Itens
Tema é exactamente
Presente e futuro do associativismo
-
3 de junho de 2021
Rui Mendes
P: Então agora só para ficarmos com o registo do seu nome e naturalidade. Rui Mendes: Rui Mendes, natural da Covilhã, nasci e fui criado aqui no bairro municipal. P:E esta propensão para o associativismo é de família? Rui Mendes: Sim, é um pouco, porque também a nossa vivência passou pelo associativismo, passou por estarmos aqui nesta casa, que me viu crescer e que ganhámos a paixão, porque isto vai de família e vai precisamente pelo bairrismo que existia à volta desta coletividade, isso acaba por nos envolver também. P: Em que ano é que nasceu? Rui Mendes: Em 1970. P: E estudou aqui nesta escola? Rui Mendes: Estudei nesta escola, exatamente, até à quarta classe. P: E depois, qual é que foi o percurso profissional? Rui Mendes: Tenho o 12º segundo ano de escolaridade, enveredei pela área comercial em que comecei a minha área profissional, na área de informática, em 1989. E depois tive uma atividade também por conta própria, na área dos equipamentos hoteleiros. Neste momento, estou na área da construção civil, a nível de venda de materiais para a construção civil, numa grande empresa nacional. Felizmente, tive a sorte de abraçar esse projeto e é uma empresa que neste momento já tem uma faturação muito grande, tem 12 armazéns a nível nacional, o que me tem dado um élan, a nível de experiência também, para poder com a minha experiência ajudar o Campos Melo a vingar. Porque de facto foi… nós estamos aqui há dois anos, esta direção, e chegámos aqui com uma situação difícil, financeira, e ao fim de dois anos eu posso dizer-lhe, é público, porque tivemos uma assembleia há cerca de duas semanas, onde divulgámos os resultados, posso dizer que financeiramente estamos muito saudáveis. Temos sim, neste momento, um problema que é o que está a atravessar a nossa sociedade e agora temos que dinamizar, quando pudermos fazê-lo, para termos pessoas, porque é um pouco aquilo que se está a passar aqui neste bairro, a desertificação, pelo que vamos ter que arranjar maneira de dinamizar possivelmente o espaço, que é aquilo que falta neste momento. Creio que temos que trabalhar um bocadinho agora nesse sentido e esperar que a pandemia nos deixe fazer alguma coisa. P: É casado? Tem filhos? Rui Mendes: Sim, sou casado, tenho dois filhos. Na direção também está minha mulher, está um dos meus filhos, o mais velho. O mais novo também já nos dá uma mãozinha aqui quando precisamos, em casa e aqui. O mais velho, posso dizer, que quando eu participei aqui numa direção em 2010, que por conseguinte foi a minha primeira direção - sempre estive ligado ao associativismo, ao ténis de mesa, porque aprendi também aqui o ténis de mesa e depois fui impulsionador também de uma secção em que dávamos formação aos jovens e tudo, ao Covimúsica, desde há muito tempo, e de facto, em 2010 participei pela primeira vez numa direção - e que o meu filho mais velho foi um dos impulsionadores a nível da área digital. Acabou por nos ajudar a transformar um bocadinho esta fase do papel e do que era o antigamente e transformar um pouco a evolução que estamos a ter hoje, daí que ele também já está enraizado aqui nisto e acredito que vai continuar no futuro a ter uma ligação muito forte aqui ao Campos Melo. Basicamente, neste momento o que estamos a tentar fazer é precisamente continuar a engrandecer esta casa, fazendo com que o Campos Melo possa vir a ser representado nas marchas populares, porque eu acho que nós sempre tivemos um bom percurso, ganhámos as marchas populares por duas vezes e que na cidade da Covilhã é um ex-libris também, que este ano não vai acontecer. Para além disso, temos o Covimúsica que está no ativo, temos neste momento o zumba, que é uma atividade de senhoras que vêm aqui duas vezes por semana, o que é excelente. Temos uma secção de matraquilhos, em que temos atletas federados que no ano passado foram campeões nacionais de associações, o que foi muito bom e que estamos a apoiar. E o objetivo será a passar pela formação na área dos matraquilhos também, captar jovens, o que é fundamental, porque nós temos aqui bem perto de nós uma escola primária, em que o objetivo será no próximo ano, isto é, se nós continuarmos, porque vamos ter eleições dia 19 deste mês, será captar precisamente esses jovens para virem para aqui. Até, por conseguinte, poder ter algum protocolo com a escola para podermos criar alguma dinâmica, não só nos matraquilhos, mas também no ténis de mesa, porque foi sempre uma atividade desportiva que teve também muito sucesso aqui. Outrora, de facto, houve muita coisa. O teatro também teve aqui momentos áureos, muito, muito bons, o futsal, as marchas populares é claro, que envolvia muita gente e que eu tenho muita pena que tenha havido agora este interregno todo, porque movimentava muito. Para já, de facto, é cativar as pessoas para elas voltarem. P: Estávamos há pouco a ver que as mulheres só começaram a participar após o 25 de Abril. Que outras grandes transformações é que houve? Era criança, mas se calhar lembra-se… Rui Mendes: É assim, a transformação que eu notei foi que de facto a participação das mulheres, que é fundamental. E eu posso-lhe dizer que nós, nesta direção inicial, o meu objetivo, quando quis fazer uma equipa, foi também olhar muito para as mulheres, porque elas trazem-nos outra perspetiva de ver alguns assuntos que é necessário nestas casas haver. Para além disso, têm maior sensibilidade. Também às vezes é necessário um esforço maior por parte delas, porque às vezes é preciso limpar. É preciso estar mais atento a certos pormenores que nós homens passamos ao lado. E aqui na nossa direção nós tivemos aqui, neste momento são cinco mulheres que estão. Apenas já, infelizmente, duas no ativo, as outras três abandonaram este projeto, porque às vezes... é pena que isso aconteça, mas vai das pessoas, há umas que têm mais motivação do que outras para estar a enfrentar estes desafios. Eu penso que fundamentalmente a evolução que estamos a ter e ela está a provocar alterações na nossa sociedade. As pessoas estão a ficar mais fechadas. E isto está-nos a dar que pensar muito, como é que nós vamos fazer para continuarmos a criar atividade numa casa destas, que está na zona mais a norte da cidade, quando a cidade está a crescer para baixo. E como é que nós vamos puxar as pessoas para aqui? Eu, por exemplo, eu neste momento vivo a sete quilómetros daqui, eu tenho que me deslocar aqui de propósito, ou seja, se estivesse no bairro e se houvesse gente aqui no bairro era muito mais simples. O que é que vamos ter que fazer? É uma bela questão. É uma bela questão que para já ainda não consegui responder na totalidade. Porque tenho ideias, temos ideias, se nós ficarmos por aqui, eu teria muito gosto em continuar, mas de facto a minha vida profissional às vezes não permite. Mas dentro do que é possível, continuo a estar e eu acho que neste momento o grande desafio é trazer a juventude para estas casas. Eu acho que é o maior desafio, porque a juventude é que vai ser o futuro e aí é que parte precisamente a nossa ideia de irmos tentar captar essas camadas jovens. Porque, aliás, há outras associações que já o estão a fazer, e bem, e temos que tomar como exemplo, precisamente isso que se está a passar com eles, porque em algumas conversas que temos tido, a experiência deles diz mesmo isso, que é necessário trazer a juventude agora para esses projetos e envolvê-los. Penso que é por isso mesmo que vai passar este desafio. Agora se vamos conseguir… P: Em relação àquela questão da memória que me interessa perceber, como é que é transmitida a memória destes tempos, que estes senhores nos estiveram a contar, acha que esse legado é passado, ou seja, eles contam, vocês absorvem? Rui Mendes: Sim, quem está aqui diretamente ligado com eles consegue absorver essas histórias. Mas muitas delas perderam-se, porque eles vão desaparecendo, esses homens que estão aqui e que estiveram aqui muitos anos a fio e que os registos começam a ser menores. E como também não há muita gente a dar continuidade a este trabalho, porque estamos a ver a dificuldade que existe em captar pessoas para estarem à frente destas associações, o que também vai demostrando algum desinteresse por parte das pessoas e elas acabam por não já não olhar para isto como algo que tenha que ser preservado, mas como algo que está e que se calhar vai continuar a estar, mas começa a fazer parte do passado. É pena que isso aconteça. Nós tínhamos um objetivo no ano passado de fazer precisamente uma atividade para tentar reavivar as memórias das pessoas, convidarmos os sócios a vir ouvir a estas histórias, mas eu penso que se calhar é um desafio para o próximo ano ou para os próximos dois anos. Fazer algo do género e aproveitar talvez o mês do aniversário para que se possa fazer um dia dedicado precisamente a isso, para reavivar as memórias daqueles que já as viveram. E então talvez passar precisamente essas mesmas memórias para aqueles que ainda estão aqui e que possam dar continuidade e explicar aos filhos como é que isto era. É, mas, de facto, está-se a perder muita informação, sem dúvida. P: E há assim alguma história marcante que seja simbólica, ou seja, se há algum acontecimento que seja mais conhecido? Rui Mendes: Da coletividade há, o teatro, por exemplo, uma peça de teatro que é a Casa de Pais, que é uma peça que foi apresentada aqui nos anos 50, porque é uma peça do Ruy de Carvalho, onde interveio o Ruy de Carvalho nos anos 40 e pouco. Eu acho que foi um momento áureo aqui e daí o Ruy de Carvalho também ter vindo aqui quando, há cerca de sete, oito anos, o teatro aqui voltou a reativar essa peça. Foi feito o convite precisamente ao Ruy de Carvalho para estar presente numa sessão que aconteceu no teatro da Covilhã. Esse foi um dos grandes momentos, porque de facto havia aqui a cultura. Esta foi uma casa dedicada ao início essencialmente à cultura, à educação, em que o objetivo era precisamente implementar essas ideias, esses valores e era aqui que as pessoas se entretinham e que faziam do seu tempo livre um bocadinho, o querer estar na cultura. Tinham também um rancho folclórico. Ou seja, esse foi um dos momentos altos. Um dos outros, para a própria associação, foi um objetivo que que já se tinha há muito tempo, que era ter um ringue, porque o Campos Mello, a dada altura, a nível regional, teve uma equipe de futsal que dominou durante dois, três anos, dominou futsal em termos de regional. E um dos objetivos na altura era precisamente, e que nós não tínhamos, era ter esse espaço, que hoje é um espaço que, infelizmente, não está devoluto mas não tem atividade e que havia necessidade de dinamizar. Esse foi o momento alto, foi quando conseguimos atingir esse objetivo, e que agora, costumo dizer, é um elefante branco que ali está. É pena que assim seja. P: Fale-me mais um bocadinho desta questão da cultura. Acha que isso se deve por exemplo à tradição operária? Rui Mendes: Sim, também. P: Como é que essa tradição operária e esta homogeneidade, o facto de quase toda a gente, pais, filhos, mulheres, trabalharem na indústria, marcou o associativismo? Rui Mendes: Marcou, porque nós... a casa surgiu precisamente de cinco pessoas que se juntaram aqui numa tasca, numa tasquinha, que eram operários, tiveram por ideia precisamente criar este espaço onde as pessoas poderiam então conversar, onde poderiam ler, onde poderiam dinamizar as atividades culturais. O movimento operário teve uma importância brutal, tanto é que esta sede está assente num terreno que foi doado por uma família, que era a família Campos Mello, que era uma das famílias mais ricas da cidade e que tinha precisamente uma... Eles eram pessoas muito humanas, tanto é que abraçaram este projeto, dando o terreno, precisamente porque era para ser para aquele fim. E tanto é que a família Campos Melo foi aquela que deu também os terrenos para a escola secundária Campos Melo. Pronto e aí o operariado, sem dúvida, nós estamos aqui, como podemos ver ainda quando olhamos aqui para muitas fábricas devolutas. Porque esta era a zona onde havia mais fábricas. As fábricas implantavam-se nas zonas da descida da água, porque era para aproveitarem a água que existia para fazer a lavagem das lãs, etc. E de facto aqui havia precisamente muita gente, muita gente que estava ligada a esse setor e que sentia necessidade de ter que vir para um espaço onde podiam ouvir rádio, jogar às cartas e onde podiam vir conversar. E depois, por inerência, começaram a surgir precisamente o teatro, os ranchos. Faziam aqui atividades que eu ainda há tempos ouvia destas pessoas mais antigas, que eram os bailes, que eram os chás, eles chamavam os chás dançantes, que eram interessantíssimos e que fazia com que... Vinha gente de toda a cidade para o Campos Melo. E gostei muito de ouvir porque são aquelas coisas que vão ficando precisamente aquilo que tinha a ver com a componente cultural que existia aqui e que se implementou. De facto acho que o operariado...eles tinham a necessidade, eles tinham necessidade de se cultivar. E isto é engraçado. Como é que é possível? E olhando para esta casa conforme ela está. Como é que é possível as pessoas, que tinham na altura dificuldades financeiras enormes, porque os ordenados eram baixíssimos, terem uma dinâmica, uma vontade, um querer para erguer uma casa com esta dimensão? Sem dúvida que isto é de valorizar, porque, por isso é que eu tenho dito, e isto às vezes cria alguma emoção, porque nós e quem vive esta casa tem que pensar que ela não pode morrer, precisamente para nós podermos valorizar todo esse esforço das pessoas que durante estas gerações todas trabalharam aqui com afinco e de uma forma voluntária. Porque o Campos Mello teve aqui um período difícil, com alguns altos e baixos e até com situações muito delicadas, a ter que encerrar portas e foi agora, com a nossa direção. Tivemos aqui um período muito complicado e eu falo nisto porque doeu-me muito ter que ter esta casa fechada um mês. E não estou a falar do período pandémico, porque isso foi forçado. Foi num período em que nós nos vimos aqui numa situação financeira difícil. Não tínhamos ninguém para ter o bar aberto, porque o bar é que mantém a casa aberta. Ainda hoje estamos com uma situação delicada, em que não conseguimos ter o bar aberto para além das cinco, porque não temos gente devido a esta desertificação. Mas eu queria chegar a dizer que esta casa não pode fechar, ela tem 80 anos, e neste momento acredito que não vai fechar. Eu posso afirmar isso, não vai fechar. Agora, é preciso haver gente que se dedique e continue a pensar que isto é uma história imensa e que não pode fechar portas. Daí que nós continuamos aqui a trabalhar, esforçando-nos um bocado e apelando aos sócios que também nos ajudem. E é isso é que é fundamental. Felizmente, eu tenho que dizer isto, temos tido por parte dos sócios, que tivemos aqui uma ação junto deles e ainda não terminamos, em que foi solicitado que eles fizessem um aumento de quota voluntário para continuarmos a manter esta casa de pé e eu digo que isto é brutal. As pessoas sentem a casa e todas elas quiseram ajudar, dentro das suas possibilidades. Não houve ninguém que dissesse que não queria ajudar. E isso é sinal de que há vitalidade. É sinal de que nós temos que continuar a fazer esse trabalho. Por isso cá estaremos. P: Só mais uma questão, estava a falar e nós temos estado a falar em torno mais dos ativistas principais, depois há toda uma massa associativa e pelo que eu percebi das suas palavras, a questão da história, da tradição, tem um peso grande até para motivar a manter as portas abertas e perpetuar esta tradição. Acha que essa história, essa tradição também pesa para a massa associativa, no sentido de ajudar a manter, ou seja há este sentimento que é algo que é preciso ser preservado? Rui Mendes: Sem dúvida. E digo isto porquê? Porque o Campos Mello, ao ter 600 sócios e como eu disse, o bairro está desertificado, ou seja, não há aqui 600 pessoas. E o Campos Mello é abrangente, porque temos sócios em toda a zona da cidade da Covilhã, no concelho da Covilhã existem sócios por todo o lado, por conseguinte até em freguesias que estão anexas. O que diz bem do movimento associativo que o Campos Mello tinha. Para além disso, e segundo rezam as crónicas, o Campos Melo chegou a ter perto de 3000 sócios, ora o que dizia bem da sua dimensão. E eu creio que sim, creio que precisamente esta vontade dos sócios em querer manter o Campos Mello de pé e de portas abertas é importantíssimo. Nós também estamos a desenvolver esse trabalho, porque acho que é fundamental olhar para eles como algo muito importante. Acho que é a base e o trabalho que estamos a fazer é um pouco chegar mais perto deles. Como? Nós, neste momento, optámos por enviar mensagens, por isso é que estamos a fazer até a atualização do ficheiro para termos os contactos, porque hoje em dia, por mensagem chega-se muito facilmente, não podemos ir por Facebook, etc., porque não conseguimos chegar aos sócios mais antigos. Mas hoje, felizmente, até os antigos já têm um telemóvel e muitos deles já conseguem ver essas mensagens. E o objetivo é precisamente esse, é dizer-lhes que temos a atividade A ou B ou C e é importante para eles poderem saber e dizer assim, e lembrarem-se: “Epá, olha o Campos Mello vai ter isto” e eventualmente eles até virem aqui, mais que não seja para tomar um cafézinho. E é isso que estamos a trabalhar e é isso que é necessário neste momento. Trabalhar para que essa informação chegue junto deles para que eles não abandonem esta Casa e para que sintam esta Casa como deles. Porque não podem ser apenas um número, não podem ser apenas uma pessoa que está a contribuir com a sua quota e que o Campos Mello em si, quem está aqui a gerir os destinos da casa, se esqueça deles e os interprete como um número. Eu acho que o caminho tem que ser precisamente esse, dar a importância que estamos a dar a quem passou cá e importância a quem ainda cá está, que continua a ajudar, acho que é este contrabalanço que faz com que olhemos para o futuro. Porque a história faz parte da casa e o futuro faz parte de quem ainda continua pronto. P: Muito obrigada. Só para efeitos estatísticos, mais uma pergunta que estou a fazer a toda a gente: professa alguma religião? Rui Mendes: Sim, eu sou católico, não praticante neste momento, mas sou católico. P: E tem filiação em algum partido político? Rui Mendes: Não. -
2 de Junho de 2021
António Monteiro
P: Onde é que o senhor nasceu? António Monteiro: Foi aqui na Covilhã. P: E nasceu em que ano? António Monteiro: Nasci em 1936. Freguesia de São Pedro e foi aí que eu fui criado. E a partir daí, eu tive um acidente, é a realidade da minha vida e o que foi a minha vida. Foi o nascimento e aos nove anos tive um acidente. E muita gente que não sabe ou não se apercebe, porque eu uso óculos e não se apercebe que eu… De facto, tenho assim ideia… Mas nem vale a pena adiantar mais, porque… pronto. A partir daí é, é claro, tive uma vida, fui criando, fui subindo na vida, claro. Como garoto, eu cheguei aos nove anos na escola e tive um acidente e depois, a partir daí, dos 9 anos, a escola para mim parou, derivado ao acidente que tive na vista. Comecei a trabalhar, o tempo foi passando e com dificuldades naquele tempo, dificuldades que havia naquele tempo. Nunca nos faltando nada, os meus pais sempre trabalharam e nunca nos deixaram faltar nada, porque éramos sete irmãos. Nunca passámos fome, graças a Deus, e só cá estamos dois agora, éramos sete e já morreram cinco. Encontro-me eu e o meu irmão. Portanto, nesta vida e na situação que está agora, que é muito complicada. No entanto, coletividades, havia muitas coletividades, muitas cá na Covilhã, tinha umas 30 e tal. P: Diga-me só primeiro: começou a trabalhar em quê? António Monteiro: E comecei a trabalhar, eu comecei a levar os almoços para as fábricas da indústria. Pronto, eu vou responder à senhora. O meu trabalho, comecei a trabalhar aos 12 anos, comecei a levar os almoços: passava aqui, ia para o Ernesto Cruz, para o Fiadeiro, que eram as fábricas dos lanifícios, levava dois almoços para ganhar algum dinheiro. Aos 12 anos e de chinelos em cima da neve, e a chover, muita chuva, muita chuva e neve e então digo assim. E claro, eu sempre fui um indivíduo que gostei de trabalhar e pronto, deixei de trabalhar aos 65 anos. Pronto, eu quando me aposentei… mas já lá vamos, depois… É claro, eu comecei a trabalhar e andei a trabalhar, para cá para lá. Fui evoluindo na vida, fui evoluindo, depois fui mudando, digo assim: isto não pode ser, tenho que arranjar um trabalho – e arranjei logo para as fábricas. Fui, fiquei lá no Fiadeiro, portanto na fábrica O Fiadeiro, a trabalhar. Deram-me logo trabalho lá e estive lá, estive lá seguramente meio ano, seguramente meio ano. É claro, naquela altura quem desse mais dinheiro é que a gente… Queríamos mais dinheiro e então a gente mudava. Naquele tempo, isso naquele tempo… Arranjei então [trabalho] na tinturaria. Fui crescendo, fui crescendo, arranjei para a tinturaria. Estive lá também os dois anitos. Fui mudando, mudando para outras fábricas: trabalhei na Carlos Alberto Correia, trabalhei na recauchutagem de pintado. Também deitava sempre a mão a tudo, não é, porque eu sempre gostei de trabalhar. E o último trabalho… Portanto, eu fui, na questão de trabalho, já devido à minha maneira de ser… nunca deixando as coletividades, coletividade que eu me lembro que tinha lá à porta, que era a Estrela de São Pedro, chamavam-lhe o Estrela São Pedro. Comecei a jogar à bola e praticava lá os jogos da sueca e o dominó, com a malta que se juntava ...É claro, as coletividades para mim, foi… Ainda hoje sou um perdido pelas coletividades. E porquê? Porque eu gosto muito e porque eu sou um menineiro. Gosto muito das crianças e dou-me bem com as crianças. Não sei porque sim ou porque não. Eu tenho três netos, tenho dois filhos que… Já lá vamos... Na Carlos Alberto Correia, voltando à fábrica, aí é que eu me casei. Trabalhava na Carlos Alberto Correia, casei-me aí em 1967. E, é claro, já estava melhor, mas depois daí casei-me, fui jogar à bola, chamaram-me outra vez para ir a jogar bola, porque era bom jogador. Então continuei na tinturaria, de noite, da meia noite para o dia: mais dinheiro, mais dinheiro à hora. Todo contente, todo contente, já casado. P: A sua mulher também trabalhava na indústria têxtil? António Monteiro: Sim, a minha esposa também trabalhava, trabalhava no Ernesto Cruz. Casei em 1967, comecei a namorar a minha esposa em 1965. Em 1967 casei. Ela trabalhava no Ernesto Cruz, e eu lá consegui, a minha mulher era doméstica e eu tirei-a de doméstica e pu-la na fábrica, até as empresas fecharem. Depois, então, ela saiu da Ernesto Cruz. Depois, então, naquele tempo já havia a Universidade, e então consegui metê-la na Universidade, na cozinha. Porque a minha esposa era doméstica, trabalhava de doméstica, e então sabia fazer de tudo, e eu consegui metê-la na cantina da Universidade. Esteve lá 20 anos a trabalhar e aí se reformou e eu encantado da vida também, porque depois deu eu sair da outra fábrica, fui para o Santos Pinto, uma fábrica também de lanifícios. P: Qual era o seu ofício? António Monteiro: Era tecelão, mas pouco lidava com os teares. Mas lidava com outras máquinas, meadeiras, torcedeiras, embrulhadeiras, eu trabalhava com isso tudo, eu sabia trabalhar com essas coisas todas. Conclusão, a altura das greves, altura das greves… Complicado, complicado… Casado, com o primeiro filho, 1968, foi quando fui para o Santo Pinto. No Santos Pinto é que eu agarrei: é que isto está tão mal, tão mal, eu vou tentar desenrascar-me, e então queria arranjar um trabalho fixo que me dê garantias para que eu pudesse sobreviver na minha vida, e não andar aqui na nas greves, nos lanifícios. E então lá consegui arranjar um lugar na Câmara Municipal da Covilhã, portanto, no Mercado Municipal. Estive lá 20 anos, estou aposentado da Função Pública. Ora, voltando às coletividades, fui sempre um indivíduo dedicado às coletividades. Como disse, estive no Estrela de São Pedro, que era logo também era ali perto onde eu morava. Quando casei, mudei para a freguesia de Santa Maria e ainda hoje lá moro. 45 anos que morei numa casa, tive que mudar para outra casa, porque a Câmara necessitava de fazer obras. Pronto, consegui mudar. Ora, eu morava ali em Santa Maria, portanto, eu fui morar para o pé da banda. Mas, voltando atrás: quando eu estive no Estrela de São Pedro, éramos muitos amigos, muita rapaziada, que havia ali naquele tempo, andava tudo a brincar nas ruas, que hoje não se vê ninguém a brincar, hoje não se vê nada. É claro, a gente juntava-se nas coletividades, nos bailaricos. E a gente divertia-se nas coletividades, no Estrela de São Pedro. Depois, quando fui para cima, para Santa Maria, tínhamos o Águias de Santa Maria, também onde eu jogava à bola, onde eu joguei à bola muitos anos. E ali estive, no Águias de Santa Maria. Portanto, estas coisas com o tempo também vão fechando, não é? É de facto pena, esta juventude não ligar às coletividades. Porque ali nas coletividades aprende-se muito, aprende-se muita coisa, muita coisa aparece, muita coisa… Aprende-se o bom e o mau, mas é sempre melhor. Bom, eu estou todo radiante em Santa Maria, com o Águias de Santa Maria. Foi aí, de facto, que eu conheci a minha esposa, nos bailaricos. Estou feliz. Então, tinha o Santa Maria, eu morava ao lado da banda, mesmo ao lado da banda. A banda é minha segunda casa. Eu sou feliz de estar aqui nesta casa, porque me sinto bem, sinto-me feliz. Eu sonho com a banda. Eu quando era mais novo, eu fazia os meus trabalhos. Agora já não sou capaz. Já não sou capaz de fazer o que fazia aqui, nas festas da banda. Aquele Jardim de Santo António que vai lá (já agora, eu também sou António), fazíamos aqui as festas de São João, São Pedro. Andava em cima das árvores, eu fazia, eu era... E às vezes diziam: não caia, não caia. E, quer dizer, a gente às vezes caía, mas levantávamo-nos e lá continuávamos. Queríamos era, de facto, fazer as coisas, que é para ficar uma coisa linda que nós fazíamos aqui. É claro, estas coisas querem muita vontade, querem muito crer para que o que nós fazemos chame mais um amigo, uma menina, um menino. Também cá tive a minha filha. É claro, e voltando aos filhos: agora tenho dois filhos. Tenho o meu rapaz, que tem 44 anos, é doutor, tem o curso de economista e vive em Braga, está na Câmara de Braga. A minha filha, que tem uma diferença de 7 anos, é doutora, é professora, higienista. Estou feliz, sinto-me feliz. Tenho uma mulher que é uma querida. Eu tenho uma mulher que é uma querida, eu também sou um querido para ela, porque sempre gostei de trabalhar e sempre de viver e sermos educados uns para os outros. Temos que ser educados uns para os outros. Isso sempre foi o meu lema, a educação. Então foi a educação que eu dei aos meus filhos. Os meus filhos estão casados. Tenho a minha filha, que é higienista, que é a [...]. Tem dois meninos. É um casal. O meu filho é o [...], que está na Câmara de Braga, que tem um menino, que é o [...], que tem 15 anos. E então esta vida foi sempre para mim, foi sempre uma vida regalada… Foi não me preocupar com estas coisas. Às vezes, quando há alguma coisa que temos de nos preocupar… Mas levei sempre uma vida regalada, sempre uma vida com serenidade, saber lidar com as pessoas, unirmo-nos e aqui na banda, com estas crianças aqui, que felizmente que há, agarrava, comprava uns rebuçados e “tomem lá meus meninos”. E, de facto, o meu querer era esta casa nunca acabar. Com a idade que tenho, faço 85 anos, gostava de até aos 100 anos andar aqui. Chegar aos 100 anos e sentir: é pá, eu pedi até aos 100 anos e cheguei aos 100 anos e estou aqui, Mas, então, Deus nos dê saúde. P: Diga-me uma coisa: professa alguma religião, é católico, vai à Igreja.? António Monteiro: Sou católico. Sou eu e a minha esposa, e vou todos os dias à missa. P: E é de algum partido político? António Monteiro: Não. P: E esta propensão para o associativismo e para as coletividades. Acha que é da família, os seus pais já participavam nas coletividades? António Monteiro: Quer dizer, isso, a questão dos meus pais... Não, os meus pais, eu nunca tive conhecimento de que, de facto, que os meus pais… Portanto, trabalhavam na lavoura, trabalhavam nas quintas. Nunca tive conhecimento que eles... nesse tempo não se conhecia as coletividades, não é? Não, não havia coletividades. P: Então, o que é que o motivou a vir para as coletividades? António Monteiro: Eu, motivar-me em vir para as coletividades? É eu ser uma pessoa… é gostar, gostar de facto de lidar, saber lidar com as pessoas, honestamente, lidar com as pessoas, o convívio em si, isso é que me diz tudo. Agora, é a continuação, é claro, espírito… Tudo tem os seus quês, não é? A continuação das coletividades e arranjarmos sempre uma direção. Alguns ali na direção, já não sei lá quantas vezes… Já me mudaram para vice-presidente, depois volto para trás, depois volto para cima. Sou sempre um indivíduo que ando aqui de um lado para o outro, não é? Está tudo bem, da minha parte está tudo bem. P: Então e na sua infância, na sua adolescência, as associações foram importantes para a sua formação? António Monteiro: Sim, foi. A minha formação foi, portanto… a gente vai aprendendo, a gente vai aprendendo uns com os outros, nas coletividades porque, se a gente abandonar a coletividade, se não ligarmos mais a isto, isto acaba por morrer, não é? Não Fui aprendendo alguma coisa, aprendi alguma coisa. A gente está sempre a aprender. Aparece sempre alguém que diz: oh Monteiro, você isto, aquilo… Eu vou mas é embora. Não, não, você não pode ir embora. Temos aqui um professor, porque o Professor [...], para mim é um homem que foi um Deus que apareceu aqui na Covilhã… Isto faz-me lembrar, na coletividade, ainda era naquela além, estava eu estava eu sozinho na sala de direção, quando ele apareceu. Tínhamos lá um empregado e procurou se estava alguém da direção e por acaso estava lá eu e assim: está ali o Sr. Monteiro. E, então, o professor [...] apareceu, estivemos a conversar e isto é que a gente vai aprendendo. Eu estive a conversar com ele ali uma hora e meia, duas horas e digo assim: chegou a hora de irmos ali beber uma cervejinha ali ao bar. Ah, sim senhor. Estivemos lá, voltámos. Eu aprendi e estou aprendendo com ele, com o [...], um grande amigo, grande amigo, grande homem, grande professor, grande doutor, não haja dúvidas que é um grande amigo, eu considero que é um alentejano assim mesmo de gema. Quero dizer com isso que cá me encontro a trabalhar com esta minha satisfação. P: O que é que foi a coisa mais importante que aprendeu nas coletividades? António Monteiro: Foi saber lidar com as pessoas. Mais importante foi saber lidar com as pessoas, com as crianças, com as senhoras. Temos aqui uma direção, que eu não tenho dúvida alguma em respeito a isso: aqui com respeito acima de tudo. Aqui não há maldade. Respeitinho acima de tudo. P: E diga-me uma coisa. Antigamente, quando começou a participar, era um período muito difícil, as pessoas tinham vidas muito difíceis. As coletividades organizavam algum tipo de ajuda com as pessoas? Espetáculos em benefício de um sócio doente, ou coletas em momentos de dificuldades? António Monteiro: Quer dizer, as dificuldades… sempre houve dificuldades. Debatemo-nos com muitas dificuldades aqui. Só quem por cá passou, o que temos aqui… Um casa, de facto, que só visto. Grande homem, como disse, o senhor [...], também fez para que esta casa, que é uma casa que construíram, uma casa que eu vejo que está cada vez cada vez mais, e mais, melhor e melhor. Ora, o aspeto de dádivas, ofertas, é muito complicado, muito complicado. P: Antigamente, quando era mais jovem, no tempo antes do 25 de Abril, as coletividades não organizavam formas de entre ajuda entre os sócios, quando um precisava? Ajudavam-se uns aos outros? António Monteiro: Já nessa altura, de antes do 25 de Abril, já havia aquela união, aquele gosto para termos a nossa coletividade, aquela vontade… Isso já vem daí, esse faz tudo por tudo, esse devemos fazer algo para nós ajudarmos. Isso é que me faz lembrar… que me repugna que uma coisa que às vezes… o passado que é... fazerem estas coisas, a gente preocupar-se com estas, não ter dinheiro, como é que vai ser? Eh pá tem que se resolver, tem que se resolver, de uma maneira ou de outra… A gente fazia muitos sacrifícios para que... P: Pois, para comprar os instrumentos e essas coisas, era preciso reunir algum dinheiro... António Monteiro: Claro, muito trabalho, muito trabalho para comprar os instrumentos, muito trabalho e entre ajuda, fazermos uns bailaricos para fazermos dinheiro, fazermos aqui uns almoços para servirmos, para angariarmos dinheiro para estas coisas, para instrumentos. E temos aí tantos jovens, e não temos de facto dinheiro para comprar instrumentos. E é muito complicado, nós querermos dinheiro para comprar um instrumento e não termos. Portanto, andamos sempre ao faz favor, temos que comprar mais um instrumento, entraram mais duas crianças e não temos instrumentos. Isto é complicado. O maestro também, o Sr. [...], também é um grande… é um jovem. Chegamos a esse ponto, é uma criatura que está mesmo dedicado aqui para a nossa banda. É um grande homem. Tem um grande valor. E ele precisava de mais instrumentos para pôr os garotos a tocar. P: E lembra-se, antes do 25 de, Abril se as coletividades tinham problemas com a polícia, ou seja, num período mais difícil, lembra-se de algum momento de dificuldades dessa natureza, ou seja, de não conseguir desenvolver todas as atividades que queriam? António Monteiro: O 25 de Abril, e eu digo para mim, não me diz nada. Eu disse: o 25 para mim, não disse nada. Eu toda a vida trabalhei, e veio o 25 de Abril e continuei a trabalhar. Para mim, é igual. P: Não nota, não acha que são diferentes os tempos de hoje? António Monteiro: É diferente uma coisa, uma coisa que é o mais importante, o respeito. Falta de respeito, não há respeito nenhum. Perderam o respeito: os pais para os filhos, [os filhos] com os pais. Falta de respeito. Isso é o essencial, o essencial é o respeito, em nome dos meus filhos, nunca os meus filhos faltaram ao respeito. Nunca eu faltei ao respeito aos meus pais, aos meus irmãos, nunca. Não faltei ao respeito a ninguém. Nasci pobre, criei-me, criaram-me, cheguei este limite pobre, mas sempre com respeitinho. Os meus pais: meus filhos, vocês dêem-se sempre bem uns com os outros. Se houver algum problema, ajudem-se uns aos outros. A minha mãe teve 17 anos sem ver. E disse: meu filho, eu vou morrer, vou morrer, morrer com 87 anos e tive 17 anos sem ver. E ela disse: meu filho (que eu era o mais querido, não é por dizer, por dizer que eles também não eram queridos, mas eu era mais que estava lá em casa e tinha a minha esposa, que era uma segunda filha). É assim, a minha [...], era a minha querida, era a minha esposa, não faltava lá nada, à minha mãe, com 17, não, com 16 anos sem ver, é de uma dificuldade, não é? E então, diz assim: ó meu querido, a mim só me chamavam Toninho, oh Toninho. É claro, nasceram os meus filhos, o meu Paulinho, que é doutor, é que ia a casa da avó: oh mãe, eu vou ver se a avó precisa de alguma coisa. Nessa altura, isso do 25 de Abril, portanto, nasceu em 67... P: Eu estava-lhe a perguntar como é que acha que as coletividades evoluíram. Já tem uma experiência tão longa. Quais são as principais diferenças? Aqui a banda está exuberante, não é? António Monteiro: Sim, a banda e o que é, são as boas vontades, porque isto se não houver boas vontades, não vai a lado nenhum, não é? É de facto mal empregado algumas coletividades terem fechado, à falta de pessoas que queiram trabalhar, humildes, a fazerem para que as coletividades subam e requerer mais da casa em si, haver mais movimento, manter as pessoas para aprenderem qualquer coisa. Porque hoje em dia não se vê nada disso, as pessoas fogem. Não se vêem aí na rua a brincar. Desculpe a expressão, mas só vêem é maldade. O 25 de Abril é que deu cabo disto. A falta de educação para mim foi o 25 de Abril. Eu vivi toda a minha vida no tempo do Salazar, era um respeitinho. A mim o 25 de Abril não me adiantou nada. Eu toda a vida trabalhei, como disse, toda a vida trabalhei e trabalho... P: E a sua mulher também participou nas coletividades? António Monteiro: A minha esposa, sim também, também fazia. P: Ela também assumiu cargos de direção? António Monteiro: Não, a minha esposa nunca. A minha esposa, no clube Grupo Desportivo da Mata… A minha esposa morava lá em cima ao pé do Grupo Desportivo da Mata. Mas nunca fez, nunca entrou na direção. P: E que tipo de atividades é que ela desenvolvia lá? António Monteiro: Lidava com aquela juventude que ali havia, portanto, as senhoras… mas nunca foi uma mulher dedicada, portanto, ajudava, ajudava no que fosse necessário, não é? P: E estava-me a dizer que fez parte de várias direções, foi aqui sobretudo na banda ou também esteve noutras coletividades? António Monteiro: Águias de Santa Maria, Estrela de São Pedro. P: Também teve cargos da direção nessas coletividades? António Monteiro: Sim, sim. Jogava à bola, fazia tudo. P: E como é que conciliava essa dedicação, esse trabalho voluntário, com a família, com o trabalho? António Monteiro: A dedicação era própria mesmo nesse caso, porque eu vivia com a com a juventude em si, eu dizia, casa-coletividade, casa-banda. Ou digamos, Casa-Estrela de São Pedro, porque também vivíamos ali, eu morava em Santa Maria, tínhamos ali a coletividade, o Águias de Santa Maria. O Águias de Santa Maria também era uma coletividade que tinha bilhares, tinha damas para entreter e tudo isso. E então, para passarmos as noites, um bocado da noite. Que me faz lembrar que a Águias de Santa Maria foi a primeira coletividade a ter televisão aqui na Covilhã, salvo erro em 1954. Primeiro a televisão foi para aí, a preto e branco, para o Águias de Santa Maria. A coletividade que a gente… pronto, a gente saía do trabalho e íamos para ali, para acolá, para a coletividade, era Águias de Santa Maria-banda. Eu jogava à bola lá em cima e vinha para aqui, viver com as crianças aqui, porque a banda era lá, à porta de onde eu morava, mesmo onde eu morava. Eu morava no largo e onde era ali, portanto, o fogo em 1993, salvo erro… Eu ainda lá andei a apagar, com uma mangueira, porque deitaram fogo à banda e ainda lá andei. O que eu fiz por aquela casa quando era diretor, com o Sr. Moreira, muitos anos, e outros mais. Isto na banda lá em cima. [...] António Monteiro: Resumindo e concluindo, aquela casa ali era muito boa, era muito boa, mas também lá chovia, e foi na altura que fomos falar com o presidente [...], e ele arranjou, fez o favor de nos arranjar... E então viemos para aqui, aqui a trabalhar, a sujarmo-nos todos, foi um grande sacrifício que fizemos, tudo a correr depois para ir para o lado também. E éramos todos, todos os diretores e mais os sócios, e isto é que era bonito. A gente pedia um favor, um sócio… Depois já bebíamos um copo, depois um dominó, depois um lanchezinho, e pronto vamos lá. Fazia-me feliz e hoje é muito difícil de ver: se for para o jardim, estão ali a beber cerveja. Ninguém vem para aqui. Mas deviam vir aprender qualquer coisa. A música, que é a coisa mais Linda. P: Estão e o que acha que é o futuro do movimento associativo? António Monteiro: Olhe, minha Senhora, o futuro? O futuro o dirá, não posso adiantar mais nada. P: E o que é que desejava que acontecesse? António Monteiro: Ai, o que é que eu desejo para mim? Sempre o melhor, ter esta casa sempre aberta até eu morrer. Esta casa fica aberta. E se eu for na frente, a minha mulher ter força e nunca deixar de vir a esta casa, que ela também gosta muito aqui da banda. E um dia, quando eu for, levo a banda no meu coração. É aquilo que vejo, que deixo aos meus queridos, é aquilo que eu lá tenho. Olhe, fui contador do Sporting, a minha vida foi sempre a trabalhar, 45 anos a trabalhar, 45 anos a cobrar as quotas do Sporting. Andar de inverno, a chover, a nevar, a fazer sol, pelas ruas. Para o Fundão, para o Paul, Unhais da Serra, Teixoso, Aldeia do Carvalho, 45 anos. E isto porquê? Porque a vida assim dizia, temos que trabalhar para termos alguma coisa. Meu lema foi este, tenho que trabalhar enquanto puder, enquanto puder trabalho. Cheguei aos 45 anos, fui 45 anos cobrador. Tenho lá diplomas de cobrador, tenho lá diplomas daqui da banca, tenho diplomas do Águias de Santa Maria. Tenho lá um quarto, tenho uma casa grande, tenho tudo exposto. E é isto que faz para mim. É a satisfação que eu tenho. E quando chegar ali a olhar para alguns diplomas: Águias de Santa Maria, São Pedro, Banda da Covilhã, Sporting da Covilhã, 3, 4, dador de sangue, 2. 46 dádivas de sangue. 46! Não é brincadeira nenhuma. Sinto-me feliz. Só preciso é saúde, só preciso é... Apanhei esta malandra desta doença e também peguei à minha esposa. A não é por acaso que tive sorte. Tive sorte porque eu apercebi-me de que estava mesmo doente e disse à minha esposa, eram 11, 11 e meia da manhã: eu não me sinto bem, leva-me para casa, vamos comer e vais me pôr hospital. Tenho uma grande mulher, amiga grande. P: Imagina a sua vida sem as coletividades, ou seja, as coletividades modelaram a sua vida, a sua vida fazia sentido sem as coletividades? António Monteiro: A minha vida foi sempre assim, eu vivi sempre a minha vida com as coletividades. Nunca deixei de ir às coletividades. Quando era cobrador do Sporting, eu corria as coletividades todas, eu ia à beira dos sócios. E então, o convívio em si, que se apanha a ligação com as pessoas, com os doutores, com os advogados, com os mais pequenos. E aí é que eu vou aprendendo, aí é que eu aprendi, aí é que me fez ser homem, foi lidar com as pessoas, lidar com os meninos. Sinto-me radiante, sinto-me radiante da maneira como isto, como esta situação está, e vejo o que isto é e como era a antigamente. Hoje em dia temos que ter muito cuidado, estamos a andar por um caminho muito difícil. E então todo o cuidado é pouco. -
