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2 de Junho de 2021
António Monteiro
P: Onde é que o senhor nasceu? António Monteiro: Foi aqui na Covilhã. P: E nasceu em que ano? António Monteiro: Nasci em 1936. Freguesia de São Pedro e foi aí que eu fui criado. E a partir daí, eu tive um acidente, é a realidade da minha vida e o que foi a minha vida. Foi o nascimento e aos nove anos tive um acidente. E muita gente que não sabe ou não se apercebe, porque eu uso óculos e não se apercebe que eu… De facto, tenho assim ideia… Mas nem vale a pena adiantar mais, porque… pronto. A partir daí é, é claro, tive uma vida, fui criando, fui subindo na vida, claro. Como garoto, eu cheguei aos nove anos na escola e tive um acidente e depois, a partir daí, dos 9 anos, a escola para mim parou, derivado ao acidente que tive na vista. Comecei a trabalhar, o tempo foi passando e com dificuldades naquele tempo, dificuldades que havia naquele tempo. Nunca nos faltando nada, os meus pais sempre trabalharam e nunca nos deixaram faltar nada, porque éramos sete irmãos. Nunca passámos fome, graças a Deus, e só cá estamos dois agora, éramos sete e já morreram cinco. Encontro-me eu e o meu irmão. Portanto, nesta vida e na situação que está agora, que é muito complicada. No entanto, coletividades, havia muitas coletividades, muitas cá na Covilhã, tinha umas 30 e tal. P: Diga-me só primeiro: começou a trabalhar em quê? António Monteiro: E comecei a trabalhar, eu comecei a levar os almoços para as fábricas da indústria. Pronto, eu vou responder à senhora. O meu trabalho, comecei a trabalhar aos 12 anos, comecei a levar os almoços: passava aqui, ia para o Ernesto Cruz, para o Fiadeiro, que eram as fábricas dos lanifícios, levava dois almoços para ganhar algum dinheiro. Aos 12 anos e de chinelos em cima da neve, e a chover, muita chuva, muita chuva e neve e então digo assim. E claro, eu sempre fui um indivíduo que gostei de trabalhar e pronto, deixei de trabalhar aos 65 anos. Pronto, eu quando me aposentei… mas já lá vamos, depois… É claro, eu comecei a trabalhar e andei a trabalhar, para cá para lá. Fui evoluindo na vida, fui evoluindo, depois fui mudando, digo assim: isto não pode ser, tenho que arranjar um trabalho – e arranjei logo para as fábricas. Fui, fiquei lá no Fiadeiro, portanto na fábrica O Fiadeiro, a trabalhar. Deram-me logo trabalho lá e estive lá, estive lá seguramente meio ano, seguramente meio ano. É claro, naquela altura quem desse mais dinheiro é que a gente… Queríamos mais dinheiro e então a gente mudava. Naquele tempo, isso naquele tempo… Arranjei então [trabalho] na tinturaria. Fui crescendo, fui crescendo, arranjei para a tinturaria. Estive lá também os dois anitos. Fui mudando, mudando para outras fábricas: trabalhei na Carlos Alberto Correia, trabalhei na recauchutagem de pintado. Também deitava sempre a mão a tudo, não é, porque eu sempre gostei de trabalhar. E o último trabalho… Portanto, eu fui, na questão de trabalho, já devido à minha maneira de ser… nunca deixando as coletividades, coletividade que eu me lembro que tinha lá à porta, que era a Estrela de São Pedro, chamavam-lhe o Estrela São Pedro. Comecei a jogar à bola e praticava lá os jogos da sueca e o dominó, com a malta que se juntava ...É claro, as coletividades para mim, foi… Ainda hoje sou um perdido pelas coletividades. E porquê? Porque eu gosto muito e porque eu sou um menineiro. Gosto muito das crianças e dou-me bem com as crianças. Não sei porque sim ou porque não. Eu tenho três netos, tenho dois filhos que… Já lá vamos... Na Carlos Alberto Correia, voltando à fábrica, aí é que eu me casei. Trabalhava na Carlos Alberto Correia, casei-me aí em 1967. E, é claro, já estava melhor, mas depois daí casei-me, fui jogar à bola, chamaram-me outra vez para ir a jogar bola, porque era bom jogador. Então continuei na tinturaria, de noite, da meia noite para o dia: mais dinheiro, mais dinheiro à hora. Todo contente, todo contente, já casado. P: A sua mulher também trabalhava na indústria têxtil? António Monteiro: Sim, a minha esposa também trabalhava, trabalhava no Ernesto Cruz. Casei em 1967, comecei a namorar a minha esposa em 1965. Em 1967 casei. Ela trabalhava no Ernesto Cruz, e eu lá consegui, a minha mulher era doméstica e eu tirei-a de doméstica e pu-la na fábrica, até as empresas fecharem. Depois, então, ela saiu da Ernesto Cruz. Depois, então, naquele tempo já havia a Universidade, e então consegui metê-la na Universidade, na cozinha. Porque a minha esposa era doméstica, trabalhava de doméstica, e então sabia fazer de tudo, e eu consegui metê-la na cantina da Universidade. Esteve lá 20 anos a trabalhar e aí se reformou e eu encantado da vida também, porque depois deu eu sair da outra fábrica, fui para o Santos Pinto, uma fábrica também de lanifícios. P: Qual era o seu ofício? António Monteiro: Era tecelão, mas pouco lidava com os teares. Mas lidava com outras máquinas, meadeiras, torcedeiras, embrulhadeiras, eu trabalhava com isso tudo, eu sabia trabalhar com essas coisas todas. Conclusão, a altura das greves, altura das greves… Complicado, complicado… Casado, com o primeiro filho, 1968, foi quando fui para o Santo Pinto. No Santos Pinto é que eu agarrei: é que isto está tão mal, tão mal, eu vou tentar desenrascar-me, e então queria arranjar um trabalho fixo que me dê garantias para que eu pudesse sobreviver na minha vida, e não andar aqui na nas greves, nos lanifícios. E então lá consegui arranjar um lugar na Câmara Municipal da Covilhã, portanto, no Mercado Municipal. Estive lá 20 anos, estou aposentado da Função Pública. Ora, voltando às coletividades, fui sempre um indivíduo dedicado às coletividades. Como disse, estive no Estrela de São Pedro, que era logo também era ali perto onde eu morava. Quando casei, mudei para a freguesia de Santa Maria e ainda hoje lá moro. 45 anos que morei numa casa, tive que mudar para outra casa, porque a Câmara necessitava de fazer obras. Pronto, consegui mudar. Ora, eu morava ali em Santa Maria, portanto, eu fui morar para o pé da banda. Mas, voltando atrás: quando eu estive no Estrela de São Pedro, éramos muitos amigos, muita rapaziada, que havia ali naquele tempo, andava tudo a brincar nas ruas, que hoje não se vê ninguém a brincar, hoje não se vê nada. É claro, a gente juntava-se nas coletividades, nos bailaricos. E a gente divertia-se nas coletividades, no Estrela de São Pedro. Depois, quando fui para cima, para Santa Maria, tínhamos o Águias de Santa Maria, também onde eu jogava à bola, onde eu joguei à bola muitos anos. E ali estive, no Águias de Santa Maria. Portanto, estas coisas com o tempo também vão fechando, não é? É de facto pena, esta juventude não ligar às coletividades. Porque ali nas coletividades aprende-se muito, aprende-se muita coisa, muita coisa aparece, muita coisa… Aprende-se o bom e o mau, mas é sempre melhor. Bom, eu estou todo radiante em Santa Maria, com o Águias de Santa Maria. Foi aí, de facto, que eu conheci a minha esposa, nos bailaricos. Estou feliz. Então, tinha o Santa Maria, eu morava ao lado da banda, mesmo ao lado da banda. A banda é minha segunda casa. Eu sou feliz de estar aqui nesta casa, porque me sinto bem, sinto-me feliz. Eu sonho com a banda. Eu quando era mais novo, eu fazia os meus trabalhos. Agora já não sou capaz. Já não sou capaz de fazer o que fazia aqui, nas festas da banda. Aquele Jardim de Santo António que vai lá (já agora, eu também sou António), fazíamos aqui as festas de São João, São Pedro. Andava em cima das árvores, eu fazia, eu era... E às vezes diziam: não caia, não caia. E, quer dizer, a gente às vezes caía, mas levantávamo-nos e lá continuávamos. Queríamos era, de facto, fazer as coisas, que é para ficar uma coisa linda que nós fazíamos aqui. É claro, estas coisas querem muita vontade, querem muito crer para que o que nós fazemos chame mais um amigo, uma menina, um menino. Também cá tive a minha filha. É claro, e voltando aos filhos: agora tenho dois filhos. Tenho o meu rapaz, que tem 44 anos, é doutor, tem o curso de economista e vive em Braga, está na Câmara de Braga. A minha filha, que tem uma diferença de 7 anos, é doutora, é professora, higienista. Estou feliz, sinto-me feliz. Tenho uma mulher que é uma querida. Eu tenho uma mulher que é uma querida, eu também sou um querido para ela, porque sempre gostei de trabalhar e sempre de viver e sermos educados uns para os outros. Temos que ser educados uns para os outros. Isso sempre foi o meu lema, a educação. Então foi a educação que eu dei aos meus filhos. Os meus filhos estão casados. Tenho a minha filha, que é higienista, que é a [...]. Tem dois meninos. É um casal. O meu filho é o [...], que está na Câmara de Braga, que tem um menino, que é o [...], que tem 15 anos. E então esta vida foi sempre para mim, foi sempre uma vida regalada… Foi não me preocupar com estas coisas. Às vezes, quando há alguma coisa que temos de nos preocupar… Mas levei sempre uma vida regalada, sempre uma vida com serenidade, saber lidar com as pessoas, unirmo-nos e aqui na banda, com estas crianças aqui, que felizmente que há, agarrava, comprava uns rebuçados e “tomem lá meus meninos”. E, de facto, o meu querer era esta casa nunca acabar. Com a idade que tenho, faço 85 anos, gostava de até aos 100 anos andar aqui. Chegar aos 100 anos e sentir: é pá, eu pedi até aos 100 anos e cheguei aos 100 anos e estou aqui, Mas, então, Deus nos dê saúde. P: Diga-me uma coisa: professa alguma religião, é católico, vai à Igreja.? António Monteiro: Sou católico. Sou eu e a minha esposa, e vou todos os dias à missa. P: E é de algum partido político? António Monteiro: Não. P: E esta propensão para o associativismo e para as coletividades. Acha que é da família, os seus pais já participavam nas coletividades? António Monteiro: Quer dizer, isso, a questão dos meus pais... Não, os meus pais, eu nunca tive conhecimento de que, de facto, que os meus pais… Portanto, trabalhavam na lavoura, trabalhavam nas quintas. Nunca tive conhecimento que eles... nesse tempo não se conhecia as coletividades, não é? Não, não havia coletividades. P: Então, o que é que o motivou a vir para as coletividades? António Monteiro: Eu, motivar-me em vir para as coletividades? É eu ser uma pessoa… é gostar, gostar de facto de lidar, saber lidar com as pessoas, honestamente, lidar com as pessoas, o convívio em si, isso é que me diz tudo. Agora, é a continuação, é claro, espírito… Tudo tem os seus quês, não é? A continuação das coletividades e arranjarmos sempre uma direção. Alguns ali na direção, já não sei lá quantas vezes… Já me mudaram para vice-presidente, depois volto para trás, depois volto para cima. Sou sempre um indivíduo que ando aqui de um lado para o outro, não é? Está tudo bem, da minha parte está tudo bem. P: Então e na sua infância, na sua adolescência, as associações foram importantes para a sua formação? António Monteiro: Sim, foi. A minha formação foi, portanto… a gente vai aprendendo, a gente vai aprendendo uns com os outros, nas coletividades porque, se a gente abandonar a coletividade, se não ligarmos mais a isto, isto acaba por morrer, não é? Não Fui aprendendo alguma coisa, aprendi alguma coisa. A gente está sempre a aprender. Aparece sempre alguém que diz: oh Monteiro, você isto, aquilo… Eu vou mas é embora. Não, não, você não pode ir embora. Temos aqui um professor, porque o Professor [...], para mim é um homem que foi um Deus que apareceu aqui na Covilhã… Isto faz-me lembrar, na coletividade, ainda era naquela além, estava eu estava eu sozinho na sala de direção, quando ele apareceu. Tínhamos lá um empregado e procurou se estava alguém da direção e por acaso estava lá eu e assim: está ali o Sr. Monteiro. E, então, o professor [...] apareceu, estivemos a conversar e isto é que a gente vai aprendendo. Eu estive a conversar com ele ali uma hora e meia, duas horas e digo assim: chegou a hora de irmos ali beber uma cervejinha ali ao bar. Ah, sim senhor. Estivemos lá, voltámos. Eu aprendi e estou aprendendo com ele, com o [...], um grande amigo, grande amigo, grande homem, grande professor, grande doutor, não haja dúvidas que é um grande amigo, eu considero que é um alentejano assim mesmo de gema. Quero dizer com isso que cá me encontro a trabalhar com esta minha satisfação. P: O que é que foi a coisa mais importante que aprendeu nas coletividades? António Monteiro: Foi saber lidar com as pessoas. Mais importante foi saber lidar com as pessoas, com as crianças, com as senhoras. Temos aqui uma direção, que eu não tenho dúvida alguma em respeito a isso: aqui com respeito acima de tudo. Aqui não há maldade. Respeitinho acima de tudo. P: E diga-me uma coisa. Antigamente, quando começou a participar, era um período muito difícil, as pessoas tinham vidas muito difíceis. As coletividades organizavam algum tipo de ajuda com as pessoas? Espetáculos em benefício de um sócio doente, ou coletas em momentos de dificuldades? António Monteiro: Quer dizer, as dificuldades… sempre houve dificuldades. Debatemo-nos com muitas dificuldades aqui. Só quem por cá passou, o que temos aqui… Um casa, de facto, que só visto. Grande homem, como disse, o senhor [...], também fez para que esta casa, que é uma casa que construíram, uma casa que eu vejo que está cada vez cada vez mais, e mais, melhor e melhor. Ora, o aspeto de dádivas, ofertas, é muito complicado, muito complicado. P: Antigamente, quando era mais jovem, no tempo antes do 25 de Abril, as coletividades não organizavam formas de entre ajuda entre os sócios, quando um precisava? Ajudavam-se uns aos outros? António Monteiro: Já nessa altura, de antes do 25 de Abril, já havia aquela união, aquele gosto para termos a nossa coletividade, aquela vontade… Isso já vem daí, esse faz tudo por tudo, esse devemos fazer algo para nós ajudarmos. Isso é que me faz lembrar… que me repugna que uma coisa que às vezes… o passado que é... fazerem estas coisas, a gente preocupar-se com estas, não ter dinheiro, como é que vai ser? Eh pá tem que se resolver, tem que se resolver, de uma maneira ou de outra… A gente fazia muitos sacrifícios para que... P: Pois, para comprar os instrumentos e essas coisas, era preciso reunir algum dinheiro... António Monteiro: Claro, muito trabalho, muito trabalho para comprar os instrumentos, muito trabalho e entre ajuda, fazermos uns bailaricos para fazermos dinheiro, fazermos aqui uns almoços para servirmos, para angariarmos dinheiro para estas coisas, para instrumentos. E temos aí tantos jovens, e não temos de facto dinheiro para comprar instrumentos. E é muito complicado, nós querermos dinheiro para comprar um instrumento e não termos. Portanto, andamos sempre ao faz favor, temos que comprar mais um instrumento, entraram mais duas crianças e não temos instrumentos. Isto é complicado. O maestro também, o Sr. [...], também é um grande… é um jovem. Chegamos a esse ponto, é uma criatura que está mesmo dedicado aqui para a nossa banda. É um grande homem. Tem um grande valor. E ele precisava de mais instrumentos para pôr os garotos a tocar. P: E lembra-se, antes do 25 de, Abril se as coletividades tinham problemas com a polícia, ou seja, num período mais difícil, lembra-se de algum momento de dificuldades dessa natureza, ou seja, de não conseguir desenvolver todas as atividades que queriam? António Monteiro: O 25 de Abril, e eu digo para mim, não me diz nada. Eu disse: o 25 para mim, não disse nada. Eu toda a vida trabalhei, e veio o 25 de Abril e continuei a trabalhar. Para mim, é igual. P: Não nota, não acha que são diferentes os tempos de hoje? António Monteiro: É diferente uma coisa, uma coisa que é o mais importante, o respeito. Falta de respeito, não há respeito nenhum. Perderam o respeito: os pais para os filhos, [os filhos] com os pais. Falta de respeito. Isso é o essencial, o essencial é o respeito, em nome dos meus filhos, nunca os meus filhos faltaram ao respeito. Nunca eu faltei ao respeito aos meus pais, aos meus irmãos, nunca. Não faltei ao respeito a ninguém. Nasci pobre, criei-me, criaram-me, cheguei este limite pobre, mas sempre com respeitinho. Os meus pais: meus filhos, vocês dêem-se sempre bem uns com os outros. Se houver algum problema, ajudem-se uns aos outros. A minha mãe teve 17 anos sem ver. E disse: meu filho, eu vou morrer, vou morrer, morrer com 87 anos e tive 17 anos sem ver. E ela disse: meu filho (que eu era o mais querido, não é por dizer, por dizer que eles também não eram queridos, mas eu era mais que estava lá em casa e tinha a minha esposa, que era uma segunda filha). É assim, a minha [...], era a minha querida, era a minha esposa, não faltava lá nada, à minha mãe, com 17, não, com 16 anos sem ver, é de uma dificuldade, não é? E então, diz assim: ó meu querido, a mim só me chamavam Toninho, oh Toninho. É claro, nasceram os meus filhos, o meu Paulinho, que é doutor, é que ia a casa da avó: oh mãe, eu vou ver se a avó precisa de alguma coisa. Nessa altura, isso do 25 de Abril, portanto, nasceu em 67... P: Eu estava-lhe a perguntar como é que acha que as coletividades evoluíram. Já tem uma experiência tão longa. Quais são as principais diferenças? Aqui a banda está exuberante, não é? António Monteiro: Sim, a banda e o que é, são as boas vontades, porque isto se não houver boas vontades, não vai a lado nenhum, não é? É de facto mal empregado algumas coletividades terem fechado, à falta de pessoas que queiram trabalhar, humildes, a fazerem para que as coletividades subam e requerer mais da casa em si, haver mais movimento, manter as pessoas para aprenderem qualquer coisa. Porque hoje em dia não se vê nada disso, as pessoas fogem. Não se vêem aí na rua a brincar. Desculpe a expressão, mas só vêem é maldade. O 25 de Abril é que deu cabo disto. A falta de educação para mim foi o 25 de Abril. Eu vivi toda a minha vida no tempo do Salazar, era um respeitinho. A mim o 25 de Abril não me adiantou nada. Eu toda a vida trabalhei, como disse, toda a vida trabalhei e trabalho... P: E a sua mulher também participou nas coletividades? António Monteiro: A