Itens
Tema é exactamente
Ditadura
-
Junho de 2022
Mário Abrantes da Silva
P: Como estava a dizer, a minha ideia é perceber a história de vida das pessoas e por isso perguntava em primeiro lugar onde e quando é que nasceste? Mário Abrantes: Nasci no hospital militar principal em Lisboa, mas era residente em Aveiro na altura, em 1950, a meio do século passado. Era filho de militar e o meu pai andou a saltar de um sítio para o outro, portanto eu fui atrás, ao princípio. Fui para Macau com 6 anos de idade, estive 3 anos em Macau, depois de Macau fui para, agora não sei bem a sequência, mas andei por Mafra, Portalegre, Elvas, Évora e Estremoz. Onde estive mais tempo foi em Estremoz. Depois estive em Moçambique, em Angola, nas comissões que ele fazia quando tinha comissões, durante a guerra. Depois, voltei para Lisboa e entretanto estava a estudar em agronomia, no Instituto Superior de Agronomia. Entretanto, antes do fim do curso, envolvi-me em atividades políticas consideradas lesivas dos interesses do Estado e fui preso antes do 25 de Abril, em 1973, antes de acabar o curso. Saí no dia 27 [de abril], que não foi a 25, foi a 27 de madrugada. P: Estavas onde? Mário Abrantes: Estava em Caxias e saí a 27 de madrugada. Depois acabei o curso nessa altura, mas entretanto aquela onda logo a sair ao 25 de abril levou-me atrás. Entrei para o MDP e, não sendo filiado, participei politicamente em atividades relacionadas com a atividade do PCP. P: Diz-me só uma coisa, os teus pais eram de esquerda? Mário Abrantes: Não, não, os meus pais eram adeptos ferranhos do regime, qualquer um deles. P: E tinha as irmãos? Mário Abrantes: Tinha 10 irmãos, neste momento estão 8 vivos. Éramos 11 e agora tenho 8 irmãos vivos, comigo somos nove neste momento. P: E os teus irmãos também se envolveram em questões políticas? Mário Abrantes: Sim. Há um que já não é vivo e logo a seguir ao 25 de abril esteve ligado à UDP. Mas esteve envolvido em grandes atividades políticas. De resto, as minhas duas irmãs, logo a seguir a mim na escala hierárquica da minha família, a mais velha, logo a seguir a mim, também esteve a envolvida em movimentos associativos e também esteve presa antes do 25 de Abril. Saiu um bocado antes do 25 de Abril, esteve pouco tempo, ela e o meu cunhado. E depois a minha outra irmã a seguir é essa, é que foi mais ativa e esteve ligada a várias organizações, todas elas ligadas ao Partido. Acabou na Guiné, trabalhou com o Nino Vieira na Guiné. Esteve dois ou trê anos na Guiné, depois veio para cá e trabalhou no movimento sindical também durante muitos anos. Atualmente está reformada e faz a sua vida própria. Envolvidos em política, à esquerda, não tenho mais ninguém. De resto, os outros meus irmãos, tenho o mais velho de todos que vive no Porto, e que é um homem que é militar, traumatizado pela guerra colonial e de direita e depois tenho os outros meus irmãos cuja opção política, há um que eu conheço, que é simpatizante do PSD, os outros não sei bem o que são, nem o que não são. É isto sobre a família, em termos de ligações políticas. P: E o teu envolvimento foi no movimento estudantil? Mário Abrantes: Não, o meu envolvimento foi simultaneamente no movimento estudantil e clandestinamente num movimento patrocinado pelo Partido, mas que não era só composto por gente ligada ao partido, que era a Ação Revolucionária Armada, de que eu fazia parte mesmo sem estar ligado ao Partido. Era um dos que não estando ligado ao Partido estava. Foi esse meu envolvimento que me levou à cadeia, porque quanto ao resto era na Associação dos Estudantes de Agronomia. Estive muitos anos ligado à associação, como ativista da associação, recusando-me sempre a ir para cargos diretivos, era responsável da secção sonora do da Associação dos Estudantes do Instituto do Superior de Agronomia. P: E o que foi primeiro? Foi primeiro o envolvimento Estudantil? Mário Abrantes: Sim, foi através do envolvimento do movimento estudantil que comecei a minha politização. A minha politização propriamente dita começa numa data concreta, em 1967, quando foram as cheias. O movimento associativo participou ativamente no socorro e no apoio às vítimas das cheias, nos bairros de lata de Lisboa fundamentalmente, e eu participei em algumas ações dessas levadas a cabo porque tinha acabado de entrar para a associação e tinha começado a trabalhar na associação, embora sem intenções políticas de outra ordem. Não tinha intenções políticas nenhumas, estava lá até porque gostava muito de fazer bonecos e desenhar e gostava muito de pôr música e de música. Estava na secção sonora e fazia publicidade e propaganda lá, fazia cartazes. Mas entretanto meti-me na cheias e depois de sair das cheias é que percebi bem onde estava metido. Porque até lá a minha cultura política era a que os meus pais me tinham transmitido praticamente, embora com algumas reservas, mas no fundamental aceitava a situação. Depois é que comecei a perceber a partir dali. P: Como foi essa experiência tão marcante das cheias? Mário Abrantes: A experiência das cheias foi ver como é que aquela gente todo vivia, não era preciso dizer mais nada, e as condições de vida que tinham e pelo que passavam antes, antes das próprias cheias, e a falta de apoio público que tiveram. Deixaram-nos morrer praticamente, muitos deles morreram por falta de socorro, por falta de apoio, e a partir daí, juntamente com os meus outros camaradas ou colegas da associação, começamos a participar em ações de contestação estudantil ao governo e à ditadura, a partir daí mais ou menos. Eu comecei a participar, com os meus colegas da associação, que eram mais velhos que eu e já participavam antes das cheias. Mas eu entrei foi nessa altura e a participação começou aí. P: Isso foi em 1967? Mário Abrantes: A partir de 67 e nunca mais parou. P: E depois foi a crise de 1969... Mário Abrantes: A crise de 69 e as eleições. Andei a fazer Campanha pela CDE. Participei em tudo o que era movimentos estudantis, eu participava em manifestações estudantistas, participava... Era isto. Até que, por via disso tive um contacto. Eu tinha cá as minhas ideias, esquerdistas na altura. Portanto, em Agronomia defrontavam-se duas correntes ideológicas, a ligada ao Partido Comunista e uma ligada ao esquerdismo e ao maoísmo. P: MRPP? Mário Abrantes: Não, maoísmo, mas sem ligações partidárias. Portanto, todos aqueles que passaram por ali, naquelas listas daquela associação, e que eu apoiava embora não fosse da direção. Havia um casal... E esses é que eram mesmo maoista, mas não eram MRPP. Eu acho que eles estavam, embora nunca tivessem dito, mas eu acho que eles estavam ligados ao Partido Comunista Reconstruído, ou um movimento qualquer de reconstrução do Partido Comunista maoísta. Aqueles com quem eu me dava mais, era pessoal, que: Sim senhor o Mao Tsé Tung, o maoísmo e não sei o quê, a Rússia é social imperialista e não sei que mais, mas não eram filiados em nenhum partido maoísta. E até, se queres que te diga, a ideia que eu tenho, é que nem sequer maoístas eram, devido à evolução futura deles. Um deles era Guineense, foi para a Guiné e era um homem do PAIGC. O outros eram também gente ligada aos movimentos de libertação. P: Havia muitos estudantes das ex-colónias? Mário Abrantes: Sim, em agronomia havia bastante e eu também, porque tinha estado em Angola e o primeiro ano foi em Angola. Foi quando se abriram os estudos universitários de agronomia e silvicultura, porque eu sou silivicultor. Foi em Angola que fiz o primeiro ano e depois vim para cá com uma série deles e estive até num lar chamado Lar Ultramarino, que era perto de agronomia, com uma série deles que vieram de lá. Em geral era a malta de direita. Era tudo gente ligada aos colonos. Eram brancos. Havia um negro, mas eram um negro branco. Eram os meus colegas, com quem eu vim de lá. Também aí as minhas ligações, como vez, eram para o outro lado completamente P: E depois, estavas a dizer que tiveste um contacto nessa altura... Mário Abrantes: Eu tive um contato, porque eu procurava esses contactos, com descrição, mas procurava. Porque nós iamo-nos desenvolvendo ideologicamente. E, portanto, aquela ideia da necessidade da luta armada, de ser contra o regime, que chegou a altura, isto era objeto de debate, objeto de discussão, de conversas entre nós na associação. Isto tudo ao nível da associação, embora de forma mais reservada. Até que há uma altura em que alguém que estava ligado também à associação me faz o convite para participar e eu aceitei. P: E o que é que fizeste para ser preso? Mário Abrantes: Participei em algumas ações da ARA - duas. Não tive tempo para mais porque aquilo foi rápido. Fomos presos em 1973, eu tinha entrado em 1972 talvez, então não tive tempo para fazer muita coisa. P: Estiveste preso em Caxias? E foi duro, foste torturado? Mário Abrantes: Se calhar não foi tão duro como outros, porque o meu pai era coronel nessa altura, já era coronel de cavalaria. E o regime já não estava com aquela força, nessa altura. Portanto, o problema das forças armadas, estás a ver? Tinham alguma reserva. Então, eu cheguei a ser torturado, estive sem dormir quatro noites, estive um dia e meio, quase dois dias, sem me sentar, mas não me deram porrada, não levei porrada. Acabei por confirmar as acusações que me eram feitas. As acusações que me eram feitas foi ter participado nisto, nisto e nisto. Portanto, eu tive ao todo duas semanas de interrogatórios, com interrupções, e passei ao todo talvez quatro noites sem dormir, depois mais uma. Depois fizeram-me vários convites para denunciar: Que me ofereciam uma passagem de avião não sei para onde, que eu passava a ter uma vida nova, enfim, uma identidade nova. Essas coisas todas que eles faziam com o pessoal, mas isso aí não….Nem tinha grandes condições para denunciar ninguém, a não ser mais duas pessoas que eu tinha convidado formalmente em agronomia, meus colegas, mas nunca referi nada a isso. P: E depois, foste liberto em 1974. Mário Abrantes: Fui liberto em 1974, na madrugada de 27 [de Abril]. P: Como é que foi o 25 de Abril dentro de Caxias? Mário Abrantes: O 25 de Abril dentro de Caxias foi uma coisa… Não tínhamos datas, mas de alguma forma já tínhamos noção de que poderia acontecer qualquer coisa do género, não tínhamos era a Certeza. Porque sabíamos que nas forças armadas se passavam coisas que podíam desencadiar uma ação armada para derrubar o regime. Não sabíamos, era, porque havia duas correntes, qual dessas correntes era dominante na altura, se era a do Kaulza de Arriaga, se era a corrente progressista que depois se veio a afirmar como movimento dos capitães. Sabíamos que havia uma corrente progressista, não sabíamos como é que estava organizada. Portanto, íamos comunicando, íamos informando, até que um dia a gente teve conhecimento por fora, porque a gente tinha contactos externos nas visitas, que tinha havido de facto um levantamento. Tinha havido um levantamento, mas não sabíamos ainda bem que tipo o levantamento era, porque entretanto, entraram pela cadeia dentro, os paraquedistas, os paraquedistas ocuparam os postos todos da GNR. Ora os paraquedistas, a gente tinha a ideia de que era uma tropa muito ligada à direita, portanto ficámos à rasca. Barricamo-nos nas celas para não deixar entrar ninguém, mas depois vieram os fusileiros também e chamaram-nos lá para fora e confraternizámos com eles. Estava lá um colega meu também, que estava na tropa nessa altura, e depois é que percebemos que aquilo afinal era tudo boa gente. P: Foi uma grande alegria? Mário Abrantes: Pois, mas depois foram aquelas chatices todas até ao dia 27, porque isto passou-se no dia 25, e depois as chatices todas até o 27, que era a pressão do Spinola para não libertar toda a gente. E a gente decidiu, mas isso acho que deves conhecer, conheces a história. P: E depois, em que te envolveste durante o processo revolucionário? Logo a seguir decidi acabar o curso, mas entretanto a onda era muito grande e eu não resisti nada e acabei por filiar-me no MDP-CDE. Estive dois anos, quase dois anos filiado no MDP-CDE. Trabalhei em várias frentes, uma delas foi na formação da Associação das Coletividade de Cultura e Recreio na zona de Lisboa. E trabalhei na alfabetização com a Helena Cidade Moura, não sei se tu conheceste, que era uma mulher muito ligada a isso. O que é que fazíamos? Era andar atrás daquelas coletividades todas, explicar a necessidade de um entendimento comum, de se formar uma coisa para ganhar força e lá conseguimos ir formando, ir estruturando um núcleozinho, com outra gente, que envolvia já umas cinco ou seis coletividades. Mas depois entretanto eu larguei isso porque filie-me no Partido e a minha vida mudou completamente a partir daí. Continuei na zona de Lisboa, mas mudei completamente. E portanto desliguei-me. Nunca mais tive ligações nenhumas com as coletividades. P: Mas uma das frentes dos do MDP/CDE era promover essa ligação? Foi no âmbito do MDPCDE? Mário Abrantes: Sim, sim, sim. Um dos objetivos que o MDP/CDE tinha era fazer a ligação entre as associações e coletividade de cultura e recreio. P: Mas já existia a estrutura, não é? Mário Abrantes: Eu não me lembro que estruturas é que existiam. P: Existia a federação em Lisboa, em 1974. Mário Abrantes: Então a gente é que se calhar, na altura em que eu trabalhei nisso, ainda estávamos a trabalhar em paralelo, eventualmente, não sei. P: Lembraste quais eram as coletividades? Mário Abrantes: Não me lembro. Sei que era uma da terra do vinho verde, Colares. Outra, acho que era Torres Vedras e uma era de Sobral de Montagraço... P: Qual é que era o objetivo político que era traçado para essa união? O que é que se esperava com isso? Mário Abrantes: O que se esperava com isso era recrutar muito mais gente e equipar e dotar as coletividades do ponto de vista financeiro, material, de equipamentos, capacidade de intervenção, aumentar muito a capacidade de intervenção. Era isto no fundo. Não era para entrar por um caminho novo, era para respeitar exatamente a vocação. É uma banda, é uma banda. Não havia nenhuma intenção de alterar o que quer que fosse em termos da opção das atividades e das ações que estavam por trás da existência de cada uma daquelas coletividades. P: Era mesmo porque se achava que era importante? Mário Abrantes: Importante tal e qual como existiam. Só que para ganhar força, tinham que se entender, criar estruturas de entendimento, não era entenderem-se em si mas criar estruturas de entendimento, que lhes permitissem fazer pressão junto do Poder Político. P: Estava agora a pensar, por teres estado naquilo das cheias, nas comissões de moradores em Lisboa. Naquela altura também foi um movimento muito forte.... Mário Abrantes: Tens toda a razão. Aí também, ainda no âmbito do MDPCDE, na zona da Algés, que era a minha zona (porque eu vivia ali, na altura os meus pais estavam ali), naqueles bairros, nos bairros da lata – Pedreira dos Húngaros, etc. – a gente formou comissões de moradores neles todos. Estruturámos comissões de moradores neles todos. Eu me lembro-me, eram uns cinco ou seis bairros que exitiam ali. P: Enquanto funcionário do MDP/CDE? Mário Abrantes: Sim, sim. P: E o que é que se reivindicava? Casa, habitação, fundamentalmente a guerra era pela habitação. Sair dali, acabar com aquilo e habitação. P: Queria-se que houvesse construção de habitação social? Queriam fazer ocupações? Mário Abrantes: Não, na altura não se punha nenhuma questão relacionada com ocupações. Até porque a gente não conhecia, nem sabia de coisas devolutas, nem de coisas potencialmente ocupáveis. Portanto, não. Era construir toda uma estrutura habitacional que pudesse substituir aquela. O trabalho era esse. E era para eles ganharem força no sentido de reivindicar exatamente isso. E de participarem, se fosse possível, na construção, no próprio erguer das casas novas. P: E depois acompanhaste? Mário Abrantes: Não, quando saí do MDP, tudo isso abandonei. Porque depois fui parar, ainda estive ligado às coletividades até meados de 1977, portanto de finais de 75 até meados de 77, quando estive na Câmara de Loures, ainda como MDP. Na altura o presidente da Câmara era um homem do MDP e convidou-me para ir para lá para assessorar a presidência na parte cultural. Eu estive durante esses meses nesse trabalho.Trabalhei para o Boletim Municipal e mantive a ligação com algumas coletividades de cultura e recreio que já trazia do MDP, mas já era em estrutura, não era a coletividade x ou y. A Câmara participava nas reuniões da estrutura intercoletividades que entretanto já existia. P: Mas era uma estrutura municipal? Mário Abrantes: Agora é que não te sei dizer, já não me lembro se era municipal ou se era mais... Se calhar era de Lisboa e a Câmara de Loures é que participava nas reuniões da intercolectividade. P: Como é que era essa relação entre as autarquias e as coletividades? Mário Abrantes: A gente participava no sentido de ouvir o que é que eles, nessa altura já eram nesse sentido, já não tinha a ver com o trabalho inicial, agora já era a própria estrutura a funcionar por si e nós a recebermos as propostas deles sobre o que competia ao município. E nós tentávamos acompanhar aquilo que fosse das nossas competências. P: E quais eram as reivindicações deles? Mário Abrantes: Não sei, acho que aquilo era muito diverso. Eu não estou a ver nenhuma específica. Acho que era muito diverso, eram coisas práticas. Umas precisavam de um automóvel, outras precisavam de... Eram necessidades desse tipo. E nós procurávamos satisfazer todas. P: E não havia nenhum programa de articulação para dar resposta a determinadas necessidades sociais entre a autarquia e as coletividades? Mário Abrantes: Não, que eu conhecesse não, mas eu estava na parte cultural, portanto não sei dizer se havia alguma coisa. Para além disso, na parte cultural, fiquei responsável durante esses dois anos, ou ano e meio que trabalhei lá, pelas festas do Concelho, pelo Feriado do Concelho que também envolvia muitas associações. Sim, envolvia coletividades e muita coisa. P: Segundo a tua memória, qual é quer era o espírito que se vivia nas associações naquele período ainda efervescente? Mário Abrantes: Eu acho que era uma expectativa extraordinária em relação ao futuro. A ideia com que eu fiquei é que toda aquela gente estava a dar o melhor de si porque julgavam que tinham condições e que estavam criadas as condições, e de alguma forma até que estiveram criadas durante algum tempo, para conseguirem atingir os objetivos por que sempre ansiaram. Chegarem a um outro patamar em termos de realização própria, coletiva. E portanto, uma disposição para ajudar, para colaborar, para trabalhar fora de horas. Aquilo não havia horários, não havia nada. Era um voluntarismo de facto muito forte. Havia um voluntarismo muito forte e a gente acompanhava aquilo tudo, claro, nem podia fugir dessa onda. Nem queria. P: E nas comissões de moradores? Mário Abrantes: Nas comissões de moradores era a mesma coisa, mas aí com mais calma. Porque a partir dessa altura acontecia que, como era um partido político, já não era tanto a câmara, era um partido político, na altura o MDP/CDE que estava a trabalhar naquilo, começavam a aparecer dentro dos próprios bairros, quando havia aqueles contatos com a Comissão, pessoal a contrariar e a pretender criar listas, enquanto a gente ainda estava muito nos unitários: Não, não há cá listas, vamos todos. Não estávamos naquela coisa das listas, de votos, nada disso. Eram portanto comissões de moradores o mais representativas possível. Mas também tínhamos que ter uma reserva muito maior no acompanhamento. Passávamos a ter que contactar lateralmente alguns dos membros dessas comissões com alguma regularidade, aqueles em que a gente tinha alguma confiança, politicamente, para não interferir lá, digamos, no conjunto. P: E depois? Deixa-me perceber. Estiveste no MDP e depois foste para a Câmara de Loures? Mário Abrantes: Portanto, enquanto eu estive na Câmara de Loures, inscrevi-me no PCP e participei na Concelhia de Loures. Na Comissão de Freguesia de Loures e depois na Concelhia até 1977, quando me propuseram a funcionalização no Partido. Portanto, eu ainda entrei em Loures em finais de 1975/1976, foi isso. E em 1977 inscrevi-me no Partido e depois passo para a funcionalização. Fiquei responsável pelo Concelho da Azambuja. Estava incluído numa organização que era os Concelhos do Norte do PCP, que são os Concelhos do Norte do Distrito de Lisboa. Tínhamos reuniões mensais de coordenação, em Torres Vedras, e depois tinha o Concelho por minha conta, em termos de responsabilidade política, partidária. P: E o que que estava acontecer na Azambuja, nesse período? Mário Abrantes: O que estava a acontecer é que era necessário estruturar o Partido, organizar, participar em lutas da FORD, por exemplo, das fábricas do Sul, na zona da Azambuja propriamente, porque o concelho vai muito para Norte, vai até a cadeia do Alcoentre, lá para cima. Cá em baixo, era necessário organizar o pessoal das fábricas, etc., etc., e lá mais para cima mexer com a agricultura, porque era o que havia, mexer o máximo com a agricultura e manter a organização do Partido e alargá-la o mais possível. Concorrer às eleições autárquicas, o trabalho autárquico era muito importante naquela altura também. P: Na agricultura, que tipo de organizações é que criaram? Mário Abrantes: Na altura havia uma cooperativa, que hoje é conhecida por aquela experiência horrorosa de matarem aqueles animais todos que era... como é que se chamava a cooperativa? O que a gente fazia era reuniões com os agricultores, era mais a parte de agricultores, não tanto em termos de cooperativa mas em termos reivindicativos diretos. P: Eram pequenos proprietários? Mário Abrantes: Eram. Ali já era tudo pequenos proprietários, era a maioria e muitos eram trabalhadores das fábricas e tinham uma pequena propriedade. Portanto a gente ou pegava por baixo e ia para cima, ou pegava em cima e ia para baixo, que era para fazer este intercambio de organização. P: E conseguiram mobilizar essas pequenos proprietários?. Mário Abrantes: Com muita dificuldade, com muita dificuldade. Estou a ver se me lembro de alguma ação assim mais forte. Eles eram mobilizáveis, mas começávamos com a agricultura e acabávamos nos problemas da terra, da freguesia, das ruas, dos caminhos, íamos parar para o âmbito autárquico. P: E nas fábricas? Mário Abrantes: Não, nas fábricas era de facto o salário, fundamentalmente o salário. Emprego efetivo e algumas greves. Trabalhamos para realizar algumas greves ali, com a própria célula do partido de cada uma das fábricas, que havia três ou quatro ligadas ao sector automóvel e depois ainda mais. Havia ali umas cinco ou seis fábricas e em todas elas tínhamos uma célula. P: Quais eram os sindicatos? Mário Abrantes: Havia vários, mas a gente no sindicato não mexia muito, a gente no sindicato não mexia muito. A gente quanto muito ajudava o sindicato quando nos pediam para mobilizar para greves ou para alguma coisa, para mobilizar os nossos. Eles diziam-nos, davam-nos um toque, e nós íamos ter com eles. Ainda foram algumas lutas ali. P: Sobretudo salários? Mário Abrantes: Sim, sim, fundamentalmente salários, que eu me lembre era fundamentalmente salários. P: E depois era o trabalho autárquico? Mário Abrantes: Muito, esse era o principal. Acabou por ser, por se revelar para mim o trabalho principal naquelas freguesias todas. Chegámos a ter dois vereadores na Câmara e tínhamos eleitos em praticamente todas as freguesias. E chegámos a ter três juntas de freguesia da Aliança Povo Unido. P: E ainda estavam num período de saneamento básico? Mário Abrantes: Era tudo coisas básicas – o lixo, o saneamento, os caminhos, as ruas... P: Então, depois da Azambuja, foste para onde? Mário Abrantes: Ora, depois da Azambuja, passado um ano e meio mais ou menos, começamos a ter a informação de que era preciso gente para vir para os Açores, porque se tinha passado aqui uma história negativa, o 6 de junho, como já te contaram, que foi o pré 25 de novembro na prática, foi o grande ensaio para o 25 de novembro, e nessa sequência e dos assaltos às sedes do partido, não sei quantos, os quadros do partido foram postos na rua, como tu sabes. Foram 7 ou 8 postos no avião daqui para fora. Aliás, quem me foi substituir na Azambuja foram dois dos que foram embora daqui - uma Micaelense, uma enfermeira, que foi a enfermeira que é muito conhecida, agora já não, mas na altura toda a gente a conhecia, que foi despida. Despiram a camarada ali na rua, à frente de toda a gente, sem vergonha nenhuma. Ela depois passou a funcionária. E portanto, o [anonimizado], que era o responsável por São Miguel, também foi para a rua depois de lhe deitaram o carro ao mar. Depois acabou, está hoje no Faial, anda por lá. E portanto isto ficou vazio, sem quadros, ficou sem quadros. Conseguiram recrutar um faialense para vir trabalhar na nova organização do PCP, porque o PCP estava todo desarticulado, ficou todo desmantelado praticamente. Aquilo foi perseguição objetiva aos comunistas, mas era perseguição mesmo, com bombas e tudo atrás, não era brincadeira. Portanto, conseguiram recrutar o Zé Deck Mota, que estava a trabalhar no partido em Coimbra. Conseguiram recruta-lo para aqui para os Açores. E ainda bem. Ele veio para os Açores, e então, nesse âmbito, começaram a recrutar mais gente nos organismos do partido, em vários sítios: Quem é que está disponível? E eu acabei por dizer: Epá, se não há mais ninguém, ninguém dizia nada.... P: Ainda não tinhas casado? Mário Abrantes: Se não há mais ninguém... E vim para aqui para São Miguel, comecei com o Nordeste e com a Povoação, os dois concelhos periféricos. Já cá estava um camarada responsável antes de mim há um ano, que também tinha estado na organização dos mesmos concelhos do Norte do Distrito de Lisboa, responsável do Cadaval e da Lourinhã (que foi corrido de lá quando houve os incêndios dos assaltos e veio para cá) e eu vi-me juntar a ele aqui em São Miguel. Começou a minha vida aqui. P: Em 1979? Mário Abrantes: Em princípios de 79, fevereiro ou março, já não me lembro. P: E vocês tinham funcionários para ter nas várias zonas da ilha? Tu tinhas só o Nordeste? Mário Abrantes: Sim, o [anonimizado], que era o outro camarada que já cá estava há um ano veio em 1978, também recrutado da mesma maneira que eu, e ela, a [anonimizado], que era a companheira dele, estávamos divididos os três por vários... P: E tu estavas com o Nordeste e Povoação? Mário Abrantes: Isto foi um ano mais ou menos. Ao fim de um ano o [anonimizado] é mobilizado para o Pico, mais a [anonimizada], foram os dois, porque ficámos sem pessoal no Pico, foram por Pico e eu ainda durante algum tempo fiquei aqui sozinho só com este monstro. Depois é que com uma insistência permanente junto do Partido, é que se lá foi conseguindo, mas sempre aos bochechos. Agora vinha um camarada, estava cá um ano, dois anos e ia-se embora. Aliás era esse o compromisso, o meu também foi assim: Epa, é para ires por dois anos. P: E por que ficaste? Mário Abrantes: Fiquei porque entretanto não havia ninguém para me substituir, começa por aí. E segundo, porque comecei a ter ligações e relações com o pessoal daqui. Eu não tinha vida feita em lado nenhum, estás a perceber? Portanto, podia fazer vida em qualquer lado e foi isso, comecei a fazer vida aqui. As vizinhas metiam-se connosco e a gente brincava à noite, às vezes de uma casa para outra, e com o tempo a gente juntou-se, isto para ser breve. P: Então constituíste aqui família? Mário Abrantes: Fiz família aqui, portanto, a partir dessa altura, não tinha razões nenhumas para sair de cá. A não ser que me propusessem qualquer alternativa. P; E quando vieste, tinhas-me dito que vieste como professor? Mário Abrantes: Formalmente e oficialmente vim, concorri, e vim para dar aulas. Dei aulas no liceu e dei aulas na preparatória, na Roberto Ivens, durante dois anos. E depois parou. Agora isto aqui já está mais calmo, mas durante esse período ainda houve muitos problemas, ainda assaltaram a sede, essa sede. Ainda boicotaram a campanha de 1979, no fim do ano, porque eram autárquicas esse ano. Assaltaram uma sessão pública que fizemos, mas isso foi bom para nós. Assaltaram-nos uma sessão pública que fizemos aqui na Freguesia de São Pedro, no Cine São Pedro, (agora é daqueles gajos religiosos). Partiram aquilo de tudo, acabou tudo à porrada. Era um movimento separatista juvenil, o MSE - Movimento Separatista Estudantil. E depois foram para o centro de trabalho, mas com gente que levava armas e tudo. Partiram-nos a porta, mas a vizinhança portou-se muito bem. Depois fizemos um trabalho de psicólogo junto da vizinhança, porque eles ficaram à rasca. O nosso problema era que eles ficassem todos com medo que a sede estivesse aqui e quisessem que a gente se fosse embora daqui. Mas não, correu bem. Com o tempo, aquilo acalmou tudo e conseguimos voltar outra vez a estar ali bem. Correu bem, pronto, com o tempo. E, portanto, com esse tempo começou também a correr bem noutros lados. Entretanto subimos muito a nossa votação nessas autárquicas. Em 1979 houve um salto qualitativo grande, e começámos até a ser pessoas respeitadas, de certa maneira. Começámos a ser pessoas politicamente respeitadas aqui neste meio, que tinha sido o meio mais agressivo contra os comunistas, foi aqui mesmo, em Ponta Delgada. Começámos novamente a ser respeitados e a ter capacidade de mexer um bocadinho, foi isto. E fomos mexendo, fomos mexendo, mexendo, mexendo, pronto. P: Junto do operariado? Mário Abrantes: Não sei o que tu chamas operariado... P: Tenho estado a entrevistar aqui algumas pessoas das fábricas de tabaco... Mário Abrantes: Sim, sim, tínhamos influência junto do operariado, mas não era de maneira nenhuma o vetor principal da nossa atividade, porque não tinha, do ponto de vista social e económico, o peso que têm outros setores. Tínhamos de facto, chegamos a ter células nos laticínios, na Loreto, aqui na fábrica do açúcar, a que aguentou mais tempo, na Melo Abreu, que era das cervejas. Mas o problema era: ideologicamente o pessoal não tinha ninguém. Portanto, era um trabalho a começar muito, muito, muito de baixo. Mesmo em termos coletivos, nas fábricas, esse pessoal não tinha mentalidade de conjunto, não tinha ainda. Eram herdeiros diretos do pequeno proprietário agrícola e, portanto, muito caracterizado pelo egoísmo, pelo individualismo. Era muito difícil trabalhar. Para já, reunir era uma vitória de um raio. Quando se conseguia juntar três ou quatro... E depois os temas, os assuntos, o conseguir-se chegar até aos problemas laborais... Tinham medo, um bocado como na Azambuja, mas a um nível muito mais.... Enquanto na Azambuja já havia uma consciência, aqui não havia consciência de classe nenhuma, zero, consciência de classe zero. O que poderia haver antes, não sei se morreu, se o que é que foi, mas também nunca foi nada de especial, nada de grande. O Partido Comunista, antes do 25 de abril, nos Açores, a história que tem é muito curta, é muito pequena. Há umas coisas na Terceira, há uns Avantes que os marinheiros traziam para aí e eram distribuídos. Havia o pessoal que depois veio a ser do MDP/CDE, o Governador Civil, o [anonimizado], ouviam a Rádio Moscovo. Havia uma cooperativa, é verdade, uma cooperativa nas Capelas que diziam que o dirigente principal era comunista, nunca cheguei a conhece-lo porque entretanto morreu, quando eu fui ter com ele. P: Era uma cooperativa de quê Mário Abrantes: Uma cooperativa agrícola. Mas olha consegui falar com um, e recrutar para o partido, um camarada que também tinha sido dessa direção, que por sua vez foi um super ativista nas Capelas, como autarca. Chegou a ser eleito não sei quantas vezes e era um homem que ia buscar não sei quantos votos, tinha uma capacidade! Um agricultor sem formação nenhuma. Já morreu, já morreu. Coitadito, já morreu. Era uma história gira. Era uma história de vida. Era um homem muito, muito interessante. Porque tu ficavas revoltada: Como é que este gajo, é que revoltava-te. Se este gajo consegue isto tudo, porque é que o gajo ainda tem...Porque depois vinha com as reservas todas em relação ao comunismo. E depois dizia-te coisas que não tinham nada a ver. E tu: eiii! E depois a atividade dele era uma coisa espetacular. Metia-se em todas. A gente hoje tem 16 votos nas Capelas, o gajo ia buscar 150 e 200 votos às Capelas. Chegámos a eleger dois para a assembleia de freguesia. Os filhos, um deles era nosso simpatizante e continua eventualmente a ser, mas não se meteu com nada, e o outro é PS, é todo ativista do PS. Já foi candidato à Câmara pelo PS. P: E com os agricultores, como é que era a mobilização? Mário Abrantes: Com os agricultores houve duas experiências: a experiência de crescimento, que eu não me acompanhei. Foi logo a seguir ao 25 de abril. O Partido aqui fez um trabalho meritório na formação de cooperativas agrícolas. Conseguiu formar umas cinco ou seis cooperativas agrícolas, as principais eram a Achada, Maia, Capelas, e havia mais umas duas diretamente da responsabilidade do Partido, quer dizer que foi o Partido que pôs de pé. E depois havia mais algumas que entretanto se formaram. E portanto isto foi uma ascensão do movimento cooperativista muito interessante, se assim que se pode dizer. Depois morreu tudo, tudo o que era associativismo, tudo o que era experiências coletivas, de desenvolvimento, de abertura e não sei que mais, com o 6 de junho e depois o 25 de novembro a acumular, aqui em São Miguel isto foi tudo ao fundo. Mas é que foi mesmo tudo ao fundo. Porque mesmo aqueles que ainda tinham alguma consciência, tinham medo, porque perseguiam o pessoal. E o que eu apanhei já foi a fase degenerescente das cooperativas agrícolas. O que é que eu apanhei? Apanhei a Maia, ia fazer reuniões com a direção. Podia, eles aceitavam-me como membro do Partido, como dirigente do Partido, mas não me davam muita confiança, como quem diz: Mas tu aqui não mandas nada, atenção, não vens para aqui como... Eu também não queria mandar, mas eles é que interpretavam assim: Tu aqui não mandas nada. E depois ainda por cima eram gajos ligados ao PS, pois tinham-se acabado por ligar ao PS. Na Achada de facto mantínhamos lá um camarada, na direção. Tínhamos um camarada, mas incompatibiliza-se facilmente com os outros. Não era uma pessoa de lidar fácil. Conclusão, por ele a gente não chegava a lado nenhum. Ele estava lá, eles respeitavam-no e ele estava lá, mas quer dizer, à direção daquilo a gente não chegava, não conseguíamos mexer naquilo. Ainda hoje a cooperativa existe. E existem mais, elas existem todas formalmente, com estatutos, com tudo. Só que (tirando aqui uma grande, que já é uma cooperativa do ponto de vista económico sem espírito cooperativo nenhum, digamos assim, que é aqui a dos Arrifes, que é a maior, a Bom Pastor, e a União das Cooperativas, que tem a fábrica da união de leite, que é a maior fábrica de transformação de leite que temos nos Açores) está tudo na mão do PSD neste momento. Portanto elas existem porque interessa que existam do ponto de vista de estruturas e servem para o PSD influenciar os agricultores para votar. Sobretudo eles querem é os votos e querem é estar no poder e portanto tudo isto serve para eles, digamos assim, terem o pessoal na mão do ponto de vista político, que é o que lhes interessa. E depois vão dando uns bombons de vez em quando. É isto. E nós passamos a ter cada vez mais dificuldade em organizarmos, em influenciar a parte agrícola. Dessa cooperativa do Nordeste, desse nosso camarada, da Achada, que fica no concelho de Nordeste, um dos filhos acabou por se formar em cooperativismo É do Partido e participa nas reuniões. É um homem da agricultura biológica. P: A gente volta outra vez à tua história, mas já agora, tinhas-me falado também, acho que foi sobre os estufeiros, que havia uma caixa económica. Também havia esse tipo de associações aqui, mutualidades? Mário Abrantes: Sim, mutualista sim. Havia uma ligada à agricultura que tinha gente de esquerda, a Caixa Económica de Ponta Delgada, mas era ligada à agricultura e é, ainda existe, fundamentalmente ligada à agricultura. Mas está feita num banco quase praticamente normal. Tem é muita gente ligada a ela de esquerda, mas da área do PS. Aliás, depois do 25 de Abril, depois do 25 de Novembro, ser do PS em São Miguel já era muito à esquerda, sabes? Temos camaradas hoje aqui no Partido que já eram, já se consideravam comunistas, já eram adeptos, digamos assim, não se pode dizer militantes porque não eram, nem simpatizantes, eram adeptos do Partido Comunista (porque isto é tudo à moda no futebol) mas estavam no PS porque era menos perigoso. Mas hoje estão no Partido, felizmente, alguns, não sei de outros, mas estão porque acabaram por se chatear, porque afinal de contas... P: E estas pessoas da Juventude Operária Católica, como a Manuela? Mário Abrantes: Sim, isso é uma relação puramente sindical. Isto foi muito bem trabalhado, julgo eu, por dirigentes da CGTP que acompanhavam o trabalho sindical aqui. E os Açores, nomeadamente São Miguel, sempre tiveram um papel importante no equilíbrio da composição política das listas da CGTP a nível nacional. A Manuela era uma peça fundamental e ela sabia que era e estava consciente disso. Aliás a união dos sindicatos de São Miguel e Santa Maria, que ela depois deixou, a seguir quem foi para lá foi uma socialista. Fui até eu propus que fosse ela. Porque de facto também sindicalistas comunistas, com bagagem mínima para ir liderar o movimento sindical, o movimento intersindical que é a união dos sindicatos, não temos, não tínhamos. Os nossos quadros, com o 25 de novembro morreram todos aqui, foram-se embora. E essa gente [JOC] foi por aí que entrou, puxados indiretamente por nós através dos dirigentes comunistas da própria CGTP. Porque o [anonimizado], que acompanhava a região em termos de CGTP, era ele que fazia esses contatos com as JOCs e com os católicos, com os PS e acompanhava. Portanto, e nessa altura a gente já não se metia em termos partidários, respeitávamos e não nos metíamos muito. Porque ao princípio a nossa intenção foi, nós tentámos interferir mais no movimento sindical, inclusive na estruturação do movimento sindical. Quando eu cheguei cá, o camarada que estava aí na frente sindical, trazido pela CGTP, era um reformador de um raio e queria restruturar o movimento sindical. E quem aqui é que o ajudava a fazer isso? Ele não podia, porque ele não era do partido. Eu quis mexer com isso tudo, mas isso não resultou, não deu nada. Conseguiu-se fazer uma restruturaçãozita, melhorar a estrutura sindical, mas a grande reforma estrutural do movimento sindical, aqui em São Miguel, que eles queriam fazer inicialmente, com o Partido a influenciar decisivamente, morreu. E ainda bem, porque não ia dar em nada. Ia só criar estruturas sem funcionarem, com figura jurídica e pouco mais. E portanto, a partir daí, a gente acompanhou o que já existia da melhor forma possível. Até, inclusivamente, chegámos a acompanhar direções sindicais através de alguns dos membros e a estabelecer ligações com alguns dos membros da direção de sindicados da UGT, da alimentação e bebidas e das associações de agricultores. Atualmente, a direção da Associação de Agricultores de São Miguel e Santa Maria está nas mãos do PSD, o atual dirigente é do PSD. Não é PSD, mas está nas mãos do PSD. Mas nós chegámos a ter influência decisiva e a própria associação a aconselhar ao voto na CDU, aqui para umas autárquicas em São Miguel, em Porta Delgada. Convidaram a lista da CDU para um almoço com os agricultores, vejamos até onde é que isto chegou, o respeito que tinham já pela gente e pelo nosso trabalho, o trabalho ligado à agricultura. Nós tomávamos posições políticas, os nossos deputados sempre foram deputados que intervieram muito no âmbito da agricultura - o Decq Mota e o Paulo Valadão, especialmente esses dois. E portanto eles reconheciam isso e numas autárquicas, por acaso eu é que era o candidato, o cabeça de Lista à Câmara, apercebi-me de que de facto esse respeito existia. Porque entretanto convidaram a lista da CDU para um almoço com os agricultores, aqui na sede da Associação (aquilo é uma super associação, faz parte da CAP, todas as associações agrícolas aqui são da CAP, para tua informação) e os dirigentes dessa associação, que está filiada da CAP, fizeram o apelo público ao voto na lista da CDU aqui em Ponta Delgada. Mas pronto, aconteceu uma vez, foi uma exceção. Depois veio este gajo que lá está e este gajo de facto tem aquilo na mão há muitos anos e o PSD é que controla aquilo. Fez a oposição até às maioria absolutas do PS durante este tempo todo. Ele e a Câmara de Comércio e Indústria e os sindicatos da UGT. Faziam reuniões os três, conferências de imprensa conjuntas, para deitar abaixo o governo do PS. Neste caso, contra o governo do OS, estes anos todos. Conseguiram alguma coisa com isso, conseguiram mobilizar. Mas isso só exprime a nossa perda de influência a esses níveis todos. P: Mas essa perda foi no rescaldo do 6 de junho? Mário Abrantes: Sim, sim. Depois recuperámos alguma coisa, mas já nunca mais chegámos ao nível que tinha sido possível chegar antes. Não, nem nada que se pareça. Não, hoje o nível de influência política e social que temos em São Miguel (eu falo só de São Miguel porque é o que tenho mais conhecimento, embora seja capaz de ter opinião sobre os Açores, e tenho, mas não vale a pena estar dá-la) é muito reduzido, é mesmo muito reduzido. Ou seja, nós, já mesmo depois do 25 de novembro, chegámos a patamares com algum interesse, digamos assim, alguma importância do ponto de vista político, como por exemplo este sinal desta associação, a comunidade é um sinal disso. Chegámos a algum nível, mas perdeu-se bastante. E neste momento eu acho que nós estamos ao nível praticamente do início, quando isto tudo começou, pelo menos ao nível da influência eleitoral. Mas agora, mesmo a influência social, com a perda do nosso deputado, (tínhamos um) a nossa imagem ainda se esbate mais. E portanto isso está a ajudar um bocado a missa. É um trabalho muito difícil, estamos com um trabalho muito difícil neste momento, mas as convicções são fortes e os problemas socioeconómicos agravam-se e por isso a luta continua. -
Junho de 2022
Mário Abrantes da Silva
Entrevista realizada a Mário Abrantes, em junho de 2022, no Centro de Trabalho do PCP em Ponta Delgada P: Como estava a dizer, a minha ideia é perceber a história de vida das pessoas e por isso perguntava em primeiro lugar onde e quando é que nasceste? Mário Abrantes: Nasci no hospital militar principal em Lisboa, mas era residente em Aveiro na altura, em 1950, a meio do século passado. Era filho de militar e o meu pai andou a saltar de um sítio para o outro, portanto eu fui atrás, ao princípio. Fui para Macau com 6 anos de idade, estive 3 anos em Macau, depois de Macau fui para, agora não sei bem a sequência, mas andei por Mafra, Portalegre, Elvas, Évora e Estremoz. Onde estive mais tempo foi em Estremoz. Depois estive em Moçambique, em Angola, nas comissões que ele fazia quando tinha comissões, durante a guerra. Depois, voltei para Lisboa e entretanto estava a estudar em agronomia, no Instituto Superior de Agronomia. Entretanto, antes do fim do curso, envolvi-me em atividades políticas consideradas lesivas dos interesses do Estado e fui preso antes do 25 de Abril, em 1973, antes de acabar o curso. Saí no dia 27 [de abril], que não foi a 25, foi a 27 de madrugada. P: Estavas onde? Mário Abrantes: Estava em Caxias e saí a 27 de madrugada. Depois acabei o curso nessa altura, mas entretanto aquela onda logo a sair ao 25 de abril levou-me atrás. Entrei para o MDP e, não sendo filiado, participei politicamente em atividades relacionadas com a atividade do PCP. P: Diz-me só uma coisa, os teus pais eram de esquerda? Mário Abrantes: Não, não, os meus pais eram adeptos ferranhos do regime, qualquer um deles. P: E tinha as irmãos? Mário Abrantes: Tinha 10 irmãos, neste momento estão 8 vivos. Éramos 11 e agora tenho 8 irmãos vivos, comigo somos nove neste momento. P: E os teus irmãos também se envolveram em questões políticas? Mário Abrantes: Sim. Há um que já não é vivo e logo a seguir ao 25 de abril esteve ligado à UDP. Mas esteve envolvido em grandes atividades políticas. De resto, as minhas duas irmãs, logo a seguir a mim na escala hierárquica da minha família, a mais velha, logo a seguir a mim, também esteve a envolvida em movimentos associativos e também esteve presa antes do 25 de Abril. Saiu um bocado antes do 25 de Abril, esteve pouco tempo, ela e o meu cunhado. E depois a minha outra irmã a seguir é essa, é que foi mais ativa e esteve ligada a várias organizações, todas elas ligadas ao Partido. Acabou na Guiné, trabalhou com o Nino Vieira na Guiné. Esteve dois ou trê anos na Guiné, depois veio para cá e trabalhou no movimento sindical também durante muitos anos. Atualmente está reformada e faz a sua vida própria. Envolvidos em política, à esquerda, não tenho mais ninguém. De resto, os outros meus irmãos, tenho o mais velho de todos que vive no Porto, e que é um homem que é militar, traumatizado pela guerra colonial e de direita e depois tenho os outros meus irmãos cuja opção política, há um que eu conheço, que é simpatizante do PSD, os outros não sei bem o que são, nem o que não são. É isto sobre a família, em termos de ligações políticas. P: E o teu envolvimento foi no movimento estudantil? Mário Abrantes: Não, o meu envolvimento foi simultaneamente no movimento estudantil e clandestinamente num movimento patrocinado pelo Partido, mas que não era só composto por gente ligada ao partido, que era a Ação Revolucionária Armada, de que eu fazia parte mesmo sem estar ligado ao Partido. Era um dos que não estando ligado ao Partido estava. Foi esse meu envolvimento que me levou à cadeia, porque quanto ao resto era na Associação dos Estudantes de Agronomia. Estive muitos anos ligado à associação, como ativista da associação, recusando-me sempre a ir para cargos diretivos, era responsável da secção sonora do da Associação dos Estudantes do Instituto do Superior de Agronomia. P: E o que foi primeiro? Foi primeiro o envolvimento Estudantil? Mário Abrantes: Sim, foi através do envolvimento do movimento estudantil que comecei a minha politização. A minha politização propriamente dita começa numa data concreta, em 1967, quando foram as cheias. O movimento associativo participou ativamente no socorro e no apoio às vítimas das cheias, nos bairros de lata de Lisboa fundamentalmente, e eu participei em algumas ações dessas levadas a cabo porque tinha acabado de entrar para a associação e tinha começado a trabalhar na associação, embora sem intenções políticas de outra ordem. Não tinha intenções políticas nenhumas, estava lá até porque gostava muito de fazer bonecos e desenhar e gostava muito de pôr música e de música. Estava na secção sonora e fazia publicidade e propaganda lá, fazia cartazes. Mas entretanto meti-me na cheias e depois de sair das cheias é que percebi bem onde estava metido. Porque até lá a minha cultura política era a que os meus pais me tinham transmitido praticamente, embora com algumas reservas, mas no fundamental aceitava a situação. Depois é que comecei a perceber a partir dali. P: Como foi essa experiência tão marcante das cheias? Mário Abrantes: A experiência das cheias foi ver como é que aquela gente todo vivia, não era preciso dizer mais nada, e as condições de vida que tinham e pelo que passavam antes, antes das próprias cheias, e a falta de apoio público que tiveram. Deixaram-nos morrer praticamente, muitos deles morreram por falta de socorro, por falta de apoio, e a partir daí, juntamente com os meus outros camaradas ou colegas da associação, começamos a participar em ações de contestação estudantil ao governo e à ditadura, a partir daí mais ou menos. Eu comecei a participar, com os meus colegas da associação, que eram mais velhos que eu e já participavam antes das cheias. Mas eu entrei foi nessa altura e a participação começou aí. P: Isso foi em 1967? Mário Abrantes: A partir de 67 e nunca mais parou. P: E depois foi a crise de 1969... Mário Abrantes: A crise de 69 e as eleições. Andei a fazer Campanha pela CDE. Participei em tudo o que era movimentos estudantis, eu participava em manifestações estudantistas, participava... Era isto. Até que, por via disso tive um contacto. Eu tinha cá as minhas ideias, esquerdistas na altura. Portanto, em Agronomia defrontavam-se duas correntes ideológicas, a ligada ao Partido Comunista e uma ligada ao esquerdismo e ao maoísmo. P: MRPP? Mário Abrantes: Não, maoísmo, mas sem ligações partidárias. Portanto, todos aqueles que passaram por ali, naquelas listas daquela associação, e que eu apoiava embora não fosse da direção. Havia um casal... E esses é que eram mesmo maoista, mas não eram MRPP. Eu acho que eles estavam, embora nunca tivessem dito, mas eu acho que eles estavam ligados ao Partido Comunista Reconstruído, ou um movimento qualquer de reconstrução do Partido Comunista maoísta. Aqueles com quem eu me dava mais, era pessoal, que: Sim senhor o Mao Tsé Tung, o maoísmo e não sei o quê, a Rússia é social imperialista e não sei que mais, mas não eram filiados em nenhum partido maoísta. E até, se queres que te diga, a ideia que eu tenho, é que nem sequer maoístas eram, devido à evolução futura deles. Um deles era Guineense, foi para a Guiné e era um homem do PAIGC. O outros eram também gente ligada aos movimentos de libertação. P: Havia muitos estudantes das ex-colónias? Mário Abrantes: Sim, em agronomia havia bastante e eu também, porque tinha estado em Angola e o primeiro ano foi em Angola. Foi quando se abriram os estudos universitários de agronomia e silvicultura, porque eu sou silivicultor. Foi em Angola que fiz o primeiro ano e depois vim para cá com uma série deles e estive até num lar chamado Lar Ultramarino, que era perto de agronomia, com uma série deles que vieram de lá. Em geral era a malta de direita. Era tudo gente ligada aos colonos. Eram brancos. Havia um negro, mas eram um negro branco. Eram os meus colegas, com quem eu vim de lá. Também aí as minhas ligações, como vez, eram para o outro lado completamente P: E depois, estavas a dizer que tiveste um contacto nessa altura... Mário Abrantes: Eu tive um contato, porque eu procurava esses contactos, com descrição, mas procurava. Porque nós iamo-nos desenvolvendo ideologicamente. E, portanto, aquela ideia da necessidade da luta armada, de ser contra o regime, que chegou a altura, isto era objeto de debate, objeto de discussão, de conversas entre nós na associação. Isto tudo ao nível da associação, embora de forma mais reservada. Até que há uma altura em que alguém que estava ligado também à associação me faz o convite para participar e eu aceitei. P: E o que é que fizeste para ser preso? Mário Abrantes: Participei em algumas ações da ARA - duas. Não tive tempo para mais porque aquilo foi rápido. Fomos presos em 1973, eu tinha entrado em 1972 talvez, então não tive tempo para fazer muita coisa. P: Estiveste preso em Caxias? E foi duro, foste torturado? Mário Abrantes: Se calhar não foi tão duro como outros, porque o meu pai era coronel nessa altura, já era coronel de cavalaria. E o regime já não estava com aquela força, nessa altura. Portanto, o problema das forças armadas, estás a ver? Tinham alguma reserva. Então, eu cheguei a ser torturado, estive sem dormir quatro noites, estive um dia e meio, quase dois dias, sem me sentar, mas não me deram porrada, não levei porrada. Acabei por confirmar as acusações que me eram feitas. As acusações que me eram feitas foi ter participado nisto, nisto e nisto. Portanto, eu tive ao todo duas semanas de interrogatórios, com interrupções, e passei ao todo talvez quatro noites sem dormir, depois mais uma. Depois fizeram-me vários convites para denunciar: Que me ofereciam uma passagem de avião não sei para onde, que eu passava a ter uma vida nova, enfim, uma identidade nova. Essas coisas todas que eles faziam com o pessoal, mas isso aí não….Nem tinha grandes condições para denunciar ninguém, a não ser mais duas pessoas que eu tinha convidado formalmente em agronomia, meus colegas, mas nunca referi nada a isso. P: E depois, foste liberto em 1974. Mário Abrantes: Fui liberto em 1974, na madrugada de 27 [de Abril]. P: Como é que foi o 25 de Abril dentro de Caxias? Mário Abrantes: O 25 de Abril dentro de Caxias foi uma coisa… Não tínhamos datas, mas de alguma forma já tínhamos noção de que poderia acontecer qualquer coisa do género, não tínhamos era a Certeza. Porque sabíamos que nas forças armadas se passavam coisas que podíam desencadiar uma ação armada para derrubar o regime. Não sabíamos, era, porque havia duas correntes, qual dessas correntes era dominante na altura, se era a do Kaulza de Arriaga, se era a corrente progressista que depois se veio a afirmar como movimento dos capitães. Sabíamos que havia uma corrente progressista, não sabíamos como é que estava organizada. Portanto, íamos comunicando, íamos informando, até que um dia a gente teve conhecimento por fora, porque a gente tinha contactos externos nas visitas, que tinha havido de facto um levantamento. Tinha havido um levantamento, mas não sabíamos ainda bem que tipo o levantamento era, porque entretanto, entraram pela cadeia dentro, os paraquedistas, os paraquedistas ocuparam os postos todos da GNR. Ora os paraquedistas, a gente tinha a ideia de que era uma tropa muito ligada à direita, portanto ficámos à rasca. Barricamo-nos nas celas para não deixar entrar ninguém, mas depois vieram os fusileiros também e chamaram-nos lá para fora e confraternizámos com eles. Estava lá um colega meu também, que estava na tropa nessa altura, e depois é que percebemos que aquilo afinal era tudo boa gente. P: Foi uma grande alegria? Mário Abrantes: Pois, mas depois foram aquelas chatices todas até ao dia 27, porque isto passou-se no dia 25, e depois as chatices todas até o 27, que era a pressão do Spinola para não libertar toda a gente. E a gente decidiu, mas isso acho que deves conhecer, conheces a história. P: E depois, em que te envolveste durante o processo revolucionário? Logo a seguir decidi acabar o curso, mas entretanto a onda era muito grande e eu não resisti nada e acabei por filiar-me no MDP-CDE. Estive dois anos, quase dois anos filiado no MDP-CDE. Trabalhei em várias frentes, uma delas foi na formação da Associação das Coletividade de Cultura e Recreio na zona de Lisboa. E trabalhei na alfabetização com a Helena Cidade Moura, não sei se tu conheceste, que era uma mulher muito ligada a isso. O que é que fazíamos? Era andar atrás daquelas coletividades todas, explicar a necessidade de um entendimento comum, de se formar uma coisa para ganhar força e lá conseguimos ir formando, ir estruturando um núcleozinho, com outra gente, que envolvia já umas cinco ou seis coletividades. Mas depois entretanto eu larguei isso porque filie-me no Partido e a minha vida mudou completamente a partir daí. Continuei na zona de Lisboa, mas mudei completamente. E portanto desliguei-me. Nunca mais tive ligações nenhumas com as coletividades. P: Mas uma das frentes dos do MDP/CDE era promover essa ligação? Foi no âmbito do MDPCDE? Mário Abrantes: Sim, sim, sim. Um dos objetivos que o MDP/CDE tinha era fazer a ligação entre as associações e coletividade de cultura e recreio. P: Mas já existia a estrutura, não é? Mário Abrantes: Eu não me lembro que estruturas é que existiam. P: Existia a federação em Lisboa, em 1974. Mário Abrantes: Então a gente é que se calhar, na altura em que eu trabalhei nisso, ainda estávamos a trabalhar em paralelo, eventualmente, não sei. P: Lembraste quais eram as coletividades? Mário Abrantes: Não me lembro. Sei que era uma da terra do vinho verde, Colares. Outra, acho que era Torres Vedras e uma era de Sobral de Montagraço... P: Qual é que era o objetivo político que era traçado para essa união? O que é que se esperava com isso? Mário Abrantes: O que se esperava com isso era recrutar muito mais gente e equipar e dotar as coletividades do ponto de vista financeiro, material, de equipamentos, capacidade de intervenção, aumentar muito a capacidade de intervenção. Era isto no fundo. Não era para entrar por um caminho novo, era para respeitar exatamente a vocação. É uma banda, é uma banda. Não havia nenhuma intenção de alterar o que quer que fosse em termos da opção das atividades e das ações que estavam por trás da existência de cada uma daquelas coletividades. P: Era mesmo porque se achava que era importante? Mário Abrantes: Importante tal e qual como existiam. Só que para ganhar força, tinham que se entender, criar estruturas de entendimento, não era entenderem-se em si mas criar estruturas de entendimento, que lhes permitissem fazer pressão junto do Poder Político. P: Estava agora a pensar, por teres estado naquilo das cheias, nas comissões de moradores em Lisboa. Naquela altura também foi um movimento muito forte.... Mário Abrantes: Tens toda a razão. Aí também, ainda no âmbito do MDPCDE, na zona da Algés, que era a minha zona (porque eu vivia ali, na altura os meus pais estavam ali), naqueles bairros, nos bairros da lata – Pedreira dos Húngaros, etc. – a gente formou comissões de moradores neles todos. Estruturámos comissões de moradores neles todos. Eu me lembro-me, eram uns cinco ou seis bairros que exitiam ali. P: Enquanto funcionário do MDP/CDE? Mário Abrantes: Sim, sim. P: E o que é que se reivindicava? Casa, habitação, fundamentalmente a guerra era pela habitação. Sair dali, acabar com aquilo e habitação. P: Queria-se que houvesse construção de habitação social? Queriam fazer ocupações? Mário Abrantes: Não, na altura não se punha nenhuma questão relacionada com ocupações. Até porque a gente não conhecia, nem sabia de coisas devolutas, nem de coisas potencialmente ocupáveis. Portanto, não. Era construir toda uma estrutura habitacional que pudesse substituir aquela. O trabalho era esse. E era para eles ganharem força no sentido de reivindicar exatamente isso. E de participarem, se fosse possível, na construção, no próprio erguer das casas novas. P: E depois acompanhaste? Mário Abrantes: Não, quando saí do MDP, tudo isso abandonei. Porque depois fui parar, ainda estive ligado às coletividades até meados de 1977, portanto de finais de 75 até meados de 77, quando estive na Câmara de Loures, ainda como MDP. Na altura o presidente da Câmara era um homem do MDP e convidou-me para ir para lá para assessorar a presidência na parte cultural. Eu estive durante esses meses nesse trabalho.Trabalhei para o Boletim Municipal e mantive a ligação com algumas coletividades de cultura e recreio que já trazia do MDP, mas já era em estrutura, não era a coletividade x ou y. A Câmara participava nas reuniões da estrutura intercoletividades que entretanto já existia. P: Mas era uma estrutura municipal? Mário Abrantes: Agora é que não te sei dizer, já não me lembro se era municipal ou se era mais... Se calhar era de Lisboa e a Câmara de Loures é que participava nas reuniões da intercolectividade. P: Como é que era essa relação entre as autarquias e as coletividades? Mário Abrantes: A gente participava no sentido de ouvir o que é que eles, nessa altura já eram nesse sentido, já não tinha a ver com o trabalho inicial, agora já era a própria estrutura a funcionar por si e nós a recebermos as propostas deles sobre o que competia ao município. E nós tentávamos acompanhar aquilo que fosse das nossas competências. P: E quais eram as reivindicações deles? Mário Abrantes: Não sei, acho que aquilo era muito diverso. Eu não estou a ver nenhuma específica. Acho que era muito diverso, eram coisas práticas. Umas precisavam de um automóvel, outras precisavam de... Eram necessidades desse tipo. E nós procurávamos satisfazer todas. P: E não havia nenhum programa de articulação para dar resposta a determinadas necessidades sociais entre a autarquia e as coletividades? Mário Abrantes: Não, que eu conhecesse não, mas eu estava na parte cultural, portanto não sei dizer se havia alguma coisa. Para além disso, na parte cultural, fiquei responsável durante esses dois anos, ou ano e meio que trabalhei lá, pelas festas do Concelho, pelo Feriado do Concelho que também envolvia muitas associações. Sim, envolvia coletividades e muita coisa. P: Segundo a tua memória, qual é quer era o espírito que se vivia nas associações naquele período ainda efervescente? Mário Abrantes: Eu acho que era uma expectativa extraordinária em relação ao futuro. A ideia com que eu fiquei é que toda aquela gente estava a dar o melhor de si porque julgavam que tinham condições e que estavam criadas as condições, e de alguma forma até que estiveram criadas durante algum tempo, para conseguirem atingir os objetivos por que sempre ansiaram. Chegarem a um outro patamar em termos de realização própria, coletiva. E portanto, uma disposição para ajudar, para colaborar, para trabalhar fora de horas. Aquilo não havia horários, não havia nada. Era um voluntarismo de facto muito forte. Havia um voluntarismo muito forte e a gente acompanhava aquilo tudo, claro, nem podia fugir dessa onda. Nem queria. P: E nas comissões de moradores? Mário Abrantes: Nas comissões de moradores era a mesma coisa, mas aí com mais calma. Porque a partir dessa altura acontecia que, como era um partido político, já não era tanto a câmara, era um partido político, na altura o MDP/CDE que estava a trabalhar naquilo, começavam a aparecer dentro dos próprios bairros, quando havia aqueles contatos com a Comissão, pessoal a contrariar e a pretender criar listas, enquanto a gente ainda estava muito nos unitários: Não, não há cá listas, vamos todos. Não estávamos naquela coisa das listas, de votos, nada disso. Eram portanto comissões de moradores o mais representativas possível. Mas também tínhamos que ter uma reserva muito maior no acompanhamento. Passávamos a ter que contactar lateralmente alguns dos membros dessas comissões com alguma regularidade, aqueles em que a gente tinha alguma confiança, politicamente, para não interferir lá, digamos, no conjunto. P: E depois? Deixa-me perceber. Estiveste no MDP e depois foste para a Câmara de Loures? Mário Abrantes: Portanto, enquanto eu estive na Câmara de Loures, inscrevi-me no PCP e participei na Concelhia de Loures. Na Comissão de Freguesia de Loures e depois na Concelhia até 1977, quando me propuseram a funcionalização no Partido. Portanto, eu ainda entrei em Loures em finais de 1975/1976, foi isso. E em 1977 inscrevi-me no Partido e depois passo para a funcionalização. Fiquei responsável pelo Concelho da Azambuja. Estava incluído numa organização que era os Concelhos do Norte do PCP, que são os Concelhos do Norte do Distrito de Lisboa. Tínhamos reuniões mensais de coordenação, em Torres Vedras, e depois tinha o Concelho por minha conta, em termos de responsabilidade política, partidária. P: E o que que estava acontecer na Azambuja, nesse período? Mário Abrantes: O que estava a acontecer é que era necessário estruturar o Partido, organizar, participar em lutas da FORD, por exemplo, das fábricas do Sul, na zona da Azambuja propriamente, porque o concelho vai muito para Norte, vai até a cadeia do Alcoentre, lá para cima. Cá em baixo, era necessário organizar o pessoal das fábricas, etc., etc., e lá mais para cima mexer com a agricultura, porque era o que havia, mexer o máximo com a agricultura e manter a organização do Partido e alargá-la o mais possível. Concorrer às eleições autárquicas, o trabalho autárquico era muito importante naquela altura também. P: Na agricultura, que tipo de organizações é que criaram? Mário Abrantes: Na altura havia uma cooperativa, que hoje é conhecida por aquela experiência horrorosa de matarem aqueles animais todos que era... como é que se chamava a cooperativa? O que a gente fazia era reuniões com os agricultores, era mais a parte de agricultores, não tanto em termos de cooperativa mas em termos reivindicativos diretos. P: Eram pequenos proprietários? Mário Abrantes: Eram. Ali já era tudo pequenos proprietários, era a maioria e muitos eram trabalhadores das fábricas e tinham uma pequena propriedade. Portanto a gente ou pegava por baixo e ia para cima, ou pegava em cima e ia para baixo, que era para fazer este intercambio de organização. P: E conseguiram mobilizar essas pequenos proprietários?. Mário Abrantes: Com muita dificuldade, com muita dificuldade. Estou a ver se me lembro de alguma ação assim mais forte. Eles eram mobilizáveis, mas começávamos com a agricultura e acabávamos nos problemas da terra, da freguesia, das ruas, dos caminhos, íamos parar para o âmbito autárquico. P: E nas fábricas? Mário Abrantes: Não, nas fábricas era de facto o salário, fundamentalmente o salário. Emprego efetivo e algumas greves. Trabalhamos para realizar algumas greves ali, com a própria célula do partido de cada uma das fábricas, que havia três ou quatro ligadas ao sector automóvel e depois ainda mais. Havia ali umas cinco ou seis fábricas e em todas elas tínhamos uma célula. P: Quais eram os sindicatos? Mário Abrantes: Havia vários, mas a gente no sindicato não mexia muito, a gente no sindicato não mexia muito. A gente quanto muito ajudava o sindicato quando nos pediam para mobilizar para greves ou para alguma coisa, para mobilizar os nossos. Eles diziam-nos, davam-nos um toque, e nós íamos ter com eles. Ainda foram algumas lutas ali. P: Sobretudo salários? Mário Abrantes: Sim, sim, fundamentalmente salários, que eu me lembre era fundamentalmente salários. P: E depois era o trabalho autárquico? Mário Abrantes: Muito, esse era o principal. Acabou por ser, por se revelar para mim o trabalho principal naquelas freguesias todas. Chegámos a ter dois vereadores na Câmara e tínhamos eleitos em praticamente todas as freguesias. E chegámos a ter três juntas de freguesia da Aliança Povo Unido. P: E ainda estavam num período de saneamento básico? Mário Abrantes: Era tudo coisas básicas – o lixo, o saneamento, os caminhos, as ruas... P: Então, depois da Azambuja, foste para onde? Mário Abrantes: Ora, depois da Azambuja, passado um ano e meio mais ou menos, começamos a ter a informação de que era preciso gente para vir para os Açores, porque se tinha passado aqui uma história negativa, o 6 de junho, como já te contaram, que foi o pré 25 de novembro na prática, foi o grande ensaio para o 