1 de junho de 2021
António Manuel Lopes Moreira
P: O senhor nasceu aqui na Covilhã? António Moreira: Nasci, nasci, a 4 quilómetros da Covilhã, hoje Canhoso. Mas com a idade de 5 anos vim viver para o centro da cidade, que é mesmo atrás da Câmara Municipal da Covilhã. Ainda hoje tenho a casa onde vivi toda a vida, que é a Taberna do Laranjinha, não sei se conhece, não conhece? Mas pronto, foi aí que foi passada toda a minha juventude, precisamente no centro da cidade, que é mesmo a 50 metros da Câmara Municipal da Covilhã. P: Viveu sempre aqui na Covilhã?. António Moreira: Vivi sempre toda a vida aqui. Bem, depois em África como militar e depois, como militar, fui para a Alemanha. Vim de África, fui para Alemanha. Estive seis anos na Alemanha. E depois vim, precisamente continuar o trabalho que tinham tido os meus pais. P: Qual é que é o trabalho dos seus pais? António Moreira: O meu pai tinha uma agência funerária, que ainda hoje tenho. P: E foi sempre essa a sua profissão ou teve outra? António Moreira: Infelizmente, quando eu tinha 10 anos, o meu pai teve uma doença grave e esteve internado quatro anos. E, então, obrigou-o a vender o negócio, o meu pai, que foi para... E eu a partir daí acabei a minha primária com 10 anos e meio, e o meu pai estava internado num sanatório e a minha mãe, coitadita, é que tinha que trabalhar para todos nós, não é? Não chegava e eu tive que ir a trabalhar. E com 10 anos e meio já estava a trabalhar numa fábrica de lanifícios. P: Qual é que era o seu ofício? António Moreira: Era, na altura, indústria de lanifícios, tecelão. Primeiro comecei como aprendiz, mas depois cheguei a tecelão profissional, tenho a carteira de tecelão profissional. Por volta dos 15 anos. E depois fui para África, de África vim, fui para a Alemanha, continuei no mesmo ramo, na fiação na Alemanha, e depois em 1977, vim comprar um negócio que tinha sido do meu pai e tinha vendido a outras pessoas. Fez um circuito - pelo menos mais dois donos - e veio. Ainda hoje tenho muitas peças que eram do meu pai, de 1950. Tenho, nomeadamente, uma carreta que antigamente era uma carreta bonita, cheia de panos. Tenho ainda… eu tenho um centro onde, digamos assim, um museu onde tenho todas essas essas peças, que estão à vista de toda a gente. P: O seu pai tinha então essa profissão e a sua mãe, qual era a sua profissão? António Moreira: A minha mãe também trabalhava na indústria de lanifícios. Tinha a mesma profissão do meu pai, na altura. Não, minto, o meu pai tinha a agência funerária. Após o acontecimento do meu pai, tive que ir eu trabalhar e a minha mãe. P: Qual era o ofício dela? António Moreira: A minha mãe era exbicadeira, quer dizer, era a tirar… As fazendas tinham pequenos defeitos e ela tirava umas bicas. Exbicadeiras, penso que era assim. Eu não, eu comecei por ser aprendiz, mas depois cheguei a tecelão profissional, tenho a carteira profissional, ainda hoje pertenço aos lanifícios, apesar de já terem passado muitos anos. P: Depois casou-se, a sua mulher também trabalhou na indústria dos lanifícios? António Moreira: Também trabalhava na indústria de lanifícios, conhecemo-nos, na altura, com 18 anos. Depois eu vim a casar até antes de ir para o Ultramar. Tive um filho, que ainda hoje temos, graças a Deus. Nasceu, curiosamente… Eu ando a tentar fazer um livro da minha vida, porque tem várias, várias passagens, esta foi uma delas. Veja o que era no tempo do Salazar: por 14 dias não deixaram sequer ver nascer o meu filho. Cheguei a Luanda e 14 dias depois de chegar a Luanda, nasceu o meu filho. Eles não queriam saber disso para nada. Eu a dizer que é que a esposa que estava grávida e que estava à espera do filho que era mais um mês e não… tive que partir, porque felizmente a minha a minha profissão, a minha atividade no Exército também era uma atividade de muita responsabilidade, eu pertencia aos serviços secretos. Lá, digamos assim, no meu gabinete, onde eu trabalhava, nem o comandante podia lá entrar, tinha de pedir licença, porque...Todas as mensagens que chegavam ao quartel, todas as notícias antes do comandante, sabia eu, e depois eu é que ia com o protocolo a dar para ele assinar, portanto, operador cripto naquela altura era uma especialidade rara, digamos assim, mas que também ainda hoje não sei como é que eu fui, vindo eu... comigo trabalhavam lá muitos já com outro…, com outro cursos académicos, não é? Nomeadamente com a quarta classe, com o quinto ano, com o quarto ano e eu com a quarta classe fui...tirei um curso de escriturário primeiro, que nunca tinha visto uma máquina de escrever, andei no RAL 4 em Leiria, onde tirei a especialidade de escriturário. Vi-me aflito para passar, tinha de andar à procura das letras, mas depois consegui passar aqui e fui para os serviços secretos, que dava-me essa componente de ter, onde quer que andei, tive sempre um gabinete para mim ou outro colega como eu para trabalharmos, nunca podia lá haver mais ninguém. P: Quando esteve a trabalhar na Alemanha também esteve a trabalhar na indústria têxtil, e quando voltou, voltou a trabalhar na indústria têxtil? António Moreira: Não, quando vim, vim precisamente já com o objetivo de comprar, porque eu estava a trabalhar lá e o meu pai, coitado, é que me disse: porque é que não me vinha embora, que entretanto o meu filho fez sete anos. Iria matriculá-lo na escola alemã e transmiti isso aos meus pais, na altura: olha vou, vou, vou ficar definitivamente na Alemanha porque o garoto vai começar a escola e depois não é ao meio... Um dia sai daqui, não é? Porque estava numa empresa que tinha 10 mil operários, era uma empresa Internacional. E, nessa altura, o meu pai: porque é que tu não vens que está ali uma funerária que era nossa, que está fechada e que eras capaz de governar. É, eu tive uma vida... Eu vim, só que, infelizmente, depois passado três anos morreu, depois de eu ter comprado a funerária, portanto, aquele braço direito que eu pensava nele, infelizmente depois ele morreu, mas eu dei a volta por cima e ainda hoje me orgulho de ser, talvez, das maiores funerários do país, nomeadamente a nível Internacional. Fui pioneiro nos serviços a ir ao estrangeiro buscar portugueses. Ainda hoje vamos para toda a Europa. Tenho uma empresa que anda sempre no estrangeiro, tem o melhor centro funerário do país. Tenho ali, no Tortosendo, uma área de 400 m, que nem em Lisboa há, onde todas as pessoas, e eu conheço bem o país do Minho ao Algarve. Portanto, consegui objetivos muito, muito bons, na minha vida profissional e familiar, claro. Hoje tenho dois filhos que são os meus braços direitos e a minha companheira, há 53 anos que estamos casados, e graças a Deus, tudo tem corrido bem nesse aspeto. P: Só para terminar esta parte mais biográfica, tem alguma religião? António Moreira: Sim, sou católico, não um católico praticante, não há tempo para essas coisas, digamos assim, mas sou católico de coração, de batizado e, assim como a minha família toda, toda ela é realmente católica. P: E tem alguma filiação partidária? António Moreira: Nunca tive. Sou um amante das liberdades, mas confesso que não me revejo em partido nenhum político. Gosto muito, aprecio muito um bom, um bom político. Dou valor, seja ele da esquerda ou da direita, não, questiono a política deles, mas admiro sempre um bom líder, uma pessoa que faça andar este país para a frente. Foi sempre o meu sentido, os objetivos que eu tive, foi sempre e por isso tenho a medalha de Mérito Municipal e outras medalhas. Tenho precisamente porque fui sempre uma pessoa inovadora que, sempre com vontade de impulsionar as coisas para a frente. Não dou valor a um político medíocre. Infelizmente, temos muitos, mas pronto. Eu gosto muito de analisá-los e depois, quando é a altura da eleição, tanto voto num como voto no outro, voto na pessoa que eu acho com mais competência para ajudar o nosso país. P: Mas no que diz respeito à filiação associativa, já é outra coisa... António Moreira: Isso não, isso não. Isso faz parte da minha, digamos assim, da minha criação, da minha educação, daquilo que sou hoje. É uma pena que, infelizmente, o associativismo hoje, como eu disse, esteja a ser maltratado, porque na minha época, há 50, 60 anos atrás, era a formação dos jovens, era no associativismo. Porque todos os jovens trabalhávamos na fábrica, outros noutros sítios, não tínhamos tempo para mais nada, a não ser um bocadinho para o desporto, para a cultura, para enfim, para tudo isso. E naquela altura os jovens praticavam muito, muito desporto. Tínhamos várias... aqui a Covilhã era e ainda é hoje, felizmente, um orgulho para nós, covilhanenses, porque somos, segundo aquilo que eu tenho ouvido dizer, a segunda cidade do país, depois do Barreiro, a segunda cidade do país com mais instituições ou associações. E isso é uma riqueza tremenda numa cidade destas. Infelizmente, que eu começo a ver e tento incutir nos meus filhos, agora nos meus netos para que eles seguissem esse rumo, porque o associativismo é uma escola, aprende-se tudo lá. P: E essa propensão para a participação associativa é de família, os seus pais já participavam? António Moreira: Não. A minha mãe, curiosamente, a minha mãe transmitia-me… Naquela altura não havia tantos clubes, não havia quando a minha mãe se criava, mas ela já pertencia ao rancho folclórico e era com agrado que ela às vezes me cantava algumas canções que no tempo que ela era jovem, cantava nesse rancho folclórico do Canhoso, aqui pertinho da Covilhã, a 4 quilómetros. O meu pai nunca lhe ouvi dizer que, confesso, que tivesse se metido nalgum clube. Naquela altura, havia também jogos populares, ele gostava muito dos jogos populares, ainda hoje, tenho um jogo popular lá numa das minhas garagens, que é preciso um espaço, daqui até lá ao fundo, garantidamente, um ringue, que é o chamado jogo da laranjinha, que também está no Facebook, o jogo da Laranjinha. Diz que existe em Lisboa, é mentira, existe na Covilhã também. Embora com pouca gente a perceber aquilo. Mas eu sei jogar à Laranjinha e ainda lá tenho as bolas e tudo com que se jogava à Laranjinha. Na taberna do meu avô havia o jogo da Laranjinha e eu recriei ali naquela casa atrás da Câmara, que hoje é a casa com mais fama na Covilhã, é a Taverna da Laranjinha. Toda ela, se lá for, está toda ela organizada por mim. Hoje aluguei-a a outra pessoa, mas tudo o que está ali foi feito pelas minhas ideias e hoje é com orgulho que digo que as pessoas de todo mundo vêm à Covilhã, vai tudo à Laranjinha porque é uma referência na cidade. P: Então, estava a dizer que na sua infância e na adolescência o seu associativismo foi muito importante. António Moreira: Muito importante, tirou-me da rua, tirou-me dos vícios. Veja que nunca fumei, nunca bebi, porque não tinha tempo para isso. Eu saía da fábrica às 6:00 horas, imediatamente chegava, primeiro com 10, 12 anitos, ia para o Águias de Santa Maria, onde aprendi a jogar ténis de mesa, onde depois comecei a jogar futebol e futebol de 11, participei em vários torneios aqui na Covilhã, altura que eram chamados torneios da INATEL, eram equipas que havia aqui na Covilhã, precisamente dos trabalhadores. Na Covilhã havia pelo menos umas sete ou oito equipes e disputávamos sempre um campeonato renhido, digamos assim, de todos os trabalhadores. Não havia ali profissionais. E, então, comecei ali. Depois, mais tarde, gostei muito do basquete, como não se praticava basquete fui para o Clube Desportivo da Covilhã, cheguei a ser federado em basquete, participei em campeonatos da terceira divisão em basquete, joguei andebol, joguei vólei… Vólei pouco... Pronto, quer dizer, eu não tinha tempo, até começar a namorar, o meu tempo livre era sempre a praticar desporto nas coletividades, onde líamos o jornal, onde começámos a ver televisão. A primeira vez que eu vi televisão foi no Águias de Santa Maria, porque ninguém… não havia televisão. Veja que isso era uma riqueza, até que depois fui, pronto, fui para o para o Ultramar, fui para a tropa, e aí esmoreci um bocadinho a nível de participação... Depois, quando vim, como estive pouco tempo em Portugal e fui para a Alemanha... Na Alemanha também não tive qualquer contato com qualquer modalidade desportiva lá. P: E nesse período, ainda antes de ir para o Ultramar, ou seja, antes do 25 de Abril, que memória guarda desse período? Por exemplo, lembra-se de alguma experiência de repressão sobre o associativismo por parte do regime, de limitações à liberdade associativa, por exemplo? António Moreira: Naquela altura, sabe, nós éramos praticantes, jovens. A gente via que os diretores tinham receios de vários acontecimentos. Nós, mais jovens, preocupávamo-nos era em praticar desporto. Infelizmente, havia, houve aqui em Santa Maria… lembro-me de alguns elementos que chegaram a ser presos pela PIDE. Acho que era mais a nível do trabalho, do emprego, do que propriamente do associativismo. O associativismo dava-nos liberdade para ver para onde é que a gente ia. Eu penso que no tempo do outro regime que eles davam-nos liberdade, davam-nos cordel, para ver para onde é que nós íamos, e depois se as pessoas estavam a entrar por outros campos é que provavelmente agiriam. Eu nunca tive participação em nada disso, nem também nunca fui contra ninguém, como é óbvio. Hoje fala-se no Salazar, o Salazar teve coisas muito boas e teve muito más, mas há uma delas que eu digo que era muito boa, que era o sentido patriótico, eu acho que ele era um bom português, quer dizer, gostava de Portugal grande. Não era fácil ele conseguir pensar que ficávamos sem Angola ou sem Moçambique. E isso, é um bocado do meu coração, sou português de gema, gostava de ver Portugal grande. A nível do que eu fazia, das coisas, enfim, daquilo que a repressão fazia sobre pessoas que não tinham liberdades e que estavam bem ou estar mal, obviamente não estou de acordo com isso. Eu acho que as pessoas têm a obrigação e o direito e o dever dizer quando estamos bem, quando estamos mal, mas gostava de Portugal grande, eu gostava de um país grande. P: Costuma-se dizer que eram tempos difíceis, mas que havia muita solidariedade, muita entre ajuda. Isso vivia-se nas coletividades? António Moreira: Sim, sim, sim, sim, isso sim, era onde havia irmandade… Eu, por exemplo, como não tinha irmãos, os meus irmãos estavam nos meus clubes. Aí a gente… todos eles eram meus irmãos. A gente jogava à bola, fazia isto, fazia aquilo. Éramos todos irmãos. É essa solidariedade que hoje falta nos jovens. Depois também não éramos ricos, pertencíamos todos a uma camada mais ou menos média, média baixa, e as pessoas necessitavam de ter amigos. Nós brincamos uns com os outros sem complexo de superioridade ou de inferioridade. Hoje já, infelizmente, é uma coisa grave. Hoje há destrinças de, enfim… afastou-se muito as pessoas umas das outras, porque é tudo rico, é um país rico, é pobre, mas, mas é tudo rico. P: E na Alemanha teve alguma experiência associativa? António Moreira: Na Alemanha, olhe, foi no início daquilo que está a começar, que acontece aqui já no nosso país. Quando eu cheguei à Alemanha, eu fiquei estúpido, porque via que na empresa onde eu trabalhava, que era a Grandstoff, que tinha, como disse, à volta de 10 mil trabalhadores, não se via um alemão, um alemão jovem. Eu trabalhei com muitos alemães durante seis anos, mas todos mais velhos que eu. Porque eu é que era jovem, fui para lá com 24 anos e os alemães, não. Apareciam alemães, às vezes novos, e passado 15 dias iam-se embora. Que é o que está a acontecer com o nosso país. Infelizmente, temos necessidade de importar mão-de-obra jovem, porque não estamos cá hoje. Os que cá temos querem outras atividades, outras profissões mais compensadoras, provavelmente. Aquilo que está a acontecer com os chineses e indianos lá para baixo, é sinónimo daquilo que aconteceu na Alemanha quando eu lá estive. Eu via que eles procuravam mão-de-obra. Eu trabalhei com pessoas de todo o mundo lá, desde as países… todos os povos… da Turquia, da Grécia, da Indonésia. Não trabalhavam lá franceses nem aqueles países mais… era tudo malta de países pobres à procura de trabalho e nós também. Naquela altura era a mão-de-obra barata portuguesa. Eu fui para lá ganhar, a fazer a mesma atividade. Aqui ganhava 2, lá fui ganhar 10. Era compensatório. Íamos todos à procura de melhorar as nossas vidas. Íamos fazer o que os alemães não queriam fazer. P: E criaram associações lá, os portugueses? António Moreira: Tenho um amigo, por acaso morreu há dias, que era o Raposo, ele era de Santarém e criou lá um clube desportivo. Tivemos lá um centro de portugueses, lá na zona onde eu estava. Tínhamos um rancho folclórico a imitar os scalabitanos. Portanto, o português enquadra-se imediatamente em todo o lado, em todo o mundo, à procura das suas raízes, como hoje. Não tem hipótese de ir para o nosso país, então faz... E nós, bem visto os portugueses, felizmente, é um povo que é considerado no mundo inteiro e em todo o lado. Quando chego, sou português, as pessoas aceitam porque somos um país educado e humilde e de brandos costumes, como se costuma dizer, mas somos um povo muito simpático para toda a gente e vê-se no nosso país. Toda a gente gosta de vir a Portugal, porque na realidade o português é maravilhoso. P: E essas associações que eram criadas entre os imigrantes ajudavam a integrar? A não terem tantas saudades de Portugal? António Moreira: Naquela altura era mais difícil, penso eu. Nós, na Alemanha, como não tínhamos uma colónia muito grande de portugueses, foi sempre mais difícil. P: Estava a falar da experiência associativa na Alemanha... António Moreira: Pois, como eu disse, na Alemanha nunca houve uma colónia muito grande de portugueses. E as cidades onde viviam os alemães eram cidades com pouca gente portuguesa. Era difícil fazer um clube, porque os alemães não iam lá, como é óbvio. Mas, por exemplo, onde eu vivia, em Heinsberg, aí conseguiu-se fazer o centro de português. E com pouca gente, como é normal. Mas com vários objetivos, nomeadamente o rancho folclórico. E ainda se teve lá uma equipa de futebol. Mas como não eram muitos, eu depois também me vim embora, confesso que abandonei, mas sei que acima de tudo… Fez um restaurante, esse meu amigo, que era o Raposo, fez um restaurante, que começou a ter a gente alemã e ele triplicou, quadruplicou, digamos assim, por várias cidades, depois da Alemanha. Atingiu uma bitola enorme de sucesso, esse rapaz, mas tudo começou com o nosso clube, precisamente do grupo de Oberbruch. P: Tinha-me dito que quando voltou da Alemanha, em 1977, com a sua esposa, que foram logo para o grupo de Educação Mello. António Moreira: Pois fomos, digamos assim, logo convidados para voltar às nossas origens, não é? Porque foi ali, praticamente, que começámos, no Grupo de Educação Campos Melo, um grupo que simplesmente foi quase a primeira escola na Covilhã, escola primária. Porque foi um grupo feito numa altura difícil lá do, portanto, do antigamente, em que foi doado um terreno por um senhor que era o Melo e Castro, a Fábrica Melo e Castro. Mas depois ali criou-se o primeiro centro de desenvolvimento, na altura, de certeza absoluta, das crianças que viviam naquele bairro e era um bairro de tipo operário e ali formou-se… até tínhamos uma escola primária lá em duas salas cedidas pelo Grupo. A partir daí, claro, que várias modalidades ali surgiram e vários êxitos se conseguiu, desde o teatro até outras modalidades. Tivemos um grupo de teatro, naquela altura, em 1960, um teatro muito famoso na Covilhã, era lá nesse Grupo Educação e Recreio. E pronto, esteve sempre, ainda hoje é das coletividades com condições acima da média. Tudo feito pelos trabalhadores, pelos operários. Claro que quando regressei, e como fui criado ali também com a minha esposa, naquela zona, fomos convidados logo imediatamente, porque era sócio há muitos anos do clube, e comecei. E a partir daí, a ser por duas vezes presidente da direção do Grupo de Educação Campos Melo, até que depois, então, desloquei-me mais para baixo, para a cidade, para o trabalho, e vim a viver então aqui para a zona da Câmara e aí comecei a frequentar a banda da Covilhã, que teve outros objetivos, já agora na música. Curiosamente, são coisas que eu nunca tive qualidades, que às vezes digo aqui para os músicos: sou presidente da Assembleia Geral, neste momento, já há alguns 14 anos ou 15 anos, aqui da banda, mas nos discursos costumo dizer aos músicos que eles são artistas. E é engraçado, porque eu tenho muita pena que isto é um dom, o ser músico, como outra modalidade, como o Ronaldo tem aquele dom para o futebol, mas a música é ter-se um dom, que é que as pessoas atingem objetivos maravilhosos. Eu, ainda há bocadinho, dizia ao professor aqui da banda… foi esta semana que fui além a Viseu e numa daquelas ruas lá da parte histórica de Viseu às tantas ouvi a música: eh pá, música bonita aqui está, a cidade está alegre, digamos assim. E fui transitando até que cheguei à rua onde estava um senhor com um acordeão, uma aparelhagenzita a fazer bateria, mas o homem com acordeão dava ali o sainete naquela cidade em que toda a gente passava para um bocadinho ouvir, deixava a moeda. Ele não era ceguinho, não era, não era nem ninguém inválido, mas pronto. Eu penso que aquele artista, porque ele era um artista em vez de estar em casa parado, a dormir ou se calhar sem saber o que havia de fazer, estava ali, dava alegria à cidade, ao povo e ele até as pessoas compensavam com algum dinheiro, com certeza, que ao fim do dia recolheria e servia muito bem. Isto aqui, a nível da banda da Covilhã, eu fui sem querer metido na primeira direção, como presidente da banda da Covilhã, em 1991. Como eu disse, infelizmente depois ardeu, mas nós não deixámos morrer esta Casa. E hoje tenho muito orgulho do que temos. Porque somos dos melhores do país. Não é uma banda, é uma orquestra, nós hoje vamos ali…. Há ali 100 jovens todos a tocar vários instrumentos. Isto é próprio da sorte que tivemos aqui, com o Professor [...], que sendo alentejano, mas que apanhou aqui a Covilhã… Gosto, e ele é um dedicado a isto, deixa tudo, como vê e está aqui sempre, enfim. Casou, como eu disse, como às vezes lhe digo, ele casou, um excelente professor universitário de Medicina, ele casou com a banda da Covilhã e ele adora isto, pronto. O que é certo é que a Covilhã tem aqui hoje uma riqueza extraordinária. Crianças de todas as idades aqui estão a tocar, a aprender, quase sem pagarem nada ou, se pagam, é uma ninharia e estão, a sair constantemente daqui artistas, artistas. Porque também tenho outra coisa engraçada, que é verdade. Tenho um amigo que é enfermeiro e dizia-me ele há tempos: o Joãozito, que eu vi nascer, senhor Moreira eu, às vezes, mais outro amigo que temos, eu a tocar viola, ele a tocar concertina, já percorremos quase o mundo inteiro, desde a Nova Zelândia, à Rússia, Austrália, todos esses países... chegamos lá, a gente arranja o dinheiro para a viagem, chegamos lá, paramos lá numa praça, ele a de um lado e eu do outro, com a bandeira portuguesa, ao fim do dia, temos lá sempre dinheiro garantidamente para as despesas que tivemos e até acabamos sempre por nos pagar a viagem. Isto só para dizer que, como eu às vezes digo aqui aos garotos, vocês estão aqui a aprender uma coisa que nunca sabem se amanhã são artistas, são pessoas que ganham a vida estrondosamente em qualquer parte do mundo. E então, eu digo sempre: vocês venham, porque isto é uma arte, tomara eu, eu dava dinheiro para saber tocar um instrumento. Não tenho nenhum, por muito que tivesse tentado, não me saem notas. P: Não tendo essa vocação, o que é que o motiva a estar tão envolvido na coletividade? António Moreira: Isto parece incrível, mas eu caí… Nas outras coletividades não, porque eu gosto muito de desporto, eu adoro desporto, futebol, mas acima de tudo, neste momento gosto mais é de ciclismo, o ciclismo... Mas a música foi sem querer, como era ali à porta fui arrastado por um grupo de amigos, que aquilo estava para fechar, e ganhei também o desejo profundo, epá eu adorava, porque na Alemanha, onde eu estive, uma das riquezas que havia lá é que em qualquer aldeia havia uma banda juvenil. Não se viam os da minha idade, não se viam pessoas de idade nas bandas a tocar na rua, era tudo malta... Eu às vezes ia a Colónia, a Dusseldorf, era bandas que havia ali, tudo malta com 20, 25, no máximo 30 anos. Mas, começando ali com sete ou oito anos, tem uma riqueza extraordinária nas bandas lá na Alemanha. E aquilo, é pá... a Covilhã, era engraçado um dia ter uma banda juvenil, sair para a rua com as criancitas a tocar pífaro. E assim, eu, quando me meti aquela, quando fui para lá convidado, eu disse aos meus companheiros de direção: meus amigos vamos meter mãos à obra, vamos ver se conseguimos fazer uma banda juvenil na Covilhã. É um sonho, amanhã daremos exemplos às outras cidades no país, apresentando na rua ou em qualquer lado uma banda de crianças, porque normalmente é uma tendência para as pessoas de idade é que estão nestas bandas. Mas donde eu vim, eu via jovens e eu não consegui, na altura, na direção, não consegui fazer isso, porque estive apenas dois ou três anos. Mas depois, a continuidade, como eu disse, aqui do professor, e imediatamente foi-me buscar a mim. Percebi, sabia o amor e tenho sido, digamos assim, tenho ajudado muito mesmo a banda da Covilhã. Fui eu que ofereci as fardas e várias coisas que tenho oferecido, instrumentos e tal, para a banda. E ele sabe que quando a banda, aliás, aqui hoje este edifício, onde nós estamos, só está aqui e a banda está aqui porque deve-se a mim. Ainda há dias o disse ao presidente da Câmara, há uns nove anos ou dez, quando o outro presidente saiu. Nós tomámos aqui posse e a primeira reunião que tivemos foi ir à Câmara Municipal da Covilhã. E o presidente disse: Moreira, nós… A Câmara não tinha um tostão para nos dar para as obras, porque isto tinha começado em obras, tinha começado havia 15 dias, começaram a destelhar. Isto é curioso, porque isto é um edifício do Estado. Está cedido à Câmara Municipal da Covilhã, porque foi aqui a escola, a biblioteca, etc. muitos anos, por sua vez, a biblioteca, a Câmara Municipal tem um protocolo com a banda, com a cedência de 10 em 10 anos. Este espaço, portanto, nessa altura, eu disse assim: oh meus amigos, então, mas a Câmara Municipal é que tem de fazer as obras que aquilo é um edifício… E o senhor Presidente disse-me assim para mim, e para a professora Irene, e o professor Cavaco, fomos lá: Moreira, nós bem queiramos vos ajudar, nós... A outra Câmara deixou-nos completamente sem um tostão, não temos um tostão na Câmara para vos dar. E também não há na Câmara neste momento ninguém, construtores, que queiram fazer aquela obra, que estava orçamentada em cerca de 120 mil euros, sem a Câmara ter dinheiro. Então, o Presidente da Câmara disse-me: olhe, você é um homem que se relaciona bem na Covilhã com muita gente, que tem feito várias coisas, por que é que você não fala com o empreiteiro e assume a responsabilidade com eles? E daqui a um ano, a Câmara Municipal da Covilhã compromete-se, de hoje a um ano, passar a dar-vos os 3000 euros para ir amortecendo as obras. Agora você tem é que contactar um empreiteiro que queira fazer isso nesse sentido. E assim aconteceu. Fui ter com um empreiteiro que tinha feito as obras na Taberna do Laranjinha, que há mais de 30 anos que trabalha para mim, e disse: oh Zé, epá, expus-lhe o problema e ele disse, está bem pronto Moreira, eu vou para lá, se precisar de dinheiro, a qualquer altura, eu recorro a você. Pronto, está bem E assim esta casa está aqui, feita e com muito orgulho, aqui a banda a trabalhar é porque eu fiz esta proposta à Câmara e conseguiu-se tudo. Portanto, hoje eu sinto-me extremamente orgulhoso do meu passado em todas as vertentes, mas essencialmente aqui na banda, onde eu, com a minha persistência e as minhas ideias, consegui que hoje tivéssemos uma das melhores bandas do país, mas acima de tudo ver aqui muita gente jovem, com 9, 10 anitos, já andam aí pela rua a tocar e eu fico todo vaidoso, todo baboso, como se costuma dizer, nesse êxito na minha vida também. P: Disse-me que era sócio de 12 coletividades, quer dizer que é uma pessoa que valoriza muito associativismo. Qual é que acha que é o papel que o associativismo tem na sociedade portuguesa? António Moreira: Eu, como disse, aprendi a ser homem no associativismo e 80% daquilo que eu sou devo ao associativismo. E estou convencido de que é uma lástima, uma perda irreparável, que estamos a ter, o país não apoiar… Os nossos governos deveriam apoiar o associativismo e as coisas não podem… Os mecenas, os voluntários, hoje não é assim tão fácil, mas eu estou convencido que, se todas estas associações que há nas terras fossem apoiadas, pelo menos pagar-se um diretor ou dois diretores o ordenado para que eles obrigassem - senão perderiam o seu trabalho - aquilo a mexer. Eu acho que não estaríamos como estamos hoje, porque as pessoas preocupavam-se a ir, a incentivar para que os jovens venham, dando-lhes alguma coisa em troca. Como vê, a banda da Covilhã, em pouco tempo… Se este professor [...] neste momento deixasse de vir à banda da Covilhã, eu estou convencido que daqui a dois anos a banda estava outra vez moribunda. Porque ele é um amante, ele gosta disto, não ganha dinheiro aqui, porque ele casou com a banda, como eu digo, mas noutras coletividades, lá em cima, no Campos Melo, lá em baixo, como vai ver, no Grupo Educação Instrução do Rodrigo, é a mesma coisa, uma dificuldade tremenda em arranjar alguém que queira ir para a direção, porque muitas vezes não é falta de jovens que há, há é a falta de dirigentes, os dirigentes de hoje, que durante muitos anos trabalharam gratuitamente, hoje já não estão para isso, têm as suas vidas profissionais e, acima de tudo, familiares, a comodidade, a televisão em casa, os sofás… as coisas são diferentes. Mas se a pessoa tiver que obrigatoriamente ir, porque gosta, mas também porque tira dali alguns dividendos, obviamente que de certeza que as coletividades não irão morrer como estão a morrer. O Estado tem que deitar mão a isto, porque é uma escola que se perde e é irreparável. Porque, continuamos a dizer, hoje os nossos jovens estão cheios de vícios, de coisas más. Os computadores arrastam as crianças horas e dias, quase as 24 horas por dia ali, perante os computadores. E não se aprende nada lá. As novas tecnologias tudo bem, mas o desporto faz muita falta. O ser humano precisa de praticar várias coisas, desde a música, a cultura, o teatro. Porque obriga a nossa mente a não estar só… Pá, isto assim da nossa vida profissional ou familiar, são aqueles momentos de lazer em que a gente ia sempre à água. Eu gosto imenso, às vezes as pessoas agarram numa bicicleta ou numa canoagem e tal, e vão naqueles...Mas temos que ter muito mais, muito mais, porque estamos a perder, estamos a perder precisamente as escolas. As escolas eram estes clubes, estes clubes, embora muitas vezes sem técnicos de primeira, mas tinham as tais pessoas que gostavam... Eu lembro-me quando comecei a praticar ténis de mesa, não sabia pegar numa raquete, mas havia já mais velhos: olha, é assim, é assim. E eu aprendi. Claro que podia não ser um atleta de primeira, nem estava dedicado a ser um atleta de primeira, mas aprendi. Passava uma hora ou duas horas e meia por dia, se calhar. Podia praticar ténis de mesa ou jogar basquetebol. Saía às 6:00 do trabalho, chegava a casa, comia qualquer coisa, ia para o ringue jogar basquetebol. Naquele tempo, eu andava saudável. Nunca fumei na minha vida, nunca fumei, nunca bebi. Como eu disse, porque não tinha tempo para essas desgraças. Naquela altura, hoje há outras infelizmente, a droga que tanto nos atemoriza. Naquele tempo, a droga era o tabaco, a bebida eram as drogas daquela altura, e eu, graças a Deus, e transmiti isto, porque tenho dois filhos, um, com 52 anos, outra com 42, que não fumam nem bebem, nem fazem noitadas. E tenho agora quatro netos. Estou a ver se os meto na mesma escola. P: Diga-me uma coisa, essa transmissão de valores do associativismo, da participação, que passam de pais para filhos e de avós para netos. Essa transmissão também existe dentro das coletividades, ou seja, os sócios mais velhos também transmitem esses valores aos mais novos? António Moreira: Era assim que acontecia, era assim que acontecia… Hoje, como lhe digo, é uma tristeza. Eu se for ao Campos Melo, que antigamente eu chegava lá às oito da noite, a malta ia beber um cafezinho, mas estávamos ali a jogar às cartas ou a jogar ao dominó ou a jogar a qualquer jogo, mas entretidos. Havia lá sempre, de certeza absoluta, 50, 70 pessoas, todos os dias. Hoje chegamos a qualquer coletividade e há meia dúzia de pessoas. À exceção, não sei se lá em baixo o Oriental, que está ali próximo da universidade, se é frequentado, não sei, confesso que não tenho estado dentro... Mas, hoje, veja a banda da Covilhã. Antigamente, à noite, tinha sempre uma série de pessoas que vinham, que se entretinham a beber um cafezinho, jogávamos uma suecada, enfim. Hoje não vem ninguém. Os de idade acomodam-se ou vão desaparecendo, os jovens não estão motivados para vir para o associativismo, para isto que é tão rico. É uma pena, uma lástima, que esteja a acontecer. Eu confesso: muitas vezes gostaria… se tivesse uns 20 anos batia-me nas câmaras ou até no Estado para que tivéssemos condições para conseguir avançar com as modalidades. Aqui, a Câmara Municipal da Covilhã, fica registado, tem um senhor que é o engenheiro... Ele está a seguir mais ou menos este meu raciocínio. Infelizmente, a pandemia veio tirar estas realidades ainda mais, mas é uma pena, porque ele estava a reunir outra vez as tropas na Covilhã, do associativismo, dando condições, oferecendo condições. Ainda agora ali... Eu também faço parte da Confraria da Covilhã da Cherovia e Panela no forno, portanto, sou vice-presidente, e ainda agora me foi dito que a Câmara atribuiu 3000 euros de compensação à Confraria para que a gente não deixe morrer a Confraria. Isto tem sido… Esta Câmara Municipal, e especialmente este vereador, que está no pelouro da Cultura, que tem sido uma pessoa dinâmica, eu tive algumas conversas com ele nesse sentido, e ele disse: Manuel tem razão pá. Vamos ver… Mas estes dois anos de pandemia trouxeram, porque estou convencido, porque ele exigia… Eu disse: você não dê dinheiro às coletividades, dê dinheiro a quem pratica, a quem trabalha. Quando, se a pessoa lá tem uma equipa de basquetebol e diz que o basquetebol perdeu isto, deu prejuízo, não sei quê, eu acho bem que a Câmara compense, se tem uma equipe de voleibol é a mesma. Assim sucessivamente. Agora dar dinheiro para as coletividades, algumas aí que infelizmente só tem um bar aberto, que é uma taverna… Eu acho que não, eu aí nisso não alinho. E então, o Oliveira está a fazer um bom trabalho. Distribuiu o dinheiro, pela primeira vez, por todas as coletividades, conforme o exercício que estão a ter. Não é como outras câmaras, que davam dinheiro que, portanto, a Câmara daqui sempre deu dinheiro a algumas coletividades. Mas nem sempre com a preocupação de saber se eram aqueles que trabalhavam mais. Muitas vezes era por compadrio, por amizades, para ganhar votos. Este não, não, é um engenheiro, é o engenheiro Oliveira, mas tem sido uma pessoa preocupada com a questão do associativismo e é um presidente dali do Oriental, que também é muito eficaz nesta situação. Ele gosta muito. Tem sido uma pessoa dinâmica também na Cultura. E pronto, ainda há valores, não há já muitos, como no meu tempo em que qualquer pessoa gostava de ser presidente para fazer andar o clube. Hoje dá-se dinheiro é para não se ser presidente, para não chatearem a cabeça, está a ver como é que é? P: Então, qual é que acha que vai ser o futuro deste movimento? António Moreira: Eu, a minha perspetiva para os meus netos… As coisas, como eu digo, são cíclicas. Um dia os jovens vão verificar que andam errados com o modo de vida como agora têm. Eu fico muito triste quando a minha mãe, quando eu era jovem e tinha um buraquito numa calça e a minha mãe ia-me logo a cozer o buraquito, porque era uma vergonha andar com um buraquinho na calça. Hoje eu não posso aceitar que os jovens andem aí todos rotos como sejam uns farrapilhas, sem dignidade nenhuma. Eu apreciei muito, apreciava muito do povo inglês, pela maneira como se vestia. E hoje, portanto, os jovens, eu acho que anda sempre à procura do que é pior. Felizmente, como lhe disse, tenho dois filhos e tenho muito orgulho neles, que são exemplo também na cidade, mas muitos pais, que eu sei que têm o mesmo valor que eu e que a minha mulher, e não conseguem fazer o mesmo dos filhos e eu às vezes é com tristeza que vejo-os aí todos sujos, rotos. Pronto, porque aquilo que aprendem hoje é só desgraças. É só desgraças... Não sei, o associativismo, faço votos para que um dia volte a ser aquilo que foi na minha Juventude, porque eu penso que aí estaria o caminho certo do mundo, do mundo, não é só do nosso país, porque a convivência, a irmandade… Ajudávamo-nos nos momentos de dificuldades, porque todos tínhamos dificuldades, e era muito bom porque havia amor, havia carinho entre as pessoas, havia dedicação, havia paz, havia muitas coisas boas. Estamos a atravessar uma fase difícil no mundo, da minha perspetiva. E às vezes digo assim para os meus netos: tenho muita pena e eu não consigo alterar isto, mas vou deixar-vos um mundo terrível. -