minha esposa, sim também, também fazia. P: Ela também assumiu cargos de direção? António Monteiro: Não, a minha esposa nunca. A minha esposa, no clube Grupo Desportivo da Mata… A minha esposa morava lá em cima ao pé do Grupo Desportivo da Mata. Mas nunca fez, nunca entrou na direção. P: E que tipo de atividades é que ela desenvolvia lá? António Monteiro: Lidava com aquela juventude que ali havia, portanto, as senhoras… mas nunca foi uma mulher dedicada, portanto, ajudava, ajudava no que fosse necessário, não é? P: E estava-me a dizer que fez parte de várias direções, foi aqui sobretudo na banda ou também esteve noutras coletividades? António Monteiro: Águias de Santa Maria, Estrela de São Pedro. P: Também teve cargos da direção nessas coletividades? António Monteiro: Sim, sim. Jogava à bola, fazia tudo. P: E como é que conciliava essa dedicação, esse trabalho voluntário, com a família, com o trabalho? António Monteiro: A dedicação era própria mesmo nesse caso, porque eu vivia com a com a juventude em si, eu dizia, casa-coletividade, casa-banda. Ou digamos, Casa-Estrela de São Pedro, porque também vivíamos ali, eu morava em Santa Maria, tínhamos ali a coletividade, o Águias de Santa Maria. O Águias de Santa Maria também era uma coletividade que tinha bilhares, tinha damas para entreter e tudo isso. E então, para passarmos as noites, um bocado da noite. Que me faz lembrar que a Águias de Santa Maria foi a primeira coletividade a ter televisão aqui na Covilhã, salvo erro em 1954. Primeiro a televisão foi para aí, a preto e branco, para o Águias de Santa Maria. A coletividade que a gente… pronto, a gente saía do trabalho e íamos para ali, para acolá, para a coletividade, era Águias de Santa Maria-banda. Eu jogava à bola lá em cima e vinha para aqui, viver com as crianças aqui, porque a banda era lá, à porta de onde eu morava, mesmo onde eu morava. Eu morava no largo e onde era ali, portanto, o fogo em 1993, salvo erro… Eu ainda lá andei a apagar, com uma mangueira, porque deitaram fogo à banda e ainda lá andei. O que eu fiz por aquela casa quando era diretor, com o Sr. Moreira, muitos anos, e outros mais. Isto na banda lá em cima. [...] António Monteiro: Resumindo e concluindo, aquela casa ali era muito boa, era muito boa, mas também lá chovia, e foi na altura que fomos falar com o presidente [...], e ele arranjou, fez o favor de nos arranjar... E então viemos para aqui, aqui a trabalhar, a sujarmo-nos todos, foi um grande sacrifício que fizemos, tudo a correr depois para ir para o lado também. E éramos todos, todos os diretores e mais os sócios, e isto é que era bonito. A gente pedia um favor, um sócio… Depois já bebíamos um copo, depois um dominó, depois um lanchezinho, e pronto vamos lá. Fazia-me feliz e hoje é muito difícil de ver: se for para o jardim, estão ali a beber cerveja. Ninguém vem para aqui. Mas deviam vir aprender qualquer coisa. A música, que é a coisa mais Linda. P: Estão e o que acha que é o futuro do movimento associativo? António Monteiro: Olhe, minha Senhora, o futuro? O futuro o dirá, não posso adiantar mais nada. P: E o que é que desejava que acontecesse? António Monteiro: Ai, o que é que eu desejo para mim? Sempre o melhor, ter esta casa sempre aberta até eu morrer. Esta casa fica aberta. E se eu for na frente, a minha mulher ter força e nunca deixar de vir a esta casa, que ela também gosta muito aqui da banda. E um dia, quando eu for, levo a banda no meu coração. É aquilo que vejo, que deixo aos meus queridos, é aquilo que eu lá tenho. Olhe, fui contador do Sporting, a minha vida foi sempre a trabalhar, 45 anos a trabalhar, 45 anos a cobrar as quotas do Sporting. Andar de inverno, a chover, a nevar, a fazer sol, pelas ruas. Para o Fundão, para o Paul, Unhais da Serra, Teixoso, Aldeia do Carvalho, 45 anos. E isto porquê? Porque a vida assim dizia, temos que trabalhar para termos alguma coisa. Meu lema foi este, tenho que trabalhar enquanto puder, enquanto puder trabalho. Cheguei aos 45 anos, fui 45 anos cobrador. Tenho lá diplomas de cobrador, tenho lá diplomas daqui da banca, tenho diplomas do Águias de Santa Maria. Tenho lá um quarto, tenho uma casa grande, tenho tudo exposto. E é isto que faz para mim. É a satisfação que eu tenho. E quando chegar ali a olhar para alguns diplomas: Águias de Santa Maria, São Pedro, Banda da Covilhã, Sporting da Covilhã, 3, 4, dador de sangue, 2. 46 dádivas de sangue. 46! Não é brincadeira nenhuma. Sinto-me feliz. Só preciso é saúde, só preciso é... Apanhei esta malandra desta doença e também peguei à minha esposa. A não é por acaso que tive sorte. Tive sorte porque eu apercebi-me de que estava mesmo doente e disse à minha esposa, eram 11, 11 e meia da manhã: eu não me sinto bem, leva-me para casa, vamos comer e vais me pôr hospital. Tenho uma grande mulher, amiga grande. P: Imagina a sua vida sem as coletividades, ou seja, as coletividades modelaram a sua vida, a sua vida fazia sentido sem as coletividades? António Monteiro: A minha vida foi sempre assim, eu vivi sempre a minha vida com as coletividades. Nunca deixei de ir às coletividades. Quando era cobrador do Sporting, eu corria as coletividades todas, eu ia à beira dos sócios. E então, o convívio em si, que se apanha a ligação com as pessoas, com os doutores, com os advogados, com os mais pequenos. E aí é que eu vou aprendendo, aí é que eu aprendi, aí é que me fez ser homem, foi lidar com as pessoas, lidar com os meninos. Sinto-me radiante, sinto-me radiante da maneira como isto, como esta situação está, e vejo o que isto é e como era a antigamente. Hoje em dia temos que ter muito cuidado, estamos a andar por um caminho muito difícil. E então todo o cuidado é pouco. -
1 de junho de 2021
António Manuel Lopes Moreira
P: O senhor nasceu aqui na Covilhã? António Moreira: Nasci, nasci, a 4 quilómetros da Covilhã, hoje Canhoso. Mas com a idade de 5 anos vim viver para o centro da cidade, que é mesmo atrás da Câmara Municipal da Covilhã. Ainda hoje tenho a casa onde vivi toda a vida, que é a Taberna do Laranjinha, não sei se conhece, não conhece? Mas pronto, foi aí que foi passada toda a minha juventude, precisamente no centro da cidade, que é mesmo a 50 metros da Câmara Municipal da Covilhã. P: Viveu sempre aqui na Covilhã?. António Moreira: Vivi sempre toda a vida aqui. Bem, depois em África como militar e depois, como militar, fui para a Alemanha. Vim de África, fui para Alemanha. Estive seis anos na Alemanha. E depois vim, precisamente continuar o trabalho que tinham tido os meus pais. P: Qual é que é o trabalho dos seus pais? António Moreira: O meu pai tinha uma agência funerária, que ainda hoje tenho. P: E foi sempre essa a sua profissão ou teve outra? António Moreira: Infelizmente, quando eu tinha 10 anos, o meu pai teve uma doença grave e esteve internado quatro anos. E, então, obrigou-o a vender o negócio, o meu pai, que foi para... E eu a partir daí acabei a minha primária com 10 anos e meio, e o meu pai estava internado num sanatório e a minha mãe, coitadita, é que tinha que trabalhar para todos nós, não é? Não chegava e eu tive que ir a trabalhar. E com 10 anos e meio já estava a trabalhar numa fábrica de lanifícios. P: Qual é que era o seu ofício? António Moreira: Era, na altura, indústria de lanifícios, tecelão. Primeiro comecei como aprendiz, mas depois cheguei a tecelão profissional, tenho a carteira de tecelão profissional. Por volta dos 15 anos. E depois fui para África, de África vim, fui para a Alemanha, continuei no mesmo ramo, na fiação na Alemanha, e depois em 1977, vim comprar um negócio que tinha sido do meu pai e tinha vendido a outras pessoas. Fez um circuito - pelo menos mais dois donos - e veio. Ainda hoje tenho muitas peças que eram do meu pai, de 1950. Tenho, nomeadamente, uma carreta que antigamente era uma carreta bonita, cheia de panos. Tenho ainda… eu tenho um centro onde, digamos assim, um museu onde tenho todas essas essas peças, que estão à vista de toda a gente. P: O seu pai tinha então essa profissão e a sua mãe, qual era a sua profissão? António Moreira: A minha mãe também trabalhava na indústria de lanifícios. Tinha a mesma profissão do meu pai, na altura. Não, minto, o meu pai tinha a agência funerária. Após o acontecimento do meu pai, tive que ir eu trabalhar e a minha mãe. P: Qual era o ofício dela? António Moreira: A minha mãe era exbicadeira, quer dizer, era a tirar… As fazendas tinham pequenos defeitos e ela tirava umas bicas. Exbicadeiras, penso que era assim. Eu não, eu comecei por ser aprendiz, mas depois cheguei a tecelão profissional, tenho a carteira profissional, ainda hoje pertenço aos lanifícios, apesar de já terem passado muitos anos. P: Depois casou-se, a sua mulher também trabalhou na indústria dos lanifícios? António Moreira: Também trabalhava na indústria de lanifícios, conhecemo-nos, na altura, com 18 anos. Depois eu vim a casar até antes de ir para o Ultramar. Tive um filho, que ainda hoje temos, graças a Deus. Nasceu, curiosamente… Eu ando a tentar fazer um livro da minha vida, porque tem várias, várias passagens, esta foi uma delas. Veja o que era no tempo do Salazar: por 14 dias não deixaram sequer ver nascer o meu filho. Cheguei a Luanda e 14 dias depois de chegar a Luanda, nasceu o meu filho. Eles não queriam saber disso para nada. Eu a dizer que é que a esposa que estava grávida e que estava à espera do filho que era mais um mês e não… tive que partir, porque felizmente a minha a minha profissão, a minha atividade no Exército também era uma atividade de muita responsabilidade, eu pertencia aos serviços secretos. Lá, digamos assim, no meu gabinete, onde eu trabalhava, nem o comandante podia lá entrar, tinha de pedir licença, porque...Todas as mensagens que chegavam ao quartel, todas as notícias antes do comandante, sabia eu, e depois eu é que ia com o protocolo a dar para ele assinar, portanto, operador cripto naquela altura era uma especialidade rara, digamos assim, mas que também ainda hoje não sei como é que eu fui, vindo eu... comigo trabalhavam lá muitos já com outro…, com outro cursos académicos, não é? Nomeadamente com a quarta classe, com o quinto ano, com o quarto ano e eu com a quarta classe fui...tirei um curso de escriturário primeiro, que nunca tinha visto uma máquina de escrever, andei no RAL 4 em Leiria, onde tirei a especialidade de escriturário. Vi-me aflito para passar, tinha de andar à procura das letras, mas depois consegui passar aqui e fui para os serviços secretos, que dava-me essa componente de ter, onde quer que andei, tive sempre um gabinete para mim ou outro colega como eu para trabalharmos, nunca podia lá haver mais ninguém. P: Quando esteve a trabalhar na Alemanha também esteve a trabalhar na indústria têxtil, e quando voltou, voltou a trabalhar na indústria têxtil? António Moreira: Não, quando vim, vim precisamente já com o objetivo de comprar, porque eu estava a trabalhar lá e o meu pai, coitado, é que me disse: porque é que não me vinha embora, que entretanto o meu filho fez sete anos. Iria matriculá-lo na escola alemã e transmiti isso aos meus pais, na altura: olha vou, vou, vou ficar definitivamente na Alemanha porque o garoto vai começar a escola e depois não é ao meio... Um dia sai daqui, não é? Porque estava numa empresa que tinha 10 mil operários, era uma empresa Internacional. E, nessa altura, o meu pai: porque é que tu não vens que está ali uma funerária que era nossa, que está fechada e que eras capaz de governar. É, eu tive uma vida... Eu vim, só que, infelizmente, depois passado três anos morreu, depois de eu ter comprado a funerária, portanto, aquele braço direito que eu pensava nele, infelizmente depois ele morreu, mas eu dei a volta por cima e ainda hoje me orgulho de ser, talvez, das maiores funerários do país, nomeadamente a nível Internacional. Fui pioneiro nos serviços a ir ao estrangeiro buscar portugueses. Ainda hoje vamos para toda a Europa. Tenho uma empresa que anda sempre no estrangeiro, tem o melhor centro funerário do país. Tenho ali, no Tortosendo, uma área de 400 m, que nem em Lisboa há, onde todas as pessoas, e eu conheço bem o país do Minho ao Algarve. Portanto, consegui objetivos muito, muito bons, na minha vida profissional e familiar, claro. Hoje tenho dois filhos que são os meus braços direitos e a minha companheira, há 53 anos que estamos casados, e graças a Deus, tudo tem corrido bem nesse aspeto. P: Só para terminar esta parte mais biográfica, tem alguma religião? António Moreira: Sim, sou católico, não um católico praticante, não há tempo para essas coisas, digamos assim, mas sou católico de coração, de batizado e, assim como a minha família toda, toda ela é realmente católica. P: E tem alguma filiação partidária? António Moreira: Nunca tive. Sou um amante das liberdades, mas confesso que não me revejo em partido nenhum político. Gosto muito, aprecio muito um bom, um bom político. Dou valor, seja ele da esquerda ou da direita, não, questiono a política deles, mas admiro sempre um bom líder, uma pessoa que faça andar este país para a frente. Foi sempre o meu sentido, os objetivos que eu tive, foi sempre e por isso tenho a medalha de Mérito Municipal e outras medalhas. Tenho precisamente porque fui sempre uma pessoa inovadora que, sempre com vontade de impulsionar as coisas para a frente. Não dou valor a um político medíocre. Infelizmente, temos muitos, mas pronto. Eu gosto muito de analisá-los e depois, quando é a altura da eleição, tanto voto num como voto no outro, voto na pessoa que eu acho com mais competência para ajudar o nosso país. P: Mas no que diz respeito à filiação associativa, já é outra coisa... António Moreira: Isso não, isso não. Isso faz parte da minha, digamos assim, da minha criação, da minha educação, daquilo que sou hoje. É uma pena que, infelizmente, o associativismo hoje, como eu disse, esteja a ser maltratado, porque na minha época, há 50, 60 anos atrás, era a formação dos jovens, era no associativismo. Porque todos os jovens trabalhávamos na fábrica, outros noutros sítios, não tínhamos tempo para mais nada, a não ser um bocadinho para o desporto, para a cultura, para enfim, para tudo isso. E naquela altura os jovens praticavam muito, muito desporto. Tínhamos várias... aqui a Covilhã era e ainda é hoje, felizmente, um orgulho para nós, covilhanenses, porque somos, segundo aquilo que eu tenho ouvido dizer, a segunda cidade do país, depois do Barreiro, a segunda cidade do país com mais instituições ou associações. E isso é uma riqueza tremenda numa cidade destas. Infelizmente, que eu começo a ver e tento incutir nos meus filhos, agora nos meus netos para que eles seguissem esse rumo, porque o associativismo é uma escola, aprende-se tudo lá. P: E essa propensão para a participação associativa é de família, os seus pais já participavam? António Moreira: Não. A minha mãe, curiosamente, a minha mãe transmitia-me… Naquela altura não havia tantos clubes, não havia quando a minha mãe se criava, mas ela já pertencia ao rancho folclórico e era com agrado que ela às vezes me cantava algumas canções que no tempo que ela era jovem, cantava nesse rancho folclórico do Canhoso, aqui pertinho da Covilhã, a 4 quilómetros. O meu pai nunca lhe ouvi dizer que, confesso, que tivesse se metido nalgum clube. Naquela altura, havia também jogos populares, ele gostava muito dos jogos populares, ainda hoje, tenho um jogo popular lá numa das minhas garagens, que é preciso um espaço, daqui até lá ao fundo, garantidamente, um ringue, que é o chamado jogo da laranjinha, que também está no Facebook, o jogo da Laranjinha. Diz que existe em Lisboa, é mentira, existe na Covilhã também. Embora com pouca gente a perceber aquilo. Mas eu sei jogar à Laranjinha e ainda lá tenho as bolas e tudo com que se jogava à Laranjinha. Na taberna do meu avô havia o jogo da Laranjinha e eu recriei ali naquela casa atrás da Câmara, que hoje é a casa com mais fama na Covilhã, é a Taverna da Laranjinha. Toda ela, se lá for, está toda ela organizada por mim. Hoje aluguei-a a outra pessoa, mas tudo o que está ali foi feito pelas minhas ideias e hoje é com orgulho que digo que as pessoas de todo mundo vêm à Covilhã, vai tudo à Laranjinha porque é uma referência na cidade. P: Então, estava a dizer que na sua infância e na adolescência o seu associativismo foi muito importante. António Moreira: Muito importante, tirou-me da rua, tirou-me dos vícios. Veja que nunca fumei, nunca bebi, porque não tinha tempo para isso. Eu saía da fábrica às 6:00 horas, imediatamente chegava, primeiro com 10, 12 anitos, ia para o Águias de Santa Maria, onde aprendi a jogar ténis de mesa, onde depois comecei a jogar futebol e futebol de 11, participei em vários torneios aqui na Covilhã, altura que eram chamados torneios da INATEL, eram equipas que havia aqui na Covilhã, precisamente dos trabalhadores. Na Covilhã havia pelo menos umas sete ou oito equipes e disputávamos sempre um campeonato renhido, digamos assim, de todos os trabalhadores. Não havia ali profissionais. E, então, comecei ali. Depois, mais tarde, gostei muito do basquete, como não se praticava basquete fui para o Clube Desportivo da Covilhã, cheguei a ser federado em basquete, participei em campeonatos da terceira divisão em basquete, joguei andebol, joguei vólei… Vólei pouco... Pronto, quer dizer, eu não tinha tempo, até começar a namorar, o meu tempo livre era sempre a praticar desporto nas coletividades, onde líamos o jornal, onde começámos a ver televisão. A primeira vez que eu vi televisão foi no Águias de Santa Maria, porque ninguém… não havia televisão. Veja que isso era uma riqueza, até que depois fui, pronto, fui para o para o Ultramar, fui para a tropa, e aí esmoreci um bocadinho a nível de participação... Depois, quando vim, como estive pouco tempo em Portugal e fui para a Alemanha... Na Alemanha também não tive qualquer contato com qualquer modalidade desportiva lá. P: E nesse período, ainda antes de ir para o Ultramar, ou seja, antes do 25 de Abril, que memória guarda desse período? Por exemplo, lembra-se de alguma