25 de novembro, e nessa sequência e dos assaltos às sedes do partido, não sei quantos, os quadros do partido foram postos na rua, como tu sabes. Foram 7 ou 8 postos no avião daqui para fora. Aliás, quem me foi substituir na Azambuja foram dois dos que foram embora daqui - uma Micaelense, uma enfermeira, que foi a enfermeira que é muito conhecida, agora já não, mas na altura toda a gente a conhecia, que foi despida. Despiram a camarada ali na rua, à frente de toda a gente, sem vergonha nenhuma. Ela depois passou a funcionária. E portanto, o [anonimizado], que era o responsável por São Miguel, também foi para a rua depois de lhe deitaram o carro ao mar. Depois acabou, está hoje no Faial, anda por lá. E portanto isto ficou vazio, sem quadros, ficou sem quadros. Conseguiram recrutar um faialense para vir trabalhar na nova organização do PCP, porque o PCP estava todo desarticulado, ficou todo desmantelado praticamente. Aquilo foi perseguição objetiva aos comunistas, mas era perseguição mesmo, com bombas e tudo atrás, não era brincadeira. Portanto, conseguiram recrutar o Zé Deck Mota, que estava a trabalhar no partido em Coimbra. Conseguiram recruta-lo para aqui para os Açores. E ainda bem. Ele veio para os Açores, e então, nesse âmbito, começaram a recrutar mais gente nos organismos do partido, em vários sítios: Quem é que está disponível? E eu acabei por dizer: Epá, se não há mais ninguém, ninguém dizia nada.... P: Ainda não tinhas casado? Mário Abrantes: Se não há mais ninguém... E vim para aqui para São Miguel, comecei com o Nordeste e com a Povoação, os dois concelhos periféricos. Já cá estava um camarada responsável antes de mim há um ano, que também tinha estado na organização dos mesmos concelhos do Norte do Distrito de Lisboa, responsável do Cadaval e da Lourinhã (que foi corrido de lá quando houve os incêndios dos assaltos e veio para cá) e eu vi-me juntar a ele aqui em São Miguel. Começou a minha vida aqui. P: Em 1979? Mário Abrantes: Em princípios de 79, fevereiro ou março, já não me lembro. P: E vocês tinham funcionários para ter nas várias zonas da ilha? Tu tinhas só o Nordeste? Mário Abrantes: Sim, o [anonimizado], que era o outro camarada que já cá estava há um ano veio em 1978, também recrutado da mesma maneira que eu, e ela, a [anonimizado], que era a companheira dele, estávamos divididos os três por vários... P: E tu estavas com o Nordeste e Povoação? Mário Abrantes: Isto foi um ano mais ou menos. Ao fim de um ano o [anonimizado] é mobilizado para o Pico, mais a [anonimizada], foram os dois, porque ficámos sem pessoal no Pico, foram por Pico e eu ainda durante algum tempo fiquei aqui sozinho só com este monstro. Depois é que com uma insistência permanente junto do Partido, é que se lá foi conseguindo, mas sempre aos bochechos. Agora vinha um camarada, estava cá um ano, dois anos e ia-se embora. Aliás era esse o compromisso, o meu também foi assim: Epa, é para ires por dois anos. P: E por que ficaste? Mário Abrantes: Fiquei porque entretanto não havia ninguém para me substituir, começa por aí. E segundo, porque comecei a ter ligações e relações com o pessoal daqui. Eu não tinha vida feita em lado nenhum, estás a perceber? Portanto, podia fazer vida em qualquer lado e foi isso, comecei a fazer vida aqui. As vizinhas metiam-se connosco e a gente brincava à noite, às vezes de uma casa para outra, e com o tempo a gente juntou-se, isto para ser breve. P: Então constituíste aqui família? Mário Abrantes: Fiz família aqui, portanto, a partir dessa altura, não tinha razões nenhumas para sair de cá. A não ser que me propusessem qualquer alternativa. P; E quando vieste, tinhas-me dito que vieste como professor? Mário Abrantes: Formalmente e oficialmente vim, concorri, e vim para dar aulas. Dei aulas no liceu e dei aulas na preparatória, na Roberto Ivens, durante dois anos. E depois parou. Agora isto aqui já está mais calmo, mas durante esse período ainda houve muitos problemas, ainda assaltaram a sede, essa sede. Ainda boicotaram a campanha de 1979, no fim do ano, porque eram autárquicas esse ano. Assaltaram uma sessão pública que fizemos, mas isso foi bom para nós. Assaltaram-nos uma sessão pública que fizemos aqui na Freguesia de São Pedro, no Cine São Pedro, (agora é daqueles gajos religiosos). Partiram aquilo de tudo, acabou tudo à porrada. Era um movimento separatista juvenil, o MSE - Movimento Separatista Estudantil. E depois foram para o centro de trabalho, mas com gente que levava armas e tudo. Partiram-nos a porta, mas a vizinhança portou-se muito bem. Depois fizemos um trabalho de psicólogo junto da vizinhança, porque eles ficaram à rasca. O nosso problema era que eles ficassem todos com medo que a sede estivesse aqui e quisessem que a gente se fosse embora daqui. Mas não, correu bem. Com o tempo, aquilo acalmou tudo e conseguimos voltar outra vez a estar ali bem. Correu bem, pronto, com o tempo. E, portanto, com esse tempo começou também a correr bem noutros lados. Entretanto subimos muito a nossa votação nessas autárquicas. Em 1979 houve um salto qualitativo grande, e começámos até a ser pessoas respeitadas, de certa maneira. Começámos a ser pessoas politicamente respeitadas aqui neste meio, que tinha sido o meio mais agressivo contra os comunistas, foi aqui mesmo, em Ponta Delgada. Começámos novamente a ser respeitados e a ter capacidade de mexer um bocadinho, foi isto. E fomos mexendo, fomos mexendo, mexendo, mexendo, pronto. P: Junto do operariado? Mário Abrantes: Não sei o que tu chamas operariado... P: Tenho estado a entrevistar aqui algumas pessoas das fábricas de tabaco... Mário Abrantes: Sim, sim, tínhamos influência junto do operariado, mas não era de maneira nenhuma o vetor principal da nossa atividade, porque não tinha, do ponto de vista social e económico, o peso que têm outros setores. Tínhamos de facto, chegamos a ter células nos laticínios, na Loreto, aqui na fábrica do açúcar, a que aguentou mais tempo, na Melo Abreu, que era das cervejas. Mas o problema era: ideologicamente o pessoal não tinha ninguém. Portanto, era um trabalho a começar muito, muito, muito de baixo. Mesmo em termos coletivos, nas fábricas, esse pessoal não tinha mentalidade de conjunto, não tinha ainda. Eram herdeiros diretos do pequeno proprietário agrícola e, portanto, muito caracterizado pelo egoísmo, pelo individualismo. Era muito difícil trabalhar. Para já, reunir era uma vitória de um raio. Quando se conseguia juntar três ou quatro... E depois os temas, os assuntos, o conseguir-se chegar até aos problemas laborais... Tinham medo, um bocado como na Azambuja, mas a um nível muito mais.... Enquanto na Azambuja já havia uma consciência, aqui não havia consciência de classe nenhuma, zero, consciência de classe zero. O que poderia haver antes, não sei se morreu, se o que é que foi, mas também nunca foi nada de especial, nada de grande. O Partido Comunista, antes do 25 de abril, nos Açores, a história que tem é muito curta, é muito pequena. Há umas coisas na Terceira, há uns Avantes que os marinheiros traziam para aí e eram distribuídos. Havia o pessoal que depois veio a ser do MDP/CDE, o Governador Civil, o [anonimizado], ouviam a Rádio Moscovo. Havia uma cooperativa, é verdade, uma cooperativa nas Capelas que diziam que o dirigente principal era comunista, nunca cheguei a conhece-lo porque entretanto morreu, quando eu fui ter com ele. P: Era uma cooperativa de quê Mário Abrantes: Uma cooperativa agrícola. Mas olha consegui falar com um, e recrutar para o partido, um camarada que também tinha sido dessa direção, que por sua vez foi um super ativista nas Capelas, como autarca. Chegou a ser eleito não sei quantas vezes e era um homem que ia buscar não sei quantos votos, tinha uma capacidade! Um agricultor sem formação nenhuma. Já morreu, já morreu. Coitadito, já morreu. Era uma história gira. Era uma história de vida. Era um homem muito, muito interessante. Porque tu ficavas revoltada: Como é que este gajo, é que revoltava-te. Se este gajo consegue isto tudo, porque é que o gajo ainda tem...Porque depois vinha com as reservas todas em relação ao comunismo. E depois dizia-te coisas que não tinham nada a ver. E tu: eiii! E depois a atividade dele era uma coisa espetacular. Metia-se em todas. A gente hoje tem 16 votos nas Capelas, o gajo ia buscar 150 e 200 votos às Capelas. Chegámos a eleger dois para a assembleia de freguesia. Os filhos, um deles era nosso simpatizante e continua eventualmente a ser, mas não se meteu com nada, e o outro é PS, é todo ativista do PS. Já foi candidato à Câmara pelo PS. P: E com os agricultores, como é que era a mobilização? Mário Abrantes: Com os agricultores houve duas experiências: a experiência de crescimento, que eu não me acompanhei. Foi logo a seguir ao 25 de abril. O Partido aqui fez um trabalho meritório na formação de cooperativas agrícolas. Conseguiu formar umas cinco ou seis cooperativas agrícolas, as principais eram a Achada, Maia, Capelas, e havia mais umas duas diretamente da responsabilidade do Partido, quer dizer que foi o Partido que pôs de pé. E depois havia mais algumas que entretanto se formaram. E portanto isto foi uma ascensão do movimento cooperativista muito interessante, se assim que se pode dizer. Depois morreu tudo, tudo o que era associativismo, tudo o que era experiências coletivas, de desenvolvimento, de abertura e não sei que mais, com o 6 de junho e depois o 25 de novembro a acumular, aqui em São Miguel isto foi tudo ao fundo. Mas é que foi mesmo tudo ao fundo. Porque mesmo aqueles que ainda tinham alguma consciência, tinham medo, porque perseguiam o pessoal. E o que eu apanhei já foi a fase degenerescente das cooperativas agrícolas. O que é que eu apanhei? Apanhei a Maia, ia fazer reuniões com a direção. Podia, eles aceitavam-me como membro do Partido, como dirigente do Partido, mas não me davam muita confiança, como quem diz: Mas tu aqui não mandas nada, atenção, não vens para aqui como... Eu também não queria mandar, mas eles é que interpretavam assim: Tu aqui não mandas nada. E depois ainda por cima eram gajos ligados ao PS, pois tinham-se acabado por ligar ao PS. Na Achada de facto mantínhamos lá um camarada, na direção. Tínhamos um camarada, mas incompatibiliza-se facilmente com os outros. Não era uma pessoa de lidar fácil. Conclusão, por ele a gente não chegava a lado nenhum. Ele estava lá, eles respeitavam-no e ele estava lá, mas quer dizer, à direção daquilo a gente não chegava, não conseguíamos mexer naquilo. Ainda hoje a cooperativa existe. E existem mais, elas existem todas formalmente, com estatutos, com tudo. Só que (tirando aqui uma grande, que já é uma cooperativa do ponto de vista económico sem espírito cooperativo nenhum, digamos assim, que é aqui a dos Arrifes, que é a maior, a Bom Pastor, e a União das Cooperativas, que tem a fábrica da união de leite, que é a maior fábrica de transformação de leite que temos nos Açores) está tudo na mão do PSD neste momento. Portanto elas existem porque interessa que existam do ponto de vista de estruturas e servem para o PSD influenciar os agricultores para votar. Sobretudo eles querem é os votos e querem é estar no poder e portanto tudo isto serve para eles, digamos assim, terem o pessoal na mão do ponto de vista político, que é o que lhes interessa. E depois vão dando uns bombons de vez em quando. É isto. E nós passamos a ter cada vez mais dificuldade em organizarmos, em influenciar a parte agrícola. Dessa cooperativa do Nordeste, desse nosso camarada, da Achada, que fica no concelho de Nordeste, um dos filhos acabou por se formar em cooperativismo É do Partido e participa nas reuniões. É um homem da agricultura biológica. P: A gente volta outra vez à tua história, mas já agora, tinhas-me falado também, acho que foi sobre os estufeiros, que havia uma caixa económica. Também havia esse tipo de associações aqui, mutualidades? Mário Abrantes: Sim, mutualista sim. Havia uma ligada à agricultura que tinha gente de esquerda, a Caixa Económica de Ponta Delgada, mas era ligada à agricultura e é, ainda existe, fundamentalmente ligada à agricultura. Mas está feita num banco quase praticamente normal. Tem é muita gente ligada a ela de esquerda, mas da área do PS. Aliás, depois do 25 de Abril, depois do 25 de Novembro, ser do PS em São Miguel já era muito à esquerda, sabes? Temos camaradas hoje aqui no Partido que já eram, já se consideravam comunistas, já eram adeptos, digamos assim, não se pode dizer militantes porque não eram, nem simpatizantes, eram adeptos do Partido Comunista (porque isto é tudo à moda no futebol) mas estavam no PS porque era menos perigoso. Mas hoje estão no Partido, felizmente, alguns, não sei de outros, mas estão porque acabaram por se chatear, porque afinal de contas... P: E estas pessoas da Juventude Operária Católica, como a Manuela? Mário Abrantes: Sim, isso é uma relação puramente sindical. Isto foi muito bem trabalhado, julgo eu, por dirigentes da CGTP que acompanhavam o trabalho sindical aqui. E os Açores, nomeadamente São Miguel, sempre tiveram um papel importante no equilíbrio da composição política das listas da CGTP a nível nacional. A Manuela era uma peça fundamental e ela sabia que era e estava consciente disso. Aliás a união dos sindicatos de São Miguel e Santa Maria, que ela depois deixou, a seguir quem foi para lá foi uma socialista. Fui até eu propus que fosse ela. Porque de facto também sindicalistas comunistas, com bagagem mínima para ir liderar o movimento sindical, o movimento intersindical que é a união dos sindicatos, não temos, não tínhamos. Os nossos quadros, com o 25 de novembro morreram todos aqui, foram-se embora. E essa gente [JOC] foi por aí que entrou, puxados indiretamente por nós através dos dirigentes comunistas da própria CGTP. Porque o [anonimizado], que acompanhava a região em termos de CGTP, era ele que fazia esses contatos com as JOCs e com os católicos, com os PS e acompanhava. Portanto, e nessa altura a gente já não se metia em termos partidários, respeitávamos e não nos metíamos muito. Porque ao princípio a nossa intenção foi, nós tentámos interferir mais no movimento sindical, inclusive na estruturação do movimento sindical. Quando eu cheguei cá, o camarada que estava aí na frente sindical, trazido pela CGTP, era um reformador de um raio e queria restruturar o movimento sindical. E quem aqui é que o ajudava a fazer isso? Ele não podia, porque ele não era do partido. Eu quis mexer com isso tudo, mas isso não resultou, não deu nada. Conseguiu-se fazer uma restruturaçãozita, melhorar a estrutura sindical, mas a grande reforma estrutural do movimento sindical, aqui em São Miguel, que eles queriam fazer inicialmente, com o Partido a influenciar decisivamente, morreu. E ainda bem, porque não ia dar em nada. Ia só criar estruturas sem funcionarem, com figura jurídica e pouco mais. E portanto, a partir daí, a gente acompanhou o que já existia da melhor forma possível. Até, inclusivamente, chegámos a acompanhar direções sindicais através de alguns dos membros e a estabelecer ligações com alguns dos membros da direção de sindicados da UGT, da alimentação e bebidas e das associações de agricultores. Atualmente, a direção da Associação de Agricultores de São Miguel e Santa Maria está nas mãos do PSD, o atual dirigente é do PSD. Não é PSD, mas está nas mãos do PSD. Mas nós chegámos a ter influência decisiva e a própria associação a aconselhar ao voto na CDU, aqui para umas autárquicas em São Miguel, em Porta Delgada. Convidaram a lista da CDU para um almoço com os agricultores, vejamos até onde é que isto chegou, o respeito que tinham já pela gente e pelo nosso trabalho, o trabalho ligado à agricultura. Nós tomávamos posições políticas, os nossos deputados sempre foram deputados que intervieram muito no âmbito da agricultura - o Decq Mota e o Paulo Valadão, especialmente esses dois. E portanto eles reconheciam isso e numas autárquicas, por acaso eu é que era o candidato, o cabeça de Lista à Câmara, apercebi-me de que de facto esse respeito existia. Porque entretanto convidaram a lista da CDU para um almoço com os agricultores, aqui na sede da Associação (aquilo é uma super associação, faz parte da CAP, todas as associações agrícolas aqui são da CAP, para tua informação) e os dirigentes dessa associação, que está filiada da CAP, fizeram o apelo público ao voto na lista da CDU aqui em Ponta Delgada. Mas pronto, aconteceu uma vez, foi uma exceção. Depois veio este gajo que lá está e este gajo de facto tem aquilo na mão há muitos anos e o PSD é que controla aquilo. Fez a oposição até às maioria absolutas do PS durante este tempo todo. Ele e a Câmara de Comércio e Indústria e os sindicatos da UGT. Faziam reuniões os três, conferências de imprensa conjuntas, para deitar abaixo o governo do PS. Neste caso, contra o governo do OS, estes anos todos. Conseguiram alguma coisa com isso, conseguiram mobilizar. Mas isso só exprime a nossa perda de influência a esses níveis todos. P: Mas essa perda foi no rescaldo do 6 de junho? Mário Abrantes: Sim, sim. Depois recuperámos alguma coisa, mas já nunca mais chegámos ao nível que tinha sido possível chegar antes. Não, nem nada que se pareça. Não, hoje o nível de influência política e social que temos em São Miguel (eu falo só de São Miguel porque é o que tenho mais conhecimento, embora seja capaz de ter opinião sobre os Açores, e tenho, mas não vale a pena estar dá-la) é muito reduzido, é mesmo muito reduzido. Ou seja, nós, já mesmo depois do 25 de novembro, chegámos a patamares com algum interesse, digamos assim, alguma importância do ponto de vista político, como por exemplo este sinal desta associação, a comunidade é um sinal disso. Chegámos a algum nível, mas perdeu-se bastante. E neste momento eu acho que nós estamos ao nível praticamente do início, quando isto tudo começou, pelo menos ao nível da influência eleitoral. Mas agora, mesmo a influência social, com a perda do nosso deputado, (tínhamos um) a nossa imagem ainda se esbate mais. E portanto isso está a ajudar um bocado a missa. É um trabalho muito difícil, estamos com um trabalho muito difícil neste momento, mas as convicções são fortes e os problemas socioeconómicos agravam-se e por isso a luta continua. -
Junho de 2022
Maria Angelina Ferreira
Entrevista realizada a Maria Angelina e José Manuel Ferreira em São Roque, em junho de 2022 P: Podemos começar pela Angelina? A Angelina nasceu aqui? Angelina Ferreira: Nasci em São Roque. Não foi nesta zona, foi no centro da Freguesia. Nasci em 1952 e lá cresci e estive na escola primária. Só fiz a escola primária porque depois o meu apreço e interesse pela costura foi muito grande e eu fui aprender costura. P: A sua mãe já era costureira? Angelina Ferreira: Não, a minha mãe era operária fabril aqui em São Roque, na Sociedade Corretora, que era uma fábrica de conserva de peixe, de atum. Era uma fábrica que sempre trabalhou com muita gente, mas que agora está.... P: Muitas mulheres imagino. Angelina Ferreira: Muitas mulheres, não só que São Roque mas de outras freguesias. P: E o seu pai? Angelina Ferreira: O meu pai também trabalhava na mesma empresa, mas era motorista de camião. P: E também nasceram aqui? Angelina Ferreira: Sim P: A família foi sempre daqui? Angelina Ferreira: Sim, sempre daqui e nunca renegamos a freguesia. P: Porque é que foi para a costura? Angelina Ferreira: Porque sempre gostei de costurar. P: E foi logo que acabou a quarta classe? Angelina Ferreira: Eu ainda estava na escola, porque no tempo em que eu estudava era preciso fazer um exame de admissão para ir estudar. A minha irmã tinha ido estudar, os meus pais também queriam que eu fosse, e eu ainda estava na escola. Fazia-se o exame em Ponta Delgada, aqui na escola primária de São Roque, e claro a minha mãe mandou fazer um vestido a uma costureira para eu ir fazer o exame. Entretanto eu pedi logo à senhora para ficar lá, mas fiz o exame e passei com muito bom resultado. P: Ficou a aprender costura.... Angelina Ferreira: Fiquei a aprender costura. P: Tinha 9 anos, 10 anos? Angelina Ferreira: Não, onze, porque naquele tempo, eu sou de 52, só se ia para a escola depois de fazer os 7 anos e eu fiz 7 anos em Janeiro e entrei em outubro. Portanto já saí com 11 anos feitos da primária e do exame de admissão ao liceu. P: E depois ficou na costura? Angelina Ferreira: Fiquei durante 4 anos e com 15 anos comecei a trabalhar por minha conta. P: Como é que era? Era modista? Tinha um ateliê? Angelina Ferreira: Aqui não havia assim estilistas, era só as chamadas costureiras e eu considero-me uma costureira. P: Mas era em casa? Angelina Ferreira : Era em casa e sempre trabalhei em casa. P: E trabalhava para pessoas individualmente ou para empresas? Angelina Ferreira: Para pessoas individualmente e com um grande leque de clientes que ainda hoje tenho. P: Então foi uma vida inteira? Angelina Ferreira: Uma vida inteira e nunca me arrependi e ainda hoje faço. P: Foi a sua profissão sempre, sempre aqui em São Roque? Angelina Ferreira: Sempre em São Roque, na casa dos meus pais. A casa era grande, mas não era suposto eu trabalhar em casa, não tinha lugar próprio. Era num quarto e ensinei muitas miúdas. Naquele tempo as mães queriam que as miúdas fossem aprender costura, cheguei a ter sete miúdas ao mesmo tempo. Agora trabalho sozinha. P: E depois quando se casou, passou a trabalhar na vossa casa? Angelina Ferreira: Eu fiquei em casa dos meus pais, porque tinha a minha avó. Eu cheguei a ter as duas avós, do lado materno e do lado paterno, lá em casa. Primeiro morreu a mãe da minha mãe e depois...A minha avó paterna é que me criou, porque a minha mãe trabalhava e eu ficava sempre com ela. Eu tinha uma afeição, um amor muito grande pela minha avó. Fiquei sempre na casa dos meus pais, porque o meu pai, naquele tempo quem tinha uma casa era pronto... O meu pai tinha aquela casa e não queria vende-la e não queria que eu construísse outra e, atendendo a que a minha avó precisava dos meus cuidados e a minha mãe já tinha morrido, eu fiquei sempre com o meu pai e com a minha avó, e com o meu marido. Os meus filhos nasceram na mesma casa e depois do meu pai morrer é que construímos esta casa. P: Então e o José Manel também nasceu aqui em São Roque? José Manuel Ferreira: Nasci nesta freguesia, em 23 de Abril de 1954. A minha mãe era doméstica e o meu pai era funcionário público, trabalhava na alfândega de Ponta Delgada. Fiz a quarta classe também aqui, depois fiz exame de admissão ao liceu e à escola Industrial. Optei por ir para a Escola Industrial, porque o liceu não me cheirava muito bem, era mais do tipo dos Fifis, e então fui para a escola Industrial. Tirei o curso de contabilidade em 1971 e comecei a trabalhar, naquela altura. Depois encontrei aqui esta moça ... Angelina Ferreira: Eu não me esforcei ... P: Como é que se conheceram? Angelina Ferreira: Foi nos encontros da JOC. José Manuel Ferreira: Conhecemo-nos e ainda estamos atados. A minha mãe foi sempre dona de casa. Foi quem nos criou. Era uma mulher assim muito metódica. A minha mãe tinha que nos arranjar para quando o meu pai chegasse a gente estar todos limpinhos, todos arranjados.. A gente não se podia sujar nessa altura. A diferença de mim para o meu irmão são três anos. Está a ver o que é, a gente de vez em quando tinha aquelas turras e aquelas coisas entre nós e depois a minha mãe quando o meu pai chegava a casa... O meu pai era uma pessoa muito mais aberta do que a minha mãe. A minha mãe era assim mais fechada e às vezes o meu pai chegava a casa e a minha mãe dizia-lhe assim: Oh Zé (o meu pai era José Jacinto), os rapazes fizeram isto e aquilo, contava a história toda sobre o que a gente fez. E o meu pai respondia: Armanda, quem é que estava em casa? Não eras tu? Então tu é que tinhas de os repreender. O que é que eu vou fazer agora? – portanto, ele era assim muito aberto. P: Naquele tempo não era comum, pois não? José Manuel Ferreira: Não era muito comum. O meu pai era muito mais aberto que a minha mãe. A minha mãe era mais metódica, mais miudinha, mais fechada, mas pronto ela é que nos criou. Na altura, também vivi na casa dos meus avós. Ainda conheci uma bisavó. Depois a minha bisavó faleceu e eu não quis ir vê-la, porque gostava muito dela e não quis ir vê-la. Depois faleceu o meu avô que gostava muito de mim. E tive assim uma história assim um bocado atrapalhada, porque de 27 de Março a 5 de Abril faleceu o meu avô e o meu pai, e eu fiquei assim, naquela altura... A minha avó ficou viva e eu fiquei o único ganhando para a casa. Portanto, comecei novinho, não tinha 20 anos ainda, ia fazer 20 anos. O meu pai morreu a 5 de Abril e eu fiz 20 anos a 23 de Abril. Fez-me bem, porque fui crescendo. Aliás, porque quando o meu pai estava doente e não podia já ir às compras ao mercado, eles faziam-me uma nota e mandavam-me ao mercado e eu dizia: Mas eu não vou saber fazer isto. Vais, porque tens que ir aprendendo. Portanto, foi assim o meu princípio de vida. P: Então e a participação na JOC, começou quando? Angelina Ferreira: Eu tinha 18 anos e com 20 anos quando fui ao Conselho Nacional da JOC. Eu tinha começado na JOC com 16 ou 17 anos. P: Era aqui na freguesia? Angelina Ferreira: Era na freguesia e ao sábado tínhamos o Conselho Regional em Ponta Delgada. Não era bem Ponta Delgada, era em São Pedro, havia lá uma sede. P: E também participava o José Manuel? José Manuel Ferreira: Eu entrei ia fazer também 18 anos. Entrei também para a JOC. P: Para o mesmo grupo? Angelina Ferreira: Não, havia o masculino. José Manuel Ferreira: Era na altura da separação, mas nós tínhamos reunião ao sábado. Também entrei em 1971. Fazia cá em cima a reunião aos sábados e depois fazia o regional lá em baixo, em São Pedro, em que nos reuníamos todos. P: Então foi nesses momentos que se conheceram? Angelina Ferreira: Não, não bem nesses momentos. Veio uma moça do continente que também era da JOC e na minha casa a gente recebia toda a gente. Já conheceu a Manuela não foi? Essa moça vinha cá porque queria vir conhecer a ilha e a Manuela, como a gente tínha uma casa grande, disse-me: Olha, será que vocês podem ficar com uma moça, a [anonimizada]. E nesses encontros a gente ia dar passeios com ela e o Zé também ia e foi nessa altura. P: Então e digam-me uma coisa, os vossos pais também já tinham essa ligação com estes movimentos ou foi uma coisa nova? Angelina Ferreira: Não, não era uma coisa nova. Há muitos anos que já havia JOC em São Roque, porque o meu irmão pertenceu novinho, já tinha um grupinho, mas era só rapazes, isso acabou. Na altura os moços iam para o ultramar e depois alguns casaram e acabou. Ao fim de muitos anos, a Manuela é que veio fazer esses encontros em São Roque e eu fiquei fascinada. Na altura não saíamos muito e naquela altura era tipo uma reunião todas as semanas. E foi quando começou. P: Não havia, só para perceber, não havia nenhuma outra associação aqui na freguesia? Angelina Ferreira: Não, de jovens não. Depois vieram os cursos de Cristandade, mas eram aqueles senhores da Freguesia mais cultos que iam para os cursos de cristandade. Nós éramos solteiros, ainda novos, não participávamos. O meu pai também não, porque a minha mãe não tinha escola e o meu pai foi obrigado a tirar a quarta classe para ter carta de condução de pesados já em adulto. Mas nunca nos impediram de crescer. P: Então e a Manuela chegou cá e como é que ela criou o grupo? Angelina Ferreira: Ela chegou cá, eu não sei se foi o padre [anonimizado], que era o padre da freguesia, que falou com algumas moças... Eu tinha na minha casa uma moça que era da Ribeira Quente e que trabalhava aqui em São Roque e não havia possibilidades dela ir todos os dias para a Ribeira Quente e ela ficou. E ela é que foi a primeira a ir. Na altura, eu estava aprendendo uns bordados numa máquina de costura na junta de Freguesia. E ela foi para aquele grupo com a Manuela e vem para casa e já: Ai Angelina, eu estive numa reunião com uma moça e eu gostei tanto. Na outra semana eu fui e assim foi. P: E o que é que era que a fascinava? Angelina Ferreira: Não sei. Eu sempre fui muito ligada à Igreja e os meus pais. Eu dizia que era uma beata. Fiz a catequese, fiz a comunhão, fiz o Crisma e dei Catequese. Fascinava-me aquelas conversas, aqueles testemunhos de vida que uma dava e outra dava. P: E quais eram os temas mais recorrentes? Angelina Ferreira: Acredite que eu já não me lembro, mas eu sei que na altura eram problemas de trabalho, de igualdade, dos que eram mais e dos que eram menos, que isso não era direito e que a gente devia lutar para haver uma igualdade. E eu já sentia que na minha casa havia isso. Porque essa moça da Ribeira Quente, só ia de mês a mês, porque as viagens eram caras e na altura não havia muitos carros, era só autocarros. E depois o irmão veio estudar e também para não ir, não podia ir para a Ribeira Quente todos os dias, também ficou na minha casa. Os meus pais sempre acolheram toda a gente e aquilo, portanto, ajudou-me a crescer e a entender. José Manuel Ferreira: Até porque a casa dos meus sogros era tipo uma pousada. Eles acolhiam toda a gente, até espanholas que trabalharam na cultura estiveram lá, dormiam e tudo. Portanto, aquilo era uma casa.... Angelina Ferreira: Elas vinham dar formação.. José Manuel Ferreira: Elas vinham dar formação pessoal e depois não havia lugar para ir para baixo e lá ficavam em casa da minha sogra e do meu sogro. Eles eram umas pessoas assim, nesse aspeto, eram muito acolhedoras e gostavam de acolher toda a gente. E depois, como eu estava dizendo, a gente principiou quando a [anonimizada] veio cá. Fomos dar uns passeios, mas já nos conhecíamos há muito tempo. E depois também tinha outra coisa, nós já nos conhecíamos antes, porque fizemos uma peça de teatro. Como estávamos na JOC, o padre naquela altura: Vamos fazer uma peça de teatro para o encerramento da Catequese e pela festa da paróquia - e foi no mesmo sítio, aqui em São Roque. E a minha sogra é que me conquistou e eu vou-lhe dizer porquê. Porque ela fez uma sopa de peixe espetacular, que nós tínhamos que comer na apresentação da peça. Eu era casado com a Angelina e tínhamos o nosso filho, que era o Jorge, o moço que depois foi para América, que era também da JOC. E eu disse: Que peixe tão bom! Se a mãe sabe fazer, a filha também deve saber. E pronto, já comecei tipo a arrastar a asa, como a gente costuma dizer. Depois fomos a uns passeios...E depois fomos num dia fazer uma discussão, no dia 4 de Setembro, eu nunca me esqueço da data. Fomos fazer uma excursão, fomos muita gente e tal e depois quando chegamos dessa excursão, a [anonimizada]: Vamos até... – a gente foi até Pico, ali em São Roque, aquela parte antes, tem uma vista à noite que é muito bonita. Diz ela: Também vou. Lá fomos todos. Subimos lá para cima e eu quando desci já desci mão dada. Já desci de mão dada. Portanto, foi o dia da excursão que aquilo começou e depois foi subindo e eu disse: Não, isto quando descer tem que levar uma volta. Então, já descemos de mão dada e a partir daí foi fazer uma caminhada. Fizemos uma caminhada juntos. Depois o meu pai esteve muito doente... E há uma outra coisa que é assim: antigamente tinha-se que falar com o pai da namorada, para saber qual era o dia que falava, quais os dias que dava e depois os pais tinham que apresentar à noiva do outro lado... A gente não fez nada disso. A gente já estava mais avançados, não se fez nada disso. Começámos a namorar e o meu pai que era muito esperto, passava de vez em conta de baixo da rua e dizia: Ai, Ai, Ai, quando eu chegar a casa.. Mas nunca me disse nada, nunca abriu a boca. Depois o meu pai esteve doente, teve que ir para o hospital. A minha mãe ficou. Então quem é que foi dormir com a minha mãe? A Angelina. Pronto, já está tudo certo, já fica tudo feito. A família já está pronta, já é tudo de casa. Essa história é assim. Na JOC, fiz um percurso a partir dos 17 anos e depois na altura ainda estava acabando mas havia a Juventude Estudantil Católica e eu fui para lá. E comecei a gostar daquilo porque aquilo tinha muita coisa boa. A gente em casa, o meu pai era funcionário público mas era dos do contra. Ele estava doente e os funcionários públicos, na altura, eram obrigados a ir por um papel na urna. E como ele estava doente, fui eu pô-lo. Depois o meu pai já conhecia a Seara Nova, já era daqueles rufiazinhos, e aquilo também mexeu com o sangue. E a maneira como eles trabalhavam, que era o ver, julgar e agir, a revisão operária. Eu não sabia fazer a revisão de vida operária porque ainda estava acabando o curso, depois é que comecei, em agosto de 1971, a trabalhar. Mas o ver, julgar e agir, aquilo já me dizia muita coisa. E depois o contato. Eu ao princípio não sou, mas depois quando começo fico muito sociável, que às vezes fico assim meio coiso... E então eu gostava daquilo, eram muito abertos aqueles encontros, a gente falava à vontade, não havia: cala-te para aí. E uma vez eu estava muito calado e o [anonimizado], que era Presidente aqui de cima, assim: Oh Zé, qual é a tua opinião? Eu disse: Eu vou-te dizer uma coisa, vai sair asneira. E ele assim: Se tu disseres uma asneira estás colaborando para que a gente aprenda também alguma coisa. E a tua asneira até pode ser uma coisa certa, como é que tu sabes que é asneira se ainda não disseste? E, portanto, aquilo ainda me pôs mais à vontade e a partir daí eu estive muito, muito mais à vontade. Fez-me crescer e ainda hoje, por incrível que pareça, ainda hoje às vezes, porque depois comecei a militar em movimentos como a Cáritas e essas coisas assim, às vezes eles começavam: ah não sei quê... e eu começava-me a rir. Agora estás sempre a rir. Isso que estás a dizer agora, isso já há tantos anos atrás já era assim. Isso não é nada de novo. Isso não é nada de novo e isso fez-me viver mais, estar mais à vontade. A JOC para mim foi uma caminhada boa de vida, uma caminhada grande de vida. Foi uma coisa que despertou algumas coisas que deviam estar adormecidas cá para dentro e foi muito bom. P: Estava-me a dizer que o seu pai era do contra, em que é que ele participava? José Manuel Ferreira: O meu pai não podia participar muito às vistas e às claras, porque senão era posto fora do serviço e o que é que ele ia fazer? O que é que a gente ia comer em casa? O meu pai, das coisas que ele mais embirrava, era ser da Legião Portuguesa, mas se não fosse era posto na rua do emprego, que era a Alfândega. O meu pai para entrar para a alfândega teve que ser através de um primo dele, que era informador da PIDE, que teve que dizer que o meu pai era muito bom rapaz, filho de boa gente e não sei quê. E avisou o meu pai: Nunca digas que és da Seara Nova ou que tens livros em casa, tu nunca fales nisso. A primeira vez que falares nisso, procura um emprego noutro lado qualquer porque.... Agora, o meu pai pertenceu à Cáritas, mais aquela que dava leite às crianças. Não era a Cáritas, era uma outra coisa, os vicentinos. O meu pai punha-se nesses movimentos todos que era para ver, porque havia ali quatro ou cinco pessoas aqui na freguesia que eram muito revirados, o pai do [anonimizado], era no seu nível uma pessoa totalmente virada, mas esse ainda estava no privado, assim ainda podia dizer alguma coisa, agora no Público não se podia falar. Falas, vais-te embora. E os filhos? Como é que fazem as coisas em casa? Não se pode fazer nada. Portanto, o meu pai ativamente não podia estar, sem ser nesses movimentos assim, que era a conferência de São Vicente de Paula, essas coisas assim. O que é que se fazia? A minha mãe ia para lá fazer leite em pó que vinha da América para dar às crianças, tinha-se que ir fazer isso. Eram as esposas desses senhores é que iam fazer, do meu pai, do [anonimizado] é que iam fazer, porque os outros... A gente tinha aqui boa gente e gente muito educada, mas era o senhor doutor. Porque depois, quando começámos a entrar através da JOC, quando começámos a entrar nisso que os senhores doutores estavam, nós começámos a discutir com eles. E havia um que claramente não sabia, que era o Dr. [anonimizado], era uma pessoa que chegou a ser vice-reitor aqui do Liceu, mas era uma pessoa compreensiva. Dizia: Não, não, o Ferreira tem razão. Não adiantava também muito mais, porque coitado também estava numa situação que não podia. Mas nessa altura a gente já batia o pezinho. O Padre [anonimizado] quando nos levava a certas coisas: Ai o senhor doutor é que sabe. Ai é? O senhor doutor é que sabe? Nós também sabemos. E eu dizia: Padre [anonimizado], nós somos capazes. Portanto, nós já fomos entrando por aí e já havia pessoas que, de uma maneira mais ou menos camuflada, nos deixavam entrar P: E o padre também deixava? José Manuel Ferreira: O Padre [anonimizado] não era uma pessoa que impusesse muito respeito, mas era uma pessoa que deixava. E para mim e para a Angelina, como a gente andava muito na JOC e essas coisas assim, era uma pessoa aberta. A gente foi-se confessar para ir para o casamento. Angelina Ferreira: Era, ele obrigava a confessar. José Manuel Ferreira: Era obrigatório confessar, mas para já a gente foi logo tirando da moda, porque era assim, os noivos que queriam confessar-se tinham que levar um fato e a noiva um vestido e eu fui de calças de ganga, aqui para as histórias... e a minha mãe: Então filho, como é? Eu vou de calças de ganga, espanto nosso. E falando do Padre [anonimizado], chegamos lá, e ele: Vocês vêm confessar-se? Sim senhora. E a Angelina vai e eu fico cá fora. E ele: Não, eu quero os dois cá dentro na minha frente. Vocês não se vão casar aos olhos de Deus? Então o que vocês vão falar, a confissão que vocês vão fazer aqui comigo é falar de vocês, da vida de vocês os dois em frente a mim e se for preciso dar alguma opinião eu dou, se não, não dou. Eu disse: Opá... Portanto, já começou também... Porque ele tinha uma maneira que estava sempre muito mau, mas para a gente era muito aberto. No dia do meu casamento, eu estava totalmente nervosíssimo, porque a Angelina não aparecia. Angelina Ferreira: O meu pai não tinha carro e pouca gente na freguesia tinha carro e era os táxis e o homenzinho do táxi atrasou-se. E eu à espera, já vestida, à espera do táxi. E o padre era muito rigoroso, mas não foi para a gente. Se saia fora de horas, ele ia-se embora. José Manuel Ferreira: E eu comecei a andar para trás, para frente, para trás, para frente e ele lá assim: Zezinho, nota filho querido, chega aqui. E eu: Já vou levar...Diga senhor padre. Porquê para trás, para frente, para trás, para frente, para trás? Não está vendo a hora? Estás com pressa? Ela vai chegar, ela não te vai deixar. Não, eu estou com pressa é porque...Calma, a Angelina vem, não há de vir. Nesse aspeto foi muito simpático. P: E a sua família Angelina, também era assim do contra? Angelina Ferreira: Os meus pais não eram assim tanto do contra, porque eram analfabetos e trabalhavam na (?), mas o meu pai era muito justo. Se a Joana tivesse necessidade de um escudo, ele emprestava. Se fosse emprestado, a Joana tinha que pagar, se fosse dado, dava. E aquilo era da natureza deles. E a minha mãe então...Mas nunca estiveram assim em movimentos. P: E aqui nesta indústria que como estava a dizer tinha muitas mulheres, nunca houve nenhuma greve? Angelina Ferreira: Não, as mulheres trabalhavam como escravas, mas não se podia fazer greve. P: Depois do 25 de Abril, se calhar... Angelina Ferreira: Depois de 25 de Abril a minha mãe... mas nunca fizeram. Mas o meu pai refilava, era um bom refilador. P: Com que é que refilava? Angelina Pereira: Quando via situações injustas. Havia muita pobreza e aquilo era uma fábrica que fazia conserva de carnes, de galinhas do albacor. E um dia, eu lembro-me, não me esqueço desse dia, cozeram muitas galinhas não sei para fazer o quê e havia os pés das galinhas cozidos e elas todas comeram e a minha mãe também comeu. Ai e depois, quando o chefe soube disse: Lurdes, eu não esperava que tu o fizesses. E porque é que eu não havia de fazer, se toda a gente fazia, se toda a gente fez e eu concordei. Porque a minha mãe era das mais velhas, mas era assim, trabalhavam como escravas e ganhava-se pouco. E o meu pai teve uma reforma muito pequenina, e ele é que foi tolo, porque tinha direito a trabalhar para ganhar como motorista e eles faziam uns descontos pelo mais baixos. E o meu pai nunca se apercebeu disso. Era o mais baixo que podiam descontar. Depois já do 25 de Abril, quando foi para a reforma, pensava que ia receber uma reforma grande e foi uma ninharia. Ele foi à Caixa Nacional de Pensões, em Lisboa, e disseram que com os descontos que tinha não tinha direito a receber mais. 52 anos que o meu pai trabalhou nessa empresa. Agora está tudo de olho aberto e a empresa foi ao fundo. P: E vocês na JOC falavam destas questões do trabalho? Ambos: Sim, sim. P: Quais é que eram os problemas que havia aqui que...? Angelina Ferreira: Exatamente, mas isso foi ainda antes de 25 de Abril, já havia. Eu lembro-me que o padre Fanhais, eu não sei se conhece, veio cá à Terceira. Eu nessa altura estava lá, antes do 25 de Abril. E ele ia cantar na Igreja da Sé, nas escadas, mas isto era proibido. A gente foi para um campo mais isolado para cantar, cânticos de intervenção, mas era proibido. P: Vocês tinham problemas com a PIDE? Angelina Ferreira: Tínhamos. José Manuel Ferreira: Eu tive problemas com a PIDE na JOC, porque pediram-me na altura para eu escrever um artigo sobre emigração e eu escrevi sem problema nenhum. Mas para escrever sobre emigração, tinha que se contar tudo sobre a emigração, porque é que as pessoas emigram. Não era pelos seus olhos belos. E eu escrevi, depois às tantas vejo no jornal, uma coisinha assim mais ou menos [gesto indicando que foi publicado um texto pequeno]. Epá, afinal, tanto que eu escrevi, era um artigo tão grande, era tudo sobre emigração e veio tudo tapado, tudo riscado. P: Era para que jornal? José Manuel Ferreira: Era para o jornal da JOC, eles pediram-me para escrever sobre emigração, porque nos Açores há muita emigração, e porque é que havia a emigração? Toda a gente sabia porque é que havia a emigração, mas toda a gente não dizia, porque senão a PIDE chegava...Eu disse: Então, eu estou na JOC. O meu artigo foi praticamente todo cortado e eu fiquei de olho, mas eles disseram logo: Não, está quieto, sê discreto, porque eles estão de olho em ti. Mas depois disso, quando comecei a trabalhar, eu pertenci à Comissão de Trabalhadores da empresa. P: Ainda antes do 25 de Abril? José Manuel Ferreira: Não, já foi depois disso. Mas pertencia à Comissão de Trabalhadores da empresa e pertencia porque tinha uma grande bagagem que aprendi na JOC. Eu disse: Não, isso não vai ser isso. Na altura fui eleito para a comissão de trabalhadores e era representante. E então a história da firma era a seguinte: Nós tínhamos três contratos de trabalho, um era dos empregados de escritório, outro era das transformadoras e eu era dos eletricistas. Era do sindicato da Manuela, quando a Manuela era das transformadoras e dizia: Se ela precisar de alguma coisa tem amigos – e eu era dos eletricistas. E depois cada um tinha o seu contrato e eles jogavam com isso e pagavam aos trabalhadores de forma diferente. Eu trabalhava na sede de uma grande multinacional, em que a Petrogal é que era dona, mais a Shell. Claro que dinheiro era...e eu disse: Não pode ser assim. E eu comecei, começámos, o que é que foi a minha intervenção nessa situação, foi a de tentar fazer um contrato para a empresa, só para a empresa. Um acordo coletivo de trabalho da empresa, não havia mais conversa. Com muita luta, muita luta, conseguimos, mas eu penei um bocado, inclusivamente o advogado da firma foi um dia a minha casa. Eu fui chamado à administração e eles disseram-me assim: Sabes qual é a porta que entraste? E eu disse: Foi aquela que está ali. É por essa que vais sair. É quando vocês quiserem. Mas é quando vocês quiserem, mas aqui por dentro... eu tinha dois filhos em casa...Ele foi a minha casa e eu disse: Doutor, é estes dois filhos que eu tenho. Mas tu é que vais pagar por isso. Porque ele tinha revelado, a secretária dele é que tinha revelado, elementos para me incriminar. Eu ainda me ia chateando nesse aspeto. E esse contrato coletivo de trabalho, eu consegui, mais os meus colegas, que a gente passasse a ganhar todos por igual nas categorias. Todos os empregados em cimento tinham um vencimento, os escriturários tinham outro tipo de vencimento e os grandes tinham outro tipo de vencimento que não era respeitado, porque as chefias davam-lhes muito mais, mas pronto, mas tinham. Mas isso custou-nos muito trabalho, pelo menos a mim e aos meus colegas, para a gente tenta organizar isso tudo, para ficar direitinho. E ficámos muito marcados, principalmente eu fiquei muito marcado. Mas depois, com o tempo a correr, desmarcaram-me, eu já era um menino. Continuei na Comissão de Trabalhadores, mas já começaram a ver que realmente as coisas estavam a correr melhor. Não havia tantos: Eu não faço...Quando o diretor se foi embora disse: Os senhores estão mais à vontade, as pessoas precisam que lhes deem incentivos. Mas isso foi sempre tudo através daquilo que aprendi na JOC, no ver, ouvir e julgar, nessa revisão de vida operária que me fez. A nível de serviço, cheguei lá acima sem passar por ninguém. Fiz sempre o meu trabalho. P: Ontem, a Manuela estava-me a mostrar um cancioneiro da JOC que era só músicas de intervenção e contra a guerra. Vocês também falavam nisso, falavam da guerra colonial? Angelina Ferreira: Exatamente. Falávamos. Portanto, nessa altura ainda iam tantos rapazes para a guerra, coitadinhos. José Manuel Ferreira: Era uma desgraça e quando eles iam, uma vez foram nas vésperas de Santo Cristo, aqui da festa de São Miguel. Foi o [anonimizado] que os levou e aquelas mães a chorar, para quê? Angelina Ferreira: Para quê a guerra? E continuamos. P: E a igreja acabava por ser um espaço mais protegido para se poder falar sobre essas coisas? Ou seja, estava a imaginar que as outras pessoas que se opunham ao regime eram mais perseguidas. A Igreja dava-vos essa proteção? Angelina Ferreira: Sim, a gente nunca teve problemas. José Manuel Ferreira: A gente nunca teve problemas nesse aspeto, aqui na igreja. A Igreja também, a verdadeira, muitas vezes não faz as coisas certas, mas nessas alturas tinham um bom manto. A verdade é essa. Eu sei que a gente tinha mesmo um bom manto. A gente falava e não havia assim grandes coisas. O padre [anonimizado] deixava falar e depois o outro que veio também era assim. Angelina Ferreira: Mais novo, com mais ideias. José Manuel Ferreira: Portanto, quando a gente também precisava de alguma carreira... E a gente tinha aquela cobertura, chamemos-lhe assim, aquela cobertura da Igreja. Isso nunca nos faltou, pelo menos eu sinto isso por mim. Se eu tinha algum problema ia lá e dizia: Passou-se isto assim, assim. Mesmo quando foi na Comissão de Trabalhadores e às vezes estava assim um bocado e chegava e perguntava e tinha sempre apoio. P: Depois transitaram para a LOC? Ambos: Não. P: Quando é que deixou, em que altura que deixou de haver? José Manuel Ferreira: Isto depois começou a esmorecer Angelina Ferreira: Uns foram casando, outros emigraram. José Manuel Ferreira: Mas a gente ainda hoje de encontra. Angelina Ferreira: Tem, tem. José Manuel Ferreira: A gente tem os nossos, que sabe quem eles são, ainda há dias a gente conversou disso, a gente qualquer dia vai pensar reunir aqueles que a gente tem ainda, para a gente conversar, fazer um almoço, cantar, fazer um chantêzinho [ri-se], cantar com a Manuela, ela gosta muito disso. Angelina Ferreira: A Manuela era uma grande dinamizadora de jovens e das pessoas de idade. P: A Manuela depois seguiu para o movimento sindical. Vocês também se envolveram? Angelina Ferreira: Eu não, o Zé é que esteve José Manuel Ferreira: Eu é que estive depois, na direção dos empregados de escritório. Portanto, era da comissão de trabalhadores e pertencia à direção do sindicato dos empregados de escritório e das transformadoras. P: E houve mais houve mais pessoas da JOC que passaram para o movimento sindical? José Manuel Ferreira: Aqui de São Roque estive eu e o [anonimizado], era representante da FinAçores, portanto, aqui dos pesqueiros, das farinhas, do sindicato, porque depois aproveitava essas pessoas assim que iam para o sindicato. P: E antes do 25 de Abril, não havia aqui aqueles antigos sindicatos nacionais? José Manuel Ferreira: Havia. Era o sindicato nacional dos empregados de escritório. P: E vocês participavam? A JOC não intervinha nesses? José Manuel Ferreira: Que me lembre, não. Não estou dizendo que não, mas que eu me lembro não. Porque eu conheci aqui muitos amigos da JOC, do antigamente, que já são mais velhos do que eu e, portanto, não sei qual era, não deu para acompanhar o que eles faziam. O [anonimizado], o teu irmão e essas pessoas assim, não deu para acompanhar. Na altura, até nem sequer deviam estar... P: E havia aqui aquelas instituições do regime, como as casas do povo, as casas dos pescadores? José Manuel Ferreira: Aqui não, a casa do povo daqui era no Livramento, na freguesia aqui ao lado. Angelina Ferreira: Junto às duas freguesias. José Manuel Ferreira : Uma razão simples, política. A Freguesia de São Roque tinha muitos trabalhadores do campo, eles é que pertenciam às casas do povo. E quem tinha muitos desses trabalhadores era o Sr. [anonimizado]. Angelina Ferreira: A pessoa rica da freguesia. José Manuel Ferreira: Eram os donos da freguesia chamemos-lhes assim. E então a casa do povo era para ser feita em São Roque, que era onde havia mais trabalhadores rurais e ele, para não ficar sujeito à Casa do Povo, que lhe podia dar alguma dentadinha nos calcanhares, disse: Não, isso é melhor fazer-se no Livramento e nós ficamos sem essa coisa – mas por esta questão, para ele não ter muita gente na casa de povo. De repente algum mais virado podia-lhe dizer alguma coisa e então foi a Casa do Povo para o Livramento. Porque eu sei que aqui, há tantos anos, os homens eram comprados, eram arrematados. Havia ali no poço velho, havia ali um canto que era o canto dos homens. As pessoas iam lá buscar o pessoal para irem trabalhar para a Terra. P: Tipo uma praça de jorna? José Manuel Ferreira : Exatamente. E era: Tu vais comigo, eu dou-te dez. Não, não, vai comigo que eu dou-te 12. Portanto, havia escravatura, escravatura encoberta, em que estamos a comprar alguém. E para ele estar à sua vontade, a Casa do Povo foi para o Livramento. P: E essas pessoas que trabalhavam, esses jovens que trabalhavam na terra, também estavam na JOC? José Manuel Ferreira: Não, não estavam. A JOC tinha mais pessoal fabril. Uma Açor (?), era assim mais essas coisas, gráficas que era o caso do [anonimizado] tipógrafo, nas gráficas, em casa, como a Angelina estava, eu estava ainda acabando de estudar e depois passei para a vida. P: Tinha muitas raparigas? Angelina Ferreira : Tinha algumas, mas os pais não deixavam muitas, porque a gente era as mais faladas da freguesia. Os pais eram, as filhas eram em casa. P: Mesmo para a Igreja, não havia assim tanta liberdade? Angelina Ferreira: Iam para a Igreja, para a missa. Pronto, iam para a missa e o seu dever estava cumprido. Estavam desobrigadas de tudo. P: Porque a maior parte das mulheres que eu tenho entrevistado, mesmo do movimento sindical, vêm da JOC. E então eu tinha a ideia de que a JOC tinha sido um espaço onde as mulheres tinham conseguido.... Angelina Ferreira: Conseguiu-se muitas mas...Agora a freguesia de São Roque está muito descaracterizada, porque fazem apartamentos e vêm pessoas de todo o lado, mas no tempo que eu queria, eram as pessoas da Freguesia. E então quando se falava em sair à noite, em ter uma reunião à noite... P: Mas algumas conseguiram? Angelina Ferreira: Conseguiram, conseguiram. Tínhamos um grupinho aí de umas 15,16. P: E foi importante para a emancipação das raparigas? Angelina Ferreira: Para mim foi e para mais algumas. P: Porquê? Angelina Ferreira: Olhe, porque aprendi a ver as coisas por outro prisma. Foi muito importante para o meu crescimento. P: Vocês falavam, por exemplo, da igualdade entre os homens e as Mulheres? Angelina Ferreira: Sim falávamos. Porque ainda neste tempo, os rapazes do meu tempo, não digo na escola primária, mas do meu tempo de estar na JOC, ainda não havia rapazes com raparigas nas escolas. Isso foi muito depois e a gente achava, a gente ficou com má fama na freguesia, muitas das que participavam, porque a gente às vezes encontrávamo-nos com os rapazes e fazíamos passeios. José Manuel Ferreira: Íamos cantar para a praia à noite, isso era tido como... P: E sentiam que havia igualdade já entre os rapazes e as raparigas da JOC? Angelina Ferreira: Sim. José Manuel Ferreira: Havia um espírito aberto. Não havia: Quem manda aqui são os machos, havia muito espírito de abertura, muito espírito de partilha e também se aprendeu muito, muito em espírito de despojamento. Era: Vamos todos para aqui, vamos todos para o Monte, vamos passear e se alguém não podia, não, tu vais com a gente e depois a gente vê isso. Angelina Ferreira: Aqui na freguesia, as moças namoravam muito cedo e eu já tinha 20 anos e não tinha um namorado e nessa altura eu fui ao Conselho Nacional da JOC para o continente e fui muito falada, que tinha ido arranjar um noivo para Lisboa. Mas os meus pais nunca se importaram. P: Foi com quem, foi a única aqui da ilha? Angelina Ferreira: Fui a única de raparigas nesse ano, porque também não havia possibilidades assim financeiras de ir muita gente. P: E como é que foi esse encontro? Foi em que ano? Angelina Ferreira: Não sei se foi em 71? Eu tinha 20 anos, 70. E gostei muito. Eu não conhecia Lisboa, o continente. Nunca tinha ido. Daqui só conhecia a Terceira e cheguei lá sozinha, mas tinha um casal da Terceira, que também foi ao mesmo encontro, foram-me buscar ao aeroporto. E eu tinha uma tia que vivia lá, e a minha mãe telefonou à minha tia e eu fui para casa da minha tia enquanto não fui para Braga. Eu perdia-me, eu olhava assim... É que aqui, agora já há mais movimento, mas antes era muito paradinho e eu cheguei a Lisboa... Eu não vivia lá, mas gostei. Ainda gosto de ir ao continente e se pudesse ia todos os anos. P: Foi em Braga esse encontro? Angelina Ferreira: Esse encontro foi no Sameiro. P: E era com rapazes e raparigas? Angelina Ferreira: Era, rapazes e raparigas, tudo junto. P: E o que é que se discutiu nesse encontro? Angelina Ferreira: Discutíamos de tudo, foram sete dias de intervenções, de cânticos, de missas. P: E foi assim uma coisa já do contra? Angelina Ferreira: Era do contra...era do contra. Na altura ainda havia o Ultramar, ainda havia a guerra. P: E falavam sobre isso? E sobre os problemas também do trabalho? Angelina Ferreira: Do trabalho, exatamente, porque era de todo continente. Tinha moças de Aveiro, tinha moças de Lisboa, tinha moças de Coimbra, de Braga. Juntaram um elemento ou dois por cada região. Fiquei a conhecer, ficámos amigas e na altura ainda escrevíamos muito, mas depois com o passar do tempo... P: A Angelina depois não participou em mais nenhum movimento sem ser a JOC? Angelina Ferreira: Não, era o grupo Coral da Igreja. Não, não participei em mais nenhum, porque entretanto tinha a minha vida profissional, que me ocupava muito tempo. Eu tinha pouco tempo para mim, porque na altura as costureiras ainda havia muito... Eu tinha um leque muito grande de clientes, porque eu fazia por gosto. Depois vieram os filhos e eu trabalhava em casa e os meus filhos, na altura da menina não havia pré, com os outros já havia pré, mas eu criei os meus filhos em casa comigo. A minha mãe ajudava-me até falecer, faleceu nova, com 59 anos, e eu fiquei tomando conta do meu pai. Fiquei com meu pai, com a minha avó, com o meu marido, com os meus filhos e muita rapariga a aprender costura. As mães, mal elas saiam da escola iam logo ter comigo, por eu ter sempre um espírito jovem. Ainda hoje em dia, a minha afilhada está aí. A mãe foi para a minha casa com 14 anos e ainda hoje em dia é como uma filha para mim. E tinha muitas e ficavam a dormir lá na minha casa. Aqui defronte a uma pastelaria, isto aqui era uma terra, que era da mãe do Zé e como a mãe do Zé era viúva... O meu pai gostava muito de vinho e de batata. Quando saía do seu serviço vinha para aqui. E aqui era uma pastelaria e as raparigas que estavam lá na costura: Oh Manel, logo quando tu vieres, trazes-me um bolo? Se ele não trazia, elas no outro dia vinham a pé da freguesia, que ainda é um bocadinho do centro da freguesia para aqui, buscar bolos para o Manel Dias pagar. E ele também gostava muito delas. P: E transmitia-lhes os valores da JOC? Angelina Ferreira: Transmitia! José Manuel Ferreira: Ainda hoje é isso. Angelina Ferreira: A mãe da minha afilhada era de uma família com poucos recursos, a mãe morreu muito nova, com muitos filhos, e ela distribuía pão de manhã e ia deixar à minha casa e dizia: A minha pequena vai sair da escola, tu queres pegar nela para aqui? Porque comíamos todos, a minha mãe na altura fazia panelas de sopa e elas todas comiam e depois eu continuei. E eu dizia: Ai Senhora, eu não quero, porque eu já tenho aí seis ou o que é. Ai mulher, pega-me nela coitadinha, para ela não ficar em casa. E ela foi com 14 anos e ainda hoje em dia é como uma filha para mim. É a minha filha mais velha e ela dá-se muito bem com o meu filho e com a minha filha, mas o meu filho tem mais abertura com ela do que com a irmã. E ela teve uma menina e a nós fomos os padrinhos da menina e o Zé é que vai buscar à escola. De manhã a mãe leva-a, mas a mãe trabalha. José Manuel Ferreira: Ela veio lá para casa, depois faleceu-lhe a mãe... A história dela é essa, ela foi para lá aos 14 anos, ficou sempre filha da casa, eu é que lhe arranjei casa. Portanto, ela é mesmo nossa filha, não é biológica, mas é nossa filha e portanto, e tem os valores todos que a gente foi transmitindo. Aquilo é uma mulher que se mata para ajudar o outro. E às vezes eu: Os teus irmãos? Isso só tive aqui e eu já nem abro mais a boca, porque esse eu tive aqui, eu conheço. Eu é que a levei à Igreja, quando ela casou. Eu disse: então não tens irmãos? Angelina Ferreira: Ela tinha muitos, não podia escolher. José Manuel Ferreira: Ela disse, assim: Não, ou és tu ou eu vou sozinha. Sozinha não vais. Mas também tem aqueles valores todos que aprendeu e que a minha afilhada está continuando assim. Portanto, os valores que a gente foi aprendendo a gente foi transmitindo aos filhos. A minha filha é tesa, aquilo não se brinca com ela. Angelina Ferreira: Ela trabalha na casa do Gaiato. José Manuel Ferreira: O meu filho também. O que tiverem a dizer, dizem, acabou. Justos. Se tiverem que levar nas orelhas também levam. E se virem que não estão corretos, eles também não refilam por isso. P: E o Zé Manel depois esteve no movimento sindical até se reformar? José Manuel Ferreira: Não, depois tive um problema de saúde e aquilo já não dava. Eu fui operado ao coração, não dava para me enervar mais e então foi um colega meu. Mas quando ele precisava, era o [anonimizado], eu dizia: Epá tu vais, que tudo o que tu precisares tens cá o padrinho, o padrinho diz-te tudo o que tu precisares, mas tu é que tens de ir porque eu não posso. Mas sempre gostei, sempre gostei. P: Então mas contei-me lá, como é que foi o 25 de Abril aqui. Angelina Ferreira: Eu trabalhava de costura para a esposa do chefe da Pide cá. E a Senhora era amorosa e gostava muito de mim. Eu era muito magrinha e ela trazia-me suplementos alimentares, mas eu não comia muito. Eu tinha 48 kg e agora estou crescendo mais. E ela dizia: Vais de férias para Santa Maria comigo. Era uma pessoa que também não era egoísta. E no 25 de Abril aqui não tínhamos televisão. Ai uma revolução no continente, em Lisboa, e não sei quê. A gente ouvia na rádio e a minha mãe estava com muito medo. E a minha mãe nesse dia teve uma consulta, eu lembro-me disso, e ela foi a Ponta Delgada, e vi as pessoas a irem a casa buscar o chefe da PIDE, da Dona Lina. E a minha mãe viu a senhora na varanda tão inquieta e foi para casa e disse-me: Ai, eu tive tanta pena da Dona Lina, mas com medo da revolução, que não sabia o que era, não víamos na televisão e ficou tudo com medo. E depois, o Presidente, o Chefe da Pide não foi preso, mas foi para casa de um senhor amigo. E a Dona Lina depois, quando vinha a minha casa dizia: Mas o marido não era desses mais... José Manuel Ferreira: O [anonimizado] na altura não foi preso, não foi para a cadeia, o [anonimizado] foi para a casa dele, sendo tratado como filho dele. Ele também estava aqui nessa Terra, em que a gente se conhecia todos. Ele tinha que se impor senão coitado também ia-se embora, mas não era de fazer mal. Ele chegou a ter uma cubana. Angelina Ferreira: Exatamente, um dia a esposa veio a minha casa e levou uma moça tão bonita e ela disse-me que ela era cubana e o namorado era marinheiro e ela fugiu de barco com o namorado, porque aquilo em Cuba... naqueles anos. E ela não foi presa, foi para a casa deles, desses senhores. Ela levou-a a minha casa e a moça era tão bonita, tão bonita, que eu lembro-me na altura, eu devia ter aí uns 22 anos. Mas era assim uma pessoa que também não era dos piores, mas é claro toda a gente tinha medo. E quando se fez o 25 de Abril a gente não sabia o que é que isso ia dar e depois viu-se que despejaram os senhores lá do Alentejo, das suas propriedades... José Manuel Ferreira: Mas aqui também houve. Angelina Ferreira: Houve depois do 6 de Junho. José Manuel Ferreira: Antes disso também houve, depois do 25 de Abril começou logo a haver as tricas. A tropa começou a sair para a rua. Vinham de metralhadora, eles vieram do continente para cá. Foram postos aqui coitados e isso começou a causar um mal estar. E depois disso começou a haver muitas sessões em que a tropa batia. No seis de junho a lavoura levantou-se toda, incentivados pelos grande proprietários, os ??? e aquelas companhias todas, os homens das terras, houve um grande levantamento de pessoal. Alguns foram presos para a Terceira, de maneira que não se fazia, que era às tantas chegar a casa: Vamos embora, pega nele, mesmo à comunista, como eles costumavam dizer. Epa, o 25 de Abril não pode ser assim. E depois havia as sedes dos partidos incendiadas, logo que fosse do Partido Comunista ou do Partido Separatista, que era o caso da FLA, da Frente de Libertação dos Açores, eram incendiadas. O [anonimizado], que era do Partido Comunista, foi lançado da Avenida para o mar, queimaram-lhe o carro. Houve assim umas cenas tristes em tempo de liberdade. Angelina Ferreira: Era porque as pessoas eram ignorantes. José Manuel Ferreira: Mas era por causa disso, é o que a Angelina diz, a maior parte aqui era ignorante politicamente. P: E como é que se posicionava a JOC nesse período? Angelina Ferreira: Não tinha muito poder. José Manuel Ferreira: A gente podia falar, mas também, és comunista. Tudo o que tu falas assim é porque tu és comunista. Às vezes ainda é assim, já não tanto, mas às vezes se a gente diz alguma coisa assim mais aberto: Epá, tu és um grande comunista. E eu digo: Bem bom, pelas almas que alguém vê que eu sou comunista...porque logo que toque no instalado, és comunista. Agora já está tudo mais calmo, já se convive, já não há problemas de grande coisa, mas às vezes ainda alguns...e eu digo: Bem bom, é bom eu ser comunista, deixa estar. P: Mas naquela altura foi mais difícil? José Manuel Ferreira: Muito mais difícil, foi muito difícil. Por exemplo, tive um colega meu que foi a uma sessão de esclarecimento. Por acaso eu também era para ir, mas fiquei em casa já não sei porquê. Ele levou umas pancadas naquela cabeça com uns capacetes de moto.... P: Era uma sessão de esclarecimento de? José Manuel Ferreira: Do Partido Socialista. Chegaram a mandar uma bomba, em casa de um Dr. [anonimizado] na Madalena, que era um grande socialista. A casa dele levou uma bomba. Havia essas coisas assim e depois nós aqui, está a ver o que é isto num meio muito fechado, apanhar com uma coisa que a gente não sabe o que é, porque não vê na televisão, não vê nada. E depois há notícias que são verdadeiras, outras que são mentirosas, não é? Sempre houve e sempre vai haver. As pessoas ficavam assim: Mas afinal? Eu lembro-me das primeiras eleições que se fez, as velhinhas a desmaiar porque a velhinha se não fosse votar ficava sem a sua triste reforma de meia dúzia de patacos. Angelina Ferreira: Depois do 25 de Abril, as primeiras eleições, credo, as velhinhas a desmaiar. José Manuel Ferreira: Punha dó. Porque eu estive desde as primeiras eleições, estive sempre presente, era refila, fiz sempre parte das mesas de assembleia de voto, sempre. E ainda fazia, agora é que já me deixei, e quando não estava na mesa estava como fiscal do Partido, com uma credencial para ver se havia alguma coisa. E eram aqueles velhinhos, tão velhinhos: Ai senão eu perco... Não perdes nada querida, tenho dó de estares aí em pé, porque também não lhes davam o lugar, para as velhinhas passarem à frente. A gente dizia assim: Deixe passar. Ai não, ela que espere por mim. Ainda não havia bem essa coisa de.... Angelina Ferreira: Solidariedade... José Manuel Ferreira: O 25 de abril foi assim aqui, nesse aspeto, a gente não sabia o que era verdade, a gente não estava preparado para a questão de abrir e, politicamente, as pessoas eram muito ignorantes. P: E no mundo do trabalho, como é foi? Houve melhorias? José Manuel Ferreira: Houve algumas, a verdade também é essa, houve algumas melhorias. Mas todas elas, e ainda hoje, mas todas elas naquele tempo foram tiradas mesmo a ferros, muito a ferros. Eu cheguei, estou falando do meu caso pessoal em que posso falar bem, eu fui jantar com o advogado da firma: Ai e tal a gente vai jantar para a gente acabar o resto do contrato - isso quando foi o contrato. Está bem, pronto, vamos jantar. Não há problema nenhum, vamos jantar. Eu fui jantar aqui ao Bataclan, aqui mesmo em cima. E às tantas ele vira-se assim para mim: Oh Zé, eu trouxe aqui os papéis que é para a gente assinar, não sei quê. E eu disse: Está bem, não tem problema nenhum, a gente veio aqui para ver isso, epá, mas é assim não pode ser muito atrás (?). É assim já está escrito, assinas aqui. Não, não foi isso que a gente combinou. E eu: Oh sr. [anonimizado], que era o dono do restaurante, chega aqui, faz favor. Tira a minha conta que eu vou-me embora. Não, eu vou pagar. Não, não, eu comi e vou pagar e não vou