frente não consegue nada. Diz que na Câmara são muito chatos... P: Então, mas diga-me uma coisa, como é que acha que grupo marcou a sua vida? Imagina sua vida sem este grupo? Elias Riscado: Ainda há tempos, a minha mulher dizia-me “faz lá um balanço”. E eu: “Oh mulher, não me arrependo de nada, se voltasse atrás fazia o mesmo. Talvez prestasse mais atenção aos filhos do que prestei na altura. Agora, em contrapartida, compenso os netos. Agora deixo tudo para ir com os netos, para levá-los aqui e levá-los ali… P: Porque é que não se arrepende? O que é que ganhou com esta participação? Elias Riscado: Ganhei muitos, muitos amigos, inimigos não ganhei nenhum. Estoiro, mas passados 10 minutos ou 5, já não se passou nada. O que é eu tenho, o que sinto aqui, é não mandar recados para ninguém. Eu é que disparo logo na frente das pessoas. Isso é capaz de ser um defeito ou uma virtude, não sei. Mas seja com quem for, seja com o presidente da Câmara seja com o Ministro, aquilo que eu sinto, eu disparo logo. Mas desconfio que arranjei amigos em vez de inimigos. Pode ser um ou outro, mas penso que não. P: E para além dos amigos, o que é que ganhou mais? Elias Riscado: Ganhei experiências para a vida. Fez-me na minha profissão, fez-me outra maneira de ser. Era tudo por igual, desde o trabalhador ao patrão. E foram muitos e muitos, muitas dezenas, ainda hoje, os que estão vivos que, se me encontram, fazem uma festa. E isso é o essencial para a vida, para a gente resolver os problemas todos. Porque aqui os grupos, as coletividades, as associações, têm problemas e a gente tem que os saber resolver. Portanto, isso dá uma autoridade ao ser humano para o resto da vida, que encara os problemas seja como for. Eu estou convencido, quando tive o problema do fígado, eu já andava há 20 anos a ser tratado. Porque eu trabalhava muito na fábrica, mas também às vezes ia a casa tomar banho e ia para fábrica. Porque eu também ia muito às noites para as discotecas e bebia muito whisky e cerveja. E já lá vão uns 30 anos que não toco numa bebida alcoólica. Só que agora, quando foi há dois anos, dois anos e meio, fez fevereiro dois anos, que fiz o transplante. Seis meses antes foi-me detetado um cancro no fígado. Fiz uns exames e, quando chego a Coimbra, uma médica daquelas novas ainda – eu sentei-me aqui, a minha mulher ali, o meu filho sentou-se ali – disse-me: “Sr. Elias está bom?” “Eu acho que sim.” “Sabe que tem um cancro?”, logo de rajada. Mas foi logo assim de rajada. Sei, porque uma coisa que tenho é que os exames são meus e abro-os todos. E sei ler as coisas, que tenho uma certa experiência do que lá está escrito. Quando vi lá o nodulozito, pronto… Depois, com a minha idade, era um problema fazer um transplante. Lisboa e Porto já não faziam e em Coimbra fiz o transplante com 73 anos. Correu tudo bem e passado uns meses, dizia para a minha mulher, “mas quem é me mandou meter-me nisto?”. Andava dois ou três anos, mas levava tudo. Mas depois passou, mas agora já estou... P: E ainda aqui anda, ainda aqui veio salvar o grupo. Elias Riscado: Vamos lá ver. Porque eu quero deixar o grupo com a legalização e para a legalização disto é preciso fazer todas as especialidades. Gastar 5000 euros em especialidades, que estão a acabar agora. Vamos ter de gastar mais alguns 5000, porque precisamos de pôr um sistema de incêndios, que a Proteção Civil vem cá inspecionar. Neste corredor aqui, como tem mais de 15 metros, precisa de se meter duas portas corta-fogo. E isso é gastar dinheiro. E depois, já disse, o projeto do pavilhão já está aprovado, pela Câmara e pela Assembleia Municipal. Depois é avançar com o projeto do pavilhão. E eles já me disseram: “Vais avançar com o projeto e depois vais-te embora.” Vamos a ver... Tenho um neto que se licenciou agora em Direito, com 22 anos, na Faculdade de Direito de Lisboa. Tenho outro bisneto. Não tenho problemas, que ele anda sempre direitinho, não sei se vai para Medicina. Está no 10º, vai para o 11º, é só dezoitos, dezanoves e vintes. O mais pequenito anda aqui na escola, tem 8 anos, costuma ir lá a casa: “Oh avô, já fiz os testes, já me entregaram, tive muito bom!” Agora é tudo para os netos, enquanto puder. O meu filho está a atravessar uma fase… está desempregado, têm de ser os avós. P: Muito bom. Obrigada. -
2 de junho de 2021
Luzia Lopes Mendes
P: Nasceu aqui na Covilhã? Em que ano? Luzia Lopes: Sim, 1944. P: E estudou aqui? Luzia Lopes: Fiz a quarta classe neste sindicato, havia escola para os filhos dos trabalhadores com mais dificuldades, de maneira que fiz até à quarta classe aqui no sindicato e depois era preciso trabalhar, não é? P: E foi trabalhar para onde? Luzia Lopes: Fui para o Colégio das freiras aprender costura, porque naquela altura só se podia ir para as fábricas depois dos 14 anos, de maneira que fui para o colégio das freiras aprender algumas coisinhas de costura, que me deram um jeito a mais tarde… E depois daqui para a fábrica depois dos 14 anos. P: E qual foi a fábrica para onde foi trabalhar? Luzia Lopes: Pronto, eu fiz a aprendizagem numa fábrica que estava só assim um bocadinho a aguentar-se, o meu primeiro contato foi numa empresa, depois fui para outra empresa. Quando aí, então aprendi a profissão que tinha e depois fui para a fábrica até me reformar, onde estive sempre. P: Qual era a sua profissão? Luzia Lopes: Urdideira mecânica. Há aquela máquina que enrola os fios para depois fazer a largura toda da peça que depois ia para o tear e o tear fazia.... P: E foi sempre esse seu ofício até à reforma? Luzia Lopes: Foi sempre esse até à reforma. Reformei-me por invalidez. P: E os seus pais também já eram da indústria? Luzia Lopes: O meu pai era tecelão e a minha mãe era cerzideira. Era metedeira de fios, que agora já se diz que é cerzideira, pronto, ainda bem. P: E eram ambos daqui da Covilhã, não é? Luzia Lopes: Sim, sim. P: E casou, teve filhos? Luzia Lopes: Tenho 2 filhos e tenho 4 netos. P: E o seu marido também trabalhava.... Luzia Lopes: O meu marido é alfaiate [ri-se]. P: E trabalhava em casa? Luzia Lopes: Em casa. P: E os seus filhos, qual foi depois o percurso que eles fizeram? Luzia Lopes: O mais velho tem 46 anos neste momento. Também fez só até à sétima classe. Ele não queria estudar e então foi para uma confeção de edredões. Mas depois começámos a aperceber-nos de que ele estava a entusiasmar-se com o dinheiro que ia ganhando, e nós vimos que aquilo era muito limitado para o futuro dele. E foi nessa altura que começaram a aparecer os cursos de formação profissional. Lá o conseguimos convencer a deixar de ganhar aquele dinheiro para investir na formação e hoje é mecânico na Mercedes. Pronto, está bem. O outro já estudou, é engenheiro mecânico, está em Angola. Pronto, está bem. P: E viveu sempre aqui na Covilhã? Luzia Lopes: Sim P: É católica? Luzia Lopes: Sou católica praticante. Claro, tinha de ser, porque é daí que as coisas depois partem. Não venham com dúvidas: tudo o que é fora, a gente debate-se com dificuldade, porque o ver, julgar e depois o agir, não está de acordo com aquilo que... P: E filiação partidária, teve alguma? Luzia Lopes: Não P: Então e filiação associativa? Luzia Lopes: Sim, como cristã tive várias coisas. Dei catequese a um grupo de jovens, cerca de 20 anos, Hoje já estão todos… já têm filhos e não sei quê, e depois, fazendo parte daquela equipa do LOC da minha freguesia, demo-nos conta do trabalho que a paróquia tinha feito e que nós colaborámos, demo-nos conta das dificuldades que os