experiência de repressão sobre o associativismo por parte do regime, de limitações à liberdade associativa, por exemplo? António Moreira: Naquela altura, sabe, nós éramos praticantes, jovens. A gente via que os diretores tinham receios de vários acontecimentos. Nós, mais jovens, preocupávamo-nos era em praticar desporto. Infelizmente, havia, houve aqui em Santa Maria… lembro-me de alguns elementos que chegaram a ser presos pela PIDE. Acho que era mais a nível do trabalho, do emprego, do que propriamente do associativismo. O associativismo dava-nos liberdade para ver para onde é que a gente ia. Eu penso que no tempo do outro regime que eles davam-nos liberdade, davam-nos cordel, para ver para onde é que nós íamos, e depois se as pessoas estavam a entrar por outros campos é que provavelmente agiriam. Eu nunca tive participação em nada disso, nem também nunca fui contra ninguém, como é óbvio. Hoje fala-se no Salazar, o Salazar teve coisas muito boas e teve muito más, mas há uma delas que eu digo que era muito boa, que era o sentido patriótico, eu acho que ele era um bom português, quer dizer, gostava de Portugal grande. Não era fácil ele conseguir pensar que ficávamos sem Angola ou sem Moçambique. E isso, é um bocado do meu coração, sou português de gema, gostava de ver Portugal grande. A nível do que eu fazia, das coisas, enfim, daquilo que a repressão fazia sobre pessoas que não tinham liberdades e que estavam bem ou estar mal, obviamente não estou de acordo com isso. Eu acho que as pessoas têm a obrigação e o direito e o dever dizer quando estamos bem, quando estamos mal, mas gostava de Portugal grande, eu gostava de um país grande. P: Costuma-se dizer que eram tempos difíceis, mas que havia muita solidariedade, muita entre ajuda. Isso vivia-se nas coletividades? António Moreira: Sim, sim, sim, sim, isso sim, era onde havia irmandade… Eu, por exemplo, como não tinha irmãos, os meus irmãos estavam nos meus clubes. Aí a gente… todos eles eram meus irmãos. A gente jogava à bola, fazia isto, fazia aquilo. Éramos todos irmãos. É essa solidariedade que hoje falta nos jovens. Depois também não éramos ricos, pertencíamos todos a uma camada mais ou menos média, média baixa, e as pessoas necessitavam de ter amigos. Nós brincamos uns com os outros sem complexo de superioridade ou de inferioridade. Hoje já, infelizmente, é uma coisa grave. Hoje há destrinças de, enfim… afastou-se muito as pessoas umas das outras, porque é tudo rico, é um país rico, é pobre, mas, mas é tudo rico. P: E na Alemanha teve alguma experiência associativa? António Moreira: Na Alemanha, olhe, foi no início daquilo que está a começar, que acontece aqui já no nosso país. Quando eu cheguei à Alemanha, eu fiquei estúpido, porque via que na empresa onde eu trabalhava, que era a Grandstoff, que tinha, como disse, à volta de 10 mil trabalhadores, não se via um alemão, um alemão jovem. Eu trabalhei com muitos alemães durante seis anos, mas todos mais velhos que eu. Porque eu é que era jovem, fui para lá com 24 anos e os alemães, não. Apareciam alemães, às vezes novos, e passado 15 dias iam-se embora. Que é o que está a acontecer com o nosso país. Infelizmente, temos necessidade de importar mão-de-obra jovem, porque não estamos cá hoje. Os que cá temos querem outras atividades, outras profissões mais compensadoras, provavelmente. Aquilo que está a acontecer com os chineses e indianos lá para baixo, é sinónimo daquilo que aconteceu na Alemanha quando eu lá estive. Eu via que eles procuravam mão-de-obra. Eu trabalhei com pessoas de todo o mundo lá, desde as países… todos os povos… da Turquia, da Grécia, da Indonésia. Não trabalhavam lá franceses nem aqueles países mais… era tudo malta de países pobres à procura de trabalho e nós também. Naquela altura era a mão-de-obra barata portuguesa. Eu fui para lá ganhar, a fazer a mesma atividade. Aqui ganhava 2, lá fui ganhar 10. Era compensatório. Íamos todos à procura de melhorar as nossas vidas. Íamos fazer o que os alemães não queriam fazer. P: E criaram associações lá, os portugueses? António Moreira: Tenho um amigo, por acaso morreu há dias, que era o Raposo, ele era de Santarém e criou lá um clube desportivo. Tivemos lá um centro de portugueses, lá na zona onde eu estava. Tínhamos um rancho folclórico a imitar os scalabitanos. Portanto, o português enquadra-se imediatamente em todo o lado, em todo o mundo, à procura das suas raízes, como hoje. Não tem hipótese de ir para o nosso país, então faz... E nós, bem visto os portugueses, felizmente, é um povo que é considerado no mundo inteiro e em todo o lado. Quando chego, sou português, as pessoas aceitam porque somos um país educado e humilde e de brandos costumes, como se costuma dizer, mas somos um povo muito simpático para toda a gente e vê-se no nosso país. Toda a gente gosta de vir a Portugal, porque na realidade o português é maravilhoso. P: E essas associações que eram criadas entre os imigrantes ajudavam a integrar? A não terem tantas saudades de Portugal? António Moreira: Naquela altura era mais difícil, penso eu. Nós, na Alemanha, como não tínhamos uma colónia muito grande de portugueses, foi sempre mais difícil. P: Estava a falar da experiência associativa na Alemanha... António Moreira: Pois, como eu disse, na Alemanha nunca houve uma colónia muito grande de portugueses. E as cidades onde viviam os alemães eram cidades com pouca gente portuguesa. Era difícil fazer um clube, porque os alemães não iam lá, como é óbvio. Mas, por exemplo, onde eu vivia, em Heinsberg, aí conseguiu-se fazer o centro de português. E com pouca gente, como é normal. Mas com vários objetivos, nomeadamente o rancho folclórico. E ainda se teve lá uma equipa de futebol. Mas como não eram muitos, eu depois também me vim embora, confesso que abandonei, mas sei que acima de tudo… Fez um restaurante, esse meu amigo, que era o Raposo, fez um restaurante, que começou a ter a gente alemã e ele triplicou, quadruplicou, digamos assim, por várias cidades, depois da Alemanha. Atingiu uma bitola enorme de sucesso, esse rapaz, mas tudo começou com o nosso clube, precisamente do grupo de Oberbruch. P: Tinha-me dito que quando voltou da Alemanha, em 1977, com a sua esposa, que foram logo para o grupo de Educação Mello. António Moreira: Pois fomos, digamos assim, logo convidados para voltar às nossas origens, não é? Porque foi ali, praticamente, que começámos, no Grupo de Educação Campos Melo, um grupo que simplesmente foi quase a primeira escola na Covilhã, escola primária. Porque foi um grupo feito numa altura difícil lá do, portanto, do antigamente, em que foi doado um terreno por um senhor que era o Melo e Castro, a Fábrica Melo e Castro. Mas depois ali criou-se o primeiro centro de desenvolvimento, na altura, de certeza absoluta, das crianças que viviam naquele bairro e era um bairro de tipo operário e ali formou-se… até tínhamos uma escola primária lá em duas salas cedidas pelo Grupo. A partir daí, claro, que várias modalidades ali surgiram e vários êxitos se conseguiu, desde o teatro até outras modalidades. Tivemos um grupo de teatro, naquela altura, em 1960, um teatro muito famoso na Covilhã, era lá nesse Grupo Educação e Recreio. E pronto, esteve sempre, ainda hoje é das coletividades com condições acima da média. Tudo feito pelos trabalhadores, pelos operários. Claro que quando regressei, e como fui criado ali também com a minha esposa, naquela zona, fomos convidados logo imediatamente, porque era sócio há muitos anos do clube, e comecei. E a partir daí, a ser por duas vezes presidente da direção do Grupo de Educação Campos Melo, até que depois, então, desloquei-me mais para baixo, para a cidade, para o trabalho, e vim a viver então aqui para a zona da Câmara e aí comecei a frequentar a banda da Covilhã, que teve outros objetivos, já agora na música. Curiosamente, são coisas que eu nunca tive qualidades, que às vezes digo aqui para os músicos: sou presidente da Assembleia Geral, neste momento, já há alguns 14 anos ou 15 anos, aqui da banda, mas nos discursos costumo dizer aos músicos que eles são artistas. E é engraçado, porque eu tenho muita pena que isto é um dom, o ser músico, como outra modalidade, como o Ronaldo tem aquele dom para o futebol, mas a música é ter-se um dom, que é que as pessoas atingem objetivos maravilhosos. Eu, ainda há bocadinho, dizia ao professor aqui da banda… foi esta semana que fui além a Viseu e numa daquelas ruas lá da parte histórica de Viseu às tantas ouvi a música: eh pá, música bonita aqui está, a cidade está alegre, digamos assim. E fui transitando até que cheguei à rua onde estava um senhor com um acordeão, uma aparelhagenzita a fazer bateria, mas o homem com acordeão dava ali o sainete naquela cidade em que toda a gente passava para um bocadinho ouvir, deixava a moeda. Ele não era ceguinho, não era, não era nem ninguém inválido, mas pronto. Eu penso que aquele artista, porque ele era um artista em vez de estar em casa parado, a dormir ou se calhar sem saber o que havia de fazer, estava ali, dava alegria à cidade, ao povo e ele até as pessoas compensavam com algum dinheiro, com certeza, que ao fim do dia recolheria e servia muito bem. Isto aqui, a nível da banda da Covilhã, eu fui sem querer metido na primeira direção, como presidente da banda da Covilhã, em 1991. Como eu disse, infelizmente depois ardeu, mas nós não deixámos morrer esta Casa. E hoje tenho muito orgulho do que temos. Porque somos dos melhores do país. Não é uma banda, é uma orquestra, nós hoje vamos ali…. Há ali 100 jovens todos a tocar vários instrumentos. Isto é próprio da sorte que tivemos aqui, com o Professor [...], que sendo alentejano, mas que apanhou aqui a Covilhã… Gosto, e ele é um dedicado a isto, deixa tudo, como vê e está aqui sempre, enfim. Casou, como eu disse, como às vezes lhe digo, ele casou, um excelente professor universitário de Medicina, ele casou com a banda da Covilhã e ele adora isto, pronto. O que é certo é que a Covilhã tem aqui hoje uma riqueza extraordinária. Crianças de todas as idades aqui estão a tocar, a aprender, quase sem pagarem nada ou, se pagam, é uma ninharia e estão, a sair constantemente daqui artistas, artistas. Porque também tenho outra coisa engraçada, que é verdade. Tenho um amigo que é enfermeiro e dizia-me ele há tempos: o Joãozito, que eu vi nascer, senhor Moreira eu, às vezes, mais outro amigo que temos, eu a tocar viola, ele a tocar concertina, já percorremos quase o mundo inteiro, desde a Nova Zelândia, à Rússia, Austrália, todos esses países... chegamos lá, a gente arranja o dinheiro para a viagem, chegamos lá, paramos lá numa praça, ele a de um lado e eu do outro, com a bandeira portuguesa, ao fim do dia, temos lá sempre dinheiro garantidamente para as despesas que tivemos e até acabamos sempre por nos pagar a viagem. Isto só para dizer que, como eu às vezes digo aqui aos garotos, vocês estão aqui a aprender uma coisa que nunca sabem se amanhã são artistas, são pessoas que ganham a vida estrondosamente em qualquer parte do mundo. E então, eu digo sempre: vocês venham, porque isto é uma arte, tomara eu, eu dava dinheiro para saber tocar um instrumento. Não tenho nenhum, por muito que tivesse tentado, não me saem notas. P: Não tendo essa vocação, o que é que o motiva a estar tão envolvido na coletividade? António Moreira: Isto parece incrível, mas eu caí… Nas outras coletividades não, porque eu gosto muito de desporto, eu adoro desporto, futebol, mas acima de tudo, neste momento gosto mais é de ciclismo, o ciclismo... Mas a música foi sem querer, como era ali à porta fui arrastado por um grupo de amigos, que aquilo estava para fechar, e ganhei também o desejo profundo, epá eu adorava, porque na Alemanha, onde eu estive, uma das riquezas que havia lá é que em qualquer aldeia havia uma banda juvenil. Não se viam os da minha idade, não se viam pessoas de idade nas bandas a tocar na rua, era tudo malta... Eu às vezes ia a Colónia, a Dusseldorf, era bandas que havia ali, tudo malta com 20, 25, no máximo 30 anos. Mas, começando ali com sete ou oito anos, tem uma riqueza extraordinária nas bandas lá na Alemanha. E aquilo, é pá... a Covilhã, era engraçado um dia ter uma banda juvenil, sair para a rua com as criancitas a tocar pífaro. E assim, eu, quando me meti aquela, quando fui para lá convidado, eu disse aos meus companheiros de direção: meus amigos vamos meter mãos à obra, vamos ver se conseguimos fazer uma banda juvenil na Covilhã. É um sonho, amanhã daremos exemplos às outras cidades no país, apresentando na rua ou em qualquer lado uma banda de crianças, porque normalmente é uma tendência para as pessoas de idade é que estão nestas bandas. Mas donde eu vim, eu via jovens e eu não consegui, na altura, na direção, não consegui fazer isso, porque estive apenas dois ou três anos. Mas depois, a continuidade, como eu disse, aqui do professor, e imediatamente foi-me buscar a mim. Percebi, sabia o amor e tenho sido, digamos assim, tenho ajudado muito mesmo a banda da Covilhã. Fui eu que ofereci as fardas e várias coisas que tenho oferecido, instrumentos e tal, para a banda. E ele sabe que quando a banda, aliás, aqui hoje este edifício, onde nós estamos, só está aqui e a banda está aqui porque deve-se a mim. Ainda há dias o disse ao presidente da Câmara, há uns nove anos ou dez, quando o outro presidente saiu. Nós tomámos aqui posse e a primeira reunião que tivemos foi ir à Câmara Municipal da Covilhã. E o presidente disse: Moreira, nós… A Câmara não tinha um tostão para nos dar para as obras, porque isto tinha começado em obras, tinha começado havia 15 dias, começaram a destelhar. Isto é curioso, porque isto é um edifício do Estado. Está cedido à Câmara Municipal da Covilhã, porque foi aqui a escola, a biblioteca, etc. muitos anos, por sua vez, a biblioteca, a Câmara Municipal tem um protocolo com a banda, com a cedência de 10 em 10 anos. Este espaço, portanto, nessa altura, eu disse assim: oh meus amigos, então, mas a Câmara Municipal é que tem de fazer as obras que aquilo é um edifício… E o senhor Presidente disse-me assim para mim, e para a professora Irene, e o professor Cavaco, fomos lá: Moreira, nós bem queiramos vos ajudar, nós... A outra Câmara deixou-nos completamente sem um tostão, não temos um tostão na Câmara para vos dar. E também não há na Câmara neste momento ninguém, construtores, que queiram fazer aquela obra, que estava orçamentada em cerca de 120 mil euros, sem a Câmara ter dinheiro. Então, o Presidente da Câmara disse-me: olhe, você é um homem que se relaciona bem na Covilhã com muita gente, que tem feito várias coisas, por que é que você não fala com o empreiteiro e assume a responsabilidade com eles? E daqui a um ano, a Câmara Municipal da Covilhã compromete-se, de hoje a um ano, passar a dar-vos os 3000 euros para ir amortecendo as obras. Agora você tem é que contactar um empreiteiro que queira fazer isso nesse sentido. E assim aconteceu. Fui ter com um empreiteiro que tinha feito as obras na Taberna do Laranjinha, que há mais de 30 anos que trabalha para mim, e disse: oh Zé, epá, expus-lhe o problema e ele disse, está bem pronto Moreira, eu vou para lá, se precisar de dinheiro, a qualquer altura, eu recorro a você. Pronto, está bem E assim esta casa está aqui, feita e com muito orgulho, aqui a banda a trabalhar é porque eu fiz esta proposta à Câmara e conseguiu-se tudo. Portanto, hoje eu sinto-me extremamente orgulhoso do meu passado em todas as vertentes, mas essencialmente aqui na banda, onde eu, com a minha persistência e as minhas ideias, consegui que hoje tivéssemos uma das melhores bandas do país, mas acima de tudo ver aqui muita gente jovem, com 9, 10 anitos, já andam aí pela rua a tocar e eu fico todo vaidoso, todo baboso, como se costuma dizer, nesse êxito na minha vida também. P: Disse-me que era sócio de 12 coletividades, quer dizer que é uma pessoa que valoriza muito associativismo. Qual é que acha que é o papel que o associativismo tem na sociedade portuguesa? António Moreira: Eu, como disse, aprendi a ser homem no associativismo e 80% daquilo que eu sou devo ao associativismo. E estou convencido de que é uma lástima, uma perda irreparável, que estamos a ter, o país não apoiar… Os nossos governos deveriam apoiar o associativismo e as coisas não podem… Os mecenas, os voluntários, hoje não é assim tão fácil, mas eu estou convencido que, se todas estas associações que há nas terras fossem apoiadas, pelo menos pagar-se um diretor ou dois diretores o ordenado para que eles obrigassem - senão perderiam o seu trabalho - aquilo a mexer. Eu acho que não estaríamos como estamos hoje, porque as pessoas preocupavam-se a ir, a incentivar para que os jovens venham, dando-lhes alguma coisa em troca. Como vê, a banda da Covilhã, em pouco tempo… Se este professor [...] neste momento deixasse de vir à banda da Covilhã, eu estou convencido que daqui a dois anos a banda estava outra vez moribunda. Porque ele é um amante, ele gosta disto, não ganha dinheiro aqui, porque ele casou com a banda, como eu digo, mas noutras coletividades, lá em cima, no Campos Melo, lá em baixo, como vai ver, no Grupo Educação Instrução do Rodrigo, é a mesma coisa, uma dificuldade tremenda em arranjar alguém que queira ir para a direção, porque muitas vezes não é falta de jovens que há, há é a falta de dirigentes, os dirigentes de hoje, que durante muitos anos trabalharam gratuitamente, hoje já não estão para isso, têm as suas vidas profissionais e, acima de tudo, familiares, a comodidade, a televisão em casa, os sofás… as coisas são diferentes. Mas se a pessoa tiver que obrigatoriamente ir, porque gosta, mas também porque tira dali alguns dividendos, obviamente que de certeza que as coletividades não irão morrer como estão a morrer. O Estado tem que deitar mão a isto, porque é uma escola que se perde e é irreparável. Porque, continuamos a dizer, hoje os nossos jovens estão cheios de vícios, de coisas más. Os computadores arrastam as crianças horas e dias, quase as 24 horas por dia ali, perante os computadores. E