assinar contra os meus colegas. E diz lá na firma que eu é que paguei o meu jantar. Não vaz ficar mal disposto, a firma não te vai fazer nada de mal por causa disso. Mas o meu jantar quem paga sou eu. Artur, para cá a conta. Está percebendo? Havia essas coisas assim, que tentavam: Porque vais ganhar mais que os teus colegas, mesmo do escritório. Hei, eu estou a fazer isto para a gente se igualar e agora vou ganhar mais? Não, não. Mas o jantar é por minha conta, acabou, não há mais problemas aqui. As coisas, é verdade que foram evoluindo, mas muitas coisas tiveram de ser arrancadas a ferros, ainda hoje em dia continua ser assim, secalhar até pior. Angelina Ferreira: E essas pessoas, portanto, que não tinham abertura, diziam que quem era comunista ia para o inferno. E as velhinhas coitadinhas que não queriam ir para o inferno, não eram comunistas nem socialistas. P: Pois claro. E quando ontem falava com a Manuela, ela contou-me quando foi a greve geral de 1982, que aqui houve uma grande adesão, estava no sindicato nessa altura? José Manuel Ferreira: Estava. P: Lembra-se dessa greve? José Manuel Ferreira: Lembro. Houve adesão, pois houve, mas custou-nos P: Como é que foi? José Manuel Ferreira: Eu estava na firma, porque lá aquilo queria cambar, e eu estive sempre lá, disse: Aqui não camba nada. Alguns iam furar a greve. E eu disse: Aqui não camba nem descamba, aqui é assim. E então havia lá os piquetes e eu estava sempre em todos os piquetes. Então tu estás? Então, eu sou representante do sindicato. Porque o Patrão entrava: Vai trabalhar. Vai trabalhar o quê? Eu estou aqui. Ah, porque é preciso encher aquela garrafa de gás, é preciso encher cinco garrafas de gás e levar ao hospital. Sem problema nenhum. Está aí, mas é só cinco garrafas. A gente tinha que fazer os serviços, não é? Não podia dizer que não ia levar ao hospital, às casas de saúde, mas já era para ver.. ah depois... Não, é só cinco, porque de repente algum que tivesse um certo receio, eles podiam dizer: Não, não, vais trabalhar porque senão perdes isto e perdes aquilo. E então eu dizia: Eu estou de piquete de greve, em todos os piquetes de greve eu estou e estava sempre. Do meu sindicato era aquele rapaz o [anonimizado], que era muito meu amigo, e o [anonimizado], que eu tinha que ter o [anonimizado] que era o responsável do enchimento comigo. Eu dizia: [anonimizado], eu quero-te sempre comigo porque se houver precisão de encher três garrafas eu não sei abrir as garrafas, tu é que vais ali encher e levas o [anonimizado]. Mas aguentou-se, tinha que se ter força. P: E depois também esteve na Cáritas. José Manuel Ferreira: Estive. Na altura, oitentas, na altura em que havia, e há, muita fome, mas eu vou-lhe dizer uma coisa. Na Caritas eu também cresci e aprendi muito. Eu só lhe vou contar uma, que me choca mas que eu passei. Uma vez, nós distribuíamos aqueles cabazes de Natal e eu fui encarregado de ir distribuir os cabazes mais um Senhor, ali abaixo ao Terreiro, que é parte aqui da minha freguesia, a uma determinada pessoa. Cheguei lá, eu não gostava de ir bater à porta, deixar e até logo se Deus quiser, bom Natal. Não. Não gostava de estar aí, porque assim, porque assado. Não. Faz-se de maneira que a outra pessoa não veja a dar. E eu cheguei e disse: Está aqui. Oh Senhor Manuel, faz favor, e disse: Eu preciso. Pois está aqui. Mas duas casas abaixo da minha precisam muito mais do que eu, vais lá levar. Eu não sabia. Ninguém sabe, estou eu a dizer-te, porque é muito envergonhada, ela não diz nada. Realmente aquilo demonstrou sentido de solidariedade, de empenho. Sim senhora. Deixei, vim para cima para a Caritas: Hei, mais um cabaz para eu levar ao fulano. Mas não foste levar ao fulano? Fui, mas passou-se isto assim, assim e a mulher não fica sem cabaz. A gente vai lá levar. Portanto, uma lição de vida, uma lição de partilha que se aprende. Eu aprendi e fez-me crescer ainda mais. Porque se eu fosse lá só pôr, é para mim. Por isso, a Caritas também me ensinou isso. E também me ensinou que às vezes... Eu fui levar [um cabaz] a outro lado e eu disse: a gente não vai levar porque o senhor tem dinheiro, ele faz-se assim, mas ele tem muito dinheiro. Vai levar porque assado e cozido – o outro colega meu. E eu disse: Epá, é para se levar, vai-se levar, mas eu vou contigo. A gente bateu à porta: Posso entrar? A Senhora era muito ... era uma pobre de Cristo. Posso entrar? Sim, Senhor, sim, Senhor. Ele estava deitado na cama. Eu disse: Então João está tudo bem? Ele: Está, o que é que vieste fazer? – assim, bruto. Então vim trazer umas coisinhas para vocês, para o Natal. Eu cá não preciso e saca a mão atrás, pega na carteira. Eu tenho aqui dinheiro, para que é que eu quero isso? O que foi lá comigo, que era o que tinha insistido que eu fosse lá levar, disse: Manel, a gente vai levar esse cabaz para trás. Nem penses nisso. Isso vai ficar aqui. Mas agora (a gente estava mesmo perto do centro, da sede da Caritas) tu vais chegar lá e vais dizer que realmente era como eu disse. Tens que dizer, é a única coisa que eu te peço. É que vais ter de dizer e vais ter que aprender que se alguém diz as coisas é porque sabe. Quando eu cheguei lá ele disse ao Dr. [anonimizado]: O Ferreira tinha razão, porque assim e assado. O Dr. [anonimizado] começa a rir e disse assim: Quando o Ferreira disser que é, é porque é, porque ele conhece. Porque eu conhecia muito aqui, fruto também de ter sido presidente da junta e essas coisas assim. Mas porque a prima da Angelina trabalhava no dispensário materno infantil e sabia-se tudo lá, as desgraças entre aspas das pessoas, o não ter o que dar ao bebé, o que a fulana é...E a Laura estava connosco na Cáritas porque era o nosso veio de transmissão de tudo que se passava na materno infantil, a nível da freguesia. E também tínhamos um senhor que nos dava toda a informação da ação social (pertencia também à Cáritas). Aquilo era pela porta do cavalo mas a gente tinha. Portanto, a gente ia estudar, era uma questão de estudar tudo. Uma vez, eu lembro-me, tínhamos um presidente novo: Vamos levar este cabaz a fulano – era o Sr. [anonimizado], que a gente tratava de [anonimizado], que era o sacristão. E eu começo a rir mesmo à gargalhada, mesmo ferrado e eles: Tu estás-te a rir, estás a fazer pouco de quê? Nada, vão dar um cabaz a esse senhor? Ide ver, ele está enterrado, ele está morto. Não havia já a coisa de saber se a pessoa era viva, se não era viva, se precisava, era levar por levar. E eu nessa altura, então: Deixem estar, vocês e que percebem disso – porque eu ia só lá para me chatear e eu já não tinha mais tempo para me chatear. Nesse aspeto, já tinha perdido a paciência. P: Estava-me a dizer que também foi Presidente da Junta, foi quando é que isso foi? José Manuel Ferreira: Foi no dia em que morreu o Sá Carneiro. Eu era o Secretário mais novo da Junta de Freguesia, porque eu estaca com dois senhores com mais idade, o Sr. [anonimizado] e o Sr. [anonimizado], e era o secretário da Junta de Freguesia. Depois fiz dois mandatos como Presidente e fiz três mandatos na Assembleia de Freguesia, sempre pelo Partido Socialista, que ponha os pés no seu voto, porque que eu nunca fui para outro, embora pudesse ter sido, era só pedir que eles davam-me, só tinha de concorrer pelo PSD. Eu disse: Ai Credo, está quieto. Não quero, não renego a minha pátria. É uma questão de princípio. P: Quanto é que entrou para o Partido Socialista? Foi a seguir ao 25 de Abril? José Manuel Ferreira: Foi em 74, eu sou o militante mais velho da secção de Ponta Delgada. Mais velho de anos de inscrição. Quando eu levo o cartão para votação: Hei Ferreira... Vocês ainda estava dormindo e eu já estava cá dentro. P: E conseguiu também, na vida política, aplicar os valores que tinha aprendido na JOC? José Manuel Ferreira: Sim, sim. Eu lembro-me de ir uma vez a um Conselho Nacional do Partido Socialista, mas dizerem-me o seguinte: quando aqui chegares tens que apresentar um relatório. Fiz o relatório e eu tinha muita confiança com um rapaz que já faleceu, que era o [anonimizado]. Eu escrevi o relatório e disse: Olha lá, tu és capaz de ler esse relatório, que eu sou assim novinho nestas coisas, para veres se isso está bem, se é preciso corrigir alguma coisa. Ele começa a ler: Foi isso que se passou? Foi. E tu queres entregar isso? Quero. Entrega, mas eu já te vou dizer uma coisa, vais ficar na prateleira. Estão ai coisas que não se devia dizer. Ai é? Mas posso entregar? Agora decides, queres ficar na prateleira ou queres ser menino bonito. Não, eu prefiro ficar na prateleira. P: O que é que era que o fazia ficar na prateleira? José Manuel Ferreira: Ficar na prateleira era não ser mais chamado para Conselhos Nacionais, nos congressos regionais não ia para as comissões. Ainda me veio dizer um primo, casado com uma prima minha, vai lá pedir para ires. Eu pedir para ir? Tu não tens juízo? Se eles virem que eu sou bom para ir, eu vou. Se eles continuarem a estar com a teima, continuem com a teima. P: Mas o que é que estava lá escrito que eles não concordavam? José Manuel Ferreira: Eu é que não concordava com a maneira como as coisas se tinham passado e a maneira como as pessoas intervinham e como é que se dava a palavra e como é que se retirava a palavra e como é que aquilo era tudo dividido sempre pelos mesmos, parecia ser uma igreja. E eu fiz isso tudo e disse que nunca mais precisava de ir a coisas daquelas. Mas pronto, ele disse-me logo que ia para a prateleira. Mas depois passaram. Eu cheguei a dizer a eles: Eu não devo nada ao Partido Socialista. Eu dei a minha cara pelo meu Partido, portanto por vocês. E depois então, a partir daí...Eu sempre fui muito amigo do [anonimizado], fechamo-nos uma vez num quarto e demos uns murros em cima da mesa, mas sempre amigos. Eu era frontal, eu dizia as coisas e ainda hoje continuo a ser assim. É verdade uma coisa, muitas vezes perde-se por ter uma boca grande. P: Agora queria-vos fazer uma última pergunta, que ontem também fiz à Manuela e ela deu-me uma resposta espetacular. Eu estou a fazer um trabalho de história sobre os movimentos sociais, sobre o associativismo e eu gostava que vocês me dissessem, se fossem vocês a fazer, se fossem historiadores, o que é que vocês acham que era importante estudar destes movimentos? Angelina Ferreira: Conhecer melhores as pessoas, estudar as pessoas, saber as necessidades delas. Mas eu não sei se eu tinha coragem para isso. José Manuel Ferreira: Eu acho que nesse estudo e nesses movimentos, era saber qual era o fim, para que serve esse movimento. Se ele está a fazer para aquilo para que foi criado. Se não está a fazer aquilo para que foi criado, vamos embora. Eu acho que tinha-se que ir estudar e ver se realmente os movimentos cumprem os fins para que foram criados ou se andam a sugar os outros. Isso é que era essencial e não ter medo de por isso a nu, de abrir e dizer, vocês não são isso. Porque muitas vezes o que falta é... A gente diz, mas dá uma volta tão grande, tão grande... Eu costumo dizer assim: Em duas palavras podia-se reduzir o que muitas pessoas dizem em 40. Porque se eu tiver um relatório muito grande, de 30 folhas, eu acho que a gente só vai ver o que diz na conclusão. Mas se eu levar um relatório de uma folha, sintético, e a conclusão, aí eu fiz o meu trabalho e fiz bem feito e percebi para que é que aquele movimento foi criado. P: Especificamente em relação à JOC, acham que foi um movimento que teve importância na história do nosso país? Angelina Ferreira: Penso que sim. P: Porquê, o que é que acham que trouxe? Angelina Ferreira: Olha, eu falo por mim, porque eu fiquei mais aberta ao mundo. A Joana pode não dar o valor, porque sempre viveu no continente, não é? De Portugal vai-se para todos os lados e aqui não, a gente vive numa ilha. E quando eu fui ao continente pela primeira vez marcou-me muito. Foi quando eu vi a grandeza. Porque a gente fechados aqui. Embora se tenha bons sentimentos, ajudar o próximo... Se calhar num meio mais pequeno nós somos capazes de fazer isso melhor, mas eu também penso que é preciso alargar horizontes. P: E a JOC alargou-lhe os horizontes? Angelina Ferreira: Sim. P: E o Zé Manuel, o que é que acha? Acha que foi importante? José Manuel Ferreira: Sim, sim, muito importante, a nível pessoal, para mim foi uma abertura. O nosso menino que estudou, que está juntamente com o [anonimizado], o [anonimizado], com o não sei quê, que quase todos esses tiveram comigo na primária, não tiverem as possibilidade que eu tive. Mas eu tenho que estar com eles. E eu sempre vivi, sempre aprendi muito com esses. Tinha os ensinamento de casa. O meu pai dizia: Ninguém é melhor do que ninguém. Isso fez com que eu me sentisse mesmo irmão deles todos. Portanto, é para ir para a terra? É para ir para a terra. É para ir para ali? É para ir para ali. Eu cheguei a vir...Hei, tu andas a falar com essa prostituta? É uma mulher como outra qualquer, ela quis vir falar comigo e eu não falo com ela? Então que raio é isso? Portanto a JOC fez-me crescer nesse aspeto, não separar ninguém. Foi o essencial, não separar ninguém, não há classes. Tu és tu, o outro também é ele, mas são unos. Se a gente estiver todos juntos, a trabalhar todos para o mesmo lado, é uma categoria. Agora se nós quisermos trabalhar cada um para o seu canto, veja-se o que é que se passa. E a JOC ensinou-me a trabalhar com um rumo certo, todos irmanados, todos iguais. Para mim isso foi muito, muito, muito, muito gratificante e continua a ser. E foi o que me fez aprender muito na vida. P: Então agora eu vou vos dizer o que é que a Manuela me disse que achava que era importante eu perguntar, vou-vos fazer essas perguntas que eu acho que são muito boas. Ela disse-me que eu devia perguntar, o que é que as pessoas sentiram naquela altura? O que sentiam quando participavam na JOC? Angelina Ferreira: Eu senti-me crescer e ver melhor o outro e não ver o meu eu primeiro, ver o eu do outro primeiro. Um exemplo: eu fui a um curso de cristandade, já depois de casada e ter filhos, e vi uma senhora, isto é um exemplo. Eu vi uma senhora, daquelas senhoras da elite, a dizer que tinha de dar um testemunho, que depois de ir aos cursos de cristandade via melhor as outras pessoas e que quando uma pessoa lhe ia pedir qualquer coisa, os mendigos, ela não dava e que depois de ir ao curso de cristandade já dava. E eu disse: eu sempre vi isto na minha casa, desde pequenina. Eu não aprendi nada naquele curso de Cristandade. Mas eu já vi isso por ter estado na JOC e ver que os outros também são gente, que a gente primeiro deve ouvir os outros. Aquela senhora que eu pensava que ia fazer um testemunho muito grande e era aquilo que eu aprendi desde pequenina. P: E o Zé Manel o que é que sentia quando estava na JOC? José Manuel Ferreira: Alegria, para já porque a gente estava com aquela malta toda e depois porque nós éramos um grupo unido, que conversávamos sobre tudo e crescíamos. E não havia gente a tentar separar, porque se a gente tentar separar, tínhamos uma pessoa que era o [anonimizado]: Eu vou dizer meninos uma coisa (ele era muito mais velho), amigos! E depois quando eu comecei no ver, julgar e só agir no fim e de acordo com o evangelho. É isso. É uma coisa que dá trabalho de fazer, uma revisão de vida operária como deve ser. Porque é que é? Porque não é? Porque muitas vezes também não é só o patrão, muitas vezes também somos nós. Mas o ver, julgar e agir era essencial. Porque aí é que a gente, pelo menos para mim, a gente via, a gente julgava à luz do Evangelho. Mas ele vai comigo. E é como nós ajudamos, a ensinar a pescar. Portanto para mim, a revisão de vida operária era o essencial da caminhada, difícil. P: A outra pergunta tem a ver com isso que é o caminho? Também tem algumas dificuldades, não é? Também já contaram aqui várias coisas que não foram fáceis, mas valeu a pena? Valeu a pena esse empenho? Angelina Ferreira: Valeu. José Manuel Ferreira: Muito, muito, muito, muito. Ainda hoje a gente colhe esses frutos. Por exemplo, a gente às vezes: Hei, a gente tem de ir falar com a Manuela. Uma vez havia um padre que eu não gostava, no sentido em que ele quando vinha fazer a homilia debruçava-se assim no altar. Parecia que estava a vender vinho ao balcão. E um dia, eu estava mesmo doido, doido, doido e disse: Oh Manuela, eu preciso de falar contigo. O que é? É o padre fulano....E ela: Não estás bom, vais julga-lo por estar debruçado assim ou vais ouvir a palavra dele. Pronto, não me digas mais nada, já estou bem disposto. E algumas vezes a gente encontra-se, muitas vezes até quando a gente se encontra é um problema para a gente se desencontrar. Porque a gente começa a falar, começa a falar, mais fulano, mais beltrano, o padre fulano que estava na JOC, o Padre [anonimizado], o Padre que já não me recordo. Mas a gente vai sempre falando, sempre conversando. A JOC ainda está muito viva, pelo menos naqueles que estiveram lá e que quiseram estar lá, está muito viva. Se fosse assim, vamos reformar-nos outra vez. Se houvesse alguma coisa para lutar eramos capazes de lutar. Mais velhos, mas lutávamos Angelina Ferreira: Eu acho que já não lutava mais... P: E têm esperança no futuro? Angelina Ferreira: Tenho, tenho esperança que esse futuro seja melhor. Não é melhor em riqueza, mas as pessoas serem felizes e olharem para as outras pessoas. O meu lema é: Nunca faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti e eu às vezes faço, mas depois arrependo-me e tenho coragem de dizer que me arrependi. P: E tem esperança que haja essa evolução? E o Zé Manel também tem? José Manuel Ferreira: Tenho. -
Junho de 2022
Manuela Medeiros
Entrevista a Manuela Medeiros P: Nasceste aqui em São Miguel? Manuela Medeiros: Eu nasci no dia 2/04/1942, aqui na ilha de São Miguel. A freguesia é que não foi esta, foi na freguesia de Santa Clara. Fica na rua direita, depois nós subimos à direita, antes de chegar à Igreja, a avenida que vai para o aeroporto. Era uma freguesia piscatória, agora já não é tanto. Havia muitos pescadores e encontravam-se também aqueles que iam para a pesca do bacalhau, que levavam seis meses fora, a pescar. Eu lembro-me muito bem dessa parte, porque nós tínhamos vizinhos nossos que também iam. E era muito engraçado. Quando eles chegavam, nós íamos lá para o farol da Santa Clara. Nós íamos para lá e acompanhávamos o barco, eles vinham com as caravelas e nós estávamos com os lenços a dizer adeus. Era tão lindo… E depois íamos à casa deles ver a família, eles sobretudo. Eles traziam-nos umas bolachas, eram mesmo assim grandes, de água e sal. Não era nada doce, era mesmo assim, e traziam as caras de bacalhau, essas coisas assim, que depois davam a algumas vizinhas. Lembro-me perfeitamente, tinha uma tia que fazia. A minha mãe não gostava. Aquilo é muito saboroso. Ali nasci e estive na escola até aos 10 anos. Fiz só a quarta classe. Esperei dois anos e comecei a trabalhar na fábrica de tabaco micaelense. Naquela altura era pelo menos com doze anos [que se começava a trabalhar]... É uma coisa que agora, felizmente, não se passa. Quando falo nisto lembro-me sempre que agora uma pessoa já se interessou em defender isso, para as pessoas começarem a trabalhar não com 12 mas com 16, e obrigarem as pessoas primeiro ao estudo, por uma vida melhor, pela qualificação dos empregos, quando nessa altura não se falava. E as pessoas que iam estudar eram aquelas que tinham posses ou tinham madrinhas que ajudavam a família. Nós éramos quatro irmãs, de maneira que nenhuma foi para cursos superiores. Tenho uma irmã que foi jornalista, agora está na reforma. Jornalista primeiro do “Diário dos Açores”, jornal mais antigo, que tinha quase 160 anos, e depois o responsável do jornal “Açoriano Oriental” foi buscá-la e assim foi desse jornal que ela então foi para a reforma. Eu estive na fábrica 47 anos, não foi brincadeira, e aos 16 anos comecei a tomar conta – eles diziam chefiar, eu não gostava –, a tomar conta de quase 200 mulheres. Porque a fábrica tinha mais mulheres do que homens, por causa da mão-de-obra barata. Essa fábrica nunca despedia ninguém, mas quem saía para casar, depois de casada mal ficava a trabalhar. Não ficava, nessa altura não ficava ninguém. A primeira pessoa que ficou a trabalhar na fábrica casada foi uma nora de um patrão. É casada com um filho deles. Porque até aí ninguém ficava. Entravam com 12, 14, 16 anos, mas depois casavam e iam para casa e às vezes era pena, pela qualidade que elas que tinham de serviço. Mas também, às vezes, eu ponho-me a pensar: não se justificava sair de casa a pé daqui dos Arrifes lá para baixo, não se justificava as pessoas caminharem tanto a pé para ganhar isso. Não ganhavam o suficiente para terem uma alimentação muito cuidada. Mas tinham uma vida muito alegre. Eram muitos alegres… As mulheres juntas têm os seus prós e os seus contras. Por exemplo, a minha irmã sempre gostou muito mais de trabalhar com homens do que com mulheres. Eu tive essa fase. Quando eu saía, que ia conferir serviço para o escritório, eu dizia: “Olha, cada uma está por sua conta, cada uma toma conta de si, eu não posso defender ninguém.” Nunca tive problemas, também a verdade é essa. Eu estive 47 anos, quando saí fui para a reforma. No meio disso tudo, portanto noutro ciclo, aos 12 anos, quando comecei a trabalhar, aos domingos nós tínhamos já grupinhos que se juntavam noutras paróquias. Não era na minha de Santa Clara, porque a minha ainda não era paróquia. E então o meu pai ia para o futebol, ele não gostava que a gente saísse sozinhas assim para muito longe, e ele ia para a freguesia de São José, a tal do campo de São Francisco, a Igreja de São José, e aí já tinha um grupinho que se chamava pré-JOC. Era a primeira coisa que nós frequentávamos antes da JOC. E então eu gostava, porque havia aquele convívio, conhecíamos outras pessoas, íamos um grupinho, quatro ou seis, uma coisa assim. E depois fomos crescendo, fomos desenvolvendo, depois criámos um grupinho de jovens em Santa Clara. Depois, mais tarde, apareceram rapazes também. E Santa Clara sempre teve um convívio de gente nova muito bom, assim para o positivo, mesmo com rapazes e raparigas. O padre que estava lá na altura nunca foi daqueles de dividir, de fazer divisões. Felizmente, tivemos isso. E pronto, tudo começou a partir desses grupos pequenos que depois, portanto, eu com os meus 20, antes de 20 anos, já tinha aqui um grupo pequenino da pré-JOC e depois na paróquia de Santa Clara formaram um grupo de adultos, tinham um grupo de homens e já tinham o grupo de senhoras casadas. Elas gostavam muito de mim porque eu sempre fui muito alegre. Achavam-me muita graça. Um dia o padre disse: “Olha, Manuela, eu tenho coisa para te dizer.” ”Tem uma coisa para me dizer, que coisa é essa que o senhor tem de dizer em particular?” “As tuas amigas, tu gostas muito delas e elas de ti [eu às vezes ia para casa tomar conta das crianças para eles irem para as reuniões], elas dizem que têm confiança em ti para ficares com um grupo de adolescentes, para tomares conta.” Eu disse: “Têm?” Naquela altura nós chamávamos o grupo das novas. “Claro, têm.” Eu disse: “eu não vou dizer nada. Eu vou pensar e depois o senhor vai-lhes dar uma resposta.” Fui pensar. Eu pensava e, quando estava com elas, via, pensava, e um dia falando com elas, disse: “Vocês sabem que vai haver novas eleições com um grupo e outro e nós também vamos ter eleições para o nosso grupo, de maneira que não se sabe quem é que vai ficar.” Pronto, não lhes disse o que tinham pensado, mas depois a certeza é que eu fui falar com o padre e disse: “Eu pensei e vou aceitar. Não falo mais com elas daquilo que o senhor falou, mas vou aceitar”. E foi uma maravilha. Tomei conta daquele grupinho, o grupinho desenvolveu-se. Lembro-me perfeitamente, assim perto da Páscoa. E pela Páscoa havia aquelas vigílias e eu fui dizer ao senhor padre que as novas queriam preencher uma hora de Adoração ao Santíssimo Sacramento. Eu disse-lhe uma coisa: “elas é que vão orientar a hora, eu só oriento os cânticos. Elas é que têm as coisas feitas, de maneira que quem estiver nessa hora, vai aceitar essa hora feita por elas e mais nada, como nós aceitamos as outras que os outros fazem.” E foi assim. Mas correu muito bem. Correu tão bem que depois elas disseram: “Manuela, nós queríamos ficar toda a noite, ficar com as outras. Eu disse: “vocês assim obrigam-nos [a maior parte não tinha telefones] a ir à casa de cada uma de vocês [eram umas oito ou dez], para dizer às vossas mães, aos vossos pais, se autorizam que vocês fiquem toda a noite.” E fomos. As mães, se eu dissesse que ia ficar toda a noite e eu já sabia que ia ficar, “eu vou fazer um chazinho, elas vão fazer umas bolachinhas”. Foi assim e foi maravilhoso. De facto, foi um momento mesmo de grande espiritualidade vivido por esse grupo de adolescentes, só com cânticos por mim preparados. Mas foi mesmo uma surpresa para toda a gente, até para mim, porque havia coisas que eu não sabia, porque eu não queria estar no papel de vigilante, queria ter um papel participativo na outra parte dos cânticos. E foi assim, mas correu muito bem. (Isso também é muito positivo, porque nós hoje em dia muitas vezes falamos nos jovens, mas eu e outros adultos somos responsáveis, porque esta sociedade não confia nos jovens. Nós sabemos que há uma grande, ultimamente, portanto, estou a falar dos anos 60 para agora, há muitas coisas que nós não tínhamos, sobretudo a televisão, as diversões à noite e essas coisas todas. Mas se houvesse mais confiança, uma vigilância que não fosse persecutória, mas de confiança, penso que a juventude seria outra. Sempre vi os jovens com um grande espírito de solidariedade e de humanização. E é isso que às vezes as pessoas não gostam de confiar sem saberem sempre quem comanda.) Isto foi desde o início da minha catequese até começar no grupo de jovens como responsável, portanto nos anos 60. Ainda no fim dos anos 50 fui responsável pela Juventude Operária Católica ao nível da diocese, eu fui ao bispo e tudo. As da Terceira é que me guiaram, porque a gente tinha então grupos na Terceira, no Faial, em Santa Maria não. Tinhamos cá e não tínhamos no Pico. Mas pronto, e depois já concordavam que eu fosse e andei um bocado de mala às costas a fazer reuniões, encontros, a juntar todos, a falar nos primeiros objetivos, no que era a JOC e no que é que havia de novidade no movimento católico. P: Era o quê? Estamos a falar nos anos 60? Nessa altura, o que é que essa novidade? Manuela Medeiros: A novidade era a Juventude Operária Católica, uma juventude operária que tinha os problemas do trabalho, da vida do dia-a-dia e, além disso, tinha também a parte espiritual, que é o Evangelho. O Evangelho não era só aquela doutrina de que nós líamos aquele bocadinho, mas que pegávamos nele para a vida do dia-a-dia. Qual é a palavra de ordem que nós vamos levar agora para o nosso trabalho? Porque aquele grupo já estava todo a trabalhar, embora houvesse algumas que estudavam, que não queriam ir para o grupo daquelas estudantes, queriam ficar no meu grupo. Era alegre, como eu dizia, era muito alegre. A gente juntava-se em várias ocasiões, festejávamos as amigas, coisas que vocês lá não têm. Porque no Carnaval as quintas-feiras têm todas um sentido, tem a quinta-feira de amigos, quinta-feira de amigas, quinta-feira de compadres, quinta-feira de comadres. E então pelas amigas nós juntávamo-nos, juntava-se as paróquias todas onde havia. Era São José, a Matriz, era Santa Clara, São Sebastião, que é matriz, e São Pedro. Juntávamo-nos todas e era uma alegria... Não havia os discos, mas havia música gravada, havia alguém que sabia tocar o acordeão ou coisa assim. Elas gostavam muito e eu também. A gente gostava muito disso e a partir daí as pessoas tinham isso. O que é ligado à vida é isso, não havia várias gavetas, ou por outra, havia várias gavetas, como vários conhecimentos, mas todos unidos numa função. A JOC foi uma escola de formação grande para mim, que me preparou para a vida e que me ensinou a ligar o Evangelho à vida. A gente está sempre a pensar naquilo, mas como é que eu vou fazer isso? Tal e qual como a gente vê, ligado às leis do trabalho, o que é que é certo e o que é que é errado? Se eu estivesse aqui, o que é que eu fazia? Se eu tivesse aqui, o que é que pensava? Era sempre com esse princípio… Ainda no outro dia, não há muito tempo, tivemos um encontro, de vez em quando eles fazem, mas para toda a gente, para todos os leigos, encontros pastorais, e eu fui. E depois eu disse: “Olha, o que falta hoje na Igreja é a ação católica”. E estava o bispo presente e disse-me: “A ação católica já está desatualizada.” E eu disse: “Está desatualizada para quem não quer trabalhar. Porque a ação católica leva-nos a uma ação. E a ação é essa, não é falar de Deus a ninguém, é o nosso testemunho de encontro com aquilo que nós aprendemos daquilo que está escrito no evangelho. Isso obriga-nos a mudar e a dar um testemunho em que as pessoas acreditam e não é preciso estar falando.” Ainda ontem lembrei-me disso, porque era assim: “Não julgueis para não seres julgados.” Porque a gente às vezes tem uma tendência: Porque é que ela disse? Porque é que ela fez? Porque é que ela e assim? A gente tem isso, são nessas coisas que nós aplicamos. Não julgueis para não ser julgados. Porque tu tens uma trave na tua vista, não vês, mas vês na vista do outro, que é a crítica. São essas pequenas coisas que nós vivemos e por isso é que digo que a Juventude Operária Católica, para mim, foi uma lição e uma formação para a vida por uns belos anos, e foi isso até ao 25 de Abril. Mas no meio disso, na fábrica, as minhas colegas todas confiavam muito em mim. Depois veio o 25 de Abril e os patrões juntam-se, querem formar uma Junta Administrativa. Eu estava de férias, ligaram para mim. Eu vim das furnas de autocarro para o plenário. Ficou toda a gente admirada. Eu estava de férias, mas não fui proibida de entrar (nessa altura já trabalhava na fábrica há quase 20 anos). Depois eles levavam um papel e perguntaram se eu já tinha assinado aquilo e depois iam a outra fábrica de tabaco e eu disse às minhas colegas no plenário: “Vou dizer uma coisa, eu tenho orgulho de trabalhar na fábrica Micaelense, estou contente que as outras pessoas tenham assinado, mas aqui aos meus colegas eu digo, não estou a falar mal das pessoas que nem conhecemos, mas se assinarem uma proposta dessas, eu amanhã venho para o jornal e digo que tenho um grande desgosto de trabalhar para a Fábrica Micaelense.” (Já havia as máquinas, mas nunca despediram ninguém. As primeiras máquinas da terra, foi engraçadíssimo, foram feitas por um colega nosso, também de lá, era de cigarros. Era um trabalho muito, muito engraçado, e que envolvia muita gente). E ninguém assinou, nem os do escritório assinaram. E não era contra as pessoas, mas a gente não tinha uma explicação para que é que era aquilo. Pronto, era para criar uma junta governativa, era assim. Mas então era uma divisão, queriam separar-se do continente. Eram assim umas movimentações, mas felizmente, pronto, essa parte passou, depois houve outras, e depois entrei para os sindicatos. Um dia estava lendo, porque a gente já descontava para os sindicatos antes do 25 de Abril, e estava lendo o meu cartão do sindicato, que diziam tem dever disso, tem dever disso, tem dever disso... e eu disse: “Vocês leiam o que está aqui para ver se eu estou lendo bem. As pessoas: Isso é tudo deveres, a gente não tem um direito que seja.” P: Isso antes do 25 de Abril? Manuela Medeiros: Era o sindicato das indústrias transformadoras. Disse às pessoas: “O que é que vocês acham?” A gente discutiu e não tinha um direito que fosse. A gente tem de ir à Inspeção do Trabalho, mas nós próprias não confiamos na Inspeção do Trabalho. Então, e foi nessa data que pedi licença ao sindicato dos empregados de escritório, porque das indústrias transformadoras, que era para onde a gente descontava, era uma sala pequenina e havia um pormenor, eu não cabia ali. E então eles emprestaram-nos. Lembro-me perfeitamente. Tive de subir à mesa, porque aquilo estava cheio e as pessoas não viam. E pronto, a partir daí começou a movimentação, o interesse. P: Isso foi em que ano? Manuela Medeiros: Isso já foi em 1975, logo ao princípio, quando a gente começou a estar mais consciente daqueles movimentos. Essa já foi mesmo logo a princípio do 25 de Abril, depois começou-se então os sindicatos. P: Podemos recuar um bocadinho? Manuela Medeiros: Podes fazer as perguntas que quiseres. P: Se calhar, antes de irmos para o 25 de Abril, tinha algumas perguntas sobre o período anterior, se calhar até antes disso. Os seus pais trabalhavam na pesca, o seu pai trabalhava aqui na pesca? Manuela Medeiros: O meu pai era mergulhador… e não sabia nadar. É uma anedota, mas era verdade, todas as pessoas têm essa reação. O meu pai trabalhava ali na Junta Autónoma dos Desportos no Porto de Ponta Delgada. E uma vez eu disse-lhe que queríamos a ver o trabalho dele, como é que ele fazia. E eu fui. Aquilo tinha uns fatos muito pesados, umas botas muito pesadas. Os fatos era eu que remendava. E quando ele fazia serviço, nós íamos às vezes ao fim de semana, estávamos lá com ele na sua oficina, nós sentávamo-nos ali a ver. Mas um dia ele ia para um sítio pertinho, mais à frente, ali junto do estabelecimento prisional, não sei se já passaste lá, na Calheta, e ele disse que ia: “Então vamos.” E eu fui. Ele estava lá para baixo, nós estávamos cá em cima, porque tinha assim mesmo um portozinho, estava muita gente a ver. Ele ia tirar já não sei o que foi, alguma coisa que tinha encalhado de algum barco que valia a pena, mas deu-me uma aflição e eu não quis ver. Porque eu julguei, ele estava aqui, depois aparecia ali, depois aparecia acolá. Eu julguei que ele fazia isso porque estava agoniado. Olha, tomei um medo, eu também era novinha nessa altura, devia ter uns 14 anos. Estava a trabalhar, já, mas com os meus 14 anos não tinha a perceção daquilo. Então eu fui-me embora. Disse à minha mãe que não queria ver mais e pronto. P: E a tua mãe estava em casa? Manuela Medeiros: Era, na altura era quase tudo em casa. A minha mãe, antes de casar, trabalhava com outras senhoras na costura, eram chamadas aprendizes de costura. O que elas ganhavam era o que elas aprendiam, era assim, e faziam serões e tudo. Mas a minha mãe aprendeu, não sabia fazer, também a senhora não fazia, mas a minha mãe fazia muito bem roupa de menina e chegou a criar vestidos pequeninos para crianças de um aninho e tal. Ela criava e fazia, e para a gente chegou-nos a fazer muitos. Então para nós, há muito tempo, a gente adolescentes, chegou-nos a fazer vestidos muito lindos, para mim e para minha irmã, a mais velha já não foi. Foi três, uns vestidos beijes com a fazenda lisa e criou por si. Daqui aqui levava umas tiras, mas umas tiras dobradas que lhe deu muito trabalho. Mas era assim, o entrepano era mais abaixo. Eu vou-te dizer, toda a gente gostava, era muito giro. E ela sabia então fazer isso, entretinha-se e fazia para outra gente. Eu tenho uma sobrinha neta, aquela que está ali, eu disse: “a tua bisa, se fosse viva, ela fazia-te o vestido”. Não queria. Eu disse: “Ela fazia vestidos bem lindos. Tu não sabias, ela não te ia fazer um vestido feio”, assim na brincadeira. Mas ela aí criava. Ela criava e sabia. P: E tu, não chegaste a casar? Manuela Medeiros: Não, não. Nunca namorei nem nunca casei. P: Porque lá na fábrica de tabaco era essa a regra? Manuela Medeiros: Não, não. Antes pelo contrário, havia alguns que brincavam e alguns que diziam coisas. Havia um que dizia assim: “Não sei como é, gostas tanto de crianças e não pensas num casamento ou coisa assim?” E eu disse: “Também se eu quiser ter um filho não é preciso casar.” Portanto, essas coisas assim. E à medida que elas iam saindo, a fábrica nunca ficou com maior percentagem de homens do que de mulheres. Só mais tarde, se calhar quando eu saí, à medida que iam saindo ou coisa assim. Sempre tivemos mais mulheres e do que homens, os homens eram mais na mestrança, à frente das máquinas, os técnicos de máquinas, assim. Havia mulheres que depois também já estavam, algumas raparigas à frente de máquinas e que sabiam tal como eles. E às vezes acontecia se havia alguma pessoa grávida, os patrões não podiam saber porque se não eram mesmo despedidas, aquilo era um segredo. E não havia os seis meses nessa altura, era a questão da produção que não podiam dar igual ou coisa assim, iam faltar mais ao serviço. É ganância, digamos assim, tanto de despedir como de lucro que havia as duas coisas. P: E as mulheres ganhavam muito menos que os homens não era? Manuela Medeiros: Ganhavam. Não havia assim grande diferença para aqueles que não estavam ligados a coisas qualificadas, mas já havia diferença. Aquilo era, em escudos, 6,30 e depois lembro-me de chegar a 9, não sei. Até fizemos uma festa com o primeiro salário mínimo que tivemos. Veio o 25 de abril e eu não conhecia uma nota de 1000 escudos. Quando eles ganharam os 3600, nós recebemos 3300, porque a maior parte que estava lá, era de facto uma maior parte, não recebia mil escudos, mesmo os homens não recebiam. Mas depois foi-se aproximando, mas não vou dizer que nunca se igualou, portanto houve essa diferença e depois veio esse aumento. P: Isso foi já depois do 25 de abril.... Manuela Medeiros: Sim, sim, sim. Primeiro o salário mínimo de 3300 entrou em vigou. Foi uma boa mão cheia, mas aí ninguém se desculpou, ninguém foi dizer que não queria, oh, que não queria. A gente só disse assim: “se fosse dividido por coisas, agora não sentiam tanto e nós tínhamos lucrado muito mais.” A verdade é essa. A gente sabe que os preços e o custo de vida eram elevados, mas dava perfeitamente. O primeiro trabalho que nós tivemos nos sindicatos (eu não era da direção nem nada, mas falei com a direção), fomos para lá por causa do custo de vida, do aumento do custo de vida. Depois para pagarem os salários, aumentavam noutras coisas e o poder de compra diminuiu. Pusemos uma mesa no salão do sindicato, tipo exposição, para sensibilizarmos as pessoas para essa coisa dos aumentos. Porque de nada servia um aumento salarial com o preço de vida a aumentar. P: Isso foi em que ano? Manuela Medeiros: Foi logo a seguir ao 25 de Abril. P: E antes do 25 de Abril, houve alguma reivindicação na sua fábrica? Manuela Medeiros: Sim, a primeira que houve já era por salários e houve noutra, que era também de tabaco. E aí conseguimos mas um aumento pequenino, mas que se conseguiu igualar, digamos, ao subsídio de natal. Porque enquanto umas lá na fábrica recebiam subsídio de Natal de um mês, as do escritório, nós recebíamos à quinzena, era menos 15 dias. E depois nós começámos a ver que não era certo. As do escritório ligavam para mim: “Oh Manuela, já vieste agradecer ao patrão?” “Agradecer ao patrão o quê? Não tenho nada a agradecer.” Vocês têm, mas eu recebi 15 dias, não tenho nada que agradecer. Então, lá fui ao escritório e o patrão: “Oh Manuela, alguma coisa?” E eu disse: “Eu não venho agradecer, ao contrário das minhas amigas, eu venho pedir. Venho pedir, mas não venho pedir um favor ao senhor. Venho pedir é para a fábrica, porque a fábrica somos nós todos. E o senhor, se der, é da Soares Pereira e o que venho pedir não é para mim. Venho pedir é um colchão para um casal que não tem condições nenhumas de viver e são idosos.” “Pronto Manuela, mas então queres que seja em nome da fábrica?” “Porque a fábrica somos nós, trabalhadores, que estamos a dar. E se for o senhor a dar é o seu nome. Portanto, há uma grande diferença, sim.” E depois ele assim: “Queres colchão e a cama?” Eu disse: “Isso também.” “Então vai escolher e a fábrica depois manda um carro buscar e vai entregar onde tu mandares.” E depois ele também disse: “E roupa para a cama?” Quem teve essa iniciativa foi um grupo que se juntava para questões sociais de ajuda. Mas nós não queríamos que as pessoas sentissem que aquilo era esmola. Há uma diferença. E então eu disse: “não senhor, nós também temos que sentir uma coisa do grupo, esse grupo que teve essa iniciativa, essa iniciativa não é só minha. Então nós, o grupo, é que vamos dar os lençóis, os cobertores, nós é que vamos dar.” E correu bem e depois foi feito tudo como eu dizia e ainda ficou uma ou duas a limpar a casa, aquilo não era uma casa, era uma garagem. Fomos limpar, era a tia Maria e o senhor António. E o senhor António chegou-se ao pé de mim e disse (chamava-me menina Maria): “Oh menina Maria, quando viu tudo feito [tinha muitos gatos, os gatos sujavam aquilo tudo], como é que me vou deitar naquela cama?” “Oh senhor, como se deitava na outra, é sua, mas agora já não é nada nosso. A gente vai continuar a vir fazer visitas, mas isso é tudo seu, é tudo vosso”. E foi assim, essa ação também foi bonita. Mas então é a tal parte para eles não sentirem que é esmola. Eu vou-lhe dizer uma coisa que eu gostava também de contribuir para essa despesa. Eu disse: “O senhor, nós ainda estamos devendo, mentira, estamos devendo o resto do colchão. O tio António vai-nos dar todas as semanas dois escudos e meio.” “Sim, senhora, a menina vem aqui buscar?” “Venho sim senhor.” Pronto, quando eu ia lá ele dava os dois escudos e meio e eu nunca disse que o colchão estava pago. Não é que um dia eu estava constipada e depois eles mandaram um recado e eu fui ver alguém doente que estava no hospital. E andava um enfermeiro: “menina Maria, menina Maria”, não sabia quem era. As enfermeiras não sabiam quem era menina Maria. “Senhora, é consigo?” “É comigo.” “É que está lá um senhor, que já está com biombo, que quer falar consigo e diz que tem que falar com a menina, ele já estava com um biombo para morrer.” Eu fui lá e ele disse-me assim: “menina Maria, é só para lhe perguntar quem é que vai pagar o resto do colchão.” E eu não tive coragem de dizer que o colchão estava pago. Eu só disse: “Tio António, o grupo, que gosta tanto de si, não o vai deixar mal. Nós pagamos o resto, só falta um bocadinho.” E pronto, morreu uns minutos depois. Foi das coisas mais maravilhosas também. Isto para dizer que na ajuda que damos aos outros, temos de ter o cuidado de não ferir a sensibilidade das pessoas e de lhes pôr, com aquilo que eles podem (até que seja limpar ou lavar) a colaborarem para aquilo que vai ser bom para eles, para eles sentirem a coisa sua. E muitas coisas em que há estragos, que há, é aquilo a que eles não dão valor porque não sentem as coisas como suas. E tudo o que fazemos é sempre nesse intuito: dá de graça para receberes de graça. P: Esse grupo era ligado também à JOC? Manuela Medeiros: Esse grupo sim, tinha ligações à JOC, mas não era todo. Nós chamámos aqueles que quiseram colaborar nessa parte social, digamos assim. E nem todos queriam. Quando foi da tia Maria e do senhor António, foram mais pessoas de fora para levar a cama, para armar a cama, para levar o que não prestava. Não foi brincadeira, foi muita coisa. E, cá está, nós também não queríamos, só queríamos aquelas que tivessem mais intimidade, para não os deixar vexados com aquilo. Nem toda a gente conhecia o ambiente. Essa foi das ações muito concretas. Reivindicávamos as férias, que só tínhamos uma semana e os outros tinham 15 dias. Nós queríamos as férias iguais, porque trabalhávamos os 365 dias como aos outros. Conseguimos assim alguma coisa antes do 25 de Abril, conseguimos as férias e já não me lembro se conseguimos o subsídio. Também não quero dizer coisas sem ter a certeza… P: E como é que se organizavam essas reivindicações? Era através da JOC? Manuela Medeiros: Não, tínhamos essas que já tinham essa parte social, a JOC também tinha uma parte social. A Juventude Operária Católica mete o Evangelho em tudo aquilo que é justiça, que é verdade. Muita gente, muitas daquelas e daqueles que estavam na JOC gostavam do ambiente, digamos assim. Era um ambiente leve, era um ambiente alegre, era um ambiente em que nada era exigido. As pessoas iam se queriam, as pessoas faziam se queriam. E depois havia sempre os mais responsáveis, que tinham de dar conta e dinamizar, mas não eram obrigados. Por exemplo, aquele grupo de novas ia à vigília e a mais coisas que nós fazíamos, era assim. Ninguém era obrigado, mas sempre nos juntávamos. Essas coisas faziam muito bem, faziam muito bem a todos. E depois, quando havia uma festa, o padre anunciava. A missa era toda cantada. Nós, em Santa Clara, é que começámos, porque eu fui escolhida para representar os jovens à Suíça. Isso em 1968. Aquilo era tudo em francês, eu passei fome, porque não gostava daquelas comidas e um dia eles dão-nos assim umas coisas nuns copos. Eu fiquei tão contente que aquilo era um sumo, era sopa. Eu não gostei nada da sopa, mas pronto. Mas tinha uma que se chamava Manuela Varela e ela, então, guardava para mim o pequeno-almoço, aquelas coisinhas de doce, porque sabia que eu não gostava da comida. Ela guardava e era o que eu comia durante o dia. Uma vez tínhamos a tarde livre e os franceses perguntaram se eu queria ir com eles num passeio. Claro que eu fui, a chefe do grupo, nós tínhamos uma chefe de grupo que era do continente, nessa viagem fomos 14, e cá dos Açores fui só eu. A Lurdes, ainda é viva, disse assim: “Mulher, vai, tu vais gostar tanto”. Era para conhecer, mas também queria comer alguma coisa. Como eles sabiam que eu cantava, enquanto eles comiam, eu cantava. Mas foi tão bom, cantei coisas da minha terra, cantei coisas também do continente, alguma coisa que eu sabia. Não era muito assim, mas cantei e depois à noite houve um serão, eles puseram-me uma capa preta de estudante, os nossos de Lisboa, e cantei um fado de Coimbra. Isso é terrível porque eu sei a música, mas não sei a letra. Mas então cantei: “Coimbra tem mais encanto [canta a primeira frase]”. Olha, apagaram-se as luzes, só acenderam os isqueiros. Eu comecei a inventar letras: “Quando nós não temos dinheiro, temos a solidariedade dos amigos, como abrir os frigoríficos e ver aquilo que pode servir para mais”, essas coisas assim, olha, fomos sempre safando, mas foi lindo. Lembro-me que a minha mãe me fez um fatinho verde, desse verde assim, e uma blusinha amarela. Os rapazes chegaram lá, portanto, homens despiram antes de almoçar, despiram, ficaram em tronco nu, foram-se lavar daqui para cima, vestiram uma blusa, uma camisinha lavada. As mulheres que iam mais finas, cheias de esterco e essas coisas assim, da transpiração, do comboio e da terra. Mas fomos embora assim, porque não tínhamos onde nos mudar. P: Esse encontro era da JOC Europeia? Manuela Medeiros : Era JOC internacional… P: O que é que discutiam nesses encontros? Manuela Medeiros: Nesses encontros da JOC internacional já discutíamos coisas relacionadas com o meio ambiente. Não essa coisa «climática», mas o meio ambiente: respeitamos o meio ambiente, não fazemos fogueiras nem queimas, na altura do Verão. Discutíamos como ocupar os tempos livres. Os franceses é que foram responsáveis por aquela parte da Liturgia naquele dia de como ocupar os tempos livres. Foi engraçadíssima a ideia deles. Eles levaram bolas, eles levaram rádios às costas, eles levaram coisas de jogar póquer e isso tudo, tudo o que eles gostavam de fazer. Levaram livros, levaram cartazes para chamar a atenção das pessoas que estivessem e que não pertencessem ao nosso grupo, como ocupar os tempos livres, como eram necessários os tempos livres, como era urgente a gente ter férias, os trabalhadores todos terem férias. Também foi muito bonito, em 1968. Lembro-me que foi a primeira viagem que eu fiz assim. Parei primeiro em Lisboa e depois fui de comboio, não fui de avião. Por isso ficámos todos cheios de esterco, claro. Mas aquilo tudo era alegria, tudo era folia. P: E como é que era a relação da JOC com a ditadura, havia problemas? Manuela Medeiros: Sim, não havia liberdade. O 25 de Abril, o que me deu de novo foi liberdade de expressão, sobretudo, e de escrita. Não me deu mais nada, a maneira de eu ser, a maneira de sentir, já sentia da formação da JOC, da minha escola de vida. O 25 de abril deu-me foi liberdade de expressão. E depois veio o 1.º de Maio, já depois do 25 de abril. Uma vez, lembro-me perfeitamente, no primeiro ano em que o Mário Soares nos queria descontar 2,8 % de subsídio de natal. A gente juntou-se numa campanha contra. Fomos para a Igreja Matriz. Nós tivemos que ter uma licença da câmara. Fomos à Câmara, claro que ela nos deu a cópia assinada e tudo. Estava eu a dizer: “Não nos roubam 2,8! Queremos o subsídio por inteiro, não é dividido, não é roubado!”. E veio um polícia: “Vamos acompanhá-la a casa.” “A minha casa? O senhor não está bom, eu sei onde é a minha casa. Eu tenho de estar aqui até às 7h00, às 19h00. Os trabalhadores saem às 18h30 e eu tenho que estar aqui até às 19h00, que é para eles nos apanharem, porque a gente também estão contra isso. Eles não querem ser roubados 2,8. O senhor gostava que descontassem o seu subsídio? O senhor também não quer.” “Oh, senhora, mas eu fui mandado.” “Mas diga ao seu patrão que eu não vou porque eu tenho isso aqui, olhe, a Câmara assinou. O senhor presidente da Câmara está cheio de dores cabeça. Olhe, o senhor presidente da Câmara pode ir para a sua casa quando quiser, quem não pode ir para sua casa são os funcionários. Ele pode ir para a sua casa, passe no hospital, trate de si e vá-se embora, não sou eu.” E foi assim. Depois ele veio outra vez e não me lembro. E a polícia quando falava comigo tocava-me no ombro e eu estava com mais homens. Não era uma multidão muito grande, mas estava aquele quadrado assim. E eles mais assim perto de mim, a polícia: “Oh, senhora, a senhora aceite, a gente vai... “ “Já disse que não vou, os senhores para onde me podem levar é para a Boa Nova – a Boa Nova era a cadeia, era a prisão –, porque aí eu não vou sozinha. Para a minha casa eu vou à hora que eu quiser, sei onde é, não preciso de companhias, desculpe lá”. E pronto, nunca vim embora, mas aí um senhor que estava ao pé de mim, era um trabalhador, disse: “Eu vou dizer uma coisa, você não toca mais nela. Eu não me responsabilizo, o senhor, por favor, não toque mais nela.” Olha, quando a gente dá por nós, já não havia só um polícia. Aquilo à volta eram uns 30 ou 40, eles estavam juntinhos, rodeando aquilo tudo e a gente lá no meio. E eu disse: “Olhem meus amigos, a polícia também não quer que lhe roubem o subsídio, estão todos aqui porque não querem que lhes roubem o seu 13.º mês.” Fazíamos isto com muita convicção e também com muita confiança naqueles que me rodeavam. Eu nunca estive sozinha em nada, eram poucos, mas eram bons. Porque às vezes o que tem valor não são as maiorias, mas quando as minorias são boas. E eu tive sempre isso, também havia muitos que eram contra, claro. Mas havia também aquelas que eram minhas amigas na JOC que quando me veem no sindicalismo começam a acusar-me de comunista. Eu era voluntária e ela diz assim: “Ai Manuela, que bom, desde que tu és voluntária que és muito mais católica”. E eu disse: “Eu não conheço a senhora de lado nenhum, como é que a senhora me pode ajuizar, de um valor daquilo que eu sou, de uma coisa que não conhece. Eu não sei se sou mais católica ou não”. “Ai não, a gente nota.” “Nota o quê? Eu vou-lhe dizer: eu não a conheço de lado nenhum.” “Ai, mas a gente no nosso grupo, a gente reza pela Manuela.” Eu disse: “Olha que bom, enquanto vocês rezem, dão-me mais força.” Disse: “eu estou contente, mas diga ao seu grupo que também lá há um dizer que a senhora está usando e que está lá escrito, ‘não julgueis para não seres julgados’. Não se esqueça, marque isso na sua cabeça.” Pronto isso é, são métodos muito ricos. P: Como é que foi o 25 de Abril, o dia 25 de abril? Manuela Medeiros: Ai, o 25 de Abril, eu vou-te dizer, querida. Quando foi o 25 de abril, claro que eu ainda estava a trabalhar, tinha um amigo que era distribuidor de tabaco (a minha secção era de onde saía o tabaco). Eu trabalhava com um guarda, que era fiel da alfândega e eu era fiel da fábrica. E então, eu estou a fazer o pedido, a requisição deste senhor que chegou lá (este senhor já faleceu há muito tempo e eu gostava tanto dele, era uma pessoa tão séria), eles foram distribuir o tabaco, e ele cheio de medo: “Manuela, anda aqui, anda aqui.” E eu disse: “sr. Flávio, porque é que me estás a chamar logo de manhã? O que é que te aconteceu?” ”Houve uma revolução em Lisboa.” “Ah, sr. Flávio, eu ainda não ouvi dizer isso.” Já eram umas 8h30 da manhã ou 9h00 e eu disse assim: “não ouvi.” “Ah, vai-te sentar no meu carro.” Porque ele tinha rádio e estava ouvindo. “Epá é verdade, como é que eu vou fazer isto? O que é que eu ia fazer?” Eu fiquei... uma revolução. Liguei para alguém de mais confiança, mas nesse dia não fizemos nada. Foi tudo para os seus…, tudo queria era ouvir notícias. Eu vim para casa, lembro-me perfeitamente, comprei rebuçados. Nós tínhamos um rádio antigo, muito grande, não havia televisão, havia um rádio. Tomei banho, vesti o pijama, fui para ali, a minha cozinha não era assim, portanto não tinha aquelas obras, era mais simples ainda, fechei tudo e levei toda a noite a comer rebuçados e a ouvir notícias. No outro dia fiquei tão mal-disposta. Cheguei à fábrica, depois fui falar com um, falámos com outro: “Hei, isto tudo vai mudar, agora e que vai ser ela, agora e que não sei quê... o fascismo nunca mais? É!” Então a gente vai é para a rua e pronto. E a primeira manifestação que houve eu não pude ir, porque estava num serviço de responsabilidade na fábrica, que era quando fazíamos a exportação para América. Aquilo era mais difícil. E eu não queria dar a responsabilidade a outra pessoa. Ia para a manifestação e depois, se houvesse um erro? Então a outra foi para a manifestação, mas teve um papel determinante, no Governo Civil. Há fotografias dela. Ela entrou e foi para a varanda gritar: “Fascismo nunca mais!” Ela com mais duas ou três, foi engraçadíssimo, foi engraçadíssimo. Foi uma grande força. Ela já faleceu, foi na América, porque ela depois ainda embarcou. Chamava-se Fátima. Eu não queria acreditar quando ela me disse: “tu vais ver, vais ver fotografias, eu vou comprar.” Eu disse: “tu vais comprar e eu vou-te que dar dinheiro e também quero.” E pronto, foi assim, houve coisas muito interessantes. E depois as pessoas começaram a juntar-se, aqueles que tinham mais confiança, analisando o que é que era. Porque a gente antes vivia, eu vou-te dizer… A gente, na fábrica, no tempo em que eu estive lá, mesmo antes do 25 de abril, uns 20 anos à vontade, eu nunca sofri lá dentro represálias do fascismo. A fábrica sempre teve uma parte socialmente positiva. Dava-nos a alimentação. Tinha salários baixos, tinha a divisão das férias, essas coisas assim. Quer dizer, um patrão copia aquilo que o outro faz, porque eles não querem descer os seus lucros. Era assim, mas nunca tive... Sempre falei com eles: “a gente vai festejar as amigas. Está tudo avisado. Telefonei para o comercio todo que nos fazia pedidos para aquele dia, naquela época, que quinta-feira é tarde de amigas, para não nos telefonarem.” E mesmo no dia antes, a gente trabalhava de maneiras a mandar tudo, para as ilhas, tudo, para ninguém nos pedir nada, para não faltar nada a ninguém, era assim. Portanto, eu sempre tive uma coisa a meu favor, que me ajudou nesse sentido. O que queria dizer de um patrão ia-lhe dizer, nunca mandei dizer por ninguém. Porque a gente nunca sabe como é que vão dizer. E desde que apanhei um amigo meu em falsidade… Pronto, são coisas que às vezes acontecem e a gente quando apanha, apanha. E depois a gente orienta-se de outra maneira e foi o que fiz. Ainda hoje em dia ele aqui vem. Já não nos juntamos tanto, mas não há nada como a gente dizer na cara das pessoas aquilo que a gente sabe. Porque guardando para nós destrói-nos. A gente assim liberta-se do veneno que tem cá dentro. É uma maravilha. Uma vez, lembro-me, uma segunda-feira, três irmãs, que eram tão amigas, foram fazer queixa de mim, depois de um fim-de-semana em que eu nem estive com elas. A gente foi-se embora todas bem, porque é que elas…? Não sei. Foram falar com o patrão e eu fui atrás delas. Cheguei à porta, estava o meu patrão e elas, e eu bati. O patrão disse: “Abre, abre” – porque ela sabia quem era. Então disse: “Podes entrar, Manuela.” Ele disse: “Manuela, é alguma coisa?” Eu disse: “Não senhor, não é nada, eu só venho saber de que é que essas minhas colegas vêm fazer queixa de mim. Porque se elas vierem sozinhas eu não me posso defender. Eu tenho de estar aqui.” Aí elas ficaram.... O patrão disse assim: “A tua secção é um confessionário, vocês que se vão embora todas.” Depois eu disse: “Então o senhor não chegou a saber o que é que elas vinham dizer?” “Eu não tenho gosto de saber.” Então eu nunca soube o que é que elas iam dizer. Portanto, é assim, ou a gente tem que ter coragem e enfrenta ou a gente desanima. Claro, há coisas que às vezes não correm como a gente quer. Depois tivemos a primeira manifestação, no Dia dos Trabalhadores, no 1.º de Maio, logo a seguir ao 25 de Abril, e eu não gostei nada. P: Porquê? Manuela Medeiros: A gente começava sempre com pinturas no campo com as crianças. Aí, às mil maravilhas, cantando, brincando, tudo. E depois tivemos um encontro no Coliseu, digamos assim, um plenário para informar os trabalhadores e tal. Eu também fui. Nós corríamos por todos para não serem sempre os mesmos, a verdade é essa. E como eu ia à televisão, disse “não, eu vou à televisão, é melhor a gente variar.” Eles tornam-se também mais responsáveis. E eu depois disse: “Fico então num Avé Maria em Latim, na Igreja de São José, um casamento de uns amigos meus, um casal.” E o que é que acontece na igreja? O Padre, que que Deus o tenha num bom lugar, disse assim: “Agora, antes de eu vir para aqui para essa cerimónia, para essa missa, vinha um grupo.... P: Estavas a contar-me do casamento no 1.º de Maio? Manuela Medeiros: Fomos cantar, eu cantei a Avé Maria e voltei para o campo, que tinha um quiosque, onde tínhamos a parte do encerramento. E depois alguém veio ter comigo e disse: “Manuela, tu já viste que começaste o teu dia de hoje e o que é que já se passou?” Eu disse: “Ai lembro” e a gente tem isso tudo escrito, porque eu também fazia parte da organização e disse: “Olha, eu comecei com as crianças a pintar no campo, cantando coisas para as crianças, elas dançando, os que pintavam, pintavam-se uns aos outros, isso tudo.” Depois fomos comer qualquer coisa porque íamos para o Coliseu. No Coliseu, já não me lembro quem foi que tinha a apresentação da sensibilização para o 1.º de Maio, a importância que era de comemorar o Dia dos Trabalhadores, os motivos que levaram para isso, realçando a liberdade, porque antes do 1.