3 de junho de 2021
José Marques Martins e João José Silva
P: O Sr. José Marques Martins nasceu aqui? José Marques Martins: Nasci em Tondela, ou melhor, em Canas de Santa Maria, freguesia de Canas de Santa Maria. P: Em que ano? José Marques Martins: Em Tondela, em Setembro de 1946. E inicialmente, por curiosidade, apesar de ter nascido oficialmente no dia 29, nasci no dia 11, que é uma data diferente. Tinha que ser. Eu só soube que tinha sido no dia 11 já tinha perto de 30 anos, de maneira que são coisas de histórias, mas que gosto de recordar sempre. Porque a minha mãe, que Deus a tenha, quando eu a convidei para ir para o aniversário: então mãe venho-te buscar ou venho... Que eu já estava casado, e ela: então, quando é que tu fazes anos? Oh mulher, então tu tiveste-me e não sabes? Pois, mas tu não nasceste no dia 29, o teu pai roubou-te na idade, porque antigamente era assim, portanto para dar uma ideia... P: Os seus pais faziam o quê? José Marques Martins: O meu pai tinha a profissão de sapateiro, mas foi um grande corredor de bicicleta, treinou e correu Porto-Lisboa. Aliás, se chegar à Folha de Tondela tem lá uma grande... e daí nasceu, talvez venha dos genes dele toda esta história da… e tenho ainda recordações, portanto, dos jornais em que o meu pai correu Porto-Lisboa, correu a Volta a Portugal, na altura do Américo, do Faísca, do Trindade. E então, claro, não era um corredor, mas tinha um grupo desportivo... P: Já tinha na família a propensão para o associativismo.... José Marques Martins: A minha mãe é doméstica. E depois mais tarde é que ele aprendeu a profissão de sapateiro e a agricultura. E foi isso. P: E estudou lá... José Marques Martins: Estudei em Tondela, no Colégio agora escola secundária, e depois saí de lá com 18-19 anos. E então fui apanhado, como todos os outros da mesma idade, para irmos até à guerra, que foram dois anos, cada um com as suas memórias, nem tanto agradáveis, mas pronto, não vamos falar nisso. E quando vim, tive que recomeçar a vida. Foi uma geração sacrificada, aquela geração da altura em que fomos para a guerra. Portanto, nós tínhamos uma forma de estar, porque vivíamos no campo, o nosso crescimento estava dominado por uma certa formatação. Nós, quando queríamos respostas, diziam-nos: porque sim, porque tinha que ser assim, assim é que era. O Colégio onde andei, católico, também tinha a rigidez religiosa de então, muito mais forte. E nós na agricultura fomos crescendo. Claro que depois apareceu ali uma… naquela altura dos Beatles. Depois éramos muita juventude, havia muita juventude, havia mais filhos, não havia televisão, como eu costumo dizer na brincadeira. E então havia muita juventude e por isso nós juntávamo-nos, fazíamos o tal grupinho de futebol, para ir tomar banho para o rio, para ir para os bailaricos, portanto, havia isso. E onde é que nós nos juntávamos? Nas tabernas, que era um sítio onde víamos um Bonanza e outros que tais. A taberna antiga foi sempre um local de encontro, ou lá dentro ou cá fora. Enquanto os mais velhos estavam lá dentro a beber uns canecos e a jogar à sueca, nós estávamos cá fora, porque não tínhamos autoridade de entrar, porque éramos miúdos, mas já queríamos ir e esse foi o nosso crescimento. Depois tudo mudou, quando aparece o 25 de Abril, mais tarde, portanto, abre-se. E, é claro, quem teve condições para progredir na formação, muito bem, quem não teve, ficou sempre naquele estado. Claro que depois houve aquela vontade em termos um futuro melhor e foi quando se abriu a possibilidade de os caminhos para a França, para a Suíça, para a Alemanha, em que as mulheres ficavam a tomar conta da agricultura. P: Mas o senhor José não emigrou? José Marques Martins: Era para ter emigrado, mas, felizmente ou não, como tive oportunidades de emprego logo de imediato… P: Qual é que foi a profissão que depois seguiu? José Marques Martins: Depois, quando vim, embora tivesse várias opções, mas porque já tinha família constituída, fui para os laboratórios da celulose, em Vila Velha de Ródão. Estive lá três anos e depois de lá é que vim para a Covilhã, para o Instituto de Emprego, antigamente era o Serviço Nacional de Emprego, e ingressei como técnico de emprego e toda a minha... até à minha aposentação. E depois, mais tarde, também me ordenei diácono, portanto, e aí houve razões para essa via, são histórias de vida. P: Não se casou? José Marques Martins: Casei pois, os diáconos podiam se casar. Casei e já estou viúvo. Tenho dois filhos e duas netas e, portanto, foi essa história de vida. Aqui caí e há histórias que a gente conta, quando venho aqui para a Covilhã, gostei de vir. Porquê? Porque embora estivesse em Castelo Branco, eu passei aqui de madrugada e há duas imagens que eu guardo da Covilhã, que jamais me esquecerei: que foi ver pelas seis horas da manhã, mais coisa menos coisa, ver os trabalhadores que eu não sabia para onde é que iam, todos em fila, lá iam com uma lancheira na mão. E então perguntei para a minha mulher, que ela andou aqui a estudar, eu não estive: onde é que esta malta vai? Vão trabalhar, vão agora para o turno. E eu achei curioso irem àquela hora todos, mas uma grande fila de gente. E uma outra imagem quando chego ao Souto Alto, quando vinha do Fundão e comecei a olhar para a Covilhã de madrugada e a vi toda Iluminada, que me deu uma semelhança com o Funchal, onde passei quando vim da Guiné, porque nós parámos no Funchal, porque trazíamos uma companhia de caçadores do Funchal, e deixámos lá alguns colegas falecidos. E a imagem que guardo do Funchal é quando eu acordo, pela coxia do barco, vejo também aquela montanha toda iluminada, que tem uma certa semelhança com a Covilhã. E eu disse na altura, talvez dois anos antes de vir para aqui trabalhar, para a mulher de então: olha, gostava de trabalhar aqui, mal eu estava já a pressupor que um dia vinha aqui parar. Cheguei e, como vim para aqui morar e esta foi a casa para onde vim cair e caí aqui, vim para aqui jogar, ainda me lembro, jogar às damas com um vizinho nosso que já faleceu, que era o Fernandes… E havia cá um contínuo que até tinha uma certa dificuldade no andar, o Sr. Pinto. E então a história do associativismo também começa um pouco aí, quando nós estávamos os dois muito bem a jogar e o senhor Pinto chega e diz assim: podem continuar a jogar, mas é bom que se façam sócios da casa, têm ali uma fichazinha. Então, deu-me essa ficha. Mas têm que pagar uma joia, e a joia era, salvo erro, 50 escudos, ou coisa do género, na altura pagava-se a joia. E pronto, e foi no ano de 1973-74, depois apanho o 25 de Abril. Eu ingresso no serviço de emprego em 73. Estou em Lisboa porque venho para fazer a formação em 74, Janeiro, e o 25 de Abril nasce a seguir, portanto, eu apanho toda essa zona, claro. Depois também gostei de saber o porquê daqui nas fábricas, porque eu vim trabalhar para uma casa e para eu poder ser capaz de poder fazer um serviço melhor, tinha que saber como é que os trabalhadores trabalhavam, porque quando lá estávamos a fazer uma entrevista e aparecia um tosador, aparecia um tecelão, aparecia uma metedeira de fios, aparecia não sei quê, tinha que saber o que é que isso significava para poder ter uma ideia, numa entrevista, do que tinha à frente. Por exemplo, havia cá umas cento e tal fábricas, ou mais um pouco, e eu fui visitá-las todas e fazer um estudo técnico das máquinas. Técnico, isto é: o que é que a metedeira de fios faz? Como é que ela faz? Que instrumentos é que ela utiliza? E depois via tudo isso durante o dia e à noite era aqui no Grupo Instrução e Recreio, no Campos Mello, no Ginásio, e as atividades eram aquelas que, para além do Futebol Sporting da Covilhã, como é evidente, mas eram aquelas que agregavam mais gente. Claro, depois apareceram, mais tarde, outras. Quando apareceu a Universidade, muito mais se abriu. E portanto, saber o porquê disto, talvez também pelo gosto de saber da História daqui, como é que nasce e, portanto, cheguei sempre à conclusão de que é o mesmo em todo o lado. Havia um objetivo comum daquela gente, juntavam-se. Havia um objetivo comum, havia também um cimento que era a solidariedade entre eles e toca de fazer uma coisa que fosse benéfica para os outros, para o bem comum, para eles próprios, e que desse formação àquela gentinha. Foi sempre essa a evolução associativa. Aquilo que, com quem eu conversava, com os mais velhos, era isso: epá, nós queríamos era, queríamos aprender, mas não sabíamos ler, queríamos saber mais, queríamos que os nossos filhos....E eu lembro-me que os meus pais diziam assim: eu não quero que o meu filho ande com uma enxada nas mãos. Possivelmente aqui os tecelões, eu quero que os meus filhos não saiam e não sejam... P: Queria fazer ao senhor José mais duas questões para estatística. Na realidade, estou a perguntar a toda a gente, se é professa alguma religião. José Marques Martins: Sou católico. P: É católico, claro, e se está filiado em algum partido político ou já esteve. José Marques Martins: No Partido Socialista. P: E já agora também ao senhor João, ficamos já com estas duas questões: é religioso, professa alguma região? João José Silva: Católico. P: Também é católico e é filiado em algum partido político ? João José Silva: Também no PS. P: Então vamos começar pelo início. Nasceu aqui na Covilhã? João José Silva : Sim, nasci, criei, fui criado, fui batizado, fui criado, casei e a minha vida foi sempre praticamente na Covilhã. P: Nasceu em que ano? João José Silva: Em 1947, 12 de janeiro de 1947, e fiz sempre aqui a minha vida. Aliás, sou filho da terra. E sou filho dos meus pais. O meu pai era técnico de tecelagem, afinador de teares, e a minha mãe metedeira de fios, ainda há bocado o Marques Martins estava a dizer que não sabia o que era uma metedeira de fios… a minha mãe era realmente metedeira de fios. P: E o senhor João, também foi trabalhar para a indústria têxtil? João José Silva: Eu trabalhei relativamente pouco tempo, porque era assim, era difícil na altura. Os meus pais… éramos três irmãos, duas irmãs, comigo três, e era muito complicado, porque na altura os ordenados eram relativamente baixos e viemos morar aqui para o bairro do Rodrigo, onde, na altura, a renda já era um pouco cara em relação àquilo que ganhava o casal. E o meu pai teve que me chamar a atenção e dizer: vocês têm que trabalhar, têm que ajudar a casa. Eu fui trabalhar, comecei a trabalhar com 12 anos. O primeiro emprego foi precisamente, não foi na indústria têxtil, acabei por ir para um gabinete de advogados onde estive, fiz alguma formação e depois apareceu uma outra situação, mudei e acabei depois por ir para a indústria, porque a firma para onde eu fui a seguir encerrou por motivos que desconheço. Então eu, para não estar desempregado, sentia-me um inútil, no termo da palavra. Eu queria realmente era a minha independência, ter algum para poder, ao longo da semana, planear o que eu poderia fazer e então foi quando eu estive, pouco tempo, na indústria, fui cardador, com 18-19 anos. Depois surgiu a hipótese de uma outra situação: convidaram-me para ir para o Sindicato da Indústria de Lanifícios do Distrito de Castelo Branco, onde estive desde 1964 a 1968. Entretanto, fui à inspeção, fiquei aprovado e toca de ir para Angola. Não sei o que lá fui fazer, para Angola, fui forçado, fui obrigado. Estive lá três anos em África. Regressei de África e, claro, a minha preocupação foi arranjar alguém com quem casar. Casei e também já estou viúvo. E pronto, tem sido... ainda andei na escola Campos Mello, mas não concluí, porque era difícil na altura. A gente chegava do emprego às sete da tarde, das nove às sete da tarde. E às 7:30 tínhamos que entrar na escola, na escola Industrial e comercial Campos Mello. P: Qual é que era o trabalho que tinha na altura? João José Silva: Na altura estava ligado ao Sindicato dos Lanifícios como funcionário. Entretanto, pronto, não concluí. Reconheço que a própria juventude, os namoriscos... Até acredito que podia ter, podia ter conseguido outras coisas, mas não, porque era muito difícil. Entretanto, depois de ter vindo de África tive um pequeno comércio, uma papelariazinha, que abri na altura. Estive a explorar aquilo durante dois anos, foi quando surgiu a hipótese de ir para o Hospital Distrital da Covilhã, onde estive 40 anos a trabalhar como auxiliar de ação médica. Gostei imenso daquilo que fiz, gostava imenso, adorava a profissão e a prova está que nunca saí do mesmo serviço, não, tive o mesmo trabalho sempre, todo esse tempo. Por incrível que pareça, e não está aqui que não nos ouve, fui apanhar lá o Sr. José Marques Martins com problema de rins. José Marques Martins: Mal eu sabia que tinhas passado pela minha mão para ir para o hospital, eu sabia que ele era bom… João José Silva: Sempre dedicado à cidade e o José Marques Martins é uma pessoa que eu conheci de perto, desde 1973. Agora, porque somos vizinhos… José Marques Martins: Eu andei com as filhas dele ao colo. João José Silva: Éramos uma família aqui, éramos uma família, toda a gente se dava bem, toda a gente se comunicava, era importante. E o Grupo Rodrigo, quer se queira quer não, ajudou e continua a ajudar muito nessa parte. Não tanto como nessa altura, porque era aqui que a gente se concentrava, era aqui que a gente conversava, era aqui que a gente bebia o nosso café e jogámos ao 21, para saber quem é que pagava os cafés, jogava-se as damas, como o Martins dizia, o snooker, o bilhar livre, as cartas, o dominó... José Marques Martins: Depois do trabalho, onde é que nós íamos conversar? Tínhamos o jornal e líamos, ouvíamos as histórias e depois começámos a.... João José Silva: Criar amizades… José Marques Martins: E depois há sempre os mais velhos, aqueles que estão nos órgãos sociais. Quando chegava a altura da revitalização de novos órgãos, iam apontando este e aquele e o outro não sei quantos. Bom, eu falo por mim e pela minha experiência, fomos indo e olha, estive cá desde 1975 até há dois anos atrás. Foi sempre, só tive um interregno de quatro anos. Portanto, depois passei para a Assembleia, que para lá me queriam chutar, mas criámos coisas interessantes e a beleza disto, não sei se concordarás comigo, com certeza de que sim, a beleza disto é que nós, mesmo não tendo a mesma… tendo opiniões diversas, conseguimo-nos juntar para pormos a coisa a funcionar, porque íamos à procura, com a nossa diversidade, de elencarmos um programa que fosse o melhor possível. E deixávamos as diferenças para irmos buscar aquilo que mais nos unia. Hoje, já não vejo, infelizmente, não acho que já não é tanto assim. João José Silva: E, acima de tudo, estavam os interesses da coletividade e não os interesses.... Exatamente como estar ligado à política. Eu, aliás, apanhei o José Manuel Martins na política, mas era muito antes de mim, o estar na política não queria dizer que a gente que se aproveitasse de alguma coisa como interesse pessoal, nós viemos para aqui para defender os interesses da coletividade. Era extremamente importante. José Marques Martins: Era engraçado, era belo, primeiro para nós. Vamos lá ver, o associativismo funcionava, não, funciona, porque nós trazíamos a família connosco, não fisicamente, mas vinham connosco, no coração vinha connosco, e nós queríamos que esta casa, que é a casa que vínhamos também trabalhar, que as famílias se sentissem aqui bem e por isso, quando tudo o que nós fazíamos era sempre com o objetivo… tanta vez que nós dizíamos aqui: as nossas esposas são aquelas que nos aguentam para estarmos aqui nos órgãos sociais. João José Silva: Aliás, a minha até realmente colaborou imenso, e as filhas, no rancho folclórico, nas marchas populares… José Marques Martins: Na costura, elas faziam tudo e a tua filha, ela também, as danças rítmicas, os miúdos… Quer dizer, elas também cresceram com esse gosto porque viam que os pais tinham gosto e se eles... às vezes eu perguntava: vocês gostam? Vocês andam cá… E, portanto, este gosto passava-se de pais para filhos. Porque era uma coisa linda e tudo o que era feito não era com o intuito de “eu fiz”, não, “nós fizemos”. Nós fizemos, e isso para nós foi... P: Então e essa propensão que vocês passaram para os vossos filhos, terão herdado dos vossos pais, os vossos pais tinham participação associativa? João José Silva: Eu no que diz respeito ao meu pai, sim. Foi sempre um....e era trabalhador na indústria de lanifícios, quer dizer, aliás, o movimento operário na Covilhã nessa altura era fortíssimo, como deve calcular. E ele já… ele entrava aqui e eu recordo até uma passagem extremamente importante, importante e desagradável ao mesmo tempo. Aqui na altura só se conseguia, a direção, na altura, só autorizava a admissão de associados que tivessem mais de 17 anos. E o meu pai vinha, eu vinha com o meu pai, mas só podia estar com ele, porque se ele não viesse, não me deixavam entrar e ele ainda arranjou uma chatice porque soube na altura que houve associados que admitiram com menos idade que eu, e só aos 17 anos é que me consegui fazer sócio desta coletividade. José Marques Martins: Aliás, era aquilo que diziam os estatutos. No meu caso, quer dizer, para além daquilo que o meu pai teve, aqueles genes, eu já via a coisa de outra maneira. Depende também tudo daquilo que nós temos na nossa alma, que vai cá dentro, porque repare: o meu pai também tocava numa banda, numa música, numa filarmónica, na Filarmónica de Tondela, e eu aprendi música também, por aqui, para tocar alguma coisa num órgão, porque me ajudava também nas celebrações. Mas gostei sempre do teatro, porque mesmo nos meus tempos de colégio eu fiz muito teatro, que é o teatro da escola. Fora disto, na minha aldeia, na minha zona, nós criávamos grupos, sem querer, que nem sequer chamávamos associação. Era um grupo em que nós nos defendíamos, em que nós sabíamos as coisas uns dos outros, em que nós nos ajudávamos uns aos outros e aprendemos a ver isso na agricultura, quando este grupo ia ajudar aquele na sacha e nas vindimas e aquele ia no outro. E isso, para nós, quer dizer, para nós era bom. Eu gostava porque também andei nisso, íamos: agora vamos ajudar aquele, depois daquele, vamos ajudar aquele e portanto, quando chegávamos ao fim, à noite, para nós era uma alegria vermos que todos estavam felizes, porque alguém ajudou outro e sabia que aquilo funcionava. Se me perguntassem o que é que isso era, eu hoje reconheço que aí já eram… havia um objetivo comum, havia o bem comum, isso era associação, era uma associação. Só que não era… aqui, quando eu chego à Covilhã, a coisa já era diferente, porque existe uma indústria, existe aquilo que nós também lá sentimos, os industriais daqui começaram a dizer assim: alto, precisamos que os nossos filhos… precisam de ter algo que os ensine, que os forme. Porque se nós não dermos condições aos nossos filhos para se educarem, para se formarem, não vale a pena continuar. Essa foi uma das razões que o associativismo nasceu aqui e lá também, pelo desporto, que é sempre uma escola de educação, em que havia também a parte da música, as letras e quando não havia escolas, era ali que nós íamos aprender. P: Fale-me mais nessa ideia, é muito interessante essa ideia de quase comunitarismo que existe na agricultura. José Marques Martins: Sim, muito importante, muito importante. Porque eu sinto isso de nós nos juntarmos em grupos e virmos para as grandes vindimas daquela zona do Dão. Nós íamos em grupos e havia sempre o líder do canto. O canto era aquilo que fazia a agremiação de todos. As desfolhadas, íamos agora a desfolhada, por hipótese, e íamos depois à desfolhada do não sei quantos e então nós todas as noites nos juntávamos e o milho aparecia nas eiras. E então como é que nós criávamos essa... isso é que que eu trouxe e que me ajudou. O que é que nos ajudava? Nós não íamos para as desfolhadas e estávamos ali feitos monos a desfolhar. Havia uma rivalidade como existe nas associações. A rivalidade de rapaz com a rapariga: eu liderava a parte do canto dos rapazes e picava as raparigas, onde havia uma tal Fernanda, que também picava os rapazes e isso criava... e quando nós damos por nós, já estava o milho, já estava tudo desfolhado, já estavam espigas todas no sitio como devia ser e já estava lá uma mãe, ou uma avozinha, a preparar o bacalhau com cebola e com tomates e com pão para nós comermos tudo no final da desfolhada. Isso era festa, fazíamos essa festa. E, portanto, isso cresceu connosco e ficou cá. Depois, é claro, aparecerem condições numa zona, como aqui apareceu, condições para trazer à tona aquilo que nós fazíamos, vamos em frente. Ou paramos ou deixamos que isso cristalize… Ou então fazemos aqui. Eu recordo que uma das primeiras coisas que fiz, que ajudei a fazer, na parte do teatro… fizemos aqui o Grupo Girtec, inclusivamente estive em Évora nessa altura a tirar o curso de animação cultural no teatro Garcia de Rezende, em 76, portanto, que me permitiu algumas luzes. Mas havia essa parte, digamos agrícola, muito interessante em que as pessoas se ajudavam umas às outras… P: E em meio urbano, também havia essa entreajuda informal? José Marques Martins: Diferente das aldeias. Aliás, aqui em meio urbano era assim: as pessoas trabalhavam e praticamente onde se reuniam era no final do trabalho ou nas tascas, nas tabernas, que era a Viene, era quase porta sim, porta sim, e depois à noite vinham às coletividades. A coletividade abria às 6:30 da tarde, todos os dias. E quando eu falo aqui num senhor que era, na altura chamavam-se contínuos, agora são empregados ou colaboradores, falámos aqui no senhor [...], era um homem que... de muita postura, de muita responsabilidade, gostava imenso da coletividade ao ponto de sofrer na carne dessa forte união. O que ele sentia pela coletividade e ao pôr-se ao lado dos dirigentes, na altura, era complicado... Ele foi preso na altura, vieram-no buscar ao Grupo de Rodrigo depois do seu trabalho, a polícia política veio buscá-lo aqui. Porque ele era forte colaborador com a direção, o grupo que esteve na altura... Quando se criou o grupo estávamos em ditadura e todos nós sabemos que as ditaduras viviam um bocadinho às avessas com o associativismo, porque o associativismo é democrático. Juntam-se várias ideias, juntam-se várias pessoas com um objetivo comum, mas as ideias fluem… Não há ali um indivíduo que diga: eu é que eu é que comando, é que não sei quê… Não, todos contribuem. Portanto, a vida associativa é uma vida que se transporta para a cultura, quer dizer, para os objetivos de luta. E é, tal como aqui, as coletividades, qual é que foi a luta aqui? Era o ensino, era a formação e ensino, educação e, neste caso, a lutuosa, como nós também sabemos. Havia razões. E o que era a lutuosa? Coitadas das pessoas… Quando morria alguém não tinham dinheiro, não tinham, sei lá, para mandar tocar um cego, quanto mais, era um objetivo definido, havia uma luta. E já que o governo não conseguia fazer chegar até ao necessitado essa resposta, eram as pessoas que se juntavam numa certa zona para criar essa resposta. E aí, claro, quem tem o poder, não gosta que alguém vá fazer-lhe frente com isso. Isso é verdade e, portanto, o associativismo era isso e daí que veio para aqui. E na altura olhavam-nos com uma certa… João José Silva: Na altura, quem não era deles, era comunista, tudo era comunista, desde que não fosse… Mas não porque aqui o GIR teve nos seus órgãos sociais, um ministro, na altura. José Marques Martins: Que foi presidente da Câmara e que oficializou a primeira escola primária aqui no bairro, que foi aqui na coletividade. O que era isso? Era a possibilidade de termos professores oficiais, porque até aí a escola era aqui do grupo, mas não era oficial, só que havia pessoas que ajudaram a dar a escola aos filhos dos funcionários... João José Silva: Depois foi oficializada… P: Estudou aqui, o João? João José Silva: Eu estudei, não aqui no GIR, não. Eu estudei na escola aqui do bairro do Rodrigo, e esse doutor Almeida foi eu quem travou o encerramento da coletividade. Porque era assim, havia um ajuntamento: o que eles estão a fazer na coletividade? Vamos lá ver o que é que se passa? Porque é que vocês estão a reunir? Porque é que vocês têm que estar a reunir? E aí havia desconfianças… José Marques Martins: Isto foi entre 1921 e 28. E em 1928 é quando a escola é oficializada e, sendo oficializada, já não era fechada de ânimo leve. A partir do momento em se oficializa uma escola, numa instituição, espera lá, isto é o Estado que dá luz verde, se dá luz verde… Porque até aí, é porque houve aí alguém que mexeu os cordelinhos, diga-se em abono da verdade. Agora que o princípio quando, faço ideia, quando isto começou nas tabernas e começaram a querer alugar uma casa aqui e arranjar e não sei quê, é que a PIDE e sei lá que mais o quê andaram de olho acima. O que é que estes indivíduos andam aqui a fazer? O que é que não sei quê, portanto tudo isso era... João José Silva: Até porque a escola oficial terminou aqui em 1950. Foi quando foi inaugurada a escola do Bairro do Rodrigo, em 1951. Ela tem, precisamente… é quase da mesma altura que o bairro em si. Eu, quando vim para o bairro do Rodrigo, a escola tinha sido inaugurada há um mês ou coisa assim. Foi logo a seguir, ou foi antes… Eu vim a seguir, exatamente. Pronto e depois entrei na escola aqui, com seis anos. Seis para sete. P: E nesse período antes do 25 de Abril, quais é que eram as principais atividades em que vocês participaram? José Marques Martins: Eu lembro-me que participei. Eram as damas, eram os jogos de mesa, jogos de… João José Silva: Snooker, bilhar... José Marques Martins: Mesa, era jogos de mesa, porque desporto no exterior não havia. Futebol de salão, de 11, não havia. Isso apareceu mais tarde, na abertura, depois… foi o 25 de abril. João José Silva: Aliás, antes do 25 de Abril, vai me desculpar, dentro desta coletividade foi formada uma outra, que neste momento é o CCD do Rodrigo. O CCD do Rodrigo saiu daqui, formou-se aqui. Porquê? Porque o CCDS, na altura, era um centro de recreios populares ligados à FNAT. E como eles não tinham instalações próprias, tiveram que pedir aqui a cedência de salas ao GIR do Rodrigo, onde eles fizeram os seus estatutos e organizaram-se como coletividade com o auxílio precisamente da FNAT. E aí, o que é que acontecia? Como havia os campeonatos regionais de futebol, que eram patrocinados pela FNAT, só conseguiam entrar se eles tivessem um local, uma sede, um sítio onde pudessem exercer a sua atividade. E essa associação, que funciona aqui, é nossa vizinha, e que está ligada hoje ao INATEL (não sei se já não é INATEL, é fundação), continua viva. E essa associação criou realmente um certo dinamismo a nível de desporto, porque elas estavam direcionadas para o desporto, nós aqui era mais a cultura, o teatro... José Marques Martins: Já fizemos os primeiros jogos florais da Covilhã, fizemos um jornal também, fizemos um boletim. Hoje, olhando um pouco para trás, João, o associativismo tinha uma grande força, porque não havia mais nada, não havia outras respostas. As pessoas procuravam respostas. Onde é que vinham procurá-las? Era aqui. Estar aqui onde havia o jornal, onde havia a televisão, onde havia um rádio. João José Silva: Os banhos. Vinham pessoas com a sua toalhinha, era aqui, na parte de baixo. José Marques Martins: Havia o sapateiro, as máquinas de barbear… Hoje o que é que nós temos? Temos a televisão que nos traz a informação e a contrainformação. E hoje o associativismo é uma forma de estar, portanto, há sempre um objetivo comum. Agora tem de ser recriado com novas formas, já não é como aquela altura. Quando, há um ano atrás, dizia: vamos, temos que fazer isto, ok? Nós vamos fazer, mas temos que fazer de uma outra forma que capte, digamos, que as camadas novas venham. Mas já não é da mesma forma que vinham antigamente. Antigamente vinham à procura de uma resposta, porque não tinham outras. Hoje, sabemos nós, que temos que estar em paralelo com outras respostas e hoje o associativismo vive de outra maneira. João José Silva: Eu digo mais, e com muita pena, o facto de haver grande alteração em tudo isto, porque as coletividades têm tendência a fechar-se. Com muita pena que eu digo isto. Ou terá que haver aí, o próprio governo… José Marques Martins: Eu, as coletividades, eu tenho uma outra... Isto agora, por exemplo, as coletividades têm que tomar juízo. Vamos lá ver, antigamente, lembro-me, lembro-me quando tínhamos água da poça, que era a da poça. Nós tínhamos as nossas hortas e o meu pai dizia-me assim: pega no sacho que hoje a água é nossa. Então eu vinha pelo caminho abaixo a calcar as loras dos bichos que era para a água não fugir, que era para a água chegar mais rápido à minha horta e para evitar que ela fosse para a horta do vizinho. Porque a água era pouca, tínhamos que a distribuir e a água era pouca e naquele dia era para nós, então andávamos a vigiar se alguém... Ora bem, nós tínhamos que ser transparentes, mesmo se quiser, tem que ser transparente. Ou os subsídios que possam vir têm que ser com transparência, saber para que é que servem, para onde vão, como é que são utilizados, porque senão estamos sempre naquela dúvida. Fulano que está mais perto da fogueira, aquece-se mais, não sei quê. Isto foi uma moda que andou e é preciso que pare. Depois também temos uma outra coisa que se torna importante: nós sabemos que nós temos instrumentos e que a outra coletividade não. Tem que haver algo que consiga saber o que é que aquela coletividade precisa e aquela e aquela, e, em vez de andarmos todos a comprar coisinhas diferentes, os instrumentos de uma têm que servir para os instrumentos da outra. É assim que eu entendo. É assim que entendo, porque senão corremos o risco de termos os campos de futebol cheios de tojo e de mato e nas aldeias e corremos o risco de termos grandes instalações em coletividades e termos poucos recursos humanos lá dentro. Eu recordo-me de uma entrevista que uma vez dei, quando esta casa teve a estrutura que tem, é uma beleza, sem dúvida, uma beleza, e paredes novas. Sem dúvida. Eu recordo-me disso. Mais importante do que numa casa aquilo que conta são os recursos humanos, porque se a casa não tiver recursos humanos, fecha, de hoje para manhã fecha, então servirá para outra coisa. Os recursos humanos é a coisa mais importante e trabalhar com recursos humanos dói e é preciso ter capacidade para gerir recursos humanos. Mas, sabendo gerir, nós conseguimos chegar lá desde que as coisas sejam postas na mesa, com toda a clareza. A Câmara subsidia e faz o seu papel. Mas não é, já não é, não pode ser aquele.... Vá lá que agora parece que há uma lei, é uma lei que conseguiram criar, um regulamento, que é importante. Mas o Parlamento… tem que ser feito desta… João José Silva: A atribuição dos subsídios não é dada assim, como era antigamente. Tem que se apresentar um plano de atividades, mas que não seja um plano de intenções: vamos fazer… Não, tem que dizer no papel porque é que vão fazer isto. José Marques Martins: Nós temos aqui um evento associativo que é tremendo e que não colhe frutos, não sei porquê: as marchas populares. Juntam-se várias entidades, várias associações, que gostam, que estão interessadas. Junta-se a Câmara. Há um bolo, há uma água da poça para todos. E então cada um, perante um mote próprio, sei lá, aquilo pode-se de hoje para amanhã, criar uma nova forma. Mas vamos, faz-se festa e só não vê quem não quer ver, não é quem não vê, que o que é que uma marcha faz, ao sair de lá de cima do campo das festas e vir até ao Pelourinho e ver aquele mar de gente a ver, que vem ver. Se vêm ver é porque gostam. E a Câmara sente-se ufana, mas são as coletividades, são as associações que estão a fazer todas um trabalho, cada um. E as pessoas vêm, as pessoas aderem. Porque há um objetivo, de fazer festa. Agora, aquilo que o João dizia é verdade. Se não houver um impulso que dê dinâmica a estas casas, morrem. E morrem porquê? Porque pode haver a cristalização dos órgãos. Isto chega a um ponto que também