não se aprende nada lá. As novas tecnologias tudo bem, mas o desporto faz muita falta. O ser humano precisa de praticar várias coisas, desde a música, a cultura, o teatro. Porque obriga a nossa mente a não estar só… Pá, isto assim da nossa vida profissional ou familiar, são aqueles momentos de lazer em que a gente ia sempre à água. Eu gosto imenso, às vezes as pessoas agarram numa bicicleta ou numa canoagem e tal, e vão naqueles...Mas temos que ter muito mais, muito mais, porque estamos a perder, estamos a perder precisamente as escolas. As escolas eram estes clubes, estes clubes, embora muitas vezes sem técnicos de primeira, mas tinham as tais pessoas que gostavam... Eu lembro-me quando comecei a praticar ténis de mesa, não sabia pegar numa raquete, mas havia já mais velhos: olha, é assim, é assim. E eu aprendi. Claro que podia não ser um atleta de primeira, nem estava dedicado a ser um atleta de primeira, mas aprendi. Passava uma hora ou duas horas e meia por dia, se calhar. Podia praticar ténis de mesa ou jogar basquetebol. Saía às 6:00 do trabalho, chegava a casa, comia qualquer coisa, ia para o ringue jogar basquetebol. Naquele tempo, eu andava saudável. Nunca fumei na minha vida, nunca fumei, nunca bebi. Como eu disse, porque não tinha tempo para essas desgraças. Naquela altura, hoje há outras infelizmente, a droga que tanto nos atemoriza. Naquele tempo, a droga era o tabaco, a bebida eram as drogas daquela altura, e eu, graças a Deus, e transmiti isto, porque tenho dois filhos, um, com 52 anos, outra com 42, que não fumam nem bebem, nem fazem noitadas. E tenho agora quatro netos. Estou a ver se os meto na mesma escola. P: Diga-me uma coisa, essa transmissão de valores do associativismo, da participação, que passam de pais para filhos e de avós para netos. Essa transmissão também existe dentro das coletividades, ou seja, os sócios mais velhos também transmitem esses valores aos mais novos? António Moreira: Era assim que acontecia, era assim que acontecia… Hoje, como lhe digo, é uma tristeza. Eu se for ao Campos Melo, que antigamente eu chegava lá às oito da noite, a malta ia beber um cafezinho, mas estávamos ali a jogar às cartas ou a jogar ao dominó ou a jogar a qualquer jogo, mas entretidos. Havia lá sempre, de certeza absoluta, 50, 70 pessoas, todos os dias. Hoje chegamos a qualquer coletividade e há meia dúzia de pessoas. À exceção, não sei se lá em baixo o Oriental, que está ali próximo da universidade, se é frequentado, não sei, confesso que não tenho estado dentro... Mas, hoje, veja a banda da Covilhã. Antigamente, à noite, tinha sempre uma série de pessoas que vinham, que se entretinham a beber um cafezinho, jogávamos uma suecada, enfim. Hoje não vem ninguém. Os de idade acomodam-se ou vão desaparecendo, os jovens não estão motivados para vir para o associativismo, para isto que é tão rico. É uma pena, uma lástima, que esteja a acontecer. Eu confesso: muitas vezes gostaria… se tivesse uns 20 anos batia-me nas câmaras ou até no Estado para que tivéssemos condições para conseguir avançar com as modalidades. Aqui, a Câmara Municipal da Covilhã, fica registado, tem um senhor que é o engenheiro... Ele está a seguir mais ou menos este meu raciocínio. Infelizmente, a pandemia veio tirar estas realidades ainda mais, mas é uma pena, porque ele estava a reunir outra vez as tropas na Covilhã, do associativismo, dando condições, oferecendo condições. Ainda agora ali... Eu também faço parte da Confraria da Covilhã da Cherovia e Panela no forno, portanto, sou vice-presidente, e ainda agora me foi dito que a Câmara atribuiu 3000 euros de compensação à Confraria para que a gente não deixe morrer a Confraria. Isto tem sido… Esta Câmara Municipal, e especialmente este vereador, que está no pelouro da Cultura, que tem sido uma pessoa dinâmica, eu tive algumas conversas com ele nesse sentido, e ele disse: Manuel tem razão pá. Vamos ver… Mas estes dois anos de pandemia trouxeram, porque estou convencido, porque ele exigia… Eu disse: você não dê dinheiro às coletividades, dê dinheiro a quem pratica, a quem trabalha. Quando, se a pessoa lá tem uma equipa de basquetebol e diz que o basquetebol perdeu isto, deu prejuízo, não sei quê, eu acho bem que a Câmara compense, se tem uma equipe de voleibol é a mesma. Assim sucessivamente. Agora dar dinheiro para as coletividades, algumas aí que infelizmente só tem um bar aberto, que é uma taverna… Eu acho que não, eu aí nisso não alinho. E então, o Oliveira está a fazer um bom trabalho. Distribuiu o dinheiro, pela primeira vez, por todas as coletividades, conforme o exercício que estão a ter. Não é como outras câmaras, que davam dinheiro que, portanto, a Câmara daqui sempre deu dinheiro a algumas coletividades. Mas nem sempre com a preocupação de saber se eram aqueles que trabalhavam mais. Muitas vezes era por compadrio, por amizades, para ganhar votos. Este não, não, é um engenheiro, é o engenheiro Oliveira, mas tem sido uma pessoa preocupada com a questão do associativismo e é um presidente dali do Oriental, que também é muito eficaz nesta situação. Ele gosta muito. Tem sido uma pessoa dinâmica também na Cultura. E pronto, ainda há valores, não há já muitos, como no meu tempo em que qualquer pessoa gostava de ser presidente para fazer andar o clube. Hoje dá-se dinheiro é para não se ser presidente, para não chatearem a cabeça, está a ver como é que é? P: Então, qual é que acha que vai ser o futuro deste movimento? António Moreira: Eu, a minha perspetiva para os meus netos… As coisas, como eu digo, são cíclicas. Um dia os jovens vão verificar que andam errados com o modo de vida como agora têm. Eu fico muito triste quando a minha mãe, quando eu era jovem e tinha um buraquito numa calça e a minha mãe ia-me logo a cozer o buraquito, porque era uma vergonha andar com um buraquinho na calça. Hoje eu não posso aceitar que os jovens andem aí todos rotos como sejam uns farrapilhas, sem dignidade nenhuma. Eu apreciei muito, apreciava muito do povo inglês, pela maneira como se vestia. E hoje, portanto, os jovens, eu acho que anda sempre à procura do que é pior. Felizmente, como lhe disse, tenho dois filhos e tenho muito orgulho neles, que são exemplo também na cidade, mas muitos pais, que eu sei que têm o mesmo valor que eu e que a minha mulher, e não conseguem fazer o mesmo dos filhos e eu às vezes é com tristeza que vejo-os aí todos sujos, rotos. Pronto, porque aquilo que aprendem hoje é só desgraças. É só desgraças... Não sei, o associativismo, faço votos para que um dia volte a ser aquilo que foi na minha Juventude, porque eu penso que aí estaria o caminho certo do mundo, do mundo, não é só do nosso país, porque a convivência, a irmandade… Ajudávamo-nos nos momentos de dificuldades, porque todos tínhamos dificuldades, e era muito bom porque havia amor, havia carinho entre as pessoas, havia dedicação, havia paz, havia muitas coisas boas. Estamos a atravessar uma fase difícil no mundo, da minha perspetiva. E às vezes digo assim para os meus netos: tenho muita pena e eu não consigo alterar isto, mas vou deixar-vos um mundo terrível. -
4 de junho de 2021
José de Jesus Nunes Simões
José Simões: Eu nasci na freguesia chamada de São Pedro, que depois foi extinta e integrada na União de Freguesias da Covilhã e Canhoso, que fica ali próximo da estação dos caminhos-de-ferro. Nasci em 1940 e vim com sete anos para o Refúgio. Aqui fiz a escolaridade básica, era o chamado primário, e entrei no mundo do trabalho com 11 anos. Fui trabalhar para uma mercearia da cidade. Entretanto, fui progredindo na carreira, mudei de entidade patronal para outra com melhores capacidade, uma loja maior. Depois fui para a tropa fazer o serviço militar e aos 20 anos fui incorporado no serviço militar, ainda não tinha começado a guerra colonial. Eu fui para a tropa em 22 de Janeiro de 1961 e a guerra em Angola começou no dia 15 de Março desse ano. Então eu sou mobilizado para Angola, fui dos primeiros militares a ir para a frente de batalha. Eu não tive lá nenhum tipo de problema, felizmente, vim de lá passado 27 meses, em 1963, com boa saúde, boa disposição, tal como tinha ido, sem traumas de qualquer espécie, nem físicos nem mentais. E, na altura, em 1961, eu saí daqui do Refúgio, que já vivia aqui desde os sete anos, aqui bem próximo, numa quinta, porque os meus pais eram agricultores, eu nasci no meio da ruralidade. E então eu fui daqui, e estava já a notar-se o embrião para a criação de uma coletividade aqui na zona, que é o Grupo Recreativo Refugiense, que está ali em frente. Eu fui em julho, e em julho/agosto… Eu tenho tudo documentado, eu tenho em meu poder todas as cartas que escrevi, à minha namorada e aos meus pais, e todas aquelas que recebi deles. Tenho tudo em micas, por ordem da data, tenho tudo arquivado. Então eu recebo uma carta da que é hoje minha mulher, hoje e há muitos anos, mas na altura minha namorada, a dizer: olha, já temos um grupo no Refúgio, tu já és sócio, que eu pus-te como sócio. Então eu sou sócio fundador sem nunca ter feito nada por isso, porque entretanto eu estava a fazer o serviço militar. P: Deixa-me só perguntar uma coisa, depois voltamos ao Refúgio. Ontem falei com um senhor que vinha também de uma zona rural e que me disse que achava que havia certas práticas de entre ajuda entre as pessoas do campo, que podem ter sido importantes para a origem do associativismo. Faziam a desfolhada em conjunto, ajudavam-se nas vinhas uns dos outros… Isso também acontecia aqui no Refúgio? José Simões: Acontecia, chamava-se ir merecer. Ora eu vou merecer ali o António, merecer era a troca, ele já tinha ou estava para vir fazer um trabalho à minha propriedade e eu ia fazer à dele, era a troca de funções. Havia trabalhos, realmente, como a senhora referiu, a desfolhada, a malha do trigo, do centeio, era uma zona muito rica em trigo e absorvia de facto muita mão-de-obra. Assim como a monda, a monda do trigo, era executado por mulheres, depois havia a ceifa, também era muito desse género, também a merecer. P: Como é que se organizavam? José Simões: Aquilo era já tradição, já sabiam. O vizinho do lado já sabia que ia ser convidado, porque também precisava do trabalho do outro. Havia essa troca de trabalhos, que chamava-se, aqui da zona, merecer. Eu vou merecer o Manel, que o Manel já cá veio, vou merecer o Manel, porque ele há de vir aqui. Colaboravam nas malhas, nas ceifas, na monda, tirar as ervas daninhas do milho. O trigo era sachado... P: As mulheres também faziam isso? José Simões: As mulheres faziam o trabalho das sachas e das mondas, era só de mulheres. Também faziam essas trocas. Os homens não se metiam nisso, assim como as mulheres não iam ceifar, nem iam cavar. Era um trabalho mais pesado, era entregue a um homem. P: E elas organizavam-se entre elas? José Simões: A organização podia ser comum, podia ser o homem a dizer: olha preciso que lá vás ajudar a minha Rosa que ela depois vem cá e tal. Isso podia acontecer, não é que tivesse de ser mulher com mulher, não havia esse preconceito. A sacha era feita por mulheres, a monda era feita por mulheres. A ceifa e o cavar da terra era feita por homens. A malha era feita por homens, com um mangual. O mangual era um utensílio que procedia à debulha do milho ou do trigo. Era bater na palha e os cereais iam caindo. Portanto, a função do homem era malhar e depois vinha a mulher com os vassouros (chamados vassouros, que são umas vassouras de giesta) e varria a eira e juntava a semente. Depois vinha o homem, que fazia a limpeza da semente, com uma pá que limpava a semente e vinha o vento e levava a semente que era mais pesada para um lado e o vento levava os resíduos para o outro. Portanto, só faziam este trabalho quando havia um bocadinho de vento. Esperavam que houvesse vento para desenvolver este trabalho. P: E quando iam a merecer, iam vários? José Simões: Iam vários… dependia do trabalho e da extensão da exploração. P: Como é que se escolhia quem ia? Era por relações de amizade? José Simões: Era organizado por família, era o primo, era o tio, era o cunhado e os vizinhos mais próximos, que eram amigos. P: E depois nesses trabalhos, como este que me descreveu, juntava-se bastante gente? José Simões: Juntava-se bastante gente. Dependia do trabalho, se o trigo era muito. Dependia sempre do espaço. P: E depois, faziam um convívio? José Simões: Claro, o convívio era indispensável, à volta da mesa ou da adega, os homens, era indispensável. P: Então acha que o associativismo pode vir daí? José Simões: Não sei, isso não sei. Até porque o associativismo vem de tão longe não é, e a senhora tem prova disso, que não sei se é por aí. P: Mas, por exemplo, especificamente aqui no Refúgio? José Simões: Aqui no Refúgio, o desporto rei levava muitas pessoas a organizar-se. Portanto, isso era uma fonte de obrigação de reunião, o futebol: 11 para cada lado, era logo 22, mais os suplentes, mais não sei quê, havia logo ali um grupo de 30 ou 40 homens. A mulher, nem pensar, a mulher não jogava à bola. P: Mas foi sua namorada que o inscreveu. José Simões: Que me inscreveu, sim, mas jogar à bola não. Depois acabou por haver necessidade de informação. Tinha aparecido a televisão, em 57, as pessoas não tinham capacidade financeira para adquirir o televisor e era o Campé, que era o restaurante do sopas, era o Campé, era o único aqui da zona que tinha uma televisão. O homem que era o dono era assim um bocadinho bruto e metia-se nos copos e quando estavam lá a ver o futebol: tudo para a rua! Estavam a ver a televisão: tudo para a rua. Vou fechar a porta e tal e fechava. E as pessoas começaram a ter mais necessidade ainda de se reunirem à sua vontade, de uma casa onde tivessem o seu televisor e vissem a televisão o tempo que quisessem. Ele fechava à meia-noite. Também à meia-noite a televisão acabava, não era como hoje, e era só um canal. Portanto, isso foi uma das razões. Depois, a guerra do Ultramar também trouxe a necessidade da notícia, saber do acontecimento, do que estava lá a acontecer. É através da televisão que se sabia. Tudo isso foi conjugado para que esta coletividade nascesse. P: Então, conte-me lá como é que foi: a sua namorada escreveu-lhe a dizer que já o tinha feito sócio... José Simões: Que já havia o grupo, que já me tinha feito sócio, era já sócio, ela cá pagava a quota de um euro por semana, entretanto eu regressei. Eu fui criado num ambiente rural. O meu pai era um excelente executante de concertina. E eu regressei e toquei concertina. Eu desde que me conheço como pessoa humana que me lembro do meu pai à noite. Acabava o trabalho do campo, que era duro, e chegava e tocava a concertina e a minha mãe cantava e era uma alegria lá em casa. E eu sempre senti essa necessidade da união. Como já tinha nascido aqui um agrupamento, eu integrei-me aqui. Entretanto, veio o ano de 1966 e foi criada aqui uma comissão de festas para comemorar o quinto aniversário do Refúgio, do grupo... Fui convidado e fiz parte, fiz parte de uma comissão de jovens. Fomos para a mesa: o que é que faz? Foi da altura em que começaram a aparecer os conjuntos musicais porque até aí era a grafonola, era o gira-disco, começou a aparecer o conjunto musical, também da província. Ah e tal, vamos buscar conjunto e eu disse: também ficava bem aqui era um rancho folclórico. Eu tinha de facto esse bichinho do folclore. Ai, é difícil...Posso fazê-lo à minha maneira? Ai se fores capaz. Então criei este grupo de folclore, em 1966. P: Como é que o criou? Com quem? José Simões: Foi muito fácil, foi fácil. Falei com o meu pai, que era o terror da concertina, falei com um senhor que já tinha organizado umas marchinhas e tal e o homem disse logo que sim. A juventude aderiu toda. Tivemos de selecionar: tu não prestas, que danças mal. Hoje andamos às vezes atrás deles: andai cá que eu dou-vos uma coisinha… Era uma localidade aqui na zona histórica, hoje tem 13 ou 14 pessoas, na altura tinha quinhentas. Havia aqui muita matéria para selecionar. Portanto, foi fácil. Aquilo foi para integrar esses festejos, mas aquilo correu tão bem, que eu já vos falei que havia de continuar e então já fomos ver de um chamado ensaiador, já quase profissional, um homem de acordeão, já com uma capacidade e pronto, arrancámos. Eu conto aqui a história [ofereceu-me uma monografia]. P: A que bom, obrigadíssima. Muito obrigado. José Simões: Vou-lhe oferecer. Então agora, em 2019, nós temos aqui na coletividade, no rancho, o presidente da Direção ligou-me agora, porque eles não fazem nada sem mim. Ligou-me agora, é o vice, o [...]