º de Maio nós tínhamos feito uma manifestação oito dias depois do 25 de Abril, a primeira manifestação, oito dias depois, que foi grande, linda. Mas eu não fui, havia uns outros, uma meia dúzia, gente que trabalhava já contra o fascismo, mas às escondidas claro, e esses depois saíram e fizeram uma grande manifestação, alguns deles já morreram. Tirando aqueles que estavam à frente, nós não tínhamos cravos, uns levaram azálias, que é uma flor que é parecida com o cravo, quando está fechadinha, e há vermelhas. Outros iam sem nada, com faixas do 25 de Abril, e pronto. Nessa primeira manifestação, acho que o Lourenço ainda não estava cá. Depois começou a ir para as outras e a organizar as outras, mas não estava cá. Essa foi mesmo a associação, que depois teve o nome de associação, que não era, era um grupo de antifascistas, digamos assim, que se reuniam. Portanto, era um grupo de que eu não fazia parte, porque não sabia sequer que existia. E depois, quando dessas manifestações, então disseram-nos, mandaram-nos cartas para os trabalhadores, para as fábricas, para os plenários. A gente ainda não tinha aquela postura de fazer os plenários, tinha sido oito dias depois. Não dava para isso. Mas fizemos e tivemos ainda um bom grupo nessa manifestação, uma manifestação muito boa, dessa associação. Portanto juntaram-se todos na Matriz, e viemos por lá, todos cantando, avisando, e houve um carro com micro a avisar todos os que queiram contra o fascismo e aqueles que tinham as palavras de ordem. Aí já havia a partidos clandestinos, como o PCP, e então também se juntaram e foi uma grande manifestação. P: E tu foste com quem? Foi com essa associação? Manuela Medeiros: Fui nessa manifestação, misturada ali com eles. P: Como é que conheceste as pessoas dessa associação? Manuela Medeiros: Eu conhecia-os de cá, não sabia é que eles pertenciam a nada. Não, eu não sabia. Pronto, tinha um que eu sabia que era de esquerda, dizia que era de esquerda, nem sequer sabia distinguir muito os de esquerda dos de direita e essas coisas assim, não tínhamos esse palavreado. Só havia um que era mesmo de esquerda. E ele dizia, numa reunião que nós tivemos, que ele também foi da JOC: “Sabes, Manuela, eu agora sou ateu.” E eu disse: “Olha que bom, cada um é aquilo que é, que bom tu seres ateu, eles já não estão sozinhos, já têm mais uma pessoa.” Mas uma vez estávamos numa reunião e não estavam a dar as coisas certas e ele disse assim: “Ai, meu Deus...” e eu disse assim: “Como é? Então tu és ateu, como é que estás chamando por Deus?” Eu disse: “Mas tu tens razão, porque de facto Deus também gosta dos ateus, para não fazer exceção de pessoas, deixa-te estar onde estás.” É uma questão de a gente estar atentas, mas pronto, nunca criei inimizades com ninguém por causa disso. Na fábrica, nesse tal plenário, alguns diziam: “Desconfiaste dos nossos patrões?” “Não desconfiei.” Ninguém desconfiou daqueles senhores que não conhecia, nem do meu patrão. Como é que eu desconfiei dos meus patrões? Não estava ali nenhum deles. P: Essas comissões administrativas, eram... Manuela Medeiros: Governativa, era uma que era para formar um novo governo já depois do 25 de Abril, sem a gente conhecer quem era... P: Eram os separatistas? Manuela Medeiros: Não eram ainda… Bom, não quer dizer que não tivessem ali algum separatista, porque se calhar estavam à mistura, mas eu agora também não quero afirmar. Porque depois é que foi a FLA (Frente de Libertação dos Açores), que era os separatistas. Pronto, eram os separatistas que inclusivamente... aqueles que não eram do grupo deles não podiam vestir azul, que eram as cores da nossa bandeira. Eles não gostavam. Portanto, se eu vestia azul, era a bandeira deles, e eu não me devia identificar com uma coisa que não concordava. Mas eu queria era a cor, não estava a pensar naquilo que eles eram. P: Mas essa comissão governativa era contra o 25 de Abril? Essa da fábrica que queriam que assinasse… Manuela Medeiros: Eu não sei o que é que eles queriam, o que é que eles eram, porque eram os tais que eu não conhecia. Eu estava nas Furnas, vim para saber o que é que era, mas não que tivesse conhecimento, não conhecia as pessoas. Eram pessoas, como é que eu hei de te dizer, mais ligadas ao capital. Nem sei se alguns eram patrões, eu já não me lembro. Mas pronto, eles foram-se embora, a gente não assinou, e ficou por isso mesmo, acabou. Nem os meus patrões, nunca disseram nada sobre isto, nunca, tenho que dizer a verdade. Só aquele que eu disse, mas pronto, eu não liguei e depois não sei se foi longe demais, mas pronto. E continuaram sempre, quando a gente tinha os plenários. Tivemos de ir para os regulamentos para saber quando podíamos convocar os plenários, essas coisas todas, os estatutos, os estatutos da empresa, que foram criados. O meu sindicato não tinha estatutos, tivemos de fazer os estatutos e cada um depois foi-se organizando nas suas direções, eleições, essas coisas assim, levou o seu tempo. P: Foi logo a seguir ao 25 de Abril que começou essa dinâmica de criar sindicatos? Manuela Medeiros: Sim, sim, havia os sindicatos, não estavam era organizados, não defendiam nada. P: Os sindicatos corporativos, não é? Os sindicatos nacionais? Manuela Medeiros: Eles não tinham o nome de corporativos, havia era o sindicato das indústrias transformadoras e serviços. Depois havia o dos escritórios e venda. Depois havia o dos transportes e turismo. E havia alimentação e bebidas. Mesmo assim, o da alimentação e bebidas era mais difícil para nós. Era um setor fácil de cativar, mas era o mais.... Com o dos escritórios, a gente dava-se às maravilhas, mas o de alimentos e bebidas... Tem a ver com os dirigentes, com aqueles que se querem impor, com aqueles que são melhores... Mas quando era para juntar para o 25 de Abril, a gente colaborava com a associação e conforme as despesas cada sindicato dava tanto. P: Como é que chamava associação? Manuela Medeiros: Era mesmo Associação 25 de Abril e ainda continua. P: E começaram a começaram a criar os sindicatos... Manuela Medeiros: Começámos a criar os sindicatos a partir do 25 de Abril. Portanto, num sinal de liberdade, mas também de responsabilidade e de defesa daqueles que também confiaram e nós e nos elegeram. Começámos a criar primeiro os estatutos, depois as eleições, para as pessoas irem tomando conhecimento. Eles e eu, que também não sabia. P: E tu ficaste dirigente do sindicato... Manuela Medeiros: Das indústrias transformadoras. Primeiro, não fui eu, foi um senhor que existia antes, que era da Fábrica do Açúcar. Depois dele é que fui eu e depois de mim já estiveram outros. P: E coisa que foram assim as primeiras atividades que desenvolveram? Manuela Medeiros: As primeiras atividades foram para dar conhecimento às pessoas, aos trabalhadores, acerca do que era o 25 de abril, quais eram as vantagens que nos dava. Começámos a fazer debates individuais em plenário, para juntar mais, para verem que havia gente diferente também, foi mais nesse sentido. Mas tínhamos atividades conjuntas, essa do 25 de abril foi sempre. Cada sindicato tinha a sua festa própria e depois, então, quando era o Dia do Trabalhador nós fazíamos assembleias com os dirigentes, para que cada um desse a sua opinião, e depois íamos para os sindicatos e para as fábricas também fazer plenários. Era assim. Os sindicatos dos escritórios sempre colaboraram connosco, sempre. Depois os da alimentação e bebidas também iam, mas era com mais cerimónia, digamos. São feitios das pessoas que a gente não pode mudar, é assim. P: Conseguiram uma boa adesão dos trabalhadores e das trabalhadoras nessa altura? Manuela Medeiros: Nos sindicatos? Sim, sim. Porque as pessoas já descontavam, eu já não me lembro quanto é que eu descontava para o sindicato. Depois também tivemos de ver o problema das quotas, porque tivemos que organizar os sindicatos com funcionários. E depois disso, antes do aumento de quotas, tivemos de saber como é que a gente ia pagar. É todo um trabalho que se faz e que demora o seu tempo. E defendíamos mesmo os que não eram sindicalizados. Nós tivemos um problema de um setor da Ribeirinha, que era uma fábrica que fazia fitas para máquinas e elas faziam isso em linho, na Ribeirinha. E um dia foram despedidas e foram ter connosco e nós fomos defendê-las e ganhámos. Nessa altura tínhamos o primeiro presidente [do Governo Regional], João Bosco Mota Amaral, e já não sei a propósito do quê, nós tivemos uma coisa conjunta, em que ele estava também, assim qualquer coisa do governo que ele convidou os sindicatos. Eu fui e essas já não iam receber o décimo terceiro mês, estavam despedidas. Mas ele tinha ido à fábrica, quando os americanos vieram abrir essa fábrica, com televisão e tudo, e ele deu um grande elogio, não sei quê mais. Quando a fábrica fecha, de repente elas aparecem. E ele começa a falar, a desejar as boas festas, era Natal, qualquer coisa do governo que ele convidou os sindicatos, e a falar, e disse: “Os sindicatos o que é que esperam do Natal? Toda a gente quer as suas famílias…” Eu disse: “eu queria que o senhor, com uma palavra vossa, ligue para a Segurança Social – que não pagava porque não queria fazer horas extraordinárias na semana do Natal para pagar aos trabalhadores – para fazerem o favor de pagar aos trabalhadores da Ribeirinha antes do Natal e basta só essa palavra, senhor presidente. Mas eles não querem, eles dizem que não vão fazer horas para pagar aqueles trabalhadores. Mas eles já têm o seu, senhor, isso não está certo. Como é que aquela gente que ganha salários mínimos vão passar o Natal?” Ele telefonou e eles receberam. Também reconheço que em sítios pequenos as coisas são mais fáceis, mas não esperava que eles dissessem uma coisa dessas. E o meu nome não apareceu nisso. P: E quais é que eram os principais problemas que tinham os trabalhadores aqui em são Miguel, quando foi o 25 de Abril? Manuela Medeiros: Quando foi o 25 de Abril, os principais problemas que tinham eram esses mesmos: de férias, de não ganharem igual, de não haver revisão de carreira. Não havia formação. Depois fomos sentindo a necessidade, fomos chamando pessoas. E depois, mesmo entre os sindicalistas havia alguém com mais sabedoria, aqueles que trabalhavam nos computadores e que faziam os quadros e essas coisas assim ajudavam-se uns aos outros nesse sentido e davam essa formação. E sobretudo a coragem e o perder o medo. Não havia razões para ter medo. Com casos concretos, não havia, se havia queixas, eles vinham e diziam mesmo, se for descontado horas ou isso, vocês vêm que a gente trata. Quem diz o medo, não era só meu, os outros tinham também, às vezes as horas extraordinárias que não eram bem remuneradas... E não estão a ser agora. Estamos a voltar atrás neste sentido. P: Foi necessário organizar alguma greve ou movimento? Manuela Medeiros: Sim, tivemos uma greve geral, tivemos uma greve geral cá. Credo, eu trabalhei para aquela greve geral. P: A de 1982? Manuela Medeiros: Foi, foi a nível do país. P: Como é que foi aqui? Manuela Medeiros: Adesão total, total, credo. Andámos de noite, no carro de um, no carro de outro, vigiando a fábrica de um, a fábrica de outro. Andamos nisso, a telefonar, não era telemóvel, percebe? Não foi brincadeira. O meu sindicato estava de serviço ao telefone. Havia uma parte central, o meu e o dos escritórios. Eles é que iam comunicando com os outros. Foi total. Depois fizemos ma manifestação de alegria, todos, como foram capazes, como a gente... a união faz a força, essas coisas assim. Pronto, e houve também muitas greves de setores, sim, sim. Houve várias greves de setores. P: Dessas de setores, consegue lembrar-se as que foram mais importantes? Manuela Medeiros: Parece-me que em cada setor era importante quando se convocava uma greve. Pronto, umas tinham mais adesão do que outras, a verdade é essa. Eu lembro-me que tive um colega na fábrica que estava lá há pouco tempo e não aderiu à greve geral. Eu disse: “O que é que vais fazer? O que é que vais fazer, está tudo fechado.” Abriu o portão e eu disse: “isso é contigo, ninguém te vai pôr na rua, porque é toda a gente.” Pronto, mas é normal, às vezes os medos das coisas e pronto. Mas houve várias greves setoriais, sim, mas aquela greve geral foi inesquecível, credo. P: Não houve repressão? Manuela Medeiros: Não, não. A gente estava à vontade. Pronto, talvez a força também venha disso. Portanto, assim como o mal se reproduz, aquilo que é bom também se reproduz. Mas essas coisas foram inesquecíveis. E depois nós tínhamos encontros de Natal. Nós convidávamos as mulheres dos sindicalistas para elas verem o ambiente. Para elas se aperceberem de como era valioso o trabalho que os maridos faziam. E sobretudo para que elas lhes dessem coragem, porque a gente estava num meio pequeno e as coisas podiam mudar num instante. Também houve essas incertezas na altura dos separatistas, de onde estava a força de maior capital. Não foi brincadeira. E aí houve muita gente, muitos trabalhadores, que aderiram sem saberem o perigo que corriam. E aí não era fácil pensar nisso, por mais que a gente fizesse, por mais que escrevêssemos, por mais... Mas pronto, havia a maior parte, que eram aqueles que davam emprego, que tinham mais facilidade em criar emprego, mas também conseguiu-se e isso foi muito positivo. Foram muitas noites sem dormir e a minha mãe dizia: “Credo, eu gostava muito mais...” A minha mãe fazia a comparação com o tempo em que eu estava só dedicada à JOC e chegava-se a uma certa hora e as pessoas todas iam para as suas casas e ali a gente tinha vezes, conforme as ações reivindicativas, conforme os setores, em que eram noites perdidas. Eram, eram... Houve uma vez que o Sá Carneiro veio cá. Nós estávamos no meu sindicato a trabalhar e os carros do aeroporto a passar com uns sapadores todos contentes a levar o Sá Carneiro. Não me lembro se houve alguma coisa, lembro-me dos carros a passar e de uns apitos. Nós abrimos até as varandas para ver, a gente não sabia o que era, depois é que nos lembrámos quando vimos as bandeiras do PSD. E o sindicato de escritórios ficava assim ao lado, de frente. Mas a gente tinha a preocupação de juntar. Havia a festa de Natal, a gente às vezes juntávamos as crianças, fazíamos uma festa de crianças, cada grupo levava... A gente alargava muito às famílias também. P: Estavas a dizer que convidavam as mulheres dos sindicalistas. Manuela Medeiros: Sim, sim, elas iam. P: Quer dizer que os sindicalistas eram quase todos os homens. Havia poucas mulheres? Manuela Medeiros: Havia mulheres, mas a maioria era homens no sindicato. Depois, mais tarde, já com o 25 de abril avançado, é que começaram, graças a Deus, a aparecer muitas, da fábrica do açúcar, da fábrica do papel, da fábrica de tabaco, também mais, da outra fábrica de cima, dos escritórios, começarem a aparecer mais. Não sei a quantidade em percentagens, porque é assim, eu deixei de trabalhar e depois eles ainda me queriam num serviço que era criar, digamos assim, um setor dos reformados. E eu disse: “vocês desculpem-me, mas eu não estou trabalhando, já não tenho cabeça para mais, eu estou deveras muito cansada e não pego em mais nada. Sou capaz de aparecer aqui, ali e acolá mas sem compromisso.” Quando a gente não pode, não deve aceitar. A gente não aceita só por nome, a gente aceita para trabalhar. Aí deixei de trabalhar e deixei de ter qualquer atividade com responsabilidade, a verdade é essa. Continuei ligada às ações sociais e ingressei como voluntária no hospital e já estou lá há 20 anos. De maneira que é assim e que é um trabalho que nos leva tudo. Nos leva ao contato com trabalhadores, nos leva a discutir problemas que eles têm e que às vezes não têm confiança para discutir com outras pessoas. Pronto, um bom ambiente social e sobre a saúde também. Leva-nos ao contacto com médicos. Isso eu tenho pouco, a minha irmã tem mais com médicos e com enfermeiros, com os auxiliares... P: Então a Manuela, nessa altura, no período após 25 de Abril, era uma mulher entre homens no meio sindical? Era uma das poucas mulheres que estava nos sindicatos? Manuela Medeiros: Não era a única. Era, talvez, a mais atrevida ou ativa, como lhe queiram chamar, mas havia mais algumas. Nos escritórios tinha uma. Depois do 25 de Abril, também tinha uma naqueles que era dos serviços, onde depois chegou o meu afilhado, também tinha. Tinha uma do SITAVA, mas a maioria eram homens. Manuela Medeiros: E era mais difícil para as mulheres serem dirigentes sindicais? Manuela Medeiros: Era mais difícil e não era pelos serviços em si. Eu achava também difícil, mas era porque não havia divisão de tarefas comuns. As mulheres eram aquelas que chegavam a casa e tinham outra tarefa, outro dia de trabalho como tiverem durante o dia na empresa. Talvez ainda com mais responsabilidades e que tinham de sorrir para os filhos e que tinham de apoiar os filhos. Eu sempre valorizei muito a mulher sindicalista, porque tinha duas funções, duas grandes funções de grande responsabilidade, e que tinham de encarar com a mesma disponibilidade e a boa disposição, tanto uma como a outra. E não era nada fácil, depois do cansaço, ter crianças, ter de dar um ambiente aos filhos e ao próprio marido depois de um dia de trabalho. Às vezes não era fácil. Eu sempre valorizei muito isso. De maneira que era mais difícil, sempre foi mais difícil nesse sentido. E não havia a divisão que agora há, embora se note ainda. Eu, no outro dia, estive com alguém que me disse: “Eu admirei-me porque o marido não é capaz de levantar o seu prato da mesa, um prato”. P: E acha que o sindicalismo concorreu para mudar essas diferenças de tratamento das mulheres e dos homens? Manuela Medeiros: Eu vou-lhe dizer, no início não. Nós estávamos virados era para as lutas nas empresas, mas havia uma preocupação com a família, mas não com essa ideia. Agora, às vezes íamos à casa uns dos outros, fazíamos muito isso. Por exemplo a [?]. Ela e o marido também foram sindicalistas. Ela era da função pública foi daquelas poucas que não sentia isso, porque em casa, quando chegavam, os dois trabalhavam. E com toda a abertura ela falava disso. Eram um grande casal, tanto ela como o marido, eu gostava muito deles. No outro dia vi-a, mas foi assim ao longe. Eu gosto muito dela. Era uma pessoa bem disposta e se nós acabávamos uma reunião e se estava ela e o marido, ela dizia: “Vamos a nossa casa, a gente não tem nada, mas ou assa-se um chouriço ou assim”. Eles na altura ainda não tinham filhos, mas depois tiveram dois. Agora já são casados, já têm netos... P: E nessas lutas nas empresas, por exemplo, não se tentava que as mulheres começassem a ganhar o mesmo que os homens? Não havia essa preocupação? Manuela Medeiros: Havia essa preocupação por parte dos sindicalistas, defenderem isso sobretudo para a contratação. Havia já isso de “trabalho igual, salário igual” e de não haver diferenças entre sexos. Mas era um problema, mesmo entre trabalhadores. Diziam que tinham um esforço que nós não tínhamos, que tinham mais força, faziam coisas que nós não éramos capazes de fazer. Procuravam defender-se, mesmo entre trabalhadores, não era só com os patrões. Quando há essas duas coisas é mais difícil, mas pronto, foi um trabalho lento, não podemos dizer que não foi um trabalho lento e que, infelizmente, isso ainda perdura. P: Então diga-me uma coisa, de que forma é que acha que esse envolvimento no movimento sindical marcou a sua vida? Manuela Medeiros: Sim, marcou a minha vida. Mas, como eu disse, eu tinha uma formação anterior, que foi a JOC, que me levava a pensar nos outros, naquilo que os outros se sacrificavam, que não eram correspondidos, que não eram reconhecidos. Portanto, teve uma grande repercussão na minha vida. Por isso é que eu digo que o 25 de Abril, o que me deu, foi liberdade de expressão e mais nada, a formação eu já tinha. A sensibilidade para os outros já tinha. A preocupação pela caminhada dos outros eu já tinha. Digamos assim, para que todos vivamos um momento feliz, era essa a meta, e para atingir a meta temos que passar por coisas muito difíceis. Nós conseguimos passar, mas não conseguimos alcançar tudo, porque depois há outros que vêm e às vezes não vêm com a mesma dinâmica, nem têm a mesma dinâmica, porque quem se mete numa coisa dessas nunca vê os seus próprios interesses. É isso. Eu, uma vez – não sei se já disse isto – tive um convite para ir para uma outra fábrica ganhar mais, para telefonista, e eu não aceitei. E o meu patrão soube e, para me aguentar, queria-me fazer um aumento sem ninguém saber. E eu disse que o que eu ganhasse era para ser público e na contratação, como os outros todos. Porque se eu merecia, todos tinham de conhecer. Portanto, eu sou pobre, mas não aceito. De maneira que é assim. O que ficou na contratação é o que eu recebo, mais nada. De maneira que, muitas vezes, eles precisam é de ver como tem valor a palavra. A palavra de honra, que já se deixou de falar nela. A palavra tem muito valor e muito sentido. Porque ele queria dar-me mais sete escudos e meio, ou seis e meio ou sete e meio, não era brincadeira, estás a perceber? No fim-da-semana era um dinheirinho. Mas eu não, no fim não aceitei. As minhas colegas iam saber, e depois? E depois, eu perdia toda a confiança. Ninguém é perfeito, eu posso ter muitas deformações, mas a de enganar os outros, essa não tenho. Posso ter outras coisas, mais banais ou mais difíceis ou mais prejudiciais, mas logo que seja para mim, que não se reflita nos outros, eu não me importo. Era mais 6 e meio ou 7 e meio eu já não me lembro. Era assim: toda a gente está a telefonar a dar-me os parabéns. Mas como, se eu não vou? Eu agora digo que não vou e eles não vão ver isso na minha folha de ordenado, porque eu de facto não aceito. Nem na folha individual, nem na coletiva, essa quantidade, porque não foi tratada em plenário quando foram apresentados os outros elementos. Se eu mereço, não preciso de ganhar às escondidas. É isso. E quando eles, por exemplo, uma coisa logo no início também, que foi uma edição do 25 de abril que eles queriam, mas depois lá à frente eram os representantes dos trabalhadores na administração. E houve um senhor, que pertencia ao Governo, e que me disse: “Olha, Manuela, daqui a dias tu vais e alguém daqui vai apresentar-te ao Conselho de Administração como reconhecimento.” E eu disse: “O quê, ele vai-me dar posse? O senhor está tão enganado, o senhor não nos conhece.” Eu, como trabalhador, nunca chegaria ali. Pronto, mas depois eu telefonei para si e, de facto, não fui, foi uma do escritório. E depois eu disse, quando fui lá acima dar os parabéns à nova direção: “Tinham-me dito que era eu que vinha para aqui e eu sempre disse que não. Não é que eu não merecesse ou não soubesse, mas eu onde estou, estou melhor. Não é nem o dinheiro, nem os nomes, e vocês sabem, os senhores sabem bem que eu não sou assim. Não tenho a mania de gradezas, eu sou pequenina. Não, essas coisas têm valor na simplicidade e, como eu já disse, na verdade, na palavra de honra.” Eu tenho mesmo pena dessa frase da palavra de honra, ela é dita com tanta convicção e agora já não existe. Agora dá-se por tudo e por nada. Agora veio uma corrida do salve-se quem puder, e quem puder por os pés no pescoço de outro põe, mesmo para saltar para cima. É terrível isso, uma doença. Eu nunca tive. Eu tenho no sindicato, estou no voluntariado, que é outra coisa que muito me orgulho muito, muito, muito. É uma coisa que eu gosto muito de fazer e que estou a sofrer com a paragem nestes dois anos da pandemia. Estou a sofrer com isso. Não só eu, todos os voluntários, que isso faz uma falta na nossa vida... Cada um tinha o seu horário, cada um tinha o seu dia e aquilo era para cumprir, não era para faltar, era para cumprir. Deste o nome, deste a formação, tiveste a formação, tu vais cumprir! E quando faltares, dizes a alguém para te vir substituir. O voluntariado é um serviço de amor, gratuito, mas por ser gratuito, não tem menos valor do que aquele que é remunerado. Não tem. Tem um valor que não se vê. P: Manuela, diz-me uma coisa, eu estou a fazer a história destes movimentos, tanto dos movimentos de ação católica como do movimento sindicalista. O que é que tu achas que é importante destacar e investigar na história destes movimentos? O que é que achas que falta conhecer? Se tu fosses historiadora, o que é que tu ias investigar? Manuela Medeiros: Se eu fosse investigadora ia investigar aquilo que me estás a fazer a mim. Ia saber: o que sentiste quando estiveste lá; se valeu a pena; e, agora, se tens esperança. Porque a esperança é uma coisa que não morre, mas que precisa ser alimentada. E ela só é alimentada se nós formos à procura, porque as coisas não nos vêm bater à porta. E depois dessa esperança alimentada, cria-se a tal confiança entre todos. P: Então responde-me lá às três perguntas? O que é que sentiste quando estiveste lá? Manuela Medeiros: Olha, senti dificuldades, não posso dizer que não, mas depois da confiança, da boa vontade de todos, que era de todos, do compromisso. Alguns – não há duas pessoas iguais – cumprem mais do que outros. Mas, quando assumem a responsabilidade e depois justificam, até é desculpado. Não é desculpado, é mesmo, porque ninguém é obrigado a fazer nada, tem de ser sempre de livre vontade. E depois, nós temos que ter muito em conta, quando nós estamos à frente de um sindicato ou coisa assim, que aquele dinheiro que nós gastamos não é nosso. É dos trabalhadores. Por isso, tudo tem de ser contabilizado. Há muita coisa que eu não ganhei, perdi algum, não estou arrependida. Se eu perdi um bilhete de camioneta, eu perdi, e às vezes tinha vergonha de pedir a segunda via de um táxi, de ele pensar, se quer a segunda via então perdeu. Eu tinha esse escrúpulo. E não sou rica, é sempre do meu trabalho, mas pronto. Mas preferia perder do que as pessoas pensarem mal de mim. Às vezes há escrúpulos que nos levam a perder, como eu estou dizer, mas a gente fica de consciência tranquila. E é preciso também muito cuidado e cada vez mais nos tempos que correm, porque há mais dinheiro a circular e o dinheiro se não for bem aplicado, bem gerido e a pensar sempre que – seja no Governo, sejam patrões, sejam sindicalistas – o dinheiro que nós gastamos, mesmo em serviço sindical, não é nosso, é dos trabalhadores. E por isso tem de ser tudo muito bem gerido. Quando era para aumentar os funcionários do meu sindicato, na direção a gente combinava, a gente não sabe como é, eles é que têm as contas, só resta isso. Se só resta isso, eles é que vão dizer o que é que querem de aumento para ficarem com coisas para as despesas mensais. E era assim. As coisas têm de ser feitas assim. P: Agora a segunda pergunta: valeu a pena? Manuela Medeiros: Valeu a pena! Costuma-se dizer que “tudo vale a pena se a alma não é pequena!” E é isso, tudo vale a pena. Porque no meio disso tudo há amor, há pura gratuidade, há entrega. E valeu a pena porque tive o gosto de fazer muitas coisas que deram frutos, que deram sementes. E é bom saborear quando as pessoas dizem: “Manuela, foi tão bom aquele tempo.” Ainda na semana passada falávamos nisso com pessoas que não via há anos e que tinham passado por isso. “Ai, Manuela foi tão bom aquilo”. Foi saboroso. Porque a gente trabalhava, a gente sofria, mas também tínhamos muitos momentos de alegria. Muitos, muitos. É isso. P: E ainda tem esperança? Manuela Medeiros: A esperança que resta é isso, naqueles bocadinhos e, às vezes, em conversas que temos, ou quando vemos na televisão. Há esperança de uma continuidade, que não seja igual, mas à maneira de agora, porque os tempos de agora não são como os meus tempos, são totalmente diferentes. Até quase que digo que são mais difíceis. São momentos de muito mais tentação. De paragem, porque têm as coisas mais organizadas, têm uns bons sofás para descansar. Têm uns grandes televisores para ver. Têm outras coisas. Há mais tentação para parar. Mas têm de continuar, para gozarem aquilo que fizeram – não em tempos, mas agora, se querem ver frutos dessa esperança. A esperança é alimentada com amores, com total gratuidade. Embora o sindicalista que tem horas e que tem de ganhar pelo sindicato, tem que ser remunerado, tem que ter sempre em conta que essas horas no sindicato têm de ser feitas com tanto amor e com a mesma disponibilidade, como seja um bom profissional no seu campo de trabalho. E a esperança nasce. Porque não se pode chegar a um momento saboroso, digamos assim, ao momento de partir um bolo, sem termos todos os preparos para aquele bolo e, sobretudo, não pode faltar o fermento, que é aquilo que falta. P: Muito obrigado. -
Sebastião Augusto Conceição Mota
P: Antes de falarmos sobre a experiência associativa, ia lhe pedir alguns dados biográficos para também termos a noção da sua história de vida e porque este estudo também permite fazer uma caracterização do tipo de pessoas que se dedicam às associações. Então ia-lhe pedir o seu nome todo. Sebastião Mota: Sebastião Augusto Conceição Mota. P: A data de Nascimento? Sebastião Mota: 20 de março de 1944. P: E o local? Sebastião Mota: Marinha grande. Engenho, Marinha grande. P: Estudou aqui na Marinha Grande? Sebastião Mota: Segundo grau só. Comecei a trabalhar aos 11 anos. P: Começou a trabalhar no quê? Sebastião Mota: No vidro, aprender a pintura do vidro. Posteriormente lapidação e muito posteriormente a pintura outra vez. Foi como terminei, foi com a pintura. P: E os seus pais também trabalhavam na indústria vidreira? Sebastião Mota: Sim, o meu pai era lapidário. P: E a sua mãe? Sebastião Mota: A minha mãe, por força das circunstâncias, o meu pai morreu tinha eu 5 anos, teve de se empregar na indústria vidreira, era roçadeira. Toda a minha família era ligada ao vidro, não havia outra forma. P: A mulher também, casou-se? Sebastião Mota: Sim, sim. Também trabalhou na indústria vidreira. Trabalhou comigo, trabalhava comigo nos lapidários. P: E filhos? Sebastião Mota: Dois, uma filha de 50 e um filho de 46. P: E o que é que eles fazem? Sebastião Mota: Ela é comercial numa multinacional austríaca que está aqui na Marinha grande, está na secção comercial. Ele é gerente de um bar. P: Qual foi a escolaridade que eles fizeram? Sebastião Mota: Ela, o 12º, e depois teve que, por dificuldades... Nós na altura, eu trabalhava mais a mãe na Ivima, chegávamos ao fim do mês, não recebíamos. E por força das circunstâncias, ela teve que ir trabalhar também coitadinha. E depois tirou inglês, alemão, espanhol. E daí ter conseguido o emprego que posteriormente, conseguiu. Mas foi à força dela. P: E o filho também fez o 12º ano? Sebastião Mota: Fez. P: Viveu sempre aqui na Marinha Grande? Sebastião Mota: Olhe, eu costumo dizer minha Senhora, nascido, criado e batizado, fui à guerra e vim, durmo no quarto onde nasci. Que esta é a verdade, verdadinha. P: Foi à guerra colonial? Sebastião Mota: Fui, à Guiné. P: Tem alguma filiação partidária? Sebastião Mota: Tenho, PCP. Eu era simpatizante antes, daí fazer parte das listas do sindicato Vidreiro antes do 25 de Abril, que foram vetadas pelo Presidente da Câmara. E quando se deu o 25 de Abril, entrei logo para o Sindicato como dirigente sindical e para o partido como é óbvio. P: E religião, tem alguma religião? Sebastião Mota: Tenho que ser católico porque sou batizado, mas não sou praticante, nunca fui. P: Muito bem, então estava-me a dizer que participou nas listas do sindicato Vidreiro, ainda antes do 25 de Abril, teve alguma outra participação associativa antes disso? Sebastião Mota: Sim, sim, tinha. Na minha coletividade de sempre, de que o meu pai foi fundador, o Império, o Sport Império Marinhense. P: O que é que o seu pai contava desse período da Fundação? Sebastião Mota: Não me lembro. Então ele morreu eu tinha 5 anos. Lembro-me de ir com ele à primeira sede do Império, que era junto ao parque do Engenho e da minha casa, mas tenho muito pouca ideia da minha infância com o meu pai. P: E quando é que começou a participar no Império? Sebastião Mota: Olhe, começámos a jogar, tínhamos uma equipazinha de pingue-pongue de juvenis. Naquela altura, não é só agora é que há crises diretivas, houve tamanha crise diretiva que fecharam a coletividade. E eu lembro-me perfeitamente de ter 15 anos e ir a um diretor e pedir a chave para abrir aquilo para irmos jogar Ping-pong. E já tínhamos uma televisão e à noite abríamos, ia eu abrir. Porque a minha avó vivia mesmo pegada à coletividade e eu ia abrir aquilo para as velhotas irem ver televisão. Foi aí que começou. Depois houve direções, eu ainda estive na direção antes de ir para a tropa, numa ou duas direções. Depois, quando vim da guerra, assumi logo, fui logo posto em Presidente. E depois vêm aqueles anos de 69 com as eleições do Arlindo Vicente. Era o Arlindo Vicente e era o Humberto Delgado. E depois veio o Congresso de Aveiro de 73, em que eu participei também, mas isso... As reuniões do MDP-CDE, na Marinha, eram feitas em duas coletividades, era no Operário e no Império, porque mais ninguém dava o peito às balas. E lá no meu lugar, no dito Engenho, havia um movimento de rapazes que eram contestatários ao regime, mais velhos do que eu, mas eu cheguei a acompanhá-los. E há uma altura que vão até uma freguesia do Concelho de Leiria, que era Amor, que é aqui ao lado da Marinha distribuir propaganda do MDP CDE à saída da Igreja de Amor. O Padre [anonimizado] telefonou à Pide e foi tudo preso. Eu não fui preso, eu era dos mais pequenitos, fugi lá pelo meio das terras. Mas houve dois que foram passar ainda uns meses valentes a Caxias, essencialmente a Caxias. E pronto, a partir daí o bichinho mordeu e dava gozo na altura nós cedermos o Império ao MDP-CDE, porque sabíamos que tínhamos a PIDE à perna, mas tínhamos que fazer um documento, assinado por todos os elementos da direção para o Governo civil para permitir, dizer que era da nossa inteira responsabilidade a cedência da coletividade. O nosso salão já era enormíssimo. Mas não se podiam invocar determinadas palavras. Eles davam-nos uma lista das palavras que não podiam ser ditas. Os oradores que iam ao palco não podiam usar aquilo. P: Que tipo de palavras? Lembra de algumas? Sebastião Mota: Não me lembro, aquilo já era muita areia para a minha camioneta. Sei que o Doutor Vareda, que era líder daqui, mais o Doutor Vasco da Gama Fernandes, que eram os líderes do MDP/CDE e o Doutor António José Guarda Ribeiro e um economista de Ourém [refere-se a Sérgio Ribeiro], esse ainda é vivo. Esse tinha uma fluência do discurso que era um espetáculo ouvi-lo. E a gente dizia: Olha, se você vão falar de fora deste âmbito, portanto, podem falar de tudo, mas estas palavras não podem ser invocadas. Pronto, eles eram advogados, só o Sérgio Ribeiro de Ourém é que era economista, e conseguiam dar curvas àquilo tudo. Mas mesmo assim o Império, ainda antes do 25 de Abril era perseguido pela PIDE. Agora vou me reportar para o sindicato. P: Mas não quer explorar mais aqui a questão do Império? Sebastião Mota: Sim, eu ia falar precisamente do Império, na cedência do Império ao sindicato, numa das greves que não é nada falada. O sindicato antes do 25 de Abril já lá tinha dois dirigentes filiados do Partido Comunista infiltrados. Um agora está muito mal no hospital, que era o [anonimizado] e era o [anonimizado]. E estavam a negociar um contrato em Lisboa e pediam 100 escudos de aumento por dia, per capita. E aquilo era.... como deve imaginar. O sindicato fazia plenários na sede do sindicato, que era no centro da Marinha, aquilo dava para cem, cento e poucas pessoas e vinha a polícia de choque, quem tivesse a biqueira dos sapatos fora do arrebate do sindicato, pimba. E não deixavam ali parar ninguém. Tomámos uma decisão, tomaram eles: Vamos é telefonar para o Presidente do Império – nunca mais me esquece quem era, era o [anonimizado] – se podemos fazer lá, ir daqui para Império. E foi. Minha Senhora, eu não estou a puxar nada a brasa à minha sardinha por ser do Império, é que era a única que abria a porta era o Império. Era o Império e o Operário. As outras, pronto. Aqui a Comeira não existia. P: Essa greve foi em que ano? Sebastião Mota: 74. 5 semanas antes do 25 de Abril. Então vamos para a sede do Império, começa-se a constar, pimba, pimba, contactos, não havia telemóveis, agora mobilizações, sabe melhor que eu, são fáceis. Começa-se a falar, a falar... Tivemos que abrir os portões laterais, não cabia tanta gente no Império. E os gajos da PIDE que estavam lá infiltrados começaram a temer as consequências e chamaram reforços. Chamaram reforços, mas isso não obstou que se fosse avante com uma proposta.... Há um indivíduo que ainda está vivo [anonimizado]. Sobe a uma escada de alumínio que estava encostada a uma das paredes, porque andavam a ornamentar o salão para os bailes de Carnaval, e grita: Vamos para greve, amanhã ninguém pega no trabalho às 8h – Não foi a mesa, mas eu penso que aquilo já estava ensaiado – Amanhã, às 8 da manhã, ninguém pega ao trabalho. Votação por aclamação. Saímos do Império, uns em alta correria, outros não sabiam, no lugar de irem para a Marinha iam para o lado da Vieira, porque a confusão cá fora estava instalada pela polícia de choque. O resultado que se esperava, no outro dia nas fábricas ninguém pegou o trabalho. Onde eu trabalhava, na Crisal, houve um ou dois que fizeram a tentativa de ligar os engenhos lapidários, porque aquilo eram engenhos, motores individuais. Parou tudo, fomos às Mulheres da roça, parou-se o forno, pararam as fábricas todas, começaram a mandar emissários. Da parte da tarde, o calcanhar de Aquiles era o setor da garrafaria, que é este que está aí ainda hoje próspero, e de que maneira, mas eram três da tarde, estava tudo completamente paralisado, tudo. E a polícia de choque vem de Lisboa, vem o capitão [anonimizado] para aqui dirigir isso, nunca mais me esqueço. A partir daí foi recolheres obrigatórios, perseguições, pancadaria. E na madrugada de sexta para sábado, já de madrugada, a polícia de choque vai-se embora. Soubemos que tinha havido um movimento dos capitães das Caldas para Lisboa. A polícia de choque foi daqui da Marinha atrás deles. Porque no dia anterior, até determinada hora do dia, nós conseguíamos mandar telegramas de apoio para a Corporação da Indústria para Lisboa, a apoiar a Comissão negociadora sindical. Cotizávamo-nos nas fábricas, mandávamos os garotos com textos escritos. O gajo da estação dos Correios da Marinha alertou as autoridades. Pronto é tudo cortado e no sábado de manhã eram para aí 10 da manhã recebemos a notícia que tínhamos levado um aumento de 60 escudos per capita para toda a gente exceto, repare nisto, exceto, para as crianças de 12 anos e 13, que levaram 50%, 30 escudos. A partir dos 14 anos, já éramos homens adultos. Toda a gente levou 60 escudos. Isto é um introito um bocado longo para a tal participação do Império. Se não fosse o Império, isto não acontecia. Não havia hipótese de reunir as pessoas. E foi a partir daí, do Império. Depois veio o 25 de Abril e pronto, foi tudo muito.... P: Mas diga-me uma coisa, neste processo, quer na reabertura do Império, quer na cedência do Império para o sindicato, na organização da greve, qual é que foi a participação das Mulheres? Sebastião Mota: As mulheres a nível da direção nessa altura era zero, não havia mulher nenhuma. Agora, a nível de organização de fábrica, elas tinham muita força. Na organização de fábrica não havia as células como há agora. Antigamente, podia haver meia dúzia de mulheres mais ligadas ao PCP, mas em termos de organização não havia, aquilo andava um bocado desgarrado. Mas notou-se, nesta luta que nos levou a esse aumento, quem teve, pelo menos na fábrica onde eu trabalhava, na Crisal, a preponderância, quem foi ao forno mandar parar os homens do forno foram de facto as mulheres, que subiram as escadarias: Ninguém trabalha, estamos em greve - e pronto, eram aqueles gritos. Ali a preponderância das mulheres foi muito importante. P: Elas também receberam um aumento de 60 escudos? Sebastião Mota: Tudo igual, minha querida per capita. P: Mas quanto é que elas ganhavam? Ganhavam o mesmo que os homens? Sebastião Mota: Não, não, ganhavam muito menos e eu era para trazer a tabela número 12 do Ministério das Corporações, que eu tenho lá guardada religiosamente. Tem isso tudo definido, elas ganhavam muito menos. Depois, com o andar do tempo é que nas profissões de pintura, por exemplo. Sebastião Mota: Por exemplo, eu trabalhava junto a quatro senhoras. Não havia quadro de idades nas categorias nem havia nada e as mulheres naturalmente eram todas deixadas para trás. Porque os homens é que, no conceito dos industriais, os homens é que eram produtivos. Mas havia e há, cada vez há mais, profissões em que as mulheres ainda produzem mais que os homens, como é óbvio. E partir daí, voltando ao Império. O Império foi... lutei e tenho lutado. Eu parece-me, parece-me não, de certeza absoluta, que terminei faz amanhã 15 dias, a minha colaboração como dirigente do Império. Porque eu fui agora nos últimos anos, muitos anos, Presidente da Assembleia Geral. Muitos problemas, à beira de encerrar, à beira disto, à beira daquilo, felizmente resolveu-se a semana passada, com a eleição de uma nova direção. E eu estou cansado porque já venci quatro cancros, uma operação ao Coração. Vou fazer 78 anos e há noite já estou bem é no meu cantinho, a ler, a ouvir música, e não a andar em confusões. Mas amanhã ainda tenho uma reunião porque o Presidente, lá está, quer pedir-me uma opinião acerca de um berbicacho que temos e eu vou ver se colaboro com ele. Colaboro sempre, agora estar efetivamente ali, porque também sou o Presidente da Assembleia Geral dos Reformados, da ASURPI aqui da Marinha, e também estava no Conselho Pedagógico da Universidade Sénior, mas pedi escusa. Mas tive o cuidado de indicar dois nomes que foram aprovados e que são duas excelentes pessoas, com licenciaturas, e que não me souberam dizer que não. Porque eu passei muito. Além do Império, foi o sindicato e os reformados. P: Então, e entrou no sindicato em que ano? Sebastião Mota: Em 74. Mas antes já tínhamos reuniões e clandestinas. Joana Dias Pereira: Como é que era? Quando é que começou a participar nessas reuniões? Sebastião Mota_ Foi logo a seguir a eu vir da Guerra. Não, foi depois, foi para aí em 68. Talvez em 68. Eu lembro-me perfeitamente das eleições de 69, da campanha. Depois tenho mais nítido é o Congresso de Aveiro, de andar a correr na célebre Avenida Lourenço Peixinho, isso é que não me esqueço. P: Em que condição é que participou no Congresso de Aveiro? Sebastião Mota: Assistente, não fui delegado, não fui nada. Fomos cinco amigos que fomos daqui de carro, tivemos de fugir para a Costa Nova e tivemos de dormir na Costa Nova, dentro do carro. As estradas estavam todas bloqueadas. Foi muito, olhe deu enquanto deu, enquanto eu pude. Depois com a história das doenças, é que foram dois na bexiga e extração total da próstata e agora, passado quase quatro anos, há dois anos atrás, foi-me detetado um novo tumor. Tive que ir fazer 35 sessões de radioterapia. A radioterapia manda uma pessoa abaixo. Até aqui ao cérebro/computador, vai buscar... Por acaso hoje está a funcionar bem. P: Então diga-me lá, mas disse-me que tinha participado numa direção do sindicato ainda antes do 25 de Abril? Sebastião Mota: Não, antes do 25 de Abril nunca participei. Participei em eleições. A lista foi proposta e o Presidente da Câmara, [anonimizado], cortou todos da Marinha por professarem ideias contrárias ao sentido de Estado, a bem da nação e uma coisa qualquer deste género. Quem não foi cortado foi o Presidente, talvez indigitado para presidente da direção esse [anonimizado], porque pertencia ao Concelho de Alcobaça e o Presidente da Câmara de Alcobaça não o cortou. Não, não, este homem é idóneo e é livre. Livres não éramos, não tínhamos nada de liberdade. Avança o plano B. Avança o plano B e o Presidente da Câmara estava a ir no mesmo sistema, cortar tudo. Neste espaço tempo de 15 dias, dá-se o 25 de Abril, avança ao plano A, do qual do qual eu fazia parte. E ainda lá estive 5 anos. Na vida sindical passava-se semanas absolutas fora da Marinha. Não via os meus filhos, estava sempre em Lisboa. Em Lisboa negociávamos no Hotel Flórida, ali no Marquês de Pombal. Isto era cansativo, até que conseguimos o primeiro contrato coletivo de trabalho vertical em Portugal, foi o nosso, com técnicos de desenho, metalúrgicos, eletricistas, empregado de escritório, tudo. Passado um ano, não chegou a um ano, uma reivindicação da Covina. Só nomes pomposos a dar aos trabalhadores, era tudo técnicos, naquela empresa era tudo técnico. Aí a gente vai lá fazer um plenário e eu e o [anonimizado] passamo-nos dos carretos: Então vocês há meia dúzia de meses levaram 60 escudos de aumento per capita, um aumento para toda a gente, sem lutarem, e agora já querem sair do contrato coletivo de trabalho. Somos chamados a instâncias superiores. Demitimo-nos do sindicato. Eu não, eu nunca mais me esqueço disso. Eu quero ir ao Marinhense, ao Lisboa Marinha ver a bola e não quero que me chamem de traidor. Quero ir ao café e não quero que me chamem traidor. Eu sou natural da Marinha Grande, nasci lá, vivi lá, vocês estão aqui no quinto andar, sabem que o que aqui chega vem tudo deturpado. Eis o que é que eu disse. [Reservado a pedido do entrevistado] Aqueles candeeiros que eram feitos na Crisal em Alcobaça, vêm para aqui para a Marinha, para pintar, só 4 ou 5 pintores é que os pintávamos. Foi a única transformação que eu aceitei, foi mudar de facto da lapidação para a pintura e depois, quando a Ivima deixou de pagar salários, eu armei-me de armas e bagagens e fui trabalhar para casa sozinho. Tive a sorte de um nome esquecido da pintura aqui da Marinha, [anonimizado], que me disse: Não, tu vais para casa eu dou-te trabalho, que ele trabalhava em casa também. E foi assim a minha vida. Pronto, trabalhei, ganhava a minha vida, não era rico, mas também não estava como estou hoje. Porque hoje estou com 545 EUR na reforma, não tenho rigorosamente mais nada. Isto é a vida de um homem de 78 anos, que deu.... Mas estás bem com a tua consciência – dizem. Pois estou, então vai-te governar com a minha consciência que vez o resultado que tiras. E foi isso. No Império Intercalava, não estava constantemente na direção. Mesmo no sindicato. Cheguei a ser Presidente da Assembleia Geral do Império, enquanto estava no sindicato. Mas depois pronto, é a tal teoria, há que dar lugar aos novos. Mas os novos não aparecem e demos lugar aos novos no Império, aqui há dúzia e meia de anos, e tivemos muito maus resultados. Os novos deram cabo daquilo tudo. Ainda hoje se está a pagar a fatura do que eles se meteram. P: Conte-me como foi a passagem do 25 de Abril no Império, nas coletividades? Sebastião Mota: A passagem no Império aconteceu desta forma, eu tenho impressão que na altura eu era secretário. Sei que no dia 25 de Abril estava cá uma equipa do Grupo de Teatro de Campolide a montar a cena para uma peça de teatro que era Filopópus. No outro dia de manhã eu vou para a fábrica. Eu estava a trabalhar, mas tinha um rádio potente e com a autorização da administração com uma antena. Eu ouvia a BBC de Londres. Eu ia sempre às 7:30, mais cedo, porque eles emitiam às 7:30, à 1:30 e acho que era às 7:30 da tarde. Eu fui para a fábrica mais cedo e começo a ouvir aquilo, estava tudo em silêncio, os engenhos só se ligavam às 8. Há um golpe, há um golpe de Estado, começou-se a falar e pronto: Ninguém trabalha, ninguém pega ninguém…e eu pumba, para o Império, vou para o Império. Porque nessa manhã vinha de Lisboa uma camioneta com os nossos carpinteiros para montarem a cena, quando soube...Não houve espetáculo à noite, era no outro dia e teve que ser adiado, porque no outro dia toda a malta do grupo de Teatro de Campolide quis ir para Caxias, para a libertação dos presos políticos. E depois vieram, fizeram o espetáculo, aquilo foi uma euforia, não imagina, o Império, não cabia lá mais ninguém, aquilo era uma alegria incomensurável. E depois lembro-me muito bem de irmos a uma antiga pensão em São Pedro de Moel cear todos, com o grupo de teatro todo. Porque eles vinham cá muito, era o Joaquim Benite, o encenador. Eles vieram cá com o Filópopus, com o Dom Quixote outra peça. Porque nós tínhamos um grupo de teatro muito poderoso e muito famoso também na altura. P: Então vamos lá detalhar as atividades do Império, quais é que foram as primeiras, quando reabriu? Sebastião Mota: Ora bem, o Império, está localizado numa povoação muito sui generis, como já lhe disse que é o Engenho. Não é por acaso que se chama engenho, porque está lá implantado o parque florestal da Marinha Grande. O Parque pertence ao Ministério da Floresta. Eles andam a dizer que vão lá construir um museu da floresta, mas até ver nada. O Império, como já disse, vai fazer 100 anos, em 23. E no tempo do meu pai, e de outros amigos que o fundaram, a primeira sede do Império foi construída pelo sogro do meu pai, pelo primeiro sogro do meu pai. Porque o meu pai era casado, tinha um filho, o meu irmão, mas a esposa morreu queimada por uma faísca. Estava a fazer o almoço para ele, numa trovoada em Maio, fulminou logo. O meu irmão estava num berço ao lado, não lhe aconteceu nada. Mas o sogro do meu pai era um homem que tinha dinheiro e construiu, que não haja dúvida nenhuma que foi construída de raiz, ao lado da moradia dele, mesmo ao lado do parque do Engenho, um edifício de primeiro andar para ser a sede do Império, com o salão de baile, um corredor ao fundo com os gabinetes da direção, as casas de banho e uma escada em madeira para o bufete, porque a gente chamava o bufete antigamente. E é aí que funcionou o Império nos seus primeiros anos. As festas do Império do aniversário de São João eram feitas dentro do parque do Engenho, que mais ninguém aqui na Marinha tinha a capacidade daquilo. Já nesse tempo, os próprios serviços florestais tinham uns arcos em madeira, com luzinhas às cores. Isso eu lembro-me bem, de ver lá dentro das arrecadações, quando era pequenito e ia para lá brincar. A estrada do Engenho daqui do Largo do Luzeirão, por trás da Câmara, até à entrada da Mata, era tudo enfeitado com esses arcos. E as festas do Império passaram a ser feitas dentro do Parque do Engenho. E posteriormente cá fora, mesmo em frente à sede, porque aquilo são largos com árvores. Está lá uma fonte feita na altura do portão do engenho de 1850, com uma pedra enorme em granito. E o Império já tinha ping-pong nessa altura. Há documentos e provas que mostram que nessa altura já tinha sido campeão distrital de ping-pong. Creio que em 1952 ou 1953 foi campeão do distrito Leiria. E depois tinham as tais contradanças, que era, eu tenho fotografias disso também na Casa do Império, também lá estão expostas, e teatro. Mirou-se sempre, sempre, sempre para a cultura. Na sede do Império, não havia espaço para ensaiar, mas tínhamos um amigo que tinha comprado uma fábrica que era da Philips. A primeira fábrica que a Philips, além da Holanda, montou na Europa foi aqui no engenho, que era a FAPAIX, que depois foi para Moscavide. Não sei se ainda existe em Moscavide se não. Aquilo tinha um salão, um barracão grande e era lá que o Império ia ensaiar as peças de teatro, muitas, muitas, muitas, peças de teatro. Aliás, há uma senhora que é secretária do La Féria agora no politeama, que a origem dela de teatro foi aqui no Império. Ela lá não faz teatro, é secretaria, faz parte da produção. Depois o Império teve Voleibol, Andebol, várias atividades. E começa-se a construir a sede atual, tudo ali pá pica, desde os garotos. Ali não havia diferença de idades, uns faziam umas tarefas, outros outras e foi-se construindo. Construiu-se um salão, não havia dinheiro para pôr janelas, pôs-se plátex a tapar para não haver corrente de ar. P: Isso foi em que ano, a nova sede? Sebastião Mota: Ora isto ronda 1960. Quando se começou a iniciar, eu devia ter uns 12 anos por aí assim, a partir de 1955. Começou-se a iniciar, foi em fases distintas, era só do dinheiro dos sócios e peditórios que se faziam. Entretanto, temos uma ajuda tremenda dos serviços florestais. Fomos falar lá com o engenheiro Amaral, que era um homem que superintendia toda esta desgraça e que desapareceu, que foi à mata e cedeu-nos todo o vigamento e todo o parquet, o que já era um luxo, aplicar parquet no chão. O Salão, eu acho que tem 16m por 35m, não 16m por 80m. O salão é enorme. Olhe sinceramente, nunca soube, nunca interiorizei quais são as medidas do Salão do Império. Foi-se construindo depois um palco, com a base em Madeira, mas à frente, a boca de cena, tudo em platex, tudo improvisado. Um bar ao fundo e tal, vivíamos assim. Fazíamos grandes festivais, até que aparece lá um rapaz como Presidente que teve ideias mais alargadas. É um proscrito, quase que é um proscrito, porque deixou as dívidas para os outros. Mas isso tudo se pagou. Mas a minha mantém-se. Se não fosse ele, o Império não tinha estas instalações, porque tem lá umas instalações... Temos dois bares, os bares têm o dobro deste salão. Temos um no primeiro andar e outro no rés chão. Depois temos o salão e ainda temos outro piso por cima, onde temos a sala de dança. Tínhamos grupos de ginástica, tínhamos as atividades, o teatro nunca morreu. Entretanto, as coisas foram naturalmente desaparecendo. As pessoas do Engenho foram também desaparecendo e o Império foi circundado por prédios de gente que vem de fora, que não é assim bairrista aqui como é a Comeira e outros lugares da Marinha. O Império está situado numa estrada que vai da Marinha para a Vieira, é um centro de passagem. A sede inicial era no centro do Engenho, junto ao parque Florestal. Agora não, agora está mais para Sul. E pronto, tem tido muitas dificuldades, mas o teatro ainda está vivo e é a única coisa que se pode dizer que neste momento está vivo no Império. Mais limitado, derivado da época que vivemos e pronto. Tirando isso, alugamos o salão para muitos eventos, muitos, muitos, muitos, que é o que nos mantém. Porque tínhamos um problema, é que gastávamos mais de 1000 EUR por mês numa funcionária que admitiram a contrato, com todos os encargos sociais, com tudo. Não sou contra a Senhora, o Império é que não lhe podia pagar. E os indivíduos que cometeram aquele erro, são dos tais que assumiram uma situação que não ponderaram bem. Conseguimos resolver o problema com ela, olhe, com a ajuda da pandemia. Aquilo fechou, ela foi para o fundo de desemprego. A gente propôs-lhe dar-lhe, enquanto ela andasse no fundo desemprego, o complemento de ordenado, para ter o ordenado completo e acho que já não se deve nada e a senhora vai para a reforma. Agora quem abre o Império são os próprios dirigentes, não todos os dias. Nós tínhamos tudo, seguros e caixa de previdência, tínhamos tudo, e isso custava-nos um balúrdio que a gente não tinha. O bar não tem movimento suficiente, porque o Império foi rodeado de bares, estão lá meia dúzia deles, e as pessoas dispersaram, uns para um lado outros para outro. Olhe, vamos, vão mantendo aquilo. O meu neto, por exemplo, anda lá, porque há uma rapariga que alugou-nos, já há uns anos, uma sala um bocadinho mais pequena que esta onde dá explicações. Essa está lá todos os dias. E alugamos aquilo imenso, a casamentos, batizados, festas... P: O senhor Sebastião fez teatro? Sebastião Mota: Só tive jeito para uma coisa, para ser ponto. Não tive jeito para mais nada. Eu fiz uma vez uma peça qualquer. Lembro-me perfeitamente de um colega que saiu a chorar de cena - a própria cena fazia chorar. Sai da cena e nos bastidores vimo-nos aflitos para o calar, para o consolar, para parar de soluçar, ele soluçava, soluçava. Mas de resto não tive jeito nenhum. O Império teve uma coisa muito boa também, que foi a revista à portuguesa, com as piadas locais, como é óbvio, escrita por autores lá do Engenho, que era o Arnaldo Cruz, que era barbeiro, o Padre Manuel e o Fernando Luz. E foi isso de facto que manteve o Império. P: Havia muita gente ali do Engenho a participar no teatro? Sebastião Mota: Muita, muita. E nas marchas! E na ginástica! O Império todos os anos ia à Sportinguiada, convidado pelo Sporting, às vezes tinham de ir dois autocarros, porque um não chegava. Mas eu veio-me agora à memória aquilo que eu lhe queria contar de antes do 25 de Abril. O Império tinha uma iniciativa, que era a Caravana da Amizade. A Caravana da Amizade, isto antes teve outro nome, mas a pide marrou. Porque a gente fazia uns prospetos a anunciar e era normalmente no dia 10 de Junho. Nós íamos para a mata, para a fonte das canas de bicicleta. Cento e tal bicicletas, com umas carrinhas de apoio com as pessoas mais de idade e com os morfes. Não havia discursos políticos, não havia nada, era só uma questão de camaradagem. Lá está, não podíamos empregar a palavra porque camaradagem era proibido. E chegámos a ser apoquentados por causa da Caravana da Amizade. E fizemos anos, anos, anos seguidos. Entretanto, outras coletividades começaram a fazer, a Ordem e o Casal Galego. Isto não há bairrismo nenhum aqui. Para mim são todos iguais, mas o que foi o facto é que foi o Império que deu pontapé de saída com muitos anos de antecedência. E isso enraizou-se na população do Engenho e toda a gente queria ir de bicicleta para a Fonte das Canas. Íamos por estradas da mata, estradas secundárias. Íamos conviver, levávamos os farnéis. Havia os mais cultos que diziam algumas coisas para a coisa também não ser em vão, mas não se podia também abrir muito, porque a gente infelizmente naquela altura não sabíamos quem é que andava no meio da gente, sabe? Porque tive isso no sindicalismo, tive isso no associativismo, tive isso na fábrica – bufos a controlarem. E depois, a partir das eleições de 1969, acentuou-se mais a perseguição. Mas muitas pessoas iam inocentemente. Eu também comecei a ir inocentemente, mas vi: Não, isto tem uma finalidade, é convivermos e elucidarmo-nos uns aos outros para procurarmos trocar impressões sobre o que estava bem, o que estava mal, não só no clube, como no lugar. E isso despertou o interesse à PIDE também. P: Acha que essas iniciativas foram importantes para a consciencialização política? Sebastião Mota: Foram, sem dúvida, foram, foram. Foram, porque embora praticássemos jogos tradicionais para matar o tempo, ia-se à praia, dava-se banho, vinha-se, almoçava-se e depois as pessoas mais de idade falavam sobre o clube e metiam umas farpazinhas. Porque as pessoas também tinham muito medo, como é óbvio, tinham de acautelar. Porque a PIDE aqui na Marinha... não era tudo perfeito também. Também havia ali muito, então nos locais de trabalhos. Infelizmente, aconteceu muito. É assim que me lembro grosso modo da atividade antiga do Império. Depois houve aquelas modalidades desportivas passageiras, o box, aquilo não se chamava box, era outra modalidade. Disputaram aí campeonatos nacionais, mas passado dois anos morreu tudo. Eram coisas sem continuidade, depois vinha outra direção, com outro iluminado e lembrava-se de: Olha, vamos fazer isto. Tivemos uma boa equipa de andebol, não tínhamos era estrutura para seguir. Foi tudo para o Sporting Clube Marinhense que já tinha pavilhão. Nós tínhamos que treinar na rua, à chuva e ao frio. Chegávamos a ir jogar à Maceira, em Leiria, e claro o que é que nos acontecia. Tínhamos de pedir para nos irem lá pôr, nós nem bicicletas tínhamos. A maioria de nós nem bicicletas tinha e íamos lá, na altura tivemos que vir a pé porque o homem que lá nos foi por com uma carrinha esqueceu-se de nos ir buscar. Tivemos que vir a pé, cheios de fome. Tivemos uma boa equipa de voleibol. Daí foi um para o Benfica, foi Internacional do Benfica e ainda cá está, é o Moisés Nobre. Tínhamos Atletismo. Eu não tomei apontamentos nenhuns e agora isto é que está a vir-me à memória. O Império tinha uma grande prova anual de atletismo que era chamada volta aos Sete. Tínhamos uma equipa com rapazes e raparigas, alguns trinta a competir, mas depois as pessoas vêm com novas ideias, uns cansam-se, outros desistem. E depois, como sabe, as questiúnculas de bairro também são mais que muitas. Por vezes, um indivíduo sacrifica-se, trabalha, trabalha, trabalha e ainda é criticado e mandado abaixo. Ficheiro de áudio MVI_0667.m4a Transcrição P: No 25 de Abril o Império não esteve envolvido em nenhum daqueles movimentos de auto-organização, para o saneamento ou...? Sebastião Mota: Teve, havia as comissões de moradores. Que eu me lembre, depois do 25 de Abril, era na noite do 25 de Abril, o Império chegou a participar, porque a Câmara desafiava as coletividades, num cortejo rumo à praça para nos juntarmos à meia-noite. E eu lembro-me que o Império levava cortejos a pé que era um espetáculo e com música. Juntavam-se meia dúzia, porque lá no nosso lado houve sempre o hábito de conjuntos, música de baile, nns a tocar trompete, outros a tocar saxofone e a gente vinha a marchar por ali acima. E foi lindo enquanto durou. P: Foi criada alguma comissão de moradores lá no Engenho? Sebastião Mota: Foi, foi. Sempre houve comissão de moradores. P: E o que é que fizeram lá o Engenho? Sebastião Mota: Fizeram as coisas essenciais na altura, auxiliavam a Câmara e a junta nalgumas tarefas, mesmo as pessoas a trabalharem. Não podia ser durante a semana, mas trabalhava-se ao sábado e ao domingo. P: O Sr. Sebastião participou? Sebastião Mota: Não, porque eu nessa altura estava praticamente fora da terra, tal como lhe disse, estava no sindicato. E lá vou eu outra vez para a parte do sindicato. Antes do 25 de Abril, havia cinco - Lisboa, Porto, Marinha Grande, Aveiro e Figueira da Foz. Fundimos tudo no sindicato dos Trabalhadores da Indústria vidreira, que ainda existe hoje. Eu por acaso até era o tesoureiro do sindicato, por isso é que estou rico. Comprámos dois apartamentos na rua da Firmeza, no Porto, e mandamos tirar as paredes de dentro para ficar com uma sala boa de reuniões. Porque a sede do sindicato Vidreiro do Porto era num vão de escada na rua da Santa Catarina. Estava na rua mais famosa, mas não tinha condições nenhumas. Comprámos as atuais instalações na calçada da Estrela, em Lisboa (entretanto já compraram outro) e comprámos esta sede aqui na Marinha. A delegação da Figueira da Foz deixou de interessar e ainda tínhamos a de Oliveira de Azeméis. Em Oliveira de Azeméis criaram-nos problemas de toda ordem, de nos quererem matar. Eram populações não tinham nada a ver com o vidro, da indústria de chapelaria, essencialmente mobilizados pelo [anonimizado], que era o dono do Centro Vidreiro Norte Portugal. E passámos bem, andámos a fugir à frente de tiros. E há um episódio que nunca mais me esqueço. Íamos daqui de madrugada, de táxi, para fazer um plenário no Auditório da escola Industrial de Oliveira de Azeméis. Tínhamos autorização do diretor, do Padre, que tinha dito: Não Senhor, isto está cedido. Chegámos lá e havia gente à nossa espera, numa bomba de gasolina antes de Oliveira de Azeméis. Eles perguntaram e nós respondemos: Nós vamos de táxi. Mas nós estamos a responder que vamos táxi para sermos atacados ou quê? A gente andava assim. Parámos e vêm dois que nós conhecemos: Fugi já para o Porto, fugi já para o Porto, vocês não podem voltar atrás, fugi para o Porto. Então vamos fugir para o Porto porquê? Eles deram cabo do piano todo. Deram cabo do piano... – pensámos que fosse no ginásio da escola, onde ia ser a reunião. Estão, eles deram cabo, que paguem. Mas o piano era o nome, era a alcunha, de um delegado sindical nosso. Deram-lhe com uma corrente na cara, que lhe deu cabo da cara toda. Já estava para o hospital. E a gente ignorava que ele tinha a alcunha de Piano. Olha, deram cabo do piano que paguem, e não conseguimos fazer o plenário. Depois decidimos: Fechamos a sede de Oliveira de Azeméis. Quando vocês precisam de reunir,, Oliveira de Azeméis vai reunir ao Porto. Temos condições, metem-se num táxi e vão ao Porto. O nosso sindicato era poderoso na altura. Nós tínhamos uma caixa de previdência própria. Era a Caixa de Previdência do Pessoal da Indústria Vidreira. Os trabalhadores descontavam +1% por mês para ter direito a medicamentos e tudo mais. E o que é que, antes do 25 de Abril, nesses anos antes, o que é que essa gente fazia ao dinheiro? Compravam imóveis na Avenida de Roma. Eu cheguei a andar, eu com técnicos, a ver os bens que o Sindicato tinha. Mas a Caixa do pessoal da Indústria Vidreira só funcionava com o aval do sindicato compreende? Mas que é isto? Meia Avenida de Roma, prédios degradados, para que é que a gente quer isto? Entretanto, houve alguém que se encarregou de ficar com aquilo tudo. Foi o presidente da caixa de Previdência daqui da Marinha Grande, na altura, que era o [anonimizado], açambarcaram tudo da Caixa Vidreira para a Caixa Nacional de Pensões. Ficámos a zero. Nós tínhamos património e ficámos sem nada, tanto que em Lisboa estamos muito bem instalados também. P: Quais é que eram as suas responsabilidades no sindicato? Sebastião Mota: Era tesoureiro. Fui sempre tesoureiro. Era tesoureiro, mas tenho que dizer que tinha um economista e um chefe de serviços atrás da Secretária que me punham a papinha toda na frente e me explicavam tudo. E eu assinava como é óbvio, quando não tinha capacidade para, como é que se chamavam, os balancetes analíticos e aquelas coisas toda. Eu não tinha capacidade para isso, mas tinha confiança nas pessoas que trabalhavam comigo. O nosso economista e técnico de contratação era o Amândio Teixeira Cardoso. O nosso advogado aqui na Marinha era o doutor Guarda Ribeiro, outro homem de excelência e muito sério. E era assim que nós trabalhávamos. P: E depois intervinha em termos de mobilização? Sebastião Mota: Sim, sim, ia a plenárias às empresas. Por isso é que eu dizia, minha Senhora, nós tínhamos sedes em Lisboa e no Porto, tínhamos diretores a tempo inteiro em Lisboa e no Porto, mas para apagar fogos tinham que ir os bombeiros aqui da Marinha. P: Quais foram os fogos que teve que apagar? Sebastião Mota: Olhe, uma vez na Covina, estávamos lá em Santa Iria da Azoia, lá na coletividade local a fazer um plenário, e lá aquela rapaziada do MRPP tenta invadir o plenário, e ainda nos mandaram pedras. Outra vez, foi na Voz do Operário. Nós estávamos atacados pela esquerda, pela direita, pela extrema esquerda, não havia ninguém que não chutasse na gente, mas a gente chegava para isso tudo. Na escadaria da Voz do Operário, há um gajo que vem para mim e que me diz, eu não sei o que é que ele me disse. Mando-lhe um sopapo, só o vi dar a cambalhota. Isto tinha que ser assim. E depois, procedimento incorreto. Querem que nós sejamos Jesus Cristo. Leva numa face oferece a outra. E eu não prestava para essas coisas. Por isso é que olha: Já tens 5 anos disto, já aprendeste o suficiente, vai lá para o teu Engenho trabalhar, trabalhar e não era brincadeira, das 8 da manhã às 8 da noite, que éramos obrigados. Estou a mentir. Isso foi antes do 25 de Abril, trabalhar-se até às 8 da noite. Fazíamos 11 horas por dia, tínhamos 50 minutos para almoçar. Que era das 8 ao meio-dia e meia hora. E da uma meia às 5. Parávamos para tomar uma buchazinha, um quarto de hora, e depois até às 8. P: Diga-me uma coisa, havia algum tipo de solidariedade informal nas fábricas, por exemplo, grupos de doentes. Tenho ouvido em algumas regiões do país? Sebastião Mota: Havia, havia, antes do 25 de Abril. Havia uma coisa que se usava aqui muito na Marinha, que era as subscrições. As subscrições a favor de.... P: Como é que funcionava? Sebastião Mota: Era andar a pedir com uma lista, o nome. Quanto é que dás? 25 tostões, tal, tal, tal e depois entregar à pessoa. Olha, o resultado é isto. Quando havia alguém que precisava, nós tínhamos conhecimento, porque naquela altura nem havia oportunismo. As pessoas nem sabiam ser oportunistas. Eram pessoas sérias que tinham a confiança da Comunidade e pronto trabalhava-se assim. Agora, infelizmente... E tínhamos também, como eu disse há pouco, a Caixa Sindical de Previdência que pagava-nos os medicamentos na íntegra. P: E quando estavam doentes, pagava o ordenado? Sebastião Mota: Não, não. P: E havia ajuda entre os colegas nas fábricas? Sebastião Mota: Era só entre os colegas, a empresa não pagava rigorosamente nada. P: E essa ajuda entre os colegas era só estas subscrições ocasionais ou tinham uma coisa mais formal? Sebastião Mota: Não era só estas subscrições. E não era só para aí, até para os presos políticos. Eu participei em dezenas e dezenas de peditórios. Tinha que ser, não se nega. Havia uma tática, havia um homem que nós tínhamos muita confiança, havia vários, mas um era o Manuel Baridó, o sítio preferido dele, para nos encontrarmos com ele, para lhe levar os 100 ou 200 mil reis, era no café dos ricos, na Marinha, no café cristal. Era onde parava o Presidente da Câmara e essa canalha toda da pide. E aí eu: Ó Manel estás-me a mandar aí ter contigo ao café? – a horas diferentes, não íamos todos juntos. Estás-me a mandar ir ter contigo ao café Cristal? Não te rales, ali é que funciona bem, estamos protegidos. E são histórias. P: E Imprensa clandestina antes do 25 de Abril? Sebastião Mota: Havia o Avante só. Eu recebia, chegava-me a chegar às mãos dentro de uma cana, uma cana assim, enroladinho lá dentro, parecia o testemunho daquela prova de atletismo, passar o testemunho. Isso era o que me acontecia. Eu na minha secção, na altura já éramos 75 lapidários, fiz-me assinante da República, era o número 21. Levava-a para casa, pagava 25 tostões e eu não tinha muito dinheiro. Não tinha muito dinheiro, não tinha nenhum dinheiro, todo o dinheiro do ordenado tinha que o dar à minha mãe. Lia-o de fio a pavio e no outro dia levava-o para a fábrica. Toda a gente lia a República. Foi um serviço que eu fiz. Gente com mais poder económico que eu não fazia isso de certeza absoluta. Não faziam, nunca fizeram, nunca tive conhecimento. Mas lá está, como costumo dizer, nessa altura dava gozo. Eu não sei se o termo será o indicado, mas eu penso que dava gozo um gajo lutar, ter com quem lutar. O que é que se faz agora? Chamam-se nomes aos políticos, bate-se nos polícias, os polícias nem batem nas pessoas. Antigamente era o contrário. O 28 de Outubro por acaso este ano foi comemorado, foi criado aqui um grupo de que eu faço parte também, o Grupo Antifascista Frente 18 de Janeiro. P: Isso foi em que ano? Sebastião Mota: Isto foi em 73. Que eles vêm aqui com a intenção de prender a juventude, os jovens mais ativos. Ali, conhece a Marinha? Está a ver onde está a estátua do vidreiro (está agora aí uma polémica por causa disso, parece que a vão mudar para o lado), em frente há um edifício, havia ai um banco, um grande café, que era o Panorama, ainda ali está uma casa de modas, que é o Sonho da Moda? Começámos a arrancar, só custou a arrancar o primeiro paralelo, daqueles quadrados. Ai, eles deram, mas você pensa que eles não foram bem aviados para Leiria? Ai foram, foram. É evidente que prenderam um ou dois bodes expiatórios, os mais ativos. No outro dia é julgado um aqui na Marinha. Bloqueamos logo a Marinha toda, ei meu Deus. E quando me vêm dizer, olha que Fulano, e vieram-me dizer a mim. E eu não tinha responsabilidades políticas nenhumas, não era controlado, bom era controlado no mínimo, fazia aquilo que me orientavam, mas diretamente do Partido Comunista não, era sempre por interposta pessoa. Vieram-me dizer que fulano foi visto atrás do Tribunal a falar com o Pinto Galante. O Pinto Galante era o diretor da PIDE de Leiria. Isso para mim foi uma faca no coração. Depois constou-se. Depois vínhamos de uma reunião da intersindical com o Presidente dos Metalúrgicos ao meu lado, chegámos às Caldas parámos, quando vínhamos à hora do jantar parávamos num snackbarzinho para comer um bifinho lá na frigideira, e começámos a encontrar pessoas da Marinha: Olha, mas a Marinha deslocou-se para aqui hoje, o que é que se passa? Era malta, gente do partido e do MDP/CDE, porque o [anonimizado], que ia no táxi comigo, que era Presidente dos metalúrgicos da Vieira, era o [anonimizado] da PIDE. E depois, confessou também: Olha, o [anonimizado] também dá informações. Isso já a gente sabe, porque o [anonimizado] era do sindicato e era da caixa de Previdência. Foi expulso de tudo. Mas ainda houve quem passado uns dois ou três anos, quem quisesse reavivar a Memória. Foi o [anonimizado], que era do PS. E eu disse-lhe: Olha doutor, não penses em fazer uma coisa dessas, é um erro político terrível. Queria dar o nome dele a um salão no Operário. E eu assim: Então dá o nome de um homem que traiu tudo? Ele tratava-me por senhor, ele era filho de um dono de um café aqui da Marinha. Oh Mota, eu estive a pensar melhor, você tem razão. Opá, esqueça, deixe estar isso no baú do esquecimento. Esqueça, não se meta nisso. Que a gente não sabia, não sabia o que é que saía. E a mim saíram-me algumas. Felizmente nunca fui preso, mas estive nessas tais reuniões preparatórias para a reunião da direção dos sindicatos antes do 25 de Abril. Eu cheguei a ter que fugir de motorizada, que eu chegava a Casa lá nos subúrbios do Engenho e via o carocha da PSP escondido, o carro da polícia. E não havia telemóveis para falar à mulher nem nada, era uma aflição. Eu ia para a Vieira com o [anonimizado], coitadito já morreu, cada qual na sua motorizada dormir a casa da sogra dele. Mas pronto, além disso eu estive preso depois do 25 de Abril. Numa reunião na Barbosa Almeida, em Avintes, quando o Presidente da região Militar do Porto era o [anonimizado], um facho. Entendem que a gente estava a fazer campanha subversiva, isto depois do 25 de Abril. E chama a gente, manda a gente, tropa, numa carrinha para o quartel-General do Porto. Os senhores ficam aqui em reunião permanente, estão em reunião permanente comigo. Estivemos lá dois dias e meio primeiro que fôssemos libertados. Esta não lembra a ninguém, esta, por isso é que festejas hoje o 25 de Novembro. Não me esqueço destas coisas todas. Isto tudo já estava a ser orquestrado aos poucos. E esta é a história da minha luta, já pareço o Raul Solnado [ri-se]. P: Diga-me, houve uma parte que não falámos, e podemos não falar, mas é a participação na guerra Colonial Sebastião Mota: Sim, sim. P: Houve uma pessoa que eu