pais tinham em tomar conta dos filhos durante as férias, eram 3 meses de férias. É então que nos juntamos e estudamos o assunto e vimos o que é podemos criar neste tempo de férias, chamadas férias grandes na altura e então criamos um espaço... P: Então estávamos a falar da vida associativa… Luzia Lopes: Então, a partir daquele aprofundamento, daquele conhecimento da realidade que se vivia naquela zona - é uma zona pobre, havia a necessidade de fazer alguma coisa para ocupar o tempo livre daquelas crianças -, os esforços uniram-se, abriram-se algumas janelas, criou-se um grupo para fazer o levantamento de quantas crianças, o que é que os pais pensavam, procurar o espaço, a que portas a gente havia de bater, por exemplo. Foi esse trabalho todo. Durou 20 anos. Então tivemos de arranjar. Não tínhamos dinheiro para pagar a educadores e então um amigo nosso que era reformado, trabalhava nos serviços, disponibilizou-se para ir ensinar as crianças como se fazia… montava-se uma ficha... Arranjámos uma moça que hoje também já está reformada, também deu o seu contributo e várias pessoas, quer dizer, recorremos de gente que nós conhecíamos para dar um apoio. Por exemplo, o meu marido, à segunda-feira era o dia que menos trabalho tinha e então tomava conta deles. Pronto, então foi muito interessante… P: Isso foi em que ano? Depois do 25 de Abril? Luzia Lopes: Sim, sim, já já... P: Então, mas se calhar começamos antes do 25 de Abril, sim? Luzia Lopes: Pois, antes do 25 de Abril, a minha caminhada foi de facto na Juventude Operária Católica e foi de facto aí um meu espaço de formação, de sensibilidade, de luta, e procurando onde eu me situava. Como cristã, onde devia ser o meu empenhamento, não era fora das coisas, mas era dentro das coisas, quer nas associações, quer no sindicato, quer na empresa, quer na Igreja. Então, ao nível dessa situação, trabalhando na fábrica, antes do 25 de Abril, já havia alguns mais despertos para estas coisas dos direitos e tal. A gente já ia acompanhando um bocadinho a razão que levava também a falar e a denunciar. Claro que nós éramos novas, pronto, nós éramos novitas, e foi então assim que se criaram na altura as Comissões de Trabalhadores e aqui eu entrei para uma Comissão de Trabalhadores com outros. Mas a dificuldade em ser mulher no meio dos homens, era que a mentalidade, cuidado… Era que às vezes os homens se deixavam emprenhar pela mentalidade das mulheres ou pela ideia das mulheres. Pronto, houve aqui assim alguma coisa mas… Quer dizer, se eu estou no meio da massa, eu não podia desistir. Então, a Comissão de Trabalhadores continuou e havia um delegado sindical. E então havia uma coisa que nos fazia muita impressão, era que o delegado sindical vinha ao sindicato, às reuniões e tal, chegava à empresa e em vez de partilhar connosco um bocadinho do que se tinha visto, que se tinha analisado, o que é que iria fazer… Não, imediatamente, eles informavam era a entidade patronal. Não está correto, a gente devia saber primeiro o que é que os leva lá… Até que depois eu fui nomeada delegada sindical. P: Mas diga-me uma coisa, antes do 25 de Abril já tinha feito parte de alguma Comissão de Trabalhadores, alguma greve? Luzia Lopes: Não, não, foi só depois. P: Mas participou nesta greve [greve em Unhais da Serra, 1969]? Então mas participou desta primeira experiência, foi a primeira experiência de luta ?Julgo que em Unhais da Serra... Luzia Lopes: Não, eu não trabalhava para aí, eu trabalhava já na Covilhã. Eu não trabalhava na Penteadora. Mas tinha conhecimento. Tivemos conhecimento da informação que nos chegava cá, da luta que aquelas mulheres estavam a fazer, mas não estava lá. Pronto, e assim começou um bocadinho a nossa ação na empresa. E assim, por eu ter estado nos movimentos operários, nos momentos de reflexão, de participação, de incentivar e tal a estarmos no meio, também me levou um bocadinho a integrar-me nas questões do sindicato, a nível da empresa. Foi então a partir daí que eu fui delegada sindical da empresa, Fernando da Silva Antunes. Já não existe. E foi a partir daí, porque me parece, sempre e ainda hoje, que a gente para exigir também tem de cumprir. E quem está disponível para se dar, tem de ser coerente com aquilo que defende. Não é porque o partido me mandou lá ou deixou de mandar, era porque eu acreditava que o meu contributo, com as minhas colegas de trabalho, com os meus colegas de trabalho, numa perspetiva de respeito, de coerência, de verdade e de dignidade, levava-me a comprometer-me e foi assim que eu comecei a assumir os espaços no sindicato. Lembro-me que uma vez havia uma greve de duas quintas-feiras. Pronto, decidiu-se no sindicato, naquela altura eu já era delegada sindical, e a luta era porque as nossas empresas tinham metedeiras de fio de cerzir, cerzideiras, em casa, nas casas delas, nas aldeias e tal, mas não eram consideradas trabalhadoras da empresa. Porquê? Porque iam lá pôr os cortes e iam lá buscar. Então, houve duas semanas seguidas, duas quintas-feiras, em que o sindicato propôs uma greve para que as empresas, naquela altura, ainda havia essa força, para que aquelas trabalhadoras fossem consideradas trabalhadoras da empresa, para terem as mesmas regalias que nós tínhamos dentro da empresa: subsídio de férias, essas coisas todas. E na conversa, um dia, encontrei-me lá na casa de banho com uma e perguntei: O que estão a pensar fazer amanhã? Oh, não nos adianta muito vir, então não há ninguém. Pronto, olha, ainda bem, e sabe por quê? Porque normalmente fazem piquetes e os piquetes não é para tratar ninguém mal, mas é para esclarecer as pessoas da razão porque é que a gente está às portas e, sendo assim, não é preciso vir para aqui ninguém. Passou-se, passou-se. Na outra quinta-feira, eu ia para pegar trabalho e já não me deixaram pegar trabalho. Quando o guarda me disse: oh Luzia, não pega trabalho que o patrão quer falar consigo. Esperei que o patrão me viesse chamar e a razão que ele me apontava era de que estavam ali aquelas raparigas para me acusarem, porque eu que as tinha ameaçado… E eu: desculpe, não foi assim. Em frente delas, a verdade foi esta: isto, isto, isto e isto... Bom, mas, desculpe, e ele voltava a falar e eu calava-me e perguntava: posso falar agora? Pode. É mentira, isto foi assim, assim, assim, assim. Pronto, nós estivemos ali duas horas e meia e nessas duas horas e meia a empresa para e batem à porta do escritório: nós queremos saber por que é que a Luzia está aqui. Se eu já estava um bocadinho a lutar pela verdade, aquilo deu-me uma energia… E o patrão ficou assim comigo: vá-se lá… E eu fui dizendo assim: ó senhor [...], há uma coisa que eu não entendo. Então o que é? O senhor vai à missa, que eu vejo-o lá muita vez, como é que o meu Deus me diz isto e o seu diz-lhe outra coisa? Já ficou um bocadinho... E depois diz-me assim: vá, vá-se lá embora, está a máquina parada, a máquina está parada desde as 8 horas. Mas foi o senhor que me chamou. Mas digo-lhe uma coisa, senhor [...], vale a pena lutar pela verdade, porque por cima da verdade ninguém vai passar. Foi remédio santo… Pronto, e passado algum tempo ele chamou-me, que eu merecia mais algum dinheiro e que me ia dar 25 tostões. Aceitei aquilo como cumpridora do meu dever, porque eu era responsável, porque pronto, assumia... Mas depois comecei a sentir interiormente, à minha volta, que as coisas não estavam a correr bem, em termos de colegas de trabalho. Não, isto não pode acontecer, antes quero dormir descansada do que