. O vice-presidente é historiador, é professor e é historiador, tem várias obras e eu desafiei-o: Oh, professor, o senhor tem de fazer aí uma recolha, tem de fazer a história deste agrupamento. E ele disse: Oh, Sr. Simões, e já viu o trabalho que me dá? Então quem tem de fazer é o senhor, se foi o senhor que o criou, foi o senhor que esteve ao longo dos tempos ligado a ele. Eu gosto de escrever, gosto de escrever, eu tenho até outro livro editado, são as minhas memórias de guerra, que tenho vendido para todo o país, para todo mundo quase, que me pedem livros do meu tempo de guerra. Tem uma introdução do Nascimento, curtinha, ali uma introdução ao livro. Consegui que o prefácio fosse feito pelo meu comandante, que tem um valor histórico para mim, e depois conto a minha história da guerra, na primeira pessoa, sem ficção alguma, sempre o real. Lá está, foi aquilo que eu vivi e sofri e passei, os bons e os maus momentos, na guerra eram mais maus do que bons, mas também se passaram alguns bons. Então, está bem, professor, eu sou capaz de escrever e o senhor faz depois uma revisão? Faço. Pronto, e escrevi, então tem aqui a história. E então eu escrevi este livrinho com a história precisamente deste rancho folclórico. P: E então depois começou a ser uma coisa mais profissional, não é? José Simões: Profissional não chamarei, porque não há profissionalismo no folclore, mas passamos a ter mais cuidado. Começamos a fazer recolhas próprias das danças, cantigas, ia a muitos colóquios sobre folclore e etnografia. E, mais tarde, candidatámo-nos… muito difícil, uma candidatura muito difícil… a ser membros efetivos da federação do folclore português. P: Isso foi quando? José Simões: Isso foi em 1991, já. José Simões: E essas recolhas começaram logo nos anos 60, ainda? José Simões: Começaram logo, começaram em 66. Em 66 houve um arranque, depois os fatos que os elementos tinham usado, tinha sido tudo emprestado das várias coletividades, um tinha um fato, outro tinha outro e nós tivemos de devolver. Entretanto, em 1967, eu casei. Casei, fui viver para a cidade, fica um pouquinho… hoje é perto, na altura não havia automóveis como hoje. Da cidade aqui eram três quilómetros. Entretanto, eu venho para a cidade, o meu pai faleceu com 52 anos. Aquilo não durou muito, e parou, teve uma paragem. E então reorganizámo-nos em 1969, já com um traje próprio, com recolhas próprias, como sempre melhorando. P: Como é que fizeram? Como é que angariaram dinheiro para comprar os trajes? José Simões: Saímos várias equipas a fazer um peditório aqui às pessoas. Toda a gente dava, toda a gente queria o seu rancho folclórico – 20 escudos, 50 escudos, 10 escudos, tudo. Comprámos os tecidos, mandámos fazer, foi tudo gratuito, a confecção foi toda gratuita, portanto tivemos de adquirir os tecidos. O calçado tivemos de comprar. P: E baseavam-se no quê, para desenhar os fatos? José Simões: Eram baseados em fotografias da época. Eu tenho fotografias dos meus avós, dos meus bisavós, que serviram muito, eu e outras pessoas. E depois fizemos o apelo às pessoas que tivessem em casa roupas dos antepassados e, sei lá, das arcas, como eram. Era por aí… P: Porque a ideia era fazerem um fato que fosse aqui da região? José Simões: Da região e daquela época, de finais do século XIX e até aos anos 20, 30 do século XX. P: Porque é que era esse período? José Simões: Era o período em que começou a haver a consciência de que era preciso preservar. Até aí não havia grandes motivos para isso. E então foram criados organismos, mais tarde, na altura a FNAT, que é hoje INATEL, começou a preocupar-se um bocado com isso. Ainda no tempo do Salazar, talvez para desviar também atenções, está a ver? Criou várias coletividades até aqui na cidade. Essas coletividades tinham habitualmente o futebol para os homens e o folclore para as mulheres, e não só. P: Mas era para desviar as atenções do quê? José Simões: Desviar as atenções da contestação e trazer o povo contente. P: Havia muita contestação aqui na Covilhã? José Simões: Havia, aqui havia muita. Os lanifícios traziam muita contestação. Houve uma altura em que o primeiro de Maio só era reconhecido na Covilhã, só era celebrado na Covilhã. O resto do país, com medo das represálias... E mais tarde foi proibido também. Vinha por aí a PIDE, a GNR e tal, ia às fábricas ver quem estava a trabalhar. O patrão dizia: falta cá o Manel, o Jaquim e tal. Quem são eles? E tinham lá à porta e levavam-nos P: E então a FNAT criou estes ranchos? José Simões: Criou estas coletividades e apoiava o folclore e o futebol, eram as áreas.... P: E vocês tiveram apoio da Fnac? José Simões: Não, não tivemos, na altura. Porque entretanto, parece que havia liberdade, mas não havia tanta como isso… Como na freguesia de São Martinho havia já uma coletividade, que era o Oriental de São Martinho, e então já havia essa coletividade inscrita, não podia haver uma segunda. E então tivemos de ir por outro lado e conseguiu-se. Conseguimos através do Governo Civil e não ficámos integrados na FNAT, ficamos nas colectividades de cultura e recreio. P: Ou seja, conseguiram oficializar estatutos como uma coletividade de cultura e recreio? José Simões: Sim, sim, era mais o Governo Civil que dava ordens que podiam abrir e funcionar. Os estatutos e tal, assinados pelo governador civil, e mais tarde houve então a inscrição nas colectividades de cultura e recreio. P: E tinham sede? José Simões: Tínhamos sede ali, quando viraram para aqui, a sede está lá, fechada praticamente. Muito grande, muito boa, mas aquilo é um corpo sem alma neste momento. P: Do clube recreativo do qual faziam parte? José Simões: No grupo de recreativo do qual fazíamos, mas fomos obrigados a sair, há nove anos só, estivemos ali ligados. Agora foi instituído um estatuto próprio, mas nessas coletividade hoje vai uma direção que gosta de folclore, depois vai outra que já não liga nada, então é posto de parte. P: Então e nessa altura integravam o clube recreativo? José Simões: Integrávamos com estatuto próprio, nós tínhamos os nossos dirigentes dentro do grupo. P: Logo nessa altura, em 1966? José Simões: Não, nessa altura não se pensava muito nisso aqui, era tudo a monte. Em 1985 é que se começou a fazer essa revisão. P: Então até ao 25 de abril estavam junto do Clube? José Simões: Até ao 25 de abril e não só, estivemos até 1985. Contudo, depois criou-se o estatuto próprio para o rancho, ainda tutelado pelo grupo recreativo. E depois, em 2012, é que nos constituímos em associação autónoma. P: Então, durante esse período em que estavam lá, reuniam e desenvolviam a vossa atividade ali naquela sede? José Simões: Desenvolvíamos a atividade lá, mas os ensaios normalmente eram feitos fora, aquilo tinha condições para isso, depois agora é que fizeram obras, mas era muito pequenino. Então ensaiávamos na escola, nas garagens dos vizinhos: ah, podem vir aqui para a minha garagem. E íamos lá. Olha, afinal, agora já tenho aqui que meter o carro, já comprei o carro e tal. E íamos procurar outro espaço, foi assim um bocadinho de malas às costas. P: E também fazia parte da direção do clube? José Simões: Fiz parte da direção do Refúgio como secretário da Direção durante vários anos e presidente da Direção. P: Que outras atividades é que o grupo desenvolvia para além do folclore? José Simões: Desenvolvíamos atletismo. O futebol era quase a brincar. Eu joguei futebol, mas o atletismo era uma coisa a sério, chegámos a estar nos campeonatos nacionais. Eu tenho um irmão que foi na altura oitavo, no Estádio José de Alvalade, nos campeonatos nacionais de atletismo, que pertencia aqui. P: E isso era desportivo, e a nível cultural, era só o rancho? José Simões: Só o folclore. Fez-se também teatro esporádico. P: Organizavam-se em comissões? José Simões: Era em comissões, que não eram difíceis. No aspeto do teatro, quem fazia os ensaios era o [...], o escritor, é daqui do Refúgio. E então ele é que estava ligado a essa parte, tinha muito jeito, fazia os ensaios, programava tudo o que era essa área de teatro, mas era episódica. P: E era para fazer espetáculos aqui? José Simões: Fazíamos aqui. Ele era um indivíduo muito esquerdista na altura, mesmo antes do 25 de abril. E na altura ele ensaiou uma peça que era um comboio. Então fizemos aquela peça, estreou-se aqui, aquilo correu muito bem, muito bonito. Como eu disse, havia muita juventude, estavam prontos para tudo. Muita gente a assistir. E veio uma coletividade de cultura e recreio que é o Campos Melo: epá, vocês têm agora uma peça de teatro. Não foi o Campos, foi o Rodrigo, o Giro do Rodrigo. Têm uma peça de teatro, gostávamos que fossem lá e tal. Está bem. Nós queríamos era ir. Está bem, vamos lá e tal. Então foram tratar dos papéis, era obrigatório na câmara. A Câmara Municipal tinha de dar ordem que ia decorrer aquele espetáculo tal. Quando lá chegámos, aquilo era uma peça proibida, antes do 25 de Abril era proibida. Fomos lá chamados: vocês, o que é que estão aqui a fazer e tal? Nós armados... o outro sabia, que era muito esquerdista, mesmo do Partido Comunista. Olhe, íamos tendo dissabores. Ficámos pela apresentação. Já tínhamos colados cartazes, O Comboio! P:E tal aí pela cidade, quando chega...[ri-se] P: E tiveram mais problemas assim com a PIDE? José Simões: Não, nunca tivemos, aquilo acabou por não ser problema. Disseram-nos: isso é proibido. Nós não sabíamos, longe disso, a nossa ideia, de que realmente fosse proibida. P: E tinham biblioteca? José Simões: Tinham biblioteca, com limites, com livrinhos que também ofereciam. Iam oferecendo livros e fazendo uma bibliotecazinha. Chegou a ser engraçada. P: E havia muita gente a ler? José Simões: Havia muita gente a ler e tinha outra particularidade, aquela coletividade servia para tomarem banho. P: Muitas tinham isso, não é? José Simões: Todas tinham, quase todas tinham e estas rurais… esta fazia parte de uma freguesia urbana, mas esta parte muito mais rural e não havia casas de banho. As pessoas ainda andavam com a malga, todos os dias de manhã, a levar os dejetos. E então era o banho, o banho que era semanal. Pagava-se ali uma quantia irrisória para o gás e para a água. P: E tinham assim mais algum mecanismo de entre ajuda? Havia umas que tinham subsídio de funeral… José Simões: Havia subsídio de funeral e o respeito que havia na altura pelos mortos. Quando a pessoa morria, não havia música, não havia... Logo que fosse sócio, a televisão é desligada, acabava a televisão. A bandeira era hasteada a meia haste e depois havia... Houve assim umas coisas episódicas, que eu lembro que organizei lá, quando eu era presidente. Uma exposição de desenho do concelho, que teve uma adesão tremenda. Vimos difícil arranjar espaço para a exposição, andei de escola em escola a pedir, todas as crianças e os professores aderiram, os alunos fizeram muitos desenhos. Pronto, foi uma ligação às escolas, já nessa altura grande, e depois disso não tenho ideia de alguma atividade. P: Então e depois do 25 de Abril, como é que foi? José Simões: Depois do 25, até veio liberdades a mais, o rancho folclórico até parou, já tudo queria era discotecas e não sei quantos, mas depois recuperou-se novamente. Houve assim uns desmandos, umas euforias, mas enfim... P: E quando é que começaram assim com este interesse em preservar esta memória, quando é que isso começou? José Simões: Olhe, isto já vem de longe. Por minha iniciativa já íamos guardando umas pecinhas, já íamos arranjando… olha, fica aqui guardado numa lojinha, alugámos um espaço. Em 2000, adquirimos esta casa de renda. E começámos a montar aquilo que já tínhamos e fizemos um apelo às pessoas para que entregassem aquilo que lá tinham, que não deitassem fora, que nos dessem, nós reparávamos, se era caso disso, se não tivesse interesse, destruíamos nós. Começou a aparecer, em 2000. P: E no rancho, tinham a preocupação de ir procurar músicas que fossem tradicionais? José Simões: Sim, sim, tradicional. Até porque, a partir de 91, como membros efetivos da federação, não podemos pôr música nenhuma que não seja daqui da região. A música, a dança, a cantiga, o traje, o instrumento. É muito rigoroso, nós levámos o processo de integração para aí três anos. Vinham os técnicos e verificavam e chegavam ali e viam uma mulher que a meia devia ter este tamanho e estava assim, era rejeitado. É muito complicado. Eu costumava dizer que o processo de um grupo entrar como sócio efetivo da Federação do Folclore Português é mais difícil do que Portugal ter aderido à CEE. Muito, muito difícil. E mesmo agora, nós agora somos avaliados de dois em dois anos. Vem um grupo de avaliação técnica, cinco ou seis elementos, e nós temos de mostrar tudo: a dança, a cantiga, o traje, tudo, tudo ao pormenor, e depois somos classificados de zero a 10. Nós, na última avaliação, olhe em 2019, depois, em 2020, não houve, depois tinha de haver em 2021. Nós, numa escala de zero a 10, obtivemos 8,95. Muito bom, muito bom, mas temos que ter um cuidado extremo. Não pode haver unhas pintadas, não pode haver sobrancelhas tratadas, não pode haver vernizes, não pode haver pinturas. Nesse dia, as raparigas têm que tirar tudo. P: E antes, não era tão rigoroso? Como é que vocês faziam a investigação para... José Simões: Fazíamos, havia, as pessoas chamavam os incentivadores de carreira. Eles é que vinham. Olha, vem lá ensaiar o rancho e tal. Ah está bem, eu vou. Ele trazia as cantigas, que já tinha lá do repertório, que ele tinha recolhido ou não, não havia aquela preocupação tão grande. A partir de 1985 é que eu pus de parte esses ensaiadores, vi que aquilo não era nada. Comecei eu a fazer, a ler e a tentar informar-me bem o que era o folclore e a sua essência e tomei conta do caso. Os gajos não sabem nada, agora sou eu que tomo conta e comecei a aprofundar a informação que pus a prática no terreno. P: E o que é que descobriu nessa investigação? José Simões: Descobri que o folclore é uma arte, é também uma ciência e, como tal, ela não deve ser adulterada. Tem de ser o mais fiel possível às nossas raízes. Fiz muita recolha e pus elementos a recolher com as pessoas de 80 anos, 90 anos: olhe, o que é que cantava quando andava a bordar? O que é que cantava quando andava a sachar? E nós, com um gravador, íamos gravando. Olha, como é que se vestia? Olhe, ainda lá tenho uma saia da minha avó. Vá lá buscar: uma fotografia. Era feito desse modo. Era feito assim, ainda hoje se continua a fazer, agora menos. Agora já me vêm perguntar a mim, um ou outro... P: Eu estava a ver ali naquele livro que tem ali, que é muito interessante, que tem ali músicas do trabalho... José Simões: Esse foi o primeiro trabalho que nós fizemos, que o grupo fez, tem lá também um CD. P: Pois é… José Simões: O livro foi, é, um projeto nosso, do rancho, e do Grupo Recreativo, onde estávamos inseridos na altura, em 2004, e as recolhas eram daquilo que já tínhamos já feito. Depois, passou-se para a pauta musical, que é o trabalho conjunto, está também lá uma parte minha, mas foi coordenado pelo Doutor [...], que é um musicólogo, é mesmo formada em Musicologia Popular. E então, ele era muito nosso amigo e eu fui buscá-lo. Fui buscá-lo para o nosso lado e até agora está a trabalhar num projeto que estamos a desenvolver, está a trabalhar connosco. P: Qual é esse projeto? José Simões: Esse projeto é baseado naquela estrutura que foi agora criada de… deixa-me lá ver qual é que é o nome…É uma estrutura regional, vários conselhos se agruparam. Eles agora lançaram um programa, um projeto das coletividades. Nós somos líderes, aquilo tem de ter um líder e depois esse líder tem de arranjar associações dos outros concelhos. Neste caso, são cinco: Covilhã, Guarda, Fundão, Sabugal e Belmonte, estão agrupados os cinco. Comunidades Intermunicipais, é isso. E então vêm propor, é um projeto, é uma candidatura. Vão aparecer e nós estamos a trabalhar nesse sentido. Já escolhemos o tema, reunimos com as coletividades todas e todos apresentaram nomes para o projeto, por acaso foi o meu que foi escolhido. E chamo-lhe Unidos por um fio. Este fio condutor que nos une e ao mesmo tempo é o fio de lã, que engloba todos estes municípios. Agora, cada grupo, nós, o nosso grupo de folclore, que vai funcionar só com uma cantata, um cantarzinho de música e canto, não mete dança, para facilitar, porque são menos elementos, a logística é outra. E é menos gente a comer, porque o projeto inclui a alimentação, a verba que vão dar, no caso de sermos vencedores, temos que saber distribuir muito bem e quanto menos comerem menos temos de pagar ao restaurante. Temos um grupo de concertinas, que representa a Guarda. Um grupo de Bombos, que representa o Fundão e Sabugal, é um grupo etnográfico. De Belmonte é um grupo de cantares populares e do Sabugal é também um grupo de folclore, que vai com a tocata. Agora estamos a fazer essa candidatura com muito cuidado e queríamos que ela fosse aprovada. E nós estamos a liderar este processo e então fomos buscar o nosso vice-presidente, que é historiador, o Doutor Jorge Daniel, que é musicólogo. E estamos a trabalhar em conjunto para que essa candidatura possa ter muita força. Tem cinco espetáculos, um em cada concelho, é a obrigatoriedade. Nós já escolhemos o calvário, a capela do calvário. P: Diga-me uma coisa, estava-me a falar aqui desta cooperação entre associações, isso existe desde quando, ou seja, os ranchos folclóricos já se reuniam antes? José Simões: Os festivais folclóricos fazemos todos os anos. Nacionais ou internacionais. Nós tínhamos programado para 2020 o Internacional, o Grupo de Espanha e de Portugal. Tínhamos um grupo de Santarém, tínhamos um do Norte, de Gondomar, eram cinco ou seis grupos. Fazemos anualmente. P: Desde quando é que se começou a fazer isso? José Simões: Desde 1985. P: E antes do 25 de Abril, já havia essa interação entre grupos? José Simões: Havia, mas não estava tão enraizada. Havia, mas muito menos, muito menos. Os festivais do folclore, aliás, só apareceram depois do 25 de Abril. Porque são incentivados pela Federação do Folclore Português e a federação nasceu em 1977. Porque até lá também a associação livre não era admitida, não é? P: E então nasceu em 77 e começou a organizar essa altura... José Simões: Em 1977 a Federação do Folclore Português foi criada e começou a haver essa evolução no bom sentido, tanto pela qualidade dos grupos, como também na organização desses eventos. P: Qual é que foi o primeiro em que vocês participaram? José Simões: Foi um organizado aqui, no Refúgio. Eu lembro-me que fui à Câmara, em 1985, ao vereador da cultura e digo-lhe eu: oh senhor vereador, nós queremos organizar um festival de folclore. Epa, vocês são doidos, então vocês têm a capacidade? Quantos grupos? Cinco, seis grupos. Vocês não se metam nisso, já viu qual é a capacidade? Deixa isso connosco, deixa isso comigo. E diz ele: então, mas o que é que pretende de nós? Poder dar a notícia, não peço mais nada. Só quero que me monte lá um palco. Não pedem mais nada? Não! Se quiser depois dar mais algo... E organizámos muito bem. Depois, olhe, apareceu-nos alimentação, apareceu-nos tudo. A coisa correu tão bem, em 1985. A partir daí, nunca mais parámos. P: De ir a outros sítios e de trazer outros cá? José Simões: Vamos, também. No fundo, é retribuir a vinda, é o ir a merecer. P: E esse intercâmbio é importante? José Simões: É, importante, muito importante. É importante e mantém os elementos do grupo focados nesse projeto, que também gostam de sair, gostam de ir a Lisboa, ao Porto, a Paris, como já fomos duas vezes, à Ilha da Madeira, tudo isso. Pronto, se calhar nunca tinham ido lá… P: E quando vão por exemplo a Paris, são recebidos pelas comunidades portuguesas? José Simões: Sim, somos recebidos em casa de portugueses. Dormimos em casa dos portugueses. P: Que também têm ranchos lá? José Simões: Alguns têm. P: E nesses festivais internacionais, quem é que participa? José Simões: Participam grupos que nós convidamos desse resultado, também em permuta. Nós temos ido mais para os nacionais, por uma questão económica, porque fora do país custa mais dinheiro. Mas já tivemos aqui grupos de Badajoz, de Múrcia, fomos a Múrcia. Também já tivemos grupos de Toledo, Badajoz, como eu disse, e agora vamos ter… está contratado no próximo festival que houver, o grupo aqui da região da Extremadura, uma localidadezinha da Extremadura espanhola. P: Então e nesses festivais fora, juntam-se grupos de várias partes da Europa? José Simões: Sim, olhe nós, por exemplo, participamos há três anos num festival em Maia, Porto, onde estavam grupos de sete ou oito países. Pois, de Portugal estávamos dois, estava o Refúgio e o organizador. Depois havia do Peru, da Colômbia, de Espanha, da Venezuela… eram oito grupos ao todo, seis países, com Portugal sete. P: Eu já estive a estudar também as associações nas ex-colónias portuguesas e vi que no passado também havia associações de folclore lá, portugueses, Casa da Madeira. Vocês nunca tiveram intercâmbio com os países das ex-colónias? José Simões: Não, sabe, nós temos muitos convites, da Polónia, da Roménia… Mas não temos a capacidade económica para nos deslocar. Se tivesse um convite das nossas ex-colónias, também não íamos, com certeza. Eu nunca me apercebi, mas deve ter havido. P: E assim das comunidades portuguesas que há pelo mundo inteiro. José Simões: Isso há. Do Brasil, já tivemos aqui um grupo do Brasil. P: Mas de portugueses que estão no Brasil? José Simões: Portugueses que estão no Brasil, orientados por uma senhora brasileira. A diretora era uma senhora brasileira. Veio o grupo, o representante deles artístico é o [...]