entrevistei aqui outro dia que disse que mesmo lá criou grupos de futebol, procurou de alguma forma promover algum relação. Sebastião Mota: Sim, sim. Eu tenho fotografias e tenho a faixa de campeão da região leste de Bafata de futebol de Salão. Tenho a faixa de campeão. E está emoldurada, protegida com vidro. Tenho lá na cozinha independente onde como. O que é que a gente lá faz? Ainda faz hoje oito dias, fui daqui com quatro amigos à Lourinhã, a casa de um camarada que esteve comigo na Guiné. Produz bens agrícolas e vinho e tudo: Epá venham cá. E vai lá a uma praia, não sei se já conhece a praia da areia branca, pelo menos já ouviu falar. Ao lado há uma praia selvagem que é Paimogo. Aquilo dá do bom e do melhor, navalheiras e polvos e moreias e ele pôs lá um banquete para a gente. E eu disse, disse aos outros que estavam: O [anonimizado] passou três meses no Mato sem vir ao quartel. Eu passei os 22 meses no quartel, eu nunca saí porque eu era escriturário. Mas não tinha nada que ir para a Guiné eu. Eu tinha que ser livre da tropa por amparo de mãe. Como o meu pai faleceu, a minha mãe foi-lhe detetada a angina do peito, sofria muito com aquilo e estava proibida de trabalhar. E eles levam-me. Tiro a especialidade. Vou para o quartel-general para Tomar, estava muito bem no Conselho administrativo rodeado de gente excecional. O Presidente do Concelho de Administração era um coronel muito amigo do meu chefe de secção de pintura aqui na Marinha, que era o senhor [anonimizado]. Eu estava ali, era jogar ping-pong e futebol salão. Até que me vêm buscar de Castelo Branco e já não pude voltar. Despedi-me da minha mãe por telefone. E como imagina, um homem fica completamente esfrangalhado. Lá vou eu com o Capote para Castelo Branco. Cheguei a Castelo Branco não era nada disso que me tinham dito. O embarque foi passado um mês. Podia ir para casa 15 dias. Mas eu devia ser livre por amparo de mãe, mas mesmo assim na tropa eu fui roubado, fui raptado, porque eu e mais nove, fomos para o quartel-general. Eu não era o primeiro, mas era o segundo e começo a ir à frente do quinto, do Sexto e do Sétimo, que estavam atrás de mim na classificação. E depois na Guiné é que eu percebi como é que se faziam as maroscas. Os primeiros sargentos eram os gajos que ganhavam mais dinheiro daquilo. Houve um gajo que eles mandaram embora, a troco sabe-se lá de quanto, e foram buscar-me a mim. E eu fui, estive lá. A única coisa que me resta é que nunca ninguém desconfiou de mim, nem na vida civil nem na vida militar, porque os relatórios secretos era eu que os fazia com o capitão. Os dois sozinhos num gabinete, como estamos os dois aqui. E o primeiro sargento nunca pôs o olho naquilo. Mas eu dizia-lhe assim: Oh General, quando eu cheguei a Castelo Branco e me apresentei você me perguntou, de onde é que tu és rapaz? Sou da Marinha Grande meu capitão. Opá, já só me faltava isto. Eu disse isso? Então não disse, não se lembra? Não, nós tínhamos muita intimidade, agora ele era General. Aliás, lá em Bafatá o nosso esquadrão tinha dentro do aquartelamento um ringue em cimento para jogar. Eu cheguei a jogar ténis com bolas da Dunlop, raquetes da Dunlop e redes da Dunlop. Deu-se o dia que eu jogava ping-pong e sabia a marca das coisas porque a maioria da rapaziada que lá estava não sabia nada daquilo e depois lá está a tal história, em terra de cego quem tem um olho é rei, brilha-se sempre, não é? Já se sabe, agora a raquete já sabe dar, embora o ténis de mesa seja muito diferente, mas há as noções. Eu gostava muito de andar pelas tabancas. Nunca provoquei ninguém, nunca chateei ninguém. Mas havia lá...eu fui mobilizado de Castelo Branco e 70% da unidade era gente das Beiras. Gente que o melhor que lhes aconteceu foi darem-lhes um colchão de luso-espuma na Guiné para dormir e terem garfo e faca e prato à frente para comer. Que aquilo era gente que vivia, coitados andavam lá nos campos, na pastorícia e pouco mais. E depois havia os outros os mais vivazes e, peço desculpa os mais xicos espertos, que eram os de Lisboa. Mas tenho grandes amigos. Havia lá um que estava de técnico de som na noite do 25 de Abril no Rádio Clube Português, o [anonimizado]. Esse gajo... adoramo-nos um ao outro. E morreu há pouco tempo um da Amadora. E é isto, você falou-me da tropa e os grandes amigos que eu tenho são da tropa. É que a gente vai lá, estamos ali dois anos a gravar aquilo no Coração. Como é óbvio, há lá outros que eu quase não os conheci. Eu tinha o meu núcleo de amigos, todos fazemos, é na escola, é em todo lado. Ai vínhamos cá abaixo, porque Bafatá já tinha três restaurantes, e vínhamos cá abaixo, quando tínhamos dinheiro para comer e tal. Eu ai ia tendo um problema, olhe foi um rapaz do Diário de Notícias que o teve, o [anonimizado], nunca mais me esqueço, já morreu. Era tipógrafo no Diário de Notícias. Quando a comida não agradava, a gente tinha que se manifestar. E eu sabia que tanto o praça, que tinha tanta verba para a alimentação diária como o General, o Governador General, era o Shultz na altura, depois já foi o Spinola. Tinham 24 escudos, o soldado tinha 24 escudos também. Porque é que os oficiais e sargentos têm messes e a gente ia.. eu aí meti a minha colherada por ser da Marinha, ser refilão, levava já um bocado da injeção da vida e há um sábado que nos servem arroz de caril com atum. A gente já não podia ver aquilo. Eu ainda estava na Secretaria. Eu normalmente ia sempre, tinha que fazer a ordem de serviço atrasada, mas guardavam-me a refeição. E chega lá um barulho e o capitão não estava. O que é que se passa? Epá, há um levantamento de rancho, vou já para lá. O Alferes, por acaso hoje é muito meu amigo, meu e dos outros, naquele dia, nunca mais me esqueço, que foi no dia 20 de maio de 1967, um sábado ao jantar. Ele puxa da walther: tau, tau, tau. A malta gritava: Não presta! – a bater tachos, porque pegada ao nosso quartel havia o comando do agrupamento onde estava um coronel. O alferes [anonimizado] (angolano, preto, professor e um gajo com uma classe, da área do MPLA, do Agostinho Neto), começa a levantar a voz e começam-lhe as terrinas a cair nas trombas e na farda, ele era um homem de arroz. Tudo para as casernas sem comer. No outro dia de manhã, eram sete da manhã, era domingo. Domingo para quem estava no quartel, porque para quem andava no Mato não havia domingos. Uma dornier a esta hora? Dornier são aqueles aviões pequenos com três gajos, o piloto e três gajos de gabardine, isto é uma vergonha, óculos escuros e chapéu, em Bafatá que às 7 da manhã já fazem uns 30 e tal graus de calor. Pimba, Pimba, interrogatórios, interrogatórios e interrogatórios. Como é que começou? Chegaram a esse [anonimizado] não sei como. Foi para o Paiol da Pólvora preso e no outro dia para Bissau. Esteve preso em Bissau, mas depois não conseguiram encontrar provas. Mas ficaram lá e foram os dois de Lisboa. Foi o [anonimizado], que trabalhava numa loja de modas em Alcântara, e o [anonimizado]. A senhora não se admire de eu me lembrar dos nomes deles todos. Estão todos aqui. Era todos os dias dois anos ali com os mesmos nomes. Já morreram ambos. Ficaram lá. Eu tenho um grande amigo, ali de Aveiro. Tenho lá dois, mas o [anonimizado] tem 80 anos e é professor doutor. Ele foi professor na universidade de Cambridge, de Lisboa, do Porto e de Aveiro e tem um gabinete de estudos da mineralogia da Ria de Aveiro. É ele que dá assistência, estuda a Ria de Aveiro. É evidente que está cheia de engenheiros. Agora eu assim: Então Lages, mas ainda trabalhas. Epá, trabalho. Mas ele ao pé de mim, parece meu irmão mais novo, com 80 anos. Um homem Atlético que fez sempre desporto, era bruto como um raio a jogar à bola, mas isso era elas por elas. E foi com esta gente que eu vivi, convivíamos muito. O futebol de salão então era a paixão que havia. E em Bafatá o Sporting Clube de Bafatá já tinha já tinha uma piscina, um cinema e um ringue. E o ringue quando chovia muito era outra piscina. Eram duas piscinas no Inverno, no tempo das chuvas, das monções. E nós fazíamos muito futebol de salão. Depois também joguei aqui nos veteranos aqui do Estrela do Mar, joguei aqui muita vez neste campo. Ainda joguei 35 anos à bola na Comeira. P: E diga-me uma coisa, teve alguma responsabilidade na autarquia ou na Junta de Freguesia? Sebastião Mota: Estive na autarquia. Fui deputado municipal. Mas depois era muito, eu não tinha tempo, queriam-me. Porque naturalmente sabe, quem está à frente de uma coisa, normalmente é empurrado para outra. Este gajo está-se a safar ali também é bom para acolá. E eu ainda estive em dois ou três mandatos na Assembleia Municipal. Depois, houve um certo divórcio. Sou militante do Partido, não renego nem nunca renegarei, mas não sou praticante. [Pede para desligar] Sebastião Mota: Eu nunca mais tinha falado com o homem, quando o Jerónimo de Sousa veio à Marinha Grande. Esperei que ele saísse, desse uns beijinhos. Então estás bom Jerónimo? Então como é que estás? E o Pina, tens visto o Pina? Eu já estive em casa dele lá em Benavila. Olha, amanhã tenho um comício em Avis e vou estar com o Pina. Então olha, dá-lhe um abraço. Algumas pessoas daqui da Marinha vieram logo a correr. Não sei se estavam com receio de alguma coisa que eu estava a contar ao Jerónimo Sousa, mas eu estava a única e exclusivamente a falar de coisas pessoais entre nós os dois, da nossa vida que passamos. Efemeramente, foi efemeramente. Mas não, mais nada. A partir daí, pronto, eu segui o meu trilho. Vou colaborando onde posso. Para já estou só com os reformados. Era para ir amanhã com reformados a Santarém, mas não posso. Tenho de estar com a minha mulher no hospital, a minha casa parece Alcoitão, queixa-se um para cada lado, é um manicómio. P: Então e nos reformados, quando é que começou a participar? Sebastião Mota: Olhe, comecei a participar como aluno de informática. Para aí há, sei lá, uns 7 ou 8 anos. Ai tenho que me matricular outra vez que eu já me esqueci de tudo. Pratico pouco. E depois fui abordado em minha casa, três elementos da direção da altura que entendiam que eu devia ir para Presidente da ASURPI e eu disse: Eh pá, não, Presidente da ASURPI não, porque tenho trabalho aqui em casa, porque eu para trabalhei em casa vinte e tal anos e ainda havia que fazer e eu não posso estar a abandonar isto para ir para a ASURPI, tem que ir para uma pessoa disponível. Eles foram lá duas vezes. Em relação ao meu nome desiludam-se. Poderia eventualmente, disse, ser Presidente da Assembleia Geral. Olha, em boa hora que eu fui para lá, mas pus como condição: Quem escolhe os meus secretários sou eu, não quero ninguém imposto. Sabe como é que isto funciona. Eu escolho os meus dois secretários. Um hoje ainda é meu Secretário e o outro é Presidente da Direção, porque eu disse: Não, tu sais daqui vais para Presidente da Direção. Tem feito um bom trabalho. Fizemos um bom trabalho na altura, porque aquilo havia lá uns certos desaguisados. As pessoas não se entendiam. Eu costumo dizer, somos duas vezes crianças. Às vezes tomamos atitudes menos corretas, mas eu cheguei a pacificar situações de aperto de mão. Não há nada escrito, não quero nada escrito em atas de assembleias, está aqui um aperto de mão entre cavalheiros e está assumido. E assumiu-se e resolveu-se felizmente, aquilo está muito mais desanuviado do que estava na altura que eu para lá entrei. E continua pronto e há amanhã uma reunião, a primeira reunião entre o Conselho Pedagógico, os alunos e os professores. Prevê-se para Dezembro arrancar, se a situação não descambar outra vez, vamos lá ver. Eu tenho muita confiança, como disse atrás, naquelas duas pessoas que convidei para lá e que aceitaram, que a direção posteriormente aceitou e que vão assumir. Para já são pessoas que têm conhecimento. Um, eu nem sabia e que me disse: Opá, eu dei sete anos aulas ali no ISDO. Oh Victor vê lá tu o que é que eu sei. Sei que tu és licenciado em recursos humanos e mais não sei. O Paulo é professor doutor também. Perante os próprios alunos, quer queiramos quer não, tem que haver o Dr., para haver um certo respeito. Não é que me faltassem ao respeito, eu é que acho que não tenho nem conhecimentos nem nada para estar a ocupar. Foi um cargo, um caso de emergência durante um ano. E depois fomos apanhados pela pandemia e não fizemos nada. Todos os projetos que tínhamos, tínhamos variadíssimos projetos em carteira para desenvolver, tivemos que fechar, Abrimos a sede dos reformados esta semana, a semana passada. Nós tínhamos ali uma componente social, porque temos muitas senhoras a colaborarem e todos os dias está um casal de serviço ao bar. Há dois bares, há um onde estão uns cadeirões e a televisão e tudo mais. E há outro que é para os homens, mais jogos de cartas, de dominó e onde h´ uma cozinhazinha onde se fazem umas bifanas, fazem-se uns pastéis, fazem-se umas petingas fritas, uns carapaus fritos.. Chegámos a detetar que quatro pessoas, a única refeição quente que comiam era ali, por volta das três da tarde. E então nós até decidimos cobrar um preço simbólico, porque víamos que as pessoas de facto eram necessitadas. Dois já morreram durante esta pandemia, agora ainda lá não fui desde que aquilo abriu. Tenho que lá ir amanhã, porque de facto há, como disse, à tarde a reunião da universidade e eu quero estar presente. E a minha vida resume-se a isto. P: Então mas o que é que o motivou a ter tanta participação? Tanta dedicação, tantas horas de trabalho voluntário, o que é que o motivou? Sebastião Mota : O que me motivou? Concretamente não sei dizer, acho que as atividades. Antes do 25 de Abril, dar o corpo, como se costuma dizer. Eu desempenhei tarefas no Império que ninguém agora dos mais novos imagina. Desde a coletividade lá em baixo, eu ainda fui da direção da Coletividade lá em baixo, na coletividade antiga. E havia um homem, um homem que era industrial, industrial não, tinha uma loja de móveis e também faziam alguns móveis, que me dizia, era o [anonimizado]: Oh Mota, e quando a gente tinha que descer com o cântaro, porque tinha uma piazinha para lavar os copos - era um cântaro de barro para amparar a água de lavar os cálices e os copos, esgoto não havia. As cervejas bebiam-se pela garrafa e as gasosas dos pirolitos. Vínhamos com um cântaro de barro grande, os dois, debruçados para vir despejar à casa de banho. Desde isso, foi tudo, agora está tudo.. está mais moderno por uns lados, está pior pelos outros. P: Mas só para terminar esta questão da motivação, era o desafio das atividades.... Sebastião Mota: Era, era e o amor e o amor. Sem o amor à causa, não se vai lá. E eu tinha muito amor ao Império. Aliás, eu tenho um defeito, por isso é que eu procuro não me ligar a mais coisas. Onde eu me ligo tenho que ir. Eu meti-me em coisas no Império quando era Presidente... Meteu-se-me uma vez na cabeça, lembra-se do conjunto Victor Gomes e os gatos negros? Fizeram um filme. Mas acabam de fazer um filme, o filme passa aqui a Marinha, passado um mês estavam a atuar no Império. Consegui o contato do agente deles. Foi um balúrdio que eles nos levaram, mas nós ganhámos muito dinheiro, tinha que ser portas abertas. Uma vez os Trovante, a seguir ao 25 de Abril, tivemos que montar uma bancada, uma bancada falsa, porque não conseguíamos suportar tanta gente. E pronto eram essas coisas. Eu tinha gosto também de inovar. E gostava de inovar, não sei se também se era das profissões. Porque eu tenho peças em casa, qualquer dia já me passou pela cabeça dar para o museu do vidro, mas ninguém me conhece e deixo lá estar para casa para os meus netos. Eu dava-me gozo o inovar, isso dava-me gozo. Então quando alguém me dizia: Mota, tens de fazer isto - para mim era uma ordem. Eu fazia. Nunca procurei aldrabar em nada e a opinião que as pessoas têm de mim, cada qual tem a sua, como é óbvio. Nós não podemos impor nada a nosso respeito. Mas penso que cumpri no tempo que cá andei, e cá ando, porque não estou para me ir embora já. Penso que cumpri bem com o meu dever. É evidente, há aquela história do sindicalismo que cria muito animosidade. Eu sou do tempo da madisca da carta aberta e disso tudo que esse Mário Soares e esse Gonelha fizeram antes de vir a UGT. E o meu nome chegou a ser alvitrado para representante dos Vidreiros na CGTP. Quando isto aconteceu, foi na altura que eu me afastei do sindicato. Caiu tudo por terra e olhe, cá vou vivendo. -
3 de Junho de 2021
José Augusto Mendes e Francisco José Fazenda Meruje
P: Se calhar podíamos começar pelo senhor, dizia-me o seu nome todo para ficar registado. José Augusto Mendes: José Augusto Mendes. P: Nasceu aqui na Covilhã? José Augusto Mendes: Nasci mesmo aqui neste bairro. A casa era ali, um barracão, nasci nessa casa, que foi deitada abaixo para fazerem a escola, que era aqui e depois é que passou lá para cima. Era para fazer lá na escola e depois foi feita lá em cima. Nasci em 1933. P: E andou aqui na escola? José Augusto Mendes: Andei na escola aqui? Não. Foi na escola que era ali, numa casa que aqui está ao lado, e andei lá em baixo, porque o grupo começou numa tasca. Foi num barracão que era aqui a seguir ao grupo, que era de um fundador, que era o Manuel da Cruz, que teve aqui as tascas quase todas. Esteve ali na tasca, esteve ali em baixo. E ele, quando organizou este grupo, foi ali num barracão que era lá a tasca. Havia mais tascas ... e depois daí nasceu o grupo. P: E a escola, fazia parte do grupo? José Augusto Mendes: A escola foi só depois, quando arrendaram, porque aquilo estava numa tasca. Foi organizado numa tasca e depois passou a arrendar aqui uma casa, aqui ao lado, e foi aí a escola, que era uma casa que agora é da família aqui do Francisco, que era altos e baixos, tinha rés-do-chão e primeiro andar. Depois daí passou para ali para o Zé Maria Couto, também pertence a essa fundação. P: E andou, fez aí... José Augusto Mendes: Fiz só cá a terceira classe e depois fui para a central. P: E aí na central fez até quando? José Augusto Mendes: Só fiz até à quarta classe, que era o que havia, porque nesses anos era a admissão ao liceu e eu cheguei à quarta classe, ainda estive na admissão ao liceu, mas depois desisti porque fui trabalhar, porque nesse tempo era assim. P: E foi trabalhar para onde? José Augusto Mendes: Fui trabalhar para o Gomes, aquela lá em baixo, na Ultimação, que agora também não há, é um restaurante, etc. E estive aí. P: Qual foi o ofício que foi aprender? José Augusto Mendes: O ofício que fui aprender foi o ofício de acabar as fazendas, era a acabação. P: E trabalhou sempre nessa área? José Augusto Mendes: Depois daí passei a ser chauffeur da Ultimação e trabalhava lá dentro, porque isto antigamente era assim. E davam-me mais um X para eu sair com a camionete e eu saía com a camionete. Depois daí ainda fui para a tropa, quando vim da tropa, a ver se arranjava melhor vida, comecei a andar, chauffeur, continuei a trabalhar nessa Ultimação e depois passei para o Fernando Antunes. Andei a ver de trabalho. Eu não queria ir para a Ultimação, disse: “Eu já não vou mais para a Ultimação.” Fui aprender a tecelão e saía da Ultimação às 4:00 da tarde, ficava à hora ao meio-dia, almoçava, pegava logo ao trabalho, depois saía às 4, às 4 ia trabalhar, a pegar na Rosa e Conceição, que era ali na estrada quando se vai para a floresta, que isso também já acabou, e então eu trabalhava até à meia-noite, até terminar. Aprendi a tecelão, ao fim de aprender a tecelão, andei a ver aí o que é que me podia aparecer. Fui para o longo curso, muito triste, de camionetes, depois fui ao Fernando Antunes, estive lá 34 anos, foi onde eu acabei. E depois, além de ser chauffeur, trabalhava no armazém de fios, que era dar os fios para urdirem as teias para os tecelãos fazerem a fazenda. Depois passei para o armazém de fazendas, que foi onde fiquei. P: E casou? Tem filhos? José Augusto Mendes: Sim, casei. Tenho dois filhos, o Rui e o José Alberto, que andam no Covimusica. P: E a sua mulher, também trabalhava na indústria têxtil? José Augusto Mendes: Trabalhava, era metedeira de fios na Nova Penteação. P: E os seus filhos, qual foi a profissão que seguiram? José Augusto Mendes: O mais novo tem o 12º e o outro foi para Eletromecânica, mas não completou. Enfim... P: E os seus pais, também trabalhavam na têxtil. Também trabalhavam aqui nas fábricas, os seus pais? José Augusto Mendes: Trabalhavam. O meu pai trabalhava na Ultimação, para onde eu fui, porque o meu pai não queria que os filhos fossem trabalhar para ao pé dele. Mas nós lá.... primeiro foi um irmão meu, que já morreu, que era o mais velho, esse é que foi o primeiro, depois eu digo: “Arranja-me lá trabalho para mim.” E arranjou-me. E eu entrei. Quando entrei lá e se isso era.. Nesse tempo, a gente ia, havia pais que era horrível, havia outros que não se incomodavam. P: E a sua mãe também trabalhava na indústria ou ficou em casa? José Augusto Mendes: A minha mãe estava em casa, depois é que passou a trabalhar também na parte da indústria, que era nas máquinas de preparações. P: É religioso, é católico? José Augusto Mendes: Sou. Como a família, não quero outra. P: E é filiado em algum partido? José Augusto Mendes: Não, isso de partidos eu não aceito nada. Eu tenho a minha ideia, partidos não quero cá. P: Então agora o senhor, pode dizer-me o seu nome todo? Francisco José Meruje: Francisco José Fazenda Meruje. Nascido na cidade da Covilhã, desde 1944. Tenho 77 anos. Eu fui já muita coisa. Portanto, casei, tive uma filha, divorciei-me. Estou sozinho. Estou sozinho e bem acompanhado, que ainda é melhor. Trabalhei nos lanifícios. Trabalhei na Argélia. Fui 20 anos aqui diretor, praticamente, uns anos como presidente, outros anos como secretário, outros anos como vogal. Claro que os lanifícios agora são totalmente diferentes do que eram antigamente. O último trabalho que tive foi no Campos Melo, na fábrica Campos Melo, estava no armazém, era o chefe de armazém. E ali o que faziam era só transformar a lã, para ser lavada e depois transformá-la em bobine. P: E é religioso? Francisco José Meruje: Sou religioso, católico, não muito praticante. No entanto, todos os domingos me farto de rezar Pai Nosso e Ave Maria, que estás no Céu. P: E é filiado em algum partido? Francisco José Meruje: Não, mas tenho a minha ideologia, é normal. P: E então digam-me uma coisa, esta vontade de participar nas associações é uma coisa que vem de família, ou seja, os vossos pais ou algum familiar já participava em alguma associação? José Augusto Mendes: Quer dizer, pelo menos o meu pai era, trabalhava, porque o meu pai não sabia ler, portanto, os que não sabiam ler só trabalhavam, não podiam ser diretores, era só trabalhar, e eu vim por causa dos meus pais, porque nesse tempo, nesta coletividade, os garotos não podiam entrar, só acompanhados pelos pais. E então ficavam à porta ou vinham com os pais e a gente começou a tomar assim coisa por esta coletividade, dessa forma. P: E o senhor?. Francisco José Meruje: O meu é diferente, muito diferente. O meu pai era instrutor. P: Era instrutor de quê? Francisco José Meruje: Instrutor de carros de condução. E eu nunca… não tenho carta. E podia ter e nunca quis. Dizia eu para o meu pai: “Oh pai, se eu tiver a carta, se comprar um carro, vou ser utilizado por muita gente para ir aqui e ali, porque eu não sou capaz de dizer que não e assim é dinheiro que poupo.” E então foi assim, a minha mãe praticamente estava em casa, mas tinha uma senhora, que era a dona desses carros e o esposo, e a minha mãe fazia lá a limpeza sempre, portanto, era como se tivesse também junto. Era o [...]. Eu, como atrás lhe disse, nestes 20 anos, praticamente, pertenci à direção, aconteceram coisas espetaculares. Uma delas, sabe muito bem que antes do 25 de Abril, não se podia dizer ai nem ui, entrávamos aqui, mas vínhamos com os pais, de outra maneira não podíamos entrar, só a partir dos 18 anos. E depois, indo mais à frente, aconteceu uma coisa espetacular, quando foi um ano em que resolvemos trazer o Francisco Fanhais aqui à coletividade, antes do 25 de Abril. E esteve quase para fechar a coletividade, adianto já que esteve quase para fechar. Tivemos depois a sorte de ir falando e tal e a coisa não aconteceu. Mas esteve aqui o Comissário da Polícia, estiveram aqui os Pides, estiveram aqui, que a gente depois veio a saber quem eram. Levaram os discos dele, levaram tudo que tínhamos aqui, foi assim. Passámos um mau bocado, nessa altura, mas nunca desistimos, continuámos sempre na mesma. Isto foi feito praticamente por sócios. Foi a fábrica Campos Mello, por isso é que tem o nome, isto era só Grupo Educação e Recreio, e o que é que aconteceu? Aconteceu que isto, estas pessoas que estão aí da primeira direção resolveram juntar-se e ir ao Campos Melo, porque trabalhava muita gente daqui, ali em baixo. Resolveram ir lá e falar com o Campos Melo que queriam construir o grupo e o que é que podia acontecer. Este terreno era dele, ele deu o terreno e deu 20 contos nessa altura, 20 contos era muito dinheiro, que conseguiram pôr a parte de baixo quase toda pronta. E a partir daí, ficou então posto ao Grupo Educação e Recreio Campos Melo. Ainda hoje em dia se vai, em Março, ao cemitério em homenagem dos sócios ao jazigo dele. Nós é que praticamente estamos a tomar conta do jazigo. P: O senhor já não se não se recorda exatamente desse período da fundação? Francisco José Meruje: Não me recordo, recordo-me mais por ler os livros e ouvir contar aqui às pessoas mais velhas. P: E o senhor, recorda-se desse processo de construção? Francisco José Meruje: Ele recorda-se, desculpe lá, ele recorda-se porque quando fizeram o salão lá em baixo, fizeram um palco para dar uns bailes e eles iam para debaixo do palco ver as pernas às senhoras. José Augusto Mendes: Quer dizer, a fundação disto, quando começou e começaram a fazer a sede, já tinha sido o grupo em dois lados. Depois foi quando o Campos Mello, conforme o Francisco disse, deu o terreno e começou. A obra que foi feita era só a entrada, uma pessoa agora entra, essa parte era fechada, mas estava a entrada de frente e era como esta divisão ou mais, mas apanhava altos e baixos e começava, e depois havia aí os bailes. Por debaixo estava a tasca, nesse tempo era tascas, não era bares. Havia a tasca, quando a gente entrava no terreno, depois havia a sala de baile e espetáculos, que já se fazia teatros e tudo, e depois havia o barbeiro, era pequenito, o espaço era pequeno, mas havia de tudo um bocadinho, barbeiro e tudo isso. Isso foi quando começou essa parte. Depois, começou-se a arranjar dinheiro e depois é que fizeram o resto até aqui, como está agora, praticamente, mas ficou tudo em aberto, não havia nada de divisões nem nada e depois fizeram, disso o Francisco já se lembra, porque já foi mais tarde. E então havia uma divisão a esta ponta, puseram lá a barbearia, e já era um café mais ou menos. Depois havia os bailes todos os fins de semana, vinham as sopeiras, antigamente eram as sopeiras, que eram as criadas de servir, chamavam-lhes muitos nomes, e vinham para o baile, que era a matiné, até à 7:00 horas, porque elas depois tinham que ir dar o jantar aos patrões. E então, até essa hora, das 3 às 7 horas, era casa cheia. Francisco José Meruje: Era uma animação. Senhoras, de um lado, homens do outro. José Augusto Mendes: E depois havia os bailes e depois havia, para se arranjar dinheiro, isso já eu pertencia a essas comissões, havia os lances. Havia os rapazes que, esta não queria dançar com ele e depois havia os lances, quem ficasse com o lance ia oferecer... Francisco José Meruje: O lance eram várias coisas, eram flores ou era... José Augusto Mendes: Ou era sabonetes, arranjava-se muito dinheiro assim. E havia então o beberete, que era o chá, as meninas só chá, então iam as meninas ao chá, havia o disco, claro, porque cada um ia buscar a moça para ao café e tinha de pagar. O rapaz é que pagava o chá, um ou dois, o que ela comesse. Francisco José Meruje: Depois tivemos também aqui o rancho folclórico. José Augusto Mendes: Foi, o primeiro rancho folclórico. Isso foi em 1954, andava eu na tropa. Francisco José Meruje: Depois fizeram-se aí muitos casamentos. Mas eram bons tempos, melhores do que estes. José Augusto Mendes: Eu pertenci a esse rancho e mais um colega. E havia a Feira de São Tiago, que era lá em baixo no jardim. Francisco José Meruje: Era no coreto, que agora foi embora daqui da Covilhã, não sei o que é que fizeram ao coreto, era aí, era no Campos Melo, no Oriental, nos Leões, aquilo ao fim havia sempre zaragata, mas depois acabava tudo junto, porque aquilo era aquele é que merecia ganhar, o outro é que merecia ganhar. Era assim. P: Então digam-me uma coisa, na construção da sede era trabalho voluntário, eram os sócios? Francisco José Meruje: Trabalho dos sócios, tudo feito pelos sócios. P: Então e esse dinheiro que angariavam nos bailes em que é que o usavam? Francisco José Meruje: Era precisamente para isso, ia-se fazendo aos poucos as divisões e pronto, havia um plano que estava traçado. Já não era como agora é, que é preciso ir à Câmara para fazer isto e aquilo. Nós temos lá em cima um polidesportivo, um ringue também, não sei se sabe, também lá temos um, também foi assim que se fez. Foram os sócios a trabalhar ali, embora se tivesse uma empresa, que havia coisas que não se sabia, não podiam ser feitas por nós, porque era arrancar pedras, tirar pedras e tudo do terreno. E foi assim que a gente o fez, com a ajuda do Castelo Branco do, como é que se diz, da Câmara, de várias instituições que nos foram dando dinheiro para conseguirmos acabar a obra que lá está em cima. Só que o problema agora passa-se na questão do pagamento do IMI, e isso tem que ser pago e tem que ser tudo. E por isso é que as coletividades estão um bocadinho em baixo, por causa dessas coisas, que deviam ser, que fazem tão bem à população, que deveriam ser isentas dessas coisas, se outras pessoas são e que não fazem tão bem à cidade e aos grupos e às coletividades… É assim e temos que ir vivendo conforme bate o batuque. P: Então começaram com os bailes, o rancho.... José Augusto Mendes: E havia uma cotização também. Eram umas cadernetas, eu não sei se o Chico se lembra, eram umas cadernetas e que com um carimbo punham só pago e mais nada. E depois é que passou então a ser com cortes. Francisco José Meruje: Mas era de facto um tempo diferente do que é este. Havia mais... José Augusto Mendes: Havia mais respeito… Francisco José Meruje: Este bairro era o mais populoso da Covilhã. Acaba por ser um bairro com menos população que há agora. Era uma coisa espetacular, a coletividade todos os dias estava cheia, depois tinha snooker, tinha as damas, tinha o jogo da sueca, tinha várias coisas. José Augusto Mendes: Era o loto, antigamente que isso era... Francisco José Meruje: Fazia-se os bailes de carnaval, era o segundo baile do país, no Carnaval, o melhor era lá em cima na Serra, tínhamos que proibir a entrada às pessoas, porque era aquele salão todo cheio. Às vezes, às 10h30 já ninguém podia entrar. Era uma coisa impressionante. José Augusto Mendes: E depois eram quatro dias. Era começar hoje à 1h00 e só saíamos de manhã às 8 horas. Francisco José Meruje: Sair às 8 horas para o trabalho. Sair do trabalho às 5h00 e ainda varrer tudo para essa noite, para ficar até às 4, 5 da manhã, ir trabalhar, eram quatro dias assim. Mas eram comissões espetaculares. P: Organizavam-se em comissões? Francisco José Meruje: Exatamente, para ajudar a direção. Era uma comissão que estava a tomar conta, por exemplo, ficar lá em baixo para ver se havia algum problema ou não havia e tal e tentar resolver sempre as coisas. José Augusto Mendes: Foi primeiro o teatro e depois é que foi o rancho, o primeiro em 1954, que foi a primeira vez o rancho. P: E o teatro foi quando? José Augusto Mendes: O teatro foi sempre, quando o grupo teve sala para dar espetáculos começou logo. P: Mas eram os sócios que faziam teatro? Francisco José Meruje: Era, um dos primeiros ensaiadores do teatro foi o sr. [...], que foi também presidente. Esse foi ensaiador, foi presidente, foi contínuo, contínuo da coletividade, e que estávamos todos e ele é que fechava, fazia a limpeza, fazia tudo. Isto porque, antigamente, isto tinha funcionários. Tinha funcionários que faziam cumprir as regras dos estatutos. Eu, se viesse à porta, que entrasse ali e ele me visse, o espanador que tinha na mão, ia ele e eu tinha de fugir, porque era assim e não entravam mesmo. Com os pais não havia problemas. Eu só comecei aqui entrar praticamente aos 12 anos, quando o meu pai vinha cá, é que eu vinha com ele. E ficava ali quietinho... José Augusto Mendes: Eu, quando me fiz sócio, tive que fazer os 18 anos, e agora não, fazem-se sócios logo que nascerem. Eu não, ficava ali à entrada, ali estávamos… Francisco José Meruje: Antigamente só aos 18 anos é que se podiam fazer sócios. José Augusto Mendes: Porque se me fizesse sócio nessa altura em que eu entrava com o meu pai, eu agora sou um número baixo, mas pronto, era mais baixo. P: E algum de vocês fez parte do teatro? José Augusto Mendes: Eu fiz, o Xico não, o Xico foi ensaiador. P: E quais eram as peças que faziam e qual é que gostaram mais? Francisco José Meruje: Uma das peças que todos gostámos mais e que estivemos agora a fazer outra vez, há cerca de um ano e tal, foi a Casa de Pais, que tivemos uma menção honrosa e até um diploma e tudo. Teve cá o Ruy de Carvalho, a servir de júri no teatro-cine da Covilhã, tivemos uma menção honrosa, uma senhora que não sabia ler nem escrever e decorou o papel todo, o principal papel todo, só as pessoas a lerem para ela dizer as coisas. José Augusto Mendes: Era minha tia. Eu tinha um meu tio, que era o professor aqui, que era o [...], que era um homem que tinha uma mão deficiente, e ele é que dava aulas aqui. Foi um dos professores aqui da Covilhã, porque quando levava alunos a exame, todos passavam e os outros não passavam. P: Era boa, a escola da coletividade? José Augusto Mendes: Era. Teve cá bons professores, sim senhora. P: Até quando é que durou a escola? José Augusto Mendes: Acabou não foi há muitos anos, que passou lá para cima, que era para ser feita no barracão que deitaram abaixo, onde eu fui criado. Francisco José Meruje: Já não tenho recordação. Isso, depois, a senhora ali nos livros vê lá, se quiser. Há muita coisa que a gente já… P: E vocês, com o teatro e com o rancho, passeavam pelo país? Francisco José Meruje: A Casa de Pais correu aqui a Covilhã toda, todas as coletividades, esta última… P: Qual é a história da Casa de Pais? Francisco José Meruje: A Casa de Pais é um filho que quer virar e está casado com uma mulher, portanto, está casado, é um casal e a mulher manda nele. A mulher é que manda nele e que diz o que há de fazer e o que não há de fazer e quer pôr o velho num sítio qualquer, quando o velho é que está a dar tudo. Depois há dois irmãos que são do outro lado e há outros, há o mais novo que está com o pai e que pega numa espingarda, pega em tudo, ameaças, mas ela manda-se para cima dele, a cunhada. E depois acaba por, pronto, acaba por tudo ficar bem, pedem perdão e tudo. Mas são três atos espetaculares. José Augusto Mendes: Deram-se cá grandes peças de teatro, sempre casa cheia. P: E o rancho, como é que era? José Augusto Mendes: O rancho não era como agora se faz, de nenhuma maneira, era, enfim... Francisco José Meruje: Era bom. P: E vocês, só faziam parte desta associação ou faziam parte de outras? Francisco José Meruje: Não, só desta associação. Somos guerreiros até ao fim do mesmo. José Augusto Mendes: Eu mais o Francisco somos os últimos sócios que estamos sempre aqui. Francisco José Meruje: E depois o Rui arranja-nos estes caldinhos. P: E as mulheres, as mulheres também se envolviam nas comissões? Francisco José Meruje: Sim, sim. Olhe a questão das marchas, por exemplo, estava a dizer à sua colega que aqui o salão estava sempre cheio, tínhamos as mulheres, elas faziam os vestidos, elas faziam tudo, quer dizer, havia sempre uma pessoa como eu que dizia o que queria e como queria e havia pessoas que estavam nas confeções, que trabalhavam nas coleções, traziam as máquinas delas e faziam tudo. Era espetacular o convívio, um convívio espetacular! P: E as mulheres também participavam nas direções? José Augusto Mendes: Sim, sim, sim. Francisco José Meruje: Ainda hoje há, ainda hoje esta direção tem. Tinha pelo menos duas, três, mas agora só duas, a [...]e a [...]. P: Andaram aqui na escola primária também? Francisco José Meruje: A [...]sim, a [...]não. José Augusto Mendes: A [...]é do Canhoso. P: Estou a perguntar acerca das mulheres em geral… Francisco José Meruje: Havia muitas mulheres na escola, tinha a escola dos rapazes e a escola das meninas. Não devia haver mistas nessa altura. P: Então, contem-me lá, estavam-me a dizer que antes do 25 de Abril ainda tiveram alguns problemas com a polícia. José Augusto Mendes: Tivemos sim. Era eu diretor e o [...], que já faleceu, que foi presidente da Junta, e tinha uma loja de mercearias aí nessa rua, quando se vem do Sporting, do antigo Sporting. Tinha aí uma mercearia, éramos nós e eu era presidente. E então há uma sexta-feira, a pior guerra foi essa, essa já não foi com o Francisco. E estava uma direção, nós íamos a sair, já cá estávamos há quatro anos e com isto a andar para trás, porque nós, quando entramos para cá não havia dinheiro. Nós então dávamos aos sócios quando morriam um X, ao sócio era um X, era 700 e depois passou para 1000. E era aos filhos. Pois é, quando nós entrámos não havia dinheiro. No primeiro dia que entrámos nesta porta, aparecem logo a pedir-nos dinheiro, nós não tínhamos dinheiro, sabe o que é que nós fizemos? O [...] diz assim “bom, temos que resolver isto, temos que pagar”. E agarrámos, tu ganhas X, dás X, que eu tenho aqui, e foi assim que pagámos. Eu ganhava menos, dei menos. O [...] deu mais porque podia mais. E pagámos assim os subsídios às pessoas para não cortar. Depois começou a entrar dinheiro, porque nesse tempo tínhamos 3000, 2000 a 3000 sócios, só a quotização dava muito dinheiro. P: Explique-me lá isso dos subsídios, eram subsídios de funeral? Francisco José Meruje: Eram mil escudos o homem... Acabou por depois se eliminar dos estatutos essa cláusula, porque já não tinha importância pagar isso, porque toda a gente, praticamente, tinha os funerais pagos pela caixa, mas o que é certo e verdade é que dávamos os livros para os filhos para a escola, que se davam também todos os anos, isto antes do 25 de abril, aos que estavam mais carenciados. E houve mais coisas que eu agora não estou recordado, na questão de beneficência para as pessoas. P: Mas conte-me lá melhor essa história de quando veio cá o Padre Fanhais.... Francisco José Meruje: Quando veio o Fanhais foi assim, foi anunciado que vinha o Fanhais e até era entrada livre. O salão completamente cheio, as pessoas vieram, mas não sabiam ao que é que vinham. Até eu nem sabia se havia PIDE se não havia PIDE, nessa altura. Ora, sei que fui a uma discoteca comprar o último disco dele, em vinil. Arranjei dentro do palco, com tudo fechado, arranjei um gira-discos, liguei a corrente e enquanto as pessoas entravam e estavam à espera que ele viesse, pus o disco a tocar, sempre ia tocando. Quando ele chega, abrimos as coisas e qual foi o nosso espanto, cantou aquela canção que diz os “polícias cães e os cães polícias” e qualquer coisa assim do género que agora já não me recordo. Vimos um burburinho na sala. Não, não houve assim grande coisa, mas um burburinho e a gente começou logo. Olha, há aqui qualquer coisa. E dissemos ao Francisco Fanhais: “Você vai já embora daqui no seu carro e, por favor, quando chegar ao Barreiro, diga-nos, por favor, se chegou ou não chegou bem, se há algum problema.” Ele saiu daqui e felizmente não houve problemas nenhuns. Ligou-nos, estava tudo bem, mas depois começaram aqui a ser interrogados os membros da direção, embora eu não estivesse na direção, mas os membros da direção foram interrogados. Chegámos à porta: “Aqui ninguém mexe, nem nada”. A partir daí, tivemos a sorte de que a coisa se esqueceu e a coletividade safou-se dessa coisa, mas foi, foi um.... Mas, quer dizer, levaram os discos, levaram o gira-discos, como já tinha dito atrás, levaram tudo o que era revolucionário. E depois avisaram: “Não façam mais disto, porque vocês não podem fazer estas coisas.” ”Mas isto é uma coisa normal, a gente traz as pessoas que podemos trazer aqui para ganharmos algum dinheiro, é o normal.” E ele não quis um tostão. E é assim, acabou assim a história. P: E a biblioteca? Tiveram algum problema com os livros da biblioteca? Francisco José Meruje: Não, não, nunca tivemos problemas na biblioteca. P: Era muito frequentada? Francisco José Meruje: Antigamente era, antigamente. P: Também emprestavam livros para casa? Francisco José Meruje: Sim, exatamente, ficava o nome da pessoa, ficava tudo e entregávamos um papel como ele entregou. José Augusto Mendes: E depois, quem lesse mais tinha um prémio. Francisco José Meruje: Também tinham um prémio. P: E houve pessoas que aprenderam aqui a ler? Francisco José Meruje: Sim, várias, havia a escola da noite para idosos, que não sabiam ler nem escrever. Então liam aqui, fechavam aquelas aulas, aquelas aulas normais, à noite, às 7h00 ou 8h00 horas e começavam as aulas na altura. José Augusto Mendes: Os meus filhos foi aqui que aprenderam a ler. O mais novo foi aqui, tirou a quarta classe. Eu não sei se ele chegou a tirar aqui, parece que teve de ir para a central. Já o mais velho não, ele tirou aqui a quarta classe e depois foi para o antigo liceu, foi para aí. P: Depois e depois do 25 de Abril, o que é que mudou? Francisco José Meruje: Depois do 25 de Abril, as coisas correram muito melhor. Quero dizer, esta coletividade já passou e conseguiu resolvê-las. Já teve problemas graves, ainda agora houve um que acabou de ser resolvido aqui com esta direção, de umas direções já muito antigas. Neste momento, a coletividade está saudável em questões financeiras, não deve um tostão a ninguém, graças a Deus, e estamos aqui no nosso cantinho, sem chatearmos ninguém e ninguém nos chatear. P: E diga-me uma coisa, nesse período, logo a seguir ao 25 de Abril, algumas populações fizeram coisas tipo construir estradas… Aqui também fizeram isso? Francisco José Meruje: Sim, tivemos aqui o parque, foi feito pela Comissão de Moradores, fizemos aqui no grupo uma comissão de moradores. P: Quando é que isso foi? Francisco José Meruje: Isso foi praticamente a seguir ao 25 de abril, talvez dois meses depois do 25 de Abril. Fizemos aqui uma reunião e tal, fez-se umas atas, tudo, foi-se a aprovar onde foi preciso ir e teve a Comissão a trabalhar. A Comissão arranjou aqui este coiso que depois foi entregue à junta de freguesia e ali o poço grande, não sei se conhece, que era ali um poço em que a água ia para a fábrica do Campo Melo para lavarem a lã. Vinha da Serra, tinha as minas todas aqui, ia ali o poço grande, como nós lhe chamámos. Aí a Comissão também teve que intervir, porque o [...], o senhor [...], não é, Queria fazer ali um prédio alto e coisas e a Comissão... José Augusto Mendes: E ainda foi, já tinha as paredes... Francisco José Meruje: E teve de se deitar abaixo e a Comissão de Moradores é que fez aquilo, porque senão ficava ali um monstro desgraçado, ainda está, mas não tem água, não tem nada, pronto, e aquilo está ali. José Augusto Mendes: Fazia-se lá desporto e tudo, havia sempre ali gente naquele tempo. E vinha ele a buscar as miúdas, porque não havia lá miúdas nesse tempo... Francisco José Meruje: Aquilo era a piscina antiga, a primeira piscina da Covilhã, com bancadas, com balneários... José Augusto Mendes: Com balneários, com pranchas para saltar e tudo isso. Havia festas aos fins-de-semana, festas mesmo. Francisco José Meruje: Acabou isso. Fizeram ali aquelas casas todas, que vêm desde ali do princípio até ao fundo de tudo. Era tipo um campo de futebol onde se jogava à bola e tudo. Acabou, isso acabou, queriam fazer um prédio lá, não fizeram, agora o que é que está ali? Está ali um sítio espetacular para se fazerem festas de Verão. E como é que conseguem fazer as festas de Verão quando a Câmara quer dinheiro? É que ali nós podíamos fazer as festas de verão. Agora, com esta epidemia é difícil, mas antigamente ainda se lá fez muitas, mas geralmente eles é que punham a luz, punham tudo, faziam tudo, a Câmara, mas depois começaram a querer que se pagasse. E uma coletividade como esta, era para ver se se ganhava algum dinheiro. Fazia-se lá uns bares, fazia-se uma sardinhada, uma carne entremeada e essas coisas assim de Verão. Aquilo ali era espetacular. Agora puseram uns aparelhos para se fazer ginástica e tal, umas bancadas. Se quiserem, depois quando sairmos irem lá ver e tirar umas fotografias, pode ser que interesse. P: E digam-me uma coisa, estavam-me a falar que houve uma pessoa da direção que depois foi presidente da Junta de Freguesia. José Augusto Mendes: Foi o [...], porque foi nessa altura que o grupo começou a ser mais controlado pela polícia. E então a salvação desta coletividade, nessa altura, foi esse [...], era o presidente da Junta. Nós tínhamos reunião, que foi uma sexta-feira, eu chego, que eu morava ali ao pé do poço, e quando chego aqui vejo a polícia com metralhadoras. “O que é que se passa aqui?”, nunca pensando que nós íamos a sair. A direção ia sair, que já cá estava há muito tempo. E a direção que vinha para cá era tudo comunistas, eram os comunistas, era o [...], era tudo, era lá de baixo, era o [...]. E então telefonei para o [...], o [...] morava naquela casa ali, e eu disse: “Oh [...], venha já, passa-se isto assim, assim, assim.” Ele veio logo, chegou aqui: “Eu sou o presidente da Junta.” O chefe da Polícia, assim que viu o Zé Curto, chegou: “Passa-se isto assim, assim. Vocês não abrem já a coletividade, senão… Hoje fica fechada.” Tínhamos assembleia, nem assembleia, nem nada. Fechámos logo tudo, mas o bar ficou aberto. O bar ficou aberto, só fechou a parte onde íamos fazer a assembleia. Fechou-se tudo, eles andavam, estavam por cima, a polícia a cercar tudo e então não houve assembleia. O [...]nessa noite foi preso, agora o resto não sei o que é que se passou. E depois esse [...], eu andei de mal com o ele, nem lhe falava, porque o gajo disse que eu é que o mandei prender, quando eu nem sequer falei em [...] nem nada. Eu nunca mais lhe falei. Mas depois, mais tarde, fizemos as pazes, porque ele soube que não fui eu. Francisco José Meruje: Mas isso era bom, porque antigamente havia muita gente interessada em vir para direções aqui, às vezes apareciam duas, três, quatro, cinco listas, agora nem vê-los. Antigamente era uma assembleia que estava aqui às vezes duas e três horas a discutir coisas, como devia ser e agora estamos à espera que apareça alguém, mas é difícil. P: E o que é que se discutia nessas assembleias com muita gente? Francisco José Meruje: Discutia-se os anos todos da coletividade, nessa altura que esteve cá a direção, se faziam bem, se faziam mal, podiam ter feito assim, podiam ter feito assado, os com culpas, outros sem culpas, era isto. Depois aparecia um que dizia “isto é uma bolinha de neve que anda tudo à roda”. Havia cá uns cromos, como se costuma dizer agora... José Augusto Mendes: O bolinha de neve ainda não morreu, ainda é vivo. P: E havia discussões acesas? Francisco José Meruje: Acesas mesmo, só que também era diferente, o presidente da Assembleia Geral: “Oiii” – e calavam-se, senão iam lá para fora, mas havia, costumava haver, muitos diálogos, mas eles: “Não, não, não há diálogos.” P: Mas discutia-se livremente? As pessoas diziam o que achavam? Francisco José Meruje: Livremente, quem tivesse de dizer, dizia, quem tivesse que apanhar, apanhava, e quem tivesse depois que reportar e dizer que não foi assim, foi assado. Era um debate que parecia a Assembleia da República. P: E diga-me uma coisa, esta gestão do dinheiro, de pagar os subsídios era uma coisa difícil? Francisco José Meruje: Sim, sim, muito difícil mesmo. P: Como é que vocês faziam? José Augusto Mendes: Quer dizer, esta coletividade tinha dinheiro nessa altura, havia uma vez que não havia, era consoante as direções que tivessem. Francisco José Meruje: Era consoante o que se recebia da Câmara, o subsídio de Castelo Branco, o subsídio da junta de freguesia, o subsídio… e aí, depois, é que se arranjava de facto algum dinheiro para… E depois havia então os bailes de Carnaval, que era de facto a altura em que a gente tirava o dinheiro para todo o ano de que a coletividade precisava. Bastavam quatro dias. A primeira coisa que a gente fazia era corrermos uns atrás dos outros à bilheteira: “Como é que está? Já pagámos o conjunto?” “Já.” “Agora, a partir daqui é só lucro.” E pronto, era assim, era assim que fazíamos. Andávamos para saber se as coisas estavam a andar bem ou não. E de facto fizemos aqui coisas espetaculares, vieram aí conjuntos de Coimbra, de Tomar, de vários lados, coisas espetaculares. E olhe, foi-se andando assim até que começaram a vir estes tempos e agora só nos dão dor de cabeça. Embora a gente não esteja na direção, mas dá-nos dor de cabeça também a quem tanto viveu esta coletividade, dá-nos dor de cabeça porque estamos a ver que não há continuação. Este bairro está desertificado, é só pessoas de idade. As pessoas novas, como o presidente, foram todos ali para aquela de Canhoso morar e as filhas deles e tudo. José Augusto Mendes: E quem teve a culpa disto tudo foi o [...] e sabe porquê? Porque era para fazerem um bairro aqui por cima.... Francisco José Meruje: É, aquilo era terreno, diz ele, que não se podia fazer e agora já andam lá para cima a fazer tudo. Não compreendo. P: Então mas não há muita gente nova aqui na coletividade? Francisco José Meruje: Não, não, novos, eu vou lhe dizer, contam-se pelos dedos, que moram aqui em cima, são aí uns 10 ou 12. P: Mas vocês têm muito cuidado em preservar a memória, têm um museu. Acham que essa memória passa para as pessoas mais novas? Francisco José Meruje: Passa e eles sabem. José Augusto Mendes: Só se aparecer, assim como foi com o meu filho. Ele apareceu, falaram-lhe do Covimúsica, e foi capaz de sempre... P: O que é que é o Covimúsica? Francisco José Meruje: O Covimúsica é um grupo de música popular portuguesa. José Augusto Mendes: Eles têm atuado muito aí, na cidade. Francisco José Meruje: Está praticamente, nesta altura do Verão, quase os fins de semana todos ocupado pela INATEL, para ir ao hotel de Manteigas, das termas, vai lá em cima aos hotéis da Serra e tem saídas aí pelo Fundão, pelo Teixoso... P: E foi criado aqui? Francisco José Meruje: Foi criado aqui. José Augusto Mendes: Foi, foi o meu mais velho que o criou. Francisco José Meruje: Já há 30 anos, e quantos são, oito ou nove? José Augusto Mendes: São dez. Francisco José Meruje: Há feminino e masculino, tocam a guitarra, tem a viola, tem o bombo, tem o pífaro, tem várias coisas. P: Mas aprenderam a tocar aqui, tinham uma escola de música? Francisco José Meruje: Tudo aqui, mas aprenderam por eles próprios, é uma coisa que nasceu mesmo deles. José Augusto Mendes: O meu filho é que sabia tocar um bocadito de viola e começou a tocar. P: E esse grupo está ligado formalmente à associação? José Augusto Mendes: Sim, sim, é do Campos Melo, tudo aquilo que eles ganham é para a coletividade, mas quando precisam de comprar alguma coisa é daquele dinheiro que sai. E têm uma aparelhagem, uma mesa de som, já do mais moderno que há, têm tudo. Joana Dias Pereira: Então até se está atualizar, a coletividade… Francisco José Meruje: Sim, sim, está a atualizar-se, porque tem uma pessoa à frente que é o neto do Sr. José, à frente daquilo que para a parte de cores e de luz e tudo isso, aquilo é espetacular. P: Então e pensando que até têm estas coisas novas e modernas, qual é que acham que será o futuro do associativismo? Francisco José Meruje: Aqui ainda podemos dizer que é um bocado difícil, mas sei que há de facto aí conhecidos, como os Pinheiros Altos, o Rodrigo, a Mata, não sei como é que está. José Augusto Mendes: Oh, está tudo mal… e ainda esteve pior. Francisco José Meruje: Agora aqueles que têm muita população, Canhoso, Teixoso, Tordosendo, todos esses têm muita gente ali, muita gente. Para mim, talvez o que tenha mais gente é o dos Pinheiros Altos, o Académico dos Pinheiros Altos, que é de facto o que deve ter mais gente. Depois tem aqui os Leões da Floresta, que é lá em baixo, com os estudantes também se safa. Está depois o Oriental, também é os estudantes, também se safa. Aqui temos a UBI, mas é praticamente dormir e isso tem aqui muita gente, mas vão todos lá para baixo. José Augusto Mendes: As boîtes é que deram cabo das coletividades, porque os rapazes novos querem é poder pedir até sei lá quanto. Eles pagam tudo e não dizem nada e se for aqui já falam. Francisco José Meruje: As discotecas é que deram cabo das coletividades. Porque antes de abrirem as discotecas, nós aqui às tardes, aos domingos às tardes, havia uma comissão e fazia uns bailes, e ao sábado à noite. José Augusto Mendes: Aproveitava-se tudo. Francisco José Meruje: E aproveitava-se, não era muito o que se pagava. Era um euro de entrada, mas era qualquer coisa, era sempre dinheiro. José Augusto Mendes: Isto no tempo da televisão, quando começou a haver as televisões, que não havia, o primeiro grupo foi este. O grupo pôs a televisão, as mulheres e tudo, tínhamos a sala que era ali onde está um café, parte do café. Francisco José Meruje: Tínhamos uma plateia. Os novos só vinham cá quando dava os cowboys e coisas assim, estavam aí, depois iam-se embora. Depois estavam cá as pessoas mais idosas, já podiam assistir à vontade. Mas depois pagava-se 5 tostões, era uma das quotas, rasgava-se uma quota e lá entravam, mas com rigor, não andavam a brincar e a rir de qualquer maneira, estava lá o contínuo, como eu disse, à porta de entrada. P: Mas isso era o cinema? Francisco José Meruje: Não, não. Era a televisão, a primeira. José Augusto Mendes: Quando se comprou a televisão, a primeira televisão era a preto e branco. P: Mas eu vi que tinha ali uma bobine de cinema. Francisco José Meruje : Não, também cá houve, davam-se espetáculos, havia um rapaz que morava nestas casas aqui em frente ao grupo, que estava no Inatel. Ele é que estava encarregado de trazer os filmes e rodar aqui. Esta foi oferecida pelo INATEL, esta máquina de filmes. P: E aí também cobravam entrada? Francisco José Meruje: Sim, sim, o valor era simbólico, mas pronto era dinheiro. Era dinheiro que entrava, sempre dava qualquer coisa. Todas as semanas havia um filme... José Augusto Mendes: Aproveitavam-se todos os tostõezinhos que se pudesse. Antigamente para se fazer isto tinha que ser assim, senão não se podia. Francisco José Meruje: E agora têm que dar às pernas para conseguirem aguentar isto como deve ser e são tempos muito difíceis nesta altura. José Augusto Mendes: Eu digo ao meu filho “eu tenho amor a isto”, mas tenho que lhe dizer. Ele anda quilómetros durante o dia, porque ele é vendedor e anda quilómetros durante o dia e depois aparece às quinhentas. E eu digo-lhe para ele: “Tu não podes ali andar assim.” Depois vem para aí, ele ajeita-se em pintar e ele .... E então eu digo-lhe muitas vezes: “Deixa aquilo, porque não é agora que sai”. Francisco José Meruje: Pois não, é verdade, isso é verdade. José Augusto Mendes: Mas ele tem amor a isto e tem lutado para isso. Por isso, não havia dinheiro, não havia dinheiro e agora têm dinheiro. Mas agora digo eu, há sócios que não merecem. Eu mais o Francisco já fomos aqui prejudicados. Agora não há, mas teve aí um tipo no café, nós fomos, sem fazermos nada, nós fomos metidos ao barulho e não tínhamos culpa nenhuma e esses sócios deixaram até de aqui vir. Francisco José Meruje: Mas isso é em todo o lado, há sempre. Em todo o lado é assim. P: Como é que acham que a coletividade marcou a vossa vida? Imaginam a vossa vida sem a coletividade? Francisco José Meruje: Agora não, isto foram anos e anos aqui a trabalhar bem, eu tinha fins-de-semana que era até às quatro e cinco da manhã, quando era das marchas a fazer as coisas todas. Eu e as outras pessoas que ajudavam. Estávamos aí semanas e semanas, eram dois meses, dois meses de azáfama, a irmos de um lado para o outro fazer isto e aquilo. José Augusto Mendes: Antigamente trabalhava-se aqui. Éramos todos, faz de conta que era só um. Todos trabalhavam, porque havia sempre um que era o primeiro e então esse é que dava as ordens e era assim, nós concordávamos ou não concordávamos, mas era assim. Havia uma comissão, era organizada, mas havia um: “Vamos fazer isto” e nós .... P: Como é que era escolhido esse que liderava? Francisco José Meruje: Era o que tinha mais ideias e o que sabia fazer dessas coisas. José Augusto Mendes: E depois apresentava ideias e nós apresentávamos ideias, digamos, vamos a fazer isto ... havia sempre ideias. Aliás, nem sempre havia acordo e o Francisco sabe, nessa coisa ele é mais novo do que eu, não é muito mais, claro que faz a diferença, e a gente, as comissões era tudo ok. Era sim senhor. Quando se visse que havia um que era daqueles que andava a desviar, não, tinha que ir embora. E isso era logo de cara. Ali a malta trabalhava, batia as três, batia as quatro, batia as cinco, estávamos sempre com eles... Francisco José Meruje: Eram tempos magníficos… Isto das marchas também, a pandemia também veio estragar tudo. José Augusto Mendes: Eu tive o Carnaval. Saía e ia pegar às 8 da manhã, mas apressavam-me para que fosse mais cedo, porque tinha lá o trabalho. Eu às 3 da manhã saía daqui e ia logo pegar ao trabalho sem dormir, sem dormir e isso era quatro noites seguidas. Francisco José Meruje: Não, era gostar e ter amor à coletividade. Desde que se tenha amor à coletividade e que se goste dela, uma pessoa parte que vive por ela. José Augusto Mendes: Pode aparecer, é verdade, mas é difícil, é difícil. Apareceu agora o meu filho, vá lá, e o outro, vá lá, e o Covimúsica têm-se aguentado. Já lá vão muitos anos e têm-no aguentado sempre. Ele é que tem sido sempre a base. É ele, o mais velho, foi o que formou o grupo, ele e mais um colega, e o colega anda meio doente. Têm amor por isto. Francisco José Meruje: E agora, também é verdade, temos aí a zumba, que é uma atividade para pessoas casadas e tudo, enfim, senhoras, que às segundas e quintas feiras fazem aqui a sua magreza, as suas calorias desaparecerem e é mais uma coisa que dá pouco dinheiro, mas que interessa à coletividade. José Augusto Mendes: São sócias e pagam. Francisco José Meruje: Têm uma pessoa à frente, que está a tratar disso e que sabe fazer as coisas e às segundas e quintas feiras aqui estão. Não houve durante a pandemia, no ano passado, não houve nada, mas agora que já começou a abrir já fazem, porque não é grande, são 10 ou 12 pessoas e podem estar ali à vontade para fazer exercícios. É assim... -
2019
A reação conservadora e a resistência do associativismo livre nas vésperas do Salazarismo
-
4 de junho de 2021
José de Jesus Nunes Simões