estar a ganhar mais 25 tostões. E então fui lá: então Luzia, passa-se alguma coisa? Vinha-lhe pedir para me tirar os 25 tostões. É o que lhe digo, prefiro dormir descansada. E tirou, também não deu às outras Pronto, isto criava aqui uma divisão… Não valia a pena. P: Porque é que acha que foi eleita delegada sindical? Luzia Lopes: Porque a minha intervenção já na Comissão de trabalhadores, não só nos dava… Nós não podemos ir atrás daquilo que nos mandam. Vamos parar para refletir se esta atitude ou se esta ordem ou se esta informação que vem do sindicato é aquilo que nós achamos… E se for preciso, chamamos... E foi a partir daqui que eles começam a ver que eu tenho outra outra forma de analisar, de ver as coisas... Porque daqui diziam e eu ia atrás disso? Pronto, não, isso não dava. P: Já tinha havido outra delegada sindical mulher? Luzia Lopes: Sim, sim. esta [...] foi delegada sindical e muitas outras antigas que a gente conhecia, na altura. Sim, sim, já havia muitas, mas era mais comum serem homens, claro, não tenha dúvida nenhuma. É engraçado, porque eu acho que os homens, como é que eu vou dizer, contentam-se, deixe-me passar o termo, um bocadinho com aquilo que se lhe diz, não têm, não são capazes de parar para ver se isto é o melhor, se isto pode responder agora, mas quais as consequências disto. Muitas vezes aqui nós debatíamos, porque eu acho que se investiu muito pouco na formação. Apostou-se muito na reivindicação, e dar formação às pessoas? Porque nós temos que reivindicar os nossos direitos, mas também temos cumprir os nossos deveres e porque, como cidadãos, como seres humanos que têm dignidade, nós temos que lutar por isto. Por esta razão e não porque o Partido mandasse ou deixasse de mandar. P: E quando foi o 25 de Abril já estava envolvida no movimento sindical? Luzia Lopes: Não estava. Foi a partir daí que eu me envolvi. Para nós, no trabalho, foi um dia para lembrar o resto da nossa vida. Que a gente acompanhava... Foi viver. P: E depois, o que que aconteceu nesse período revolucionário, na sua empresa? Luzia Lopes: A entidade patronal também se limitava a estar um bocadinho mais calma, para ver onde é que isto ia dar. Só que na altura nós tínhamos um dirigente sindical (que já faleceu) que já antes se falava e debatíamos e conversávamos e tal, e a gente já estava a acompanhar um bocadinho a realidade do trabalho. Há coisas de que a gente se vai lembrando. Eu lembro-me de uma vez, estávamos numa reunião da LOC, no grupo onde estava a nossa [...], a [...] era delegada sindical, e nós tínhamos a ordem de trabalhos do sindicato e, no grupo, refletíamos: olha, atenção a isto, porque isto pode nos levar para aqui. A nossa posição é como cristãos, a nossa atitude não pode ser a atitude de um partido. Mas às vezes acontecia-nos, às vezes eu ficava até um bocadinho arreliada... E então dava-se aqui uma volta que as pessoas ficavam um bocadinho com a noção de que era preciso ir por ali, se não foi isso que nós refletimos. Nós refletimos, nós aprendemos, ensinamos, desfrutámos do que o ver, o julgar e depois o agir de acordo com aquilo que nós estamos a refletir. E, como cristãos, nós não podemos andar uns por um lado e outros por outro. Vou contar uma história muito interessante. Um dia, era aqui em baixo e viemos a uma Assembleia Geral. Era um sábado, na altura, e depois eu dava catequese às cinco horas, e eram quase cinco horas. Estava muita gente, naquela altura, estas assembleias eram… Dava gosto. Assim, pronto, eu tenho de me ir embora e estava um senhor à minha frente, que trabalhou até com o [...], e eu...oh, eu tenho que me ir embora já, que tenho de dar catequese às cinco e meia. Catequese? Sim. Mas chego à Igreja, e tive o mesmo efeito. Digo assim à dona [...]: Hoje já me descuidei um bocadinho, eu estive no sindicato. No sindicato? Por isso, eram coisas… Quando nós achávamos e refletíamos que era no meio da massa que as coisas se transformam, não é fazer aquilo que os outros dizem, mas é aquilo em que eu acredito, passa por aqui também. Pronto, e tivemos assim algumas coisas, como por exemplo, fazermos parte de um departamento das mulheres e ser um homem a coordenar as coisas? P: Isso onde? Luzia Lopes: Na União de sindicatos. P: E depois o que é que fizeram? Luzia Lopes: Então, claro, o homem não dava conta de nós [ri-se]. Um homem não dava conta de nós, não é? E pronto, foi assim. E há outras. Uma vez estávamos também a preparar o Dia Internacional das Mulheres e conseguimos passar um bocadinho, o parar para refletir, vamos lá com calma, isto é importante, não é importante… O que é que nós vamos fazer, que tipo de luta nós vamos fazer, e às tantas estavam em minoria e começaram a chegar mulheres. E de onde é que você vem? Oh, foi o meu marido, que estava no partido, e telefonou-me para eu vir...E isso ainda nos veio dar mais razão de que o ser e estar disponível e o agir tem que ser de acordo com a dignidade da pessoa, seja ela preta ou branca. P: Então, já percebi que aqui havia uma certa tensão entre o movimento católico e os delegados sindicais ligados ao Partido Comunista. Mas foram trabalhando em conjunto... Luzia Lopes: Tinha de ser, até porque, por exemplo, nunca o Partido Comunista fez - nunca não é bem o termo, nalguns anos faziam - uma lista sem virem convidar-nos a nós. Porque era importante estar alguém da Igreja em nome da lista e eu disse ao [...], pela mesma razão que me vens convidar para eu estar aí é a mesma razão que eu te digo que não é necessário estar lá. Porque era um bocadinho para compor o ramo. Pronto e aqui às vezes havia… e nunca alinhámos. Pronto, juntos na ação, quando é preciso estar ao lado dos trabalhadores da luta, que é preciso reivindicar. Claro que nunca foi nada dado de mão beijada, mas não alinharmos só para alinhar, questionarmos, porque assim é que as pessoas cresceram. Olhe, não sei se estou a responder. P: Agora queria fazer outras perguntas, mais de nível pessoal. Qual é que acha que foi a propensão para participar nestes movimentos? Já tinha pessoas de família que estivessem envolvidas? Luzia Lopes: Atenção, a minha mãe tinha quatro filhos. Teve quatro filhos, dois já partiram e ainda somos dois. E nenhum se envolveu por aqui. Eu, a minha mãe dizia assim muita vez: tinha dois filhos, veio a menina, deve ter sido… Eu vim com alguma missão. Pronto, e eu sinto… e eu comecei quer na Comunidade, depois na JOC, as caminhadas da JOC, o aprofundar, comecei a tomar uma consciência maior de classe, que era preciso pôr em prática. Pronto, e foi a partir um bocadinho… Por isso é que digo: a JOC ajudou-me a situar-me como pessoa, a lutar pelo que eu tinha direito, no respeito pelas pessoas, mas sobretudo pela dignidade da pessoa. Portanto, para mim foi a minha escola. P: Foi muito importante na sua formação pessoal? Luzia Lopes: Muito, ainda hoje. Eu estou na LOC, mas ainda hoje a gente aprende uma coisa: dificilmente nos dizem o contrário, não têm capacidade para dizer o contrário. Isto revela-se na família, revela-se na comunidade. O que é verdade tem que ser verdade até ao fim, revela-se no movimento associativo, por aí fora. E como eu estava a dizer há bocadinho, criámos uns tempos livres nessa altura. Então, uma associação que havia, que eram os brincalhões, que hoje já não existem. E conseguimos falar com a direção e tal, porque era uma associação de bairro. Conhecíamo-nos todos uns aos outros e na altura era fácil, porque a gente andava por ali, os nossos homens eram dirigentes e tal. Então