. Morreu há dois anos, veio aqui com eles, por duas vezes… P: E essa ligação, vocês para além de atuarem uns com os outros, o que é que fazem mais, discutem estas questões do folclore? José Simões: Habitualmente não há tempo para isso. É chegar lá, trajar, jantar… Os festivais são sábado à noite, habitualmente. As pessoas aqui trabalham até ao meio-dia, uma hora, em alguns casos, temos de esperar. Vamos de autocarro para o Alentejo ou não sei quantos, chegamos lá quase em cima da hora. Há uma sessão solene, sempre agendada com os grupos todos, com o presidente da Câmara, ou alguém que o representa, o presidente da Junta, os grupos todos, representação dos vários grupos. Uma sessão solene. Depois vamos ao jantar e vamos para o palco. E sairmos do palco, toca a tirar o fatinho, vestimos os nossos, meter no autocarro. E chegar aqui às quatro, cinco da manhã. P: Então diga-me uma coisa: isto do associativismo, porque é que dedicou tanto tempo da sua vida? José Simões: Por amor ao folclore, especialmente. Embora o associativismo também me diga muito. Eu depois criei aqui o Grupo de Cantar, ligado à Igreja, criei aqui um grupo de teatro, que fizemos quatro anos com a mesma peça em cena, percorremos quase o país todo. Com 60 elementos, eram 60 elementos, o grupo de teatro. O musical. P: Como é que se chamava? José Simões: O Nazareno, era baseado na vida de Cristo. Foi baseado, não sei se conhece, numa obra do Frei Hermano da Câmara. Era um fadista de um bairro de Lisboa que enveredou pela vida cristã. Foi para um convento, mas a voz não a deixou cá fora, como é lógico. Então ele tem uma carreira artística muito grande. E criou uma peça ligada à vida de Cristo, que é O Nazareno, uma peça musical. Nós adaptámo-la para o teatro, com instrumentos próprios, acordeão, órgão, viola, tudo organizado por mim. Fiz a encenação, encenei a peça e começámos a ser chamados para muitas outras do país. Nós, o último espetáculo que fizemos, terminámos, porque depois, entretanto, o rapaz do piano era professor, foi daqui para fora. Os professores andam sempre com a mala às costas. Foi parado e tal, pronto ficámos por aí. Fizemos o último espetáculo em Fátima, no anfiteatro Paulo Sexto, com 3500 pessoas a assistir, no Dia Internacional da Juventude. Foi criado por mim, isto é a prova daquilo que eu tenho dedicado à bandeira do associativismo também. E então dá-me muito gosto. Fui aqui também secretário da Direção da Associação Comercial dos Concelhos da Covilhã, Belmonte e Penamacor, durante três mandatos. P: Qual é a atividade que desenvolvia? José Simões: Ligados ao comércio, todo o comércio e indústria. Pagavam as suas quotas e depois fazíamos vários eventos, com alguma grandeza, na universidade da cidade da Covilhã, para apresentar um cortejo etnográfico. Coisas várias dessas, o cortejo do trabalho, exposições, ainda existe a associação, hoje com o nome de Associação, na altura Grémio, do comércio. Agora até me vão contratar para fazer um filme para a RTP. Sou personagem num filme que vai passar na RTP no último trimestre deste ano, A Traição do Padre Martinho. P: Que personagem é que vai fazer? José Simões: Tio Francisco. Já fiz, já está filmado. O protagonista principal é o Diogo Martins, um autor especialmente de novelas. O Ricardo Carriço, a Eva Barros, o Manuel Marques, que trabalha muito com o Herman, o Rui Mendes, o consagradíssimo Rui Mendes. E depois, havia no meio do elenco todo dois atores não profissionais. Então fizeram um casting, mas não disseram para que era. Puseram-me a ler e depois telefonaram: o senhor está contratado para fazer, vou entrar em contato consigo para acertar valor. Eu julgava que aquilo era de borla. Para acertar valores e combinar, precisamos de si, pelo menos três sessões. Depois ligaram: olhe, já falou o não sei quantos consigo? Já. Era para acertar valores. Olhe, 125 euros por cada sessão, mais alimentação, está bem? Eu até achei muito dinheiro. Olha, então vamos lá ver, 125 × 3, não é? Exatamente. Se for preciso mais alguma? Está bem! P: E então, foi o teatro, foi os cantares. Quando é que isso foi? Quando é que começou? José Simões: Isto foi na época de 80. Os cantares foi um bocadinho anterior, foi na década de 70, talvez. Depois criei o grupo de teatro na década 80 e tal. Foi só aquela peça. P: E os cantares era como, era um coro? José Simões: Cantares era um coro, vestidinhos com um papillon os homens, as mulheres uma echarpe. P: E o que é que cantavam? José Simões: Eram repertórios populares, mas não rígido aqui à região. Cantiga popular, fosse de Lisboa ou do não sei quantos, cantávamos tudo. P: E onde é que atuavam? José Simões: Olhe, em vários locais, nunca saímos aqui da zona. E eu lembro-me de um espetáculo que participámos para a Rádio Renascença. Veio aqui fazer um espetáculo à Covilhã, fomos contactados, contratados não, contratados era se ganhássemos dinheiro. E lá fomos fazê-lo, ao ar livre e aqui assim na região, várias pessoas: ah, vocês têm um grupo de cantares, vão lá… Vamos, então não vamos? P: Então foi o folclore, foram os cantares, foi o teatro e foi isso. Não fez parte das coletividades da Covilhã, quando estava lá a trabalhar, foi sempre aqui no Refúgio? José Simões: Sempre aqui no Refúgio. Não, na Covilhã só aquela associação comercial, já virada para um patamar mais elevado. P: Então, e entre todas estas experiências, qual foi aquela que mais o marcou? José Simões: O que marcou mais foi o grupo de folclore. Mas gostei muito daquela do teatro, o teatro musical, porque foi preciso escolher muita voz, selecionar muita voz. A voz de Cristo, de Maria, dos anjos, do dono do Canal, do Doiro, havia muitas vozes que era preciso selecionar, bem cantadas, tinham de ser bem selecionadas. Isso dava algum trabalho. P: E diga-me uma coisa, a Covilhã é uma zona muito fabril, toda gente praticamente que eu entrevistei está ligada à indústria de lanifícios… José Simões: Eu por exemplo nunca estive. P: Mas aqui o refúgio também? José Simões: O Refúgio também teve aqui uma fábrica, aquele poema que eu fiz… Refúgio, local com muita história, vivências e memórias, Terra de trabalhadores, operários e doutores, escritores, poetas, pastores, agricultores, foste refúgio de hebreus, tecestes ....(?) Fardaste os soldados dos quartéis, produziste finos tecidos, vestiste nobres e mendigos. Foste terra de realeza, de povo e de nobreza. Recebeste El Rei de Portugal, D. Carlos de boa memória, enriqueceste a tua história, transformaste o trigo em farinha, acolheste a Rainha monarca do teu país, Amélia de seu nome, em teu palacete dormiu e o povo a aplaudiu, foste, és terra de tradições, de festas e romarias. Acolheste a festa brava, touros e toureiros numa praça com história construída pelo fogo, pela tristeza do povo. Os tempos transformaram-te, desse resta a história, mas continuas a ter gente com garras e valentia para construir o teu futuro de cada dia. Cá está, ligada à indústria. O Rei Dom Carlos visitou a indústria em 1891, depois de inaugurar os caminhos-de-ferro da Beira Baixa e dormiu aqui. O nome do Refúgio… Há várias ideias. Ao concreto, acho que ninguém sabe. Parece que a mais lógica, que tenha a ver com o D. Sancho II, o Povoador. Ele tentou povoar esta zona, no caso inóspita, pouco da obra, de montes e tal. Então, todos aqueles que andavam fora da lei ficavam integrados da sociedade, se chegar aqui refúgio. Chegavam aqui, eram fora de lei. Eu quero ser cidadão livre. Eu quero me integrar aqui, pronto. Quero aqui ficar. Essa é uma daquelas que é mais consentânea. Também tem muito a ver com os hebreus, no tempo da Inquisição, parece que aqui também era um bocado o refúgio deles. Mas há muitas versões, não sei qual é a correta… P: Então, agora, e só para terminar, diga-me, queria saber o que é que acha que será o futuro do associativismo? José Simões: Olhe, eu já vi isto quase a desaparecer. Depois parece que vejo outra vez a pegar no fio, e que a coisa terá futuro. Enfim, estou convencido que sim. Estou convencido que sim. É verdade que talvez precise de uma reciclagem, porque hoje já ninguém vem à associação para bailar, para dançar. Os bailaricos é na discoteca. Já ninguém vem cá para tomar banho. Já ninguém vem ver um jogo de futebol, tem em causa tudo. Tem 100, 200 canais, sentado no sofá, lá estão em contacto com o mundo. Terá de haver outros motivos que possam atrair as pessoas, isso vai muito da imaginação dos dirigentes. Os dirigentes têm de ter mais sensibilidade do que antigamente. Antigamente qualquer um dava. Porque aquilo era abrir a porta e as pessoas entravam, era pôr o disco a tocar e as pessoas dançavam, era ligar a televisão e a sala estava cheia. Hoje não, mas até tenho esperança. P: Aqui o vosso rancho está perfeitamente modernizado, até faz candidaturas. José Simões: Sim exatamente. Agora, nós somos uma associação um bocadinho sui generis, porque não tem aqui uma casa aberta. A senhora vai a qualquer associação e vê os bilhares, as cartas, vamos ajudar, vem outro beber um copo de vinho, um café e tal, é tudo o que é necessário. Nós não temos. É uma associação um bocadinho diferente. Cá dentro estão as 50 pessoas do rancho, os 100 e tal associados que temos e uma capacidade... tivemos de nos munir de dirigentes com alguma ação: o Doutor Vítor Tomás Ferreira, que já foi presidente de junta, que está ligado à Universidade, é um professor, que é um historiador, um professor. Está a ver, tivemos que procurar pessoas, que, não tendo a ver propriamente com o folclore, têm outra capacidade para poder atrair, desenvolver este projeto. Porque depois, bem, este projeto também não é qualquer pessoa que saiba… Portanto, as associações têm necessidade também de ter um corpo dirigente capaz de saber encarar o dia de hoje e de amanhã e ter capacidade para criar condições atraentes para os jovens e para os menos jovens. Se houver essa capacidade, acho que as pessoas continuam a ter necessidade de se reunir. P: Também acho que sim. Agora só para uma questão estatística, que eu tenho perguntado a todos os dirigentes: professa alguma religião? É católico praticante? José Simões: Praticante, sim, pode considerar. Não vou todos os dias à missa, mas pode-se considerar que sou católico praticante. P: E é filiado em algum partido político? José Simões: Nunca fui filiado. Ou melhor, fui filiado num partido político durante uns tempos, e desisti. A minha filosofia política enquadra-se muito na social-democracia. -
3 de junho de 2021
Victor Manuel da Silva Fernandes
P: Podia dizer-me o seu nome completo. Victor Fernandes: Muito bem, eu sou Victor Manuel da Silva Fernandes, sou adjunto de chefe de secção de tinturaria há 42 anos. P: Nasceu aqui na Covilhã. Victor Fernandes: Nasci na Covilhã. P: Em que ano? Victor Fernandes: Em 1963, de pais que se conheceram nesta coletividade e se casaram nesta coletividade. Eles faziam parte do rancho folclórico. Foi aí que se conheceram e foi daí que se casaram. P: E começou a trabalhar com que idade? Como foi a sua escolarização? Victor Fernandes: Eu, aos meus 16 anos, estava a trabalhar, mas nunca deixei de estudar. Portanto, eu trabalhava de dia e estudava à noite. Foi um esforço tremendo. Na altura em que eu nasci, só havia 11º ano, não havia mais e depois de estar casado, e já com filhas, lembrei-me e digo: “Não fico só por aqui, vou fazer também o 12º ano e essas habilitações”, porque tenho curso geral do comércio, tenho o curso complementar de administração e comércio e tenho o técnico de secretariado. Fiquei por aqui. P: E os seus pais, qual é que era a profissão dos seus pais? Victor Fernandes: O meu pai era empregado de mesa e a minha mãe trabalhava numa fábrica têxtil. P: E a sua mulher? Victor Fernandes: A minha esposa trabalhava numa escola, na Secretaria. P: E as suas filhas? Victor Fernandes: As minhas filhas, uma é GNR, foi agora empossada como furriel, e a outra trabalha ao balcão de uma fábrica de panificação. P: Só mais duas perguntas para uma questão estatística: professa alguma religião? Victor Fernandes: Tenho uma religião, sou católico praticante e daqui a bocadinho, lá vou a mais um trabalho que tenho que fazer também dentro da Igreja. P: E faz parte de algum partido político? Victor Fernandes: Além tempos, fui fundador da Juventude Socialista na Covilhã. Hoje não tenho qualquer partido político. Não me revejo em nenhum partido político. Há coisas boas desde a extrema-esquerda à extrema-direita, mas não há nenhum partido que abarque aquilo que são as minhas convicções. P: E na igreja, que responsabilidades é que tem? Victor Fernandes: Eu faço parte do grupo Coral. Tive outras atividades. Fui catequista. Tenho curso de diácono permanente. E acho que já chega, não é? P: Então vamos à questão da experiência associativa especificamente. Já percebi que esta propensão para se envolver no associativismo é de família, não é? Os seus pais já faziam parte... Victor Fernandes: É, eles andaram assim por aqui. Sabe que as condições... Esta Casa estava muito dedicada aos tempos livres, à cultura e ao desporto. Nasceu a 8 de abril de 1954 oficialmente, mas já existia antes entre amigos que iam jogar um futebolzinho além, num tipo de cabeço, numa encosta de um cabeço. Portanto, este clube é muito provável que tenha nascido para aí em cinquentas, nos anos 50, ao princípio ou talvez fins dos anos 40. Começaram numa garagem, depois de uma garagem foram já para uma casinha, depois de uma casinha viemos para o sítio onde agora está esta sede, que foi deitada abaixo e agora estamos num prédio novo. P: Essa história, foram os seus pais que transmitiram essa memória da fundação? Victor Fernandes: Não só, nós também temos um livro escrito sobre essa situação. Temos a história dos 50 anos. Por acaso não tenho o livro comigo nesta altura, mas temos essa história também. P: E qual é que é a motivação para além dessa propensão de família? Qual é que foi a principal motivação para ingressar? Quando é que ingressou, com que idade? Victor Fernandes: Ora eu era muito novo, devia aí ter os meus 15 anitos. Quando faltava alguém na Assembleia Geral, já me chamavam a mim para fazer a ata, que era um bocado complicado, mas eu, como fui sempre ligado às letras, muito mais do que às matemáticas... Para mim, embora fosse novo, era extremamente fácil fazer isso. Tenho impressão de que não há nenhum lugar nesta Casa pelo qual eu ainda não tenha passado. Assim como noutras associações por onde passei. P: Em que outras associações é que participou? Victor Fernandes: Estive no Campos Melo, na banda da Covilhã também e fiz parte não dos órgãos sociais, mas sim de outras coisas, no Oriental de São Martinho. P: E porquê esta multiplicidade de participações? Victor Fernandes: Primeiro, é o gosto pessoal. Tenho muito gosto em ajudar seja naquilo que for e tenho muito gosto em estar ao serviço das pessoas. Não é uma realidade hoje, mas é uma realidade que nasceu comigo e que me foram incutindo ao longo do tempo. Nunca tive nenhuma estátua, também não a quero, mas acho que isto começou por tudo. Começou por tudo, não era só o gosto, mas depois também uma certa necessidade, porque no tempo do Estado Novo,as casas também tinham poucas condições e isto dava para juntar tudo. Os Leões tinham chuveiro, tinham a televisão que nós não tínhamos em casa. Depois tinham a sociabilização, que nós em casa, tirando o relacionamento pais-filhos também não tínhamos outra coisa e a sociabilização é muito importante, que se vai perdendo. Hoje as pessoas não vivem nada como era nesse tempo, são mais individualistas, são mais comodistas e pouco se importam com este tipo de casas, o que é uma pena, se um dia este tipo de casas não der para fazer aquilo que têm feito. Uma das coisas que têm feito é substituir o Estado. Não somos verdadeiramente comparticipados com valores que nos deviam manter, mas nós substituímos o Estado em muita coisa aqui, no acolhimento, por exemplo, é importantíssimo. Hoje a nossa casa é frequentada por milhares