aborrece. O João esteve aqui muitos anos na direção. Eu tive mais tempo, eu cheguei a um ponto... muitos anos na casa que sentia-me preso, e agora? Não há gente nova e nós, não é que não gostemos da casa, mas o gosto que nós temos por esta casa é, digamos, é ultrapassado por aquilo que nós queríamos, de que outros viessem com novas ideias, como uma forma de estar... E não vêm, não há. E entra-se numa direção com nove elementos e é só quatro ou cinco que às vezes aparecem, sabe Deus com que sacrifício. Porquê? Porque eles próprios também, quando se juntam aqui e… eu não sei o que é que... O João nisso teve muito mais tempo na parte da direção do que eu, mas via, também sei ver. Chegava a um ponto que também se disse: enfim, mas vou trabalhar para quê? Havia a própria pandemia, veio estragar ainda mais. Nós tínhamos aqui a beleza dos Santos populares, aqui neste espaço que depois nós vamos ver, onde fazíamos as sardinhadas, fazíamos essa festa, e isso dava-nos ânimo. Vinha muita gente para a coletividade, sei lá, mais tarde, então vinha, só que veio a pandemia, retirou-nos gente. Agora estamos novamente a começar e, claro, há um elemento que sempre frutificou no associativismo, que é a taberna. A taberna sempre cá ficou. Em todas. Uma associação que não tenha um bar não progride. João José Silva: Em parte, um bar é na realidade... José Marques Martins: Um bar é que chama... é o café, a cerveja, as bebidas... João José Silva: Porque as bebidas são mais baratas... José Marques Martins: Vem desde os primórdios. João José Silva : Sim, já vem. José Marques Martins: Então, o bar tem que lá funcionar, se houver uma associação sem um bar… Nem que lá haja uma máquina de café. João José Silva: E quando refiro aqui, com pena, que digo que as coletividades têm tempos difíceis é que reparo, e aqui o José Marques é da minha opinião, é que não há pessoas a quererem colaborar. Hoje é… quanto é que é? Não há dirigentes E aí a Confederação, e muito bem, tem trabalhado no sentido de que, aliás já há o estatuto de dirigente associativo… Mas porque é que o dirigente associativo, que ocupa um pouco da sua vida, que quer queira quer não, nós andamos aqui uma vida, nós prejudicamos até inclusivamente o ambiente familiar, porque não estamos lá, porque aqui era a nossa segunda casa. Porque é que não há-de haver um incentivo para que as coletividades se mantenham abertas? José Marques Martins: Os governos pecaram. Eu não estou a dizer para nos darem uma reforma, nem nada disso. João José Silva: Porque hoje nota-se as dificuldades. Por exemplo, a Covilhã é rica em associações, como a doutora sabe. Neste momento, posso-lhe dizer que amanhã há Assembleia geral do Grupo, ato Eleitoral para os órgãos sociais, novos órgãos sociais. Posso-lhe dizer que amanhã há n associações que estão precisamente nessa situação: umas não têm direção, têm comissões administrativas, outras têm uma direção, mas à última da hora um não quer, desiste. É essa a parte, e o que é que a quantidade pode oferecer neste momento? Eu muita vez comentava para o Zé Marques, que é a pessoa com quem a gente, com quem a gente lida e eu lido muito bem, porque é um homem com muita cultura, fez coisas belíssimas aqui no Grupo Rodrigo, o Grupo do Rodrigo muito lhe esta agradecido, é verdade. O que é que o GIR pode oferecer às pessoas para virem à coletividade? Televisão... Aliás, a Confederação pôs aqui um posto público [de internet]. Nós tivemos um posto público aqui, na altura, com computadores, oferta pela Confederação, e também a parte dos instrumentos musicais. José Marques Martins: Tu estás a tocar num ponto importantíssimo, que é verdade. O dirigente associativo devia ser considerado, não devia ser só considerado na altura de eleições, nem só para grandes discursos escritos ou orais, através da rádio. Mas devia ter uma dignificação diferente. Nem que para isso tivesse que ter, e eu comungo disso, ainda há pouco tempo tirei um curso de evacuação, por causa de defesa de incêndios. Porquê? Porque estou a presidir a um lar e é uma unidade de idosos e de crianças e, portanto, preciso também de saber um pouco disso. Isso significa o quê? Que o dirigente… e sou voluntário, portanto, vamos cair no voluntariado. Ser voluntário significa algo que nós darmos de mão beijada sem ser à espera de usufrutos para o próprio, é para o bem comum. Isso é ser voluntário. Voluntário é quando damos alguma coisa para o bem comum. Agora, o problema é quando, e muitos pensam hoje que se vem para estas casas, para se atingir, digamos, uma elevação, portanto, um posto. Não pode ser. Se vêm com isso, não vale a pena virem. E, por isso, o dirigente associativo tem que ser alguém que tenha que ser dignificado. Como? Há muita forma. Não é com dinheiro, não é com salários, não é nada disso. Mas há dignidade e há posturas e o dirigente associativo teve muito… e há muito que é louvado pelas autarquias. As autarquias devem louvar os dirigentes associativos. E devem louvar por várias maneiras e posso-lhes dizer como é que podem e quais são as razões, por que é que os levam a isso. O que é que nós podemos oferecer? É a pergunta que se coloca: o que é que vocês lá têm para eu ir lá poder ir. Essa é a pergunta que fazem lá fora: o que é que vocês lá têm? Então temos que criar aqui. As autarquias também têm que entender que nós temos instalações onde podemos dar possibilidade de... dar formação, dar informação, fazer formação, fazer apresentações de pinturas, tanta coisa que se pode... se cá vierem hoje 15 indivíduos ver uma sessão de pintura ou uma sessão de leitura, vêm só cá 15 hoje, mas na próxima já vêm sessenta, porque são os 15 vezes 4, ou seja, se a coisa for bem clara, se houver aqui algo que lhes possa oferecer, caramba, custa assim tanto oferecer umas bolachas e um bolo e um porto para as pessoas aparecerem? Quer dizer, não é isso que lhes vai encher o estômago, mas é uma forma de acolher, uma forma de acolhimento e fazer uma leitura, por exemplo, ou mandar uma informação com as vacinas, com tanta coisa que nós temos, tantas dependências que são gratuitas para as autarquias. João José Silva: O GIR sempre soube receber bem. José Marques Martins: E onde os órgãos de certeza que se disponibilizariam, de acordo da sua especialidades, a ajudar, mas não, prefere-se pagar. Não estou a dizer que não se pague, tudo bem, mas existem possibilidades. Era uma forma de as associações estarem a servir o bem comum. Se as próprias autarquias não nos dão... Se só estão à espera que a gente lá chegue com o boné na mão para pedir o subsídio. Eu não gosto muito disso. 00:20:18 Joana Dias Pereira Então vamos voltar ao passado, pode ser? Embora esta conversa sobre o futuro seja também muito importante. Mas há bocado estava a dizer que também tinha estado antes do 25 de Abril no sindicato. João José Silva: De 1964 a 68. P: Que responsabilidades é que tinha? João José Silva: Eu era um escriturário na altura em que andava assim: eu batia à máquina. 10000 associados que tinha o sindicato, porque eram umas folhas que a gente punha o número daquele operário, a empresa… Por exemplo, posso-lhe dizer: a Nova Penteação, na altura a Penteadora, a Ernesto Cruz, o Alçado e Filho, a Lano Fabril, eram empresas com muitos trabalhadores e eu, a minha função era trabalhar nessas folhas, escrevia os nomes um por um. Joana Dias Pereira: E depois também esteve no sindicalismo, depois do 25 de abril? João José Silva: Estive. Fui dirigente sindical em 80 e picos, fui dirigente sindical, estava na área da saúde. E na altura o Mota, que era o responsável daqui do distrito de Castelo Branco, convidou-me e estive ainda… fiz o mandato de dois anos assim. Estive ainda ... P: Mas eram realidades diferentes, o sindicalismo antes e depois. João José Silva: Muito diferente. Também a verdade é que às vezes os horários... eu era assim, eu quando aceitei ser dirigente sindical pus essa logo ao Mota: eu não vou tirar tempo nenhum ao trabalho. Eu vou ser dirigente, sim senhora, com muito gosto, mas só vou às vossas reuniões, aos vossos congressos quando tiver folgas ou disponibilidade. Não quero meter nenhum documento a dizer que eu tinha direito a determinadas horas e determinados dias. Nunca, nunca, é assim, como diz aqui o Zé Marques, nunca me aproveitei, nunca precisei de nada para me promover, porque tinha a vida feita. Eu nunca, mesmo a nível do Grupo do Rodrigo, mesmo a nível de política, e o Zé Marques sabe perfeitamente, tivemos ali, colaborámos bastante, andámos ali… P: E estiveram noutras associações para além do GIR? José Marques Martins: Dirigente associativo, nunca fui, nunca fui. No serviço do meu do Instituto estive, mas isso...Agora, fora disso, sou sócio, mas não como órgão, lá dentro não… João José Silva: Eu faço parte de três. José Marques Martins: Trabalhei alguns anos na Liga Portuguesa contra o Cancro, mais tempo. Depois deixei, na altura em que a minha mulher adoeceu, e passei para outra área, para esta área do diaconado. Mas outras não, porque quer dizer, ou se trabalha numa... isto é como os presidentes administrativos das empresas, ou é um ou é outro, e depois andam a buscar daqui e dali. Havia lá… ainda bem que havia outros. Hoje, possivelmente, se nós se nos convidassem para ir para outras instituições… Mas também já não temos... Eu, pelo menos... P: O João disse-me que estava também na Liga... João José Silva: Estou, faço parte, faço voluntariado na Liga Portuguesa contra o Cancro, com muito gosto. E agora, sem ser…, fui convidado para fazer parte da Associação de Diabetes da Serra da Estrela. Estou a colaborar, aliás, sempre gostei de servir a comunidade, faço isso com um amor e carinho… E aí é, também um pouco da minha da minha vida. O Zé Marques teve uma vida muito mais ocupada, é uma sorte, mas ele faz muito bem o que faz e também é uma pessoa, não é por estar aqui presente, mas quero lhe dizer que é um homem com muita valia... José Marques Martins: Eu entrei para o diaconado, entrei para esta coisa, porque me interessei e estou a trabalhar em várias paróquias e faço a assistência espiritual também na prisão, o que me dá… Ensina-nos saber a vida deles, porque caíram ali, como caíram, o que é que faziam e, portanto, todos nós ficamos com essa ideia. Por outro lado, a nível da minha profissão no instituto, nós ouvíamos aquilo que as pessoas nos diziam e nós éramos túmulos, ou seja, só púnhamos na ficha aquilo que interessava e que era corriqueiro para outro colega ver. Mas, por exemplo, ouvíamos desabafos. Nós passamos aqui alturas de grandes crises, era cíclico, de três em três anos a têxtil tinha uma crise. João José Silva: E vai-me desculpar, na altura em que estive no sindicato, quando o Martins falou em 60 fábricas, upa, upa. Eu estive no sindicato, na altura eram 123 firmas. Claro que a gente… havia firmas que só tinham cinco teares ou tinham 10 trabalhadores, mas eram consideradas as firmas: 123 firmas, todas elas. Algumas eu recordo perfeitamente. José Marques Martins: Depois veio a crise das confeções e havia coisas deste género, havia desabafos. Eu estive numa Assembleia, pertenci a uma Assembleia Municipal que esteve retida. Trabalhadores de uma empresa não nos deixaram sair. E ouvia coisas, deste género, naquela altura havia a possibilidade de uma empresa que tinha 700 ou 800 trabalhadores, para poder vingar, tinha que pelo menos metade vir para o subsídio de desemprego e ficava lá outra metade. Então ouvia-se isto: ou vêm todos ou nenhum! Quer dizer, ouvia-se isto, era uma forma de estar. As pessoas… quer dizer porquê? Porque não havia uma informação que fosse transparente e concreta cá para fora, é preciso que seja feita desta maneira. Como agora com as vacinas, quando as informações vêm para o exterior como deve de ser, o povo até aceita. Quando não vêm... João José Silva: Aliás, o GIR teve aqui nas suas instalações, durante algum tempo, as formações dessas pessoas, como diz o Martins: vais para o desemprego... E eram colocadas aqui a fazer formações que não tinham nada a ver com a profissão que tinham. José Marques Martins: Nós tínhamos outras entidades e isto era assim: as entidades que nos abriam as portas e que nos facilitavam mais a vida tinham condições. Por outro lado, também havia esta possibilidade de, depois, quando elas começaram a fechar, porque ao princípio as mães, sobretudo as mães e os pais, a menina ou o menino, tinham o quinto ano, tinham de ser telefonista ou empregado de escritório. E eu, tanta vez que eu dizia para elas e para eles: por isso esqueça o emprego de escritório e esqueça o telefone, porque os deficientes também têm o direito a irem para o telefone e nós tínhamos um telefonista. Preparem-se para serem desenhadores, para serem modelistas. Tirem um curso de modelista. Mas porquê? Vêm aí as confeções, começaram a vir as confeções em grande. Claro que depois tiveram que ir tirar o 12º ano para serem modelistas, quer dizer. Portanto, houve um crescimento. P: E como é que era? Como é que se viviam aqui as greves, as lutas? Isto é uma zona muito operária... José Marques Martins: Tem graça, os primeiros mil escudos… Logo a seguir ao 25 de Abril, tivemos então, houve ali um aumento de mil escudos. A Covilhã sempre teve essa fama. João José Silva: Houve uma greve muitíssimo forte, já lá vão uns anos, ainda no tempo do Estado Novo. José Marques Martins: E antes do 25 de Abril, eu lembro-me, não estava cá a viver mas lembro-me de que a Covilhã… Havia aqui umas reuniões que se faziam. João José Silva: Porque era muita gente aqui, na altura o movimento operário era fortíssimo, fábricas com 700 e 800, e depois não era só, eram famílias completas... P: E isso vivia-se aqui no grupo, como é que era? João José Silva: Sim, sim, aqui, portanto, no grupo entrava-se, comentava-se às escondidas, sempre com receio que o parceiro que estivesse ao lado fosse denunciar, que estava numa reunião, que se ia fazer uma greve. José Marques Martins: Sabia-se, primeiro porque havia a parte clandestina e numa empresa é muito fácil e havia códigos próprios. Eu recordo-me, lá para os meus lados havia pedreiros, e tinham um código próprio. Quando o patrão chegava, eles tinham um linguajar próprio e as regiões tinham um linguajar próprio, ou seja, uma forma de se exprimir com uma certas palavras que só eles é que entendiam. Quem estava fora ouvia, mas não percebia. E isto é como eu digo muitas vezes, como se diz na Sagrada Escritura, mas não percebem. Só quem é de dentro é que percebe e, portanto, aqui também é a mesma coisa, nas fábricas, nas associações, comentava-se, mas de maneira a que... João José Silva: Até porque nos seus órgãos, a maior parte deles eram trabalhadores, eram pessoas da indústria de lanifícios, estavam ligados, quer queira quer não, direta ou indiretamente, ligados ao movimento operário, que era forte. José Marques Martins: E havia outra coisa. As famílias eram muito unidas, ou seja, não, não iam, não havia tantos problemas para onde se ir buscar e falar na vida dos outros. As pessoas não falavam, não comentavam, com receio de que lhes caísse em casa algum agente. João José Silva: Claro, a gente sabia aqui no Rodrigo quem é que era da PIDE. Estava sinalizado, a gente sabia, mas não tínhamos a garantia absoluta.... José Marques Martins: Eu cheguei cá, chego aqui em Novembro, e em Dezembro sou avisado, alguém me avisa de dois indivíduos da PIDE, alguém me avisa: cautela com sicrano. João José Silva: Nós tínhamos ... estavam sinalizados por nós, tanto que quando eles entravam aqui… uns não entravam porque não eram sócios e aqueles que entravam, recordo... José Marques Martins: Nós conversávamos, ouvíamos, mas para com ele parava, ali as coisas paravam. P: E nessas greves que duravam muito tempo, não havia movimentos de solidariedade para as famílias grevistas? José Marques Martins: Havia, eu lembro-me, por exemplo, na questão de quem tinha crianças e que as mães não podiam ter leite para as crianças. Então havia os leiteiros, havia uns indivíduos que andavam aí com os potes de leite. E portanto, ouvia às vezes com visitas destas… Não, não, hoje leite tem que ser… só lhe dou tanto, porque a fulana tem lá uma menina pequenina e não ganho nada, o próprio leiteiro tinha assim... e nas lojas nas lojas havia o fiado. João José Silva: O próprio GIR oferecia no início de cada ano letivo. Oferecia aos filhos dos associados esses livros, àqueles que tinham mais dificuldade. José Marques Martins: Pois, deixa-me ver, os vicentinos, nós ajudávamos muito. Os vicentinos são... ainda hoje, nós temos grupos que em que temos esse objetivo, nós temos aí zonas e temos famílias a quem ajudamos, quer com pagamentos de água e da luz, com os remédios e também com alimentos. Quer dizer, para além do Banco Alimentar, que aparece. Mas quando é nessas alturas, nós… quer dizer, ainda se aparece mais e depois até a própria génese das pessoas que vivem aqui, mesmo aqueles que não sendo de cá, mas que já são de cá, por exemplo, o Bairro do Rodrigo, estas casas que foram depois criadas já para outras pessoas que vieram para cá, até eles próprios, portanto, criaram esse élan de ajudar. João José Silva: E as comissões de moradores e tal, que na altura surgiram… O Rodrigo era um bairro operário. Ninguém lá morava que não fosse operário, exceto as quatro professoras da escola oficial. P: A comissão de moradores foi fundada quando? João José Silva: Foi em 76. José Marques Martins: Sim, certo, fizeram-se coisas bonitas também. Nós fizemos coisas interessantes. Aumentámos a escola e havia um Jardim infantil para onde iam os miúdos. Criou-se aqui, ele começou aqui. As festas populares que se faziam dos Santos, criámos uma casa mortuária aqui para o bairro, as festas populares de Santo António, onde a coletividade também teve um papel importante, e fizemos um trabalho… Sei lá, a gente diz assim, conseguimos reunir pessoas, mas nós éramos duros. O objetivo tinha que ser cumprido e às vezes afirmávamos: aquilo tinha que ser cumprido, isto é assim e cada um tinha a sua função. João José Silva: O GIR teve sempre uma ligação à comunidade muito forte. Isso é anteriormente, já não é do tempo dos Zé Marques Martins, porque é uma pessoa que apareceu na cidade em 1973. Antes havia uma festa, que chamavam a festas Zacarias, essa festa, era a festa de chamávamos Zacarias, porque ele é que era o grande impulsionador, um homem ligado ao GIR, mas era a festa das florinhas da rua. Então ele fazia essa festa, ia pelas quintas, dos associados e não só, pedir determinados alimentos e depois vinha para a festa para fazer oferendas. Aquilo era leiloado e o valor daquelas oferendas era entregue às florinhas da rua, que era uma instituição de solidariedade social, onde tinha crianças abandonadas. José Marques Martins: Essa festa depois foi recriada, recriei-a eu, durante três anos, para fazermos a casa mortuária e a Igreja, também fazíamos os tais leilões e depois fazia-se essa festa e a Festa de Santo António, e fazíamos grandes festas, que vinha para aí gente… Porque é que elas morreram? Morreram porque, quando nós olhámos, foi aí que começámos a notar, que se começou a ver o decréscimo dos órgãos diretivos, das pessoas. Começámos a olhar para o lado, ao princípio juntavam-se ali seis ou sete, oito ou nove ou 10, e depois começámos a olhar para o lado e só havia três ou quatro e depois quem ia já não estava interessado. E depois aquilo tirava-nos tempo, porque as famílias… E por isso é que no associativismo a família tem um papel importante. Nós estamos a falar de dirigentes associativos., A família associativa é para criarmos família, mas as nossas famílias eram o nosso alicerce: olha que eu só chego às tantas horas para comer, olha que eu não sei quê, as nossas famílias eram... Um bom dirigente associativo tem que ter atrás uma família capaz de aceitar e ver as dificuldades que às vezes… às vezes eram três da manhã ainda estávamos aqui... Hoje as famílias destroem-se e não estão tão... João José Silva: Hoje é completamente diferente. Por isso é que eu digo, com pena, que as coletividades têm que seguir para outro caminho, como diz o Zé Marques, com outros eventos, outras ideias, ou então… Porque não há ... P: Isso, as mulheres não vinham também? José Marques Martins: Vinham, sim. As senhoras vinham com outras, não vinham para… Depois, mais tarde, passaram a vir também para órgãos diretivos, mas lá mesmo não se sentiam assim tão bem. João José Silva: Não, não era fácil arranjar mulheres para os órgãos sociais. José Marques Martins: Por exemplo, havia um evento, havia o teatro ou havia dança. Vêm as mães com as meninas, vêm as mães… Havia as marchas, até máquinas de costura para aqui vieram para costurar e, portanto, elas colaboravam naquilo que os maridos estavam.... Nós planificamos tudo bem, também entrávamos, mas elas lá faziam, lá compravam, não sei quantos, e aquilo aparecia feito. E depois, no fim, quando fazíamos a festa, de tudo cumprido, dizíamos uns para os outros: epá, mas a malta parece que não fez assim tanto, podíamos ter feito melhor. Quer dizer, tínhamos feito uma coisa em beleza, mas no fim, dizer assim, podíamos ter feito melhor. João José Silva: É, o movimento associativo é.... José Marques Martins: Hoje não. Hoje faço uma coisa: pá, somos os melhores. Não, aquilo era... João José Silva: Hoje é assim, não se faz, manda-se fazer. É o grande problema... José Marques Martins: E depois aparece feito. Há alguém também que faz e esse alguém que faz começa a fugir. O indivíduo, as coisas aparecem feitas, mas o indivíduo começa a fugir. Espera aí, sou só eu? Começa a olhar para o lado e diz assim: mau! Porque depois é aquele que é fustigado, e então começa: não posso. Declina, porque o outro não sabe fazer, porque nunca quis aprender a fazer, porque isto é como os dirigentes associativos, quem vem de novo não é um dirigente associativo sem mais nem menos, tem que se ir modulando e formando com os mais velhos. Porque vai gerir recursos humanos. Ali fora, às vezes há disputas, há bocas, há um ou outro que se porta menos bem, que diz alguma coisa diferente e ser dirigente associativo é saber conciliar às vezes as diferentes ideias. Ser capaz de dizer assim: ele tem razão, realmente é verdade, isso é que é. Ser dirigente associativo não é chegar aqui e dizer assim: vamos fazer aquilo e aqueloutro. Tenho que ir à procura de recursos e saber gerir, e saber gerir é saber chamar as pessoas para um objetivo comum e quando é preciso fazer um objetivo comum, de certeza que se faz. Uma coisa que esta casa sempre teve foi isto: caiu o telhado aqui três vezes, não foi, e as pessoas apareceram. João José Silva: Uma solidariedade enormíssima, arranjar forças e pessoal, a gente ficou surpreendida mesmo. José Marques Martins: Havia um objetivo, eles viam que os dirigentes trabalhavam, nós saíamos do nosso serviço e vínhamos para aqui trabalhar: caramba, vamos lá ajudá-los. Eu tenho um exemplo concreto disto, e o João... na direção a que presidi, na altura, eu recordo-me que nos festejos populares, aqui sempre foi uma casa que teve grandes festejos, mas eu recordo-me que nesses anos, e é a experiência que tenho, de quando chegava aí às cinco horas da manhã, seis, e já havia mesas livres, eu pegava num balde de água e limpava as mesas para arrumar e diziam assim alguns colegas meus: epá, deixa isso, amanhã à tarde… E eu assim: não, se fizermos isso agora, a malta dorme melhor. Porque vamos descansados com isto limpo e ninguém saía daqui sem estar tudo limpo e lavado. E foi uma imagem que pegou. Todas as outras direções que vieram, na sua grande maioria, terminavam os festejos e, em vez de se irem ali sentar,, era mais um esforço, eu sei que era, mas também no outro dia, quando aqui chegavam à tarde, para outro dia de festa, era só pegar. Era um sacrifício, mas quer dizer, mas trabalhávamos. E quando, eu lembro-me de estarem aqui sócios assim: Epá... E havia sócios que: vamos lá dar uma ajuda, andam ali aqueles pobres sozinhos. Quer dizer se nós: Epá deem aqui uma ajuda. Olha, então aqueles não querem fazer nada e agora querem que a gente la vá? Portanto, isto também é ser dirigente associativo... P: Dar o exemplo, não é? José Marques Martins: Sim, porque, ora bem, se nós não dermos o exemplo, os mais novos não vêm… João José Silva: Muitos horários seguidos eu fiz no hospital, porque vinha para aqui trabalhar... Ai é? Queres dança? Então agora vamos fazer 16 horas. Trocava horário para jogar ... José Marques Martins: O João José, aqui na casa, também passou por aqui e sabe muito bem das dificuldades... E quando às vezes nos pedem… Quer dizer, nós gostamos da casa, gostamos da casa, mas já demos muito pela casa e temos pena que um dia possa fechar. Mas, se pudermos colaborar, contribuir para que isto cresça... João José Silva: E penso que estamos habilitados para, de alguma maneira, responder àquilo que é solicitado: um pouco da história do GIR, o que ele foi, o que fez. O que poderá vir a fazer, aí já é com as direções... José Marques Martins: Com as direções, uma ova, com os sócios, a casa faz-se com os sócios. Isto é, a direção pode querer uma coisa e os sócios não. Temos aqui 50 melros e queremos fazer uma coisa diferente… João José Silva: Sim, sim, mas a direção é que decide. P: Mas vocês também se organizam em comissões, por exemplo, o teatro? José Marques Martins: Nessa altura tínhamos as comissões, inclusivamente nas festas, havia comissões, mas havia muita gente, sobretudo nova. Quando eram as festas, quem que nós íamos buscar? Gente nova e fazíamos essas comissões e as comissões criavam o programa. Depois foi o que se… Quem estava à frente das comissões, se começava querer ser independente em demasia, a direção às vezes era ultrapassada e quando dávamos por ela já havia compras feitas assim sem dizer. Agora, no teatro criou-se um grupo muito homogéneo nessa altura. P: Foi em que altura, na década de 70? José Marques Martins: Sim, 60-70... João José Silva: 70 e tal. Não, isso talvez fosse em 80, foi 70-80… E daqui saíram alguns casados e namorados. José Marques Martins: Casaram. Namoraram e casaram. Porque nós andamos por vários locais a levar o teatro e foi numa altura complicada, porque foi o 25 de Abril, em que nós, eu recordo-me, até tenho uma história, que eu até vim mais cedo para cima, porque foi na altura do 11 de março, que essas histórias todas que houve, e eu estava em Évora a tirar… Uma coisa era a animação cultural, que era o Brecht, que nessa altura era o mais importante, mas quer dizer havia a parte política também que se metia em todo o lado. E aí eu nunca, nunca, nunca enveredei por esses caminhos assim um bocado tortuosos, porque isto era assim, isto é quem quer mentir vai para… sem ofensa para os políticos que todos nós somos um pouco, mas é verdade, promete-se, se pudermos fazer depois mais tarde fazemos. E eu às tantas dizia assim: eu não posso ir aí para a gente, para as aldeias, dizer que arranjo emprego para toda a gente, porque isso é mentira. Eu não posso ir mentir, portanto nós… e estou a dar este exemplo. Isto para dizer que ou se tem vocação para aquilo que é ou então não se anda a fazer e, portanto, uma coisa é realmente ter vocação. A minha esposa e outras senhoras é que pintavam, faziam os vestidos… Se não fosse isso, morria. Então, eu não tinha tempo para, quer dizer: camarim, dá-me, entrega, ABC desenrasquem-se, não sei quê, desenrasquem-se. E pronto, e depois aquilo aparecia, as coisas apareciam e nós confiávamos e não invadíamos a esfera uns dos outros. Ou seja, ela vinha pintada com uma sobrancelha preta e outra… Nós confiávamos, porque todos queriam que saísse o melhor possível. E quando o João diz que, todavia, saíram daqui dois ou três casamentos… João José Silva: Sim, sim. José Marques Martins: E depois era muita gente. Nós tínhamos 30 ou 40 elementos e a nossa maneira de gerir todos para... João José Silva: Dava-nos o prazer de escolher o melhor. P: E eram operários? José Marques Martins: Operários, filhos de operários eram todos, e havia um mestre, havia um, sim, mas que tínhamos que gerir aquilo de tal maneira a que ninguém ficasse ofendido. Eu não podia chamar aquele por ser muito bom, tinha de arranjar ali, às vezes, papéis secundários. Mas chegava a um ponto em que era tanta gente… P: O José fazia de encenador, encenava? José Marques Martins: Sim, sim, exatamente. P: Que peças é que encenaram? José Marques Martins: Oh, sei lá… Os dois irmãos gémeos, um era patrão e o outro era empregado, eram gémeos mesmo. E depois fazer o papel de patrão, de ditador, e depois quando mudavam, já na parte da democracia, ver as diferenças... Depois havia um debate a seguir. Uma outra peça, que foi muito importante, que era aquela que tinha três atos que teve para aí. Depois, nós até fazíamos aqui um teatro que demorava três horas ou mais, nós tínhamos a sala cheia, que era a casa do mestre Simão, era uma delas, eram três atos. Outras que foram encenadas, poemas, havia, sei lá, havia poemas, por exemplo… cantos, danças. Depois começou a haver a parte da dança e depois, claro, as coisas foram mudando, mudando, mudando, estão a ir... João José Silva: E a seguir foi feita aqui uma grande peça, Jesus Cristo. José Marques Martins: Também fizemos essa peça de Jesus Cristo superstar, ainda temos aí. O Cristo era um colega, o nosso motorista, o Rui. P: E faziam debates a seguir às peças? José Marques Martins: Começámos a fazer os debates já mais com essas do Brecht, porque estava o povo, já mais… em 76/77. P: Era uma altura em que também as pessoas estavam mais interessadas nessa? José Marques Martins: Já estavam mais, porque aqui, nós não entrámos logo aí. Entrámos naquela, porque aí o povo começou a querer ufa, ufa, quer dizer abriu-se, porque até 78-77, apesar de 74, 75, 76, ainda... João José Silva: Ainda estava tudo muito... José Marques Martins: Mas depois, quer dizer, voltámos novamente e a pôr peças... Fizemos uma sobre as doenças transmissíveis nessa altura também.... Mas era demasiado forte, porque as pessoas tinham medo de fazer perguntas. Olha lá, o que é isso? Sabia-se que, à boca fechada, que a pessoa sofria disto, das doenças transmissíveis ou sexuais, mas não era fácil em público fazer... P: Então já falaram várias vezes que nesse período pós 25 de Abril, esses anos são anos de grande efervescência cultural e da participação das pessoas. O que é que recordam assim mais marcante desse período? João José Silva: Não quer dizer que antes não tivesse sido marcante, antes do 25 de abril... José Marques Martins: Antes de 73, era marcante, mas vamos lá ver, houve uma grande mudança, houve. Eu recordo-me que eu fui trabalhar de manhã… Eu em 73, como disse, vim. Em 74 estava em Janeiro, estava na feira das indústrias, em Lisboa antiga, e tinha uma colega que era a Zélia, a Zélia que era mulher do Zeca Afonso. E quando viemos fazer a nossa visita a Vendas Novas, ao centro de formação, eu vim no carro dela. Vinha ela e vinham mais dois colegas, e ela, há uma frase que é dita na altura, mas que passou-me ao lado. Estávamos a falar que tínhamos vindo lá de forma, que enfim, muitas dificuldades que tínhamos, não sei quê. E ela sai-se assim: é, mas não vai ser por muito tempo. João José Silva: Não estava Longe. José Marques Martins: Nem eu sabia que ela era a mulher de Zeca Afonso, que eu não sabia, sabia que era a Zélia, pronto. Quando depois se dá o 25 de Abril, depois conversámos por telefone e quando nos encontrámos novamente e quando eu soube que era... depois a gente começa a associar. “Não vai ser por muito tempo”, porque já sabia, quer dizer. Quando se dá o 25 de Abril, as pessoas, ao princípio: ah, fica em casa. Mas depois estávamos agarrados à televisão, como estávamos agarrados à BBC de Londres e à Rádio Argel. Eu era daqueles que estava sempre agarrado à Rádio Argel, a ouvir, e a BBC. Eu arranjei um rádio pequenino para ouvir isso, portanto, havia uma ânsia que estava cá dentro. Dá-se o 25 de Abril, dá-se essa possibilidade, e as pessoas, quer dizer, libertam-se... João José Silva: Com o enjeitamento que houve após o 25 de Abril, nada contra os partidos, mas houve um enjeitamento... José Marques Martins: As associações crescem, as associações dinamizam-se muito mais, porque as pessoas já falam mais à vontade, já vêm mais à vontade, já vêm ler, já vem perguntar, já vêm que há mais abertura e já se fala sem medo. E aquilo que mais fez com que as associações crescessem foi a liberdade que apareceu, a liberdade de as pessoas se exprimirem e expressarem-se de toda a forma. João José Silva: Após 25 de Abril, isto era quase todas as semanas, os partidos políticos queriam fazer aqui comícios, congressos, conversas. Alguns outros nem tanto porque, pois começou aqui a surgir o problema de que se o GIR vai ceder as instalações a um determinado grupo político tem que deixar... José Marques Martins: E aqui nesta casa fez-se, quando ali a capela estava em obras, a eucaristia. E sempre se disse: não, vem para cá, mas também vem para cá uma outra religião, fazer também o seu congresso. Toda a Gente tem direitos, aqui é para sócios, sejam eles o que sejam. João José Silva: Tanto era o PCP, como o CDS, como o PSD.... José Marques Martins: Aliás, os estatutos dizem isso: não tem credos nem filosofias políticas. E entram aqui sócios de toda... Agora se me perguntarem assim, se para cá viesse a extrema-direita ou alguma coisa com... Também temos nos estatutos como objetivo a defesa do bem comum. E, portanto, temos essa possibilidade de… As pessoas abriram-se, as pessoas aumentaram, criou-se uma nova forma também de estar na vida. Falava-se mais, começámos a conhecer as dificuldades e os anseios de várias... as festas eram diferentes. Havia, portanto… houve uma abertura mesmo entre os bairros, quer dizer, houve uma explosão, primeiro de alegria. Depois vieram os anos difíceis e quando vêm os anos difíceis, nomeadamente quando vêm as crises e então numa terra destas em que tem uma mono indústria... Apareceu a Universidade, que veio dar vida à cidade, porque isto era uma aldeia pequena. A Universidade veio dar uma vida aqui à Covilhã… P: Estava a falar da abertura das associações e lembrei-me de uma coisa que referiu há bocado, que tiveram uma articulação com a associação mutualista. Como é que isso foi? João José Silva: Sim foi. Aliás, eu não tenho conhecimento pessoal, mas sei pelo que me contaram, pessoas que passaram por aqui, dirigentes e não só. Eu posso lhe dizer que, por exemplo, a Associação de Socorros Mútuos emprestou, em determinado ano, um valor de cem escudos, está aí um documento, cem escudos, para que se fosse concluído o resto da obra. José Marques Martins: Nós servíamos aqui de depósito, de certa maneira, daquilo que eles não tinham condições. E então nós, o grupo, era aqui que eles tinham a sede. A Cruz Vermelha também passou por aqui. João José Silva: Há uma outra associação que foi formada aqui também, a APPACDM, foi criada aqui. Mas essa dos 100 escudos tem a ver com a mutualista. Porquê? Porque na altura, um ou dois dirigentes do Grupo Rodrigo, por exemplo, estou a lembrar-me do [...] e outros, o [...] e não sei quê, eram dirigentes da associação. José Marques Martins: Na Cruz Vermelha também se deu o caso, dirigentes desta casa eram dirigentes da Cruz Vermelha. João José Silva: E, na altura - só para concluir, desculpa - o GIR estava com problemas financeiros para pagar determinado valor e a Associação Mutualista Covilhanense, era assim que se chamava, emprestou ao GIR essa importância, que depois foi paga, há aí um documento, está devidamente aí contabilizado P: E o próprio GIR? Estávamos ali a ver que também tinha uma função, também tinha essa vocação mutualista, não é? Pelo menos com a questão do subsídio de funeral? João José Silva: Não havia previdência, a previdência aparece em 1961. José Marques Martins: A lutuosa aparece para ajudar os funerais, para levar as carretas, porque as famílias não tinham dinheiro: eram 500 escudos, ou 1000, pronto, e depois pararam quando vieram as agências. João José Silva: As agências não se preocupavam com a previdência, que não havia na altura, preocupava-se era pedir o cartão de associado e com esse cartão é que vinha ao GIR levantar o subsídio anual, que era de 500 escudos, hoje são 1000 escudos ou cinco euros. José Marques Martins: Hoje, praticamente, ainda está nos estatutos, mas é uma coisa que está só para fazer memória, porque a previdência hoje já funciona de outra maneira, mas está como memória porque foi essa uma das causas da nascença da coletividade. Há duas causas importantes, que é a educação dos filhos dos sócios, e aqui foram os filhos que levaram os pais. Vamos lá ver, os pais primeiro quiseram que a escola fosse aqui feita para educar os filhos, mas depois os filhos vieram para a escola oficial durante o dia e os pais vinham à noite. Os filhos é que levaram os pais a perceberam que também tinham necessidade de aprender. P: Depois também houve instrução para adultos? José Marques Martins: O pai e a mãe que vinham para aqui aprender… P: Isso em que altura? José Marques Martins: Pois, foi de 1900 a 1928, a escola foi... P: No vosso tempo ainda havia esses cursos para adultos? José Marques Martins: Não, no nosso tempo foi só formação. João