fomos fazer a proposta para que nos deixassem um espaço para angariar os miúdos todos. Foi-nos dada uma salinha térrea, eu trouxe da fábrica umas colas para pôr no chão, para os miúdos se sentarem, fizemos umas almofadas grandes, porque não tínhamos nada… E pronto, e assim começaram os tempos livres, naquele espaço que havia um quintal. Um dia ia-se para a Ribeira lanchar e depois chegava-se e fazia-se uma revisão do que se tinha feito no dia. Outro dia caminhávamos para o monumento de nossa Senhora e fazia-se uma revisão de como é que foi o dia... Fazíamos assim. Isto durou, assim aos saltos, três anos. Entretanto, aparece-nos uma pessoa amiga não sei de onde, que era assistente social, e teve conhecimento do trabalho que estamos a desenvolver e nos procurou para ter conhecimento do que estamos a fazer. Nós já tínhamos feito um acampamento na Serra com as tendas. Quando estavam os pais, todos colaboravam. Foi muito interessante. E então, esta senhora veio-nos abrir as janelas para avançarmos com esta atividade muito mais séria, muito mais dinâmica e também com muito mais apoios. E então, desde irmos às juntas de freguesia, irmos a câmara, abriram-se as portas assim. Depois, entretanto, aquela associação começou... Só tinham um espaço pequenino e as pessoas valorizavam mais o jogo das cartas. E então começámos a sentir uma pressão. Na altura, outra associação, que é o Oriental de São Martinho, que é uma coletividade com uma dinâmica já bastante grande. E então nós soubemos que a casa do lado tinha sido desocupada, as senhoras tinham morrido e que seria dada ao Oriental… E então nós pusemo-nos em campo, fomos à Junta de Freguesia e por aí lá furamos o esquema e lá nos deram uma sala. Então aí já tivemos educadoras que já nos davam algum contributo, que se tinham formado, mas não tinham sido colocadas. Dávamos assim um contributo através do subsídio de alimentação, que a gente conseguia dar, e então quando começámos a entrar por aqui, aquilo foi mais localizado e aquilo avançou. P: E foi no âmbito da JOC ou da LOC, que foi pensada essa iniciativa? Luzia Lopes: Esta iniciativa foi pensada no grupo da LOC. Porque nós tínhamos feito, a Comunidade tinha feito, um projeto. A Comunidade dividiu-se em grupos, nas zonas: tu ficas com esta zona, tu ficas com aquela e nós tínhamos umas folhinhas que dávamos a conhecer, mas era uma aproximação que se fazia com as pessoas que moravam naquela zona. Ora, eu fui criada para além, calhou-me a zona que me dava jeito, pronto. E então, ainda trabalhava, o grupo nasceu, algumas pessoas que se disponibilizaram fazer … Quantos filhos tinham? O que é que achavam se nós conseguíssemos fazer isto? Porque é que as crianças ficavam tanto tempo em casa? O que é que elas faziam naquele tempo? Eu às vezes ponho-me assim a pensar: de facto, nós já fizemos muita coisa. Os pais começaram a colaborar, desde cortarem as pernas das mesas da cozinha para pôr as mesas pequeninas e as coisas começaram assim e foi bem. Depois fomos para o Oriental e entretanto dá-se o mesmo problema: os homens precisavam da sala para jogar às cartas e a gente começou a sentir uma pressão. E então a pressão foi de tal maneira, existia uma comissão de pais... Era eu que geria a questão financeira. Os miúdos pagavam X, nós pagávamos à educadora e depois e o resto seria para saídas. Saímos no autocarro da Câmara, fizemos uma visita ao Portugal dos Pequeninos, fizemos muita coisa nos tempos livres de apoio às crianças. Mas depois começámos a sentir, porque as direções dos grupos vão mudando e entrou então uma direção que achava que os tempos livres deviam fazer parte da associação, que era uma coisa que dava nome. Nós não estamos contra que se faça parte, queremos é que tenha uma gestão independente, porque as direções mudam e como de facto, as coisas mesmo acabaram por acabar. Mas pronto, enquanto duraram foram boas… P: Então, isso já foi no âmbito da LOC. E a JOC, começou a participar na JOC antes do 25 de abril? Luzia Lopes: Sim! P: Em que tipo de atividades é que se envolveu no âmbito da JOC? Luzia Lopes: Nós aprendemos na JOC a fazer cursos, formação para o casamento. Nós aprendíamos como se cosiam as meias, coisinhas que hoje a malta não sabe fazer, mas que alguém nos ia… Naquele grupo, adultos nos iam ensinar algumas coisas, como é que nós nos preparávamos para a vida? Eu acho que foi de uma riqueza, que há coisas nunca mais se perdem, nem se esquecem e não deixam de ter sentido. P: Mas já trabalhava, Luzia? E no âmbito da JOC, também se discutiam as questões do trabalho? Luzia Lopes: Com certeza. Pronto, dentro da nossa capacidade de conhecimento, porque nós tínhamos já a gente adulta que já estava no sindicato antes do 25 de Abril e que nos… Eu posso lhe dizer abertamente. Por exemplo, eu lembro-me de quando queríamos ir para alguma atividade da JOC, os nossos pais não tinham dinheiro e então eram as pessoas mais antigas da LOC, e uma delas, como dirigente sindical, foi presidente aqui do sindicato, que nos ia dar 500 escudos para nós irmos às atividades da JOC. Os nossos pais não nos podiam dar dinheiro. Portanto, isto ajuda um bocadinho a formar a nossa consciência, também do que somos e do que podemos aproveitar daquilo que somos. P: E quais é que eram os tipos de atividades, para além dessa formação para a família, que outros tipos de atividades é que desenvolviam? Luzia Lopes: Fazíamos encontros alargados com outras dioceses, que depois se refletia no que o grupo fazia, desenvolvia-se no seu âmbito, quer no trabalho quer na comunidade. Então, esses encontros que se faziam a nível nacional, e que depois a gente começa a ter consciência, de facto, que não somos só nós que temos estas dificuldades, em Braga também têm, no Porto também têm, e então passava por aí essa formação. E depois tivemos, tivemos e temos o padre [...], que é um doce. Foi o nosso pai, que tantos buracos tapou, que a gente não se podia movimentar… Mas nunca nos travou. Tem coragem e vai. Vai lá que tu consegues. Este incentivar, “tu és capaz de fazer, fá-lo como tu sabes”. E lá íamos nós para os encontros. É engraçado, como é que, hoje penso, como é que... Naquela altura os meus pais me deixaram ir, não é? P: E depois traziam esses ensinamentos? Luzia Lopes: Pronto, e depois a malta reunia-se por vários grupos, fazíamos um encontro alargado e partilhávamos o que é que soubemos da outra diocese, como é que eles tinham reagido, qual tinha sido a revisão de vida que fez Aveiro. Um bocadinho assim nessa linha, porque depois passávamos esta mensagem e este entusiasmo também, para que as pessoas... P: Explique-me lá isso da revisão de vida, como é que se faz? Luzia Lopes: Então, a revisão de vida é assim, passa por uma pessoa e por uma realidade que a gente apresente. Por exemplo, havia uma casal em que tinha uma filha em que lhe dava imensos problemas. E isto depois, parecendo que não, contaminava o ambiente em casa, pronto. Um dia chegava alguém e olha: fulana isto assim, assim… Começávamos. Porque é que Isto acontecia? Vamos aqui fazer a revisão, porque é que isto acontece? Acontece porque o pai trabalhava, a mãe trabalhava em casa e não se dava muita atenção ao pormenor dos filhos, ainda hoje acontece. E então chegámos à conclusão de que, de facto, o problema também era dos pais. Pronto, então vimos esta situação.. agora o que é que fazemos? Agora não é só atirar... Como é que nós vamos e por onde é que nós podemos entrar para fazer esta ação para agir perante esta situação? Pronto, e