José Simões: Eu nasci na freguesia chamada de São Pedro, que depois foi extinta e integrada na União de Freguesias da Covilhã e Canhoso, que fica ali próximo da estação dos caminhos-de-ferro. Nasci em 1940 e vim com sete anos para o Refúgio. Aqui fiz a escolaridade básica, era o chamado primário, e entrei no mundo do trabalho com 11 anos. Fui trabalhar para uma mercearia da cidade. Entretanto, fui progredindo na carreira, mudei de entidade patronal para outra com melhores capacidade, uma loja maior. Depois fui para a tropa fazer o serviço militar e aos 20 anos fui incorporado no serviço militar, ainda não tinha começado a guerra colonial. Eu fui para a tropa em 22 de Janeiro de 1961 e a guerra em Angola começou no dia 15 de Março desse ano. Então eu sou mobilizado para Angola, fui dos primeiros militares a ir para a frente de batalha. Eu não tive lá nenhum tipo de problema, felizmente, vim de lá passado 27 meses, em 1963, com boa saúde, boa disposição, tal como tinha ido, sem traumas de qualquer espécie, nem físicos nem mentais. E, na altura, em 1961, eu saí daqui do Refúgio, que já vivia aqui desde os sete anos, aqui bem próximo, numa quinta, porque os meus pais eram agricultores, eu nasci no meio da ruralidade. E então eu fui daqui, e estava já a notar-se o embrião para a criação de uma coletividade aqui na zona, que é o Grupo Recreativo Refugiense, que está ali em frente. Eu fui em julho, e em julho/agosto… Eu tenho tudo documentado, eu tenho em meu poder todas as cartas que escrevi, à minha namorada e aos meus pais, e todas aquelas que recebi deles. Tenho tudo em micas, por ordem da data, tenho tudo arquivado. Então eu recebo uma carta da que é hoje minha mulher, hoje e há muitos anos, mas na altura minha namorada, a dizer: olha, já temos um grupo no Refúgio, tu já és sócio, que eu pus-te como sócio. Então eu sou sócio fundador sem nunca ter feito nada por isso, porque entretanto eu estava a fazer o serviço militar. P: Deixa-me só perguntar uma coisa, depois voltamos ao Refúgio. Ontem falei com um senhor que vinha também de uma zona rural e que me disse que achava que havia certas práticas de entre ajuda entre as pessoas do campo, que podem ter sido importantes para a origem do associativismo. Faziam a desfolhada em conjunto, ajudavam-se nas vinhas uns dos outros… Isso também acontecia aqui no Refúgio? José Simões: Acontecia, chamava-se ir merecer. Ora eu vou merecer ali o António, merecer era a troca, ele já tinha ou estava para vir fazer um trabalho à minha propriedade e eu ia fazer à dele, era a troca de funções. Havia trabalhos, realmente, como a senhora referiu, a desfolhada, a malha do trigo, do centeio, era uma zona muito rica em trigo e absorvia de facto muita mão-de-obra. Assim como a monda, a monda do trigo, era executado por mulheres, depois havia a ceifa, também era muito desse género, também a merecer. P: Como é que se organizavam? José Simões: Aquilo era já tradição, já sabiam. O vizinho do lado já sabia que ia ser convidado, porque também precisava do trabalho do outro. Havia essa troca de trabalhos, que chamava-se, aqui da zona, merecer. Eu vou merecer o Manel, que o Manel já cá veio, vou merecer o Manel, porque ele há de vir aqui. Colaboravam nas malhas, nas ceifas, na monda, tirar as ervas daninhas do milho. O trigo era sachado... P: As mulheres também faziam isso? José Simões: As mulheres faziam o trabalho das sachas e das mondas, era só de mulheres. Também faziam essas trocas. Os homens não se metiam nisso, assim como as mulheres não iam ceifar, nem iam cavar. Era um trabalho mais pesado, era entregue a um homem. P: E elas organizavam-se entre elas? José Simões: A organização podia ser comum, podia ser o homem a dizer: olha preciso que lá vás ajudar a minha Rosa que ela depois vem cá e tal. Isso podia acontecer, não é que tivesse de ser mulher com mulher, não havia esse preconceito. A sacha era feita por mulheres, a monda era feita por mulheres. A ceifa e o cavar da terra era feita por homens. A malha era feita por homens, com um mangual. O mangual era um utensílio que procedia à debulha do milho ou do trigo. Era bater na palha e os cereais iam caindo. Portanto, a função do homem era malhar e depois vinha a mulher com os vassouros (chamados vassouros, que são umas vassouras de giesta) e varria a eira e juntava a semente. Depois vinha o homem, que fazia a limpeza da semente, com uma pá que limpava a semente e vinha o vento e levava a semente que era mais pesada para um lado e o vento levava os resíduos para o outro. Portanto, só faziam este trabalho quando havia um bocadinho de vento. Esperavam que houvesse vento para desenvolver este trabalho. P: E quando iam a merecer, iam vários? José Simões: Iam vários… dependia do trabalho e da extensão da exploração. P: Como é que se escolhia quem ia? Era por relações de amizade? José Simões: Era organizado por família, era o primo, era o tio, era o cunhado e os vizinhos mais próximos, que eram amigos. P: E depois nesses trabalhos, como este que me descreveu, juntava-se bastante gente? José Simões: Juntava-se bastante gente. Dependia do trabalho, se o trigo era muito. Dependia sempre do espaço. P: E depois, faziam um convívio? José Simões: Claro, o convívio era indispensável, à volta da mesa ou da adega, os homens, era indispensável. P: Então acha que o associativismo pode vir daí? José Simões: Não sei, isso não sei. Até porque o associativismo vem de tão longe não é, e a senhora tem prova disso, que não sei se é por aí. P: Mas, por exemplo, especificamente aqui no Refúgio? José Simões: Aqui no Refúgio, o desporto rei levava muitas pessoas a organizar-se. Portanto, isso era uma fonte de obrigação de reunião, o futebol: 11 para cada lado, era logo 22, mais os suplentes, mais não sei quê, havia logo ali um grupo de 30 ou 40 homens. A mulher, nem pensar, a mulher não jogava à bola. P: Mas foi sua namorada que o inscreveu. José Simões: Que me inscreveu, sim, mas jogar à bola não. Depois acabou por haver necessidade de informação. Tinha aparecido a televisão, em 57, as pessoas não tinham capacidade financeira para adquirir o televisor e era o Campé, que era o restaurante do sopas, era o Campé, era o único aqui da zona que tinha uma televisão. O homem que era o dono era assim um bocadinho bruto e metia-se nos copos e quando estavam lá a ver o futebol: tudo para a rua! Estavam a ver a televisão: tudo para a rua. Vou fechar a porta e tal e fechava. E as pessoas começaram a ter mais necessidade ainda de se reunirem à sua vontade, de uma casa onde tivessem o seu televisor e vissem a televisão o tempo que quisessem. Ele fechava à meia-noite. Também à meia-noite a televisão acabava, não era como hoje, e era só um canal. Portanto, isso foi uma das razões. Depois, a guerra do Ultramar também trouxe a necessidade da notícia, saber do acontecimento, do que estava lá a acontecer. É através da televisão que se sabia. Tudo isso foi conjugado para que esta coletividade nascesse. P: Então, conte-me lá como é que foi: a sua namorada escreveu-lhe a dizer que já o tinha feito sócio... José Simões: Que já havia o grupo, que já me tinha feito sócio, era já sócio, ela cá pagava a quota de um euro por semana, entretanto eu regressei. Eu fui criado num ambiente rural. O meu pai era um excelente executante de concertina. E eu regressei e toquei concertina. Eu desde que me conheço como pessoa humana que me lembro do meu pai à noite. Acabava o trabalho do campo, que era duro, e chegava e tocava a concertina e a minha mãe cantava e era uma alegria lá em casa. E eu sempre senti essa necessidade da união. Como já tinha nascido aqui um agrupamento, eu integrei-me aqui. Entretanto, veio o ano de 1966 e foi criada aqui uma comissão de festas para comemorar o quinto aniversário do Refúgio, do grupo... Fui convidado e fiz parte, fiz parte de uma comissão de jovens. Fomos para a mesa: o que é que faz? Foi da altura em que começaram a aparecer os conjuntos musicais porque até aí era a grafonola, era o gira-disco, começou a aparecer o conjunto musical, também da província. Ah e tal, vamos buscar conjunto e eu disse: também ficava bem aqui era um rancho folclórico. Eu tinha de facto esse bichinho do folclore. Ai, é difícil...Posso fazê-lo à minha maneira? Ai se fores capaz. Então criei este grupo de folclore, em 1966. P: Como é que o criou? Com quem? José Simões: Foi muito fácil, foi fácil. Falei com o meu pai, que era o terror da concertina, falei com um senhor que já tinha organizado umas marchinhas e tal e o homem disse logo que sim. A juventude aderiu toda. Tivemos de selecionar: tu não prestas, que danças mal. Hoje andamos às vezes atrás deles: andai cá que eu dou-vos uma coisinha… Era uma localidade aqui na zona histórica, hoje tem 13 ou 14 pessoas, na altura tinha quinhentas. Havia aqui muita matéria para selecionar. Portanto, foi fácil. Aquilo foi para integrar esses festejos, mas aquilo correu tão bem, que eu já vos falei que havia de continuar e então já fomos ver de um chamado ensaiador, já quase profissional, um homem de acordeão, já com uma capacidade e pronto, arrancámos. Eu conto aqui a história [ofereceu-me uma monografia]. P: A que bom, obrigadíssima. Muito obrigado. José Simões: Vou-lhe oferecer. Então agora, em 2019, nós temos aqui na coletividade, no rancho, o presidente da Direção ligou-me agora, porque eles não fazem nada sem mim. Ligou-me agora, é o vice, o [...]. O vice-presidente é historiador, é professor e é historiador, tem várias obras e eu desafiei-o: Oh, professor, o senhor tem de fazer aí uma recolha, tem de fazer a história deste agrupamento. E ele disse: Oh, Sr. Simões, e já viu o trabalho que me dá? Então quem tem de fazer é o senhor, se foi o senhor que o criou, foi o senhor que esteve ao longo dos tempos ligado a ele. Eu gosto de escrever, gosto de escrever, eu tenho até outro livro editado, são as minhas memórias de guerra, que tenho vendido para todo o país, para todo mundo quase, que me pedem livros do meu tempo de guerra. Tem uma introdução do Nascimento, curtinha, ali uma introdução ao livro. Consegui que o prefácio fosse feito pelo meu comandante, que tem um valor histórico para mim, e depois conto a minha história da guerra, na primeira pessoa, sem ficção alguma, sempre o real. Lá está, foi aquilo que eu vivi e sofri e passei, os bons e os maus momentos, na guerra eram mais maus do que bons, mas também se passaram alguns bons. Então, está bem, professor, eu sou capaz de escrever e o senhor faz depois uma revisão? Faço. Pronto, e escrevi, então tem aqui a história. E então eu escrevi este livrinho com a história precisamente deste rancho folclórico. P: E então depois começou a ser uma coisa mais profissional, não é? José Simões: Profissional não chamarei, porque não há profissionalismo no folclore, mas passamos a ter mais cuidado. Começamos a fazer recolhas próprias das danças, cantigas, ia a muitos colóquios sobre folclore e etnografia. E, mais tarde, candidatámo-nos… muito difícil, uma candidatura muito difícil… a ser membros efetivos da federação do folclore português. P: Isso foi quando? José Simões: Isso foi em 1991, já. José Simões: E essas recolhas começaram logo nos anos 60, ainda? José Simões: Começaram logo, começaram em 66. Em 66 houve um arranque, depois os fatos que os elementos tinham usado, tinha sido tudo emprestado das várias coletividades, um tinha um fato, outro tinha outro e nós tivemos de devolver. Entretanto, em 1967, eu casei. Casei, fui viver para a cidade, fica um pouquinho… hoje é perto, na altura não havia automóveis como hoje. Da cidade aqui eram três quilómetros. Entretanto, eu venho para a cidade, o meu pai faleceu com 52 anos. Aquilo não durou muito, e parou, teve uma paragem. E então reorganizámo-nos em 1969, já com um traje próprio, com recolhas próprias, como sempre melhorando. P: Como é que fizeram? Como é que angariaram dinheiro para comprar os trajes? José Simões: Saímos várias equipas a fazer um peditório aqui às pessoas. Toda a gente dava, toda a gente queria o seu rancho folclórico – 20 escudos, 50 escudos, 10 escudos, tudo. Comprámos os tecidos, mandámos fazer, foi tudo gratuito, a confecção foi toda gratuita, portanto tivemos de adquirir os tecidos. O calçado tivemos de comprar. P: E baseavam-se no quê, para desenhar os fatos? José Simões: Eram baseados em fotografias da época. Eu tenho fotografias dos meus avós, dos meus bisavós, que serviram muito, eu e outras pessoas. E depois fizemos o apelo às pessoas que tivessem em casa roupas dos antepassados e, sei lá, das arcas, como eram. Era por aí… P: Porque a ideia era fazerem um fato que fosse aqui da região? José Simões: Da região e daquela época, de finais do século XIX e até aos anos 20, 30 do século XX. P: Porque é que era esse período? José Simões: Era o período em que começou a haver a consciência de que era preciso preservar. Até aí não havia grandes motivos para isso. E então foram criados organismos, mais tarde, na altura a FNAT, que é hoje INATEL, começou a preocupar-se um bocado com isso. Ainda no tempo do Salazar, talvez para desviar também atenções, está a ver? Criou várias coletividades até aqui na cidade. Essas coletividades tinham habitualmente o futebol para os homens e o folclore para as mulheres, e não só. P: Mas era para desviar as atenções do quê? José Simões: Desviar as atenções da contestação e trazer o povo contente. P: Havia muita contestação aqui na Covilhã? José Simões: Havia, aqui havia muita. Os lanifícios traziam muita contestação. Houve uma altura em que o primeiro de Maio só era reconhecido na Covilhã, só era celebrado na Covilhã. O resto do país, com medo das represálias... E mais tarde foi proibido também. Vinha por aí a PIDE, a GNR e tal, ia às fábricas ver quem estava a trabalhar. O patrão dizia: falta cá o Manel, o Jaquim e tal. Quem são eles? E tinham lá à porta e levavam-nos P: E então a FNAT criou estes ranchos? José Simões: Criou estas coletividades e apoiava o folclore e o futebol, eram as áreas.... P: E vocês tiveram apoio da Fnac? José Simões: Não, não tivemos, na altura. Porque entretanto, parece que havia liberdade, mas não havia tanta como isso… Como na freguesia de São Martinho havia já uma coletividade, que era o Oriental de São Martinho, e então já havia essa coletividade inscrita, não podia haver uma segunda. E então tivemos de ir por outro lado e conseguiu-se. Conseguimos através do Governo Civil e não ficámos integrados na FNAT, ficamos nas colectividades de cultura e recreio. P: Ou seja, conseguiram oficializar estatutos como uma coletividade de cultura e recreio? José Simões: Sim, sim, era mais o Governo Civil que dava ordens que podiam abrir e funcionar. Os estatutos e tal, assinados pelo governador civil, e mais tarde houve então a inscrição nas colectividades de cultura e recreio. P: E tinham sede? José Simões: Tínhamos sede ali, quando viraram para aqui, a sede está lá, fechada praticamente. Muito grande, muito boa, mas aquilo é um corpo sem alma neste momento. P: Do clube recreativo do qual faziam parte? José Simões: No grupo de recreativo do qual fazíamos, mas fomos obrigados a sair, há nove anos só, estivemos ali ligados. Agora foi instituído um estatuto próprio, mas nessas coletividade hoje vai uma direção que gosta de folclore, depois vai outra que já não liga nada, então é posto de parte. P: Então e nessa altura integravam o clube recreativo? José Simões: Integrávamos com estatuto próprio, nós tínhamos os nossos dirigentes dentro do grupo. P: Logo nessa altura, em 1966? José Simões: Não, nessa altura não se pensava muito nisso aqui, era tudo a monte. Em 1985 é que se começou a fazer essa revisão. P: Então até ao 25 de abril estavam junto do Clube? José Simões: Até ao 25 de abril e não só, estivemos até 1985. Contudo, depois criou-se o estatuto próprio para o rancho, ainda tutelado pelo grupo recreativo. E depois, em 2012, é que nos constituímos em associação autónoma. P: Então, durante esse período em que estavam lá, reuniam e desenvolviam a vossa atividade ali naquela sede? José Simões: Desenvolvíamos a atividade lá, mas os ensaios normalmente eram feitos fora, aquilo tinha condições para isso, depois agora é que fizeram obras, mas era muito pequenino. Então ensaiávamos na escola, nas garagens dos vizinhos: ah, podem vir aqui para a minha garagem. E íamos lá. Olha, afinal, agora já tenho aqui que meter o carro, já comprei o carro e tal. E íamos procurar outro espaço, foi assim um bocadinho de malas às costas. P: E também fazia parte da direção do clube? José Simões: Fiz parte da direção do Refúgio como secretário da Direção durante vários anos e presidente da Direção. P: Que outras atividades é que o grupo desenvolvia para além do folclore? José Simões: Desenvolvíamos atletismo. O futebol era quase a brincar. Eu joguei futebol, mas o atletismo era uma coisa a sério, chegámos a estar nos campeonatos nacionais. Eu tenho um irmão que foi na altura oitavo, no Estádio José de Alvalade, nos campeonatos nacionais de atletismo, que pertencia aqui. P: E isso era desportivo, e a nível cultural, era só o rancho? José Simões: Só o folclore. Fez-se também teatro esporádico. P: Organizavam-se em comissões? José Simões: Era em comissões, que não eram difíceis. No aspeto do teatro, quem fazia os ensaios era o [...], o escritor, é daqui do Refúgio. E então ele é que estava ligado a essa parte, tinha muito jeito, fazia os ensaios, programava tudo o que era essa área de teatro, mas era episódica. P: E era para fazer espetáculos aqui? José Simões: Fazíamos aqui. Ele era um indivíduo muito esquerdista na altura, mesmo antes do 25 de abril. E na altura ele ensaiou uma peça que era um comboio. Então fizemos aquela peça, estreou-se aqui, aquilo correu muito bem, muito bonito. Como eu disse, havia muita juventude, estavam prontos para tudo. Muita gente a assistir. E veio uma coletividade de cultura e recreio que é o Campos Melo: epá, vocês têm agora uma peça de teatro. Não foi o Campos, foi o Rodrigo, o Giro do Rodrigo. Têm uma peça de teatro, gostávamos que fossem lá e tal. Está bem. Nós queríamos era ir. Está bem, vamos lá e tal. Então foram tratar dos papéis, era obrigatório na câmara. A Câmara Municipal tinha de dar ordem que ia decorrer aquele espetáculo tal. Quando lá chegámos, aquilo era uma peça proibida, antes do 25 de Abril era proibida. Fomos lá chamados: vocês, o que é que estão aqui a fazer e tal? Nós armados... o outro sabia, que era muito esquerdista, mesmo do Partido Comunista. Olhe, íamos tendo dissabores. Ficámos pela apresentação. Já tínhamos colados cartazes, O Comboio! P:E tal aí pela cidade, quando chega...[ri-se] P: E tiveram mais problemas assim com a PIDE? José Simões: Não, nunca tivemos, aquilo acabou por não ser problema. Disseram-nos: isso é proibido. Nós não sabíamos, longe disso, a nossa ideia, de que realmente fosse proibida. P: E tinham biblioteca? José Simões: Tinham biblioteca, com limites, com livrinhos que também ofereciam. Iam oferecendo livros e fazendo uma bibliotecazinha. Chegou a ser engraçada. P: E havia muita gente a ler? José Simões: Havia muita gente a ler e tinha outra particularidade, aquela coletividade servia para tomarem banho. P: Muitas tinham isso, não é? José Simões: Todas tinham, quase todas tinham e estas rurais… esta fazia parte de uma freguesia urbana, mas esta parte muito mais rural e não havia casas de banho. As pessoas ainda andavam com a malga, todos os dias de manhã, a levar os dejetos. E então era o banho, o banho que era semanal. Pagava-se ali uma quantia irrisória para o gás e para a água. P: E tinham assim mais algum mecanismo de entre ajuda? Havia umas que tinham subsídio de funeral… José Simões: Havia subsídio de funeral e o respeito que havia na altura pelos mortos. Quando a pessoa morria, não havia música, não havia... Logo que fosse sócio, a televisão é desligada, acabava a televisão. A bandeira era hasteada a meia haste e depois havia... Houve assim umas coisas episódicas, que eu lembro que organizei lá, quando eu era presidente. Uma exposição de desenho do concelho, que teve uma adesão tremenda. Vimos difícil arranjar espaço para a exposição, andei de escola em escola a pedir, todas as crianças e os professores aderiram, os alunos fizeram muitos desenhos. Pronto, foi uma ligação às escolas, já nessa altura grande, e depois disso não tenho ideia de alguma atividade. P: Então e depois do 25 de Abril, como é que foi? José Simões: Depois do 25, até veio liberdades a mais, o rancho folclórico até parou, já tudo queria era discotecas e não sei quantos, mas depois recuperou-se novamente. Houve assim uns desmandos, umas euforias, mas enfim... P: E quando é que começaram assim com este interesse em preservar esta memória, quando é que isso começou? José Simões: Olhe, isto já vem de longe. Por minha iniciativa já íamos guardando umas pecinhas, já íamos arranjando… olha, fica aqui guardado numa lojinha, alugámos um espaço. Em 2000, adquirimos esta casa de renda. E começámos a montar aquilo que já tínhamos e fizemos um apelo às pessoas para que entregassem aquilo que lá tinham, que não deitassem fora, que nos dessem, nós reparávamos, se era caso disso, se não tivesse interesse, destruíamos nós. Começou a aparecer, em 2000. P: E no rancho, tinham a preocupação de ir procurar músicas que fossem tradicionais? José Simões: Sim, sim, tradicional. Até porque, a partir de 91, como membros efetivos da federação, não podemos pôr música nenhuma que não seja daqui da região. A música, a dança, a cantiga, o traje, o instrumento. É muito rigoroso, nós levámos o processo de integração para aí três anos. Vinham os técnicos e verificavam e chegavam ali e viam uma mulher que a meia devia ter este tamanho e estava assim, era rejeitado. É muito complicado. Eu costumava dizer que o processo de um grupo entrar como sócio efetivo da Federação do Folclore Português é mais difícil do que Portugal ter aderido à CEE. Muito, muito difícil. E mesmo agora, nós agora somos avaliados de dois em dois anos. Vem um grupo de avaliação técnica, cinco ou seis elementos, e nós temos de mostrar tudo: a dança, a cantiga, o traje, tudo, tudo ao pormenor, e depois somos classificados de zero a 10. Nós, na última avaliação, olhe em 2019, depois, em 2020, não houve, depois tinha de haver em 2021. Nós, numa escala de zero a 10, obtivemos 8,95. Muito bom, muito bom, mas temos que ter um cuidado extremo. Não pode haver unhas pintadas, não pode haver sobrancelhas tratadas, não pode haver vernizes, não pode haver pinturas. Nesse dia, as raparigas têm que tirar tudo. P: E antes, não era tão rigoroso? Como é que vocês faziam a investigação para... José Simões: Fazíamos, havia, as pessoas chamavam os incentivadores de carreira. Eles é que vinham. Olha, vem lá ensaiar o rancho e tal. Ah está bem, eu vou. Ele trazia as cantigas, que já tinha lá do repertório, que ele tinha recolhido ou não, não havia aquela preocupação tão grande. A partir de 1985 é que eu pus de parte esses ensaiadores, vi que aquilo não era nada. Comecei eu a fazer, a ler e a tentar informar-me bem o que era o folclore e a sua essência e tomei conta do caso. Os gajos não sabem nada, agora sou eu que tomo conta e comecei a aprofundar a informação que pus a prática no terreno. P: E o que é que descobriu nessa investigação? José Simões: Descobri que o folclore é uma arte, é também uma ciência e, como tal, ela não deve ser adulterada. Tem de ser o mais fiel possível às nossas raízes. Fiz muita recolha e pus elementos a recolher com as pessoas de 80 anos, 90 anos: olhe, o que é que cantava quando andava a bordar? O que é que cantava quando andava a sachar? E nós, com um gravador, íamos gravando. Olha, como é que se vestia? Olhe, ainda lá tenho uma saia da minha avó. Vá lá buscar: uma fotografia. Era feito desse modo. Era feito assim, ainda hoje se continua a fazer, agora menos. Agora já me vêm perguntar a mim, um ou outro... P: Eu estava a ver ali naquele livro que tem ali, que é muito interessante, que tem ali músicas do trabalho... José Simões: Esse foi o primeiro trabalho que nós fizemos, que o grupo fez, tem lá também um CD. P: Pois é… José Simões: O livro foi, é, um projeto nosso, do rancho, e do Grupo Recreativo, onde estávamos inseridos na altura, em 2004, e as recolhas eram daquilo que já tínhamos já feito. Depois, passou-se para a pauta musical, que é o trabalho conjunto, está também lá uma parte minha, mas foi coordenado pelo Doutor [...], que é um musicólogo, é mesmo formada em Musicologia Popular. E então, ele era muito nosso amigo e eu fui buscá-lo. Fui buscá-lo para o nosso lado e até agora está a trabalhar num projeto que estamos a desenvolver, está a trabalhar connosco. P: Qual é esse projeto? José Simões: Esse projeto é baseado naquela estrutura que foi agora criada de… deixa-me lá ver qual é que é o nome…É uma estrutura regional, vários conselhos se agruparam. Eles agora lançaram um programa, um projeto das coletividades. Nós somos líderes, aquilo tem de ter um líder e depois esse líder tem de arranjar associações dos outros concelhos. Neste caso, são cinco: Covilhã, Guarda, Fundão, Sabugal e Belmonte, estão agrupados os cinco. Comunidades Intermunicipais, é isso. E então vêm propor, é um projeto, é uma candidatura. Vão aparecer e nós estamos a trabalhar nesse sentido. Já escolhemos o tema, reunimos com as coletividades todas e todos apresentaram nomes para o projeto, por acaso foi o meu que foi escolhido. E chamo-lhe Unidos por um fio. Este fio condutor que nos une e ao mesmo tempo é o fio de lã, que engloba todos estes municípios. Agora, cada grupo, nós, o nosso grupo de folclore, que vai funcionar só com uma cantata, um cantarzinho de música e canto, não mete dança, para facilitar, porque são menos elementos, a logística é outra. E é menos gente a comer, porque o projeto inclui a alimentação, a verba que vão dar, no caso de sermos vencedores, temos que saber distribuir muito bem e quanto menos comerem menos temos de pagar ao restaurante. Temos um grupo de concertinas, que representa a Guarda. Um grupo de Bombos, que representa o Fundão e Sabugal, é um grupo etnográfico. De Belmonte é um grupo de cantares populares e do Sabugal é também um grupo de folclore, que vai com a tocata. Agora estamos a fazer essa candidatura com muito cuidado e queríamos que ela fosse aprovada. E nós estamos a liderar este processo e então fomos buscar o nosso vice-presidente, que é historiador, o Doutor Jorge Daniel, que é musicólogo. E estamos a trabalhar em conjunto para que essa candidatura possa ter muita força. Tem cinco espetáculos, um em cada concelho, é a obrigatoriedade. Nós já escolhemos o calvário, a capela do calvário. P: Diga-me uma coisa, estava-me a falar aqui desta cooperação entre associações, isso existe desde quando, ou seja, os ranchos folclóricos já se reuniam antes? José Simões: Os festivais folclóricos fazemos todos os anos. Nacionais ou internacionais. Nós tínhamos programado para 2020 o Internacional, o Grupo de Espanha e de Portugal. Tínhamos um grupo de Santarém, tínhamos um do Norte, de Gondomar, eram cinco ou seis grupos. Fazemos anualmente. P: Desde quando é que se começou a fazer isso? José Simões: Desde 1985. P: E antes do 25 de Abril, já havia essa interação entre grupos? José Simões: Havia, mas não estava tão enraizada. Havia, mas muito menos, muito menos. Os festivais do folclore, aliás, só apareceram depois do 25 de Abril. Porque são incentivados pela Federação do Folclore Português e a federação nasceu em 1977. Porque até lá também a associação livre não era admitida, não é? P: E então nasceu em 77 e começou a organizar essa altura... José Simões: Em 1977 a Federação do Folclore Português foi criada e começou a haver essa evolução no bom sentido, tanto pela qualidade dos grupos, como também na organização desses eventos. P: Qual é que foi o primeiro em que vocês participaram? José Simões: Foi um organizado aqui, no Refúgio. Eu lembro-me que fui à Câmara, em 1985, ao vereador da cultura e digo-lhe eu: oh senhor vereador, nós queremos organizar um festival de folclore. Epa, vocês são doidos, então vocês têm a capacidade? Quantos grupos? Cinco, seis grupos. Vocês não se metam nisso, já viu qual é a capacidade? Deixa isso connosco, deixa isso comigo. E diz ele: então, mas o que é que pretende de nós? Poder dar a notícia, não peço mais nada. Só quero que me monte lá um palco. Não pedem mais nada? Não! Se quiser depois dar mais algo... E organizámos muito bem. Depois, olhe, apareceu-nos alimentação, apareceu-nos tudo. A coisa correu tão bem, em 1985. A partir daí, nunca mais parámos. P: De ir a outros sítios e de trazer outros cá? José Simões: Vamos, também. No fundo, é retribuir a vinda, é o ir a merecer. P: E esse intercâmbio é importante? José Simões: É, importante, muito importante. É importante e mantém os elementos do grupo focados nesse projeto, que também gostam de sair, gostam de ir a Lisboa, ao Porto, a Paris, como já fomos duas vezes, à Ilha da Madeira, tudo isso. Pronto, se calhar nunca tinham ido lá… P: E quando vão por exemplo a Paris, são recebidos pelas comunidades portuguesas? José Simões: Sim, somos recebidos em casa de portugueses. Dormimos em casa dos portugueses. P: Que também têm ranchos lá? José Simões: Alguns têm. P: E nesses festivais internacionais, quem é que participa? José Simões: Participam grupos que nós convidamos desse resultado, também em permuta. Nós temos ido mais para os nacionais, por uma questão económica, porque fora do país custa mais dinheiro. Mas já tivemos aqui grupos de Badajoz, de Múrcia, fomos a Múrcia. Também já tivemos grupos de Toledo, Badajoz, como eu disse, e agora vamos ter… está contratado no próximo festival que houver, o grupo aqui da região da Extremadura, uma localidadezinha da Extremadura espanhola. P: Então e nesses festivais fora, juntam-se grupos de várias partes da Europa? José Simões: Sim, olhe nós, por exemplo, participamos há três anos num festival em Maia, Porto, onde estavam grupos de sete ou oito países. Pois, de Portugal estávamos dois, estava o Refúgio e o organizador. Depois havia do Peru, da Colômbia, de Espanha, da Venezuela… eram oito grupos ao todo, seis países, com Portugal sete. P: Eu já estive a estudar também as associações nas ex-colónias portuguesas e vi que no passado também havia associações de folclore lá, portugueses, Casa da Madeira. Vocês nunca tiveram intercâmbio com os países das ex-colónias? José Simões: Não, sabe, nós temos muitos convites, da Polónia, da Roménia… Mas não temos a capacidade económica para nos deslocar. Se tivesse um convite das nossas ex-colónias, também não íamos, com certeza. Eu nunca me apercebi, mas deve ter havido. P: E assim das comunidades portuguesas que há pelo mundo inteiro. José Simões: Isso há. Do Brasil, já tivemos aqui um grupo do Brasil. P: Mas de portugueses que estão no Brasil? José Simões: Portugueses que estão no Brasil, orientados por uma senhora brasileira. A diretora era uma senhora brasileira. Veio o grupo, o representante deles artístico é o [...]. Morreu há dois anos, veio aqui com eles, por duas vezes… P: E essa ligação, vocês para além de atuarem uns com os outros, o que é que fazem mais, discutem estas questões do folclore? José Simões: Habitualmente não há tempo para isso. É chegar lá, trajar, jantar… Os festivais são sábado à noite, habitualmente. As pessoas aqui trabalham até ao meio-dia, uma hora, em alguns casos, temos de esperar. Vamos de autocarro para o Alentejo ou não sei quantos, chegamos lá quase em cima da hora. Há uma sessão solene, sempre agendada com os grupos todos, com o presidente da Câmara, ou alguém que o representa, o presidente da Junta, os grupos todos, representação dos vários grupos. Uma sessão solene. Depois vamos ao jantar e vamos para o palco. E sairmos do palco, toca a tirar o fatinho, vestimos os nossos, meter no autocarro. E chegar aqui às quatro, cinco da manhã. P: Então diga-me uma coisa: isto do associativismo, porque é que dedicou tanto tempo da sua vida? José Simões: Por amor ao folclore, especialmente. Embora o associativismo também me diga muito. Eu depois criei aqui o Grupo de Cantar, ligado à Igreja, criei aqui um grupo de teatro, que fizemos quatro anos com a mesma peça em cena, percorremos quase o país todo. Com 60 elementos, eram 60 elementos, o grupo de teatro. O musical. P: Como é que se chamava? José Simões: O Nazareno, era baseado na vida de Cristo. Foi baseado, não sei se conhece, numa obra do Frei Hermano da Câmara. Era um fadista de um bairro de Lisboa que enveredou pela vida cristã. Foi para um convento, mas a voz não a deixou cá fora, como é lógico. Então ele tem uma carreira artística muito grande. E criou uma peça ligada à vida de Cristo, que é O Nazareno, uma peça musical. Nós adaptámo-la para o teatro, com instrumentos próprios, acordeão, órgão, viola, tudo organizado por mim. Fiz a encenação, encenei a peça e começámos a ser chamados para muitas outras do país. Nós, o último espetáculo que fizemos, terminámos, porque depois, entretanto, o rapaz do piano era professor, foi daqui para fora. Os professores andam sempre com a mala às costas. Foi parado e tal, pronto ficámos por aí. Fizemos o último espetáculo em Fátima, no anfiteatro Paulo Sexto, com 3500 pessoas a assistir, no Dia Internacional da Juventude. Foi criado por mim, isto é a prova daquilo que eu tenho dedicado à bandeira do associativismo também. E então dá-me muito gosto. Fui aqui também secretário da Direção da Associação Comercial dos Concelhos da Covilhã, Belmonte e Penamacor, durante três mandatos. P: Qual é a atividade que desenvolvia? José Simões: Ligados ao comércio, todo o comércio e indústria. Pagavam as suas quotas e depois fazíamos vários eventos, com alguma grandeza, na universidade da cidade da Covilhã, para apresentar um cortejo etnográfico. Coisas várias dessas, o cortejo do trabalho, exposições, ainda existe a associação, hoje com o nome de Associação, na altura Grémio, do comércio. Agora até me vão contratar para fazer um filme para a RTP. Sou personagem num filme que vai passar na RTP no último trimestre deste ano, A Traição do Padre Martinho. P: Que personagem é que vai fazer? José Simões: Tio Francisco. Já fiz, já está filmado. O protagonista principal é o Diogo Martins, um autor especialmente de novelas. O Ricardo Carriço, a Eva Barros, o Manuel Marques, que trabalha muito com o Herman, o Rui Mendes, o consagradíssimo Rui Mendes. E depois, havia no meio do elenco todo dois atores não profissionais. Então fizeram um casting, mas não disseram para que era. Puseram-me a ler e depois telefonaram: o senhor está contratado para fazer, vou entrar em contato consigo para acertar valor. Eu julgava que aquilo era de borla. Para acertar valores e combinar, precisamos de si, pelo menos três sessões. Depois ligaram: olhe, já falou o não sei quantos consigo? Já. Era para acertar valores. Olhe, 125 euros por cada sessão, mais alimentação, está bem? Eu até achei muito dinheiro. Olha, então vamos lá ver, 125 × 3, não é? Exatamente. Se for preciso mais alguma? Está bem! P: E então, foi o teatro, foi os cantares. Quando é que isso foi? Quando é que começou? José Simões: Isto foi na época de 80. Os cantares foi um bocadinho anterior, foi na década de 70, talvez. Depois criei o grupo de teatro na década 80 e tal. Foi só aquela peça. P: E os cantares era como, era um coro? José Simões: Cantares era um coro, vestidinhos com um papillon os homens, as mulheres uma echarpe. P: E o que é que cantavam? José Simões: Eram repertórios populares, mas não rígido aqui à região. Cantiga popular, fosse de Lisboa ou do não sei quantos, cantávamos tudo. P: E onde é que atuavam? José Simões: Olhe, em vários locais, nunca saímos aqui da zona. E eu lembro-me de um espetáculo que participámos para a Rádio Renascença. Veio aqui fazer um espetáculo à Covilhã, fomos contactados, contratados não, contratados era se ganhássemos dinheiro. E lá fomos fazê-lo, ao ar livre e aqui assim na região, várias pessoas: ah, vocês têm um grupo de cantares, vão lá… Vamos, então não vamos? P: Então foi o folclore, foram os cantares, foi o teatro e foi isso. Não fez parte das coletividades da Covilhã, quando estava lá a trabalhar, foi sempre aqui no Refúgio? José Simões: Sempre aqui no Refúgio. Não, na Covilhã só aquela associação comercial, já virada para um patamar mais elevado. P: Então, e entre todas estas experiências, qual foi aquela que mais o marcou? José Simões: O que marcou mais foi o grupo de folclore. Mas gostei muito daquela do teatro, o teatro musical, porque foi preciso escolher muita voz, selecionar muita voz. A voz de Cristo, de Maria, dos anjos, do dono do Canal, do Doiro, havia muitas vozes que era preciso selecionar, bem cantadas, tinham de ser bem selecionadas. Isso dava algum trabalho. P: E diga-me uma coisa, a Covilhã é uma zona muito fabril, toda gente praticamente que eu entrevistei está ligada à indústria de lanifícios… José Simões: Eu por exemplo nunca estive. P: Mas aqui o refúgio também? José Simões: O Refúgio também teve aqui uma fábrica, aquele poema que eu fiz… Refúgio, local com muita história, vivências e memórias, Terra de trabalhadores, operários e doutores, escritores, poetas, pastores, agricultores, foste refúgio de hebreus, tecestes ....(?) Fardaste os soldados dos quartéis, produziste finos tecidos, vestiste nobres e mendigos. Foste terra de realeza, de povo e de nobreza. Recebeste El Rei de Portugal, D. Carlos de boa memória, enriqueceste a tua história, transformaste o trigo em farinha, acolheste a Rainha monarca do teu país, Amélia de seu nome, em teu palacete dormiu e o povo a aplaudiu, foste, és terra de tradições, de festas e romarias. Acolheste a festa brava, touros e toureiros numa praça com história construída pelo fogo, pela tristeza do povo. Os tempos transformaram-te, desse resta a história, mas continuas a ter gente com garras e valentia para construir o teu futuro de cada dia. Cá está, ligada à indústria. O Rei Dom Carlos visitou a indústria em 1891, depois de inaugurar os caminhos-de-ferro da Beira Baixa e dormiu aqui. O nome do Refúgio… Há várias ideias. Ao concreto, acho que ninguém sabe. Parece que a mais lógica, que tenha a ver com o D. Sancho II, o Povoador. Ele tentou povoar esta zona, no caso inóspita, pouco da obra, de montes e tal. Então, todos aqueles que andavam fora da lei ficavam integrados da sociedade, se chegar aqui refúgio. Chegavam aqui, eram fora de lei. Eu quero ser cidadão livre. Eu quero me integrar aqui, pronto. Quero aqui ficar. Essa é uma daquelas que é mais consentânea. Também tem muito a ver com os hebreus, no tempo da Inquisição, parece que aqui também era um bocado o refúgio deles. Mas há muitas versões, não sei qual é a correta… P: Então, agora, e só para terminar, diga-me, queria saber o que é que acha que será o futuro do associativismo? José Simões: Olhe, eu já vi isto quase a desaparecer. Depois parece que vejo outra vez a pegar no fio, e que a coisa terá futuro. Enfim, estou convencido que sim. Estou convencido que sim. É verdade que talvez precise de uma reciclagem, porque hoje já ninguém vem à associação para bailar, para dançar. Os bailaricos é na discoteca. Já ninguém vem cá para tomar banho. Já ninguém vem ver um jogo de futebol, tem em causa tudo. Tem 100, 200 canais, sentado no sofá, lá estão em contacto com o mundo. Terá de haver outros motivos que possam atrair as pessoas, isso vai muito da imaginação dos dirigentes. Os dirigentes têm de ter mais sensibilidade do que antigamente. Antigamente qualquer um dava. Porque aquilo era abrir a porta e as pessoas entravam, era pôr o disco a tocar e as pessoas dançavam, era ligar a televisão e a sala estava cheia. Hoje não, mas até tenho esperança. P: Aqui o vosso rancho está perfeitamente modernizado, até faz candidaturas. José Simões: Sim exatamente. Agora, nós somos uma associação um bocadinho sui generis, porque não tem aqui uma casa aberta. A senhora vai a qualquer associação e vê os bilhares, as cartas, vamos ajudar, vem outro beber um copo de vinho, um café e tal, é tudo o que é necessário. Nós não temos. É uma associação um bocadinho diferente. Cá dentro estão as 50 pessoas do rancho, os 100 e tal associados que temos e uma capacidade... tivemos de nos munir de dirigentes com alguma ação: o Doutor Vítor Tomás Ferreira, que já foi presidente de junta, que está ligado à Universidade, é um professor, que é um historiador, um professor. Está a ver, tivemos que procurar pessoas, que, não tendo a ver propriamente com o folclore, têm outra capacidade para poder atrair, desenvolver este projeto. Porque depois, bem, este projeto também não é qualquer pessoa que saiba… Portanto, as associações têm necessidade também de ter um corpo dirigente capaz de saber encarar o dia de hoje e de amanhã e ter capacidade para criar condições atraentes para os jovens e para os menos jovens. Se houver essa capacidade, acho que as pessoas continuam a ter necessidade de se reunir. P: Também acho que sim. Agora só para uma questão estatística, que eu tenho perguntado a todos os dirigentes: professa alguma religião? É católico praticante? José Simões: Praticante, sim, pode considerar. Não vou todos os dias à missa, mas pode-se considerar que sou católico praticante. P: E é filiado em algum partido político? José Simões: Nunca fui filiado. Ou melhor, fui filiado num partido político durante uns tempos, e desisti. A minha filosofia política enquadra-se muito na social-democracia. -
3 de junho de 2021
José Marques Martins e João José Silva
P: O Sr. José Marques Martins nasceu aqui? José Marques Martins: Nasci em Tondela, ou melhor, em Canas de Santa Maria, freguesia de Canas de Santa Maria. P: Em que ano? José Marques Martins: Em Tondela, em Setembro de 1946. E inicialmente, por curiosidade, apesar de ter nascido oficialmente no dia 29, nasci no dia 11, que é uma data diferente. Tinha que ser. Eu só soube que tinha sido no dia 11 já tinha perto de 30 anos, de maneira que são coisas de histórias, mas que gosto de recordar sempre. Porque a minha mãe, que Deus a tenha, quando eu a convidei para ir para o aniversário: então mãe venho-te buscar ou venho... Que eu já estava casado, e ela: então, quando é que tu fazes anos? Oh mulher, então tu tiveste-me e não sabes? Pois, mas tu não nasceste no dia 29, o teu pai roubou-te na idade, porque antigamente era assim, portanto para dar uma ideia... P: Os seus pais faziam o quê? José Marques Martins: O meu pai tinha a profissão de sapateiro, mas foi um grande corredor de bicicleta, treinou e correu Porto-Lisboa. Aliás, se chegar à Folha de Tondela tem lá uma grande... e daí nasceu, talvez venha dos genes dele toda esta história da… e tenho ainda recordações, portanto, dos jornais em que o meu pai correu Porto-Lisboa, correu a Volta a Portugal, na altura do Américo, do Faísca, do Trindade. E então, claro, não era um corredor, mas tinha um grupo desportivo... P: Já tinha na família a propensão para o associativismo.... José Marques Martins: A minha mãe é doméstica. E depois mais tarde é que ele aprendeu a profissão de sapateiro e a agricultura. E foi isso. P: E estudou lá... José Marques Martins: Estudei em Tondela, no Colégio agora escola secundária, e depois saí de lá com 18-19 anos. E então fui apanhado, como todos os outros da mesma idade, para irmos até à guerra, que foram dois anos, cada um com as suas memórias, nem tanto agradáveis, mas pronto, não vamos falar nisso. E quando vim, tive que recomeçar a vida. Foi uma geração sacrificada, aquela geração da altura em que fomos para a guerra. Portanto, nós tínhamos uma forma de estar, porque vivíamos no campo, o nosso crescimento estava dominado por uma certa formatação. Nós, quando queríamos respostas, diziam-nos: porque sim, porque tinha que ser assim, assim é que era. O Colégio onde andei, católico, também tinha a rigidez religiosa de então, muito mais forte. E nós na agricultura fomos crescendo. Claro que depois apareceu ali uma… naquela altura dos Beatles. Depois éramos muita juventude, havia muita juventude, havia mais filhos, não havia televisão, como eu costumo dizer na brincadeira. E então havia muita juventude e por isso nós juntávamo-nos, fazíamos o tal grupinho de futebol, para ir tomar banho para o rio, para ir para os bailaricos, portanto, havia isso. E onde é que nós nos juntávamos? Nas tabernas, que era um sítio onde víamos um Bonanza e outros que tais. A taberna antiga foi sempre um local de encontro, ou lá dentro ou cá fora. Enquanto os mais velhos estavam lá dentro a beber uns canecos e a jogar à sueca, nós estávamos cá fora, porque não tínhamos autoridade de entrar, porque éramos miúdos, mas já queríamos ir e esse foi o nosso crescimento. Depois tudo mudou, quando aparece o 25 de Abril, mais tarde, portanto, abre-se. E, é claro, quem teve condições para progredir na formação, muito bem, quem não teve, ficou sempre naquele estado. Claro que depois houve aquela vontade em termos um futuro melhor e foi quando se abriu a possibilidade de os caminhos para a França, para a Suíça, para a Alemanha, em que as mulheres ficavam a tomar conta da agricultura. P: Mas o senhor José não emigrou? José Marques Martins: Era para ter emigrado, mas, felizmente ou não, como tive oportunidades de emprego logo de imediato… P: Qual é que foi a profissão que depois seguiu? José Marques Martins: Depois, quando vim, embora tivesse várias opções, mas porque já tinha família constituída, fui para os laboratórios da celulose, em Vila Velha de Ródão. Estive lá três anos e depois de lá é que vim para a Covilhã, para o Instituto de Emprego, antigamente era o Serviço Nacional de Emprego, e ingressei como técnico de emprego e toda a minha... até à minha aposentação. E depois, mais tarde, também me ordenei diácono, portanto, e aí houve razões para essa via, são histórias de vida. P: Não se casou? José Marques Martins: Casei pois, os diáconos podiam se casar. Casei e já estou viúvo. Tenho dois filhos e duas netas e, portanto, foi essa história de vida. Aqui caí e há histórias que a gente conta, quando venho aqui para a Covilhã, gostei de vir. Porquê? Porque embora estivesse em Castelo Branco, eu passei aqui de madrugada e há duas imagens que eu guardo da Covilhã, que jamais me esquecerei: que foi ver pelas seis horas da manhã, mais coisa menos coisa, ver os trabalhadores que eu não sabia para onde é que iam, todos em fila, lá iam com uma lancheira na mão. E então perguntei para a minha mulher, que ela andou aqui a estudar, eu não estive: onde é que esta malta vai? Vão trabalhar, vão agora para o turno. E eu achei curioso irem àquela hora todos, mas uma grande fila de gente. E uma outra imagem quando chego ao Souto Alto, quando vinha do Fundão e comecei a olhar para a Covilhã de madrugada e a vi toda Iluminada, que me deu uma semelhança com o Funchal, onde passei quando vim da Guiné, porque nós parámos no Funchal, porque trazíamos uma companhia de caçadores do Funchal, e deixámos lá alguns colegas falecidos. E a imagem que guardo do Funchal é quando eu acordo, pela coxia do barco, vejo também aquela montanha toda iluminada, que tem uma certa semelhança com a Covilhã. E eu disse na altura, talvez dois anos antes de vir para aqui trabalhar, para a mulher de então: olha, gostava de trabalhar aqui, mal eu estava já a pressupor que um dia vinha aqui parar. Cheguei e, como vim para aqui morar e esta foi a casa para onde vim cair e caí aqui, vim para aqui jogar, ainda me lembro, jogar às damas com um vizinho nosso que já faleceu, que era o Fernandes… E havia cá um contínuo que até tinha uma certa dificuldade no andar, o Sr. Pinto. E então a história do associativismo também começa um pouco aí, quando nós estávamos os dois muito bem a jogar e o senhor Pinto chega e diz assim: podem continuar a jogar, mas é bom que se façam sócios da casa, têm ali uma fichazinha. Então, deu-me essa ficha. Mas têm que pagar uma joia, e a joia era, salvo erro, 50 escudos, ou coisa do género, na altura pagava-se a joia. E pronto, e foi no ano de 1973-74, depois apanho o 25 de Abril. Eu ingresso no serviço de emprego em 73. Estou em Lisboa porque venho para fazer a formação em 74, Janeiro, e o 25 de Abril nasce a seguir, portanto, eu apanho toda essa zona, claro. Depois também gostei de saber o porquê daqui nas fábricas, porque eu vim trabalhar para uma casa e para eu poder ser capaz de poder fazer um serviço melhor, tinha que saber como é que os trabalhadores trabalhavam, porque quando lá estávamos a fazer uma entrevista e aparecia um tosador, aparecia um tecelão, aparecia uma metedeira de fios, aparecia não sei quê, tinha que saber o que é que isso significava para poder ter uma ideia, numa entrevista, do que tinha à frente. Por exemplo, havia cá umas cento e tal fábricas, ou mais um pouco, e eu fui visitá-las todas e fazer um estudo técnico das máquinas. Técnico, isto é: o que é que a metedeira de fios faz? Como é que ela faz? Que instrumentos é que ela utiliza? E depois via tudo isso durante o dia e à noite era aqui no Grupo Instrução e Recreio, no Campos Mello, no Ginásio, e as atividades eram aquelas que, para além do Futebol Sporting da Covilhã, como é evidente, mas eram aquelas que agregavam mais gente. Claro, depois apareceram, mais tarde, outras. Quando apareceu a Universidade, muito mais se abriu. E portanto, saber o porquê disto, talvez também pelo gosto de saber da História daqui, como é que nasce e, portanto, cheguei sempre à conclusão de que é o mesmo em todo o lado. Havia um objetivo comum daquela gente, juntavam-se. Havia um objetivo comum, havia também um cimento que era a solidariedade entre eles e toca de fazer uma coisa que fosse benéfica para os outros, para o bem comum, para eles próprios, e que desse formação àquela gentinha. Foi sempre essa a evolução associativa. Aquilo que, com quem eu conversava, com os mais velhos, era isso: epá, nós queríamos era, queríamos aprender, mas não sabíamos ler, queríamos saber mais, queríamos que os nossos filhos....E eu lembro-me que os meus pais diziam assim: eu não quero que o meu filho ande com uma enxada nas mãos. Possivelmente aqui os tecelões, eu quero que os meus filhos não saiam e não sejam... P: Queria fazer ao senhor José mais duas questões para estatística. Na realidade, estou a perguntar a toda a gente, se é professa alguma religião. José Marques Martins: Sou católico. P: É católico, claro, e se está filiado em algum partido político ou já esteve. José Marques Martins: No Partido Socialista. P: E já agora também ao senhor João, ficamos já com estas duas questões: é religioso, professa alguma região? João José Silva: Católico. P: Também é católico e é filiado em algum partido político ? João José Silva: Também no PS. P: Então vamos começar pelo início. Nasceu aqui na Covilhã? João José Silva : Sim, nasci, criei, fui criado, fui batizado, fui criado, casei e a minha vida foi sempre praticamente na Covilhã. P: Nasceu em que ano? João José Silva: Em 1947, 12 de janeiro de 1947, e fiz sempre aqui a minha vida. Aliás, sou filho da terra. E sou filho dos meus pais. O meu pai era técnico de tecelagem, afinador de teares, e a minha mãe metedeira de fios, ainda há bocado o Marques Martins estava a dizer que não sabia o que era uma metedeira de fios… a minha mãe era realmente metedeira de fios. P: E o senhor João, também foi trabalhar para a indústria têxtil? João José Silva: Eu trabalhei relativamente pouco tempo, porque era assim, era difícil na altura. Os meus pais… éramos três irmãos, duas irmãs, comigo três, e era muito complicado, porque na altura os ordenados eram relativamente baixos e viemos morar aqui para o bairro do Rodrigo, onde, na altura, a renda já era um pouco cara em relação àquilo que ganhava o casal. E o meu pai teve que me chamar a atenção e dizer: vocês têm que trabalhar, têm que ajudar a casa. Eu fui trabalhar, comecei a trabalhar com 12 anos. O primeiro emprego foi precisamente, não foi na indústria têxtil, acabei por ir para um gabinete de advogados onde estive, fiz alguma formação e depois apareceu uma outra situação, mudei e acabei depois por ir para a indústria, porque a firma para onde eu fui a seguir encerrou por motivos que desconheço. Então eu, para não estar desempregado, sentia-me um inútil, no termo da palavra. Eu queria realmente era a minha independência, ter algum para poder, ao longo da semana, planear o que eu poderia fazer e então foi quando eu estive, pouco tempo, na indústria, fui cardador, com 18-19 anos. Depois surgiu a hipótese de uma outra situação: convidaram-me para ir para o Sindicato da Indústria de Lanifícios do Distrito de Castelo Branco, onde estive desde 1964 a 1968. Entretanto, fui à inspeção, fiquei aprovado e toca de ir para Angola. Não sei o que lá fui fazer, para Angola, fui forçado, fui obrigado. Estive lá três anos em África. Regressei de África e, claro, a minha preocupação foi arranjar alguém com quem casar. Casei e também já estou viúvo. E pronto, tem sido... ainda andei na escola Campos Mello, mas não concluí, porque era difícil na altura. A gente chegava do emprego às sete da tarde, das nove às sete da tarde. E às 7:30 tínhamos que entrar na escola, na escola Industrial e comercial Campos Mello. P: Qual é que era o trabalho que tinha na altura? João José Silva: Na altura estava ligado ao Sindicato dos Lanifícios como funcionário. Entretanto, pronto, não concluí. Reconheço que a própria juventude, os namoriscos... Até acredito que podia ter, podia ter conseguido outras coisas, mas não, porque era muito difícil. Entretanto, depois de ter vindo de África tive um pequeno comércio, uma papelariazinha, que abri na altura. Estive a explorar aquilo durante dois anos, foi quando surgiu a hipótese de ir para o Hospital Distrital da Covilhã, onde estive 40 anos a trabalhar como auxiliar de ação médica. Gostei imenso daquilo que fiz, gostava imenso, adorava a profissão e a prova está que nunca saí do mesmo serviço, não, tive o mesmo trabalho sempre, todo esse tempo. Por incrível que pareça, e não está aqui que não nos ouve, fui apanhar lá o Sr. José Marques Martins com problema de rins. José Marques Martins: Mal eu sabia que tinhas passado pela minha mão para ir para o hospital, eu sabia que ele era bom… João José Silva: Sempre dedicado à cidade e o José Marques Martins é uma pessoa que eu conheci de perto, desde 1973. Agora, porque somos vizinhos… José Marques Martins: Eu andei com as filhas dele ao colo. João José Silva: Éramos uma família aqui, éramos uma família, toda a gente se dava bem, toda a gente se comunicava, era importante. E o Grupo Rodrigo, quer se queira quer não, ajudou e continua a ajudar muito nessa parte. Não tanto como nessa altura, porque era aqui que a gente se concentrava, era aqui que a gente conversava, era aqui que a gente bebia o nosso café e jogámos ao 21, para saber quem é que pagava os cafés, jogava-se as damas, como o Martins dizia, o snooker, o bilhar livre, as cartas, o dominó... José Marques Martins: Depois do trabalho, onde é que nós íamos conversar? Tínhamos o jornal e líamos, ouvíamos as histórias e depois começámos a.... João José Silva: Criar amizades… José Marques Martins: E depois há sempre os mais velhos, aqueles que estão nos órgãos sociais. Quando chegava a altura da revitalização de novos órgãos, iam apontando este e aquele e o outro não sei quantos. Bom, eu falo por mim e pela minha experiência, fomos indo e olha, estive cá desde 1975 até há dois anos atrás. Foi sempre, só tive um interregno de quatro anos. Portanto, depois passei para a Assembleia, que para lá me queriam chutar, mas criámos coisas interessantes e a beleza disto, não sei se concordarás comigo, com certeza de que sim, a beleza disto é que nós, mesmo não tendo a mesma… tendo opiniões diversas, conseguimo-nos juntar para pormos a coisa a funcionar, porque íamos à procura, com a nossa diversidade, de elencarmos um programa que fosse o melhor possível. E deixávamos as diferenças para irmos buscar aquilo que mais nos unia. Hoje, já não vejo, infelizmente, não acho que já não é tanto assim. João José Silva: E, acima de tudo, estavam os interesses da coletividade e não os interesses.... Exatamente como estar ligado à política. Eu, aliás, apanhei o José Manuel Martins na política, mas era muito antes de mim, o estar na política não queria dizer que a gente que se aproveitasse de alguma coisa como interesse pessoal, nós viemos para aqui para defender os interesses da coletividade. Era extremamente importante. José Marques Martins: Era engraçado, era belo, primeiro para nós. Vamos lá ver, o associativismo funcionava, não, funciona, porque nós trazíamos a família connosco, não fisicamente, mas vinham connosco, no coração vinha connosco, e nós queríamos que esta casa, que é a casa que vínhamos também trabalhar, que as famílias se sentissem aqui bem e por isso, quando tudo o que nós fazíamos era sempre com o objetivo… tanta vez que nós dizíamos aqui: as nossas esposas são aquelas que nos aguentam para estarmos aqui nos órgãos sociais. João José Silva: Aliás, a minha até realmente colaborou imenso, e as filhas, no rancho folclórico, nas marchas populares… José Marques Martins: Na costura, elas faziam tudo e a tua filha, ela também, as danças rítmicas, os miúdos… Quer dizer, elas também cresceram com esse gosto porque viam que os pais tinham gosto e se eles... às vezes eu perguntava: vocês gostam? Vocês andam cá… E, portanto, este gosto passava-se de pais para filhos. Porque era uma coisa linda e tudo o que era feito não era com o intuito de “eu fiz”, não, “nós fizemos”. Nós fizemos, e isso para nós foi... P: Então e essa propensão que vocês passaram para os vossos filhos, terão herdado dos vossos pais, os vossos pais tinham participação associativa? João José Silva: Eu no que diz respeito ao meu pai, sim. Foi sempre um....e era trabalhador na indústria de lanifícios, quer dizer, aliás, o movimento operário na Covilhã nessa altura era fortíssimo, como deve calcular. E ele já… ele entrava aqui e eu recordo até uma passagem extremamente importante, importante e desagradável ao mesmo tempo. Aqui na altura só se conseguia, a direção, na altura, só autorizava a admissão de associados que tivessem mais de 17 anos. E o meu pai vinha, eu vinha com o meu pai, mas só podia estar com ele, porque se ele não viesse, não me deixavam entrar e ele ainda arranjou uma chatice porque soube na altura que houve associados que admitiram com menos idade que eu, e só aos 17 anos é que me consegui fazer sócio desta coletividade. José Marques Martins: Aliás, era aquilo que diziam os estatutos. No meu caso, quer dizer, para além daquilo que o meu pai teve, aqueles genes, eu já via a coisa de outra maneira. Depende também tudo daquilo que nós temos na nossa alma, que vai cá dentro, porque repare: o meu pai também tocava numa banda, numa música, numa filarmónica, na Filarmónica de Tondela, e eu aprendi música também, por aqui, para tocar alguma coisa num órgão, porque me ajudava também nas celebrações. Mas gostei sempre do teatro, porque mesmo nos meus tempos de colégio eu fiz muito teatro, que é o teatro da escola. Fora disto, na minha aldeia, na minha zona, nós criávamos grupos, sem querer, que nem sequer chamávamos associação. Era um grupo em que nós nos defendíamos, em que nós sabíamos as coisas uns dos outros, em que nós nos ajudávamos uns aos outros e aprendemos a ver isso na agricultura, quando este grupo ia ajudar aquele na sacha e nas vindimas e aquele ia no outro. E isso, para nós, quer dizer, para nós era bom. Eu gostava porque também andei nisso, íamos: agora vamos ajudar aquele, depois daquele, vamos ajudar aquele e portanto, quando chegávamos ao fim, à noite, para nós era uma alegria vermos que todos estavam felizes, porque alguém ajudou outro e sabia que aquilo funcionava. Se me perguntassem o que é que isso era, eu hoje reconheço que aí já eram… havia um objetivo comum, havia o bem comum, isso era associação, era uma associação. Só que não era… aqui, quando eu chego à Covilhã, a coisa já era diferente, porque existe uma indústria, existe aquilo que nós também lá sentimos, os industriais daqui começaram a dizer assim: alto, precisamos que os nossos filhos… precisam de ter algo que os ensine, que os forme. Porque se nós não dermos condições aos nossos filhos para se educarem, para se formarem, não vale a pena continuar. Essa foi uma das razões que o associativismo nasceu aqui e lá também, pelo desporto, que é sempre uma escola de educação, em que havia também a parte da música, as letras e quando não havia escolas, era ali que nós íamos aprender. P: Fale-me mais nessa ideia, é muito interessante essa ideia de quase comunitarismo que existe na agricultura. José Marques Martins: Sim, muito importante, muito importante. Porque eu sinto isso de nós nos juntarmos em grupos e virmos para as grandes vindimas daquela zona do Dão. Nós íamos em grupos e havia sempre o líder do canto. O canto era aquilo que fazia a agremiação de todos. As desfolhadas, íamos agora a desfolhada, por hipótese, e íamos depois à desfolhada do não sei quantos e então nós todas as noites nos juntávamos e o milho aparecia nas eiras. E então como é que nós criávamos essa... isso é que que eu trouxe e que me ajudou. O que é que nos ajudava? Nós não íamos para as desfolhadas e estávamos ali feitos monos a desfolhar. Havia uma rivalidade como existe nas associações. A rivalidade de rapaz com a rapariga: eu liderava a parte do canto dos rapazes e picava as raparigas, onde havia uma tal Fernanda, que também picava os rapazes e isso criava... e quando nós damos por nós, já estava o milho, já estava tudo desfolhado, já estavam espigas todas no sitio como devia ser e já estava lá uma mãe, ou uma avozinha, a preparar o bacalhau com cebola e com tomates e com pão para nós comermos tudo no final da desfolhada. Isso era festa, fazíamos essa festa. E, portanto, isso cresceu connosco e ficou cá. Depois, é claro, aparecerem condições numa zona, como aqui apareceu, condições para trazer à tona aquilo que nós fazíamos, vamos em frente. Ou paramos ou deixamos que isso cristalize… Ou então fazemos aqui. Eu recordo que uma das primeiras coisas que fiz, que ajudei a fazer, na parte do teatro… fizemos aqui o Grupo Girtec, inclusivamente estive em Évora nessa altura a tirar o curso de animação cultural no teatro Garcia de Rezende, em 76, portanto, que me permitiu algumas luzes. Mas havia essa parte, digamos agrícola, muito interessante em que as pessoas se ajudavam umas às outras… P: E em meio urbano, também havia essa entreajuda informal? José Marques Martins: Diferente das aldeias. Aliás, aqui em meio urbano era assim: as pessoas trabalhavam e praticamente onde se reuniam era no final do trabalho ou nas tascas, nas tabernas, que era a Viene, era quase porta sim, porta sim, e depois à noite vinham às coletividades. A coletividade abria às 6:30 da tarde, todos os dias. E quando eu falo aqui num senhor que era, na altura chamavam-se contínuos, agora são empregados ou colaboradores, falámos aqui no senhor [...], era um homem que... de muita postura, de muita responsabilidade, gostava imenso da coletividade ao ponto de sofrer na carne dessa forte união. O que ele sentia pela coletividade e ao pôr-se ao lado dos dirigentes, na altura, era complicado... Ele foi preso na altura, vieram-no buscar ao Grupo de Rodrigo depois do seu trabalho, a polícia política veio buscá-lo aqui. Porque ele era forte colaborador com a direção, o grupo que esteve na altura... Quando se criou o grupo estávamos em ditadura e todos nós sabemos que as ditaduras viviam um bocadinho às avessas com o associativismo, porque o associativismo é democrático. Juntam-se várias ideias, juntam-se várias pessoas com um objetivo comum, mas as ideias fluem… Não há ali um indivíduo que diga: eu é que eu é que comando, é que não sei quê… Não, todos contribuem. Portanto, a vida associativa é uma vida que se transporta para a cultura, quer dizer, para os objetivos de luta. E é, tal como aqui, as coletividades, qual é que foi a luta aqui? Era o ensino, era a formação e ensino, educação e, neste caso, a lutuosa, como nós também sabemos. Havia razões. E o que era a lutuosa? Coitadas das pessoas… Quando morria alguém não tinham dinheiro, não tinham, sei lá, para mandar tocar um cego, quanto mais, era um objetivo definido, havia uma luta. E já que o governo não conseguia fazer chegar até ao necessitado essa resposta, eram as pessoas que se juntavam numa certa zona para criar essa resposta. E aí, claro, quem tem o poder, não gosta que alguém vá fazer-lhe frente com isso. Isso é verdade e, portanto, o associativismo era isso e daí que veio para aqui. E na altura olhavam-nos com uma certa… João José Silva: Na altura, quem não era deles, era comunista, tudo era comunista, desde que não fosse… Mas não porque aqui o GIR teve nos seus órgãos sociais, um ministro, na altura. José Marques Martins: Que foi presidente da Câmara e que oficializou a primeira escola primária aqui no bairro, que foi aqui na coletividade. O que era isso? Era a possibilidade de termos professores oficiais, porque até aí a escola era aqui do grupo, mas não era oficial, só que havia pessoas que ajudaram a dar a escola aos filhos dos funcionários... João José Silva: Depois foi oficializada… P: Estudou aqui, o João? João José Silva: Eu estudei, não aqui no GIR, não. Eu estudei na escola aqui do bairro do Rodrigo, e esse doutor Almeida foi eu quem travou o encerramento da coletividade. Porque era assim, havia um ajuntamento: o que eles estão a fazer na coletividade? Vamos lá ver o que é que se passa? Porque é que vocês estão a reunir? Porque é que vocês têm que estar a reunir? E aí havia desconfianças… José Marques Martins: Isto foi entre 1921 e 28. E em 1928 é quando a escola é oficializada e, sendo oficializada, já não era fechada de ânimo leve. A partir do momento em se oficializa uma escola, numa instituição, espera lá, isto é o Estado que dá luz verde, se dá luz verde… Porque até aí, é porque houve aí alguém que mexeu os cordelinhos, diga-se em abono da verdade. Agora que o princípio quando, faço ideia, quando isto começou nas tabernas e começaram a querer alugar uma casa aqui e arranjar e não sei quê, é que a PIDE e sei lá que mais o quê andaram de olho acima. O que é que estes indivíduos andam aqui a fazer? O que é que não sei quê, portanto tudo isso era... João José Silva: Até porque a escola oficial terminou aqui em 1950. Foi quando foi inaugurada a escola do Bairro do Rodrigo, em 1951. Ela tem, precisamente… é quase da mesma altura que o bairro em si. Eu, quando vim para o bairro do Rodrigo, a escola tinha sido inaugurada há um mês ou coisa assim. Foi logo a seguir, ou foi antes… Eu vim a seguir, exatamente. Pronto e depois entrei na escola aqui, com seis anos. Seis para sete. P: E nesse período antes do 25 de Abril, quais é que eram as principais atividades em que vocês participaram? José Marques Martins: Eu lembro-me que participei. Eram as damas, eram os jogos de mesa, jogos de… João José Silva: Snooker, bilhar... José Marques Martins: Mesa, era jogos de mesa, porque desporto no exterior não havia. Futebol de salão, de 11, não havia. Isso apareceu mais tarde, na abertura, depois… foi o 25 de abril. João José Silva: Aliás, antes do 25 de Abril, vai me desculpar, dentro desta coletividade foi formada uma outra, que neste momento é o CCD do Rodrigo. O CCD do Rodrigo saiu daqui, formou-se aqui. Porquê? Porque o CCDS, na altura, era um centro de recreios populares ligados à FNAT. E como eles não tinham instalações próprias, tiveram que pedir aqui a cedência de salas ao GIR do Rodrigo, onde eles fizeram os seus estatutos e organizaram-se como coletividade com o auxílio precisamente da FNAT. E aí, o que é que acontecia? Como havia os campeonatos regionais de futebol, que eram patrocinados pela FNAT, só conseguiam entrar se eles tivessem um local, uma sede, um sítio onde pudessem exercer a sua atividade. E essa associação, que funciona aqui, é nossa vizinha, e que está ligada hoje ao INATEL (não sei se já não é INATEL, é fundação), continua viva. E essa associação criou realmente um certo dinamismo a nível de desporto, porque elas estavam direcionadas para o desporto, nós aqui era mais a cultura, o teatro... José Marques Martins: Já fizemos os primeiros jogos florais da Covilhã, fizemos um jornal também, fizemos um boletim. Hoje, olhando um pouco para trás, João, o associativismo tinha uma grande força, porque não havia mais nada, não havia outras respostas. As pessoas procuravam respostas. Onde é que vinham procurá-las? Era aqui. Estar aqui onde havia o jornal, onde havia a televisão, onde havia um rádio. João José Silva: Os banhos. Vinham pessoas com a sua toalhinha, era aqui, na parte de baixo. José Marques Martins: Havia o sapateiro, as máquinas de barbear… Hoje o que é que nós temos? Temos a televisão que nos traz a informação e a contrainformação. E hoje o associativismo é uma forma de estar, portanto, há sempre um objetivo comum. Agora tem de ser recriado com novas formas, já não é como aquela altura. Quando, há um ano atrás, dizia: vamos, temos que fazer isto, ok? Nós vamos fazer, mas temos que fazer de uma outra forma que capte, digamos, que as camadas novas venham. Mas já não é da mesma forma que vinham antigamente. Antigamente vinham à procura de uma resposta, porque não tinham outras. Hoje, sabemos nós, que temos que estar em paralelo com outras respostas e hoje o associativismo vive de outra maneira. João José Silva: Eu digo mais, e com muita pena, o facto de haver grande alteração em tudo isto, porque as coletividades têm tendência a fechar-se. Com muita pena que eu digo isto. Ou terá que haver aí, o próprio governo… José Marques Martins: Eu, as coletividades, eu tenho uma outra... Isto agora, por exemplo, as coletividades têm que tomar juízo. Vamos lá ver, antigamente, lembro-me, lembro-me quando tínhamos água da poça, que era a da poça. Nós tínhamos as nossas hortas e o meu pai dizia-me assim: pega no sacho que hoje a água é nossa. Então eu vinha pelo caminho abaixo a calcar as loras dos bichos que era para a água não fugir, que era para a água chegar mais rápido à minha horta e para evitar que ela fosse para a horta do vizinho. Porque a água era pouca, tínhamos que a distribuir e a água era pouca e naquele dia era para nós, então andávamos a vigiar se alguém... Ora bem, nós tínhamos que ser transparentes, mesmo se quiser, tem que ser transparente. Ou os subsídios que possam vir têm que ser com transparência, saber para que é que servem, para onde vão, como é que são utilizados, porque senão estamos sempre naquela dúvida. Fulano que está mais perto da fogueira, aquece-se mais, não sei quê. Isto foi uma moda que andou e é preciso que pare. Depois também temos uma outra coisa que se torna importante: nós sabemos que nós temos instrumentos e que a outra coletividade não. Tem que haver algo que consiga saber o que é que aquela coletividade precisa e aquela e aquela, e, em vez de andarmos todos a comprar coisinhas diferentes, os instrumentos de uma têm que servir para os instrumentos da outra. É assim que eu entendo. É assim que entendo, porque senão corremos o risco de termos os campos de futebol cheios de tojo e de mato e nas aldeias e corremos o risco de termos grandes instalações em coletividades e termos poucos recursos humanos lá dentro. Eu recordo-me de uma entrevista que uma vez dei, quando esta casa teve a estrutura que tem, é uma beleza, sem dúvida, uma beleza, e paredes novas. Sem dúvida. Eu recordo-me disso. Mais importante do que numa casa aquilo que conta são os recursos humanos, porque se a casa não tiver recursos humanos, fecha, de hoje para manhã fecha, então servirá para outra coisa. Os recursos humanos é a coisa mais importante e trabalhar com recursos humanos dói e é preciso ter capacidade para gerir recursos humanos. Mas, sabendo gerir, nós conseguimos chegar lá desde que as coisas sejam postas na mesa, com toda a clareza. A Câmara subsidia e faz o seu papel. Mas não é, já não é, não pode ser aquele.... Vá lá que agora parece que há uma lei, é uma lei que conseguiram criar, um regulamento, que é importante. Mas o Parlamento… tem que ser feito desta… João José Silva: A atribuição dos subsídios não é dada assim, como era antigamente. Tem que se apresentar um plano de atividades, mas que não seja um plano de intenções: vamos fazer… Não, tem que dizer no papel porque é que vão fazer isto. José Marques Martins: Nós temos aqui um evento associativo que é tremendo e que não colhe frutos, não sei porquê: as marchas populares. Juntam-se várias entidades, várias associações, que gostam, que estão interessadas. Junta-se a Câmara. Há um bolo, há uma água da poça para todos. E então cada um, perante um mote próprio, sei lá, aquilo pode-se de hoje para amanhã, criar uma nova forma. Mas vamos, faz-se festa e só não vê quem não quer ver, não é quem não vê, que o que é que uma marcha faz, ao sair de lá de cima do campo das festas e vir até ao Pelourinho e ver aquele mar de gente a ver, que vem ver. Se vêm ver é porque gostam. E a Câmara sente-se ufana, mas são as coletividades, são as associações que estão a fazer todas um trabalho, cada um. E as pessoas vêm, as pessoas aderem. Porque há um objetivo, de fazer festa. Agora, aquilo que o João dizia é verdade. Se não houver um impulso que dê dinâmica a estas casas, morrem. E morrem porquê? Porque pode haver a cristalização dos órgãos. Isto chega a um ponto que também aborrece. O João esteve aqui muitos anos na direção. Eu tive mais tempo, eu cheguei a um ponto... muitos anos na casa que sentia-me preso, e agora? Não há gente nova e nós, não é que não gostemos da casa, mas o gosto que nós temos por esta casa é, digamos, é ultrapassado por aquilo que nós queríamos, de que outros viessem com novas ideias, como uma forma de estar... E não vêm, não há. E entra-se numa direção com nove elementos e é só quatro ou cinco que às vezes aparecem, sabe Deus com que sacrifício. Porquê? Porque eles próprios também, quando se juntam aqui e… eu não sei o que é que... O João nisso teve muito mais tempo na parte da direção do que eu, mas via, também sei ver. Chegava a um ponto que também se disse: enfim, mas vou trabalhar para quê? Havia a própria pandemia, veio estragar ainda mais. Nós tínhamos aqui a beleza dos Santos populares, aqui neste espaço que depois nós vamos ver, onde fazíamos as sardinhadas, fazíamos essa festa, e isso dava-nos ânimo. Vinha muita gente para a coletividade, sei lá, mais tarde, então vinha, só que veio a pandemia, retirou-nos gente. Agora estamos novamente a começar e, claro, há um elemento que sempre frutificou no associativismo, que é a taberna. A taberna sempre cá ficou. Em todas. Uma associação que não tenha um bar não progride. João José Silva: Em parte, um bar é na realidade... José Marques Martins: Um bar é que chama... é o café, a cerveja, as bebidas... João José Silva: Porque as bebidas são mais baratas... José Marques Martins: Vem desde os primórdios. João José Silva : Sim, já vem. José Marques Martins: Então, o bar tem que lá funcionar, se houver uma associação sem um bar… Nem que lá haja uma máquina de café. João José Silva: E quando refiro aqui, com pena, que digo que as coletividades têm tempos difíceis é que reparo, e aqui o José Marques é da minha opinião, é que não há pessoas a quererem colaborar. Hoje é… quanto é que é? Não há dirigentes E aí a Confederação, e muito bem, tem trabalhado no sentido de que, aliás já há o estatuto de dirigente associativo… Mas porque é que o dirigente associativo, que ocupa um pouco da sua vida, que quer queira quer não, nós andamos aqui uma vida, nós prejudicamos até inclusivamente o ambiente familiar, porque não estamos lá, porque aqui era a nossa segunda casa. Porque é que não há-de haver um incentivo para que as coletividades se mantenham abertas? José Marques Martins: Os governos pecaram. Eu não estou a dizer para nos darem uma reforma, nem nada disso. João José Silva: Porque hoje nota-se as dificuldades. Por exemplo, a Covilhã é rica em associações, como a doutora sabe. Neste momento, posso-lhe dizer que amanhã há Assembleia geral do Grupo, ato Eleitoral para os órgãos sociais, novos órgãos sociais. Posso-lhe dizer que amanhã há n associações que estão precisamente nessa situação: umas não têm direção, têm comissões administrativas, outras têm uma direção, mas à última da hora um não quer, desiste. É essa a parte, e o que é que a quantidade pode oferecer neste momento? Eu muita vez comentava para o Zé Marques, que é a pessoa com quem a gente, com quem a gente lida e eu lido muito bem, porque é um homem com muita cultura, fez coisas belíssimas aqui no Grupo Rodrigo, o Grupo do Rodrigo muito lhe esta agradecido, é verdade. O que é que o GIR pode oferecer às pessoas para virem à coletividade? Televisão... Aliás, a Confederação pôs aqui um posto público [de internet]. Nós tivemos um posto público aqui, na altura, com computadores, oferta pela Confederação, e também a parte dos instrumentos musicais. José Marques Martins: Tu estás a tocar num ponto importantíssimo, que é verdade. O dirigente associativo devia ser considerado, não devia ser só considerado na altura de eleições, nem só para grandes discursos escritos ou orais, através da rádio. Mas devia ter uma dignificação diferente. Nem que para isso tivesse que ter, e eu comungo disso, ainda há pouco tempo tirei um curso de evacuação, por causa de defesa de incêndios. Porquê? Porque estou a presidir a um lar e é uma unidade de idosos e de crianças e, portanto, preciso também de saber um pouco disso. Isso significa o quê? Que o dirigente… e sou voluntário, portanto, vamos cair no voluntariado. Ser voluntário significa algo que nós darmos de mão beijada sem ser à espera de usufrutos para o próprio, é para o bem comum. Isso é ser voluntário. Voluntário é quando damos alguma coisa para o bem comum. Agora, o problema é quando, e muitos pensam hoje que se vem para estas casas, para se atingir, digamos, uma elevação, portanto, um posto. Não pode ser. Se vêm com isso, não vale a pena virem. E, por isso, o dirigente associativo tem que ser alguém que tenha que ser dignificado. Como? Há muita forma. Não é com dinheiro, não é com salários, não é nada disso. Mas há dignidade e há posturas e o dirigente associativo teve muito… e há muito que é louvado pelas autarquias. As autarquias devem louvar os dirigentes associativos. E devem louvar por várias maneiras e posso-lhes dizer como é que podem e quais são as razões, por que é que os levam a isso. O que é que nós podemos oferecer? É a pergunta que se coloca: o que é que vocês lá têm para eu ir lá poder ir. Essa é a pergunta que fazem lá fora: o que é que vocês lá têm? Então temos que criar aqui. As autarquias também têm que entender que nós temos instalações onde podemos dar possibilidade de... dar formação, dar informação, fazer formação, fazer apresentações de pinturas, tanta coisa que se pode... se cá vierem hoje 15 indivíduos ver uma sessão de pintura ou uma sessão de leitura, vêm só cá 15 hoje, mas na próxima já vêm sessenta, porque são os 15 vezes 4, ou seja, se a coisa for bem clara, se houver aqui algo que lhes possa oferecer, caramba, custa assim tanto oferecer umas bolachas e um bolo e um porto para as pessoas aparecerem? Quer dizer, não é isso que lhes vai encher o estômago, mas é uma forma de acolher, uma forma de acolhimento e fazer uma leitura, por exemplo, ou mandar uma informação com as vacinas, com tanta coisa que nós temos, tantas dependências que são gratuitas para as autarquias. João José Silva: O GIR sempre soube receber bem. José Marques Martins: E onde os órgãos de certeza que se disponibilizariam, de acordo da sua especialidades, a ajudar, mas não, prefere-se pagar. Não estou a dizer que não se pague, tudo bem, mas existem possibilidades. Era uma forma de as associações estarem a servir o bem comum. Se as próprias autarquias não nos dão... Se só estão à espera que a gente lá chegue com o boné na mão para pedir o subsídio. Eu não gosto muito disso. 