José Silva: A escola no GIR acabou em 1950, 49-50. José Marques Martins: Eu aqui tenho as aulas diurnas para os filhos e as aulas noturnas, que era a dona [...], e depois a escola foi apetrechada e inaugurada pelo presidente da Câmara, o [...], em 1928, portanto, passados sete anos. De 21 até 28 funcionaram aqui alguns indivíduos a dar umas aulas que ensinavam os filhos... outras escolas. Em 1931, portanto, passados três anos, é que o governo reconhece o mérito e dá o estatuto de escola pública. Então, nessa altura é que foi nomeada uma professora oficial, que era essa dona [...], que era a professora. Quando as escolas do Rodrigo, como tu dizes, em 50 se fizeram aqui, acabou, não tinha razão de ser. P: Esta questão da memória já deu para perceber que é uma coisa que vocês valorizam muito. Têm ali o museu, os dirigentes conhecem a história, e acham que esta questão da memória é importante para a identidade do movimento, ou seja, os dirigentes vão passando uns para os outros este legado e é uma coisa importante, ou seja, tem aquela ideia de… isto é uma coisa que é tão antiga, esta tradição, a gente tem que continuar isto. Acham que é importante esta questão da história, o peso da história? José Marques Martins: Essa questão está a pôr, torna-se muito importante. E pode ser até uma das formas de revitalizar novamente também o movimento associativo. Eu, para construir… Qualquer pessoa que tenha dois dedos de testa, para construir o futuro tem que viver bem o presente. E sabendo a memória do passado, aquilo que errou e aquilo que fez de bem, portanto, só assim é que se pode construir. Eu, na minha vida, costumo dizer e prego: peço perdão daquilo que foi mal feito, vivo com muito gosto o meu dia a dia e quero fazer melhor ainda no futuro, mas para isso tenho que ter um saber do que é que foi feito atrás. É altura… E eu parece-me que que nós estamos a cometer uma falha, parece-me, que os órgãos sociais estão a cometer uma falha não só aqui, possivelmente em todos, era de dar a conhecer de facto aos novos toda a história desta casa, porque muitos entram aqui sem conhecer a história, vivem de hoje para a frente, vivem este… Vem aqui ao bar um jovem, mas até aqui houve um caminho, houve um percurso e penso que nós devíamos... Nós temos isso, esta casa tem as fotografias, tem livros. Mas as pessoas não leem, não veem as fotografias e, possivelmente de tempos a tempos, devia-se até passar, sei lá, ou em projetor ou retroprojetor ou qualquer coisa do género, digamos, um tempo do que é que foi isto, como é que isto começou, o que é que era a Covilhã naqueles tempos, em 1920, fotografias daquele tempo. E depois, até, haver às vezes debate e outras coisas do género Não era preciso uma tarde, havia de chamar as pessoas mais antigas, pessoas que passaram por aqui, porque há sócios antigos que passaram e eles conheciam as histórias. E começar a fazer isto. Com quê? Com as escolas. Eu não vou chamar os do secundário nem os universitários. É mais fácil os universitários virem cá do que os alunos do secundário. O universitário já está noutra dimensão e gosta também da parte histórica. Mas as crianças das escolas, os do básico ou os do ciclo vinham cá com todo o gosto. Os professores vinham ouvir, quer dizer, era uma forma de levar os miúdos a verem o que é que os bisavós deles… Olha, o meu avô andou ali. Nós tínhamos aqui um presidente da Câmara que cada vez que vinha aqui, o Carlos Pinto: eu andei nesta escola, andei na escola do presunto, e andou também você. Quer dizer, e essa conversa levava a que, quem sabe, lá os miúdos de hoje para amanhã… Era uma forma de espevitar o gosto pela casa. João José Silva: O problema é… Estou completamente de acordo com o Zé Marques, mas falta o melhor, falta a parte humana. Porque nós temos que ver as direções que entram para esta… para o GIR do Rodrigo ou para outro qualquer, às vezes têm tempo limitado, vêm com dois anos e por muita vontade que queiram fazer determinados eventos e dar a volta a isto, olha-se para o lado, como disse o Zé Marques: tinha cá 10 agora só cá tenho três. Onde é que estão os outros sete? Cansam-se, hoje. Eu não tenho nada contra a juventude, mas entendo que era preciso um trabalho muito forte. Falo do GIR, porque é um caso que eu conheço muito bem.Havia que procurar chamar para a coletividade pessoas que desenvolvessem esse tipo de trabalho, porque não é fácil a um dirigente associativo ir às escolas e passar a mensagem: epá vão ao GIR Rodrigo que amanhã temos lá a apresentação de um livro ou a passagem de um vídeo para se saber o historial da coletividade. Não é fácil. E o Zé Marques sabe que não é fácil. É assim, as direções são o que são. Não precisam ser doutores. É preciso é que sejam pessoas realmente com uma vontade extrema de que vem para servir a coletividade e não servir-se dela. E ao mesmo tempo, às vezes não têm tempo, trabalham, têm a sua vida. Nós perdemos aqui n horas… José Marques Martins: Tudo se faz. Olha, vou dar o meu exemplo aqui hoje… Hoje era para estar, de manhã, eu disse para quem me telefonou: espera lá, eu tenho uma celebração às 10:00 e não tinha ainda na altura, mas tinha. Hoje estive no Pezinho. Mas pronto, chegou-se à conclusão que podia ser às 14:00. Isto para dizer que não havendo gente… Mas tu tocaste aí um ponto importante, desde que haja vontade, e de que haja pessoas capazes, nós estamos cá os dois, possivelmente se fossem outros não estariam, mas continuo a dizer que vale a pena investir nesse campo, pegar na gente nova e pô-los em colaboração com os mais velhos e com a riqueza do passado para eles verem: epá de facto estes indivíduos fizeram isto. Caramba, como é que eles conseguiram? Com tão poucos meios conseguiram… E essa é a pergunta que lhes fica e nós, com tantos meios, não conseguimos. Porquê? E aquilo entra e aquilo burila. Talvez eu fale assim, porque como estou numa instituição que tem idosos e tem uma parte infantil e a gente de vez em quando juntamo-los e os mais novitos perguntam e até fazem aquilo, andam lá de bengala e os miúdos também com a bengala atrás dele também, acho eu, a imitá-los. Mas olhamos para aquilo e, sinceramente… um miúdo pegar, vê que o avô, coitadinho, lá anda e quando andam com aqueles com uma cadeira rodas: também quero ir. Quer dizer, os minutos querem andar de cadeira rodas porque... e depois aí o professor tem um papel importante, que é dizer assim: olha, vês, quando ele era assim da tua idade, não sei quê, não tinha esses carrinhos, tinha assim outros bonecos, depois nós temos lá os brinquedos antigos. Aqui também podia ser. Era uma forma de espevitar. Porque nós… Quer dizer, está tudo à espera: quanto é que dá, como tu dizes? Não tem que dar, não pode ser… Mas é uma forma, essa questão que levantou, de que forma é que é indo buscar a nossa história… É importante sabermos a história e os novos, e nós fazermos chegar aos outros essas memórias. Se nós não perdermos, se esta casa perder a memória, esta casa fecha. Mas enquanto esta casa tiver memórias, aí a casa não fecha. João José Silva: A verdade é que nós andamos há muitos anos, e não sei a história do grupo. Completa não sei. José Marques Martins: Possivelmente, há muita gente que não sabe, nem os nomes dos primeiros... João José Silva: Há muita gente que não sabe como é que isto começou.. José Marques Martins: Quando andavam aqui com obras, os livros não estavam ali no meio do lixo. Eu estava em Tondela e, quando vinha, andava no meio do lixo a tirar os livros de atas. João José Silva: Não há sensibilidade. O que é isto? Papéis... José Marques Martins: Nós temos que passar a memória, porque se nós não o fizemos, se esta casa não fizer memória do que foi e do que é, fechará no futuro. João José Silva: É de salientar as pessoas que passaram por aqui e as que vierem no futuro, porque não é fácil. Não é fácil arranjar dirigentes associativos. -
3 de junho de 2021
Victor Manuel da Silva Fernandes
P: Podia dizer-me o seu nome completo. Victor Fernandes: Muito bem, eu sou Victor Manuel da Silva Fernandes, sou adjunto de chefe de secção de tinturaria há 42 anos. P: Nasceu aqui na Covilhã. Victor Fernandes: Nasci na Covilhã. P: Em que ano? Victor Fernandes: Em 1963, de pais que se conheceram nesta coletividade e se casaram nesta coletividade. Eles faziam parte do rancho folclórico. Foi aí que se conheceram e foi daí que se casaram. P: E começou a trabalhar com que idade? Como foi a sua escolarização? Victor Fernandes: Eu, aos meus 16 anos, estava a trabalhar, mas nunca deixei de estudar. Portanto, eu trabalhava de dia e estudava à noite. Foi um esforço tremendo. Na altura em que eu nasci, só havia 11º ano, não havia mais e depois de estar casado, e já com filhas, lembrei-me e digo: “Não fico só por aqui, vou fazer também o 12º ano e essas habilitações”, porque tenho curso geral do comércio, tenho o curso complementar de administração e comércio e tenho o técnico de secretariado. Fiquei por aqui. P: E os seus pais, qual é que era a profissão dos seus pais? Victor Fernandes: O meu pai era empregado de mesa e a minha mãe trabalhava numa fábrica têxtil. P: E a sua mulher? Victor Fernandes: A minha esposa trabalhava numa escola, na Secretaria. P: E as suas filhas? Victor Fernandes: As minhas filhas, uma é GNR, foi agora empossada como furriel, e a outra trabalha ao balcão de uma fábrica de panificação. P: Só mais duas perguntas para uma questão estatística: professa alguma religião? Victor Fernandes: Tenho uma religião, sou católico praticante e daqui a bocadinho, lá vou a mais um trabalho que tenho que fazer também dentro da Igreja. P: E faz parte de algum partido político? Victor Fernandes: Além tempos, fui fundador da Juventude Socialista na Covilhã. Hoje não tenho qualquer partido político. Não me revejo em nenhum partido político. Há coisas boas desde a extrema-esquerda à extrema-direita, mas não há nenhum partido que abarque aquilo que são as minhas convicções. P: E na igreja, que responsabilidades é que tem? Victor Fernandes: Eu faço parte do grupo Coral. Tive outras atividades. Fui catequista. Tenho curso de diácono permanente. E acho que já chega, não é? P: Então vamos à questão da experiência associativa especificamente. Já percebi que esta propensão para se envolver no associativismo é de família, não é? Os seus pais já faziam parte... Victor Fernandes: É, eles andaram assim por aqui. Sabe que as condições... Esta Casa estava muito dedicada aos tempos livres, à cultura e ao desporto. Nasceu a 8 de abril de 1954 oficialmente, mas já existia antes entre amigos que iam jogar um futebolzinho além, num tipo de cabeço, numa encosta de um cabeço. Portanto, este clube é muito provável que tenha nascido para aí em cinquentas, nos anos 50, ao princípio ou talvez fins dos anos 40. Começaram numa garagem, depois de uma garagem foram já para uma casinha, depois de uma casinha viemos para o sítio onde agora está esta sede, que foi deitada abaixo e agora estamos num prédio novo. P: Essa história, foram os seus pais que transmitiram essa memória da fundação? Victor Fernandes: Não só, nós também temos um livro escrito sobre essa situação. Temos a história dos 50 anos. Por acaso não tenho o livro comigo nesta altura, mas temos essa história também. P: E qual é que é a motivação para além dessa propensão de família? Qual é que foi a principal motivação para ingressar? Quando é que ingressou, com que idade? Victor Fernandes: Ora eu era muito novo, devia aí ter os meus 15 anitos. Quando faltava alguém na Assembleia Geral, já me chamavam a mim para fazer a ata, que era um bocado complicado, mas eu, como fui sempre ligado às letras, muito mais do que às matemáticas... Para mim, embora fosse novo, era extremamente fácil fazer isso. Tenho impressão de que não há nenhum lugar nesta Casa pelo qual eu ainda não tenha passado. Assim como noutras associações por onde passei. P: Em que outras associações é que participou? Victor Fernandes: Estive no Campos Melo, na banda da Covilhã também e fiz parte não dos órgãos sociais, mas sim de outras coisas, no Oriental de São Martinho. P: E porquê esta multiplicidade de participações? Victor Fernandes: Primeiro, é o gosto pessoal. Tenho muito gosto em ajudar seja naquilo que for e tenho muito gosto em estar ao serviço das pessoas. Não é uma realidade hoje, mas é uma realidade que nasceu comigo e que me foram incutindo ao longo do tempo. Nunca tive nenhuma estátua, também não a quero, mas acho que isto começou por tudo. Começou por tudo, não era só o gosto, mas depois também uma certa necessidade, porque no tempo do Estado Novo,as casas também tinham poucas condições e isto dava para juntar tudo. Os Leões tinham chuveiro, tinham a televisão que nós não tínhamos em casa. Depois tinham a sociabilização, que nós em casa, tirando o relacionamento pais-filhos também não tínhamos outra coisa e a sociabilização é muito importante, que se vai perdendo. Hoje as pessoas não vivem nada como era nesse tempo, são mais individualistas, são mais comodistas e pouco se importam com este tipo de casas, o que é uma pena, se um dia este tipo de casas não der para fazer aquilo que têm feito. Uma das coisas que têm feito é substituir o Estado. Não somos verdadeiramente comparticipados com valores que nos deviam manter, mas nós substituímos o Estado em muita coisa aqui, no acolhimento, por exemplo, é importantíssimo. Hoje a nossa casa é frequentada por milhares de estudantes. Antigamente era mais frequentada só por sócios e eram bastantes. Hoje deixamos que eles façam os seus trabalhos escolares na nossa coletividade. Antigamente, isso era impensável. Mas hoje têm Internet à vontade, aberta, podem fazer o que quiserem e também lhes damos algumas indicações de vida e às vezes põem-nos à frente vários problemas que nós tentamos resolver ou encaminhar para quem os resolva. Isto é uma substituição daquilo que o Estado devia fazer e não faz. Há muitas outras coisas, que havia na altura que nós também não tínhamos em casa, quando começámos a ter televisão, só tínhamos quatro canais. Nós tínhamos sorte por ter quatro canais, eram dois espanhóis e dois portugueses. Esta zona dava para ter dois canais espanhóis e dois portugueses. Mas havia uma coisa que nós não tínhamos em casa, que era o cinema. E aqui passava-se o cinema para os sócios. É isso era uma maravilha. Embora tivesse hora certa para entrar em casa e às vezes prolongasse um bocadinho e depois vinha a ter um alguns problemazitos... Mas havia o cinema, que era uma coisa bastante importante. Hoje é precisamente o contrário, a maior parte das pessoas às vezes não vem à coletividade porque já tem demasiadas coisas em casa. Por exemplo, eu em minha casa tenho 200 canais, quando eu só vejo dois ou três, eu em minha casa tenho Internet, eu a minha casa tenho todas as condições, tenho a casa de banho, tenho tudo aquilo de que preciso. E isso levou, como eu muita gente, levou a que as pessoas hoje não adiram tanto ao associativismo. Mas ainda há outra coisa importante para as pessoas não aderirem ao associativismo, que eu acho que é a demografia. Tudo estava concentrado no centro da cidade, hoje em dia não é assim. Porque foram criados muitas casas sociais em redor da cidade - Vila do Carvalho, Teixoso Tortosendo, Boidobra e parte cimeira da Covilhã. E isso levou a que os clubezinhos de bairro, que tinham as pessoas ali, saíssem daqui e fossem para outros lados. Isso causou-nos alguns problemas, principalmente para tentar arranjar pessoas que queiram vir e tomar conta desta e das outras coletividades. Era bastante bom, na altura, se tivessem arranjado as casas onde as pessoas viviam, que eram muito mais felizes do que nos guetos onde os puseram. E hoje estava tudo mais normal, o centro histórico estava cheio, e hoje está vazio e com casas a cair. P: Diga-me uma coisa, começou então a participar aqui na associação ainda antes do 25 de Abril? Victor Fernandes: Sim, por aí, antes do 25 de Abril já cá entrava, isto garoto. P: E como é que era, qual é que era a diferença nessa altura, durante a ditadura? Victor Fernandes: Aqui não havia o espectro político, havia algumas casas que tinham. Esta nunca esteve ligada à política. Portanto, as pessoas eram submissas e não falavam disso. E como não falavam nisso, não quer dizer que não tivessem liberdade, quer dizer, uma pessoa tinha liberdade falando de tudo, menos em política, e hoje não é bem isto. Quer dizer, hoje há uma certa liberdade, que acaba por ser tirada a liberdade quando se entra num outro campo, que é a libertinagem. Hoje há muito disso. Há muita gente que destrói. Há muita gente que estraga tudo. Há muita gente que foge com os equipamentos. É tremendo. Quer dizer, isto demonstra que há uma grande diferença entre o passado, sem liberdade, uma liberdade restrita, e um presente com uma liberdade demasiada, onde ninguém tem poder para travar seja quem for. O professor não manda, a polícia não manda, ninguém manda. Quer dizer, isto é uma confusão tremenda. Isso traz-nos também alguns problemas, a nós. O caso de nos levarem coisas, de partirem coisas... Quer dizer, não pensam nunca que tudo aquilo que façam de mal são os pais também, com os seus impostos, que estão a pagar. Não somos só nós que pagamos, o pouco que recebemos, ou quase nada, dos órgãos, mais até a Câmara Municipal, a Junta de Freguesia, o pouco que recebamos vai dos impostos também dos pais desta gente e dos nossos, não é? E as pessoas não pensam nisso. P: E nessa altura era uma altura de dificuldades, como disse, as pessoas não tinham algumas necessidades básicas asseguradas. Eu estive a ver que noutras associações, havia mecanismos de entreajuda, por exemplo o subsídio de funeral. Aqui também existiu? Victor Fernandes: Subsidio de funeral aqui não existia. Eu sei que há clubes, por exemplo o Campos Melo, tinha subsídio de funeral. Aqui, por acaso, nunca foi prática. Podia-se ajudar as pessoas noutras situações, quando se viam com algum problema. P: Por exemplo, lembra-se de algum exemplo concreto? Victor Fernandes: Falta de comida... Eu sei que havia, também havia. Embora aqui já fosse uma cidade rica. Os têxteis ganhavam acima da média, na altura. Hoje ganham menos do que toda gente, mas na altura os têxteis ganhavam mais do que o resto, talvez das cidades do interior. E eu posso lhe dizer que havia algumas carências de facto que eram colmatadas, nem que fosse pelos amigos. Hoje, talvez não seja tanto assim. A amizade hoje é um bocadinho diferente. A amizade é o Facebook, é a exposição das coisas nos órgãos sociais. É estarem numa mesa a beber um copo, cada um com o seu telemóvel. Já não há aquele conversa simples que até nos levava a um certo crescimento. Hoje, com esta gente nova, já não existe isso. P: Foi uma escola, esta instituição? O que é que aprendeu aqui? Victor Fernandes: Foi sempre uma escola. Costuma-se dizer que o velho sabe muito porque é velho, não é? E nós aprendíamos precisamente com essa gente. Aprendíamos porque eles tinham a escola da vida. E a escola da vida, que eles que nos transmitiam, não era propriamente a escolaridade. Era a escola da vida que eles nos transmitiam e davam-nos valores que hoje é impensável conforme está a nossa educação a ser desenvolvida. Hoje é impensável, era isso que nós queríamos fazer hoje, dar alguns valores às pessoas ao incutir-lhes algumas coisas que eram importantes para a vida delas, só que não conseguimos, porque elas hoje são demasiado autónomas. P: Que tipo de que atividades é que se Lembra que o clube desenvolvia nessa altura? Victor Fernandes: Bem, eu já lhe falei no rancho folclórico. P: Participava no rancho folclórico? Victor Fernandes: Eu não, os meus pais sim. O meu avô tocava flauta no rancho e os meus pais andavam no rancho. Mas, além do rancho, também tivemos um conjunto de baile. Já nos anos 50, aqui havia muita atividade, o desporto, a cultura. Tínhamos uma boa biblioteca que agora não tenho aqui. Neste momento tenho numa garagem para tentar organizar. Havia muita coisa, desde os Jogos, que também dava para expressão e para agarrar a gente. P: Quais eram as modalidades que desenvolviam? Victor Fernandes: Principalmente o futebol, o andebol também. O andebol acho que acabou na Covilhã porque ganhavam sempre os Leões da Floresta. Acabou precisamente por causa disso. Depois, mais tarde, veio o ténis de mesa. Tivemos uma equipa excecionalmente boa e reconhecida a nível nacional. E alguns elementos chegaram a ir ao estrangeiro, principalmente à Rússia e à Espanha. P: E na parte cultural, tinham teatro, música, tinham uma biblioteca. Como é que foi criada a biblioteca? Victor Fernandes: Quando cá cheguei, já cá estava. Portanto, a biblioteca devia ter sido criada logo para aí nos primórdios da coletividade, porque eu lembro-me que um dos livros que lá estavam era O Vinho, que salvo erro era do António Pato, que vinha do Partido Comunista e fez parte de daquele bloco contra a ditadura já muito antes até das coletividades serem formadas. Portanto, eu lembro-me desse livro cá estar, bem como outros, claro, mas esse ficou-me na memória. P: E esses livros não eram proibidos? Victor Fernandes: Aqueles livros eram proibidos. Pelo menos dos que conheço só esse é que era proibido. Esse de facto era proibido. Não sei onde é que eles o encaixaram, nem onde o foram buscar. Sei que eu já cá o encontrei. P: No Campos Melo, achei muita piada, estive a ver que davam um prémio aos leitores que liam mais. Aqui também faziam esses incentivos à leitura? Victor Fernandes: Não, sabe que as pessoas aqui requisitavam os livros, levavam para casa, liam e depois traziam, ou então podiam ler aqui. Embora as condições na altura não fossem o que agora são, mas as pessoas, havia muita gente que lia aqui os livros. No caso do Campos Melo era diferente, a biblioteca Ferreira de Castro era totalmente diferente. O Campos Melo, apesar de tudo, já tinha uma parte política. Eu estou-me a lembrar de uma das pessoas que foi lá colaborador, que esteve preso no tempo da ditadura com o Álvaro Cunhal e outras pessoas assim do género, que era o senhor [...]. E essa pessoa, lembro-me que, como ele contava, foi torturada. Esteve com a água sempre até aos joelhos, o pingo sempre a cair na cabeça, e, portanto, o Campos Melo já tinha uma parte política Aliás, o Ferreira de Castro também já tinha, ele próprio, também já tinha a sua parte política. E no Campos Melo, de facto, havia esse prémio, eu lembro-me disso, para quem lesse mais. Havia de facto muita gente, já com uma certa cultura, naquela altura, no Grupo Educação e Recreio Campos Melo, tanto que um dos fundadores até era professor. Não sei se já falaram nisso, mas agora não me lembro bem, mas o [...], penso eu, era professor. Eles tinham lá as escolas primárias, tinham duas salas de aula e aí era muito mais simples ter desenvolvido a mente das pessoas. P: Quando é que passou por lá, pelo Campos Melo? Victor Fernandes: Olha, a última vez que lá estive foi 1992, a primeira vez foi em 1984. P: E foi sócio, foi dos órgão sociais? Victor Fernandes: Ainda sou sócio, fiz parte dos órgãos sociais, por duas ou três vezes. Duas vezes! P: Como é que conseguia acumular a participação em várias coletividades ao mesmo tempo? Victor Fernandes: Sabe, umas coisas desenvolvia-se numa e outras coisas desenvolvia-se noutras. Eu também dei a minha colaboração no Grupo Desportivo da Mata, quando estava nos Leões da Floresta, por exemplo. Eu estava aqui na direção dos Leões da Floresta e estava a treinar o grupo desportivo da Mata inter juvenil. Foi sempre uma das coisas. Quando estive no Campos Melo pela primeira vez, a única coisa que tinha de coordenar era a catequese. Não estava a coordenar nada nos Leões, ou melhor, acho que estava na Assembleia Geral dos Leões. Reunia uma vez por ano, portanto, não era por aí que eu deixava de poder dar a minha colaboração no Campos Melo. Era interessante e lembro-me de que um desses mandatos apanhou-me na tropa, e ao fim de semana tinha que ir para fazer turno no Campos Melo. Tinha que vir fazer tudo aquilo que me competia. E mais às vezes mais do que me competia. P: Então, daquilo que se conseguiu recordar com detalhe, foi desenvolvendo diferentes atividades em diferentes associações. Digam-me lá aquelas que se lembra. Victor Fernandes: Fui treinador na Mata. Fui treinador no Campos Melo, também de ténis de mesa. Joguei pelo Oriental de São Martinho, joguei pelos Leões da Floresta. Também joguei pelo Campos Melo. Depois acabei por me federar e depois terminei a minha carreira, sempre no ténis de mesa. Jogava uma futeboladazita, quando era mais novo, mas nunca tive grande queda para o futebol, ainda hoje é o dia que não vejo um jogo de futebol. Nunca tive grande queda para isso. Gostava de facto de ténis de mesa. Dava-me um gosto jogar e poder ajudar os outros a jogarem. P: Mas desenvolveu outro tipo de atividades, tipo responsável pela catequese? Victor Fernandes: Sim, fui responsável pela catequese, também uma das coisas que me calhava todos os anos era, por exemplo, a preparação para a profissão de fé, que eram 15 dias intensivos de catequese e então iam os grupos todos da paróquia. Conclusão, chegava ali a ter aos cento e alguns, catequizando os 100. E alguns catequizados foram catequistas. Era engraçado, no fundo era engraçado. Naquela altura, também, as pessoas também se moldavam com mais facilidade. Eu estou a ver hoje uma turma, por exemplo com 100 alunos, que essa ninguém devia pôr mão naquilo, não é? Até com 30 já deve ser difícil, quanto mais com cento e qualquer coisa. Naquela altura era mais simples. As pessoas eram diferentes. P: Isso foi nos anos 80? Victor Fernandes: Sim, pelos anos 80. P: E desempenhou mais algum tipo de atividade? Victor Fernandes: Assim outro tipo de atividade, música sim, porque ajudei a fundar, fui dos fundadores do Covimúsica, lá em cima no Campos Melo. Fui fundador, mais quatro pessoas. Eu tinha viola, os outros não tinham. Eu não sabia tocar viola, emprestava a viola e assim se foi criando. Quer dizer, começou-se com pouco. É engraçado que juntávamos a revolução, aquilo que nós começamos a cantar inicialmente era tudo o que era revolucionário, canções revolucionárias, partidárias e canções da Igreja. Também mais de convívio fraterno de jovens. P: Esteve alguma ligação à JOC ou à LOC? Também sei que havia alguns grupos. Victor Fernandes: Não, nunca estive ligado. Conhecia muito bem as pessoas de um lado e do outro, só que diretamente nunca estive ligado, nem à JOC nem à LOC, mas indiretamente estive ligado a toda a gente, porque muitas vezes ia para os encontros com eles. Apesar de não fazer parte, ia para os encontros com eles e sempre me dei bem com eles. P: Mas desculpe interromper, estava-me a contar das músicas do COVI Musica, isso foi em que ano que começou? Victor Fernandes: Foi no pós 25 de Abril e talvez já nos anos 80. Fins dos anos 70, princípios dos anos 80. Foi muito interessante. P: Tocava músicas revolucionárias e da Igreja? Victor Fernandes: Sim, foi assim que começámos, depois cantava-se uns fadinhos também pelo meio, até que depois voltámo-nos de vez para a música popular portuguesa e daí nunca mais saímos. P:E como é que era essa relação entre a música revolucionária e da Igreja? É interessante essa... Victor Fernandes: Sabe que as pessoas... A música revolucionária ainda estava um bocado na mente das pessoas e era bem aceite. A música da Igreja também era bem aceite no contexto, com as pessoas de então. Se fôssemos hoje a cantar qualquer coisa da Igreja e num lado qualquer, certamente ou não aparecia muita gente ou certamente eram capazes de aparecer e, não estando a contar com isso, eram capazes de dar uma assobiadela. Não faço ideia. As pessoas hoje são muito diferentes, já não é o que era, isso também devido um pouco à ciência. A ciência dá-nos hoje uma perspetiva diferente de algumas coisas, tentou explicar muita coisa, ultrapassou muita coisa, de facto, é verdade, e isso leva um pouco a incredibilidade das pessoas. E hoje as pessoas não ligam muito, pelo menos não estão a ligar muito, até que alguma coisa aconteça e vá tudo, de Santo na mão, às coisas da Igreja. Mas o que é certo e verdade é que as pessoas não se podem esquecer nem do passado, nem do que foram. E acho que devem dar também uma oportunidade à Igreja, que foi certamente onde nasceram e é certamente onde a maior parte pertence como baptizada na Igreja, certamente. P: A então essa dupla filiação, sente que faz mais parte de um clube do que do outro ou há uma identidade global do associativismo em que se insere sem fazer distinções entre as coletividades? Victor Fernandes: Claro, eu nunca fiz distinção entre coletividades. Sei que os mais velhos tinham uma certa rivalidade. Connosco não e o caso mais concreto é, por exemplo, eu telefono muitas vezes ao Francisco e o Francisco telefona-me a mim, como muitas vezes telefona ao Miguel e o Miguel telefona ao Rui, que está no Campos Melo, e muitas vezes ele também fala comigo. Portanto, eu nunca fiz distinções entre coletividades. E estava-me a lembrar do meu amigo, que vai ser amanhã entrevistado, que trocou a entrevista para eu ser entrevistado hoje, porque amanhã vou levar a vacina. Não posso lá estar, além do Ginásio, do Barroca, que também nos damos excecionalmente bem. Portanto, eu nunca vi diferença seja daquilo que for. Aliás, eu acho que o futuro das coletividades vai ser apoiarem-se umas às outras. P: Já existia essa colaboração entre as coletividades? Victor Fernandes: Talvez não houvesse muita. Havia coletividades rivais, como disse. Hoje não vejo rivalidade em lado nenhum. Mas, na altura, havia muita rivalidade. É muito provável que não houvesse muita cooperação umas com as outras. Hoje é totalmente diferente, estamos completamente à vontade. Embora uma pessoa sinta que alguns puxem mais do que outros por alguns cordéis. Não é isso que me vai a pôr contra seja quem seja, cada um mexe os cordéis que quer. Eu não me chateio absolutamente nada com isso. E se as pessoas forem soltas, certamente irão ter a mesma atitude que eu. E conheço algumas que são soltas também, quer dizer, têm a sua coletividade , mas quando toca a querer ajudar e quando pedimos auxílio, vêm também em nosso auxílio. E isso será o futuro das coletividades. Porque há de se chegar a um ponto, ou eu estou muito enganado, em que não vai haver gente suficiente para estar à frente das coletividades. E então, se as queremos ter abertas, temos que lhes pagar. Pagando-lhes, já não podemos comprar determinadas coisas e como não podemos comprar determinadas coisas, certamente temos que nos valer uns dos outros. Pedir à coletividade uma coisa que ela tem e depois também ceder alguma coisa que ela precisa. E podemos fazer isto entre coletividades. Eu não acredito que haja alguma coletividade que tenha tudo aquilo de que precisa. Porque não tem, certamente. E isto será um futuro próximo. Eu já não o vejo muito longínquo. Posso estar enganado, mas aquilo que eu vejo até agora, e devido a esta demografia, este movimento de pessoas para outros lados que nos deixa desmembrados, é muito provável que um dia vá acontecer, e se calhar mais breve do que aquilo que pensamos, o manter destas casas tem que ser remunerado. E isso leva certamente àquilo que a senhora disse e que eu também já disse, a que as pessoas se juntem mais para resolver os problemas momentâneos que tenham nas suas casas. P: Por falar em resolver as coisas em conjunto, logo a seguir ao 25 de Abril também se criaram nestas comunidades, eu acho que em articulação com as coletividades, outros tipos de associações, que eram as comissões de moradores, onde as pessoas se juntavam para resolver problemas dos bairros, teve alguma experiência dessa natureza? Victor Fernandes: Não, por acaso nunca tive, nem aquele que está mais situado no meio de um bairro. Há pelo menos três que estão no meio de um bairro, ou quatro, que é a Lapa, que é o Académico dos Penedos Altos, que é o Campos Melo e que é o GIR Rodrigo. São os quatro que estão mais inseridos, todas as outras estão um bocadinho mais afastadas do bairro. Embora o Oriental tenha muita coisa ali de volta, não era propriamente um bairro, porque havia se calhar mais gente ali que viesse para aqui do que fosse para lá. Mas eu nunca tive essa experiência de ver essa situação como pôs, nunca tive. P: E não acha que o facto da Covilhã ser uma zona predominantemente industrial ter quase toda a gente ligada à indústria, ter uma forte tradição operária, que isso marcou de certa maneira o associativismo e que justifica esta profusão de associações? Victor Fernandes: Eu acho que em princípio certamente marcou as coletividades. Sabe que eram essas pessoas que davam vida a isto tudo. Principalmente quando tinham lacunas que precisavam de ser colmatadas. O caso de em casa não terem aquilo que desejavam e que a coletividade tinha. Vivia-se tempos, poderá dizer-se, difíceis, mas que eram um regalo. Já agora deixo-lhe esta, era um regalo, para quem era um miúdo, ver as pessoas com a sua lancheira, quando tocava as cinco horas da tarde, e ainda havia algumas estradas que ainda eram em terra, e via-se os bandos das pessoas, pareciam bandos de andorinhas, muito engraçado. E eu era garoto e nunca mais me esqueço de ver aquelas saídas, depois pelo caminho, até se entrava numa taberna e bebia-se um copo. Era muito engraçado. Eu via, só que não bebia e ainda não estava a trabalhar na altura. E depois vinham para as coletividades. As coletividades eram a segunda casa das pessoas. Eu acho que até passavam mais tempo no emprego e nas coletividades do que propriamente em casa. Só havia uma coisa de mal. Era, na altura, haver poucas senhoras que iam à coletividade. Muito rara era a senhora que entrava na coletividade. E as coletividades podiam ter um dinamismo diferente se as senhoras tivessem posto também a sua cabeça e as suas mãos e todo o seu ser aqui ao serviço das coletividades. Não existia. E ainda hoje, penso que só há uma é que tem senhoras. Não, o Campos Melo tem e o Oriental tem, e penso que não há mais nenhuma. P: Mas antes do 25 de Abril elas não podiam participar, pois não? Victor Fernandes: Não participavam absolutamente em nada. Era injusto, acho que era injusto essa parte antes do 25 de Abril. Era um bocado injusto. Uma esposa que entrasse com o marido ainda podia ser tolerada, mas não podia estar muito tempo. Se uma senhora entrasse sozinha num café ou, por exemplo, aqui na coletividade ou noutra coletividade qualquer, isto caía o Carmo e a Trindade. Era muito complicado, porque havia um certo falatório. Depois eram apelidadas de muita coisa que nunca foram na vida. Isto era aquilo que tínhamos, quer dizer, era a cultura da época. Hoje faz-nos falta o contrário, faz-nos falta as mulheres e não as temos. Eu já não a tenho de maneira nenhuma, porque sou viúvo, mas fazem-nos falta as mulheres, porque têm um sexto sentido às vezes para determinadas coisas que os homens não têm. E isso era uma mais valia para qualquer coletividade ou para qualquer organismo. Não é que ninguém esteja por cima de ninguém, somos todos tratados por igual. Eu sou o presidente, mas estou a par dos outros colegas todos. Não sou mais que ninguém, nem pretendo ser. E fazia-nos cá falta as mulheres. P: E não houve nenhuma altura em que as mulheres tivessem participado mais? Victor Fernandes: Houve, principalmente no tempo das marchas populares. Nós também fomos dos clubes que ganhámos mais marchas populares e não ficávamos a dever nada a Lisboa. Digo-lhe que isto estava já num patamar de tal maneira que teve que acabar, porque as pessoas gastavam quatro a cinco vezes mais do que aquilo que iam receber da edilidade covilhanense. Chegou a um ponto que tinha de ter uma rotura qualquer e acabou. E nós víamos aqui as senhoras, não só para dançar, como também para arranjar os fatos e para arranjar essas coisas todas. As pessoas davam-se como voluntárias, por isso era magnífico ver as pessoas todas a trabalharam, andarem aqui dois ou três meses a ensaiar, era lindíssimo. E sabe que as senhoras também trazem muita gente atrás para elas, quer dizer, com elas vinham, os filhos, vinham os netos e isso era uma mais valia para qualquer coletividade. Era um sonho tornado realidade durante esses três meses, esta casa sempre foi muito movimentada, mas durante esses três meses isto extravasava tudo, nem havia quase espaço para as pessoas, porque a sede era muito mais pequena do que agora, agora está em três andares. P: Qual é que foi o ponto, em que década é que foi o ponto alto das marchas? Victor Fernandes: Eu não tenho já bem presente isso. Mas já foi, já foi neste século. Portanto, não faço ideia já do ano, porque isto parou há uns tempos. Agora é que andam a começar novamente. Vamos ver se pega, mas há algumas pessoas que já se desabituaram. E algumas pessoas que já não as temos. Como eu disse, já vivem noutros sítios e não estão para aqui andar de caminho. Isso complicou tudo. P: Qual é que a década, o período em que a atividade associativa foi mais exuberante, em que as pessoas participavam mais? Victor Fernandes: Sabe, em questão de participação, era mais nos primórdios. Porque isto era um clube de sócios. Ainda hoje é, embora abramos as portas a toda