o mais engraçado é que não começámos pelos pais, sendo que eram os pais que precisavam mais, começámos pela miúda. Fomos conversar com a menina. Encontrávamos, partilhávamos as coisas e tal. E a miúda foi percebendo o lugar dela e o respeito para... porque para tu dizeres alguma coisa, tu tens que ter consciência do que estás a fazer. E para provares aos teus pais que é por aqui... então começamos a trabalhar a própria miúda, e depois até veio para a JOC. São coisas concretas. Por exemplo, as questões do namoro. Era uma coisa que se debatia muito. Eu lembro-me que a primeira vez que comecei a namorar, assim, como é que eu… Foi engraçado, eu fazia anos, a minha mãe não sabe, como é que eu vou fazer? Então fui mais uma colega e dois colegas, a casa dele, lanchar. Ele lá preparou a família. Então queres crer que eu vim para casa e não consegui deitar-me enquanto não disse à minha mãe que tinha ido. Isto dá para perceber… P: E como é que se articulava esse trabalho da revisão de vida com ação sindical? Luzia Lopes: A nossa ligação com o sindicato, a partir do 25 de Abril mais concretamente, já passava por aquelas amigas que nós cá tínhamos, que eram da LOC e que já eram dirigentes sindicais há muito tempo e que nos iam passando. Porque a JOC também se encontrava com a LOC, nos grandes encontros encontrava-se, e a gente ia aprendendo como elas faziam. Por isso, a nível da JOC, eu não estive muito dentro do sindicato. Por exemplo, a [...] acho que esteve diretamente ligada, na altura já era dirigente ou foi a partir daí que ficou dirigente livre. Eu, quando comecei a participar no sindicato, ainda não era, deixe-me passar o termo, a casa do PC. Ainda havia alguma abertura, ainda havia gente aqui consciente. Pronto, esse tal meu colega, que trabalhava lá comigo, que já nos ajudava, ele era dirigente sindical e a gente começou a aprender. Mas depois eles começam também a querer tomar poder. E então queriam-se meter de qualquer maneira, não é? E depois havia aqui assim uma... Pronto, muitas das vezes a gente ouvia dizer: eles que façam lá… Não, é preciso estar lá para ouvir e qual é o nosso parecer. E passaram-se assim algumas coisas. Eu lembro-me uma vez, estávamos numa Assembleia, e um rapaz, já faleceu também, tinha dificuldade em se exprimir, não tinha o dom da palavra, mas fê-lo como soube, e logo assim: mais valia estares calado. E então aqui a gente refletiu: não, desculpem lá, mas o [...] tem direito a falar como as outras pessoas. Eram pequeninas coisas, mas era a maneira de estar e de ser nas coisas grandes. E não é por acaso que hoje tenho uma relação com o [...], não assim muito grande, mas pronto, mas tenho uma coisa, depois é uma questão afetiva também, ele vem, medita, cresce, a gente vai acompanhando, sem medo nenhum de lhe dizer: tu assim por aqui não vais lá. O nosso ponto de vista é este e discutíamos muita vez, pronto, e ele sabia que era por aqui e não é por acaso que muitas vezes, já não é a primeira vez que que há atitudes destas, deste género, e a gente dá o nosso contributo, com aquilo que sabe e aquilo que fez, não fazer mais aquilo que sabe. Foi aquilo que se fez? P: A Luzia foi dirigente do sindicato Têxtil da Beira Baixa. Como é que foi, quando é que foi? Luzia Lopes: Pois… Quando? Eu tenho cartões de dirigente sindical. Na altura em que eu fui dirigente sindical, já tinha passado por ser delegada sindical e membro da Comissão de Trabalhadores, já tinha feito um caminho. E até lhe vou dizer uma coisa. Numa altura em que nós, o grupo, um bocadinho avessa daqueles, criámos uma lista, que era a lista B. Isto porque havia todo um trabalho, todo um acompanhamento que a gente vinha acompanhando que não era por aí, não pode ser só por aí. Os outros também têm direito, pronto, e então um dia nasceu a lista B para concorrer com a lista A. Parece mentira, mas a diferença foram 12 votos. Era meia-noite, estavam em Unhais da Serra a dizerem ao Grupo da LOC que a lista B tinha desistido e eles ficaram: olha, então temos que votar na A. Quando nós nos apresentámos no dia das eleições, na Penteadora de Unhais, para proceder à votação, então, mas pronto, isto é um bocadinho quererem nos tirar o tapete. E aí ganhámos… por 12 votos. Passaram-se muitas coisas, mas pronto é assim, era o que havia. As pessoas também tinham se calhar necessidade de se afirmarem, é da forma como eles achavam, mas não era a minha, nem era a de muita gente. Nós temos também de ter lugar em algum lado. P: E enquanto dirigente do sindicato têxtil, que tarefas é que tinha? Luzia Lopes: Pronto, eu estava naquela altura na assembleia, ia às reuniões que faziam. Naquela altura, discutia-se muito o contrato coletivo de trabalho. Era mais nessa linha e a reflexão ia sempre na linha de defender sempre o contrato coletivo de trabalho. Pronto, agora já nada é assim. O contrato coletivo de trabalho é para todos, não é só para aquele ou para aquele, mas seria para todos. E então isso também nos dava um poder de reforçar um bocadinho a nossa luta para que todos tivessem os mesmos direitos, depois começaram a aparecer os contratos de empresa e as coisas começaram a ser diferentes. Mas nos sindicatos, normalmente, nas assembleias, nas reuniões de direção, era assim que funcionava. P: Lembra-se da greve dos mil escudos? Participou? Luzia Lopes: Perfeitamente. P: Como é que foi? Luzia Lopes: Ainda hoje tenho uma coisinha de louça que eles nos deram, um dia que fizemos… Passado quantos anos? Aqui neste sítio, uma lembrançazinha. Pois foi, e mais uma vez a ação da LOC aqui esteve presente. Eu parece que estou a ver a olhos vistos o [...], que já morreu, que era na altura dirigente sindical, e estávamos lá em baixo, numa coisa que se chamava a FACEC, era um pavilhão onde a malta se encontrava, e lembro-me que chegou a malta de Unhais da Serra num autocarro, que eles ficaram bocadinho a tremer. O direito… nós queríamos os mil escudos, porque era para todos igual. Porque houve sempre diferença de homem para mulher e até nos mesmos setores. E pronto, foi um período forte. P: As Mulheres também conquistaram os mil escudos? Luzia Lopes: Sim, sim, foi igual para todos e tivemos umas semanas boas de greve, de fome, mas depois também sentimos a solidariedade vir aí. Foi um marco na minha vida, pelas duas maneiras: primeiro porque provou-se que se as pessoas estiverem unidas nós conseguimos; segundo, porque os mil escudos não eram nada demais para a vida que se estava a ter; e terceiro, sentiu-se a solidariedade. Porque ninguém sozinho consegue fazer nada, mas se a gente sentir que tem outros do nosso lado e a apoiar-nos, pronto, então as coisas conseguem-se. P: Dê-me lá exemplos dessa solidariedade ... Luzia Lopes: Por exemplo, a nível do PC, vieram na altura, eles também estavam organizados, e vieram do Alentejo com material, feijão, grão, sardinha, percebe? De vários lados e depois foi distribuído pelas pessoas que mais precisavam. Mas depois também foi um incentivo para nós. Eu lembro-me quando foi das Minas da Panasqueira, quando estiveram em greve, vieram para aqui para o pelourinho, fazer greve, estavam aqui e tal, uns a dormir no chão e eu também peguei em mim e vim buscar um casal, que traziam dois filhos, levei-os a casa, dei-lhes de jantar, tomaram um banho e vim cá pô-los. Pronto, era um bocadinho assim. P: E também houve outra greve muito importante, dos 29 dias, em 1981. Luzia Lopes: Foi essa, foi a tal solidariedade. 