de estudantes. Antigamente era mais frequentada só por sócios e eram bastantes. Hoje deixamos que eles façam os seus trabalhos escolares na nossa coletividade. Antigamente, isso era impensável. Mas hoje têm Internet à vontade, aberta, podem fazer o que quiserem e também lhes damos algumas indicações de vida e às vezes põem-nos à frente vários problemas que nós tentamos resolver ou encaminhar para quem os resolva. Isto é uma substituição daquilo que o Estado devia fazer e não faz. Há muitas outras coisas, que havia na altura que nós também não tínhamos em casa, quando começámos a ter televisão, só tínhamos quatro canais. Nós tínhamos sorte por ter quatro canais, eram dois espanhóis e dois portugueses. Esta zona dava para ter dois canais espanhóis e dois portugueses. Mas havia uma coisa que nós não tínhamos em casa, que era o cinema. E aqui passava-se o cinema para os sócios. É isso era uma maravilha. Embora tivesse hora certa para entrar em casa e às vezes prolongasse um bocadinho e depois vinha a ter um alguns problemazitos... Mas havia o cinema, que era uma coisa bastante importante. Hoje é precisamente o contrário, a maior parte das pessoas às vezes não vem à coletividade porque já tem demasiadas coisas em casa. Por exemplo, eu em minha casa tenho 200 canais, quando eu só vejo dois ou três, eu em minha casa tenho Internet, eu a minha casa tenho todas as condições, tenho a casa de banho, tenho tudo aquilo de que preciso. E isso levou, como eu muita gente, levou a que as pessoas hoje não adiram tanto ao associativismo. Mas ainda há outra coisa importante para as pessoas não aderirem ao associativismo, que eu acho que é a demografia. Tudo estava concentrado no centro da cidade, hoje em dia não é assim. Porque foram criados muitas casas sociais em redor da cidade - Vila do Carvalho, Teixoso Tortosendo, Boidobra e parte cimeira da Covilhã. E isso levou a que os clubezinhos de bairro, que tinham as pessoas ali, saíssem daqui e fossem para outros lados. Isso causou-nos alguns problemas, principalmente para tentar arranjar pessoas que queiram vir e tomar conta desta e das outras coletividades. Era bastante bom, na altura, se tivessem arranjado as casas onde as pessoas viviam, que eram muito mais felizes do que nos guetos onde os puseram. E hoje estava tudo mais normal, o centro histórico estava cheio, e hoje está vazio e com casas a cair. P: Diga-me uma coisa, começou então a participar aqui na associação ainda antes do 25 de Abril? Victor Fernandes: Sim, por aí, antes do 25 de Abril já cá entrava, isto garoto. P: E como é que era, qual é que era a diferença nessa altura, durante a ditadura? Victor Fernandes: Aqui não havia o espectro político, havia algumas casas que tinham. Esta nunca esteve ligada à política. Portanto, as pessoas eram submissas e não falavam disso. E como não falavam nisso, não quer dizer que não tivessem liberdade, quer dizer, uma pessoa tinha liberdade falando de tudo, menos em política, e hoje não é bem isto. Quer dizer, hoje há uma certa liberdade, que acaba por ser tirada a liberdade quando se entra num outro campo, que é a libertinagem. Hoje há muito disso. Há muita gente que destrói. Há muita gente que estraga tudo. Há muita gente que foge com os equipamentos. É tremendo. Quer dizer, isto demonstra que há uma grande diferença entre o passado, sem liberdade, uma liberdade restrita, e um presente com uma liberdade demasiada, onde ninguém tem poder para travar seja quem for. O professor não manda, a polícia não manda, ninguém manda. Quer dizer, isto é uma confusão tremenda. Isso traz-nos também alguns problemas, a nós. O caso de nos levarem coisas, de partirem coisas... Quer dizer, não pensam nunca que tudo aquilo que façam de mal são os pais também, com os seus impostos, que estão a pagar. Não somos só nós que pagamos, o pouco que recebemos, ou quase nada, dos órgãos, mais até a Câmara Municipal, a Junta de Freguesia, o pouco que recebamos vai dos impostos também dos pais desta gente e dos nossos, não é? E as pessoas não pensam nisso. P: E nessa altura era uma altura de dificuldades, como disse, as pessoas não tinham algumas necessidades básicas asseguradas. Eu estive a ver que noutras associações, havia mecanismos de entreajuda, por exemplo o subsídio de funeral. Aqui também existiu? Victor Fernandes: Subsidio de funeral aqui não existia. Eu sei que há clubes, por exemplo o Campos Melo, tinha subsídio de funeral. Aqui, por acaso, nunca foi prática. Podia-se ajudar as pessoas noutras situações, quando se viam com algum problema. P: Por exemplo, lembra-se de algum exemplo concreto? Victor Fernandes: Falta de comida... Eu sei que havia, também havia. Embora aqui já fosse uma cidade rica. Os têxteis ganhavam acima da média, na altura. Hoje ganham menos do que toda gente, mas na altura os têxteis ganhavam mais do que o resto, talvez das cidades do interior. E eu posso lhe dizer que havia algumas carências de facto que eram colmatadas, nem que fosse pelos amigos. Hoje, talvez não seja tanto assim. A amizade hoje é um bocadinho diferente. A amizade é o Facebook, é a exposição das coisas nos órgãos sociais. É estarem numa mesa a beber um copo, cada um com o seu telemóvel. Já não há aquele conversa simples que até nos levava a um certo crescimento. Hoje, com esta gente nova, já não existe isso. P: Foi uma escola, esta instituição? O que é que aprendeu aqui? Victor Fernandes: Foi sempre uma escola. Costuma-se dizer que o velho sabe muito porque é velho, não é? E nós aprendíamos precisamente com essa gente. Aprendíamos porque eles tinham a escola da vida. E a escola da vida, que eles que nos transmitiam, não era propriamente a escolaridade. Era a escola da vida que eles nos transmitiam e davam-nos valores que hoje é impensável conforme está a nossa educação a ser desenvolvida. Hoje é impensável, era isso que nós queríamos fazer hoje, dar alguns valores às pessoas ao incutir-lhes algumas coisas que eram importantes para a vida delas, só que não conseguimos, porque elas hoje são demasiado autónomas. P: Que tipo de que atividades é que se Lembra que o clube desenvolvia nessa altura? Victor Fernandes: Bem, eu já lhe falei no rancho folclórico. P: Participava no rancho folclórico? Victor Fernandes: Eu não, os meus pais sim. O meu avô tocava flauta no rancho e os meus pais andavam no rancho. Mas, além do rancho, também tivemos um conjunto de baile. Já nos anos 50, aqui havia muita atividade, o desporto, a cultura. Tínhamos uma boa biblioteca que agora não tenho aqui. Neste momento tenho numa garagem para tentar organizar. Havia muita coisa, desde os Jogos, que também dava para expressão e para agarrar a gente. P: Quais eram as modalidades que desenvolviam? Victor Fernandes: Principalmente o futebol, o andebol também. O andebol acho que acabou na Covilhã porque ganhavam sempre os Leões da Floresta. Acabou precisamente por causa disso. Depois, mais tarde, veio o ténis de mesa. Tivemos uma equipa excecionalmente boa e reconhecida a nível nacional. E alguns elementos chegaram a ir ao estrangeiro, principalmente à Rússia e à Espanha. P: E na parte cultural, tinham teatro, música, tinham uma biblioteca. Como é que foi criada a biblioteca? Victor Fernandes: Quando cá cheguei, já cá estava. Portanto, a biblioteca devia ter sido criada logo para aí nos primórdios da coletividade, porque eu lembro-me que um dos livros que lá estavam era O Vinho, que salvo erro era do António Pato, que vinha do Partido Comunista e fez parte de daquele bloco contra a ditadura já muito antes até das coletividades serem formadas. Portanto, eu lembro-me desse livro cá estar, bem como outros, claro, mas esse ficou-me na memória. P: E esses livros não eram proibidos? Victor Fernandes: Aqueles livros eram proibidos. Pelo menos dos que conheço só esse é que era proibido. Esse de facto era proibido. Não sei onde é que eles o encaixaram, nem onde o foram buscar. Sei que eu já cá o encontrei. P: No Campos Melo, achei muita piada, estive a ver que davam um prémio aos leitores que liam mais. Aqui também faziam esses incentivos à leitura? Victor Fernandes: Não, sabe que as pessoas aqui requisitavam os livros, levavam para casa, liam e depois traziam, ou então podiam ler aqui. Embora as condições na altura não fossem o que agora são, mas as pessoas, havia muita gente que lia aqui os livros. No caso do Campos Melo era diferente, a biblioteca Ferreira de Castro era totalmente diferente. O Campos Melo, apesar de tudo, já tinha uma parte política. Eu estou-me a lembrar de uma das pessoas que foi lá colaborador, que esteve preso no tempo da ditadura com o Álvaro Cunhal e outras pessoas assim do género, que era o senhor [...]. E essa pessoa, lembro-me que, como ele contava, foi torturada. Esteve com a água sempre até aos joelhos, o pingo sempre a cair na cabeça, e, portanto, o Campos Melo já tinha uma parte política Aliás, o Ferreira de Castro também já tinha, ele próprio, também já tinha a sua parte política. E no Campos Melo, de facto, havia esse prémio, eu lembro-me disso, para quem lesse mais. Havia de facto muita gente, já com uma certa cultura, naquela altura, no Grupo Educação e Recreio Campos Melo, tanto que um dos fundadores até era professor. Não sei se já falaram nisso, mas agora não me lembro bem, mas o [...], penso eu, era professor. Eles tinham lá as escolas primárias, tinham duas salas de aula e aí era muito mais simples ter desenvolvido a mente das pessoas. P: Quando é que passou por lá, pelo Campos Melo? Victor Fernandes: Olha, a última vez que lá estive foi 1992, a primeira vez foi em 1984. P: E foi sócio, foi dos órgão sociais? Victor Fernandes: Ainda sou sócio, fiz parte dos órgãos sociais, por duas ou três vezes. Duas vezes! P: Como é que conseguia acumular a participação em várias coletividades ao mesmo tempo? Victor Fernandes: Sabe, umas coisas desenvolvia-se numa e outras coisas desenvolvia-se noutras. Eu também dei a minha colaboração no Grupo Desportivo da Mata, quando estava nos Leões da Floresta, por exemplo. Eu estava aqui na direção dos Leões da Floresta e estava a treinar o grupo desportivo da Mata inter juvenil. Foi sempre uma das coisas. Quando estive no Campos Melo pela primeira vez, a única coisa que tinha de coordenar era a catequese. Não estava a coordenar nada nos Leões, ou melhor, acho que estava na Assembleia Geral dos Leões. Reunia uma vez por ano, portanto, não era por aí que eu deixava de poder dar a minha colaboração no Campos Melo. Era interessante e lembro-me de que um desses mandatos apanhou-me na tropa, e ao fim de semana tinha que ir para fazer turno no Campos Melo. Tinha que vir fazer tudo aquilo que me competia. E mais às vezes mais do que me competia. P: Então, daquilo que se conseguiu recordar com detalhe, foi desenvolvendo diferentes atividades em diferentes associações. Digam-me lá aquelas que se lembra. Victor Fernandes: Fui treinador na Mata. Fui treinador no Campos Melo, também de ténis de mesa. Joguei pelo Oriental de São Martinho, joguei pelos Leões da Floresta. Também joguei pelo Campos Melo. Depois acabei por me federar e depois terminei a minha carreira, sempre no ténis de mesa. Jogava uma futeboladazita, quando era mais novo, mas nunca tive grande queda para o futebol, ainda hoje é o dia que não vejo um jogo de futebol. Nunca tive grande queda para isso. Gostava de facto de ténis de mesa. Dava-me um gosto jogar e poder ajudar os outros a jogarem. P: Mas desenvolveu outro tipo de atividades, tipo responsável pela catequese? Victor Fernandes: Sim, fui responsável pela catequese, também uma das coisas que me calhava todos os anos era, por exemplo, a preparação para a profissão de fé, que eram 15 dias intensivos de catequese e então iam os grupos todos da paróquia. Conclusão, chegava ali a ter aos cento e alguns, catequizando os 100. E alguns catequizados foram catequistas. Era engraçado, no fundo era engraçado. Naquela altura, também, as pessoas também se moldavam com mais facilidade. Eu estou a ver hoje uma turma, por exemplo com 100 alunos, que essa ninguém devia pôr mão naquilo, não é? Até com 30 já deve ser difícil, quanto mais com cento e qualquer coisa. Naquela altura era mais simples. As pessoas eram diferentes. P: Isso foi nos anos 80? Victor Fernandes: Sim, pelos anos 80. P: E desempenhou mais algum tipo de atividade? Victor Fernandes: Assim outro tipo de atividade, música sim, porque ajudei a fundar, fui dos fundadores do Covimúsica, lá em cima no Campos Melo. Fui fundador, mais quatro pessoas. Eu tinha viola, os outros não tinham. Eu não sabia tocar viola, emprestava a viola e assim se foi criando. Quer dizer, começou-se com pouco. É engraçado que juntávamos a revolução, aquilo que nós começamos a cantar inicialmente era tudo o que era revolucionário, canções revolucionárias, partidárias e canções da Igreja. Também mais de convívio fraterno de jovens. P: Esteve alguma ligação à JOC ou à LOC? Também sei que havia alguns grupos. Victor Fernandes: Não, nunca estive ligado. Conhecia muito bem as pessoas de um lado e do outro, só que diretamente nunca estive ligado, nem à JOC nem à LOC, mas indiretamente estive ligado a toda a gente, porque muitas vezes ia para os encontros com eles. Apesar de não fazer parte, ia para os encontros com eles e sempre me dei bem com eles. P: Mas desculpe interromper, estava-me a contar das músicas do COVI Musica, isso foi em que ano que começou? Victor Fernandes: Foi no pós 25 de Abril e talvez já nos anos 80. Fins dos anos 70, princípios dos anos 80. Foi muito interessante. P: Tocava músicas revolucionárias e da Igreja? Victor Fernandes: Sim, foi assim que começámos, depois cantava-se uns fadinhos também pelo meio, até que depois voltámo-nos de vez para a música popular portuguesa e daí nunca mais saímos. P:E como é que era essa relação entre a música revolucionária e da Igreja? É interessante essa... Victor Fernandes: Sabe que as pessoas... A música revolucionária ainda estava um bocado na mente das pessoas e era bem aceite. A música da Igreja também era bem aceite no contexto, com as pessoas de então. Se fôssemos hoje a cantar qualquer coisa da Igreja e num lado qualquer, certamente ou não aparecia muita gente ou certamente eram capazes de aparecer e, não estando a contar com isso, eram capazes de dar uma assobiadela. Não faço ideia. As pessoas hoje são muito diferentes, já não é o que era, isso também devido um pouco à ciência. A ciência dá-nos hoje uma perspetiva diferente de algumas coisas, tentou explicar muita coisa, ultrapassou muita coisa, de facto, é verdade, e isso leva um pouco a incredibilidade das pessoas. E hoje as pessoas não ligam muito, pelo menos não estão a ligar muito, até que alguma coisa aconteça e vá tudo, de Santo na mão, às coisas da Igreja. Mas o que é certo e verdade é que as pessoas não se podem esquecer nem do passado, nem do que foram. E acho que devem dar também uma oportunidade à Igreja, que foi certamente onde nasceram e é certamente onde a maior parte pertence como baptizada na Igreja, certamente. P: A então essa dupla filiação, sente que faz mais parte de um clube do que do outro ou há uma identidade global do associativismo em que se insere sem fazer distinções entre as coletividades? Victor Fernandes: Claro, eu nunca fiz distinção entre coletividades. Sei que os mais velhos tinham uma certa rivalidade. Connosco não e o caso mais concreto é, por exemplo, eu telefono muitas vezes ao Francisco e o Francisco telefona-me a mim, como muitas vezes telefona ao Miguel e o Miguel telefona ao Rui, que está no Campos Melo, e muitas vezes ele também fala comigo. Portanto, eu nunca fiz distinções entre coletividades. E estava-me a lembrar do meu amigo, que vai ser amanhã entrevistado, que trocou a entrevista para eu ser entrevistado hoje, porque amanhã vou levar a vacina. Não posso lá estar, além do Ginásio, do Barroca, que também nos damos excecionalmente bem. Portanto, eu nunca vi diferença seja daquilo que for. Aliás, eu acho que o futuro das coletividades vai ser apoiarem-se umas às outras. P: Já existia essa colaboração entre as coletividades? Victor Fernandes: Talvez não houvesse muita. Havia coletividades rivais, como disse. Hoje não vejo rivalidade em lado nenhum. Mas, na altura, havia muita rivalidade. É muito provável que não houvesse muita cooperação umas com as outras. Hoje é totalmente diferente, estamos completamente à vontade. Embora uma pessoa sinta que alguns puxem mais do que outros por alguns cordéis. Não é isso que me vai a pôr contra seja quem seja, cada um mexe os cordéis que quer. Eu não me chateio absolutamente nada com isso. E se as pessoas forem soltas, certamente irão ter a mesma atitude que eu. E conheço algumas que são soltas também, quer dizer, têm a sua coletividade , mas quando toca a querer ajudar e quando pedimos auxílio, vêm também em nosso auxílio. E isso será o futuro das coletividades. Porque há de se chegar a um ponto, ou eu estou muito enganado, em que não vai haver gente suficiente para estar à frente das coletividades. E então, se as queremos ter abertas, temos que lhes pagar. Pagando-lhes, já não podemos comprar determinadas coisas e como não podemos comprar determinadas coisas, certamente temos que nos valer uns dos outros. Pedir à coletividade uma coisa que ela tem e depois também ceder alguma coisa que ela precisa. E podemos fazer isto entre coletividades. Eu não acredito que haja alguma coletividade que tenha tudo aquilo de que precisa. Porque não tem, certamente. E isto será um futuro próximo. Eu já não o vejo muito longínquo. Posso estar enganado, mas aquilo que eu vejo até agora, e devido a esta demografia, este movimento de pessoas para outros lados que nos deixa desmembrados, é muito provável que um dia vá acontecer, e se calhar mais breve do que aquilo que pensamos, o manter destas casas tem que ser remunerado. E isso leva certamente àquilo que a senhora disse e que eu também já disse, a que as pessoas se juntem mais para resolver os problemas momentâneos que tenham nas suas casas. P: Por falar em resolver as coisas em conjunto, logo a