a gente e demos os mesmos direitos a toda a gente. Mas dava gosto ver centenas de sócios a trabalhar para um bem comum. Hoje, se virmos meia dúzia de sócios, já ficamos contentes. P: Que idade é que tinha nessa altura em que centenas de sócios estavam aqui? Victor Fernandes: Então, eu devia ter, devia de ser ainda garotito. Eu não podia estar à noite, devia de ser ainda garotinho, às 10h tinha que ir para casa, porque nos punham na rua e às vezes mais cedo. Eu era um garotito, ai com os meus 10 anitos. Dava gosto ver toda esta movimentação e não era só de volta do copito, é que havia muita coisa que se pudesse fazer. P: Como por exemplo? Victor Fernandes: Eu dou-lhe, por exemplo, as marchas populares, em cada uma delas as marchas populares davam muito trabalho. Vinha muita gente, isto era uma escola. Ténis de mesa, havia muita gente no ténis. Tínhamos pool, tipo snooker mas já jogado de uma maneira diferente. Tínhamos tiro ao alvo e ainda temos alguns federados que estão inscritos por nós. O que é que uma pessoa quer mais, meu Deus? Tínhamos o andebol, isto tudo ao mesmo tempo, movimentava muita gente. P: Isso tudo quando tinha os seus 10, 11 anos, ou seja, mais ou menos no 25 de Abril, nasceu em 1963? Victor Fernandes: Por aí. P: O 25 de Abril veio fomentar uma maior participação? Victor Fernandes: Não, penso que não. Penso que não. O 25 de Abril, enquanto as pessoas lutaram por novas regalias foi muito intenso. As pessoas aqui vinham muito. Depois de terem certas regalias, as pessoas começaram-se a afastar mais. Como já lhe contei há pouco, quero dizer, já têm a sua televisão, já têm a sua Internet, têm outras coisas dentro de casa que não tinham anteriormente. P: Mas quando se fala em lutar pelas regalias fala especificamente, por exemplo, naquelas greves, dos mil escudos por exemplo? Victor Fernandes: Sim, precisamente, e levaram a alguns aumentos, que levaram a algumas regalias sociais que hoje estão-se a perder todas. Mas na altura conseguiram-se várias regalias para os trabalhadores. Hoje isso é impensável, porque as pessoas não são unidas, como eram aquelas antigamente. Nós hoje, se falarmos numa greve, eu não estou a ver as pessoas a aderirem à greve. Se for na função pública, sim, Mas no privado, eu não estou a ver as pessoas a aderir à greve. Porque as leis, entretanto, foram retrocedendo e as pessoas também têm um certo receio de se manifestar. Portanto, eu já não sei que ditadura é que é pior, se era a ditadura do passado, se é a ditadura do presente. Não lhe sei dizer muito bem. Eu, como me afastei assim bastante da política, e não quero nada com isso, não sei dizer muito bem. Antigamente, quem não molestasse o governo podia fazer tudo e não tinha problemas. Hoje pode-se fazer tudo e podemos levar com alguns problemas pela frente. Portanto esta juventude que se cuide e que se una. P: Essas greves, por exemplo dos mil escudos, refletiam-se nas coletividades? Victor Fernandes: Refletiam-se, as pessoas quanto mais ganhavam mais também gastavam por aqui. E quanto mais regalias tivessem, notava-se, notava-se bem. Até que as regalias já são tantas que já não se nota bem. Há dois opostos. Quando não se tinha isso, foi tendo. Foi-se aplicando, mas agora que se tem de mais, não se aplica ou quase não se aplica e isto é quase um revés. Estamos a voltar atrás nalgumas coisas, mas não naquilo que era. P: Mas diga-me uma coisa, aqui os sócios deste eram maioritariamente operários e envolveram-se nessas lutas, como é que isso se vivia aqui dentro? Victor Fernandes: Não, dentro da coletividade, não se vivia isso. Não havia discussões sobre isso nem sobre grandes políticas, porque regra geral, também todos coincidiam mais ou menos à mesma política. Esta era uma das coletividades que era pró-socialista, também porque era de operários. Não havia tanto aquela patente comunista, embora houvesse alguns, mas respeitavam-se todos uns aos outros. Da classe mais à direita não tenho conhecimento, principalmente naquela época. Hoje, eu acho que são todos cada um pior que o outro. Eu acho que as pessoas hoje nem sequer discutem isso. Já nem sequer há uma certa ligação, nem vejo sequer ninguém a falar sobre um assunto político, seja ele qual for, a não ser comentar alguma coisinha que se passa ali na televisão. Uns estão a favor, outros estão contra, mas dali também não passa. P: Acha que a memória destas coletividades, esse passado, o facto de ter sido tão importante na vida das pessoas aqui da cidade, como é que essa memória é transmitida? Acha que os mais novos conhecem essa história? Victor Fernandes: Eu fui contando algumas coisas às minhas filhas, mas se quer que lhe diga frutos também não vejo. Porque nenhuma delas é muito amiga da coletividade. Quando eu às vezes venho: “pronto, lá vais tu.” Às vezes têm esse tipo de atitude, principalmente a mais velha. A mais nova nem tanto. Portanto, eles hoje têm uma maneira diferente e quando às vezes começamos a contar algum bocadinho de história da vida, este pessoal é muito mais aberto e às vezes o que tem na cabeça também o tem logo no coração. Nós éramos um bocadinho mais acanhados, nem que fosse para não magoar as pessoas. Nós não dizíamos aquilo que pensávamos. Esta gente hoje diz tudo. E como diz tudo, às vezes, se uma pessoa for contar alguma coisa, às vezes até se tornam um bocadinho inconvenientes. Pronto, ou eles ou somos nós. Não sei se eles não estão minimamente preparados para a história, para a história da vida. P: Aqui nos órgãos sociais, qual é que é mais ou menos a média de idades? Victor Fernandes: Já deve andar nos 60’s. P: Mas tem alguns jovens? Victor Fernandes: Tenho aqui ao pé de mim três jovens. P: E esses jovens estão interessados ainda no associativismo? Victor Fernandes: Ouça, eu também ando nisto que é para ver se lhes transmito esse bichinho, que é também para eu chegar e descansar. Acho que todos temos direito e às vezes estar tempo demais num certo sítio cria determinados hábitos e podem ser até prejudiciais. E não quero chegar a esse ponto. Queria que alguém viesse, um sangue novo que desse aqui um ar mais purificado à casa, mesmo que nós tivéssemos por trás a ajudar. Queria que essa gente, depois de moldada, ficasse a tomar conta. E é isso que eu sempre tentei. Em duas vezes que já fui presidente desta casa, da direção, de outras coisas já tinha sido. Mas da direção, sempre tentei meter jovens, para depois eles ficarem com a sucessão. Da primeira vez, tive êxito, porque ficaram pessoas novas na direção a seguir e com alguns cargos de responsabilidade. Desta vez, estou a rezar para que isso aconteça, mas desta vez também já estou a demonstrar um certo cansaço. Não é só o crer, o andar aqui, mas também já estou a construir um certo cansaço. Queria que alguém tomasse conta desta casa, porque acho que já é tempo. Eu acho que é tempo, porque quando não estou aqui, estou noutro lugar qualquer. E agora já são muitos anos, já vai para seis anos. P: E estes jovens que estão agora na direção, o que que acha que os motiva a estar agora no associativismo? Victor Fernandes: Um deles nasceu também assim por aqui. É relativamente novo. Mas nasceu por aqui e foi aqui que jogou futebolzito e foi aqui que se desenvolveu. Portanto, esse tem capacidade já no momento, penso eu, para presidir a uma coletividade. Tem já capacidade para isso. Tem uma pessoa a trabalhar mais diretamente com ele, que que lhe fazia uma tesouraria excecional, porque era um licenciado. E nós sabemos a tesouraria dos anos, embora hoje já não seja como era. Hoje é tudo através da contabilidade organizada, já não há contas de bolso, nem contas de gaveta, isso terminou. Isto é tudo contabilizado ao milímetro, vai tudo para as finanças, tudo direitinho. Hoje não há, não há esse tipo de contas, mas nós sabemos fazer isso pelos anos que temos e também porque a contabilidade na altura, uma pessoa faz isso bem, mas com um licenciado em gestão, certamente se fará melhor. Eu hoje não tenho um POC na cabeça, quer dizer, não tenho um plano oficial de contabilidade na cabeça, que esta gente mais nova certamente terá. Terá e pode pôr as suas capacidades à prova. Há um outro que é excecionalmente bom, não para gerir, mas é excecionalmente bom para olhar para qualquer coisa e ver aquilo que está bem e que está mal. Também um jovem que se ajeita já muito bem, seja naquilo que for, seja na eletricidade, seja na carpintaria, seja na construção, seja naquilo que for. Temos aqui um outro que é excecional. Agora precisamos que comecem também. Certamente ainda não será já nos próximos tempos, porque não estou ainda a ver, um ainda está estudar, outro está a tirar um mestrado, portanto, mais um anito. P: Qual é que aha que é o futuro do associativismo? Victor Fernandes: Eu vejo o futuro muito negro, sabe, porque as pessoas hão de chegar a um ponto que não têm capacidade para dar mais. E ao não ter capacidade para dar mais, eu já disse há pouco, se querem que isto continue, o mais certo é terem que pagar. Alguém que saiba gerir uma casa. É isso, já não vou ser eu, já vai ser outra pessoa qualquer, mas eu acho que o futuro passará por aí. Ter alguém a dirigir e esse alguém, certamente, tem que ser remunerado. De resto, não estou a ver grande futuro, a não ser que haja um revés muito grande e as pessoas comecem outra vez a necessitar destas casas. Nem que seja transformarem as casas num centro político, não sei. Mas, se precisarem, são capazes de voltar, se não precisarem, não estou a ver. Pelo menos duas ou três gerações foram completamente desviadas do que eram os contextos sociais. Aquelas belas virtudes que nós tínhamos, que os nossos pais nos incutiram, hoje não têm. Portanto, perdemos pelo menos três décadas. E isto só lá mais para a frente é que vamos fazer aqui isto dar. Eu, certamente, já cá não estarei. Mas quem cá estiver, boa sorte! P: Então e diga-me, o associativismo marcou a sua vida? Victor Fernandes: Marcou. Sabe que eu, além de praticamente crescer no associativismo, também marcou a minha vida de toda a maneira e principalmente, antes sim, mas principalmente, depois de 1988. Foi quando me casei, em 1988. A minha esposa dava-me um certo à vontade, porque ela também gostava. Ela chegou a ser diretora desta Casa, já me estava a esquecer. Mais duas meninas, na altura. Agora é que não temos, já foi em 1990, porque coordenavam as marchas populares com a direção. Eu, nessa altura, estava de fora, estava na Comissão de Festas para angariar dinheiro para as marchas populares e também fazia parte da Assembleia Geral. Em 1988 foi mais profundo. Estava aqui com a minha esposa e era totalmente diferente, era um apoio totalmente diferente. E mesmo depois dela sair daqui, quando começou a ter as filhas. Mesmo depois dela ter saído daqui, nunca me disse, ou nunca me pôs qualquer tipo de entraves, porque ela também gostava disto. Todos estes tempos foram marcantes, até ao desaire da Covid 19. Isso foi desastroso, vi-me aqui um bocado perdido na noite. Totalmente diferente, não vinham as pessoas, as contas caíam. Foi um pouco aflitivo. Se estivesse uma pessoa menos paciente à frente, não sei se ultrapassaria determinadas situações. Eu cheguei a um ponto que não tinha um cêntimo na caixa. Eu dizia: “Onde é que eu vou arranjar dinheiro para isto?” Hoje está mais ou menos colmatada. Mas foi doloroso. E nunca me senti tão fraco como agora, neste tempo. É engraçado que eu pensava que, quando começasse a desconfinar, as pessoas tinham aprendido alguma coisa com isto. Mas mais uma vez, como me enganei tantas vezes na vida, mais uma vez me enganei. As pessoas continuam a ser individualistas, continuam a ser comodistas, continuam a se servir das coisas e não ligar nenhuma ao que é o associativismo. P: O que é que foi a coisa mais importante que aprendeu com esta experiência associativa ao longo da vida? Victor Fernandes: Aquilo que eu aprendi foi a envelhecer aqui e a saber mais. Isto dá-nos uma estaleca diferente para enfrentarmos determinadas coisas. Foi aquilo que talvez mais me tenha marcado. Porque tudo o resto, todas as atividades e tudo isso já lhe falei atrás. Mas aquilo que de facto mais me marcou foi envelhecer aqui, o que me tornou mais aberto para enfrentar as situações que venham por aí, e já vieram algumas. -
2 de junho de 2021
Luzia Lopes Mendes
P: Nasceu aqui na Covilhã? Em que ano? Luzia Lopes: Sim, 1944. P: E estudou aqui? Luzia Lopes: Fiz a quarta classe neste sindicato, havia escola para os filhos dos trabalhadores com mais dificuldades, de maneira que fiz até à quarta classe aqui no sindicato e depois era preciso trabalhar, não é? P: E foi trabalhar para onde? Luzia Lopes: Fui para o Colégio das freiras aprender costura, porque naquela altura só se podia ir para as fábricas depois dos 14 anos, de maneira que fui para o colégio das freiras aprender algumas coisinhas de costura, que me deram um jeito a mais tarde… E depois daqui para a fábrica depois dos 14 anos. P: E qual foi a fábrica para onde foi trabalhar? Luzia Lopes: Pronto, eu fiz a aprendizagem numa fábrica que estava só assim um bocadinho a aguentar-se, o meu primeiro contato foi numa empresa, depois fui para outra empresa. Quando aí, então aprendi a profissão que tinha e depois fui para a fábrica até me reformar, onde estive sempre. P: Qual era a sua profissão? Luzia Lopes: Urdideira mecânica. Há aquela máquina que enrola os fios para depois fazer a largura toda da peça que depois ia para o tear e o tear fazia.... P: E foi sempre esse seu ofício até à reforma? Luzia Lopes: Foi sempre esse até à reforma. Reformei-me por invalidez. P: E os seus pais também já eram da indústria? Luzia Lopes: O meu pai era tecelão e a minha mãe era cerzideira. Era metedeira de fios, que agora já se diz que é cerzideira, pronto, ainda bem. P: E eram ambos daqui da Covilhã, não é? Luzia Lopes: Sim, sim. P: E casou, teve filhos? Luzia Lopes: Tenho 2 filhos e tenho 4 netos. P: E o seu marido também trabalhava.... Luzia Lopes: O meu marido é alfaiate [ri-se]. P: E trabalhava em casa? Luzia Lopes: Em casa. P: E os seus filhos, qual foi depois o percurso que eles fizeram? Luzia Lopes: O mais velho tem 46 anos neste momento. Também fez só até à sétima classe. Ele não queria estudar e então foi para uma confeção de edredões. Mas depois começámos a aperceber-nos de que ele estava a entusiasmar-se com o dinheiro que ia ganhando, e nós vimos que aquilo era muito limitado para o futuro dele. E foi nessa altura que começaram a aparecer os cursos de formação profissional. Lá o conseguimos convencer a deixar de ganhar aquele dinheiro para investir na formação e hoje é mecânico na Mercedes. Pronto, está bem. O outro já estudou, é engenheiro mecânico, está em Angola. Pronto, está bem. P: E viveu sempre aqui na Covilhã? Luzia Lopes: Sim P: É católica? Luzia Lopes: Sou católica praticante. Claro, tinha de ser, porque é daí que as coisas depois partem. Não venham com dúvidas: tudo o que é fora, a gente debate-se com dificuldade, porque o ver, julgar e depois o agir, não está de acordo com aquilo que... P: E filiação partidária, teve alguma? Luzia Lopes: Não P: Então e filiação associativa? Luzia Lopes: Sim, como cristã tive várias coisas. Dei catequese a um grupo de jovens, cerca de 20 anos, Hoje já estão todos… já têm filhos e não sei quê, e depois, fazendo parte daquela equipa do LOC da minha freguesia, demo-nos conta do trabalho que a paróquia tinha feito e que nós colaborámos, demo-nos conta das dificuldades que os pais tinham em tomar conta dos filhos durante as férias, eram 3 meses de férias. É então que nos juntamos e estudamos o assunto e vimos o que é podemos criar neste tempo de férias, chamadas férias grandes na altura e então criamos um espaço... P: Então estávamos a falar da vida associativa… Luzia Lopes: Então, a partir daquele aprofundamento, daquele conhecimento da realidade que se vivia naquela zona - é uma zona pobre, havia a necessidade de fazer alguma coisa para ocupar o tempo livre daquelas crianças -, os esforços uniram-se, abriram-se algumas janelas, criou-se um grupo para fazer o levantamento de quantas crianças, o que é que os pais pensavam, procurar o espaço, a que portas a gente havia de bater, por exemplo. Foi esse trabalho todo. Durou 20 anos. Então tivemos de arranjar. Não tínhamos dinheiro para pagar a educadores e então um amigo nosso que era reformado, trabalhava nos serviços, disponibilizou-se para ir ensinar as crianças como se fazia… montava-se uma ficha... Arranjámos uma moça que hoje também já está reformada, também deu o seu contributo e várias pessoas, quer dizer, recorremos de gente que nós conhecíamos para dar um apoio. Por exemplo, o meu marido, à segunda-feira era o dia que menos trabalho tinha e então tomava conta deles. Pronto, então foi muito interessante… P: Isso foi em que ano? Depois do 25 de Abril? Luzia Lopes: Sim, sim, já já... P: Então, mas se calhar começamos antes do 25 de Abril, sim? Luzia Lopes: Pois, antes do 25 de Abril, a minha caminhada foi de facto na Juventude Operária Católica e foi de facto aí um meu espaço de formação, de sensibilidade, de luta, e procurando onde eu me situava. Como cristã, onde devia ser o meu empenhamento, não era fora das coisas, mas era dentro das coisas, quer nas associações, quer no sindicato, quer na empresa, quer na Igreja. Então, ao nível dessa situação, trabalhando na fábrica, antes do 25 de Abril, já havia alguns mais despertos para estas coisas dos direitos e tal. A gente já ia acompanhando um bocadinho a razão que levava também a falar e a denunciar. Claro que nós éramos novas, pronto, nós éramos novitas, e foi então assim que se criaram na altura as Comissões de Trabalhadores e aqui eu entrei para uma Comissão de Trabalhadores com outros. Mas a dificuldade em ser mulher no meio dos homens, era que a mentalidade, cuidado… Era que às vezes os homens se deixavam emprenhar pela mentalidade das mulheres ou pela ideia das mulheres. Pronto, houve aqui assim alguma coisa mas… Quer dizer, se eu estou no meio da massa, eu não podia desistir. Então, a Comissão de Trabalhadores continuou e havia um delegado sindical. E então havia uma coisa que nos fazia muita impressão, era que o delegado sindical vinha ao sindicato, às reuniões e tal, chegava à empresa e em vez de partilhar connosco um bocadinho do que se tinha visto, que se tinha analisado, o que é que iria fazer… Não, imediatamente, eles informavam era a entidade patronal. Não está correto, a gente devia saber primeiro o que é que os leva lá… Até que depois eu fui nomeada delegada sindical. P: Mas diga-me uma coisa, antes do 25 de Abril já tinha feito parte de alguma Comissão de Trabalhadores, alguma greve? Luzia Lopes: Não, não, foi só depois. P: Mas participou nesta greve [greve em Unhais da Serra, 1969]? Então mas participou desta primeira experiência, foi a primeira experiência de luta ?Julgo que em Unhais da Serra... Luzia Lopes: Não, eu não trabalhava para aí, eu trabalhava já na Covilhã. Eu não trabalhava na Penteadora. Mas tinha conhecimento. Tivemos conhecimento da informação que nos chegava cá, da luta que aquelas mulheres estavam a fazer, mas não estava lá. Pronto, e assim começou um bocadinho a nossa ação na empresa. E assim, por eu ter estado nos movimentos operários, nos momentos de reflexão, de participação, de incentivar e tal a estarmos no meio, também me levou um bocadinho a integrar-me nas questões do sindicato, a nível da empresa. Foi então a partir daí que eu fui delegada sindical da empresa, Fernando da Silva Antunes. Já não existe. E foi a partir daí, porque me parece, sempre e ainda hoje, que a gente para exigir também tem de cumprir. E quem está disponível para se dar, tem de ser coerente com aquilo que defende. Não é porque o partido me mandou lá ou deixou de mandar, era porque eu acreditava que o meu contributo, com as minhas colegas de trabalho, com os meus colegas de trabalho, numa perspetiva de respeito, de coerência, de verdade e de dignidade, levava-me a comprometer-me e foi assim que eu comecei a assumir os espaços no sindicato. Lembro-me que uma vez havia uma greve de duas quintas-feiras. Pronto, decidiu-se no sindicato, naquela altura eu já era delegada sindical, e a luta era porque as nossas empresas tinham metedeiras de fio de cerzir, cerzideiras, em casa, nas casas delas, nas aldeias e tal, mas não eram consideradas trabalhadoras da empresa. Porquê? Porque iam lá pôr os cortes e iam lá buscar. Então, houve duas semanas seguidas, duas quintas-feiras, em que o sindicato propôs uma greve para que as empresas, naquela altura, ainda havia essa força, para que aquelas trabalhadoras fossem consideradas trabalhadoras da empresa, para terem as mesmas regalias que nós tínhamos dentro da empresa: subsídio de férias, essas coisas todas. E na conversa, um dia, encontrei-me lá na casa de banho com uma e perguntei: O que estão a pensar fazer amanhã? Oh, não nos adianta muito vir, então não há ninguém. Pronto, olha, ainda bem, e sabe por quê? Porque normalmente fazem piquetes e os piquetes não é para tratar ninguém mal, mas é para esclarecer as pessoas da razão porque é que a gente está às portas e, sendo assim, não é preciso vir para aqui ninguém. Passou-se, passou-se. Na outra quinta-feira, eu ia para pegar trabalho e já não me deixaram pegar trabalho. Quando o guarda me disse: oh Luzia, não pega trabalho que o patrão quer falar consigo. Esperei que o patrão me viesse chamar e a razão que ele me apontava era de que estavam ali aquelas raparigas para me acusarem, porque eu que as tinha ameaçado… E eu: desculpe, não foi assim. Em frente delas, a verdade foi esta: isto, isto, isto e isto... Bom, mas, desculpe, e ele voltava a falar e eu calava-me e perguntava: posso falar agora? Pode. É mentira, isto foi assim, assim, assim, assim. Pronto, nós estivemos ali duas horas e meia e nessas duas horas e meia a empresa para e batem à porta do escritório: nós queremos saber por que é que a Luzia está aqui. Se eu já estava um bocadinho a lutar pela verdade, aquilo deu-me uma energia… E o patrão ficou assim comigo: vá-se lá… E eu fui dizendo assim: ó senhor [...], há uma coisa que eu não entendo. Então o que é? O senhor vai à missa, que eu vejo-o lá muita vez, como é que o meu Deus me diz isto e o seu diz-lhe outra coisa? Já ficou um bocadinho... E depois diz-me assim: vá, vá-se lá embora, está a máquina parada, a máquina está parada desde as 8 horas. Mas foi o senhor que me chamou. Mas digo-lhe uma coisa, senhor [...], vale a pena lutar pela verdade, porque por cima da verdade ninguém vai passar. Foi remédio santo… Pronto, e passado algum tempo ele chamou-me, que eu merecia mais algum dinheiro e que me ia dar 25 tostões. Aceitei aquilo como cumpridora do meu dever, porque eu era responsável, porque pronto, assumia... Mas depois comecei a sentir interiormente, à minha volta, que as coisas não estavam a correr bem, em termos de colegas de trabalho. Não, isto não pode acontecer, antes quero dormir descansada do que estar a ganhar mais 25 tostões. E então fui lá: então Luzia, passa-se alguma coisa? Vinha-lhe pedir para me tirar os 25 tostões. É o que lhe digo, prefiro dormir descansada. E tirou, também não deu às outras Pronto, isto criava aqui uma divisão… Não valia a pena. P: Porque é que acha que foi eleita delegada sindical? Luzia Lopes: Porque a minha intervenção já na Comissão de trabalhadores, não só nos dava… Nós não podemos ir atrás daquilo que nos mandam. Vamos parar para refletir se esta atitude ou se esta ordem ou se esta informação que vem do sindicato é aquilo que nós achamos… E se for preciso, chamamos... E foi a partir daqui que eles começam a ver que eu tenho outra outra forma de analisar, de ver as coisas... Porque daqui diziam e eu ia atrás disso? Pronto, não, isso não dava. P: Já tinha havido outra delegada sindical mulher? Luzia Lopes: Sim, sim. esta [...] foi delegada sindical e muitas outras antigas que a gente conhecia, na altura. Sim, sim, já havia muitas, mas era mais comum serem homens, claro, não tenha dúvida nenhuma. É engraçado, porque eu acho que os homens, como é que eu vou dizer, contentam-se, deixe-me passar o termo, um bocadinho com aquilo que se lhe diz, não têm, não são capazes de parar para ver se isto é o melhor, se isto pode responder agora, mas quais as consequências disto. Muitas vezes aqui nós debatíamos, porque eu acho que se investiu muito pouco na formação. Apostou-se muito na reivindicação, e dar formação às pessoas? Porque nós temos que reivindicar os nossos direitos, mas também temos cumprir os nossos deveres e porque, como cidadãos, como seres humanos que têm dignidade, nós temos que lutar por isto. Por esta razão e não porque o Partido mandasse ou deixasse de mandar. P: E quando foi o 25 de Abril já estava envolvida no movimento sindical? Luzia Lopes: Não estava. Foi a partir daí que eu me envolvi. Para nós, no trabalho, foi um dia para lembrar o resto da nossa vida. Que a gente acompanhava... Foi viver. P: E depois, o que que aconteceu nesse período revolucionário, na sua empresa? Luzia Lopes: A entidade patronal também se limitava a estar um bocadinho mais calma, para ver onde é que isto ia dar. Só que na altura nós tínhamos um dirigente sindical (que já faleceu) que já antes se falava e debatíamos e conversávamos e tal, e a gente já estava a acompanhar um bocadinho a realidade do trabalho. Há coisas de que a gente se vai lembrando. Eu lembro-me de uma vez, estávamos numa reunião da LOC, no grupo onde estava a nossa [...], a [...] era delegada sindical, e nós tínhamos a ordem de trabalhos do sindicato e, no grupo, refletíamos: olha, atenção a isto, porque isto pode nos levar para aqui. A nossa posição é como cristãos, a nossa atitude não pode ser a atitude de um partido. Mas às vezes acontecia-nos, às vezes eu ficava até um bocadinho arreliada... E então dava-se aqui uma volta que as pessoas ficavam um bocadinho com a noção de que era preciso ir por ali, se não foi isso que nós refletimos. Nós refletimos, nós aprendemos, ensinamos, desfrutámos do que o ver, o julgar e depois o agir de acordo com aquilo que nós estamos a refletir. E, como cristãos, nós não podemos andar uns por um lado e outros por outro. Vou contar uma história muito interessante. Um dia, era aqui em baixo e viemos a uma Assembleia Geral. Era um sábado, na altura, e depois eu dava catequese às cinco horas, e eram quase cinco horas. Estava muita gente, naquela altura, estas assembleias eram… Dava gosto. Assim, pronto, eu tenho de me ir embora e estava um senhor à minha frente, que trabalhou até com o [...], e eu...oh, eu tenho que me ir embora já, que tenho de dar catequese às cinco e meia. Catequese? Sim. Mas chego à Igreja, e tive o mesmo efeito. Digo assim à dona [...]: Hoje já me descuidei um bocadinho, eu estive no sindicato. No sindicato? Por isso, eram coisas… Quando nós achávamos e refletíamos que era no meio da massa que as coisas se transformam, não é fazer aquilo que os outros dizem, mas é aquilo em que eu acredito, passa por aqui também. Pronto, e tivemos assim algumas coisas, como por exemplo, fazermos parte de um departamento das mulheres e ser um homem a coordenar as coisas? P: Isso onde? Luzia Lopes: Na União de sindicatos. P: E depois o que é que fizeram? Luzia Lopes: Então, claro, o homem não dava conta de nós [ri-se]. Um homem não dava conta de nós, não é? E pronto, foi assim. E há outras. Uma vez estávamos também a preparar o Dia Internacional das Mulheres e conseguimos passar um bocadinho, o parar para refletir, vamos lá com calma, isto é importante, não é importante… O que é que nós vamos fazer, que tipo de luta nós vamos fazer, e às tantas estavam em minoria e começaram a chegar mulheres. E de onde é que você vem? Oh, foi o meu marido, que estava no partido, e telefonou-me para eu vir...E isso ainda nos veio dar mais razão de que o ser e estar disponível e o agir tem que ser de acordo com a dignidade da pessoa, seja ela preta ou branca. P: Então, já percebi que aqui havia uma certa tensão entre o movimento católico e os delegados sindicais ligados ao Partido Comunista. Mas foram trabalhando em conjunto... Luzia Lopes: Tinha de ser, até porque, por exemplo, nunca o Partido Comunista fez - nunca não é bem o termo, nalguns anos faziam - uma lista sem virem convidar-nos a nós. Porque era importante estar alguém da Igreja em nome da lista e eu disse ao [...], pela mesma razão que me vens convidar para eu estar aí é a mesma razão que eu te digo que não é necessário estar lá. Porque era um bocadinho para compor o ramo. Pronto e aqui às vezes havia… e nunca alinhámos. Pronto, juntos na ação, quando é preciso estar ao lado dos trabalhadores da luta, que é preciso reivindicar. Claro que nunca foi nada dado de mão beijada, mas não alinharmos só para alinhar, questionarmos, porque assim é que as pessoas cresceram. Olhe, não sei se estou a responder. P: Agora queria fazer outras perguntas, mais de nível pessoal. Qual é que acha que foi a propensão para participar nestes movimentos? Já tinha pessoas de família que estivessem envolvidas? Luzia Lopes: Atenção, a minha mãe tinha quatro filhos. Teve quatro filhos, dois já partiram e ainda somos dois. E nenhum se envolveu por aqui. Eu, a minha mãe dizia assim muita vez: tinha dois filhos, veio a menina, deve ter sido… Eu vim com alguma missão. Pronto, e eu sinto… e eu comecei quer na Comunidade, depois na JOC, as caminhadas da JOC, o aprofundar, comecei a tomar uma consciência maior de classe, que era preciso pôr em prática. Pronto, e foi a partir um bocadinho… Por isso é que digo: a JOC ajudou-me a situar-me como pessoa, a lutar pelo que eu tinha direito, no respeito pelas pessoas, mas sobretudo pela dignidade da pessoa. Portanto, para mim foi a minha escola. P: Foi muito importante na sua formação pessoal? Luzia Lopes: Muito, ainda hoje. Eu estou na LOC, mas ainda hoje a gente aprende uma coisa: dificilmente nos dizem o contrário, não têm capacidade para dizer o contrário. Isto revela-se na família, revela-se na comunidade. O que é verdade tem que ser verdade até ao fim, revela-se no movimento associativo, por aí fora. E como eu estava a dizer há bocadinho, criámos uns tempos livres nessa altura. Então, uma associação que havia, que eram os brincalhões, que hoje já não existem. E conseguimos falar com a direção e tal, porque era uma associação de bairro. Conhecíamo-nos todos uns aos outros e na altura era fácil, porque a gente andava por ali, os nossos homens eram dirigentes e tal. Então fomos fazer a proposta para que nos deixassem um espaço para angariar os miúdos todos. Foi-nos dada uma salinha térrea, eu trouxe da fábrica umas colas para pôr no chão, para os miúdos se sentarem, fizemos umas almofadas grandes, porque não tínhamos nada… E pronto, e assim começaram os tempos livres, naquele espaço que havia um quintal. Um dia ia-se para a Ribeira lanchar e depois chegava-se e fazia-se uma revisão do que se tinha feito no dia. Outro dia caminhávamos para o monumento de nossa Senhora e fazia-se uma revisão de como é que foi o dia... Fazíamos assim. Isto durou, assim aos saltos, três anos. Entretanto, aparece-nos uma pessoa amiga não sei de onde, que era assistente social, e teve conhecimento do trabalho que estamos a desenvolver e nos procurou para ter conhecimento do que estamos a fazer. Nós já tínhamos feito um acampamento na Serra com as tendas. Quando estavam os pais, todos colaboravam. Foi muito interessante. E então, esta senhora veio-nos abrir as janelas para avançarmos com esta atividade muito mais séria, muito mais dinâmica e também com muito mais apoios. E então, desde irmos às juntas de freguesia, irmos a câmara, abriram-se as portas assim. Depois, entretanto, aquela associação começou... Só tinham um espaço pequenino e as pessoas valorizavam mais o jogo das cartas. E então começámos a sentir uma pressão. Na altura, outra associação, que é o Oriental de São Martinho, que é uma coletividade com uma dinâmica já bastante grande. E então nós soubemos que a casa do lado tinha sido desocupada, as senhoras tinham morrido e que seria dada ao Oriental… E então nós pusemo-nos em campo, fomos à Junta de Freguesia e por aí lá furamos o esquema e lá nos deram uma sala. Então aí já tivemos educadoras que já nos davam algum contributo, que se tinham formado, mas não tinham sido colocadas. Dávamos assim um contributo através do subsídio de alimentação, que a gente conseguia dar, e então quando começámos a entrar por aqui, aquilo foi mais localizado e aquilo avançou. P: E foi no âmbito da JOC ou da LOC, que foi pensada essa iniciativa? Luzia Lopes: Esta iniciativa foi pensada no grupo da LOC. Porque nós tínhamos feito, a Comunidade tinha feito, um projeto. A Comunidade dividiu-se em grupos, nas zonas: tu ficas com esta zona, tu ficas com aquela e nós tínhamos umas folhinhas que dávamos a conhecer, mas era uma aproximação que se fazia com as pessoas que moravam naquela zona. Ora, eu fui criada para além, calhou-me a zona que me dava jeito, pronto. E então, ainda trabalhava, o grupo nasceu, algumas pessoas que se disponibilizaram fazer … Quantos filhos tinham? O que é que achavam se nós conseguíssemos fazer isto? Porque é que as crianças ficavam tanto tempo em casa? O que é que elas faziam naquele tempo? Eu às vezes ponho-me assim a pensar: de facto, nós já fizemos muita coisa. Os pais começaram a colaborar, desde cortarem as pernas das mesas da cozinha para pôr as mesas pequeninas e as coisas começaram assim e foi bem. Depois fomos para o Oriental e entretanto dá-se o mesmo problema: os homens precisavam da sala para jogar às cartas e a gente começou a sentir uma pressão. E então a pressão foi de tal maneira, existia uma comissão de pais... Era eu que geria a questão financeira. Os miúdos pagavam X, nós pagávamos à educadora e depois e o resto seria para saídas. Saímos no autocarro da Câmara, fizemos uma visita ao Portugal dos Pequeninos, fizemos muita coisa nos tempos livres de apoio às crianças. Mas depois começámos a sentir, porque as direções dos grupos vão mudando e entrou então uma direção que achava que os tempos livres deviam fazer parte da associação, que era uma coisa que dava nome. Nós não estamos contra que se faça parte, queremos é que tenha uma gestão independente, porque as direções mudam e como de facto, as coisas mesmo acabaram por acabar. Mas pronto, enquanto duraram foram boas… P: Então, isso já foi no âmbito da LOC. E a JOC, começou a participar na JOC antes do 25 de abril? Luzia Lopes: Sim! P: Em que tipo de atividades é que se envolveu no âmbito da JOC? Luzia Lopes: Nós aprendemos na JOC a fazer cursos, formação para o casamento. Nós aprendíamos como se cosiam as meias, coisinhas que hoje a malta não sabe fazer, mas que alguém nos ia… Naquele grupo, adultos nos iam ensinar algumas coisas, como é que nós nos preparávamos para a vida? Eu acho que foi de uma riqueza, que há coisas nunca mais se perdem, nem se esquecem e não deixam de ter sentido. P: Mas já trabalhava, Luzia? E no âmbito da JOC, também se discutiam as questões do trabalho? Luzia Lopes: Com certeza. Pronto, dentro da nossa capacidade de conhecimento, porque nós tínhamos já a gente adulta que já estava no sindicato antes do 25 de Abril e que nos… Eu posso lhe dizer abertamente. Por exemplo, eu lembro-me de quando queríamos ir para alguma atividade da JOC, os nossos pais não tinham dinheiro e então eram as pessoas mais antigas da LOC, e uma delas, como dirigente sindical, foi presidente aqui do sindicato, que nos ia dar 500 escudos para nós irmos às atividades da JOC. Os nossos pais não nos podiam dar dinheiro. Portanto, isto ajuda um bocadinho a formar a nossa consciência, também do que somos e do que podemos aproveitar daquilo que somos. P: E quais é que eram os tipos de atividades, para além dessa formação para a família, que outros tipos de atividades é que desenvolviam? Luzia Lopes: Fazíamos encontros alargados com outras dioceses, que depois se refletia no que o grupo fazia, desenvolvia-se no seu âmbito, quer no trabalho quer na comunidade. Então, esses encontros que se faziam a nível nacional, e que depois a gente começa a ter consciência, de facto, que não somos só nós que temos estas dificuldades, em Braga também têm, no Porto também têm, e então passava por aí essa formação. E depois tivemos, tivemos e temos o padre [...], que é um doce. Foi o nosso pai, que tantos buracos tapou, que a gente não se podia movimentar… Mas nunca nos travou. Tem coragem e vai. Vai lá que tu consegues. Este incentivar, “tu és capaz de fazer, fá-lo como tu sabes”. E lá íamos nós para os encontros. É engraçado, como é que, hoje penso, como é que... Naquela altura os meus pais me deixaram ir, não é? P: E depois traziam esses ensinamentos? Luzia Lopes: Pronto, e depois a malta reunia-se por vários grupos, fazíamos um encontro alargado e partilhávamos o que é que soubemos da outra diocese, como é que eles tinham reagido, qual tinha sido a revisão de vida que fez Aveiro. Um bocadinho assim nessa linha, porque depois passávamos esta mensagem e este entusiasmo também, para que as pessoas... P: Explique-me lá isso da revisão de vida, como é que se faz? Luzia Lopes: Então, a revisão de vida é assim, passa por uma pessoa e por uma realidade que a gente