1981, eu vou-lhe contar. Foi uma greve muito complicada, aí é que houve porrada e eu estava grávida. Eu estava grávida e achei que não me devia ir meter ao barulho lá para baixo para a Paulo de Oliveira, mas estava a ouvir. Ouvíamos nós na rádio e diziam eles: cuidado, tende cuidado que a GNR está a cercar a vila... Isto começa a ferver, eu e mais outras pessoas. Então mas aqueles tipos estão lá sem comer e tal? Então pegámos em malgas de marmelada, pão, e fomos ter Boidobra a pé, eu não sei como é que a gente conseguiu fazer isto, para dar de comer àqueles... e lembro-me que quando lá cheguei, já estava tudo... pronto. Depois o pessoal vinha sair da empresa e a malta estava cá fora para barrar: eh pá, mas depois também há aqueles que são do extremo, às vezes não precisávamos também de atirar pedras nem nada. Eu também sou contra isso. Mas eu quando cheguei lá, já vejo uma colega minha do trabalho com a cabeça a deitar sangue e há um rapaz, que também já morreu, dizia-me assim: foge daqui, que eles vêm aí atrás… Mas eu, então mas eu não fiz mal a ninguém... E a GNR vem ter comigo e diz-me assim: o que está aqui a fazer? Eu não fiz mal a ninguém! Vá já com esta senhora hospital para o hospital e venho com a minha colega, que estava a escorrer sangue para o hospital. P: Essa foi uma foi uma greve... Luzia Lopes: Foi, foi muito dura, foi muito dura, mas eu depois também fico com pena porque as pessoas ficam só nesse sítio e não continuamos a desenvolver este espírito, as pessoas ficaram com medo, alguns.... Mas foi, foi muito duro. P: Mas acha que depois dessa greve foi diferente? Luzia Lopes: Tinha que ser, tinha que ser diferente. Porque aqueles que iam trabalhar, porque eles iam para ali, foram para aquela empresa, porque havia gente a trabalhar. Ora, não é fácil a gente estar cá fora há tantos dias sem ganhar dinheiro e os outros irem trabalhar e fazerem sábados e domingos. Quer dizer, era uma revolta. Penso que mesmo para as pessoas que estavam lá a trabalhar deve também ter sido uma aprendizagem. Porque não é para se ganhar mais uns tostões que se chega a algum lado. Mas pronto, foram coisas duras. Por exemplo, nós vínhamos às 5 da manhã, para nos juntarmos aqui no sindicato, para irmos para a porta das empresas. Eu sempre disse: não quero porrada, esclareçam as pessoas. Sempre fui sem medo nenhum. Mas assisti a alguma porrada. Mas sempre fui, deixava o meu homem e os meus filhos em casa. P: Como é que seu marido… Luzia Lopes: Pois, é muito engraçado, porque... Eu também já casei com algum contrato (ri-se). Eu vinha de uma relação de cinco anos, o dia em que faço cinco anos é o dia em que o meu marido morre. De cinco anos de sofrimento, de luto, o caminho para Lisboa… Eu já tinha namorado o homem que tenho hoje, e digo assim: eu só me caso se eu puder continuar a fazer toda a minha ação, que minha ação que eu tive necessidade de parar agora neste momento. Pronto, ele nunca me impediu, quer na LOC quer no sindicato, nunca me impediu. E às vezes as nossas discussões é porque eu sou mais… como é que eu hei de dizer? Não, tu disseste que era assim, assim é que tem que ser, eu sou mais um bocadinho… porque os homens são mais um bocadinho, até se esquecem do que disseram (ri-se). Estou a falar de mais, mande-me calar... P: Não, não, não está, está ótimo. Mas diga-me uma coisa, depois dessa greve de 1981, tem sido sobretudo um período difícil, com muitas empresas a fechar. Como é que avalia esse período? Luzia Lopes: Muito desemprego... Foi muito complicado. A salvação foi a universidade. Foi muito complicado, muito desemprego, casais nas mesmas empresas, muitas lutas, na medida em que se tem capacidade para perceber que a empresa vai abaixo... não querem aguentá-la. A gente tinha noção disso e deixa-se assim por não ter compromisso e fica-se a dever muitos meses às pessoas. Quer dizer, foi terrível. Foi terrível. P: E como dirigente sindical, esteve envolvida nalgum desses processos? Luzia Lopes: Nessa altura, se calhar já não estava na União, mas nós nas reuniões aqui acompanhávamos a empresa tal: o patrão disse isto, está-nos a ameaçar.... Nós íamos acompanhando nas assembleias que íamos fazendo, estávamos sempre a par das coisas: na minha, não, pronto. Eu também me reformei com 50 anos, que é outra questão, não sermos preparadas para precaver as doenças profissionais. Nunca ninguém nos tinha falado nisso. Passado um tempo é que começaram a ver as equipas lá nas empresas. Eu era urdideira mecânica e trabalhava na bordadeira, e então a minha posição era sempre com a perna direita a carregar no pedal para a máquina andar, de maneira que eu fiz isto, fiz uma escoliose. Andei, andei até que depois, há 20 anos atrás, foi para os ossos, um problema, o micróbio das tuberculoses em vez de ir para o pulmão, foi para aqui, para o meio das vértebras e então fiquei toda coisa, desde partir uma perna a andar... E pronto, se está bem que as máquinas não estavam preparadas para cuidar dos trabalhadores, estavam preparadas para produzir, mas nós também nunca fomos alertadas para a prevenção, para o que a gente podia ir fazendo, por exemplo, sei lá, em vez de estar tanto tempo, podíamos não sei como encontrar ali uma alternativa ou por o estrado mais alto... Quer dizer, não pensávamos, nós não tínhamos capacidade para pensar, podíamos ter evitado muita coisa a nível de saúde. Eu lembro-me que na altura aquilo era frio, quando fomos para a fábrica nova, que aquilo era frio e puseram uma caldeira grande, uma virada para um lado e outra virada para o outro e que trabalhava com nafta, mas aquilo deitava um cheiro do diacho. Todos se queixavam, todos se queixavam, mas a uns fazia mais diferença do que outros já. O que é que acontece? Acontece que aquilo fazia uma dor de cabeça, porque o calor vinha diretamente para a nossa cabeça, mas assim isto não pode continuar. Depois chamámos, falámos à entidade patronal e tal: mas também não vos percebo, não há de ser do frio. Pronto calámo-nos bem caladinhos e fomos ao Ministério Trabalho: existe um aparelho na nossa fábrica que faz isto assim, assim… vira-se diretamente para nós e nós não conseguimos trabalhar. Foi lá a fiscalização e aquilo teve que ser fechado. Por outra vez, aquilo era frio, puseram-nos um radiador por cima, uns araminhos, um radiador numa… (?) assim por cima. Ai caraças, parecemos uns pitos do aviário. Andámos, andámos, isto assim não pode ser: senhor, tire lá os radiadores, porque nós não somos pitos do aviário para estarmos a chocar. Pois o que queria era pô-lo aos pés, se não quiser pôr aos pés não ponha. E então puseram-nos aos pés. Outra vez, era para fazer umas horas e tal: eu faço se puder, se não puder não faço, as outras faziam, durante o dia podiam andar calminhas, mas depois chegavam as cinco horas.... Eu com o trabalho já pronto: Não, eu não faço. Se for preciso para desenrascar um tecelão, eu fico. Mas para fazer coisa assim, não fico, pronto. O que é que aconteceu? Aconteceu que tive uma semana encostada à máquina sem trabalho e as outras a fazerem horas. Um dia, chega lá o patrão, ainda hoje é filho: veja lá se quer uma cadeira, se calhar não era pior. E não... E pronto, passa a gente por várias coisas assim, não é? Mas que nos dão aqui uma.... (ri-se) P: Então e depois de se reformar, continuou a participar no movimento sindical ou virou-se mais para a LOC? Luzia Lopes: Pronto, nos reformados, eu fiquei um bocadinho aquém, porque o problema da minha saúde foi muito complicado. Eu estive três meses e meio nos [Hospital dos ] Covões, fora o tempo em que