seguir ao 25 de Abril também se criaram nestas comunidades, eu acho que em articulação com as coletividades, outros tipos de associações, que eram as comissões de moradores, onde as pessoas se juntavam para resolver problemas dos bairros, teve alguma experiência dessa natureza? Victor Fernandes: Não, por acaso nunca tive, nem aquele que está mais situado no meio de um bairro. Há pelo menos três que estão no meio de um bairro, ou quatro, que é a Lapa, que é o Académico dos Penedos Altos, que é o Campos Melo e que é o GIR Rodrigo. São os quatro que estão mais inseridos, todas as outras estão um bocadinho mais afastadas do bairro. Embora o Oriental tenha muita coisa ali de volta, não era propriamente um bairro, porque havia se calhar mais gente ali que viesse para aqui do que fosse para lá. Mas eu nunca tive essa experiência de ver essa situação como pôs, nunca tive. P: E não acha que o facto da Covilhã ser uma zona predominantemente industrial ter quase toda a gente ligada à indústria, ter uma forte tradição operária, que isso marcou de certa maneira o associativismo e que justifica esta profusão de associações? Victor Fernandes: Eu acho que em princípio certamente marcou as coletividades. Sabe que eram essas pessoas que davam vida a isto tudo. Principalmente quando tinham lacunas que precisavam de ser colmatadas. O caso de em casa não terem aquilo que desejavam e que a coletividade tinha. Vivia-se tempos, poderá dizer-se, difíceis, mas que eram um regalo. Já agora deixo-lhe esta, era um regalo, para quem era um miúdo, ver as pessoas com a sua lancheira, quando tocava as cinco horas da tarde, e ainda havia algumas estradas que ainda eram em terra, e via-se os bandos das pessoas, pareciam bandos de andorinhas, muito engraçado. E eu era garoto e nunca mais me esqueço de ver aquelas saídas, depois pelo caminho, até se entrava numa taberna e bebia-se um copo. Era muito engraçado. Eu via, só que não bebia e ainda não estava a trabalhar na altura. E depois vinham para as coletividades. As coletividades eram a segunda casa das pessoas. Eu acho que até passavam mais tempo no emprego e nas coletividades do que propriamente em casa. Só havia uma coisa de mal. Era, na altura, haver poucas senhoras que iam à coletividade. Muito rara era a senhora que entrava na coletividade. E as coletividades podiam ter um dinamismo diferente se as senhoras tivessem posto também a sua cabeça e as suas mãos e todo o seu ser aqui ao serviço das coletividades. Não existia. E ainda hoje, penso que só há uma é que tem senhoras. Não, o Campos Melo tem e o Oriental tem, e penso que não há mais nenhuma. P: Mas antes do 25 de Abril elas não podiam participar, pois não? Victor Fernandes: Não participavam absolutamente em nada. Era injusto, acho que era injusto essa parte antes do 25 de Abril. Era um bocado injusto. Uma esposa que entrasse com o marido ainda podia ser tolerada, mas não podia estar muito tempo. Se uma senhora entrasse sozinha num café ou, por exemplo, aqui na coletividade ou noutra coletividade qualquer, isto caía o Carmo e a Trindade. Era muito complicado, porque havia um certo falatório. Depois eram apelidadas de muita coisa que nunca foram na vida. Isto era aquilo que tínhamos, quer dizer, era a cultura da época. Hoje faz-nos falta o contrário, faz-nos falta as mulheres e não as temos. Eu já não a tenho de maneira nenhuma, porque sou viúvo, mas fazem-nos falta as mulheres, porque têm um sexto sentido às vezes para determinadas coisas que os homens não têm. E isso era uma mais valia para qualquer coletividade ou para qualquer organismo. Não é que ninguém esteja por cima de ninguém, somos todos tratados por igual. Eu sou o presidente, mas estou a par dos outros colegas todos. Não sou mais que ninguém, nem pretendo ser. E fazia-nos cá falta as mulheres. P: E não houve nenhuma altura em que as mulheres tivessem participado mais? Victor Fernandes: Houve, principalmente no tempo das marchas populares. Nós também fomos dos clubes que ganhámos mais marchas populares e não ficávamos a dever nada a Lisboa. Digo-lhe que isto estava já num patamar de tal maneira que teve que acabar, porque as pessoas gastavam quatro a cinco vezes mais do que aquilo que iam receber da edilidade covilhanense. Chegou a um ponto que tinha de ter uma rotura qualquer e acabou. E nós víamos aqui as senhoras, não só para dançar, como também para arranjar os fatos e para arranjar essas coisas todas. As pessoas davam-se como voluntárias, por isso era magnífico ver as pessoas todas a trabalharam, andarem aqui dois ou três meses a ensaiar, era lindíssimo. E sabe que as senhoras também trazem muita gente atrás para elas, quer dizer, com elas vinham, os filhos, vinham os netos e isso era uma mais valia para qualquer coletividade. Era um sonho tornado realidade durante esses três meses, esta casa sempre foi muito movimentada, mas durante esses três meses isto extravasava tudo, nem havia quase espaço para as pessoas, porque a sede era muito mais pequena do que agora, agora está em três andares. P: Qual é que foi o ponto, em que década é que foi o ponto alto das marchas? Victor Fernandes: Eu não tenho já bem presente isso. Mas já foi, já foi neste século. Portanto, não faço ideia já do ano, porque isto parou há uns tempos. Agora é que andam a começar novamente. Vamos ver se pega, mas há algumas pessoas que já se desabituaram. E algumas pessoas que já não as temos. Como eu disse, já vivem noutros sítios e não estão para aqui andar de caminho. Isso complicou tudo. P: Qual é que a década, o período em que a atividade associativa foi mais exuberante, em que as pessoas participavam mais? Victor Fernandes: Sabe, em questão de participação, era mais nos primórdios. Porque isto era um clube de sócios. Ainda hoje é, embora abramos as portas a toda a gente e demos os mesmos direitos a toda a gente. Mas dava gosto ver centenas de sócios a trabalhar para um bem comum. Hoje, se virmos meia dúzia de sócios, já ficamos contentes. P: Que idade é que tinha nessa altura em que centenas de sócios estavam aqui? Victor Fernandes: Então, eu devia ter, devia de ser ainda garotito. Eu não podia estar à noite, devia de ser ainda garotinho, às 10h tinha que ir para casa, porque nos punham na rua e às vezes mais cedo. Eu era um garotito, ai com os meus 10 anitos. Dava gosto ver toda esta movimentação e não era só de volta do copito, é que havia muita coisa que se pudesse fazer. P: Como por exemplo? Victor Fernandes: Eu dou-lhe, por exemplo, as marchas populares, em cada uma delas as marchas populares davam muito trabalho. Vinha muita gente, isto era uma escola. Ténis de mesa, havia muita gente no ténis. Tínhamos pool, tipo snooker mas já jogado de uma maneira diferente. Tínhamos tiro ao alvo e ainda temos alguns federados que estão inscritos por nós. O que é que uma pessoa quer mais, meu Deus? Tínhamos o andebol, isto tudo ao mesmo tempo, movimentava muita gente. P: Isso tudo quando tinha os seus 10, 11 anos, ou seja, mais ou menos no 25 de Abril, nasceu em 1963? Victor Fernandes: Por aí. P: O 25 de Abril veio fomentar uma maior participação? Victor Fernandes: Não, penso que não. Penso que não. O 25 de Abril, enquanto as pessoas lutaram por novas regalias foi muito intenso. As pessoas aqui vinham muito. Depois de terem certas regalias, as pessoas começaram-se a afastar mais. Como já lhe contei há pouco, quero dizer, já têm a sua televisão, já têm a sua Internet, têm outras coisas dentro de casa que não tinham anteriormente. P: Mas quando se fala em lutar pelas regalias fala especificamente, por exemplo, naquelas greves, dos mil escudos por exemplo? Victor Fernandes: Sim, precisamente, e levaram a alguns aumentos, que levaram a algumas regalias sociais que hoje estão-se a perder todas. Mas na altura conseguiram-se várias regalias para os trabalhadores. Hoje isso é impensável, porque as pessoas não são unidas, como eram aquelas antigamente. Nós hoje, se falarmos numa greve, eu não estou a ver as pessoas a aderirem à greve. Se for na função pública, sim, Mas no privado, eu não estou a ver as pessoas a aderir à greve. Porque as leis, entretanto, foram retrocedendo e as pessoas também têm um certo receio de se manifestar. Portanto, eu já não sei que ditadura é que é pior, se era a ditadura do passado, se é a ditadura do presente. Não lhe sei dizer muito bem. Eu, como me afastei assim bastante da política, e não quero nada com isso, não sei dizer muito bem. Antigamente, quem não molestasse o governo podia fazer tudo e não tinha problemas. Hoje pode-se fazer tudo e podemos levar com alguns problemas pela frente. Portanto esta juventude que se cuide e que se una. P: Essas greves, por exemplo dos mil escudos, refletiam-se nas coletividades? Victor Fernandes: Refletiam-se, as pessoas quanto mais ganhavam mais também gastavam por aqui. E quanto mais regalias tivessem, notava-se, notava-se bem. Até que as regalias já são tantas que já não se nota bem. Há dois opostos. Quando não se tinha isso, foi tendo. Foi-se aplicando, mas agora que se tem de mais, não se aplica ou quase não se aplica e isto é quase um revés. Estamos a voltar atrás nalgumas coisas, mas não naquilo que era. P: Mas diga-me uma coisa, aqui os sócios deste eram maioritariamente operários e envolveram-se nessas lutas, como é que isso se vivia aqui dentro? Victor Fernandes: Não, dentro da coletividade, não se vivia isso. Não havia discussões sobre isso nem sobre grandes políticas, porque regra geral, também todos coincidiam mais ou menos à mesma política. Esta era uma das coletividades que era pró-socialista, também porque era de operários. Não havia tanto aquela patente comunista, embora houvesse alguns, mas respeitavam-se todos uns aos outros. Da classe mais à direita não tenho conhecimento, principalmente naquela época. Hoje, eu acho que são todos cada um pior que o outro. Eu acho que as pessoas hoje nem sequer discutem isso. Já nem sequer há uma certa ligação, nem vejo sequer ninguém a falar sobre um assunto político, seja ele qual for, a não ser comentar alguma coisinha que se passa ali na televisão. Uns estão a favor, outros estão contra, mas dali também não passa. P: Acha que a memória destas coletividades, esse passado, o facto de ter sido tão importante na vida das pessoas aqui da cidade, como é que essa memória é transmitida? Acha que os mais novos conhecem essa história? Victor Fernandes: Eu fui contando algumas coisas às minhas filhas, mas se quer que lhe diga frutos também não vejo. Porque nenhuma delas é muito amiga da coletividade. Quando eu às vezes venho: “pronto, lá vais tu.” Às vezes têm esse tipo de atitude, principalmente a mais velha. A mais nova nem tanto. Portanto, eles hoje têm uma maneira diferente e quando às vezes começamos a contar algum bocadinho de história da vida, este pessoal é muito mais aberto e às vezes o que tem na cabeça também o tem logo no coração. Nós éramos um bocadinho mais acanhados, nem que fosse para não magoar as pessoas. Nós não dizíamos aquilo que pensávamos. Esta gente hoje diz tudo. E como diz tudo, às vezes, se uma pessoa for contar alguma coisa, às vezes até se tornam um bocadinho inconvenientes. Pronto, ou eles ou somos nós. Não sei se eles não estão minimamente preparados para a história, para a história da vida. P: Aqui nos órgãos sociais, qual é que é mais ou menos a média de idades? Victor Fernandes: Já deve andar nos 60’s. P: Mas tem alguns jovens? Victor Fernandes: Tenho aqui ao pé de mim três jovens. P: E esses jovens estão interessados ainda no associativismo? Victor Fernandes: Ouça, eu também ando nisto que é para ver se lhes transmito esse bichinho, que é também para eu chegar e descansar. Acho que todos temos direito e às vezes estar tempo demais num certo sítio cria determinados hábitos e podem ser até prejudiciais. E não quero chegar a esse ponto. Queria que alguém viesse, um sangue novo que desse aqui um ar mais purificado à casa, mesmo que nós tivéssemos por trás a ajudar. Queria que essa gente, depois de moldada, ficasse a tomar conta. E é isso que eu sempre tentei. Em duas vezes que já fui presidente desta casa, da direção, de outras coisas já tinha sido. Mas da direção, sempre tentei meter jovens, para depois eles ficarem com a sucessão. Da primeira vez, tive êxito, porque ficaram pessoas novas na direção a seguir e com alguns cargos de responsabilidade. Desta vez, estou a rezar para que isso aconteça, mas desta vez também já estou a demonstrar um certo cansaço. Não é só o crer, o andar aqui, mas também já estou a construir um certo cansaço. Queria que alguém tomasse conta desta casa, porque acho que já é tempo. Eu acho que é tempo, porque quando não estou aqui, estou noutro lugar qualquer. E agora já são muitos anos, já vai para seis anos. P: E estes jovens que estão agora na direção, o que que acha que os motiva a estar agora no associativismo? Victor Fernandes: Um deles nasceu também assim por aqui. É relativamente novo. Mas nasceu por aqui e foi aqui que jogou futebolzito e foi aqui que se desenvolveu. Portanto, esse tem capacidade já no momento, penso eu, para presidir a uma coletividade. Tem já capacidade para isso. Tem uma pessoa a trabalhar mais diretamente com ele, que que lhe fazia uma tesouraria excecional, porque era um licenciado. E nós sabemos a tesouraria dos anos, embora hoje já não seja como era. Hoje é tudo através da contabilidade organizada, já não há contas de bolso, nem contas de gaveta, isso terminou. Isto é tudo contabilizado ao milímetro, vai tudo para as finanças, tudo direitinho. Hoje não há, não há esse tipo de contas, mas nós sabemos fazer isso pelos anos que temos e também porque a contabilidade na altura, uma pessoa faz isso bem, mas com um licenciado em gestão, certamente se fará melhor. Eu hoje não tenho um POC na cabeça, quer dizer, não tenho um plano oficial de contabilidade na cabeça, que esta gente mais nova certamente terá. Terá e pode pôr as suas capacidades à prova. Há um outro que é excecionalmente bom, não para gerir, mas é excecionalmente bom para olhar para qualquer coisa e ver aquilo que está bem e que está mal. Também um jovem que se ajeita já muito bem, seja naquilo que for, seja na eletricidade, seja na carpintaria, seja na construção, seja naquilo que for. Temos aqui um outro que é excecional. Agora precisamos que comecem também. Certamente ainda não será já nos próximos tempos, porque não estou ainda a ver, um ainda está estudar, outro está a tirar um mestrado, portanto, mais um anito. P: Qual é que aha que é o futuro do associativismo? Victor Fernandes: Eu vejo o futuro muito negro, sabe, porque as pessoas hão de chegar a um ponto que não têm capacidade para dar mais. E ao não ter capacidade para dar mais, eu já disse há pouco, se querem que isto continue, o mais certo é terem que pagar. Alguém que saiba gerir uma casa. É isso, já não vou ser eu, já vai ser outra pessoa qualquer, mas eu acho que o futuro passará por aí. Ter alguém a dirigir e esse alguém, certamente, tem que ser remunerado. De resto, não estou a ver grande futuro, a não ser que haja um revés muito grande e as pessoas comecem outra vez a necessitar destas casas. Nem que seja transformarem as casas num centro político, não sei. Mas, se precisarem, são capazes de voltar, se não precisarem, não estou a ver. Pelo menos duas ou três gerações foram completamente desviadas do que eram os contextos sociais. Aquelas belas virtudes que nós tínhamos, que os nossos pais nos incutiram, hoje não têm. Portanto, perdemos pelo menos três décadas. E isto só lá mais para a frente é que vamos fazer aqui isto dar. Eu, certamente, já cá não estarei. Mas quem cá estiver, boa sorte! P: Então e diga-me, o associativismo marcou a sua vida? Victor Fernandes: Marcou. Sabe que eu, além de praticamente crescer no associativismo, também marcou a minha vida de toda a maneira e principalmente, antes sim, mas principalmente, depois de 1988. Foi quando me casei, em 1988. A minha esposa dava-me um certo à vontade, porque ela também gostava. Ela chegou a ser diretora desta Casa, já me estava a esquecer. Mais duas meninas, na altura. Agora é que não temos, já foi em 1990, porque coordenavam as marchas populares com a direção. Eu, nessa altura, estava de fora, estava na Comissão de Festas para angariar dinheiro para as marchas populares e também fazia parte da Assembleia Geral. Em 1988 foi mais profundo. Estava aqui com a minha esposa e era totalmente diferente, era um apoio totalmente diferente. E mesmo depois dela sair daqui, quando começou a ter as filhas. Mesmo depois dela ter saído daqui, nunca me disse, ou nunca me pôs qualquer tipo de entraves, porque ela também gostava disto. Todos estes tempos foram marcantes, até ao desaire da Covid 19. Isso foi desastroso, vi-me aqui um bocado perdido na noite. Totalmente diferente, não vinham as pessoas, as contas caíam. Foi um pouco aflitivo. Se estivesse uma pessoa menos paciente à frente, não sei se ultrapassaria determinadas situações. Eu cheguei a um ponto que não tinha um cêntimo na caixa. Eu dizia: “Onde é que eu vou arranjar dinheiro para isto?” Hoje está mais ou menos colmatada. Mas foi doloroso. E nunca me senti tão fraco como agora, neste tempo. É engraçado que eu pensava que, quando começasse a desconfinar, as pessoas tinham aprendido alguma coisa com isto. Mas mais uma vez, como me enganei tantas vezes na vida, mais uma vez me enganei. As pessoas continuam a ser individualistas, continuam a ser comodistas, continuam a se servir das coisas e não ligar nenhuma ao que é o associativismo. P: O que é que foi a coisa mais importante que aprendeu com esta experiência associativa ao longo da vida? Victor Fernandes: Aquilo que eu aprendi foi a envelhecer aqui e a saber mais. Isto dá-nos uma estaleca diferente para enfrentarmos determinadas coisas. Foi aquilo que talvez mais me tenha marcado. Porque tudo o resto, todas as atividades e tudo isso já lhe falei atrás. Mas aquilo que de facto mais me marcou foi envelhecer aqui, o que me tornou mais aberto para enfrentar as situações que venham por aí, e já vieram algumas.