apresente. Por exemplo, havia uma casal em que tinha uma filha em que lhe dava imensos problemas. E isto depois, parecendo que não, contaminava o ambiente em casa, pronto. Um dia chegava alguém e olha: fulana isto assim, assim… Começávamos. Porque é que Isto acontecia? Vamos aqui fazer a revisão, porque é que isto acontece? Acontece porque o pai trabalhava, a mãe trabalhava em casa e não se dava muita atenção ao pormenor dos filhos, ainda hoje acontece. E então chegámos à conclusão de que, de facto, o problema também era dos pais. Pronto, então vimos esta situação.. agora o que é que fazemos? Agora não é só atirar... Como é que nós vamos e por onde é que nós podemos entrar para fazer esta ação para agir perante esta situação? Pronto, e o mais engraçado é que não começámos pelos pais, sendo que eram os pais que precisavam mais, começámos pela miúda. Fomos conversar com a menina. Encontrávamos, partilhávamos as coisas e tal. E a miúda foi percebendo o lugar dela e o respeito para... porque para tu dizeres alguma coisa, tu tens que ter consciência do que estás a fazer. E para provares aos teus pais que é por aqui... então começamos a trabalhar a própria miúda, e depois até veio para a JOC. São coisas concretas. Por exemplo, as questões do namoro. Era uma coisa que se debatia muito. Eu lembro-me que a primeira vez que comecei a namorar, assim, como é que eu… Foi engraçado, eu fazia anos, a minha mãe não sabe, como é que eu vou fazer? Então fui mais uma colega e dois colegas, a casa dele, lanchar. Ele lá preparou a família. Então queres crer que eu vim para casa e não consegui deitar-me enquanto não disse à minha mãe que tinha ido. Isto dá para perceber… P: E como é que se articulava esse trabalho da revisão de vida com ação sindical? Luzia Lopes: A nossa ligação com o sindicato, a partir do 25 de Abril mais concretamente, já passava por aquelas amigas que nós cá tínhamos, que eram da LOC e que já eram dirigentes sindicais há muito tempo e que nos iam passando. Porque a JOC também se encontrava com a LOC, nos grandes encontros encontrava-se, e a gente ia aprendendo como elas faziam. Por isso, a nível da JOC, eu não estive muito dentro do sindicato. Por exemplo, a [...] acho que esteve diretamente ligada, na altura já era dirigente ou foi a partir daí que ficou dirigente livre. Eu, quando comecei a participar no sindicato, ainda não era, deixe-me passar o termo, a casa do PC. Ainda havia alguma abertura, ainda havia gente aqui consciente. Pronto, esse tal meu colega, que trabalhava lá comigo, que já nos ajudava, ele era dirigente sindical e a gente começou a aprender. Mas depois eles começam também a querer tomar poder. E então queriam-se meter de qualquer maneira, não é? E depois havia aqui assim uma... Pronto, muitas das vezes a gente ouvia dizer: eles que façam lá… Não, é preciso estar lá para ouvir e qual é o nosso parecer. E passaram-se assim algumas coisas. Eu lembro-me uma vez, estávamos numa Assembleia, e um rapaz, já faleceu também, tinha dificuldade em se exprimir, não tinha o dom da palavra, mas fê-lo como soube, e logo assim: mais valia estares calado. E então aqui a gente refletiu: não, desculpem lá, mas o [...] tem direito a falar como as outras pessoas. Eram pequeninas coisas, mas era a maneira de estar e de ser nas coisas grandes. E não é por acaso que hoje tenho uma relação com o [...], não assim muito grande, mas pronto, mas tenho uma coisa, depois é uma questão afetiva também, ele vem, medita, cresce, a gente vai acompanhando, sem medo nenhum de lhe dizer: tu assim por aqui não vais lá. O nosso ponto de vista é este e discutíamos muita vez, pronto, e ele sabia que era por aqui e não é por acaso que muitas vezes, já não é a primeira vez que que há atitudes destas, deste género, e a gente dá o nosso contributo, com aquilo que sabe e aquilo que fez, não fazer mais aquilo que sabe. Foi aquilo que se fez? P: A Luzia foi dirigente do sindicato Têxtil da Beira Baixa. Como é que foi, quando é que foi? Luzia Lopes: Pois… Quando? Eu tenho cartões de dirigente sindical. Na altura em que eu fui dirigente sindical, já tinha passado por ser delegada sindical e membro da Comissão de Trabalhadores, já tinha feito um caminho. E até lhe vou dizer uma coisa. Numa altura em que nós, o grupo, um bocadinho avessa daqueles, criámos uma lista, que era a lista B. Isto porque havia todo um trabalho, todo um acompanhamento que a gente vinha acompanhando que não era por aí, não pode ser só por aí. Os outros também têm direito, pronto, e então um dia nasceu a lista B para concorrer com a lista A. Parece mentira, mas a diferença foram 12 votos. Era meia-noite, estavam em Unhais da Serra a dizerem ao Grupo da LOC que a lista B tinha desistido e eles ficaram: olha, então temos que votar na A. Quando nós nos apresentámos no dia das eleições, na Penteadora de Unhais, para proceder à votação, então, mas pronto, isto é um bocadinho quererem nos tirar o tapete. E aí ganhámos… por 12 votos. Passaram-se muitas coisas, mas pronto é assim, era o que havia. As pessoas também tinham se calhar necessidade de se afirmarem, é da forma como eles achavam, mas não era a minha, nem era a de muita gente. Nós temos também de ter lugar em algum lado. P: E enquanto dirigente do sindicato têxtil, que tarefas é que tinha? Luzia Lopes: Pronto, eu estava naquela altura na assembleia, ia às reuniões que faziam. Naquela altura, discutia-se muito o contrato coletivo de trabalho. Era mais nessa linha e a reflexão ia sempre na linha de defender sempre o contrato coletivo de trabalho. Pronto, agora já nada é assim. O contrato coletivo de trabalho é para todos, não é só para aquele ou para aquele, mas seria para todos. E então isso também nos dava um poder de reforçar um bocadinho a nossa luta para que todos tivessem os mesmos direitos, depois começaram a aparecer os contratos de empresa e as coisas começaram a ser diferentes. Mas nos sindicatos, normalmente, nas assembleias, nas reuniões de direção, era assim que funcionava. P: Lembra-se da greve dos mil escudos? Participou? Luzia Lopes: Perfeitamente. P: Como é que foi? Luzia Lopes: Ainda hoje tenho uma coisinha de louça que eles nos deram, um dia que fizemos… Passado quantos anos? Aqui neste sítio, uma lembrançazinha. Pois foi, e mais uma vez a ação da LOC aqui esteve presente. Eu parece que estou a ver a olhos vistos o [...], que já morreu, que era na altura dirigente sindical, e estávamos lá em baixo, numa coisa que se chamava a FACEC, era um pavilhão onde a malta se encontrava, e lembro-me que chegou a malta de Unhais da Serra num autocarro, que eles ficaram bocadinho a tremer. O direito… nós queríamos os mil escudos, porque era para todos igual. Porque houve sempre diferença de homem para mulher e até nos mesmos setores. E pronto, foi um período forte. P: As Mulheres também conquistaram os mil escudos? Luzia Lopes: Sim, sim, foi igual para todos e tivemos umas semanas boas de greve, de fome, mas depois também sentimos a solidariedade vir aí. Foi um marco na minha vida, pelas duas maneiras: primeiro porque provou-se que se as pessoas estiverem unidas nós conseguimos; segundo, porque os mil escudos não eram nada demais para a vida que se estava a ter; e terceiro, sentiu-se a solidariedade. Porque ninguém sozinho consegue fazer nada, mas se a gente sentir que tem outros do nosso lado e a apoiar-nos, pronto, então as coisas conseguem-se. P: Dê-me lá exemplos dessa solidariedade ... Luzia Lopes: Por exemplo, a nível do PC, vieram na altura, eles também estavam organizados, e vieram do Alentejo com material, feijão, grão, sardinha, percebe? De vários lados e depois foi distribuído pelas pessoas que mais precisavam. Mas depois também foi um incentivo para nós. Eu lembro-me quando foi das Minas da Panasqueira, quando estiveram em greve, vieram para aqui para o pelourinho, fazer greve, estavam aqui e tal, uns a dormir no chão e eu também peguei em mim e vim buscar um casal, que traziam dois filhos, levei-os a casa, dei-lhes de jantar, tomaram um banho e vim cá pô-los. Pronto, era um bocadinho assim. P: E também houve outra greve muito importante, dos 29 dias, em 1981. Luzia Lopes: Foi essa, foi a tal solidariedade. 1981, eu vou-lhe contar. Foi uma greve muito complicada, aí é que houve porrada e eu estava grávida. Eu estava grávida e achei que não me devia ir meter ao barulho lá para baixo para a Paulo de Oliveira, mas estava a ouvir. Ouvíamos nós na rádio e diziam eles: cuidado, tende cuidado que a GNR está a cercar a vila... Isto começa a ferver, eu e mais outras pessoas. Então mas aqueles tipos estão lá sem comer e tal? Então pegámos em malgas de marmelada, pão, e fomos ter Boidobra a pé, eu não sei como é que a gente conseguiu fazer isto, para dar de comer àqueles... e lembro-me que quando lá cheguei, já estava tudo... pronto. Depois o pessoal vinha sair da empresa e a malta estava cá fora para barrar: eh pá, mas depois também há aqueles que são do extremo, às vezes não precisávamos também de atirar pedras nem nada. Eu também sou contra isso. Mas eu quando cheguei lá, já vejo uma colega minha do trabalho com a cabeça a deitar sangue e há um rapaz, que também já morreu, dizia-me assim: foge daqui, que eles vêm aí atrás… Mas eu, então mas eu não fiz mal a ninguém... E a GNR vem ter comigo e diz-me assim: o que está aqui a fazer? Eu não fiz mal a ninguém! Vá já com esta senhora hospital para o hospital e venho com a minha colega, que estava a escorrer sangue para o hospital. P: Essa foi uma foi uma greve... Luzia Lopes: Foi, foi muito dura, foi muito dura, mas eu depois também fico com pena porque as pessoas ficam só nesse sítio e não continuamos a desenvolver este espírito, as pessoas ficaram com medo, alguns.... Mas foi, foi muito duro. P: Mas acha que depois dessa greve foi diferente? Luzia Lopes: Tinha que ser, tinha que ser diferente. Porque aqueles que iam trabalhar, porque eles iam para ali, foram para aquela empresa, porque havia gente a trabalhar. Ora, não é fácil a gente estar cá fora há tantos dias sem ganhar dinheiro e os outros irem trabalhar e fazerem sábados e domingos. Quer dizer, era uma revolta. Penso que mesmo para as pessoas que estavam lá a trabalhar deve também ter sido uma aprendizagem. Porque não é para se ganhar mais uns tostões que se chega a algum lado. Mas pronto, foram coisas duras. Por exemplo, nós vínhamos às 5 da manhã, para nos juntarmos aqui no sindicato, para irmos para a porta das empresas. Eu sempre disse: não quero porrada, esclareçam as pessoas. Sempre fui sem medo nenhum. Mas assisti a alguma porrada. Mas sempre fui, deixava o meu homem e os meus filhos em casa. P: Como é que seu marido… Luzia Lopes: Pois, é muito engraçado, porque... Eu também já casei com algum contrato (ri-se). Eu vinha de uma relação de cinco anos, o dia em que faço cinco anos é o dia em que o meu marido morre. De cinco anos de sofrimento, de luto, o caminho para Lisboa… Eu já tinha namorado o homem que tenho hoje, e digo assim: eu só me caso se eu puder continuar a fazer toda a minha ação, que minha ação que eu tive necessidade de parar agora neste momento. Pronto, ele nunca me impediu, quer na LOC quer no sindicato, nunca me impediu. E às vezes as nossas discussões é porque eu sou mais… como é que eu hei de dizer? Não, tu disseste que era assim, assim é que tem que ser, eu sou mais um bocadinho… porque os homens são mais um bocadinho, até se esquecem do que disseram (ri-se). Estou a falar de mais, mande-me calar... P: Não, não, não está, está ótimo. Mas diga-me uma coisa, depois dessa greve de 1981, tem sido sobretudo um período difícil, com muitas empresas a fechar. Como é que avalia esse período? Luzia Lopes: Muito desemprego... Foi muito complicado. A salvação foi a universidade. Foi muito complicado, muito desemprego, casais nas mesmas empresas, muitas lutas, na medida em que se tem capacidade para perceber que a empresa vai abaixo... não querem aguentá-la. A gente tinha noção disso e deixa-se assim por não ter compromisso e fica-se a dever muitos meses às pessoas. Quer dizer, foi terrível. Foi terrível. P: E como dirigente sindical, esteve envolvida nalgum desses processos? Luzia Lopes: Nessa altura, se calhar já não estava na União, mas nós nas reuniões aqui acompanhávamos a empresa tal: o patrão disse isto, está-nos a ameaçar.... Nós íamos acompanhando nas assembleias que íamos fazendo, estávamos sempre a par das coisas: na minha, não, pronto. Eu também me reformei com 50 anos, que é outra questão, não sermos preparadas para precaver as doenças profissionais. Nunca ninguém nos tinha falado nisso. Passado um tempo é que começaram a ver as equipas lá nas empresas. Eu era urdideira mecânica e trabalhava na bordadeira, e então a minha posição era sempre com a perna direita a carregar no pedal para a máquina andar, de maneira que eu fiz isto, fiz uma escoliose. Andei, andei até que depois, há 20 anos atrás, foi para os ossos, um problema, o micróbio das tuberculoses em vez de ir para o pulmão, foi para aqui, para o meio das vértebras e então fiquei toda coisa, desde partir uma perna a andar... E pronto, se está bem que as máquinas não estavam preparadas para cuidar dos trabalhadores, estavam preparadas para produzir, mas nós também nunca fomos alertadas para a prevenção, para o que a gente podia ir fazendo, por exemplo, sei lá, em vez de estar tanto tempo, podíamos não sei como encontrar ali uma alternativa ou por o estrado mais alto... Quer dizer, não pensávamos, nós não tínhamos capacidade para pensar, podíamos ter evitado muita coisa a nível de saúde. Eu lembro-me que na altura aquilo era frio, quando fomos para a fábrica nova, que aquilo era frio e puseram uma caldeira grande, uma virada para um lado e outra virada para o outro e que trabalhava com nafta, mas aquilo deitava um cheiro do diacho. Todos se queixavam, todos se queixavam, mas a uns fazia mais diferença do que outros já. O que é que acontece? Acontece que aquilo fazia uma dor de cabeça, porque o calor vinha diretamente para a nossa cabeça, mas assim isto não pode continuar. Depois chamámos, falámos à entidade patronal e tal: mas também não vos percebo, não há de ser do frio. Pronto calámo-nos bem caladinhos e fomos ao Ministério Trabalho: existe um aparelho na nossa fábrica que faz isto assim, assim… vira-se diretamente para nós e nós não conseguimos trabalhar. Foi lá a fiscalização e aquilo teve que ser fechado. Por outra vez, aquilo era frio, puseram-nos um radiador por cima, uns araminhos, um radiador numa… (?) assim por cima. Ai caraças, parecemos uns pitos do aviário. Andámos, andámos, isto assim não pode ser: senhor, tire lá os radiadores, porque nós não somos pitos do aviário para estarmos a chocar. Pois o que queria era pô-lo aos pés, se não quiser pôr aos pés não ponha. E então puseram-nos aos pés. Outra vez, era para fazer umas horas e tal: eu faço se puder, se não puder não faço, as outras faziam, durante o dia podiam andar calminhas, mas depois chegavam as cinco horas.... Eu com o trabalho já pronto: Não, eu não faço. Se for preciso para desenrascar um tecelão, eu fico. Mas para fazer coisa assim, não fico, pronto. O que é que aconteceu? Aconteceu que tive uma semana encostada à máquina sem trabalho e as outras a fazerem horas. Um dia, chega lá o patrão, ainda hoje é filho: veja lá se quer uma cadeira, se calhar não era pior. E não... E pronto, passa a gente por várias coisas assim, não é? Mas que nos dão aqui uma.... (ri-se) P: Então e depois de se reformar, continuou a participar no movimento sindical ou virou-se mais para a LOC? Luzia Lopes: Pronto, nos reformados, eu fiquei um bocadinho aquém, porque o problema da minha saúde foi muito complicado. Eu estive três meses e meio nos [Hospital dos ] Covões, fora o tempo em que eu estive aqui nos hospitais. Agora estou a lutar contra uma doença autoimune, sequelas da tuberculose. Continuei com um grupo de jovens na catequese, já não era uma catequese, era grupo de jovens que já tinham feito o Crisma, e na LOC. Convidaram-me muita vez para vir para os reformados, mas eu não achava muita graça. Por exemplo, estou a participar num clube sénior e a gente a aproveitar o tempo da melhor maneira, aquilo que a gente gosta de fazer, cidadania, envelhecimento ativo, informática. Agora ir só para lá para beber o chá, para… Nunca fui para os reformados. P: E na LOC, depois, que tipo de atividades é que desenvolveu? Luzia Lopes: E desenvolvemos... Então, temos o Congresso, que é de três em três anos. Há temáticas para cada ano, desses três anos, sobre a dignidade do trabalho, agora este ano o que estamos a pensar, o que se está a trabalhar é as novas tecnologias, o trabalho em casa. Ainda agora vai ser a equipa nacional sobre os prós e os contras do teletrabalho. E há sempre uma altura das reuniões que se faz a revisão de vida. Hoje já são os homens, já são os velhos, já são os filhos, já são os netos: ah… no nosso tempo não era assim. Mas agora, neste tempo, estamos aqui, que resposta é que... Já passa por aqui um bocadinho a nossa ação, porque somos já quase todos reformados, mas achamos que não somos velhos, eu às vezes digo assim lá em casa: eu tenho como velho um idoso. Porque o idoso, pela idade, mas não para, vai estar nestas coisas e tudo o mais. E, por exemplo, no próximo sábado vamos ao passeio promovido pelo grupo. O que é que nós ontem estivemos a dar, a aprender, a trabalhar, a fazer a língua gestual. Nunca tinha pensado nisto. Então e o aprender, não é bom? Não sei se é preciso nem se não, mas aprender é sempre bom. P: Quais são as responsabilidades que tem agora na LOC? Luzia Lopes: Agora não tenho nenhuma. Porque também pela idade, que muitos se reformaram e já estão em casa. Então, o que é que nós criámos? Uma equipa interparoquial, com os da Boidobra, com os do Ferro... Não deixámos parar e fizemos uma equipe Interparoquial. Eu continuo como animadora daquele grupo dos meus lados, em que é preciso convocar, é preciso chamar, é preciso dizer: olha, vamos fazer isto. Continuo a fazer um bocadinho a dinamização daquilo que me cabe a mim, no meu lado: olha, já avisaste fulana? Pronto, e outros fazem, outro é o tesoureiro, outra é a coordenadora, e pronto, vamos fazendo assim. P: E continua a participar nos encontros nacionais? Luzia Lopes: Não, só vai a equipa nacional. Vou ao Congresso, aos congressos, que são abertos a toda a gente. Só os delegados é que podem votar, mas os convidados podem participar, aí vou. Agora, participar, participar ativamente, só os delegados é que podem votar. P: Qual é a importância desses momentos, dos congressos? Luzia Lopes: É muito importante, muito importante. Para já, é um marco importante, nacional. Segundo, é um desafio à própria Igreja e ao movimento sindical. Porque se trata dos problemas dos trabalhadores, da vida dos trabalhadores. E, como trabalhadores cristãos, nós temos um papel, é diferente, mas temos que estar lá. Não somos mais, somos diferentes, vemos as coisas por este lado. Por isso são importantes, porque a gente se encontra com aquela gente toda dos outros lados e porque cada zona tem sua realidade. Embora o tema do trabalho seja a mesma coisa, mas os pontos de vista e as realidades lá podem ser diferentes dos de cá e então são muito importantes, são marcos muito importantes. P: Diga uma coisa: acha que a JOC e a LOC foram importantes para promover a participação das mulheres na vida social ? Luzia Lopes: Não tenho dúvida nenhuma. Porque então é o que eu estava a dizer, porque os sindicatos nunca se preocuparam muito com a formação das pessoas, porque uma pessoa formada da cidadania encontra onde se encaixar, naquilo onde eu possa fazer alguma coisa boa, que era mais um poder reivindicativo. E quer queiramos quer não, a mulher tem também um lugar próprio, em todos os lados, quer no movimento sindical, quer na Igreja. Há dificuldades? Há. Em aceitar? Muitas. Mas as mulheres são importantes. P: Que tipo de dificuldades e como é que os ultrapassou? Luzia Lopes: Ainda há bocado estava a contar que vinha ao sindicato e diziam: vais dar catequese? E a catequista disse-me a mesma coisa: foste ao sindicato? Porque eram coisas diferentes. As pessoas não tinham de estar, quer dizer, podíamos ser cristãos só na igreja, mas não podíamos ser no momento sindical ou na fábrica, percebe? Havia aqui uma coisa que serve... Isso foi-se esbatendo. Mas a Igreja também tem caminhado muito, para estar na... porque se não se transforma nada. Porque nem toda a gente vai à missa, nem toda a gente ouve. O padre pode explicar muito bem, mas se não aprender o fundamento das coisas eu não consigo trazer nada cá para fora. Se aquilo não mexer comigo, não transformar comigo, eu não posso dizer ao outro, como é que se faz. Pronto, há todo um caminho a percorrer. Mas eu espero que a gente… É assim, ao perfeito ninguém chega, mas não duvido que a Igreja tem um papel importante na divulgação, na formação e em defender a dignidade de quem trabalha. P: E acha que os estes movimentos específicos ligados ao mundo do trabalho são bem aceites pelo resto da igreja enquanto instituição? Luzia Lopes: Nem muito. Sabemos que temos muita estabilidade, há bispos já abertos, com uma mentalidade já aberta, que já chamam as pessoas, já reúnem com as pessoas, já querem ouvir a opinião dos movimentos operários, há bispos já abertos. Não posso dizer que o meu seja. Tentamos dar a volta ao contrário. P: Como é que dão a volta ao contrário? Luzia Lopes: É estar, não desistir, ser persistente e ser coerente. P: Queria perguntar-lhe algumas coisas sobre a questão da Memória, ou seja, tudo isto que nós estamos aqui a falar, estas histórias do antigamente, da resistência, da persistência na luta. Isto é algo que passa dos mais velhos para os mais novos no seio destes movimentos como a JOC e a LOC? Luzia Lopes: Hoje a atualidade é diferente, mas eu sinto isto mesmo até em relação aos meus filhos. Os meus filhos apanharam muito da minha ação, do meu compromisso. Os meus filhos apanharam muito e quantos são filhos de gente que fazem esta experiência saem de lá grandes militantes. Se me disser, já tenho mais dificuldades com a minha neta. Já tenho, que tem 19 anos. Isto é secundário, o que é preciso é eu estar bem. Agora, mas também não desistirem. E às vezes não conseguimos fazer pela conversa, às vezes só pelo testemunho e pelo estar com os netos. Mas eu tenho a felicidade de que os meus filhos apanharam muito da minha luta e do que sou, é engraçado. P: E, por exemplo, na catequese, na relação que tem com os mais novos, passa... Luzia Lopes: Pronto, eu nunca estive com os mais novitos, estive sempre a partir do crisma, já fazem com 15 anos e então muita revisão de vida se fez porque a própria Mensagem do Evangelho nos leva a uma revisão de vida. Eu na escola, como é que eu sou na escola? Como é que eu pratico isto na escola? Como é que eu exijo isto em casa? Esta revisão de vida levada? Eu acho que fui a pessoa mais feliz, porque de facto consegui transmitir... uns são militantes do PS... outra é professora na Universidade, todos fizeram o seu caminho e cada um está no seu, na Figueira, em Lisboa, todos por aí fora, mas é uma relação tão próxima… É uma relação tão próxima que temos um encontro marcado para Novembro, com todos os que passaram por ali. E deixe-me dizer na fábrica, onde eu trabalhei, estes anos todos, dávamo-nos bem. Mesmo que até em determinadas alturas as pessoas não me vissem bem, porque era uma mulher, mas assim... Nós estivemos aqui uma vida inteira, nós fizemos aqui a nossa vida toda, estas horas todas, e agora isto há de acabar assim. E então não é que todos os anos, já lá vão uns aninhos, nos encontramos, fazemos um almoço, alguns já foram. Há dois anos, no dia do almoço, fomos enterrar um. Pronto, encontramo-nos e olha lá... este ano, com a pandemia, não fizemos, mas a ver se a gente este ano… Já comecei a fazer.... Sabe bem, vêm os que estão lá longe. Valorizar estes momentos, porque nós temos ali a nossa vida, fomos para as garotas. E nunca tivemos tempo de perceber, quem tu és. Então, agora nesta idade vamos-mos encontrar para fazer um bocadinho um convívio. É lindo, rezamos missa de manhã pelos que já partiram e fazemos um almoço. P: São tudo pessoas muito ligadas à Igreja? Luzia Lopes: Não, quem não quer ir à missa não vai. Respeitamos cada um e o seu caminho. Agora, a verdade é que nós trabalhámos uma vida inteira todos juntos. Então, não nos há de ligar alguma coisa, nem que seja um convívio para… é interessante. E dizia-se: um dia que tu morreres, calma aí que ainda é cedo, que aquilo que acaba, calma aí que ainda é cedo, já estão todos muito em baixo, velhinhos e tal, temos outros mais novos, que já aparecem depois. Mas isto só para dizer que colhe-se o que semeia. Eu podia não ter a ideia. E até o patrão vai, o filho, o outro já morreu. O [...], quer queiramos, quer não, o senhor fez o caminho connosco. De outra maneira, mas fez. E vai aos almoços. P: E diga-me uma coisa, há essa fraternidade entre os colegas de fábrica, e acha que os movimentos, como o movimento sindical ou como a LOC, criam uma identificação mais alargada com os trabalhadores de todo o país ou até de todo o mundo? Luzia Lopes: A LOC está organizada a nível mundial, diocesana, nacional, internacional e mundial. Isso pronto, a nível da LOC, isso faz. Temos muitos militantes da LOC, a nível nacional, que estiveram na central sindical. Muitos. Com algumas dificuldades, mas não desistiram de estar lá. Porque, pronto, eu vejo de uma maneira diferente, mas eu estou cá. Eu quero acreditar que demos um contributo e estamos a dar um contributo aos que estão e aos que ainda possam vir. É verdade que a idade e as maleitas das pessoas nos vão impedindo da dinâmica ser maior, mas quero acreditar que demos e ainda continuamos a dar um contributo para a sociedade. P: Qual é que acha que é o futuro de movimentos como o movimento sindical ou como a LOC ou a JOC? Luzia Lopes: O movimento sindical terá sempre... Pronto, o movimento, a JOC, pronto é mais a malta… Hoje, é assim, naquela altura que a gente foi da JOC trabalhava na fábrica, hoje a malta está na universidade, tem outras janelas. O movimento sindical tem sempre o seu espaço. Agora que terá também que ver um bocadinho que as coisas hoje não é só para assinar papel, é preciso esta formação, de pessoa, de cidadã. Porque às vezes, uma coisa é dizer e depois não somos coerentes com aquilo que dizemos, não fazemos o que dizemos. Isso deita por baixo o acreditar em alguma coisa. E nós já nos debatíamos aqui há uns anos sobre isso, que era, nós muitas vezes podemo-nos fazer valer pela nossa maneira de ser, às vezes não é preciso falar muito. Eu agora conheço pouco o movimento sindical, nem sei quem é a presidente agora, não sei se é. Sei que é uma menina. Mas eu acho que todos têm o seu lugar e isto há-de ir para a frente, porque todos têm o seu lugar, tem que ser, porque se os patrões se organizam numa determinada matéria, os trabalhadores têm de fazer a mesma coisa. Tem que se investir na formação em primeiro lugar, é importante. Porque se as pessoas estiverem esclarecidas, são capazes de lutar por aquilo que querem e por aquilo que têm direito. P: E a LOC ou os movimentos cristãos ligados ao trabalho, qual é que acha que é o futuro desses movimentos? Luzia Lopes: A JOC tem alguma dificuldade, há grupinhos dispersos. É porque hoje, se eu lhe disser que a mais nova que está na LOC aqui no meu grupo tem 48 anos, de resto é tudo para frente. E temos alguma dificuldade em que as pessoas adiram, porque gostam mais do deixa andar e... mas já nas fábricas era a mesma coisa, porque eles não queriam lutar, eu na minha fábrica não tive grandes problemas, porque era uma fábrica pequena, mas nas grandes fábricas sabemos, se vier para eles também vem para nós. Esta coisa de se encostarem um bocadinho sempre aconteceu. Com os nossos jovens, estou sentir alguma dificuldade, porque sempre cá houve equipas da JOC, mas depois falta de animadores, a falta da Igreja também abrir espaço para eles. Porque não podem ser só ao nível da Comunidade só, têm de se ouvir. Sinto que a JOC está com alguma dificuldade, a LOC também, com a nossa idade já temos alguma dificuldade em... Ainda existe isso? Sim, enquanto formos vivos, mas sentimos que temos o nosso espaço próprio e é pena. Mas é o que eu digo, a malta vai para a universidade, tem outros caminhos, outras propostas, às vezes não são as mais corretas, mas pronto. E a gente sabe, não é? P: Queria perguntar-lhe se esteve em alguma iniciativa específica relacionada especificamente com a emancipação feminina ou lutas pelo igualdade salarial, em torno da mulher trabalhadora. Luzia Lopes: Uma vez, uma vez estavam a preparar, acho que já contei esta história, estavam a preparar o Dia da Mulher e estávamos lá em baixo, numa sala. E nós estávamos a discutir o trabalho que tínhamos lá para fazer e começaram a perceber que não havia gente para aprovar aquilo que nos estavam ali a pôr. E, então, começaram a chegar algumas mulheres. Sem nunca cá estarem. E eu perguntei: olha, então de onde é que vem? Foi o meu homem que me telefonou, que estava no Partido... P: E qual é que era a questão? O que é que estavam a colocar que vocês não queriam? Luzia Lopes: Pronto? Agora, também, assim, concretamente não me lembro o quê, mas sei que nós participámos, fazíamos parte de um grupo de trabalho na União de Sindicatos sobre as questões da mulher, mas éramos coordenadas pelo homem, que não nos entendia. Queria impor a letra, mas espera aí, pronto e aquilo e pronto acabou por desistir e aqui acontecia a mesma coisa, pronto, porque pensam que as mulheres eram mais para encherem o para compor o ramo. Mas passaram também por aí grandes mulheres. No meu tempo de jovem, aquela a [...], aquela mulher… P: O que é que se lembra dela? Luzia Lopes: Muito alta, ela foi dirigente sindical antes do 25 de Abril, mas foi também dirigente livre da JOC e da LOC. Ela percorria as aldeias, a fazer o seu trabalho de ação para são Romão, para Loriga, Gouveia, para Seia. Ela fazia este trabalho de ir ao encontro. Hoje a gente toca-se, se vêm, vêm, se não vêm... mas as pessoas iam. As pessoas chamavam-se nesta altura, e chamam-se ainda, dirigentes livres, as pessoas são dirigentes mas são livres e então não têm rendimento. Vão para Gouveia, comem lá em casa da [...] assim. Lembro-me muito bem do trabalho que esta mulher que ela fazia. P: Mas ela dirigiu algum grupo de trabalho em que tivesse participado, Luzia? Luzia Lopes: Eu já conheci esta mulher na LOC, quando fui para LOC. Já lá estava, já era dirigente sindical. P: E trabalhou com ela diretamente? Luzia Lopes: Na fábrica não. Nos movimentos operários, em termos de LOC, ela era mais velha e eu mais nova. -
16 de novembro de 2021
Francisco Duarte
P: Senhor Francisco, a ideia destas entrevistas é registarmos as experiências de vida, ou seja, experiências que as pessoas têm ao participar no associativismo e a forma como o associativismo enriquece a vida das pessoas e também para percebermos quais são as pessoas que têm maior propensão para participar e, por isso, começava por lhe fazer algumas perguntas sobre a sua vida. Primeiro, gostava que me dissesse, para ficar registado, o seu nome e a sua data de nascimento. Francisco Duarte: Francisco Manuel Carvalho Duarte. 26 de junho de 1937. P: Nasceu aqui, na Marinha Grande? Francisco Duarte: Na Marinha Grande, sem maternidade, nascimento à antiga. P: Estudou aqui? Francisco Duarte: Estudei aqui, na altura na Escola Industrial da Marinha Grande. Ainda não era Escola Industrial e Comercial, era só industrial. Acabei por tirar um curso industrial, o chamado curso de vidraria, que ao início havia um curso de vidraria e um curso de pintor de vidros. Eu como tinha a pretensão de ter de facto a profissão de vidreiro, optei pela vidraria. Pois fui vidreiro dos 12 aos 14 anos e era uma profissão que eu, de facto, sonhava com ela e gostava muito de ser vidreiro. Mas um problema cardíaco, na altura também, um médico daquela altura, neste caso, o Doutor Júlio Vieira, que era uma figura carismática também da Marinha Grande, proibiu-me de ser vidreiro. Então, depois optei, naquela altura, pela chamada Universidade dos Montes. Iniciei uma outra atividade, exatamente como metalúrgico na Aníbal Abrantes, que era uma fábrica de moldes, a mais importante e a primeira que nasceu na Marinha Grande. P: E ficou lá sempre? Francisco Duarte: Fiquei lá durante 10 anos, depois trabalhei mais 10 anos na Emídio Maria da Silva, que era outra empresa também de fabricação de moldes para a matéria plástica e mais 18 anos na Molde Matos. Portanto, tive 38 anos de profissão, uma profissão dura, uma profissão de que eu nunca gostei muito. Portanto, eu sou das muitas pessoas que existem certamente com profissões contrárias à sua vontade. O meu sonho era ser vidreiro, porque gostava muito de vidro. Dava-me um certo gozo interior ver o vidro ser manejado e o equilíbrio do vidro em quente fascinava-me. Mas depois fui para a indústria de moldes, enfim… Na altura, entrar naquela oficina chamava-se ir para a faculdade dos moldes. E então tive uma carreira de metalúrgico de 38 anos, nos quais fui delegado sindical a partir de 1971. Estava naquela lista de um tal senhor da Marinha chamado Beta, um senhor que lhe chamávamos o Beta. Ele era Alberto, acho, mas chamavam-lhe o Beta, que mais tarde viemos a descobrir que era informador da PIDE. Ele tinha por norma, quando eram as assembleias gerais do sindicato, pedir-me para eu redigir, a mim e a um outro senhor chamado Biscaia, para redigirmos sempre, naquela altura, telegramas de protesto para o Governo. E então soube-se depois 25 de Abril, porque ele foi descoberto, que ele era agente, mesmo agente direto. E lá estava o meu nome para a curto prazo ir dentro, entretanto deu-se 1974 e felizmente acabou. Depois fui dirigente sindical. Durante 2 anos, fui delegado sindical e depois fui mesmo dirigente, presidente da Assembleia Geral do Sindicato da Indústria Metalúrgica, cuja sede principal funcionava em Vieira de Leiria, uma outra freguesia pertencente à Marinha Grande. Estudei de dia alguns anos, mas poucos, porque as dificuldades económicas eram muitas. E então eu tive de começar a trabalhar na escola, de dia, antes de tirar o curso. Acho que ainda fiz o primeiro ano de dia, já não me recordo bem, mas depois era trabalhador-estudante. Portanto, o meu horário de trabalho era das 8 da manhã às 6 da tarde, com uma hora para almoço e trabalhávamos aos sábados das 8 às 11, mas tínhamos duas horas para irmos para a escola. Portanto, eu saía sempre às 4. Uma das pessoas que me acompanhava até é hoje um empresário famoso, o senhor Henrique Neto, talvez já tenha ouvido falar. E acabei então por tirar o curso à noite. Antes disso, aos 10 anos, fui empregado na taberna, que era o refúgio dos vidreiros. Normalmente, começavam às 8 e acabavam às 3 e iam para as tabernas e era ali que se consumia muito vinho, de facto. Hoje reconheço que na altura não compreendi que seria assim, que começou aí também há uma certa consciência de que a taberna não era o melhor para os homens, nem para o desenvolvimento do país através deles. Quero eu dizer com isto, pensou-se muito também nas tabernas no movimento associativo. E algumas coletividades, pelo menos aquela a que eu estive mais tempo ligado, começou a ser criada numa taberna de um homem já, naquela altura, com uma cultura razoável e que via mais longe, sabia as condições políticas, em que vivia e porque ele foi também algumas vezes incomodado pela polícia, não numa maneira muito acentuada, mas foi avisado. E penso que também aí começou a haver um bocado a consciência de que seria necessário tirar os homens das tabernas e levá-los para locais onde se pudessem encontrar, o que foi o movimento das coletividades inicialmente. Depois fui dirigente daquela coletividade, e de facto não houve nada que eu não fizesse. Desde a limpeza aos salões antes de abrir a coletividade para os associados entrarem. Nós tínhamos de fazer limpeza, incluindo casas de banho, tínhamos de fazer tudo. Depois fui segundo secretário, lembro-me de que foi o primeiro posto que tive numa direção. Depois fui tesoureiro. Depois fui presidente uns 6 ou 7 anos. Fui 20 anos presidente da Assembleia Geral e 30 anos ligado ao grupo de teatro, onde iniciei essa atividade como ponto, passando depois para o palco, fazendo variadíssimas peças, uma das quais nos deixou uma recordação muito boa, que foi A Promessa. Porque fomos a um concurso num Orfeão em Leiria e tirámos uma menção honrosa. Foi uma coisa maravilhosa para nós, na altura deu-nos bastante gozo. Trabalhávamos muito de facto nas coletividades. Havia nessa altura uma maior ligação a nível associativo, apesar de tudo, porque não havia tantos atrativos, tantas coisas que despertassem as pessoas para outras atividades. Havia uma maior ligação entre as associações, apesar de haver bairrismos muito doentios. Porque as questões entre coletividades, pelo menos na Marinha Grande, que é um meio associativo muito grande, como sabe, tem dezenas de coletividades… Mas, apesar de tudo, havia realizações em conjunto que eram muito interessantes, nomeadamente torneios de pingue-pongue, torneios