eu estive aqui nos hospitais. Agora estou a lutar contra uma doença autoimune, sequelas da tuberculose. Continuei com um grupo de jovens na catequese, já não era uma catequese, era grupo de jovens que já tinham feito o Crisma, e na LOC. Convidaram-me muita vez para vir para os reformados, mas eu não achava muita graça. Por exemplo, estou a participar num clube sénior e a gente a aproveitar o tempo da melhor maneira, aquilo que a gente gosta de fazer, cidadania, envelhecimento ativo, informática. Agora ir só para lá para beber o chá, para… Nunca fui para os reformados. P: E na LOC, depois, que tipo de atividades é que desenvolveu? Luzia Lopes: E desenvolvemos... Então, temos o Congresso, que é de três em três anos. Há temáticas para cada ano, desses três anos, sobre a dignidade do trabalho, agora este ano o que estamos a pensar, o que se está a trabalhar é as novas tecnologias, o trabalho em casa. Ainda agora vai ser a equipa nacional sobre os prós e os contras do teletrabalho. E há sempre uma altura das reuniões que se faz a revisão de vida. Hoje já são os homens, já são os velhos, já são os filhos, já são os netos: ah… no nosso tempo não era assim. Mas agora, neste tempo, estamos aqui, que resposta é que... Já passa por aqui um bocadinho a nossa ação, porque somos já quase todos reformados, mas achamos que não somos velhos, eu às vezes digo assim lá em casa: eu tenho como velho um idoso. Porque o idoso, pela idade, mas não para, vai estar nestas coisas e tudo o mais. E, por exemplo, no próximo sábado vamos ao passeio promovido pelo grupo. O que é que nós ontem estivemos a dar, a aprender, a trabalhar, a fazer a língua gestual. Nunca tinha pensado nisto. Então e o aprender, não é bom? Não sei se é preciso nem se não, mas aprender é sempre bom. P: Quais são as responsabilidades que tem agora na LOC? Luzia Lopes: Agora não tenho nenhuma. Porque também pela idade, que muitos se reformaram e já estão em casa. Então, o que é que nós criámos? Uma equipa interparoquial, com os da Boidobra, com os do Ferro... Não deixámos parar e fizemos uma equipe Interparoquial. Eu continuo como animadora daquele grupo dos meus lados, em que é preciso convocar, é preciso chamar, é preciso dizer: olha, vamos fazer isto. Continuo a fazer um bocadinho a dinamização daquilo que me cabe a mim, no meu lado: olha, já avisaste fulana? Pronto, e outros fazem, outro é o tesoureiro, outra é a coordenadora, e pronto, vamos fazendo assim. P: E continua a participar nos encontros nacionais? Luzia Lopes: Não, só vai a equipa nacional. Vou ao Congresso, aos congressos, que são abertos a toda a gente. Só os delegados é que podem votar, mas os convidados podem participar, aí vou. Agora, participar, participar ativamente, só os delegados é que podem votar. P: Qual é a importância desses momentos, dos congressos? Luzia Lopes: É muito importante, muito importante. Para já, é um marco importante, nacional. Segundo, é um desafio à própria Igreja e ao movimento sindical. Porque se trata dos problemas dos trabalhadores, da vida dos trabalhadores. E, como trabalhadores cristãos, nós temos um papel, é diferente, mas temos que estar lá. Não somos mais, somos diferentes, vemos as coisas por este lado. Por isso são importantes, porque a gente se encontra com aquela gente toda dos outros lados e porque cada zona tem sua realidade. Embora o tema do trabalho seja a mesma coisa, mas os pontos de vista e as realidades lá podem ser diferentes dos de cá e então são muito importantes, são marcos muito importantes. P: Diga uma coisa: acha que a JOC e a LOC foram importantes para promover a participação das mulheres na vida social ? Luzia Lopes: Não tenho dúvida nenhuma. Porque então é o que eu estava a dizer, porque os sindicatos nunca se preocuparam muito com a formação das pessoas, porque uma pessoa formada da cidadania encontra onde se encaixar, naquilo onde eu possa fazer alguma coisa boa, que era mais um poder reivindicativo. E quer queiramos quer não, a mulher tem também um lugar próprio, em todos os lados, quer no movimento sindical, quer na Igreja. Há dificuldades? Há. Em aceitar? Muitas. Mas as mulheres são importantes. P: Que tipo de dificuldades e como é que os ultrapassou? Luzia Lopes: Ainda há bocado estava a contar que vinha ao sindicato e diziam: vais dar catequese? E a catequista disse-me a mesma coisa: foste ao sindicato? Porque eram coisas diferentes. As pessoas não tinham de estar, quer dizer, podíamos ser cristãos só na igreja, mas não podíamos ser no momento sindical ou na fábrica, percebe? Havia aqui uma coisa que serve... Isso foi-se esbatendo. Mas a Igreja também tem caminhado muito, para estar na... porque se não se transforma nada. Porque nem toda a gente vai à missa, nem toda a gente ouve. O padre pode explicar muito bem, mas se não aprender o fundamento das coisas eu não consigo trazer nada cá para fora. Se aquilo não mexer comigo, não transformar comigo, eu não posso dizer ao outro, como é que se faz. Pronto, há todo um caminho a percorrer. Mas eu espero que a gente… É assim, ao perfeito ninguém chega, mas não duvido que a Igreja tem um papel importante na divulgação, na formação e em defender a dignidade de quem trabalha. P: E acha que os estes movimentos específicos ligados ao mundo do trabalho são bem aceites pelo resto da igreja enquanto instituição? Luzia Lopes: Nem muito. Sabemos que temos muita estabilidade, há bispos já abertos, com uma mentalidade já aberta, que já chamam as pessoas, já reúnem com as pessoas, já querem ouvir a opinião dos movimentos operários, há bispos já abertos. Não posso dizer que o meu seja. Tentamos dar a volta ao contrário. P: Como é que dão a volta ao contrário? Luzia Lopes: É estar, não desistir, ser persistente e ser coerente. P: Queria perguntar-lhe algumas coisas sobre a questão da Memória, ou seja, tudo isto que nós estamos aqui a falar, estas histórias do antigamente, da resistência, da persistência na luta. Isto é algo que passa dos mais velhos para os mais novos no seio destes movimentos como a JOC e a LOC? Luzia Lopes: Hoje a atualidade é diferente, mas eu sinto isto mesmo até em relação aos meus filhos. Os meus filhos apanharam muito da minha ação, do meu compromisso. Os meus filhos apanharam muito e quantos são filhos de gente que fazem esta experiência saem de lá grandes militantes. Se me disser, já tenho mais dificuldades com a minha neta. Já tenho, que tem 19 anos. Isto é secundário, o que é preciso é eu estar bem. Agora, mas também não desistirem. E às vezes não conseguimos fazer pela conversa, às vezes só pelo testemunho e pelo estar com os netos. Mas eu tenho a felicidade de que os meus filhos apanharam muito da minha luta e do que sou, é engraçado. P: E, por exemplo, na catequese, na relação que tem com os mais novos, passa... Luzia Lopes: Pronto, eu nunca estive com os mais novitos, estive sempre a partir do crisma, já fazem com 15 anos e então muita revisão de vida se fez porque a própria Mensagem do Evangelho nos leva a uma revisão de vida. Eu na escola, como é que eu sou na escola? Como é que eu pratico isto na escola? Como é que eu exijo isto em casa? Esta revisão de vida levada? Eu acho que fui a pessoa mais feliz, porque de facto consegui transmitir... uns são militantes do PS... outra é professora na Universidade, todos fizeram o seu caminho e cada um está no seu, na Figueira, em Lisboa, todos por aí fora, mas é uma relação tão próxima… É uma relação tão próxima que temos um encontro marcado para Novembro, com todos os que