00:20:18 Joana Dias Pereira Então vamos voltar ao passado, pode ser? Embora esta conversa sobre o futuro seja também muito importante. Mas há bocado estava a dizer que também tinha estado antes do 25 de Abril no sindicato. João José Silva: De 1964 a 68. P: Que responsabilidades é que tinha? João José Silva: Eu era um escriturário na altura em que andava assim: eu batia à máquina. 10000 associados que tinha o sindicato, porque eram umas folhas que a gente punha o número daquele operário, a empresa… Por exemplo, posso-lhe dizer: a Nova Penteação, na altura a Penteadora, a Ernesto Cruz, o Alçado e Filho, a Lano Fabril, eram empresas com muitos trabalhadores e eu, a minha função era trabalhar nessas folhas, escrevia os nomes um por um. Joana Dias Pereira: E depois também esteve no sindicalismo, depois do 25 de abril? João José Silva: Estive. Fui dirigente sindical em 80 e picos, fui dirigente sindical, estava na área da saúde. E na altura o Mota, que era o responsável daqui do distrito de Castelo Branco, convidou-me e estive ainda… fiz o mandato de dois anos assim. Estive ainda ... P: Mas eram realidades diferentes, o sindicalismo antes e depois. João José Silva: Muito diferente. Também a verdade é que às vezes os horários... eu era assim, eu quando aceitei ser dirigente sindical pus essa logo ao Mota: eu não vou tirar tempo nenhum ao trabalho. Eu vou ser dirigente, sim senhora, com muito gosto, mas só vou às vossas reuniões, aos vossos congressos quando tiver folgas ou disponibilidade. Não quero meter nenhum documento a dizer que eu tinha direito a determinadas horas e determinados dias. Nunca, nunca, é assim, como diz aqui o Zé Marques, nunca me aproveitei, nunca precisei de nada para me promover, porque tinha a vida feita. Eu nunca, mesmo a nível do Grupo do Rodrigo, mesmo a nível de política, e o Zé Marques sabe perfeitamente, tivemos ali, colaborámos bastante, andámos ali… P: E estiveram noutras associações para além do GIR? José Marques Martins: Dirigente associativo, nunca fui, nunca fui. No serviço do meu do Instituto estive, mas isso...Agora, fora disso, sou sócio, mas não como órgão, lá dentro não… João José Silva: Eu faço parte de três. José Marques Martins: Trabalhei alguns anos na Liga Portuguesa contra o Cancro, mais tempo. Depois deixei, na altura em que a minha mulher adoeceu, e passei para outra área, para esta área do diaconado. Mas outras não, porque quer dizer, ou se trabalha numa... isto é como os presidentes administrativos das empresas, ou é um ou é outro, e depois andam a buscar daqui e dali. Havia lá… ainda bem que havia outros. Hoje, possivelmente, se nós se nos convidassem para ir para outras instituições… Mas também já não temos... Eu, pelo menos... P: O João disse-me que estava também na Liga... João José Silva: Estou, faço parte, faço voluntariado na Liga Portuguesa contra o Cancro, com muito gosto. E agora, sem ser…, fui convidado para fazer parte da Associação de Diabetes da Serra da Estrela. Estou a colaborar, aliás, sempre gostei de servir a comunidade, faço isso com um amor e carinho… E aí é, também um pouco da minha da minha vida. O Zé Marques teve uma vida muito mais ocupada, é uma sorte, mas ele faz muito bem o que faz e também é uma pessoa, não é por estar aqui presente, mas quero lhe dizer que é um homem com muita valia... José Marques Martins: Eu entrei para o diaconado, entrei para esta coisa, porque me interessei e estou a trabalhar em várias paróquias e faço a assistência espiritual também na prisão, o que me dá… Ensina-nos saber a vida deles, porque caíram ali, como caíram, o que é que faziam e, portanto, todos nós ficamos com essa ideia. Por outro lado, a nível da minha profissão no instituto, nós ouvíamos aquilo que as pessoas nos diziam e nós éramos túmulos, ou seja, só púnhamos na ficha aquilo que interessava e que era corriqueiro para outro colega ver. Mas, por exemplo, ouvíamos desabafos. Nós passamos aqui alturas de grandes crises, era cíclico, de três em três anos a têxtil tinha uma crise. João José Silva: E vai-me desculpar, na altura em que estive no sindicato, quando o Martins falou em 60 fábricas, upa, upa. Eu estive no sindicato, na altura eram 123 firmas. Claro que a gente… havia firmas que só tinham cinco teares ou tinham 10 trabalhadores, mas eram consideradas as firmas: 123 firmas, todas elas. Algumas eu recordo perfeitamente. José Marques Martins: Depois veio a crise das confeções e havia coisas deste género, havia desabafos. Eu estive numa Assembleia, pertenci a uma Assembleia Municipal que esteve retida. Trabalhadores de uma empresa não nos deixaram sair. E ouvia coisas, deste género, naquela altura havia a possibilidade de uma empresa que tinha 700 ou 800 trabalhadores, para poder vingar, tinha que pelo menos metade vir para o subsídio de desemprego e ficava lá outra metade. Então ouvia-se isto: ou vêm todos ou nenhum! Quer dizer, ouvia-se isto, era uma forma de estar. As pessoas… quer dizer porquê? Porque não havia uma informação que fosse transparente e concreta cá para fora, é preciso que seja feita desta maneira. Como agora com as vacinas, quando as informações vêm para o exterior como deve de ser, o povo até aceita. Quando não vêm... João José Silva: Aliás, o GIR teve aqui nas suas instalações, durante algum tempo, as formações dessas pessoas, como diz o Martins: vais para o desemprego... E eram colocadas aqui a fazer formações que não tinham nada a ver com a profissão que tinham. José Marques Martins: Nós tínhamos outras entidades e isto era assim: as entidades que nos abriam as portas e que nos facilitavam mais a vida tinham condições. Por outro lado, também havia esta possibilidade de, depois, quando elas começaram a fechar, porque ao princípio as mães, sobretudo as mães e os pais, a menina ou o menino, tinham o quinto ano, tinham de ser telefonista ou empregado de escritório. E eu, tanta vez que eu dizia para elas e para eles: por isso esqueça o emprego de escritório e esqueça o telefone, porque os deficientes também têm o direito a irem para o telefone e nós tínhamos um telefonista. Preparem-se para serem desenhadores, para serem modelistas. Tirem um curso de modelista. Mas porquê? Vêm aí as confeções, começaram a vir as confeções em grande. Claro que depois tiveram que ir tirar o 12º ano para serem modelistas, quer dizer. Portanto, houve um crescimento. P: E como é que era? Como é que se viviam aqui as greves, as lutas? Isto é uma zona muito operária... José Marques Martins: Tem graça, os primeiros mil escudos… Logo a seguir ao 25 de Abril, tivemos então, houve ali um aumento de mil escudos. A Covilhã sempre teve essa fama. João José Silva: Houve uma greve muitíssimo forte, já lá vão uns anos, ainda no tempo do Estado Novo. José Marques Martins: E antes do 25 de Abril, eu lembro-me, não estava cá a viver mas lembro-me de que a Covilhã… Havia aqui umas reuniões que se faziam. João José Silva: Porque era muita gente aqui, na altura o movimento operário era fortíssimo, fábricas com 700 e 800, e depois não era só, eram famílias completas... P: E isso vivia-se aqui no grupo, como é que era? João José Silva: Sim, sim, aqui, portanto, no grupo entrava-se, comentava-se às escondidas, sempre com receio que o parceiro que estivesse ao lado fosse denunciar, que estava numa reunião, que se ia fazer uma greve. José Marques Martins: Sabia-se, primeiro porque havia a parte clandestina e numa empresa é muito fácil e havia códigos próprios. Eu recordo-me, lá para os meus lados havia pedreiros, e tinham um código próprio. Quando o patrão chegava, eles tinham um linguajar próprio e as regiões tinham um linguajar próprio, ou seja, uma forma de se exprimir com uma certas palavras que só eles é que entendiam. Quem estava fora ouvia, mas não percebia. E isto é como eu digo muitas vezes, como se diz na Sagrada Escritura, mas não percebem. Só quem é de dentro é que percebe e, portanto, aqui também é a mesma coisa, nas fábricas, nas associações, comentava-se, mas de maneira a que... João José Silva: Até porque nos seus órgãos, a maior parte deles eram trabalhadores, eram pessoas da indústria de lanifícios, estavam ligados, quer queira quer não, direta ou indiretamente, ligados ao movimento operário, que era forte. José Marques Martins: E havia outra coisa. As famílias eram muito unidas, ou seja, não, não iam, não havia tantos problemas para onde se ir buscar e falar na vida dos outros. As pessoas não falavam, não comentavam, com receio de que lhes caísse em casa algum agente. João José Silva: Claro, a gente sabia aqui no Rodrigo quem é que era da PIDE. Estava sinalizado, a gente sabia, mas não tínhamos a garantia absoluta.... José Marques Martins: Eu cheguei cá, chego aqui em Novembro, e em Dezembro sou avisado, alguém me avisa de dois indivíduos da PIDE, alguém me avisa: cautela com sicrano. João José Silva: Nós tínhamos ... estavam sinalizados por nós, tanto que quando eles entravam aqui… uns não entravam porque não eram sócios e aqueles que entravam, recordo... José Marques Martins: Nós conversávamos, ouvíamos, mas para com ele parava, ali as coisas paravam. P: E nessas greves que duravam muito tempo, não havia movimentos de solidariedade para as famílias grevistas? José Marques Martins: Havia, eu lembro-me, por exemplo, na questão de quem tinha crianças e que as mães não podiam ter leite para as crianças. Então havia os leiteiros, havia uns indivíduos que andavam aí com os potes de leite. E portanto, ouvia às vezes com visitas destas… Não, não, hoje leite tem que ser… só lhe dou tanto, porque a fulana tem lá uma menina pequenina e não ganho nada, o próprio leiteiro tinha assim... e nas lojas nas lojas havia o fiado. João José Silva: O próprio GIR oferecia no início de cada ano letivo. Oferecia aos filhos dos associados esses livros, àqueles que tinham mais dificuldade. José Marques Martins: Pois, deixa-me ver, os vicentinos, nós ajudávamos muito. Os vicentinos são... ainda hoje, nós temos grupos que em que temos esse objetivo, nós temos aí zonas e temos famílias a quem ajudamos, quer com pagamentos de água e da luz, com os remédios e também com alimentos. Quer dizer, para além do Banco Alimentar, que aparece. Mas quando é nessas alturas, nós… quer dizer, ainda se aparece mais e depois até a própria génese das pessoas que vivem aqui, mesmo aqueles que não sendo de cá, mas que já são de cá, por exemplo, o Bairro do Rodrigo, estas casas que foram depois criadas já para outras pessoas que vieram para cá, até eles próprios, portanto, criaram esse élan de ajudar. João José Silva: E as comissões de moradores e tal, que na altura surgiram… O Rodrigo era um bairro operário. Ninguém lá morava que não fosse operário, exceto as quatro professoras da escola oficial. P: A comissão de moradores foi fundada quando? João José Silva: Foi em 76. José Marques Martins: Sim, certo, fizeram-se coisas bonitas também. Nós fizemos coisas interessantes. Aumentámos a escola e havia um Jardim infantil para onde iam os miúdos. Criou-se aqui, ele começou aqui. As festas populares que se faziam dos Santos, criámos uma casa mortuária aqui para o bairro, as festas populares de Santo António, onde a coletividade também teve um papel importante, e fizemos um trabalho… Sei lá, a gente diz assim, conseguimos reunir pessoas, mas nós éramos duros. O objetivo tinha que ser cumprido e às vezes afirmávamos: aquilo tinha que ser cumprido, isto é assim e cada um tinha a sua função. João José Silva: O GIR teve sempre uma ligação à comunidade muito forte. Isso é anteriormente, já não é do tempo dos Zé Marques Martins, porque é uma pessoa que apareceu na cidade em 1973. Antes havia uma festa, que chamavam a festas Zacarias, essa festa, era a festa de chamávamos Zacarias, porque ele é que era o grande impulsionador, um homem ligado ao GIR, mas era a festa das florinhas da rua. Então ele fazia essa festa, ia pelas quintas, dos associados e não só, pedir determinados alimentos e depois vinha para a festa para fazer oferendas. Aquilo era leiloado e o valor daquelas oferendas era entregue às florinhas da rua, que era uma instituição de solidariedade social, onde tinha crianças abandonadas. José Marques Martins: Essa festa depois foi recriada, recriei-a eu, durante três anos, para fazermos a casa mortuária e a Igreja, também fazíamos os tais leilões e depois fazia-se essa festa e a Festa de Santo António, e fazíamos grandes festas, que vinha para aí gente… Porque é que elas morreram? Morreram porque, quando nós olhámos, foi aí que começámos a notar, que se começou a ver o decréscimo dos órgãos diretivos, das pessoas. Começámos a olhar para o lado, ao princípio juntavam-se ali seis ou sete, oito ou nove ou 10, e depois começámos a olhar para o lado e só havia três ou quatro e depois quem ia já não estava interessado. E depois aquilo tirava-nos tempo, porque as famílias… E por isso é que no associativismo a família tem um papel importante. Nós estamos a falar de dirigentes associativos., A família associativa é para criarmos família, mas as nossas famílias eram o nosso alicerce: olha que eu só chego às tantas horas para comer, olha que eu não sei quê, as nossas famílias eram... Um bom dirigente associativo tem que ter atrás uma família capaz de aceitar e ver as dificuldades que às vezes… às vezes eram três da manhã ainda estávamos aqui... Hoje as famílias destroem-se e não estão tão... João José Silva: Hoje é completamente diferente. Por isso é que eu digo, com pena, que as coletividades têm que seguir para outro caminho, como diz o Zé Marques, com outros eventos, outras ideias, ou então… Porque não há ... P: Isso, as mulheres não vinham também? José Marques Martins: Vinham, sim. As senhoras vinham com outras, não vinham para… Depois, mais tarde, passaram a vir também para órgãos diretivos, mas lá mesmo não se sentiam assim tão bem. João José Silva: Não, não era fácil arranjar mulheres para os órgãos sociais. José Marques Martins: Por exemplo, havia um evento, havia o teatro ou havia dança. Vêm as mães com as meninas, vêm as mães… Havia as marchas, até máquinas de costura para aqui vieram para costurar e, portanto, elas colaboravam naquilo que os maridos estavam.... Nós planificamos tudo bem, também entrávamos, mas elas lá faziam, lá compravam, não sei quantos, e aquilo aparecia feito. E depois, no fim, quando fazíamos a festa, de tudo cumprido, dizíamos uns para os outros: epá, mas a malta parece que não fez assim tanto, podíamos ter feito melhor. Quer dizer, tínhamos feito uma coisa em beleza, mas no fim, dizer assim, podíamos ter feito melhor. João José Silva: É, o movimento associativo é.... José Marques Martins: Hoje não. Hoje faço uma coisa: pá, somos os melhores. Não, aquilo era... João José Silva: Hoje é assim, não se faz, manda-se fazer. É o grande problema... José Marques Martins: E depois aparece feito. Há alguém também que faz e esse alguém que faz começa a fugir. O indivíduo, as coisas aparecem feitas, mas o indivíduo começa a fugir. Espera aí, sou só eu? Começa a olhar para o lado e diz assim: mau! Porque depois é aquele que é fustigado, e então começa: não posso. Declina, porque o outro não sabe fazer, porque nunca quis aprender a fazer, porque isto é como os dirigentes associativos, quem vem de novo não é um dirigente associativo sem mais nem menos, tem que se ir modulando e formando com os mais velhos. Porque vai gerir recursos humanos. Ali fora, às vezes há disputas, há bocas, há um ou outro que se porta menos bem, que diz alguma coisa diferente e ser dirigente associativo é saber conciliar às vezes as diferentes ideias. Ser capaz de dizer assim: ele tem razão, realmente é verdade, isso é que é. Ser dirigente associativo não é chegar aqui e dizer assim: vamos fazer aquilo e aqueloutro. Tenho que ir à procura de recursos e saber gerir, e saber gerir é saber chamar as pessoas para um objetivo comum e quando é preciso fazer um objetivo comum, de certeza que se faz. Uma coisa que esta casa sempre teve foi isto: caiu o telhado aqui três vezes, não foi, e as pessoas apareceram. João José Silva: Uma solidariedade enormíssima, arranjar forças e pessoal, a gente ficou surpreendida mesmo. José Marques Martins: Havia um objetivo, eles viam que os dirigentes trabalhavam, nós saíamos do nosso serviço e vínhamos para aqui trabalhar: caramba, vamos lá ajudá-los. Eu tenho um exemplo concreto disto, e o João... na direção a que presidi, na altura, eu recordo-me que nos festejos populares, aqui sempre foi uma casa que teve grandes festejos, mas eu recordo-me que nesses anos, e é a experiência que tenho, de quando chegava aí às cinco horas da manhã, seis, e já havia mesas livres, eu pegava num balde de água e limpava as mesas para arrumar e diziam assim alguns colegas meus: epá, deixa isso, amanhã à tarde… E eu assim: não, se fizermos isso agora, a malta dorme melhor. Porque vamos descansados com isto limpo e ninguém saía daqui sem estar tudo limpo e lavado. E foi uma imagem que pegou. Todas as outras direções que vieram, na sua grande maioria, terminavam os festejos e, em vez de se irem ali sentar,, era mais um esforço, eu sei que era, mas também no outro dia, quando aqui chegavam à tarde, para outro dia de festa, era só pegar. Era um sacrifício, mas quer dizer, mas trabalhávamos. E quando, eu lembro-me de estarem aqui sócios assim: Epá... E havia sócios que: vamos lá dar uma ajuda, andam ali aqueles pobres sozinhos. Quer dizer se nós: Epá deem aqui uma ajuda. Olha, então aqueles não querem fazer nada e agora querem que a gente la vá? Portanto, isto também é ser dirigente associativo... P: Dar o exemplo, não é? José Marques Martins: Sim, porque, ora bem, se nós não dermos o exemplo, os mais novos não vêm… João José Silva: Muitos horários seguidos eu fiz no hospital, porque vinha para aqui trabalhar... Ai é? Queres dança? Então agora vamos fazer 16 horas. Trocava horário para jogar ... José Marques Martins: O João José, aqui na casa, também passou por aqui e sabe muito bem das dificuldades... E quando às vezes nos pedem… Quer dizer, nós gostamos da casa, gostamos da casa, mas já demos muito pela casa e temos pena que um dia possa fechar. Mas, se pudermos colaborar, contribuir para que isto cresça... João José Silva: E penso que estamos habilitados para, de alguma maneira, responder àquilo que é solicitado: um pouco da história do GIR, o que ele foi, o que fez. O que poderá vir a fazer, aí já é com as direções... José Marques Martins: Com as direções, uma ova, com os sócios, a casa faz-se com os sócios. Isto é, a direção pode querer uma coisa e os sócios não. Temos aqui 50 melros e queremos fazer uma coisa diferente… João José Silva: Sim, sim, mas a direção é que decide. P: Mas vocês também se organizam em comissões, por exemplo, o teatro? José Marques Martins: Nessa altura tínhamos as comissões, inclusivamente nas festas, havia comissões, mas havia muita gente, sobretudo nova. Quando eram as festas, quem que nós íamos buscar? Gente nova e fazíamos essas comissões e as comissões criavam o programa. Depois foi o que se… Quem estava à frente das comissões, se começava querer ser independente em demasia, a direção às vezes era ultrapassada e quando dávamos por ela já havia compras feitas assim sem dizer. Agora, no teatro criou-se um grupo muito homogéneo nessa altura. P: Foi em que altura, na década de 70? José Marques Martins: Sim, 60-70... João José Silva: 70 e tal. Não, isso talvez fosse em 80, foi 70-80… E daqui saíram alguns casados e namorados. José Marques Martins: Casaram. Namoraram e casaram. Porque nós andamos por vários locais a levar o teatro e foi numa altura complicada, porque foi o 25 de Abril, em que nós, eu recordo-me, até tenho uma história, que eu até vim mais cedo para cima, porque foi na altura do 11 de março, que essas histórias todas que houve, e eu estava em Évora a tirar… Uma coisa era a animação cultural, que era o Brecht, que nessa altura era o mais importante, mas quer dizer havia a parte política também que se metia em todo o lado. E aí eu nunca, nunca, nunca enveredei por esses caminhos assim um bocado tortuosos, porque isto era assim, isto é quem quer mentir vai para… sem ofensa para os políticos que todos nós somos um pouco, mas é verdade, promete-se, se pudermos fazer depois mais tarde fazemos. E eu às tantas dizia assim: eu não posso ir aí para a gente, para as aldeias, dizer que arranjo emprego para toda a gente, porque isso é mentira. Eu não posso ir mentir, portanto nós… e estou a dar este exemplo. Isto para dizer que ou se tem vocação para aquilo que é ou então não se anda a fazer e, portanto, uma coisa é realmente ter vocação. A minha esposa e outras senhoras é que pintavam, faziam os vestidos… Se não fosse isso, morria. Então, eu não tinha tempo para, quer dizer: camarim, dá-me, entrega, ABC desenrasquem-se, não sei quê, desenrasquem-se. E pronto, e depois aquilo aparecia, as coisas apareciam e nós confiávamos e não invadíamos a esfera uns dos outros. Ou seja, ela vinha pintada com uma sobrancelha preta e outra… Nós confiávamos, porque todos queriam que saísse o melhor possível. E quando o João diz que, todavia, saíram daqui dois ou três casamentos… João José Silva: Sim, sim. José Marques Martins: E depois era muita gente. Nós tínhamos 30 ou 40 elementos e a nossa maneira de gerir todos para... João José Silva: Dava-nos o prazer de escolher o melhor. P: E eram operários? José Marques Martins: Operários, filhos de operários eram todos, e havia um mestre, havia um, sim, mas que tínhamos que gerir aquilo de tal maneira a que ninguém ficasse ofendido. Eu não podia chamar aquele por ser muito bom, tinha de arranjar ali, às vezes, papéis secundários. Mas chegava a um ponto em que era tanta gente… P: O José fazia de encenador, encenava? José Marques Martins: Sim, sim, exatamente. P: Que peças é que encenaram? José Marques Martins: Oh, sei lá… Os dois irmãos gémeos, um era patrão e o outro era empregado, eram gémeos mesmo. E depois fazer o papel de patrão, de ditador, e depois quando mudavam, já na parte da democracia, ver as diferenças... Depois havia um debate a seguir. Uma outra peça, que foi muito importante, que era aquela que tinha três atos que teve para aí. Depois, nós até fazíamos aqui um teatro que demorava três horas ou mais, nós tínhamos a sala cheia, que era a casa do mestre Simão, era uma delas, eram três atos. Outras que foram encenadas, poemas, havia, sei lá, havia poemas, por exemplo… cantos, danças. Depois começou a haver a parte da dança e depois, claro, as coisas foram mudando, mudando, mudando, estão a ir... João José Silva: E a seguir foi feita aqui uma grande peça, Jesus Cristo. José Marques Martins: Também fizemos essa peça de Jesus Cristo superstar, ainda temos aí. O Cristo era um colega, o nosso motorista, o Rui. P: E faziam debates a seguir às peças? José Marques Martins: Começámos a fazer os debates já mais com essas do Brecht, porque estava o povo, já mais… em 76/77. P: Era uma altura em que também as pessoas estavam mais interessadas nessa? José Marques Martins: Já estavam mais, porque aqui, nós não entrámos logo aí. Entrámos naquela, porque aí o povo começou a querer ufa, ufa, quer dizer abriu-se, porque até 78-77, apesar de 74, 75, 76, ainda... João José Silva: Ainda estava tudo muito... José Marques Martins: Mas depois, quer dizer, voltámos novamente e a pôr peças... Fizemos uma sobre as doenças transmissíveis nessa altura também.... Mas era demasiado forte, porque as pessoas tinham medo de fazer perguntas. Olha lá, o que é isso? Sabia-se que, à boca fechada, que a pessoa sofria disto, das doenças transmissíveis ou sexuais, mas não era fácil em público fazer... P: Então já falaram várias vezes que nesse período pós 25 de Abril, esses anos são anos de grande efervescência cultural e da participação das pessoas. O que é que recordam assim mais marcante desse período? João José Silva: Não quer dizer que antes não tivesse sido marcante, antes do 25 de abril... José Marques Martins: Antes de 73, era marcante, mas vamos lá ver, houve uma grande mudança, houve. Eu recordo-me que eu fui trabalhar de manhã… Eu em 73, como disse, vim. Em 74 estava em Janeiro, estava na feira das indústrias, em Lisboa antiga, e tinha uma colega que era a Zélia, a Zélia que era mulher do Zeca Afonso. E quando viemos fazer a nossa visita a Vendas Novas, ao centro de formação, eu vim no carro dela. Vinha ela e vinham mais dois colegas, e ela, há uma frase que é dita na altura, mas que passou-me ao lado. Estávamos a falar que tínhamos vindo lá de forma, que enfim, muitas dificuldades que tínhamos, não sei quê. E ela sai-se assim: é, mas não vai ser por muito tempo. João José Silva: Não estava Longe. José Marques Martins: Nem eu sabia que ela era a mulher de Zeca Afonso, que eu não sabia, sabia que era a Zélia, pronto. Quando depois se dá o 25 de Abril, depois conversámos por telefone e quando nos encontrámos novamente e quando eu soube que era... depois a gente começa a associar. “Não vai ser por muito tempo”, porque já sabia, quer dizer. Quando se dá o 25 de Abril, as pessoas, ao princípio: ah, fica em casa. Mas depois estávamos agarrados à televisão, como estávamos agarrados à BBC de Londres e à Rádio Argel. Eu era daqueles que estava sempre agarrado à Rádio Argel, a ouvir, e a BBC. Eu arranjei um rádio pequenino para ouvir isso, portanto, havia uma ânsia que estava cá dentro. Dá-se o 25 de Abril, dá-se essa possibilidade, e as pessoas, quer dizer, libertam-se... João José Silva: Com o enjeitamento que houve após o 25 de Abril, nada contra os partidos, mas houve um enjeitamento... José Marques Martins: As associações crescem, as associações dinamizam-se muito mais, porque as pessoas já falam mais à vontade, já vêm mais à vontade, já vêm ler, já vem perguntar, já vêm que há mais abertura e já se fala sem medo. E aquilo que mais fez com que as associações crescessem foi a liberdade que apareceu, a liberdade de as pessoas se exprimirem e expressarem-se de toda a forma. João José Silva: Após 25 de Abril, isto era quase todas as semanas, os partidos políticos queriam fazer aqui comícios, congressos, conversas. Alguns outros nem tanto porque, pois começou aqui a surgir o problema de que se o GIR vai ceder as instalações a um determinado grupo político tem que deixar... José Marques Martins: E aqui nesta casa fez-se, quando ali a capela estava em obras, a eucaristia. E sempre se disse: não, vem para cá, mas também vem para cá uma outra religião, fazer também o seu congresso. Toda a Gente tem direitos, aqui é para sócios, sejam eles o que sejam. João José Silva: Tanto era o PCP, como o CDS, como o PSD.... José Marques Martins: Aliás, os estatutos dizem isso: não tem credos nem filosofias políticas. E entram aqui sócios de toda... Agora se me perguntarem assim, se para cá viesse a extrema-direita ou alguma coisa com... Também temos nos estatutos como objetivo a defesa do bem comum. E, portanto, temos essa possibilidade de… As pessoas abriram-se, as pessoas aumentaram, criou-se uma nova forma também de estar na vida. Falava-se mais, começámos a conhecer as dificuldades e os anseios de várias... as festas eram diferentes. Havia, portanto… houve uma abertura mesmo entre os bairros, quer dizer, houve uma explosão, primeiro de alegria. Depois vieram os anos difíceis e quando vêm os anos difíceis, nomeadamente quando vêm as crises e então numa terra destas em que tem uma mono indústria... Apareceu a Universidade, que veio dar vida à cidade, porque isto era uma aldeia pequena. A Universidade veio dar uma vida aqui à Covilhã… P: Estava a falar da abertura das associações e lembrei-me de uma coisa que referiu há bocado, que tiveram uma articulação com a associação mutualista. Como é que isso foi? João José Silva: Sim foi. Aliás, eu não tenho conhecimento pessoal, mas sei pelo que me contaram, pessoas que passaram por aqui, dirigentes e não só. Eu posso lhe dizer que, por exemplo, a Associação de Socorros Mútuos emprestou, em determinado ano, um valor de cem escudos, está aí um documento, cem escudos, para que se fosse concluído o resto da obra. José Marques Martins: Nós servíamos aqui de depósito, de certa maneira, daquilo que eles não tinham condições. E então nós, o grupo, era aqui que eles tinham a sede. A Cruz Vermelha também passou por aqui. João José Silva: Há uma outra associação que foi formada aqui também, a APPACDM, foi criada aqui. Mas essa dos 100 escudos tem a ver com a mutualista. Porquê? Porque na altura, um ou dois dirigentes do Grupo Rodrigo, por exemplo, estou a lembrar-me do [...] e outros, o [...] e não sei quê, eram dirigentes da associação. José Marques Martins: Na Cruz Vermelha também se deu o caso, dirigentes desta casa eram dirigentes da Cruz Vermelha. João José Silva: E, na altura - só para concluir, desculpa - o GIR estava com problemas financeiros para pagar determinado valor e a Associação Mutualista Covilhanense, era assim que se chamava, emprestou ao GIR essa importância, que depois foi paga, há aí um documento, está devidamente aí contabilizado P: E o próprio GIR? Estávamos ali a ver que também tinha uma função, também tinha essa vocação mutualista, não é? Pelo menos com a questão do subsídio de funeral? João José Silva: Não havia previdência, a previdência aparece em 1961. José Marques Martins: A lutuosa aparece para ajudar os funerais, para levar as carretas, porque as famílias não tinham dinheiro: eram 500 escudos, ou 1000, pronto, e depois pararam quando vieram as agências. João José Silva: As agências não se preocupavam com a previdência, que não havia na altura, preocupava-se era pedir o cartão de associado e com esse cartão é que vinha ao GIR levantar o subsídio anual, que era de 500 escudos, hoje são 1000 escudos ou cinco euros. José Marques Martins: Hoje, praticamente, ainda está nos estatutos, mas é uma coisa que está só para fazer memória, porque a previdência hoje já funciona de outra maneira, mas está como memória porque foi essa uma das causas da nascença da coletividade. Há duas causas importantes, que é a educação dos filhos dos sócios, e aqui foram os filhos que levaram os pais. Vamos lá ver, os pais primeiro quiseram que a escola fosse aqui feita para educar os filhos, mas depois os filhos vieram para a escola oficial durante o dia e os pais vinham à noite. Os filhos é que levaram os pais a perceberam que também tinham necessidade de aprender. P: Depois também houve instrução para adultos? José Marques Martins: O pai e a mãe que vinham para aqui aprender… P: Isso em que altura? José Marques Martins: Pois, foi de 1900 a 1928, a escola foi... P: No vosso tempo ainda havia esses cursos para adultos? José Marques Martins: Não, no nosso tempo foi só formação. João José Silva: A escola no GIR acabou em 1950, 49-50. José Marques Martins: Eu aqui tenho as aulas diurnas para os filhos e as aulas noturnas, que era a dona [...], e depois a escola foi apetrechada e inaugurada pelo presidente da Câmara, o [...], em 1928, portanto, passados sete anos. De 21 até 28 funcionaram aqui alguns indivíduos a dar umas aulas que ensinavam os filhos... outras escolas. Em 1931, portanto, passados três anos, é que o governo reconhece o mérito e dá o estatuto de escola pública. Então, nessa altura é que foi nomeada uma professora oficial, que era essa dona [...], que era a professora. Quando as escolas do Rodrigo, como tu dizes, em 50 se fizeram aqui, acabou, não tinha razão de ser. P: Esta questão da memória já deu para perceber que é uma coisa que vocês valorizam muito. Têm ali o museu, os dirigentes conhecem a história, e acham que esta questão da memória é importante para a identidade do movimento, ou seja, os dirigentes vão passando uns para os outros este legado e é uma coisa importante, ou seja, tem aquela ideia de… isto é uma coisa que é tão antiga, esta tradição, a gente tem que continuar isto. Acham que é importante esta questão da história, o peso da história? José Marques Martins: Essa questão está a pôr, torna-se muito importante. E pode ser até uma das formas de revitalizar novamente também o movimento associativo. Eu, para construir… Qualquer pessoa que tenha dois dedos de testa, para construir o futuro tem que viver bem o presente. E sabendo a memória do passado, aquilo que errou e aquilo que fez de bem, portanto, só assim é que se pode construir. Eu, na minha vida, costumo dizer e prego: peço perdão daquilo que foi mal feito, vivo com muito gosto o meu dia a dia e quero fazer melhor ainda no futuro, mas para isso tenho que ter um saber do que é que foi feito atrás. É altura… E eu parece-me que que nós estamos a cometer uma falha, parece-me, que os órgãos sociais estão a cometer uma falha não só aqui, possivelmente em todos, era de dar a conhecer de facto aos novos toda a história desta casa, porque muitos entram aqui sem conhecer a história, vivem de hoje para a frente, vivem este… Vem aqui ao bar um jovem, mas até aqui houve um caminho, houve um percurso e penso que nós devíamos... Nós temos isso, esta casa tem as fotografias, tem livros. Mas as pessoas não leem, não veem as fotografias e, possivelmente de tempos a tempos, devia-se até passar, sei lá, ou em projetor ou retroprojetor ou qualquer coisa do género, digamos, um tempo do que é que foi isto, como é que isto começou, o que é que era a Covilhã naqueles tempos, em 1920, fotografias daquele tempo. E depois, até, haver às vezes debate e outras coisas do género Não era preciso uma tarde, havia de chamar as pessoas mais antigas, pessoas que passaram por aqui, porque há sócios antigos que passaram e eles conheciam as histórias. E começar a fazer isto. Com quê? Com as escolas. Eu não vou chamar os do secundário nem os universitários. É mais fácil os universitários virem cá do que os alunos do secundário. O universitário já está noutra dimensão e gosta também da parte histórica. Mas as crianças das escolas, os do básico ou os do ciclo vinham cá com todo o gosto. Os professores vinham ouvir, quer dizer, era uma forma de levar os miúdos a verem o que é que os bisavós deles… Olha, o meu avô andou ali. Nós tínhamos aqui um presidente da Câmara que cada vez que vinha aqui, o Carlos Pinto: eu andei nesta escola, andei na escola do presunto, e andou também você. Quer dizer, e essa conversa levava a que, quem sabe, lá os miúdos de hoje para amanhã… Era uma forma de espevitar o gosto pela casa. João José Silva: O problema é… Estou completamente de acordo com o Zé Marques, mas falta o melhor, falta a parte humana. Porque nós temos que ver as direções que entram para esta… para o GIR do Rodrigo ou para outro qualquer, às vezes têm tempo limitado, vêm com dois anos e por muita vontade que queiram fazer determinados eventos e dar a volta a isto, olha-se para o lado, como disse o Zé Marques: tinha cá 10 agora só cá tenho três. Onde é que estão os outros sete? Cansam-se, hoje. Eu não tenho nada contra a juventude, mas entendo que era preciso um trabalho muito forte. Falo do GIR, porque é um caso que eu conheço muito bem.Havia que procurar chamar para a coletividade pessoas que desenvolvessem esse tipo de trabalho, porque não é fácil a um dirigente associativo ir às escolas e passar a mensagem: epá vão ao GIR Rodrigo que amanhã temos lá a apresentação de um livro ou a passagem de um vídeo para se saber o historial da coletividade. Não é fácil. E o Zé Marques sabe que não é fácil. É assim, as direções são o que são. Não precisam ser doutores. É preciso é que sejam pessoas realmente com uma vontade extrema de que vem para servir a coletividade e não servir-se dela. E ao mesmo tempo, às vezes não têm tempo, trabalham, têm a sua vida. Nós perdemos aqui n horas… José Marques Martins: Tudo se faz. Olha, vou dar o meu exemplo aqui hoje… Hoje era para estar, de manhã, eu disse para quem me telefonou: espera lá, eu tenho uma celebração às 10:00 e não tinha ainda na altura, mas tinha. Hoje estive no Pezinho. Mas pronto, chegou-se à conclusão que podia ser às 14:00. Isto para dizer que não havendo gente… Mas tu tocaste aí um ponto importante, desde que haja vontade, e de que haja pessoas capazes, nós estamos cá os dois, possivelmente se fossem outros não estariam, mas continuo a dizer que vale a pena investir nesse campo, pegar na gente nova e pô-los em colaboração com os mais velhos e com a riqueza do passado para eles verem: epá de facto estes indivíduos fizeram isto. Caramba, como é que eles conseguiram? Com tão poucos meios conseguiram… E essa é a pergunta que lhes fica e nós, com tantos meios, não conseguimos. Porquê? E aquilo entra e aquilo burila. Talvez eu fale assim, porque como estou numa instituição que tem idosos e tem uma parte infantil e a gente de vez em quando juntamo-los e os mais novitos perguntam e até fazem aquilo, andam lá de bengala e os miúdos também com a bengala atrás dele também, acho eu, a imitá-los. Mas olhamos para aquilo e, sinceramente… um miúdo pegar, vê que o avô, coitadinho, lá anda e quando andam com aqueles com uma cadeira rodas: também quero ir. Quer dizer, os minutos querem andar de cadeira rodas porque... e depois aí o professor tem um papel importante, que é dizer assim: olha, vês, quando ele era assim da tua idade, não sei quê, não tinha esses carrinhos, tinha assim outros bonecos, depois nós temos lá os brinquedos antigos. Aqui também podia ser. Era uma forma de espevitar. Porque nós… Quer dizer, está tudo à espera: quanto é que dá, como tu dizes? Não tem que dar, não pode ser… Mas é uma forma, essa questão que levantou, de que forma é que é indo buscar a nossa história… É importante sabermos a história e os novos, e nós fazermos chegar aos outros essas memórias. Se nós não perdermos, se esta casa perder a memória, esta casa fecha. Mas enquanto esta casa tiver memórias, aí a casa não fecha. João José Silva: A verdade é que nós andamos há muitos anos, e não sei a história do grupo. Completa não sei. José Marques Martins: Possivelmente, há muita gente que não sabe, nem os nomes dos primeiros... João José Silva: Há muita gente que não sabe como é que isto começou.. José Marques Martins: Quando andavam aqui com obras, os livros não estavam ali no meio do lixo. Eu estava em Tondela e, quando vinha, andava no meio do lixo a tirar os livros de atas. João José Silva: Não há sensibilidade. O que é isto? Papéis... José Marques Martins: Nós temos que passar a memória, porque se nós não o fizemos, se esta casa não fizer memória do que foi e do que é, fechará no futuro. João José Silva: É de salientar as pessoas que passaram por aqui e as que vierem no futuro, porque não é fácil. Não é fácil arranjar dirigentes associativos. -
3 de junho de 2021
Victor Manuel da Silva Fernandes
P: Podia dizer-me o seu nome completo. Victor Fernandes: Muito bem, eu sou Victor Manuel da Silva Fernandes, sou adjunto de chefe de secção de tinturaria há 42 anos. P: Nasceu aqui na Covilhã. Victor Fernandes: Nasci na Covilhã. P: Em que ano? Victor Fernandes: Em 1963, de pais que se conheceram nesta coletividade e se casaram nesta coletividade. Eles faziam parte do rancho folclórico. Foi aí que se conheceram e foi daí que se casaram. P: E começou a trabalhar com que idade? Como foi a sua escolarização? Victor Fernandes: Eu, aos meus 16 anos, estava a trabalhar, mas nunca deixei de estudar. Portanto, eu trabalhava de dia e estudava à noite. Foi um esforço tremendo. Na altura em que eu nasci, só havia 11º ano, não havia mais e depois de estar casado, e já com filhas, lembrei-me e digo: “Não fico só por aqui, vou fazer também o 12º ano e essas habilitações”, porque tenho curso geral do comércio, tenho o curso complementar de administração e comércio e tenho o técnico de secretariado. Fiquei por aqui. P: E os seus pais, qual é que era a profissão dos seus pais? Victor Fernandes: O meu pai era empregado de mesa e a minha mãe trabalhava numa fábrica têxtil. P: E a sua mulher? Victor Fernandes: A minha esposa trabalhava numa escola, na Secretaria. P: E as suas filhas? Victor Fernandes: As minhas filhas, uma é GNR, foi agora empossada como furriel, e a outra trabalha ao balcão de uma fábrica de panificação. P: Só mais duas perguntas para uma questão estatística: professa alguma religião? Victor Fernandes: Tenho uma religião, sou católico praticante e daqui a bocadinho, lá vou a mais um trabalho que tenho que fazer também dentro da Igreja. P: E faz parte de algum partido político? Victor Fernandes: Além tempos, fui fundador da Juventude Socialista na Covilhã. Hoje não tenho qualquer partido político. Não me revejo em nenhum partido político. Há coisas boas desde a extrema-esquerda à extrema-direita, mas não há nenhum partido que abarque aquilo que são as minhas convicções. P: E na igreja, que responsabilidades é que tem? Victor Fernandes: Eu faço parte do grupo Coral. Tive outras atividades. Fui catequista. Tenho curso de diácono permanente. E acho que já chega, não é? P: Então vamos à questão da experiência associativa especificamente. Já percebi que esta propensão para se envolver no associativismo é de família, não é? Os seus pais já faziam parte... Victor Fernandes: É, eles andaram assim por aqui. Sabe que as condições... Esta Casa estava muito dedicada aos tempos livres, à cultura e ao desporto. Nasceu a 8 de abril de 1954 oficialmente, mas já existia antes entre amigos que iam jogar um futebolzinho além, num tipo de cabeço, numa encosta de um cabeço. Portanto, este clube é muito provável que tenha nascido para aí em cinquentas, nos anos 50, ao princípio ou talvez fins dos anos 40. Começaram numa garagem, depois de uma garagem foram já para uma casinha, depois de uma casinha viemos para o sítio onde agora está esta sede, que foi deitada abaixo e agora estamos num prédio novo. P: Essa história, foram os seus pais que transmitiram essa memória da fundação? Victor Fernandes: Não só, nós também temos um livro escrito sobre essa situação. Temos a história dos 50 anos. Por acaso não tenho o livro comigo nesta altura, mas temos essa história também. P: E qual é que é a motivação para além dessa propensão de família? Qual é que foi a principal motivação para ingressar? Quando é que ingressou, com que idade? Victor Fernandes: Ora eu era muito novo, devia aí ter os meus 15 anitos. Quando faltava alguém na Assembleia Geral, já me chamavam a mim para fazer a ata, que era um bocado complicado, mas eu, como fui sempre ligado às letras, muito mais do que às matemáticas... Para mim, embora fosse novo, era extremamente fácil fazer isso. Tenho impressão de que não há nenhum lugar nesta Casa pelo qual eu ainda não tenha passado. Assim como noutras associações por onde passei. P: Em que outras associações é que participou? Victor Fernandes: Estive no Campos Melo, na banda da Covilhã também e fiz parte não dos órgãos sociais, mas sim de outras coisas, no Oriental de São Martinho. P: E porquê esta multiplicidade de participações? Victor Fernandes: Primeiro, é o gosto pessoal. Tenho muito gosto em ajudar seja naquilo que for e tenho muito gosto em estar ao serviço das pessoas. Não é uma realidade hoje, mas é uma realidade que nasceu comigo e que me foram incutindo ao longo do tempo. Nunca tive nenhuma estátua, também não a quero, mas acho que isto começou por tudo. Começou por tudo, não era só o gosto, mas depois também uma certa necessidade, porque no tempo do Estado Novo,as casas também tinham poucas condições e isto dava para juntar tudo. Os Leões tinham chuveiro, tinham a televisão que nós não tínhamos em casa. Depois tinham a sociabilização, que nós em casa, tirando o relacionamento pais-filhos também não tínhamos outra coisa e a sociabilização é muito importante, que se vai perdendo. Hoje as pessoas não vivem nada como era nesse tempo, são mais individualistas, são mais comodistas e pouco se importam com este tipo de casas, o que é uma pena, se um dia este tipo de casas não der para fazer aquilo que têm feito. Uma das coisas que têm feito é substituir o Estado. Não somos verdadeiramente comparticipados com valores que nos deviam manter, mas nós substituímos o Estado em muita coisa aqui, no acolhimento, por exemplo, é importantíssimo. Hoje a nossa casa é frequentada por milhares de estudantes. Antigamente era mais frequentada só por sócios e eram bastantes. Hoje deixamos que eles façam os seus trabalhos escolares na nossa coletividade. Antigamente, isso era impensável. Mas hoje têm Internet à vontade, aberta, podem fazer o que quiserem e também lhes damos algumas indicações de vida e às vezes põem-nos à frente vários problemas que nós tentamos resolver ou encaminhar para quem os resolva. Isto é uma substituição daquilo que o Estado devia fazer e não faz. Há muitas outras coisas, que havia na altura que nós também não tínhamos em casa, quando começámos a ter televisão, só tínhamos quatro canais. Nós tínhamos sorte por ter quatro canais, eram dois espanhóis e dois portugueses. Esta zona dava para ter dois canais espanhóis e dois portugueses. Mas havia uma coisa que nós não tínhamos em casa, que era o cinema. E aqui passava-se o cinema para os sócios. É isso era uma maravilha. Embora tivesse hora certa para entrar em casa e às vezes prolongasse um bocadinho e depois vinha a ter um alguns problemazitos... Mas havia o cinema, que era uma coisa bastante importante. Hoje é precisamente o contrário, a maior parte das pessoas às vezes não vem à coletividade porque já tem demasiadas coisas em casa. Por exemplo, eu em minha casa tenho 200 canais, quando eu só vejo dois ou três, eu em minha casa tenho Internet, eu a minha casa tenho todas as condições, tenho a casa de banho, tenho tudo aquilo de que preciso. E isso levou, como eu muita gente, levou a que as pessoas hoje não adiram tanto ao associativismo. Mas ainda há outra coisa importante para as pessoas não aderirem ao associativismo, que eu acho que é a demografia. Tudo estava concentrado no centro da cidade, hoje em dia não é assim. Porque foram criados muitas casas sociais em redor da cidade - Vila do Carvalho, Teixoso Tortosendo, Boidobra e parte cimeira da Covilhã. E isso levou a que os clubezinhos de bairro, que tinham as pessoas ali, saíssem daqui e fossem para outros lados. Isso causou-nos alguns problemas, principalmente para tentar arranjar pessoas que queiram vir e tomar conta desta e das outras coletividades. Era bastante bom, na altura, se tivessem arranjado as casas onde as pessoas viviam, que eram muito mais felizes do que nos guetos onde os puseram. E hoje estava tudo mais normal, o centro histórico estava cheio, e hoje está vazio e com casas a cair. P: Diga-me uma coisa, começou então a participar aqui na associação ainda antes do 25 de Abril? Victor Fernandes: Sim, por aí, antes do 25 de Abril já cá entrava, isto garoto. P: E como é que era, qual é que era a diferença nessa altura, durante a ditadura? Victor Fernandes: Aqui não havia o espectro político, havia algumas casas que tinham. Esta nunca esteve ligada à política. Portanto, as pessoas eram submissas e não falavam disso. E como não falavam nisso, não quer dizer que não tivessem liberdade, quer dizer, uma pessoa tinha liberdade falando de tudo, menos em política, e hoje não é bem isto. Quer dizer, hoje há uma certa liberdade, que acaba por ser tirada a liberdade quando se entra num outro campo, que é a libertinagem. Hoje há muito disso. Há muita gente que destrói. Há muita gente que estraga tudo. Há muita gente que foge com os equipamentos. É tremendo. Quer dizer, isto demonstra que há uma grande diferença entre o passado, sem liberdade, uma liberdade restrita, e um presente com uma liberdade demasiada, onde ninguém tem poder para travar seja quem for. O professor não manda, a polícia não manda, ninguém manda. Quer dizer, isto é uma confusão tremenda. Isso traz-nos também alguns problemas, a nós. O caso de nos levarem coisas, de partirem coisas... Quer dizer, não pensam nunca que tudo aquilo que façam de mal são os pais também, com os seus impostos, que estão a pagar. Não somos só nós que pagamos, o pouco que recebemos, ou quase nada, dos órgãos, mais até a Câmara Municipal, a Junta de Freguesia, o pouco que recebamos vai dos impostos também dos pais desta gente e dos nossos, não é? E as pessoas não pensam nisso. P: E nessa altura era uma altura de dificuldades, como disse, as pessoas não tinham algumas necessidades básicas asseguradas. Eu estive a ver que noutras associações, havia mecanismos de entreajuda, por exemplo o subsídio de funeral. Aqui também existiu? Victor Fernandes: Subsidio de funeral aqui não existia. Eu sei que há clubes, por exemplo o Campos Melo, tinha subsídio de funeral. Aqui, por acaso, nunca foi prática. Podia-se ajudar as pessoas noutras situações, quando se viam com algum problema. P: Por exemplo, lembra-se de algum exemplo concreto? Victor Fernandes: Falta de comida... Eu sei que havia, também havia. Embora aqui já fosse uma cidade rica. Os têxteis ganhavam acima da média, na altura. Hoje ganham menos do que toda gente, mas na altura os têxteis ganhavam mais do que o resto, talvez das cidades do interior. E eu posso lhe dizer que havia algumas carências de facto que eram colmatadas, nem que fosse pelos amigos. Hoje, talvez não seja tanto assim. A amizade hoje é um bocadinho diferente. A amizade é o Facebook, é a exposição das coisas nos órgãos sociais. É estarem numa mesa a beber um copo, cada um com o seu telemóvel. Já não há aquele conversa simples que até nos levava a um certo crescimento. Hoje, com esta gente nova, já não existe isso. P: Foi uma escola, esta instituição? O que é que aprendeu aqui? Victor Fernandes: Foi sempre uma escola. Costuma-se dizer que o velho sabe muito porque é velho, não é? E nós aprendíamos precisamente com essa gente. Aprendíamos porque eles tinham a escola da vida. E a escola da vida, que eles que nos transmitiam, não era propriamente a escolaridade. Era a escola da vida que eles nos transmitiam e davam-nos valores que hoje é impensável conforme está a nossa educação a ser desenvolvida. Hoje é impensável, era isso que nós queríamos fazer hoje, dar alguns valores às pessoas ao incutir-lhes algumas coisas que eram importantes para a vida delas, só que não conseguimos, porque elas hoje são demasiado autónomas. P: Que tipo de que atividades é que se Lembra que o clube desenvolvia nessa altura? Victor Fernandes: Bem, eu já lhe falei no rancho folclórico. P: Participava no rancho folclórico? Victor Fernandes: Eu não, os meus pais sim. O meu avô tocava flauta no rancho e os meus pais andavam no rancho. Mas, além do rancho, também tivemos um conjunto de baile. Já nos anos 50, aqui havia muita atividade, o desporto, a cultura. Tínhamos uma boa biblioteca que agora não tenho aqui. Neste momento tenho numa garagem para tentar organizar. Havia muita coisa, desde os Jogos, que também dava para expressão e para agarrar a gente. P: Quais eram as modalidades que desenvolviam? Victor Fernandes: Principalmente o futebol, o andebol também. O andebol acho que acabou na Covilhã porque ganhavam sempre os Leões da Floresta. Acabou precisamente por causa disso. Depois, mais tarde, veio o ténis de mesa. Tivemos uma equipa excecionalmente boa e reconhecida a nível nacional. E alguns elementos chegaram a ir ao estrangeiro, principalmente à Rússia e à Espanha. P: E na parte cultural, tinham teatro, música, tinham uma biblioteca. Como é que foi criada a biblioteca? Victor Fernandes: Quando cá cheguei, já cá estava. Portanto, a biblioteca devia ter sido criada logo para aí nos primórdios da coletividade, porque eu lembro-me que um dos livros que lá estavam era O Vinho, que salvo erro era do António Pato, que vinha do Partido Comunista e fez parte de daquele bloco contra a ditadura já muito antes até das coletividades serem formadas. Portanto, eu lembro-me desse livro cá estar, bem como outros, claro, mas esse ficou-me na memória. P: E esses livros não eram proibidos? Victor Fernandes: Aqueles livros eram proibidos. Pelo menos dos que conheço só esse é que era proibido. Esse de facto era proibido. Não sei onde é que eles o encaixaram, nem onde o foram buscar. Sei que eu já cá o encontrei. P: No Campos Melo, achei muita piada, estive a ver que davam um prémio aos leitores que liam mais. Aqui também faziam esses incentivos à leitura? Victor Fernandes: Não, sabe que as pessoas aqui requisitavam os livros, levavam para casa, liam e depois traziam, ou então podiam ler aqui. Embora as condições na altura não fossem o que agora são, mas as pessoas, havia muita gente que lia aqui os livros. No caso do Campos Melo era diferente, a biblioteca Ferreira de Castro era totalmente diferente. O Campos Melo, apesar de tudo, já tinha uma parte política. Eu estou-me a lembrar de uma das pessoas que foi lá colaborador, que esteve preso no tempo da ditadura com o Álvaro Cunhal e outras pessoas assim do género, que era o senhor [...]