passaram por ali. E deixe-me dizer na fábrica, onde eu trabalhei, estes anos todos, dávamo-nos bem. Mesmo que até em determinadas alturas as pessoas não me vissem bem, porque era uma mulher, mas assim... Nós estivemos aqui uma vida inteira, nós fizemos aqui a nossa vida toda, estas horas todas, e agora isto há de acabar assim. E então não é que todos os anos, já lá vão uns aninhos, nos encontramos, fazemos um almoço, alguns já foram. Há dois anos, no dia do almoço, fomos enterrar um. Pronto, encontramo-nos e olha lá... este ano, com a pandemia, não fizemos, mas a ver se a gente este ano… Já comecei a fazer.... Sabe bem, vêm os que estão lá longe. Valorizar estes momentos, porque nós temos ali a nossa vida, fomos para as garotas. E nunca tivemos tempo de perceber, quem tu és. Então, agora nesta idade vamos-mos encontrar para fazer um bocadinho um convívio. É lindo, rezamos missa de manhã pelos que já partiram e fazemos um almoço. P: São tudo pessoas muito ligadas à Igreja? Luzia Lopes: Não, quem não quer ir à missa não vai. Respeitamos cada um e o seu caminho. Agora, a verdade é que nós trabalhámos uma vida inteira todos juntos. Então, não nos há de ligar alguma coisa, nem que seja um convívio para… é interessante. E dizia-se: um dia que tu morreres, calma aí que ainda é cedo, que aquilo que acaba, calma aí que ainda é cedo, já estão todos muito em baixo, velhinhos e tal, temos outros mais novos, que já aparecem depois. Mas isto só para dizer que colhe-se o que semeia. Eu podia não ter a ideia. E até o patrão vai, o filho, o outro já morreu. O [...], quer queiramos, quer não, o senhor fez o caminho connosco. De outra maneira, mas fez. E vai aos almoços. P: E diga-me uma coisa, há essa fraternidade entre os colegas de fábrica, e acha que os movimentos, como o movimento sindical ou como a LOC, criam uma identificação mais alargada com os trabalhadores de todo o país ou até de todo o mundo? Luzia Lopes: A LOC está organizada a nível mundial, diocesana, nacional, internacional e mundial. Isso pronto, a nível da LOC, isso faz. Temos muitos militantes da LOC, a nível nacional, que estiveram na central sindical. Muitos. Com algumas dificuldades, mas não desistiram de estar lá. Porque, pronto, eu vejo de uma maneira diferente, mas eu estou cá. Eu quero acreditar que demos um contributo e estamos a dar um contributo aos que estão e aos que ainda possam vir. É verdade que a idade e as maleitas das pessoas nos vão impedindo da dinâmica ser maior, mas quero acreditar que demos e ainda continuamos a dar um contributo para a sociedade. P: Qual é que acha que é o futuro de movimentos como o movimento sindical ou como a LOC ou a JOC? Luzia Lopes: O movimento sindical terá sempre... Pronto, o movimento, a JOC, pronto é mais a malta… Hoje, é assim, naquela altura que a gente foi da JOC trabalhava na fábrica, hoje a malta está na universidade, tem outras janelas. O movimento sindical tem sempre o seu espaço. Agora que terá também que ver um bocadinho que as coisas hoje não é só para assinar papel, é preciso esta formação, de pessoa, de cidadã. Porque às vezes, uma coisa é dizer e depois não somos coerentes com aquilo que dizemos, não fazemos o que dizemos. Isso deita por baixo o acreditar em alguma coisa. E nós já nos debatíamos aqui há uns anos sobre isso, que era, nós muitas vezes podemo-nos fazer valer pela nossa maneira de ser, às vezes não é preciso falar muito. Eu agora conheço pouco o movimento sindical, nem sei quem é a presidente agora, não sei se é. Sei que é uma menina. Mas eu acho que todos têm o seu lugar e isto há-de ir para a frente, porque todos têm o seu lugar, tem que ser, porque se os patrões se organizam numa determinada matéria, os trabalhadores têm de fazer a mesma coisa. Tem que se investir na formação em primeiro lugar, é importante. Porque se as pessoas estiverem esclarecidas, são capazes de lutar por aquilo que querem e por aquilo que têm direito. P: E a LOC ou os movimentos cristãos ligados ao trabalho, qual é que acha que é o futuro desses movimentos? Luzia Lopes: A JOC tem alguma dificuldade, há grupinhos dispersos. É porque hoje, se eu lhe disser que a mais nova que está na LOC aqui no meu grupo tem 48 anos, de resto é tudo para frente. E temos alguma dificuldade em que as pessoas adiram, porque gostam mais do deixa andar e... mas já nas fábricas era a mesma coisa, porque eles não queriam lutar, eu na minha fábrica não tive grandes problemas, porque era uma fábrica pequena, mas nas grandes fábricas sabemos, se vier para eles também vem para nós. Esta coisa de se encostarem um bocadinho sempre aconteceu. Com os nossos jovens, estou sentir alguma dificuldade, porque sempre cá houve equipas da JOC, mas depois falta de animadores, a falta da Igreja também abrir espaço para eles. Porque não podem ser só ao nível da Comunidade só, têm de se ouvir. Sinto que a JOC está com alguma dificuldade, a LOC também, com a nossa idade já temos alguma dificuldade em... Ainda existe isso? Sim, enquanto formos vivos, mas sentimos que temos o nosso espaço próprio e é pena. Mas é o que eu digo, a malta vai para a universidade, tem outros caminhos, outras propostas, às vezes não são as mais corretas, mas pronto. E a gente sabe, não é? P: Queria perguntar-lhe se esteve em alguma iniciativa específica relacionada especificamente com a emancipação feminina ou lutas pelo igualdade salarial, em torno da mulher trabalhadora. Luzia Lopes: Uma vez, uma vez estavam a preparar, acho que já contei esta história, estavam a preparar o Dia da Mulher e estávamos lá em baixo, numa sala. E nós estávamos a discutir o trabalho que tínhamos lá para fazer e começaram a perceber que não havia gente para aprovar aquilo que nos estavam ali a pôr. E, então, começaram a chegar algumas mulheres. Sem nunca cá estarem. E eu perguntei: olha, então de onde é que vem? Foi o meu homem que me telefonou, que estava no Partido... P: E qual é que era a questão? O que é que estavam a colocar que vocês não queriam? Luzia Lopes: Pronto? Agora, também, assim, concretamente não me lembro o quê, mas sei que nós participámos, fazíamos parte de um grupo de trabalho na União de Sindicatos sobre as questões da mulher, mas éramos coordenadas pelo homem, que não nos entendia. Queria impor a letra, mas espera aí, pronto e aquilo e pronto acabou por desistir e aqui acontecia a mesma coisa, pronto, porque pensam que as mulheres eram mais para encherem o para compor o ramo. Mas passaram também por aí grandes mulheres. No meu tempo de jovem, aquela a [...], aquela mulher… P: O que é que se lembra dela? Luzia Lopes: Muito alta, ela foi dirigente sindical antes do 25 de Abril, mas foi também dirigente livre da JOC e da LOC. Ela percorria as aldeias, a fazer o seu trabalho de ação para são Romão, para Loriga, Gouveia, para Seia. Ela fazia este trabalho de ir ao encontro. Hoje a gente toca-se, se vêm, vêm, se não vêm... mas as pessoas iam. As pessoas chamavam-se nesta altura, e chamam-se ainda, dirigentes livres, as pessoas são dirigentes mas são livres e então não têm rendimento. Vão para Gouveia, comem lá em casa da [...] assim. Lembro-me muito bem do trabalho que esta mulher que ela fazia. P: Mas ela dirigiu algum grupo de trabalho em que tivesse participado, Luzia? Luzia Lopes: Eu já conheci esta mulher na LOC, quando fui para LOC. Já lá estava, já era dirigente sindical. P: E trabalhou com ela diretamente? Luzia Lopes: Na fábrica não. Nos movimentos operários, em termos de LOC, ela era mais velha e eu mais nova.