. E essa pessoa, lembro-me que, como ele contava, foi torturada. Esteve com a água sempre até aos joelhos, o pingo sempre a cair na cabeça, e, portanto, o Campos Melo já tinha uma parte política Aliás, o Ferreira de Castro também já tinha, ele próprio, também já tinha a sua parte política. E no Campos Melo, de facto, havia esse prémio, eu lembro-me disso, para quem lesse mais. Havia de facto muita gente, já com uma certa cultura, naquela altura, no Grupo Educação e Recreio Campos Melo, tanto que um dos fundadores até era professor. Não sei se já falaram nisso, mas agora não me lembro bem, mas o [...], penso eu, era professor. Eles tinham lá as escolas primárias, tinham duas salas de aula e aí era muito mais simples ter desenvolvido a mente das pessoas. P: Quando é que passou por lá, pelo Campos Melo? Victor Fernandes: Olha, a última vez que lá estive foi 1992, a primeira vez foi em 1984. P: E foi sócio, foi dos órgão sociais? Victor Fernandes: Ainda sou sócio, fiz parte dos órgãos sociais, por duas ou três vezes. Duas vezes! P: Como é que conseguia acumular a participação em várias coletividades ao mesmo tempo? Victor Fernandes: Sabe, umas coisas desenvolvia-se numa e outras coisas desenvolvia-se noutras. Eu também dei a minha colaboração no Grupo Desportivo da Mata, quando estava nos Leões da Floresta, por exemplo. Eu estava aqui na direção dos Leões da Floresta e estava a treinar o grupo desportivo da Mata inter juvenil. Foi sempre uma das coisas. Quando estive no Campos Melo pela primeira vez, a única coisa que tinha de coordenar era a catequese. Não estava a coordenar nada nos Leões, ou melhor, acho que estava na Assembleia Geral dos Leões. Reunia uma vez por ano, portanto, não era por aí que eu deixava de poder dar a minha colaboração no Campos Melo. Era interessante e lembro-me de que um desses mandatos apanhou-me na tropa, e ao fim de semana tinha que ir para fazer turno no Campos Melo. Tinha que vir fazer tudo aquilo que me competia. E mais às vezes mais do que me competia. P: Então, daquilo que se conseguiu recordar com detalhe, foi desenvolvendo diferentes atividades em diferentes associações. Digam-me lá aquelas que se lembra. Victor Fernandes: Fui treinador na Mata. Fui treinador no Campos Melo, também de ténis de mesa. Joguei pelo Oriental de São Martinho, joguei pelos Leões da Floresta. Também joguei pelo Campos Melo. Depois acabei por me federar e depois terminei a minha carreira, sempre no ténis de mesa. Jogava uma futeboladazita, quando era mais novo, mas nunca tive grande queda para o futebol, ainda hoje é o dia que não vejo um jogo de futebol. Nunca tive grande queda para isso. Gostava de facto de ténis de mesa. Dava-me um gosto jogar e poder ajudar os outros a jogarem. P: Mas desenvolveu outro tipo de atividades, tipo responsável pela catequese? Victor Fernandes: Sim, fui responsável pela catequese, também uma das coisas que me calhava todos os anos era, por exemplo, a preparação para a profissão de fé, que eram 15 dias intensivos de catequese e então iam os grupos todos da paróquia. Conclusão, chegava ali a ter aos cento e alguns, catequizando os 100. E alguns catequizados foram catequistas. Era engraçado, no fundo era engraçado. Naquela altura, também, as pessoas também se moldavam com mais facilidade. Eu estou a ver hoje uma turma, por exemplo com 100 alunos, que essa ninguém devia pôr mão naquilo, não é? Até com 30 já deve ser difícil, quanto mais com cento e qualquer coisa. Naquela altura era mais simples. As pessoas eram diferentes. P: Isso foi nos anos 80? Victor Fernandes: Sim, pelos anos 80. P: E desempenhou mais algum tipo de atividade? Victor Fernandes: Assim outro tipo de atividade, música sim, porque ajudei a fundar, fui dos fundadores do Covimúsica, lá em cima no Campos Melo. Fui fundador, mais quatro pessoas. Eu tinha viola, os outros não tinham. Eu não sabia tocar viola, emprestava a viola e assim se foi criando. Quer dizer, começou-se com pouco. É engraçado que juntávamos a revolução, aquilo que nós começamos a cantar inicialmente era tudo o que era revolucionário, canções revolucionárias, partidárias e canções da Igreja. Também mais de convívio fraterno de jovens. P: Esteve alguma ligação à JOC ou à LOC? Também sei que havia alguns grupos. Victor Fernandes: Não, nunca estive ligado. Conhecia muito bem as pessoas de um lado e do outro, só que diretamente nunca estive ligado, nem à JOC nem à LOC, mas indiretamente estive ligado a toda a gente, porque muitas vezes ia para os encontros com eles. Apesar de não fazer parte, ia para os encontros com eles e sempre me dei bem com eles. P: Mas desculpe interromper, estava-me a contar das músicas do COVI Musica, isso foi em que ano que começou? Victor Fernandes: Foi no pós 25 de Abril e talvez já nos anos 80. Fins dos anos 70, princípios dos anos 80. Foi muito interessante. P: Tocava músicas revolucionárias e da Igreja? Victor Fernandes: Sim, foi assim que começámos, depois cantava-se uns fadinhos também pelo meio, até que depois voltámo-nos de vez para a música popular portuguesa e daí nunca mais saímos. P:E como é que era essa relação entre a música revolucionária e da Igreja? É interessante essa... Victor Fernandes: Sabe que as pessoas... A música revolucionária ainda estava um bocado na mente das pessoas e era bem aceite. A música da Igreja também era bem aceite no contexto, com as pessoas de então. Se fôssemos hoje a cantar qualquer coisa da Igreja e num lado qualquer, certamente ou não aparecia muita gente ou certamente eram capazes de aparecer e, não estando a contar com isso, eram capazes de dar uma assobiadela. Não faço ideia. As pessoas hoje são muito diferentes, já não é o que era, isso também devido um pouco à ciência. A ciência dá-nos hoje uma perspetiva diferente de algumas coisas, tentou explicar muita coisa, ultrapassou muita coisa, de facto, é verdade, e isso leva um pouco a incredibilidade das pessoas. E hoje as pessoas não ligam muito, pelo menos não estão a ligar muito, até que alguma coisa aconteça e vá tudo, de Santo na mão, às coisas da Igreja. Mas o que é certo e verdade é que as pessoas não se podem esquecer nem do passado, nem do que foram. E acho que devem dar também uma oportunidade à Igreja, que foi certamente onde nasceram e é certamente onde a maior parte pertence como baptizada na Igreja, certamente. P: A então essa dupla filiação, sente que faz mais parte de um clube do que do outro ou há uma identidade global do associativismo em que se insere sem fazer distinções entre as coletividades? Victor Fernandes: Claro, eu nunca fiz distinção entre coletividades. Sei que os mais velhos tinham uma certa rivalidade. Connosco não e o caso mais concreto é, por exemplo, eu telefono muitas vezes ao Francisco e o Francisco telefona-me a mim, como muitas vezes telefona ao Miguel e o Miguel telefona ao Rui, que está no Campos Melo, e muitas vezes ele também fala comigo. Portanto, eu nunca fiz distinções entre coletividades. E estava-me a lembrar do meu amigo, que vai ser amanhã entrevistado, que trocou a entrevista para eu ser entrevistado hoje, porque amanhã vou levar a vacina. Não posso lá estar, além do Ginásio, do Barroca, que também nos damos excecionalmente bem. Portanto, eu nunca vi diferença seja daquilo que for. Aliás, eu acho que o futuro das coletividades vai ser apoiarem-se umas às outras. P: Já existia essa colaboração entre as coletividades? Victor Fernandes: Talvez não houvesse muita. Havia coletividades rivais, como disse. Hoje não vejo rivalidade em lado nenhum. Mas, na altura, havia muita rivalidade. É muito provável que não houvesse muita cooperação umas com as outras. Hoje é totalmente diferente, estamos completamente à vontade. Embora uma pessoa sinta que alguns puxem mais do que outros por alguns cordéis. Não é isso que me vai a pôr contra seja quem seja, cada um mexe os cordéis que quer. Eu não me chateio absolutamente nada com isso. E se as pessoas forem soltas, certamente irão ter a mesma atitude que eu. E conheço algumas que são soltas também, quer dizer, têm a sua coletividade , mas quando toca a querer ajudar e quando pedimos auxílio, vêm também em nosso auxílio. E isso será o futuro das coletividades. Porque há de se chegar a um ponto, ou eu estou muito enganado, em que não vai haver gente suficiente para estar à frente das coletividades. E então, se as queremos ter abertas, temos que lhes pagar. Pagando-lhes, já não podemos comprar determinadas coisas e como não podemos comprar determinadas coisas, certamente temos que nos valer uns dos outros. Pedir à coletividade uma coisa que ela tem e depois também ceder alguma coisa que ela precisa. E podemos fazer isto entre coletividades. Eu não acredito que haja alguma coletividade que tenha tudo aquilo de que precisa. Porque não tem, certamente. E isto será um futuro próximo. Eu já não o vejo muito longínquo. Posso estar enganado, mas aquilo que eu vejo até agora, e devido a esta demografia, este movimento de pessoas para outros lados que nos deixa desmembrados, é muito provável que um dia vá acontecer, e se calhar mais breve do que aquilo que pensamos, o manter destas casas tem que ser remunerado. E isso leva certamente àquilo que a senhora disse e que eu também já disse, a que as pessoas se juntem mais para resolver os problemas momentâneos que tenham nas suas casas. P: Por falar em resolver as coisas em conjunto, logo a seguir ao 25 de Abril também se criaram nestas comunidades, eu acho que em articulação com as coletividades, outros tipos de associações, que eram as comissões de moradores, onde as pessoas se juntavam para resolver problemas dos bairros, teve alguma experiência dessa natureza? Victor Fernandes: Não, por acaso nunca tive, nem aquele que está mais situado no meio de um bairro. Há pelo menos três que estão no meio de um bairro, ou quatro, que é a Lapa, que é o Académico dos Penedos Altos, que é o Campos Melo e que é o GIR Rodrigo. São os quatro que estão mais inseridos, todas as outras estão um bocadinho mais afastadas do bairro. Embora o Oriental tenha muita coisa ali de volta, não era propriamente um bairro, porque havia se calhar mais gente ali que viesse para aqui do que fosse para lá. Mas eu nunca tive essa experiência de ver essa situação como pôs, nunca tive. P: E não acha que o facto da Covilhã ser uma zona predominantemente industrial ter quase toda a gente ligada à indústria, ter uma forte tradição operária, que isso marcou de certa maneira o associativismo e que justifica esta profusão de associações? Victor Fernandes: Eu acho que em princípio certamente marcou as coletividades. Sabe que eram essas pessoas que davam vida a isto tudo. Principalmente quando tinham lacunas que precisavam de ser colmatadas. O caso de em casa não terem aquilo que desejavam e que a coletividade tinha. Vivia-se tempos, poderá dizer-se, difíceis, mas que eram um regalo. Já agora deixo-lhe esta, era um regalo, para quem era um miúdo, ver as pessoas com a sua lancheira, quando tocava as cinco horas da tarde, e ainda havia algumas estradas que ainda eram em terra, e via-se os bandos das pessoas, pareciam bandos de andorinhas, muito engraçado. E eu era garoto e nunca mais me esqueço de ver aquelas saídas, depois pelo caminho, até se entrava numa taberna e bebia-se um copo. Era muito engraçado. Eu via, só que não bebia e ainda não estava a trabalhar na altura. E depois vinham para as coletividades. As coletividades eram a segunda casa das pessoas. Eu acho que até passavam mais tempo no emprego e nas coletividades do que propriamente em casa. Só havia uma coisa de mal. Era, na altura, haver poucas senhoras que iam à coletividade. Muito rara era a senhora que entrava na coletividade. E as coletividades podiam ter um dinamismo diferente se as senhoras tivessem posto também a sua cabeça e as suas mãos e todo o seu ser aqui ao serviço das coletividades. Não existia. E ainda hoje, penso que só há uma é que tem senhoras. Não, o Campos Melo tem e o Oriental tem, e penso que não há mais nenhuma. P: Mas antes do 25 de Abril elas não podiam participar, pois não? Victor Fernandes: Não participavam absolutamente em nada. Era injusto, acho que era injusto essa parte antes do 25 de Abril. Era um bocado injusto. Uma esposa que entrasse com o marido ainda podia ser tolerada, mas não podia estar muito tempo. Se uma senhora entrasse sozinha num café ou, por exemplo, aqui na coletividade ou noutra coletividade qualquer, isto caía o Carmo e a Trindade. Era muito complicado, porque havia um certo falatório. Depois eram apelidadas de muita coisa que nunca foram na vida. Isto era aquilo que tínhamos, quer dizer, era a cultura da época. Hoje faz-nos falta o contrário, faz-nos falta as mulheres e não as temos. Eu já não a tenho de maneira nenhuma, porque sou viúvo, mas fazem-nos falta as mulheres, porque têm um sexto sentido às vezes para determinadas coisas que os homens não têm. E isso era uma mais valia para qualquer coletividade ou para qualquer organismo. Não é que ninguém esteja por cima de ninguém, somos todos tratados por igual. Eu sou o presidente, mas estou a par dos outros colegas todos. Não sou mais que ninguém, nem pretendo ser. E fazia-nos cá falta as mulheres. P: E não houve nenhuma altura em que as mulheres tivessem participado mais? Victor Fernandes: Houve, principalmente no tempo das marchas populares. Nós também fomos dos clubes que ganhámos mais marchas populares e não ficávamos a dever nada a Lisboa. Digo-lhe que isto estava já num patamar de tal maneira que teve que acabar, porque as pessoas gastavam quatro a cinco vezes mais do que aquilo que iam receber da edilidade covilhanense. Chegou a um ponto que tinha de ter uma rotura qualquer e acabou. E nós víamos aqui as senhoras, não só para dançar, como também para arranjar os fatos e para arranjar essas coisas todas. As pessoas davam-se como voluntárias, por isso era magnífico ver as pessoas todas a trabalharam, andarem aqui dois ou três meses a ensaiar, era lindíssimo. E sabe que as senhoras também trazem muita gente atrás para elas, quer dizer, com elas vinham, os filhos, vinham os netos e isso era uma mais valia para qualquer coletividade. Era um sonho tornado realidade durante esses três meses, esta casa sempre foi muito movimentada, mas durante esses três meses isto extravasava tudo, nem havia quase espaço para as pessoas, porque a sede era muito mais pequena do que agora, agora está em três andares. P: Qual é que foi o ponto, em que década é que foi o ponto alto das marchas? Victor Fernandes: Eu não tenho já bem presente isso. Mas já foi, já foi neste século. Portanto, não faço ideia já do ano, porque isto parou há uns tempos. Agora é que andam a começar novamente. Vamos ver se pega, mas há algumas pessoas que já se desabituaram. E algumas pessoas que já não as temos. Como eu disse, já vivem noutros sítios e não estão para aqui andar de caminho. Isso complicou tudo. P: Qual é que a década, o período em que a atividade associativa foi mais exuberante, em que as pessoas participavam mais? Victor Fernandes: Sabe, em questão de participação, era mais nos primórdios. Porque isto era um clube de sócios. Ainda hoje é, embora abramos as portas a toda a gente e demos os mesmos direitos a toda a gente. Mas dava gosto ver centenas de sócios a trabalhar para um bem comum. Hoje, se virmos meia dúzia de sócios, já ficamos contentes. P: Que idade é que tinha nessa altura em que centenas de sócios estavam aqui? Victor Fernandes: Então, eu devia ter, devia de ser ainda garotito. Eu não podia estar à noite, devia de ser ainda garotinho, às 10h tinha que ir para casa, porque nos punham na rua e às vezes mais cedo. Eu era um garotito, ai com os meus 10 anitos. Dava gosto ver toda esta movimentação e não era só de volta do copito, é que havia muita coisa que se pudesse fazer. P: Como por exemplo? Victor Fernandes: Eu dou-lhe, por exemplo, as marchas populares, em cada uma delas as marchas populares davam muito trabalho. Vinha muita gente, isto era uma escola. Ténis de mesa, havia muita gente no ténis. Tínhamos pool, tipo snooker mas já jogado de uma maneira diferente. Tínhamos tiro ao alvo e ainda temos alguns federados que estão inscritos por nós. O que é que uma pessoa quer mais, meu Deus? Tínhamos o andebol, isto tudo ao mesmo tempo, movimentava muita gente. P: Isso tudo quando tinha os seus 10, 11 anos, ou seja, mais ou menos no 25 de Abril, nasceu em 1963? Victor Fernandes: Por aí. P: O 25 de Abril veio fomentar uma maior participação? Victor Fernandes: Não, penso que não. Penso que não. O 25 de Abril, enquanto as pessoas lutaram por novas regalias foi muito intenso. As pessoas aqui vinham muito. Depois de terem certas regalias, as pessoas começaram-se a afastar mais. Como já lhe contei há pouco, quero dizer, já têm a sua televisão, já têm a sua Internet, têm outras coisas dentro de casa que não tinham anteriormente. P: Mas quando se fala em lutar pelas regalias fala especificamente, por exemplo, naquelas greves, dos mil escudos por exemplo? Victor Fernandes: Sim, precisamente, e levaram a alguns aumentos, que levaram a algumas regalias sociais que hoje estão-se a perder todas. Mas na altura conseguiram-se várias regalias para os trabalhadores. Hoje isso é impensável, porque as pessoas não são unidas, como eram aquelas antigamente. Nós hoje, se falarmos numa greve, eu não estou a ver as pessoas a aderirem à greve. Se for na função pública, sim, Mas no privado, eu não estou a ver as pessoas a aderir à greve. Porque as leis, entretanto, foram retrocedendo e as pessoas também têm um certo receio de se manifestar. Portanto, eu já não sei que ditadura é que é pior, se era a ditadura do passado, se é a ditadura do presente. Não lhe sei dizer muito bem. Eu, como me afastei assim bastante da política, e não quero nada com isso, não sei dizer muito bem. Antigamente, quem não molestasse o governo podia fazer tudo e não tinha problemas. Hoje pode-se fazer tudo e podemos levar com alguns problemas pela frente. Portanto esta juventude que se cuide e que se una. P: Essas greves, por exemplo dos mil escudos, refletiam-se nas coletividades? Victor Fernandes: Refletiam-se, as pessoas quanto mais ganhavam mais também gastavam por aqui. E quanto mais regalias tivessem, notava-se, notava-se bem. Até que as regalias já são tantas que já não se nota bem. Há dois opostos. Quando não se tinha isso, foi tendo. Foi-se aplicando, mas agora que se tem de mais, não se aplica ou quase não se aplica e isto é quase um revés. Estamos a voltar atrás nalgumas coisas, mas não naquilo que era. P: Mas diga-me uma coisa, aqui os sócios deste eram maioritariamente operários e envolveram-se nessas lutas, como é que isso se vivia aqui dentro? Victor Fernandes: Não, dentro da coletividade, não se vivia isso. Não havia discussões sobre isso nem sobre grandes políticas, porque regra geral, também todos coincidiam mais ou menos à mesma política. Esta era uma das coletividades que era pró-socialista, também porque era de operários. Não havia tanto aquela patente comunista, embora houvesse alguns, mas respeitavam-se todos uns aos outros. Da classe mais à direita não tenho conhecimento, principalmente naquela época. Hoje, eu acho que são todos cada um pior que o outro. Eu acho que as pessoas hoje nem sequer discutem isso. Já nem sequer há uma certa ligação, nem vejo sequer ninguém a falar sobre um assunto político, seja ele qual for, a não ser comentar alguma coisinha que se passa ali na televisão. Uns estão a favor, outros estão contra, mas dali também não passa. P: Acha que a memória destas coletividades, esse passado, o facto de ter sido tão importante na vida das pessoas aqui da cidade, como é que essa memória é transmitida? Acha que os mais novos conhecem essa história? Victor Fernandes: Eu fui contando algumas coisas às minhas filhas, mas se quer que lhe diga frutos também não vejo. Porque nenhuma delas é muito amiga da coletividade. Quando eu às vezes venho: “pronto, lá vais tu.” Às vezes têm esse tipo de atitude, principalmente a mais velha. A mais nova nem tanto. Portanto, eles hoje têm uma maneira diferente e quando às vezes começamos a contar algum bocadinho de história da vida, este pessoal é muito mais aberto e às vezes o que tem na cabeça também o tem logo no coração. Nós éramos um bocadinho mais acanhados, nem que fosse para não magoar as pessoas. Nós não dizíamos aquilo que pensávamos. Esta gente hoje diz tudo. E como diz tudo, às vezes, se uma pessoa for contar alguma coisa, às vezes até se tornam um bocadinho inconvenientes. Pronto, ou eles ou somos nós. Não sei se eles não estão minimamente preparados para a história, para a história da vida. P: Aqui nos órgãos sociais, qual é que é mais ou menos a média de idades? Victor Fernandes: Já deve andar nos 60’s. P: Mas tem alguns jovens? Victor Fernandes: Tenho aqui ao pé de mim três jovens. P: E esses jovens estão interessados ainda no associativismo? Victor Fernandes: Ouça, eu também ando nisto que é para ver se lhes transmito esse bichinho, que é também para eu chegar e descansar. Acho que todos temos direito e às vezes estar tempo demais num certo sítio cria determinados hábitos e podem ser até prejudiciais. E não quero chegar a esse ponto. Queria que alguém viesse, um sangue novo que desse aqui um ar mais purificado à casa, mesmo que nós tivéssemos por trás a ajudar. Queria que essa gente, depois de moldada, ficasse a tomar conta. E é isso que eu sempre tentei. Em duas vezes que já fui presidente desta casa, da direção, de outras coisas já tinha sido. Mas da direção, sempre tentei meter jovens, para depois eles ficarem com a sucessão. Da primeira vez, tive êxito, porque ficaram pessoas novas na direção a seguir e com alguns cargos de responsabilidade. Desta vez, estou a rezar para que isso aconteça, mas desta vez também já estou a demonstrar um certo cansaço. Não é só o crer, o andar aqui, mas também já estou a construir um certo cansaço. Queria que alguém tomasse conta desta casa, porque acho que já é tempo. Eu acho que é tempo, porque quando não estou aqui, estou noutro lugar qualquer. E agora já são muitos anos, já vai para seis anos. P: E estes jovens que estão agora na direção, o que que acha que os motiva a estar agora no associativismo? Victor Fernandes: Um deles nasceu também assim por aqui. É relativamente novo. Mas nasceu por aqui e foi aqui que jogou futebolzito e foi aqui que se desenvolveu. Portanto, esse tem capacidade já no momento, penso eu, para presidir a uma coletividade. Tem já capacidade para isso. Tem uma pessoa a trabalhar mais diretamente com ele, que que lhe fazia uma tesouraria excecional, porque era um licenciado. E nós sabemos a tesouraria dos anos, embora hoje já não seja como era. Hoje é tudo através da contabilidade organizada, já não há contas de bolso, nem contas de gaveta, isso terminou. Isto é tudo contabilizado ao milímetro, vai tudo para as finanças, tudo direitinho. Hoje não há, não há esse tipo de contas, mas nós sabemos fazer isso pelos anos que temos e também porque a contabilidade na altura, uma pessoa faz isso bem, mas com um licenciado em gestão, certamente se fará melhor. Eu hoje não tenho um POC na cabeça, quer dizer, não tenho um plano oficial de contabilidade na cabeça, que esta gente mais nova certamente terá. Terá e pode pôr as suas capacidades à prova. Há um outro que é excecionalmente bom, não para gerir, mas é excecionalmente bom para olhar para qualquer coisa e ver aquilo que está bem e que está mal. Também um jovem que se ajeita já muito bem, seja naquilo que for, seja na eletricidade, seja na carpintaria, seja na construção, seja naquilo que for. Temos aqui um outro que é excecional. Agora precisamos que comecem também. Certamente ainda não será já nos próximos tempos, porque não estou ainda a ver, um ainda está estudar, outro está a tirar um mestrado, portanto, mais um anito. P: Qual é que aha que é o futuro do associativismo? Victor Fernandes: Eu vejo o futuro muito negro, sabe, porque as pessoas hão de chegar a um ponto que não têm capacidade para dar mais. E ao não ter capacidade para dar mais, eu já disse há pouco, se querem que isto continue, o mais certo é terem que pagar. Alguém que saiba gerir uma casa. É isso, já não vou ser eu, já vai ser outra pessoa qualquer, mas eu acho que o futuro passará por aí. Ter alguém a dirigir e esse alguém, certamente, tem que ser remunerado. De resto, não estou a ver grande futuro, a não ser que haja um revés muito grande e as pessoas comecem outra vez a necessitar destas casas. Nem que seja transformarem as casas num centro político, não sei. Mas, se precisarem, são capazes de voltar, se não precisarem, não estou a ver. Pelo menos duas ou três gerações foram completamente desviadas do que eram os contextos sociais. Aquelas belas virtudes que nós tínhamos, que os nossos pais nos incutiram, hoje não têm. Portanto, perdemos pelo menos três décadas. E isto só lá mais para a frente é que vamos fazer aqui isto dar. Eu, certamente, já cá não estarei. Mas quem cá estiver, boa sorte! P: Então e diga-me, o associativismo marcou a sua vida? Victor Fernandes: Marcou. Sabe que eu, além de praticamente crescer no associativismo, também marcou a minha vida de toda a maneira e principalmente, antes sim, mas principalmente, depois de 1988. Foi quando me casei, em 1988. A minha esposa dava-me um certo à vontade, porque ela também gostava. Ela chegou a ser diretora desta Casa, já me estava a esquecer. Mais duas meninas, na altura. Agora é que não temos, já foi em 1990, porque coordenavam as marchas populares com a direção. Eu, nessa altura, estava de fora, estava na Comissão de Festas para angariar dinheiro para as marchas populares e também fazia parte da Assembleia Geral. Em 1988 foi mais profundo. Estava aqui com a minha esposa e era totalmente diferente, era um apoio totalmente diferente. E mesmo depois dela sair daqui, quando começou a ter as filhas. Mesmo depois dela ter saído daqui, nunca me disse, ou nunca me pôs qualquer tipo de entraves, porque ela também gostava disto. Todos estes tempos foram marcantes, até ao desaire da Covid 19. Isso foi desastroso, vi-me aqui um bocado perdido na noite. Totalmente diferente, não vinham as pessoas, as contas caíam. Foi um pouco aflitivo. Se estivesse uma pessoa menos paciente à frente, não sei se ultrapassaria determinadas situações. Eu cheguei a um ponto que não tinha um cêntimo na caixa. Eu dizia: “Onde é que eu vou arranjar dinheiro para isto?” Hoje está mais ou menos colmatada. Mas foi doloroso. E nunca me senti tão fraco como agora, neste tempo. É engraçado que eu pensava que, quando começasse a desconfinar, as pessoas tinham aprendido alguma coisa com isto. Mas mais uma vez, como me enganei tantas vezes na vida, mais uma vez me enganei. As pessoas continuam a ser individualistas, continuam a ser comodistas, continuam a se servir das coisas e não ligar nenhuma ao que é o associativismo. P: O que é que foi a coisa mais importante que aprendeu com esta experiência associativa ao longo da vida? Victor Fernandes: Aquilo que eu aprendi foi a envelhecer aqui e a saber mais. Isto dá-nos uma estaleca diferente para enfrentarmos determinadas coisas. Foi aquilo que talvez mais me tenha marcado. Porque tudo o resto, todas as atividades e tudo isso já lhe falei atrás. Mas aquilo que de facto mais me marcou foi envelhecer aqui, o que me tornou mais aberto para enfrentar as situações que venham por aí, e já vieram algumas. -
25 de novembro de 2021
Leontina Tojeira Pereira
-
16 de novembro de 2021
Fernando Alves
P: Começando pelo registo de alguns dados biográficos. Podia-me dizer o seu nome todo e a sua data de nascimento? Fernando Alves: Fernando da Conceição Alves e nasci em 1945. P: Nasceu aqui na Marinha Grande? Fernando Alves: Não, sou da Martingança, que é uma povoação aqui pertinho, que pertence ao concelho de Alcobaça. P: E fez lá a escola? Fernando Alves: Fiz a escola primária e vim para aqui para a Marinha Grande já com 16 anos. O meu pai era negociante e teve um AVC. Não recuperou e eu tive de deixar de estudar, tive que ir trabalhar. Porque naquele tempo não havia segurança social como há agora, e o meu pai não recebia nada. Bom, nós vivíamos todos dele. A minha irmã era professora. Naquele tempo havia as professoras regentes, que eram abaixo das professoras oficiais. E o meu irmão trabalhava numa fundação, era fundidor, mas o meu pai era a base da casa. Quando ele adoeceu, tivemos que vender bens que tínhamos, porque ele teve um ano internado em Coimbra numa clínica para ver se recuperava e tínhamos todos os meses de pagar uma conta. Chegou a uma altura que já não tínhamos dinheiro, vendemos as coisas, pinhais e tal, e já não tínhamos dinheiro. Depois, a minha irmã veio trabalhar para uma empresa aqui na Marinha, onde ganhava mais do que em professora e o meu irmão já trabalhava. O meu pai estava assim, por isso viemos para cá para ser mais fácil aos meus irmãos estarem no emprego. P: E o senhor Fernando também veio trabalhar nessa altura? Fernando Alves: Eu comecei a trabalhar com 13/14 anos, não tinha outra hipótese. Eu fui serralheiro de moldes. Primeiro vim para uma fundição de metais, depois para uma oficina de bicicletas e depois acabei a minha carreira numa fábrica de vidros. P: O seu pai era? Fernando Alves: O meu pai era negociante de madeiras. E pronto, ficámos assim porquê? Por isso é que às vezes as pessoas não compreendem o 25 de abril. Se soubessem, se tivessem vivido nessa altura compreendiam, porque nós não tínhamos segurança nenhuma, nem fundo de desemprego como há agora. P: E casou-se aqui na Marinha Grande? O que é que a sua mulher fazia? Fernando Alves: A minha esposa era filha de um vidreiro, mas como tinha muito bons resultados na escola, havia um organismo que pagava para irem para o liceu e ela conseguiu entrar. Depois foi também trabalhar para uma fábrica, para um escritório. P: Também na indústria vidreira? Fernando Alves: Não, nos plásticos. E trabalhou lá muitos anos até se reformar. P: E tem filhos? Fernando Alves: Tenho dois filhos. P: E o que fazem? Fernando Alves: Um é professor de educação física e o outro tem um bar, não quis estudar. O mais velho nunca quis estudar. Foi para aviação, foi para a tropa mais cedo para eu não obrigar a andar na escola. Andava chateado, tinha 17 anos e foi para aviação, para não ir estudar. Era muito habilidoso, foi eletricista, depois foi vendedor e mais tarde começou a dizer: Eu Não quero trabalhar para ninguém e montou um café. P: Tem alguma região? Fernando Alves: Tenho a religião tradicional, embora eu apoie o Partido Comunista. Não sou filiado nem nada, mas sou de esquerda, estou mais chegado ali, mas sou católico, só que não sou praticante, por tradição até sou católico, não tenho outra religião. P: E no associativismo, quais foram as associações em que participou? Fernando Alves: O associativismo foi uma coisa que nasceu quase comigo. O meu pai foi fundador de um clube lá na minha terra. Aliás era um clube que já estava morto, e ele mais outros reabilitaram aquilo. E eu habituei-me desde muito novito a ver lá por casa bolas de futebol, equipamentos. A minha mãe era também muito habilidosa na costura. O meu pai era guarda-redes e ela é que fazia as joalheiras, os calções e eu fui logo habituado a isso. Depois o meu pai era assinante do jornal do Benfica e eu tinha todas as semanas aquele jornal e lia aquilo e entusiasmei-me com isso. Tinha 12 anos comecei logo ali a juntar um grupo, juntei um grupo de miúdos para comprarmos uma bola de futebol, umas camisolas, para fazermos um clube e nunca mais parei. Depois vim aqui para a Marinha Grande aos 16 anos e para aí ao já aos 19 anos, frequentávamos um café de uns senhores muito simpáticos, que que eram os donos, e começámos a pensar: Vamos fazer aqui um clube e organizarmos um clube. De maneira que depois estive por aqui até aos 22 anos. Depois fui mobilizado, fui para o ultramar. É claro, tinha que continuar no ultramar lá no meu grupo, juntei as pessoas e fiz um clube de futebol, que era o que se fazia lá para jogar contra as outras companhias que apareciam, que andavam no Mato. Depois, quando vim, fui para um clube aqui da Marinha Grande, para ser jogador de futebol. P: Com quantos anos? Fernando Alves: Com 25 anos, eu tive lá dos 23 aos 25 anos. Mas nesse clube de futebol, que é o Sport Lisboa e Marinha, era um dos mais conhecidos na altura, aí eu tinha um primo, que não me conhecia, porque a família da minha mãe é daqui da Marinha Grande e tenho muitos primos que ainda hoje não me conhecem ou eu não os conheço a eles. E então esse primo quando soube que era primo: Tu não vais nada jogar, vais me ajudar, mas porque ele era o homem do desporto, como eu sou agora, era ele. Vais me ajudar, ficas aqui em diretor, E pronto nunca mais saí dessas coisas. A minha atividade no associativismo é mais no desporto e na política, eu estive 22 anos na Assembleia Municipal e fui 4 anos secretário da Junta de Freguesia. Foi um mandato agora a minha última intervenção. E pronto, agora estou num clube de atletismo que eu fundei há 26 anos. P: O que o motivou a dedicar tanto da sua vida à participação associativa? Fernando Alves: Sabe que isto é viciante. Eu agora tenho 76 anos e ando todos os anos a dizer, porque eu sou dirigente da Associação Distrital de Atletismo, ando sempre a dizer que é o último ano, é o último ano, mas depois dá-me pena e também sei que sou um influenciador e tenho medo de que quando eu parar as coisas acabem. Ainda ontem estava numa reunião e disseram: o senhor Fernando vai à Câmara. E eu disse “não, agora não vou eu, vão vocês, vão os mais novos, porque vocês é que têm de dar seguimento a isto” Tenho de os entusiasmar, não é? “Eu já estou a passar de moda, agora vocês é que têm de continuar”. Isto é como o Carlos [presidente da Associação Cultural e Recreativa da Comeira], isto é viciante, temos pena de deixar as coisas morrer e penso que é isso que me leva a não sair. Este fim de semana, vou para Évora, para uma ação de reciclagem digamos assim de juízes, porque também ao mesmo tempo sou juiz de atletismo, sou árbitro e a minha mulher claro coitada teve que entrar porque eu nunca estava em casa. Um dia convidaram-na, quando foi aqui a inauguração no Estádio da Marinha, da pista, que fui eu que também trouxe a pista para cá, e os meus colegas: Epá, Fernando, precisamos de uma pessoa para estar ali na entrada a fazer a inscrição dos atletas, diz aí à tua mulher se ela pode dar aqui uma ajuda. E eu disse-lhe e depois convenceram-na, tiveram de volta dela. Às vezes ao domingo, no Verão, por exemplo, eu saía com o clube, íamos para longe e ela ficava sozinha com os 2 filhos. Ia para a praia. Depois eu dizia-lhe que ia lá ter, mas já chegava tarde, já não me apetecia, ficava em casa, era uma guerra. P: A sua mulher foi consigo, acabou por se envolver, há outros casos? Fernando Alves: Há outros casos também de colegas meus em que as mulheres estão envolvidas. É uma necessidade também, porque – eu não devia dizer isto que vocês ficam todas vaidosas – as mulheres são necessárias porque são mais aplicadas, têm mais atenção às coisas, são mais focadas. A minha mulher, por exemplo, já é mais do que eu no ajuizamento, já é juiz árbitro, porque se dedicou àquilo, estudou e tal. A minha e outras senhoras que estão lá. A chefe dos juízes aqui em Leiria é uma senhora, por exemplo, e por aí pelo país fora há outras com o mesmo cargo. P: Eu gostava de recuar outra vez ao período mais recuado. Então começou logo aos 12 anos... Fernando Alves: Comecei aos 12 anos e de uma maneira engraçada, porque sabe, agora os miúdos, nós vamos aí à loja dos chineses ou ao continente e há bolas de futebol baratas. Nós nesse tempo não tínhamos. Nós fazíamos bolas com meias. A minha mãe de vez em quando andava a dar-me umas palmadas, agora já não são palmadas, porque traumatiza os miúdos, mas antes, eu não me sinto nada traumatizado e levei algumas. Porque eu roubava-lhe as meias, aquelas meias altas que se usavam, não eram meias de vidro, eram daquele tecido mais grosso. No Inverno. as senhoras usavam aquelas meias. Como eram grandes, dava para fazer uma bola maior. E nós aí, então, andámos à procura de ferro velho, bocados de ferro e chumbo, para vendermos a um senhor la da terra que comprava, para comprarmos uma bola de borracha, porque a bola de borracha era um tesouro. E começámos por ali, mas assim desta maneira. Porque também não tínhamos ninguém que nos ajudasse como agora há clubes e há esta coisa do desporto para os jovens. Nesse tempo não havia nada, nem nas escolas, nem nada. Depois eu vim-me embora e ficaram lá os outros miúdos. Eu vim para aqui para a Marinha Grande e procurei logo onde é que havia alguma coisa onde eu me pudesse entreter e isto já era mais evoluído. E então formamos aquele clube de futebol que lhe disse há pouco. Depois, a partir daí fiquei agarrado àquilo. Depois nesse clube havia um senhor que andava em Lisboa a estudar e trouxe a moda do vólei e fizemos uma equipa de vólei. Depois tínhamos ténis de mesa, a minha mulher também foi jogadora de ténis mesa. P: Isso foi ainda antes do 25 de abril? Fernando Alves: Isto foi muito antes do 25 de abril. Tive de assinar um papel para ser diretor, em como estava de acordo com a constituição de 1933, porque não havia partidos políticos nem podíamos dizer que as coisas estavam mal. Isto foi quando estive no clube do meu primo, em 1969-70. A primeira vez ainda foi assim, depois isso acabou. Como era o mundo associativo no período da ditadura? Fernando Alves: O mundo associativo era tratado com muito cuidado. Esse meu primo já era do contra e então nós, para falarmos, tínhamos de estar ver quem é que estava por ali, não se falava à vontade, não podíamos dizer coisas que agora são banais, não se podia dizer “epá ganha-se tão pouco, isto está tão mau, a vida...” Depois, mais tarde, viemos a saber que tínhamos lá um senhor que era da PIDE... Nesse tempo, as coisas não eram como agora, não havia as condições que hoje há. Nem toda a gente tinha automóvel para as deslocações, era um sarilho, tínhamos que andar a pedir a pessoas que já viviam um bocadinho melhor “epá, no domingo podes ir com os rapazes jogar não sei onde, aqui e ali?”, era muito mais difícil que agora, para termos equipamentos, não tínhamos dinheiro... Era preciso ter dedicação e gostar para se conseguir fazer alguma coisa. A Marinha Grande é uma terra com uma grande tradição operária. Qual era a relação entre esse movimento clubístico e o movimento operário? Muitas das coletividades eram realmente os locais onde as pessoas iam para poderem falar à vontade, para falarem da vida, das dificuldades... Havia um clube, e há, que era o Sport Operário Marinhense, que foi uma escola, que teve pessoas políticas, pessoas já com inclinações para a esquerda, onde se aprendia a falar francês e inglês, onde já havia volley, ténis de mesa, etc. Arranjavam maneira de juntar as pessoas ali e depois de as encaminharem, de as instruírem. Foram escolas muito boas para o povo, as coletividades. P: E não tiveram problemas com a PIDE? Fernando Alves: Sempre, de vez em quando lá aparecia a PIDE... No Operário, por exemplo, já havia uma biblioteca nesse tempo, onde os livros eram retirados, eram proibidos. Porque assim como havia pessoas de esquerda aqui, também havia informadores. P: E durante as greves, havia apoio aos grevistas por parte das associações? Fernando Alves: Havia o possível, mas não tenho conhecimento de haver assim um apoio... Apoio havia era durante a vida toda, durante a vida normal, não é de cada um. A vida de todos os dias. Procuravam trazer as pessoas para a coletividade e depois, aos poucos iam-nos ensinando e comparando a nossa vida com a vida de alguns países estrangeiros. Havia pessoas já com uma instrução a superior que eram dirigentes, que andavam sempre vigiados, mas conseguiam passar por entre os pingos da chuva. E realmente foram as coletividades foram importantíssimas. P: E havia coletividades que apoiavam os sócios com auxílios mútuos, por exemplo para pagar os funerais? Fernando Alves: Não tenho informação disso, naquelas que eu conheço. Havia era pessoas particulares que ajudavam e pertenciam às coletividades. Para mim o operário era o foco principal dessa época nesse aspecto. P: E depois, quando foi o 25 de abril, quais é que foram as grandes transformações? Como é que se viveu aquele período imediatamente a seguir à revolução? Como é que isso foi vivido no meio associativo? Fernando Alves: Foi vivido com muita alegria e com movimentos, começaram a aparecer as bibliotecas já à vontade, as pessoas já podiam falar, já não havia medo de ninguém. Foi muito bom, a formação começou a aparecer, as modalidades desportivas começaram a diversificar-se, o atletismo, o desporto à porta de casa, o desporto a trazer muita gente, muitos jovens, muito miúdo, foi um tempo de alegria, foi um tempo fantástico. Também muitas greves...alguma confusão. P: E houve algum projeto pessoal que tenha concretizado nessa altura? Fernando Alves: Antes do 25 de abril fazia parte de um grupo que se juntava e tinha reuniões num colégio que era liderado por um padre. Ele não sabia que era isso que se passava, foi pedido por um rapaz da JOC, que mais tarde foi preso, já depois do 25 de abril, porque era do PRP e fez para aí uns assaltos e tal. Ele ia às fábricas, ia às oficinas onde nós trabalhávamos e ia ver as condições de trabalho, depois ao sábado fazíamos uma reunião à tarde e cada um dizia “epá, lá na minha fábrica falta isto, falta aquilo”. Depois discutíamos, fazíamos grupos, juntávamo-nos todos para as conclusões. E é engraçado que depois passado um tempo, depois do 25 de abril foram presos por nós mesmo uns tipos que eram da PIDE e um deles era nosso colega lá. Quando fomos a ver, tínhamos todos o nome registado. Se não fosse o 25 de abril tínhamos ido presos. Depois isso deixou de ser necessário, começaram a aparecer os partidos políticos, o Partido Comunista, o Partido Socialista, e eles próprios começaram a atrair pessoas, a fazer sessões de esclarecimento. P: O Senhor Fernando participou na JOC? Fernando Alves: Eram pessoas da JOC, mas nós não sabíamos. Era da Igreja e a igreja católica, como sabe, alinhava com a situação anterior. E eu admirava-me porque esses rapazes eram da JOC, eram religiosos, e foram eles os grandes mentores destas coisas, destas revoltas do povo, das condições de trabalho, das condições de vida. P: Como é que começou a participar? Fernando Alves: Depois, por influência desse jovem, que era colega da minha esposa no trabalho. Fui também do PRP, que era um partido assim esquerdista mesmo. Inclusivamente eu fui um bocado prejudicado na empresa porque era chefe e sabiam que eu era do PRP. A certa altura, o PRP tinha a ideia da terra queimada, era contra as eleições, e eu andei a distribuir papéis a dizer para não votarmos, uma altura que éramos contra a votação normal, contra as eleições. Nós queríamos que a revolução fosse feita pelo povo e que o povo é que tinha de mandar e tal... A partir daí, nos aumentos de ordenado, etc., passei a não ser igual aos outros... Eu era muito dedicado, nessa altura já não era serralheiro, era chefe de uma fábrica de vidros e não tive cuidado. Era aquilo que eu queria, que eu ouvia que o povo merecia, porque mesmo na fábrica onde eu trabalhava ganhava-se muito mal e aquilo fazia-me confusão e eu fui naquela doutrina e depois tramei-me, mas não estou nada arrependido. Só consegui sobreviver até à reforma porque as pessoas tinham dúvidas, porque eu era muito cumpridor. Eu não tinha um horário de trabalho fixo, entrava e saia à hora que queria, mas era o primeiro a chegar à fábrica, fazia cumprir tudo e dizia sempre aos meus colegas de esquerda que trabalhavam lá, porque eu ralhava com as pessoas, chamava a atenção. Eu dizia “nós temos de ser os melhores, temos de dar o exemplo, para podemos depois falar e exigir”. E eles pronto concordavam. E então o Patrão e os meus chefes, os meus chefes eram piores que o meu Patrão, o meu Patrão foi um homem fantástico, arranjavam maneira de dizer mal de mim ao Patrão, aqueles que estavam acima de mim, os intermédios. Tenho mais queixa deles do que do Patrão. O Patrão, quando deixarem que tivesse contato comigo, tudo o que eu lhe dizia, ele aceitava. P: Nessa altura, ainda antes do 25 de abril, as mulheres participavam no movimento associativo? Fernando Alves: Muito pouco. Lembro-me de algumas que já na fase final, já muito próximo do 25 de abril, a minha mulher, por exemplo, foi uma delas. Eu era da direção do Sport Lisboa e Marinha, ela foi tesoureira, mas eram poucas. P: Porque acha que era assim? Fernando Alves: Sabe, naquele tempo...às vezes a minha mulher diz-me: és machista, quando eu digo alguma coisa. Mas nós éramos mesmo machistas, porque nós, a minha mãe, a vida da minha mãe era estar em casa, não trabalhava, era fazer a comida, lavar a louça, limpar a roupa e não passeava. Não. O meu pai não levava a lado nenhum. As Mulheres eram, eram para estar em casa, cuidar dos filhos...E nós fomos criados assim. Portanto, não me venham exigir que eu não seja um bocadinho, machista às vezes porque eu fui assim educado. A minha mãe alguma vez queria que eu fizesse comida, por exemplo, ou que eu andasse lá ou que o meu pai entrasse na cozinha? Porque sabe que as senhoras, mesmo as senhoras, estavam de tal maneira educadas que a cozinha era delas, as Mulheres: aqui vocês não mandam nada, não entram aqui, era onde elas mandavam coitadas. Pronto era o Reino delas, não é? E nós ficávamos todos, os homens ficavam todos contentes, era menos trabalho, mas era assim. As Mulheres eram um bocado, criadas, digamos assim, eram as nossas sopeiras. P: E acha que o movimento associativo ajudou a mudar essa situação? Fernando Alves: Muito, ajudou muito, ajudou a mudar as mentalidades. Quando elas começaram a entrar no movimento associativo. Começaram a ser reguilas, a exigir, a dizer, nós também temos direitos e tal. Acho que sim. O movimento associativo foi muito importante nisso. Mesmo neste processo de mudança, foi muito importante. Porque as pessoas também começaram a conviver mais e a falar umas com as outras. Começaram a frequentar. As Mulheres não iam às coletividades. Quem ia eram os homens, para jogar as cartas e beber uns copos e as mulheres ficavam em casa. Pois, eu também sou do tempo em que as Mulheres ao domingo (não havia cafés nas aldeias, mas aqui na marinha já havia), não iam ao café. Eu ainda não levava a minha mulher ao café quando eu vim da tropa. Há uma coisa engraçada, quando eu vim da tropa. À sexta-feira à noite, aqui na Marinha, era a noite dos casados. Os homens casados iam dar uma volta para passear e as Mulheres ficavam em casa, não iam ao café e a minha mulher começou a dizer: Eu também quero ir beber um café. E eu não queria, porque depois não estava mais mulher nenhuma, os meus colegas não levavam. Depois gozavam comigo, diziam: Epa, tu estás controlado e não sei quê. E então não queria que ela fosse. Ela um dia há noite agarrou nos filhos, eu tinha 2 filho, e foi para o café. Quando eu cheguei a casa, ela não estava em casa, e eu atei-lhe a porta. Quando ela chegou com os garotos tinha a porta fechada. Onde é que foste? Fui ao café com os meninos. Tu não foste também e tal. E eu depois comecei a pensar, epá, a Gaja tem razão.. Mas eu não a queria deixar entrar. Dizia, Agora dormimos na rua. E eu já me considerava uma pessoa evoluída. Mas ainda estava naquela...e já foi depois do 25 de Abril. Não, não foi antes, foi quando vim da tropa. P: E o 25 de Abril, foi um foi um momento de rutura nesse aspeto? Fernando Alves: Sim, sim, sim, claro, as mulheres conquistarem alguma liberdade. Acho que sim. Foi um momento de justiça. Foi quando se conseguiu começar a fazer alguma coisa em relação às diferenças. Eu estava-lhe a dizer, os homens iam para a taberna jogar as cartas e depois em cada jogo bebiam um copo de vinho, cada um pagava um e não sei quê. E à tarde as mulheres levavam umas arrochadas, eles chegavam já com os copos. E lá na minha aldeia era hábito as mulheres coitadas levavam... E era engraçado porque não eram os filhos, eram as esposas. É que eles embirravam com as esposas, quando chegavam a casa com os copos. Isto é verdade!!! P: E o movimento associativo tinha algum papel pedagógico nestas situações? Fernando Alves: Nesta altura que eu estou a falar, o movimento associativo nas aldeias era zero. Por aqui, já havia mas lá nas aldeias, não, nas zonas com menos gente até eram pessoas menos evoluídas. Não havia associativo, havia um clube de futebol, por exemplo. Lá na minha zona era a única coisa, mas era só para os homens. P: E no período revolucionário, lembra-se das mulheres terem organizado alguma iniciativa especificamente para as mulheres? Fernando Alves: Mais na parte do desporto, mas havia o Movimento Democrático das Mulheres, que se começou a formar. Havia algumas pessoas já com alguma formação política, até por verem os maridos andarem nisso, por terem sofrido por os maridos irem presos. Houve aqui muita gente, muitos operários que foram até para Cabo Verde, morreram lá alguns. Havia ainda, ainda no 25 de abril, o último preso político que foi aqui da Marinha, dos últimos digamos. Portanto, as mulheres tinham consciência de que alguma coisa não estava bem, que os maridos não faziam mal a ninguém porque é que iam presos? P: E elas organizavam-se para se entreajudarem? Fernando Alves: Sim, isso sim. Mas isso já vem do 18 de janeiro de 1934, as mulheres tiveram um papel importante nessa altura também. P: O que se conta do 18 de janeiro? Fernando Alves: Lembro-me das mulheres irem para o governo civil pedirem comer [emociona-se]. Isto já não é do meu tempo, mas vem à memória... O meu pai era padeiro nessa altura e teve um homem escondido na chaminé do forno quando foi o 18 de janeiro. As pessoas passaram muito mal. Quem me contou foi o meu pai e várias pessoas com quem eu me dava bem. P: Quem lhe contou foi o seu pai? Fernando Alves: Sim, o meu pai e várias pessoas com que eu me dava bem. Antes de eu ir para o Ultramar, eu falava muito com um senhor que era o Chico Caniço, que era um tipo que esteve preso uma série de vezes, um político do Partido Comunista, um ativista, andava sempre metido em coisas politicas, embora soubesse que mais dia menos dia o vinham buscar. Nós eramos um grupo de jovens de 18/19 anos e ele contava-nos o que é que passava na prisão, como é que o vinham buscar, de noite... E depois também tive uma boa relação com o Dr. Vareda, que era uma pessoa emblemática. Nós, na tropa, éramos um bocado injetados, que íamos defender o país, que aquilo era Portugal, que eram portugueses. E quando fui mesmo para o mato, para Mueda, comecei a ver as pessoas miseráveis, todos rotos, todos esfarrapados, não sabiam escrever, algumas não falavam português e comecei a pensar: “então isto é que é Portugal? Isto não é Portugal.” Eu e alguns colegas meus falávamos sobre a maneira como eram tratados. Por exemplo, os africanos se não pagavam alguma coisa que iam buscar às cantinas, o administrador ia busca-los e batia-lhes como se faz às crianças, com uma régua no rabo. Coitados, eram bichos quase. E comecei a pensar que aquilo não era bem o que dizem, e a revoltar-me de ser obrigado a ir para lá defender uma coisa que não era Portugal e de ver pessoas tão mal tratadas. Não havia empregos, é evidente que não, lá nas aldeias do Mato não havia emprego. As pessoas eram selvagens. E comecei também a mudar de pensamento. Ainda quando quando fomos, ainda íamos com aquele orgulho de defender o país mas depois eu já levava daqui algumas ideias e quando cheguei lá vi que o senhor, o Chico Caniço, estava a dizer a verdade, que aquilo que era um crime que andávamos a cometer, mas enfim pronto isso já são outras coisas. P: Mas conte-nos mais sobre essa experiência do Ultramar? Fernando Alves: Foi traumatizante porque para mim era impensável que houvesse pessoas ainda a viver como eles viviam, embora soubesse que para Trás-os-Montes não era muito melhor, que havia pessoas que andavam descalças lá no meio da neve, também viviam muito mal. Mas aquilo era o cúmulo, era o máximo, eram tratados como bichos. E eu até dizia a alguns soldados lá do meu pelotão, que que tratavam mal os pretos, Epá, o que é que vocês são mais do que esta gente? Vocês já viram que vocês também são miseráveis lá onde estão? Chamava-lhes muitas vezes a atenção. Porque as pessoas se sentiam superiores aos africanos, só porque eles eram pretos. Eles eram inteligentes. Quando nós íamos ao aldeamento e os víamos, faziam uma fogueira e estavam ali assim, com o olhar perdido, muito distante... Alguns deles eram guerrilheiros que depois, à noite, nos iam atacar. Eram pensadores, diziam umas frases engraçadas. Eles, por exemplo, tinham uma frase, quando andavam a trabalhar e quando chegava a hora de acabarem, quando tinha hora de acabar, deixavam tudo e depois os patrões, as pessoas diziam: Embora a trabalhar, vamos acabar o serviço. Patrão, serviço, nunca acaba, serviço nunca acaba, acaba este e começa outro, queriam eles dizer. O serviço nunca acaba, portanto, não interessava lá estarem a trabalhar mais depressa, porque depois vinha logo outro serviço e a compensação era pouca. Por exemplo, eu tinha colegas, eu nunca fui, vim de férias a Portugal que tinha-me nascido um filho quando eu lá estava ainda e eu tive que vir ver o garoto, E iam para o algodão, para as plantações de algodão, e faziam batota no peso do algodão. Eram incitados a pesar mal o algodão. E o algodão era pago mais barato às pessoas que plantavam que eram africanas. Era mais barato, pago a pior preço do que aos brancos. E era assim pronto, aquilo foi um bocado esquisito. É um bocado traumatizante. Nós às vezes tínhamos, porque tínhamos que nos defender, não é? Eu, felizmente não matei ninguém, tive a sorte de estar num serviço que não ia para o mato. Mas sei de um rapaz aqui da Marinha, que é cego, que ficou cego lá, que foi comigo. Lembro-me perfeitamente dele dizer a primeira vez que ele alvejou um homem, ficou com desgosto louco. Estava numa emboscada e depois passou um grupo de apoiantes dos “terroristas”, com a comida para eles, porque eles tinham ajudas de outros africanos, e ele apontou. “Epá, eu custou-me tanto, eu nem sei se matei um homem, nem se não”. Passado dois dias, ele ficou cego com uma mina. Portanto, é claro, ele se não matasse, quem não matasse, morria. Eu vi que as pessoas da Marinha Grande que eram do contra, que tinham razões para ser contra a guerra. P: Tomou conhecimento da forma como os africanos se organizavam? Fernando Alves: Eu não sei se tinham associações, porque era tudo clandestino. Eles tinham era, isso eu sei, que eles tinham quarteis, tal qual como nós, organização militar, tal e qual como nós. Diziam-nos que eram grupos de bandoleiros, grupos de terroristas, mas eles tinham quartéis como nós no mato, lá da maneira deles, com palhotas, tinham bases militares com organização. Mais tarde, ainda há pouco tempo vi uma entrevista. Porque depois houve colegas meus que iam lá, no fim da Independência daquilo, iam lá ver as terras onde estiveram e encontraram um grupo, aquilo devia ter sido combinado antes, encontraram um grupo que nos fez uma emboscada onde este rapaz ficou cego. E e eles diziam, nós éramos 200 e não sei quantos militares.... E depois estava lá um senhor que era o senhor do armazém de munições, que fornecia as coisas também, Eu não vos fiz mal, eu era do armazém, só dava as coisas que me pediam e tal e havia um, Eu estava com vocês lá em Moeda durante o dia e vinha dar informações depois de noite, lá pelo mato fora, ia dizer quando as colunas estavam para sair, eu é que avisei quando essa coluna saiu. Nós estranhávamos às vezes porque nos batuques, porque ao sábado à tarde havia sempre, o entretenimento deles eram os batuques, andavam a dançar ali à volta e com os tambores, e nós víamos caras que não víamos durante a semana, ao sábado andavam ali tantos homens, mas eles eram para nós todos iguais. Podiam ser pessoas de lá, mas estranhávamos porque nos parecia que aparecia mais gente, mais caras diferentes. Epá, parece que não vimos esta cara durante a semana. Depois havia uma vantagem dos guerrilheiros, porque eles eram nossos empregados, tínhamos empregados africanos, maiatos, para nos levarem a roupa. Eles faziam aqueles serviços, encher os depósitos da água, varrer e limpar o aquartelamento, eles conheciam todos os locais. Houve casos em que faziam desenhos do quartel e mandavam para os guerrilheiros, segundo ouvi dizer. Em Mueda, mesmo no Norte Moçambique, era uma base. Nós éramos atacados de vez em quando porque era uma base onde estava a engenharia, os comandos era ali que faziam estadia antes de saírem para operações. Chamavam-lhe a capital da guerra. P: Foi lá que ganhou consciência política? Fernando Alves: Sim, foi lá para mim, foi uma escola também. Porque realmente aquilo era uma injustiça. (...) Eu estive 22 anos na APU e na CDU, como deputado municipal, e tinham-me muito respeito porque eu nas assembleias, na parte política não intervinha muito, intervinha mais nas coisas aqui da terra que estavam mal, as ruas que estavam estragadas e tal e todos os partidos me respeitavam. Mas um dia tive um azar, há coisas engraçadas, enervei-me, passei-me, por causa de um regulamento que fizeram. E eu que era muito calmo. Era muito bem considerado. Rasguei um documento porque nós estávamos contra um regulamento que era o REMEU, de que fazia parte uma norma, uma nova lista de preços, por exemplo de fotocópias tiradas na Câmara. Aquilo era uma Loucura. Enquanto uma fotocópia de um projeto que numa papelaria, custava 50 cêntimos ou coisa assim lá eram 5 euros, passaram aquilo para muito caro e nós éramos contra, o Partido Comunista e depois, “Epá, não pode ser, isso não pode ser. Depois aquilo foi para uma revisão e eu ia convencido que era para conversarmos sobre os preços e tal e afinal era só para emendar uma frase que estava no regulamento. Epá, eu fiquei danado. Eu não estou de acordo com isto e nem vou falar disto, com licença, e rasguei o documento. Caí logo pronto, deixaram logo de me ter respeito e com razão. Mas pronto aguentei esses 22 anos, não sendo filiado no partido. Isto fica-me mal estar a dizer, mas eu era justo. Eu cheguei a votar ao contrário do meu grupo. Pedia desculpa, porque aqui na Marinha havia uma grande clivagem entre o Partido Comunista e o Partido Socialista. Eram muito rivais, era como o Benfica e o Sporting. E depois, às vezes, nas reuniões de preparação das assembleias, mas isto é para votar contra e eu, Epá, mas isto é bom para a Marinha, Epá, mas se fossem eles faziam assim também. Mas eu estou com vocês, porque vocês são melhores do que eles. Epá lá estás tu com a mania do perfeccionismo, mas aceitavam e pronto. E pronto e eu depois nas assembleias, olhem, o mais que eu posso é abster-me, mas eu não voto contra isto. E nunca me penalizaram, por isso eu tenho muita consideração pelas pessoas do partido, que ainda agora me nomearam mandatário da lista para a Câmara. Eu avisei logo quando me convidaram, olhem que eu não vou dizer mal dos outros. P: Esta propensão para ir trabalhar nas autarquias, depois do 25 de abril é uma coisa que aconteceu com várias pessoas que participaram nas associações, acha que há um há uma ligação direta? Fernando Alves: Há. Eu penso que os melhores políticos são pessoas que começaram no associativismo. Porque também no associativismo há o interesse de ajudar as pessoas. Por exemplo, agora eu e mais colegas meus somos treinadores de miúdos e o nosso interesse é que os miúdos sejam felizes, que ganhem provas, que se sintam bem. Nós não trabalhamos para nós. Também gostamos de ser reconhecidos, porque também é modéstia fingida se eu disser que não gosto de ser reconhecido, porque trabalho, porque me sacrifico para isso, mas é uma alegria quando vejo os miúdos terem êxito. E serem felizes. É emotivo e é isso que nos motiva. [emociona-se]. O jovens, é muito engraçado, quando ganham, quando vão pódio. Às vezes nem é preciso, às vezes até nos treinos, quando atingem aquilo para que estão a trabalhar ou que têm um resultado engraçado, eu noto logo no sorriso. De maneira que penso que também nos partidos políticos, também na política, as pessoas que levam a política a sério, que não andam lá só para ganharem dinheiro ou para serem famosos, penso que querem é fazer as pessoas felizes. Haver condições para viverem bem, terem a rua à porta deles bonita, terem o saneamento, para viverem como deve ser. Penso que é para isso que deve ser a política e os políticos devem estar lá para isso. E eu tento, também enquanto estive na política, tentei ser assim. P: Quando é que começou a participar na no trabalho autárquico? Fernando Alves: Eu sempre, a partir de 1974, ajudei a Câmara no aspeto desportivo, quando precisavam diziam, Fernando dá aqui uma ajuda nisto ou naquilo. Mas não pertencia a nenhum partido. Em 1991, as pessoas que estavam na Câmara, convidaram-me, disseram: Fernando, tens que vir, tens que fazer parte aqui da lista para a Assembleia Municipal. Pediram para eu fazer parte da lista e eu fiz. Aliás, eu em 1987 fui funcionário da autarquia, pedi licença na empresa onde trabalhava, porque começou-se a desenvolver aí na Marinha Grande, um projeto que era um projeto desportivo para os jovens das escolas às “Jornadas Desportivas da Marinha Grande”. Eu tinha ouvido dizer que no Seixal havia as Olimpíadas do Seixal (ou as Seixalíadas) e comecei a ler coisas sobre aquilo e achei aquilo muito engraçado, o desenvolvimento que aquilo teve. E falei com um vereador da câmara, muito antes disto, falei com vereador da Câmara, disse, Epá, devíamos de fazer aqui umas Olimpíadas como fazem no Seixal e ele, que era professor primário, uma pessoa muito ligada a estas coisas também, Epá, vamos pensar nisso. Depois passado um ou dois anos, ele e um senhor que é o Francisco Duarte, parece-me que também vem aqui, que é um homem também muito ligado ao desporto e à política, e à cultura, esse está mais a parte cultural, começou a implementar isso. Depois, mais tarde, em 1987, pediram-me para eu ir trabalhar para lá, para o gabinete de desporto da Câmara. Mas eu ganhava na altura 66 contos na fábrica e ali só dava até 42 contos de ordenado, mas eu mesmo assim, como gostava muito daquilo, pedi uma licença de três meses na fábrica e fui para lá. O filho do meu patrão até dizia “esse gajo vai de certeza para a União Soviética tirar algum curso”. Mas depois a minha mulher também me começou a chamar a atenção, porque para eu lá ficar eles começaram a pagar-me horas extraordinárias. Eu levava aquilo muito a sério e depois tínhamos reuniões nos clubes, durante a semana, às nove e meia da noite, para organizar coisas. Mas eu só podia ganhar aquilo enquanto estava a trabalhar. Se eu ficasse doente, se fosse para a baixa, ficava a ganhar menos, o subsídio de férias também. Tive que me ir embora. Fiquei a colaborar à mesma, mas saí. Mas fui funcionário público durante três meses. P: Quando assumiu funções políticas, quais foram as funções que assumiu? Fernando Alves: Era deputado da assembleia municipal e depois fui secretário da junta de 2013 a 2017. P: E enquanto assumiu cargos políticos desenvolveu projetos relacionados com o associativismo? Fernando Alves: Não era assim para isso que eu lá estava, mas também ajudei. Na altura que estive na Câmara, no 25 de Abril havia sempre uma atividade desportiva e um dia eu falei com o Presidente da Câmara, Epá, se nós fizemos aqui uma prova à noite, uma milha? Em termos de atletismo, havia só provas assim 10000 m, 7200 m. E tínhamos aqui um atleta na marinha grande, que tinha sido eu que que eu tinha treinado. Ele depois foi para os clubes grandes para o Sporting. Epá, e se houvesse uma prova mais curta? E então inventei a milha, que depois passou a ser a noite e isso foi um êxito. O atleta era o Raimundo Santos, um rapaz que agora é funcionário da câmara também. Mas projetos desportivos participei mas não fiz assim um projeto camarário. Tínhamos as jornadas desportivas e depois o resto era o apoio da câmara, dava muito apoio ao desporto. Ainda hoje dá. P: Eu gostava de voltar outra vez às memórias, por exemplo do 18 de Janeiro e outros movimentos que houve antes até de ter nascido. Isso foi-lhe transmitido só pelo seu pai? Fernando Alves: Não, por pessoas aqui da Marinha Grande, como já lhe disse. Pessoas que tinham participado ou que tinham participado noutras coisas, em várias, que eram de esquerda, daquelas pessoas com quem só falávamos em segredo. Por exemplo, durante muitos anos, o 18 de Janeiro que agora é festejado à vontade, a maneira de festejar era diferente, algumas pessoas iam para o para o Pinhal, aí para uma zona da mata nacional e à meia-noite deitavam foguetes e tal. Depois a polícia vinha procurá-los, mas eles já tinham saído do local.... Era tudo feito em segredo. E eram essas pessoas que nos contavam, aos mais jovens, que nos iam dizendo, como é que as coisas se passaram. Isso porque, já não é do meu tempo (felizmente que assim ainda cá estou agora). P: E o que é que contavam? Qual é que eram os pontos mais importantes? Fernando Alves: Contavam a miséria em que viviam, o trabalho que era mal pago. Não eram compensados devidamente em relação ao trabalho que faziam. E que não havia liberdade. Eu vou-lhe contar uma coisa, nas aldeias não podia haver política, não se falava de política. Eu lembro-me de vez em quando, lá na minha zona, apareciam uns papéis quando era assim o primeiro de Maio, etc. Mas lembro-me uma vez, pelo menos, ou 2, eu apanhar uns papelinhos que falavam do primeiro de Maio. Levei para casa e a minha mãe, Deita já isso tudo fora, não quero nada disso aqui em casa. E o meu pai, como todos os homens ou pelo menos a grande parte, era um salazaristas, admiravam o Doutor Oliveira Salazar. E o meu pai, era padeiro e havia lá um outro padeiro na zona, o meu pai começou a tirar-lhe alguns clientes, pronto, começou a fazer-lhe concorrência e ele foi dizer, que o meu pai era comunista. O meu pai nem sabia o que era isso, nem fazia ideia nenhuma, nem nunca o vi metido em nada dessas coisas. E o meu pai para se safar, para se livrar, teve que pedir um abaixo assinado das pessoas mais importantes lá daquela região, porque estava para ser preso pela PIDE como comunista. O meu pai não sabia nada, nem estava ligado a nada disso. Portanto, já vê a situação que era, bastava uma pessoa dizer, aquele tipo disse isto ou aquilo para ir preso, não é? Portanto, e contavam essas coisas, e eu já tinha isso também de experiência própria. Eu era pequenino, muito pequenino, mas o meu irmão, o meu irmão e a minha irmã também me contavam e a minha mãe, que passaram uns tempos um bocado.. com medo, porque o meu pai estava mesmo destinado a ir para a prisão, só porque o outro senhor foi dizer que meu pai tinha ligações, ou que tinha dito qualquer coisa. Era assim. Havia os chamados bufos, que chamavam os informadores, que ganhavam 600 escudos por mês ou coisa assim nessa altura. P: E nas associações, tem ideia de que havia muitos informadores? Fernando Alves: Muitos não haveria, mas havia alguns, havia alguns. Às vezes pessoas muito ignorantes, coitados, que também faziam aquilo porque eram ionfluenciados. Se calhar inconscientemente até, mas era uma forma de ganharem qualquer coisinha E, como sabe, o Salazar, no início da carreira dele, modificou isto e fez algumas coisas em termos de economia e as pessoas tinham algum apreço por ele e diziam que ele tinha sido um bom organizador e deixavam-se levar naquela história. P: Mas aqui na Marinha Grande devia haver duas tendências? Fernando Alves: Havia aqueles mais de esquerda, que tinham mais consciência política, e havia aqueles senhores mais importantes. P: E essa clivagem vivia-se nas associações? Fernando Alves: Havia o clube dos industriais, por exemplo, mas na periferia era o povo. Era o povo que reinava, porque essas pessoas até nem iam a essas associações. Embora, por exemplo, no operário, havia pessoas já com muita formação, pessoas que lideravam aquilo. Por isso é que o Operário foi uma universidade para muita gente. P: Lembra de assim de alguma iniciativa que o operário tenha organizado no período 25 de Abril? Fernando Alves: Vieram, vieram figuras importantes para aí fazer, vinham fazer colóquios, vinha muita gente no tempo do senhor Doutor Vareda. Ele convidava escritores, músicos, pessoas assim que vinham falar. Havia sessões muito importantes lá, depois também aquilo deixou de ser assim, desde que esse senhor morreu. Mas tinham iniciativas, muitas iniciativas. P: Vocês agora têm a sensação de que é difícil passar o testemunho, mas quando vocês eram jovens, não sentiam que os mais velhos também tinham esse receio? Fernando Alves: Não sentíamos porque éramos jovens. Mas nós também estávamos mais motivados. Era mais fácil motivar-nos porque nós não tínhamos Internet, não tínhamos discotecas, assim como há agora. Não tínhamos estas chamadas de atenção para o divertimento. O que é que nós tínhamos? Tínhamos as coletividades, os bailes. Tínhamos as festas das coletividades, tínhamos bailaricos ao sábado, e pouco mais. Tínhamos cinema aqui na Marinha, sempre tivemos cinema, mas isso era durante a semana. Não havia tanto entretenimento como há agora e não havia a Internet. A Internet foi realmente uma coisa que apareceu, que se multiplicou e que chamou muito a atenção dos jovens. Portanto nós, onde é que eu me entretinha? Era e realmente nas coletividades, à noite, um bocadinho ver televisão. A televisão também foi um factor a chamar as pessoas às coletividades, porque as pessoas em casa no início não tinham, não tinham televisão, mas isso já vem do antes do 25 de Abril. Não tinham televisão e tinham que ir à coletividade e começaram a habituar-se a ir ali. E assim começou a haver possibilidade de arranjar dirigentes, porque depois as pessoas iam lá e eram influenciadas. Os jovens têm outras formas, outras coisas para se divertirem agora. P: Mas nem toda a gente estava nas coletividades? Fernando Alves: Uma grande parte das pessoas ia, a classe operária, era lá que se entretinha. Os homens no fim do trabalho, à noite, iam até lá. A coletividade fazia o papel do café, digamos assim. Era onde as pessoas se juntavam também para conversar. E depois para irem ao bar. Havia os bailes de Carnaval. Na Marinha Grande, era uma coisa muito frequentada, as pessoas viviam aquilo. Pronto era mais fácil. Agora nós temos receio, até porque, pode ser que isto mude, mas nós vemos que neste momento, por exemplo, há coletividades com muitas dificuldades de arranjarem pessoas, há coletividades que estão fechadas. Que eram coletividades com movimento e que estão fechadas. Porque as pessoas também estão 10 e 15 anos e depois também começam a querer descansar ou querer ter alguém que os substitua. E está a ser difícil, está a ser difícil, em algumas colectividades, quase em todas. É difícil. Quando nós vamos a ver, então quem é a direção deste ano? São quase os mesmos que já estiveram aqui há uns anos. Os jovens não são maus por isso, eles têm outra maneira de se juntarem, outra maneira de comunicarem. Tem outras formas de comunicação. Nós antes não tínhamos essas formas de comunicação, não havia telemóveis para mandar mensagens. Tínhamos que falar mesmo uns com os outros, falar pessoalmente. P: Então o Senhor Fernando como é que acha que será o futuro das coletividades? Fernando Alves: Olhe, se quer que lhe diga, eu não faço futurologia. Penso que há algumas que vai ser difícil continuarem. Há outras que enfim vão procurando formas, como é este caso aqui. Sabe que aqui o Carlos arranjou forma de combinar, de arranjar uns amigos e fundou aqui um grupo de poesia, que temos de 15 em 15 dias. Pois é é uma coisa erudita demais para a paciência de muita gente, e ele conseguiu trazer aqui pessoas para serões poéticos de 15 em 15 dias. Isto também não vai crescer muito, mas pronto. Mas vai tentando fazer assim e há outras coletividades, com certeza que o farão. Eu não tenho conhecimento agora. O Operário tem o teatro, ainda agora estreou uma peça este sábado, uma peça engraçada. E pronto, vai havendo algumas pessoas que ainda vão conseguindo fazer alguma coisa. Mas para isso, é preciso ter uma pessoa com ideias. Tem de haver na direção pelo menos uma pessoa que consiga transmitir aos outros e puxá-los. Mas eu vejo futuro um bocado difícil. No desporto, não tanto. No desporto, os clubes que há têm sempre gente. É diferente nestas coletividades de cultura e recreio, aqui é que eu vejo mais difícil de continuarem, de progredirem. P: E não há coletividades que têm as duas componentes, cultura, recreio e desporto? Fernando Alves: O Operário tem. O Império, por exemplo, era uma coletividade aí da Marinha Grande, muito famosa como muito movimento que agora está aflita para arranjar gente. Também tinha ténis de mesa e tinha o teatro, mas lá está, faleceu o senhor, que era o principal dinamizador do teatro, um dos principais aí da Marinha, e aquilo começou a ficar um bocado mais morto. Depois tiveram também um acidente lá, o telhado da sede voou com um Vendaval e a Câmara Municipal da altura também não ajudou e eles estão com dificuldades, porque têm dívidas e enfim. Eu penso que as autarquias têm muita importância nisto. As autarquias têm muita importância no apoio, se derem bastante apoio as coisas ainda vão melhorando. P: Que tipo de apoio é que acha que as autarquias devem dar ao associativismo? Fernando Alves: Sei lá, pelo menos apoio monetário que é essencial para elas poderem trabalhar, agora as que estão com dívidas, para poderem arrancar. Agora com a pandemia sofreram muito a nível monetário, a nível económico. Eu pertencia agora a um grupo que foi incumbido pela Câmara de fazer um novo regulamento de apoio às coletividades e aos clubes. E tentámos que as coisas mudassem, que houvesse mais apoio a nível de verbas, mas também apoio com técnicos, para o teatro, para formação, etc.