de bilhar, torneios de sueca. E depois havia uma coletividade que, enfim, depois enveredou por um certo elitismo, mas fez um trabalho muito importante. Começou a criar também torneios a nível nacional, nomeadamente no que diz respeito ao ténis de mesa, trazendo equipes, não digo como um Benfica ou o Sporting, para esses torneios. E começaram a haver algumas realizações entre as coletividades, quando havia sempre uma festa final, onde, por exemplo, elegíamos sempre a Rainha das coletividades, ou uma madrinha das coletividades. Mas a partir daí também começou a criar-se uma certa da consciência política, porque também tínhamos um homem nesse movimento, muito importante do ponto de vista político, que era o Doutor José Henriques Vareda. Certamente que já ouviram falar dele, que é um dos grandes fundadores do Sport Operário Marinhense. E então começou a haver encontros, enfim políticos, com inconformismo relativamente às misérias que se viviam, porque de facto vivia-se miseravelmente. Eu lembro-me, isto um à parte, mas lembro-me de ter os primeiros sapatos aos 13 anos, e mesmo assim meu pai comprou-me os sapatos com 3 ou 4 números a mais, levaram quase um jornal cada um à frente para as biqueiras, os bicos dos sapatos não irem para cima. E depois umas botas cardadas, umas botas que levavam aquelas cardas todas quando pisávamos mais plano ou cimentado, escorregávamos. Portanto era uma miséria muito grande. Lembro-me da minha mãe, quando comíamos bife de vaca com o ovo estrelado, lembro-me da minha mãe não comer, o bife não chegar para ela. Comíamos eu, as minhas irmãs e o meu pai e eu, pelo menos, lembro-me de encarar isso com certa naturalidade. As pessoas eram conformistas, uma grande parte, fora aqueles que se foram revoltando. Mas isto para dizer também que a consciência política de muitos marinhenses nasceu nas coletividades, foi a partir das coletividades. E que muitos tiveram interesse de se ir informando, de ir conhecendo coisas, e ter constantemente o pensamento na coletividade para realizar coisas. Eu posso dizer que enquanto fui presidente da coletividade, da SBR Primeiro de Janeiro, da Ordem da Marinha Grande, lembro-me de fazer coisas que me deixam hoje recordações. É claro que eu dei parte da minha vida àquela coletividade. Eu devo dizer-lhe, isto num à parte que talvez não tenha interesse, que estive quase à beira do divórcio, porque eu passava mais tempo na coletividade. Naquela altura fazia-se as festas de arraial e havia uma fonte de rendimento importante, que era a quermesse. Nós íamos pedir prémios e depois vendíamos rifas. Mas aquela quermesse tinha de ser muito bem organizada, pôr números em mil prémios e depois vender rifas, aquilo tudo… E então especializei-me na organização de quermesses, fui 29 anos seguidos diretor da quermesse. Um ano, a minha mulher perguntou-me: “Sempre quero ver qual é o ano em que vou contigo à festa?” Porque eu organizava a quermesse e depois tinha de estar lá no dia das festas, como é natural. Bom, isto, a nível da importância que o associativismo teve na minha vida, foi de uma importância, passo a repetição, elevada, muito elevada. Ganhei consciência de que tinha de participar na construção de uma sociedade diferente e de alguma maneira ativa, através da minha atividade política. Desde 1974, e até antes, tive atividade política. Aos 15 anos, quando trabalhava na Aníbal Abrantes, já tinha uma missão política. Mas para dizer que, de facto, o associativismo teve uma importância fundamental na formação de muitos homens e também na melhoria da própria sociedade, especialmente a nível desse problema das tabernas, que era uma coisa terrível. P: E o que é que o trouxe para associativismo, o seu pai já era? Francisco Duarte: Não, o meu pai nunca foi dirigente de nenhuma associação. O meu pai foi apenas músico de uma banda filarmónica de uma fábrica que existiu. Eu fui influenciado por esse tal senhor que morava lá na Ordem. Porque eu nasci e fui criado até aos 20 anos num lugar chamado Cruzes e depois comecei a namorar uma rapariga da Ordem e, aos 22 anos, casei-me. Quando eu ia ao barbeiro, o senhor Ilídio Guerra estava sempre presente ali na barbearia, que se chamava barbearia do Arnaldo Martins. E ele discutia muito estes problemas das coletividades e nessa altura já tinha uma casinha pequena, que até era uma casa de habitação, onde começou a Sociedade de Beneficência Primeiro de Janeiro. Eu penso que isto por altura da Guerra Civil de Espanha – 1936, 37. Mas depois veio a ser a coletividade fundada e inaugurada em 1939. Portanto, a data legal do início da Coletividade SBR Primeiro de Janeiro foi em 1939. E esse senhor, até tem hoje o nome de uma rua da Ordem, é que me influenciou de certo modo. Porque ele tinha algumas conversas já acima do normal. Eu apreendia muito as palavras dele e talvez de uma maneira involuntária ou inconsciente foi-me modificando muita coisa, foi ficando muita coisa do ponto de vista cerebral, passo o inconveniente da palavra, se calhar. Depois convidaram-me, ia lá aos bailaricos com a minha namorada e tal e em 1961 fizeram-me o convite para eu ser pertencer aos corpos gerentes da coletividade. E a partir daí comecei, nunca mais de lá saí, praticamente, até 1996, quando eu já era presidente da Junta de Freguesia. E numa altura em que a coletividade teve fechada três meses, numa atitude de salvação da própria coletividade, porque aquilo já estavam a pensar ir entregar as chaves à Câmara, eu ainda fui tomar conta daquilo mais uma vez. Na altura não me deu jeito nenhum, que era presidente da Junta e o trabalho chegava bem. Mas fui presidente várias vezes, fui tesoureiro, fui secretário e não me conformava nunca que a coletividade não tivesse uma atividade qualquer. Ou fazia bailes da Primavera ou fazia bailes de aniversário, de eleição da madrinha da coletividade, bailes das chitas, depois fiz, fez a minha direção, mas devo confessar, não estou a envaidecer-me, mas eram coisas da minha autoria. Fiz um MusicOrdem, que era um espetáculo de 15 em 15 dias, onde entrevistávamos sempre uma figura com importância no governo da Marinha Grande. Foi desde o chefe da polícia até ao diretor da Segurança Social, pessoas ligadas ao teatro, como o Norberto Barroca. Fazíamos entrevistas de poesia. Havia sempre um sketch de teatro da minha autoria, com artistas que eu escolhia do próprio grupo. Havia um sketch, depois havia concursos, concursos de assobios, concursos de anedotas. Era uma coisa interessantíssima. A coletividade da Ordem tem um salão muito grande e tem outro salão idêntico ao lado, são dois salões paralelos. Fazíamos no salão pequeno. E então aquilo de 15 em 15 dias era uma alegria fantástica, pessoas a tentarem cantar, havia um concurso de canto também, interessantíssimo. Depois fizemos também um concurso de fados, que tinha pernas para hoje, se não o tivessem morto... Aqueles bairrismos doentios de que eu falava há pouco, muitas vezes também funcionavam pela negativa. Há pessoas que não podem com o êxito os outros, e os concursos de fado morreram exatamente por os diretores seguintes a mim, nessa época, não estarem muito de acordo com a maneira como funcionavam, porque aquilo era um concurso de fado, tinha eliminatórias ao fim de semana e teve dezenas de concorrentes distritais. E eu penso hoje que aquela realização tinha condições para hoje ser um concurso a nível nacional, porque de facto veio gente de muito lado, até nós ficámos surpresos. Houve várias semanas em que fazíamos um espetáculo e os concorrentes cantavam e faziam um espetáculo com um júri que escolhia em cada sessão um concorrente para apurar para a final. A final desse espetáculo, desse concurso, foi uma coisa inolvidável naquele salão. É um salão muito grande, tem 100m por 18m de largo. Tinha 90 mesas completamente esgotadas e com gente de pé, com um palco magnificamente ornamentado. Os fadistas de muito nível já, com muita categoria, uma delas que ganhou o prémio, nessa altura já havia prémios, fizemos um prémio pecuniário, mas porque se pensou também que só seria possível algum êxito se houvesse os prémios pecuniários, porque se não houvesse também era difícil. E eu lembro-me que nessa altura o primeiro prémio foi 100 contos, que era uma quantia significativa para aquela altura. Estou a falar de oitenta e poucos. P: Vamos recuar um bocadinho. Antes do 25 de Abril, no período do fascismo, como é que era a vida das coletividades? Quais eram os constrangimentos? Francisco Duarte: No teatro, por exemplo, eu cheguei a fazer teatro com dois PIDES na primeira fila, quando fizemos O perdão dos filhos, uma peça chamada perdão dos filhos e aquilo foi à censura e eles puseram lá o lápis azul nalgumas passagens da peça. Nomeadamente a nível cultural, e na área do teatro, tínhamos de ter um cuidado muito grande e de facto aí havia restrições de um grau elevado, que certas peças não podíamos... Mesmo a própria Promessa também teve que ir à censura. E tivemos algumas, porque era o Bernardo Santareno, um escritor, enfim, todos sabemos como é. Lembro-me dessas restrições, nomeadamente a esse respeito. Também tínhamos na Presidência da Câmara sempre alguém que estava ligado aos problemas políticos e que os comunicava. E então, de vez em quando, experimentavam-nos, pelo menos ao nível da coletividade que eu mais frequentei, e as outras eram idênticas. Aliás, o Sport Operário Marinhense foi das coletividades mais perseguidas antes do 25 de Abril. Tinha visitas da PIDE, baldeavam-lhe a biblioteca toda, porque aquela biblioteca tinha a fama de educar os trabalhadores e de dar uma perspetiva política diferente. E então, também ainda nas bibliotecas, porque nós tínhamos muito interesse também em organizar a biblioteca e muitas vezes fazíamos convites aos próprios associados para sessões de leitura e havia essas sessões de leitura que eram, de facto, vigiadas. O próprio presidente da Câmara tinha alguém no lugar que se inscrevia até para essas sessões. Nós viemos a saber isto tudo depois, passado algum tempo, porque as pessoas também, especialmente depois de 25 de Abril, viemos a saber quem eram. Algumas, nem todas. E então nós tínhamos constrangimentos quase em tudo, à exceção dos bailes, que me parece que deixavam passar assim mais ao lado. Mas eu falava há pouco no movimento associativo e quando falei na figura do Doutor José Vareda, que começou também a organizar, a politizar muitos dirigentes das coletividades, com encontros na mata, fazíamos festas apropriadas na mata, trazíamos sempre um cantor da revolução, os cantores de intervenção, essencialmente isso, mas os cantores de vanguarda, também se dizia na altura. E começou a haver uma adesão muito grande também de homens que não tinham nada a ver com o associativismo e depois se foram incorporando. E começou a haver uma consciência política diferente e também, devo dizer que neste percurso todo, muitas tabernas foram perdendo a sua força. Porque havia tabernas por todos os cantos e estavam sempre cheias. O movimento associativo contribui muito também para que esse flagelo, entre aspas, perdesse um bocadinho de força. De maneira que, enfim, penso que o associativismo ajudou muito a ter consciência daquilo que andava a fazer por cá ao de cimo da Terra. E foi também o associativismo que me levou para as autarquias. Como deve saber, fui presidente da Junta durante quatro mandatos, 20 anos, e fui membro do executivo mais quatro. Fui vereador da Câmara Municipal também durante 6 anos, 2 mandatos, quando os mandatos eram de 3 anos ainda. E fui membro da Assembleia Municipal. Portanto, tenho a vida nesse aspeto bem preenchida e com realizações no associativismo. Hoje, tenho a minha opinião sobre o associativismo. Sou da opinião de que a maioria das coletividades perderam o comboio da evolução da sociedade. Faltou gente pensante, não quer dizer que alterar esta situação seja algo de muito fácil porque, como todos nós sabemos, o povo português, uma grande parte do povo português ainda está numa bitola de cultura um bocado abaixo da média, um bocadinho. Porque a gente via bem, especialmente quando íamos a algumas povoações com o teatro, víamos bem o atraso cultural de muita gente, o que começou a dificultar também a vida das próprias coletividades. Porque não havia muita gente disponível para ir e começaram também muitos a ter medo, os que frequentavam a Igreja, por exemplo, começaram a ter medo das coletividades e a não frequentar tanto. Havia assim estas contradições. Não sei especificar muito bem isto, este pensamento devia ser mais bem ordenado. Mas, apesar de tudo, hoje penso que há um conformismo muito grande dos próprios dirigentes das coletividades. E tenho de dizer abertamente, gente eleita também para as coletividades com muito poucas competências culturais. Isso, se de facto o poder local, eu na altura em que fui vereador, fui vereador da Cultura, e a primeira, uma das primeiras iniciativas que tive foi a Câmara contratar um animador cultural para trabalhar fora de horas. Qual seria o funcionamento dele nas próprias coletividades? Cada dia da semana ia a uma coletividade para tentar organizar grupos de teatro, grupos corais, porque a pessoa que foi contratada tinha estas valências todas e estava disponível para ter um horário diferente do normal. Isto para dizer o quê? Se o poder local, de facto, não tomar algumas medidas no sentido de ter técnicos que possam dar uma ajuda às próprias coletividades, não é ajuda material, essa ajuda cultural, vamos chamar-lhe assim… Tirando uma ou duas coletividades, mas eu apenas classifico o Sport Operário Marinhense, que apesar de ser no outro tempo uma coletividade que mais fez pela cultura e que mais fez para desenvolvimento político das próprias pessoas e que mais fez pelo movimento associativo, depois teve uma mudança muito grande. Hoje, eu considero que é uma coletividade um pouco elitista. Tem muitas atividades, claro, mas nem todos têm acesso a elas porque têm de ser muito bem pagas. O Operário tem hoje alguns associados (outros já morreram, conheci-os todos) que no tempo antes do 25 de Abril nem à rua onde ficava situada a sede do Operário iam. Após o 25 de Abril, eram sócios do Sport Operário Marinhense. Portanto, há aqui uma contradição. Há aqui uma mudança de atitude própria das pessoas e também uma mudança de carisma da própria coletividade. Começou a ser uma coletividade onde uma grande parte dos empresários e dos novos empresários começaram a ter placas douradas nos placares. Mas, retomando, o discurso anterior, eu penso que nas coletividades de hoje os seus responsáveis são conformistas. Eu, se estivesse hoje numa coletividade, mesmo na minha coletividade, eu tinha de inventar coisas para conseguir que a minha coletividade… Nem que copiasse pela televisão, copiasse programas de televisão para a coletividade ter vida. Agora, ter magníficas instalações, com áreas enormes, meses e meses sem nenhuma atividade, dói-me, a mim dói-me e eu não me conformava. Eu voltava às coisas antigas, não tinha problema nenhum. Eu não tinha problema nenhum hoje em pôr em realização um grande baile de vestidos de papel, de trajes estapafúrdios, digamos assim. Depois, com um concurso onde estivesse um artista final, um cantor ou um declamador, fosse o que fosse. E eu hoje realizava novamente um rally paper. Fomos dos primeiros a realizar um rally paper. Claro que hoje é complicado, porque a gasolina está muito cara, fazia-se de bicicleta. Também se pode fazer de bicicleta, a um domingo, faz-se um rally paper ciclista. Portanto, isto para dizer o quê? Apesar de reconhecer que é bastante complicado e difícil as coletividades apanharem o comboio, têm que trabalhar muito. E hoje não há aquela dedicação que havia também naquela altura. Porque naquela altura, como eu lhe disse, nós limpávamos a coletividade e abríamos e estávamos de serviço ao bar, uma equipa por semana, dois dirigentes faziam a semana inteira. Hoje isso é difícil. Eu vejo, por exemplo, na coletividade do meu lugar, já chegou a ter três empregadas, agora tem duas. Eu tenho dúvidas que se ganhe para empregadas, é um bocado complicado. Portanto, esta dedicação às próprias coletividades, que a própria evolução da sociedade também trouxe. Porque hoje podemos estar num sofá requintado, numa sala quente a ver televisão, e a televisão tem programas para todos os gostos. Temos os computadores e, enfim, centenas de milhares de pessoas que passam serões aos computadores. Há, de facto, muitas atrações e não é fácil levar as pessoas para as coletividades. Agora, realizando alguma coisa de diferente e depois é urgente que alguém tenha a capacidade e a força de unir mais as coletividades, porque as coletividades em conjunto têm muita força. Nem que tenham uma realização por ano de uma grandeza palpável, nem que sejam os tais concertos ou uma danceteria modernizada, bem equipada, para levar lá as pessoas. Pode ser só num sítio, mas explorado por todas. Porque não estou a ver todas as coletividades, por exemplo, a adaptarem as suas instalações a uma pequena danceteria, equipada convenientemente com os psicadélicos e tudo isso, mas é possível pelo menos fazer uma que funcione por todos, com o conjunto de todos. Mas, aliás, quase todas as coletividades teriam condições para fazer um pequeno espaço, porque hoje as danceterias levam muita gente. P: Mas não acha que, e voltando um bocadinho ao que tem estado a sublinhar ao longo da sua história, da ligação que havia entre a participação das coletividades e a intervenção política, que essa dimensão, essa ligação também faz parte da identidade das coletividades e que também é muito essa dedicação dos dirigentes também é muito por vocação política, ou seja, também é uma motivação política? Francisco Duarte: Sem dúvida. Agora nem tanto, mas houve uma época em que os partidos políticos disputavam acerrimamente as direções das coletividades. Havia e continua a haver ligações das coletividades à política, sem dúvida nenhuma, e à atividade política. Agora, vamos lá ver, as coletividades hoje são frequentadas por muito poucas pessoas, por pouca gente. E nalguns casos, gente já de uma certa idade também, com um nível cultural muito abaixo do que era desejável. E que o interesse deles é estarem ali a beber uns copos e a coletividade passa muito tempo despercebida, completamente despercebida. Posso estar completamente enganado, mas eu penso que para levantar tem de haver alguém, como eu dizia, com a força capaz de organizar, de coletividades terem a mesma vontade no sentido de algumas organizações, organizações com o vulto, que marquem e que possam durar vários anos, desejadas pelo próprio público. P: Mas diga-nos lá, das suas realizações, daquilo que realizou, há bocado estava a dizer que tem realizações que o marcaram. Quais é que foram aquelas que foram mais marcantes? Francisco Duarte: E eu devo dizer-lhe que a mais marcante foi esse concurso de fado e foram os vários bailes que nós fazíamos alusivos a qualquer coisa. Fazíamos o Baile da Primavera, por exemplo, e o salão era decorado, tanto o chão como as paredes, com flores da mata. Com mulheres que, voluntárias, que depois também conseguiu-se criar-se um grupo de mulheres que trabalharam imenso. Ainda hoje trabalham em muitas coletividades. Na minha, digamos assim, também acontece ainda isso. P: Quando é que elas começaram a participar mais? Francisco Duarte: A partir da década de 80, no caso da minha coletividade. Nas outras, na grande maioria, foi um bocadinho mais tarde. Mas aquela coletividade que também tinha umas instalações mais amplas, digamos assim, e onde se podiam realizar mais coisas e havia mais gente também, porque é o lugar do concelho com mais gente. Tem 7000 habitantes, 7000 habitantes é muita coisa. P: Como é que elas entraram? O que é que elas vieram fazer? Quais foram as atividades que começaram a desenvolver? Francisco Duarte: Começaram primeiro nos lavores, nas costuras e nessas coisas. Depois compraram, no caso da coletividade da Honra, compraram uma televisão só para a sala delas. Depois começaram também, quando fazíamos os MusicOrdens, por exemplo, eram elas que faziam a cozinha toda e nas festas faziam a cozinha toda. Depois faziam alguns sorteios para passeios delas. Tinha uma atividade ali que ajudava muita a coletividade. Ajudavam muito o grupo de teatro, era de lá que vinham as costureiras, era de lá que vinham as ajudantes das costureiras, tudo isso. Não tiveram assim realizações de grande vulto, tinham aquela presença delas, que era importante. Eu acho que iam à coletividade quase todos os dias, juntavam-se ali nas suas conversas, enfim, algumas a costurar e outras não. P: Faziam parte dos órgãos dirigentes? Francisco Duarte: Muitas fizeram, mas isso já a partir da década de 90. Houve quase sempre mulheres na direção. Ainda hoje há, mas numa percentagem – salvo raras exceções –diminuta. Só houve aqui há uns dez anos, talvez, que era uma direção só praticamente de mulheres. Mulheres não, de raparigas, digamos assim, raparigas muito jovens, ainda muito jovens. É a direção de que eu me lembro que teve mais mulheres, creio que foi essa, creio que na década de 80, já não posso precisar, ou de 90. P: Fale-me também um bocadinho da sua participação sindical. Disse-me que ainda antes do 25 de Abril foi para o sindicato, ainda o sindicato corporativo, o sindicato nacional. Como é que entrou? Francisco Duarte: Entrei em 1971, mas aí era delegado sindical. Então íamos às empresas ver o que é que se passava. Na maioria dos casos éramos escorraçados, especialmente quando íamos ali ao Bombarral tentar ver quem eram os aprendizes que trabalhavam nas oficinas sem terem idade. Os próprios operários chegaram a escorraçar-nos, como nos fizerem em Pombal uma vez, por exemplo. Era mais nessa área que trabalhávamos, a de levarmos os problemas à própria direção do sindicato, com reivindicações já salariais, com reivindicações de férias. Porque eu comecei a trabalhar, para ter direito a férias tinha que trabalhar, já não me lembro, mas era uma série de anos para ter 8 dias de férias. Pronto eram essas reivindicações todas, foi-se massacrando, massacrando... Era o sindicato metalúrgico. P: E a direção do Sindicato Metalúrgico, ainda era uma direção próxima do regime? Francisco Duarte: Na altura era muito próxima do regime, o presidente era agente da PIDE, agente oficial mesmo… P: E foi assim até ao 25 de Abril? Francisco Duarte: E foi assim até ao 25 de Abril. E portanto, como delegado sindical, foi essa atividade que tínhamos nas empresas. E depois fui presidente da Assembleia Geral, mas nessa altura, o presidente da Assembleia Geral trabalhava com a direção do próprio sindicato. P: Ainda antes do 25 de Abril ou já depois? Francisco Duarte: Depois do 25 de Abril, já depois do 25 de Abril é que eu fui presidente da Assembleia Geral. Mas na altura o presidente da Assembleia Geral trabalhava também com a direção, ia às reuniões e depois, enfim, tinha um dia por semana que era para ir ao sindicato. E aí também desenvolvia atividade sindical nessas reivindicações, marcando algumas manifestações, também visitando novamente as empresas após o 25 de Abril, ainda com muitas dificuldades de conseguirmos entrar nas empresas, especialmente ali na zona das Meirinhas, Pombal e Bombarral. É onde me lembro de termos maiores dificuldades de lidarmos com os problemas. Depois também houve um período em que os metalúrgicos marinhenses tentaram que a direção e as instalações do sindicato que fizeram na Vieira de Leiria viessem para a Marinha Grande. Foi uma Assembleia Geral a que até as peixeiras todas foram, porque não queriam de maneira nenhuma o sindicato fora da freguesia da Vieira. Eu também nunca defendi isso e ganharam, eles ganharam e o sindicato continua lá. De maneira que foi uma atividade sindical muito contrariada, muitas vezes, pelo patronato. Fui de facto sempre muito prejudicado, especialmente a nível salarial, ganhava sempre menos do que os outros. E tive uma vez um patrão que me fez uma proposta de eu abandonar a vida política e sindical, que poderia ser chefe da fábrica. Tivemos uma discussão que ainda hoje está na mente dos dois, certamente. Portanto, ser dirigente sindical, mesmo após 25 de Abril, não era tarefa fácil. Nem eram todos que queriam. Porque éramos discriminados, altamente discriminados, e ganhávamos menos do que os outros. Quando éramos aumentados, era menos do que os outros e tínhamos anos que nem aumentos tínhamos, porque éramos dirigentes sindicais. Eu fui 6 anos, não fui muito tempo, mas foi suficiente para ficar marcado para sempre. Mas, enfim, quem corre por gosto não cansa e sujeita-se a tudo. P: Como é que foi o 25 de Abril aqui na Marinha Grande? Francisco Duarte: O 25 de Abril foi um acontecimento inesquecível para toda a gente. Foi de uma alegria transbordante. Eu estava na fábrica, já eram 7 horas e 15 minutos quando soubemos. É evidente que a fábrica parou imediatamente, viemos todos para a rua, nem sabíamos bem o que é que tinha acontecido, uma coisa brilhante. Depois, no 1.º de Maio seguinte então, na Praça Stephens, foi uma coisa inesquecível, eu nunca vi na minha vida tanta gente junta. Eu sei lá, aquilo era gente a perder de vista. Era nas ruas todas que davam para a praça e na praça, no 1.º de Maio ainda mais que no 25 de Abril. Mas foi de facto um acontecimento que nos marcou a todos da maneira indelével. Ainda hoje, quando falamos disso, sentimos a emoção do que foi. Porque eu ainda vivi 37 anos no salazarismo. É, enfim, as dificuldades por que passámos, aquela esperança que nasceu com o 25 de Abril, aquela perspetiva de uma sociedade mais justa… No meu ponto de vista, infelizmente, não tão justa como gostaria. Mas, enfim, cá estamos. P: Como é que isso se viveu nas coletividades, mesmo aqueles meses do PREC? Como é que isso foi dentro das coletividades? Francisco Duarte: Não se sentiu muito nas coletividades. Não me recordo bem, mas passou um bocado ao lado das coletividades. Não houve assim grandes movimentações, a não ser algumas reuniões em que pediram as instalações para o efeito, de grupos políticos. P: Mas não se abriram oportunidades para novos tipos de realizações? Não se participou naquelas organizações populares para o saneamento básico? As coletividades não estiveram envolvidas nesse processo? P: Tiveram, de certo modo. As coletividades estiveram envolvidas em quase todo o processo político que se desenvolveu, porque as coletidades foram sempre espaços onde qualquer coisa que se organizava tinha de funcionar. Agora, em muitos casos, as próprias direções das coletividades alheavam-se um bocado dos problemas. Eram mais movimentos de associados e não associados, que se reuniam naquelas instalações para algumas realizações. Mas numa grande parte dos casos, as coletividades estavam um bocadinho ao lado. Agora, as próprias coletividades depois tiveram a sua atividade após o 25 de Abril, que já era de facto uma atividade mais, com uma perspetiva de sociedade diferente. O movimento teatral foi de uma importância muito grande depois do 25 de Abril. Fizeram-se imensos espetáculos com uma perspetiva política muito diferente. P: Como por exemplo? Francisco Duarte: As peças de teatro que escolhíamos eram sempre de autores que tinham um cariz político muito. No início de qualquer espetáculo de teatro, íamos apresentar a razão pela qual aquela peça ia ser apresentada, o seu cariz e, enfim, o que podia influenciar na vida das pessoas. Porque as pessoas também não tinham muita capacidade de absorver o conteúdo da própria peça. E havia então esse procedimento: alguém apresentava a peça antes de se iniciar os espetáculos e havia alguns ensaiadores, eu conheci alguns, que quase contavam a peça toda, e era bom para alguns porque, tem de se reconhecer que muita gente que ia ver peças de teatro que saía de lá quase na mesma. Não percebiam muito bem a mensagem. Nesse aspeto foi muito importante. Depois nós não tínhamos também a possibilidade, do ponto de vista político, de recrutar muita gente, porque as pessoas também não aderiam muito, queriam espetáculos populares. Qualquer espetáculo que nós realizámos na coletividade, não há comparação com os espetáculos de revista à portuguesa que nós fizemos. Nós fizemos quatro revistas à portuguesa, revista popular portuguesa, e, aí sim, do ponto de vista político isso era saliente. O conteúdo dos próprios sketches era marcante. Nós fazíamos uma peça de teatro e marcávamos logo dois espetáculos, numa casa que levava entre 450 e 500 espetadores. Mas quando era uma revista à portuguesa tínhamos de marcar quatro, porque tínhamos a garantia de quatro espetáculos certos de casa cheia. Portanto, as pessoas, também do ponto de vista político, viveram aquela euforia, aquilo tudo, mas não foi muita gente a aderir a movimentos e realizações. Isso ficou ainda com as pessoas politizadas que já vinham de trás e foram depois ganhando ou conseguindo ganhar alguns para alguma realização. P: A Marinha Grande é uma zona com uma grande percentagem da população a trabalhar na indústria, ou seja, com uma tradição do movimento operário muito forte. É quase mítica a história do 18 de janeiro. De que forma é que isso marca as características do movimento associativo? Francisco Duarte: Marca porque os inconformados do ponto de vista político frequentavam todas as coletividades e expressavam a sua vontade de mudar, de as coisas melhorarem. E o povo da Marinha Grande é um povo lutador, não é por acaso que temos dos melhores níveis de vida do distrito, segundo a última averiguação. Mas, estava eu a dizer, esse espírito de luta e de melhorar a vida nunca desapareceu dos habitantes da Marinha Grande e depois aconteceu um fenómeno importantíssimo. Dois terços da população da Marinha Grande já não são marinhenses. E esses dois terços vieram para cá como os portugueses iam, por exemplo, para a Alemanha, para ganharem dinheiro. Especialmente do Alentejo, muitos alentejanos, muitos ali na zona da Figueira da Foz, e desses lados. Muitos do Tramagal, que vieram para a indústria dos moldes, muita gente de Maceira do Liz, aqui perto, mas enfim, ainda hoje há muitos empresários da indústria dos moldes que são maceirenses. Esse espírito de luta nunca desapareceu da Marinha Grande e ainda hoje se luta. P: Estava a falar dessas correntes migratórias, qual foi o papel que as coletividades tiveram na integração dessas pessoas que chegavam fora? Francisco Duarte: Era uma integração natural, porque era um dos pontos que eles procuravam também para conhecer gente e para terem outro conhecimento do sítio em que viviam. O lugar em que eu vivo, por exemplo, é dos que tem mais forasteiros, há muita gente que não tem nada a ver com a Ordem. Das famílias tradicionais do lugar da Ordem praticamente já não existe quase ninguém. E, então, onde é que era o melhor paradeiro deles? Era a coletividade. Frequentavam a coletividade e aquilo para eles também era novidade, na terra deles não tinham e não tinham tido a possibilidade também de ganharem dinheiro. Eu lembro-me de umas famílias de Lamego que vieram lá para a Ordem e eles diziam: “Oh, senhor Duarte, nós estamos a viver num paraíso” – e eu lembro-me que eles tinham um ordenado miserável na altura, um ordenado muito abaixo da média. Vieram para ajudantes, quando as fábricas ainda trabalhavam a lenha, preparavam a lenha para meter nos gasómetros e tinham um ordenado baixíssimo. Ainda não havia o salário mínimo nacional. Eles diziam-me que a Marinha Grande era a melhor terra do mundo. Eles viam as chaminés e vinham por aí fora e de facto temos uma grande parte das famílias que estão na Marinha Grande – hoje, claro que já têm agora muitos marinhenses, filhos e netos, já marinhenses – são oriundas de muitos lugares do país. P: Parece que há um período de clímax do movimento associativo. Como é que essa memória é passada dos dirigentes mais velhos para os mais novos? Vamos voltar mais atrás, para quando entrou. Como é que os dirigentes mais velhos lhe contavam que era que era o associativismo e como é que deveria de ser o associativismo? Francisco Duarte: A maioria deles não contava nada. Eu, quando entrei numa direção, comecei a ver como é que eles funcionavam. Porque não havia muitos dirigentes associativos com uma perceção da importância que podia ter o movimento associativo na mudança da sociedade. Não se falava, não havia muitos que falassem nesses termos e nessa condição. Havia o tal senhor que eu lhe relatei, o senhor Ilídio Guerra e mais uma meia dúzia, mas esses desapareceram, foram desaparecendo. Depois era mais um espírito de missão de manter a coletividade. Aliás, muitos dirigentes até tinham muito receio da política. Quando se dispensava a coletividade para uma sessão política, mesmo após 25 de Abril, muitos ainda tinham muitas dúvidas em relação àquilo, se devíamos dispensar ou não a coletividade. Do ponto de vista pessoal, eu fui apreendendo o que é que era o movimento associativo, onde é que se podia chegar e o que é que se podia fazer. E como é que eu, da minha parte, transmiti aos mais novos, que eu tive gente muito nova também nas minhas direções? Fui dando essa perspetiva. Mas muitos não assimilaram. Não quiseram saber, tirando raras exceções. Muitos não quiseram saber disso para nada. Portanto, o associativismo é passado naturalmente se as pessoas estiverem disponíveis mentalmente para isso. Porque nós não conseguimos convencer ninguém: “Tu vens para o movimento associativo porque o movimento associativo pode contribuir muito para alterar a própria sociedade.” Não se fala muito nesses termos, fala-se mais do progresso da própria coletividade. Independentemente de, atualmente, eu no meu ponto de vista as coletividades fazerem muito pouca coisa. Eu também sou um bocado contra as coletividades que estão a tornar-se instituições de solidariedade social. Primeiro, não têm condições para isso, não têm a tendência, e depois perdem aquele significado de uma coletividade de cultura, desporto e recreio. Não quer dizer que as coletividades que estão a enveredar nesse sentido que estejam a fazer um mau trabalho à sociedade. Mas deixam de ter aquele carisma de coletividade que havia e que caminhava mais para a mudança da própria sociedade. Acham que estão a desenvolver um bom papel, que estão a prestar um bom serviço à sociedade, nalguns casos nem é de tanta qualidade como isso, deixa muito a desejar. Mas ficaram por ali. E também por isso muita atividade das próprias coletividades vai decaindo. Isto independentemente de eu continuar a considerar que o movimento associativo atravessa um momento difícil. E é preciso cabeças pensantes para alterar este tipo de situação, mas tem que ser em conjunto, eu não vejo do outro modo. Não podemos individualizar e fazer coisinhas a nível de escola. Independentemente das próprias coletividades terem a sua atividade, é importante começar a haver realizações em conjunto, de grandeza, que deem que falar. E se as coletividades em conjunto conseguirem três ou quatro realizações anuais com essa grandeza, o movimento associativo passa a ter mais aderentes, passa a ter mais gente interessada. E pode não vir interessada, pode não vir com o pensamento no avanço do associativismo em todas as vertentes, mas vai-o ganhando. O associativismo é, para mim, de uma importância fundamental. Não é por acaso que o país teve mais de 20 mil coletividades e mais de 200 mil dirigentes associativos. Por isso, o associativismo é de uma importância fundamental. Agora eu diria, num derradeiro apelo: temos de salvar o associativismo e temos de ser suficientemente inteligentes para o salvar, porque se o associativismo vai cada vez tendo menos esforço. Eu acho que nesta coletividade, por exemplo, está-se a fazer um trabalho razoável. Mas ainda não é o que devia. Porque deviam ser desenvolvidas mais atividades que fossem da própria coletividade. Porque alugar espaços para Costura e Bordados e trazer umas companhias de teatro que, por sua própria conta, vão fazendo alguns espetáculos… O que eu gostava de ver aqui era um grupo de teatro da Cumeeira, um grupo de teatro com força, que se impusesse com peças, com coisas boas. O que falta aqui é um cérebro na própria direção, que avance com essas coisas, porque eu digo-lhe com toda franqueza e sem nenhuma atitude de sobranceria: na coletividade da Ordem houve homens que souberam fazer as coisas, mas foram desaparecendo. Mas não houve ninguém que aprendesse aquilo… Eu escrevi, fui autor e encenador de uma revista à portuguesa, de um Bate Bate, Coração, o grupo tinha 30 pessoas. Se eu não morri naquele período, não morro mais, porque era um trabalho extenuante. Porque também não tinha gente preparada para me ajudar, porque se tivesse... Eu tinha era muita gente no grupo que fazia teatro, porque fazer teatro era bonito e as pessoas batiam palmas e ficavam todos inchados. Mas tinha uma grande parte dos atores amadores que todos os dias de ensaio me faziam a mesma pergunta: “Como é que eu vou daqui para ali? Como é que ponho o braço para cima quando estiver a fazer o discurso de Presidente da Câmara?” Então, para quem tem a responsabilidade de ensaiar uma revista, de ver as marcações, de ver isso tudo… Era um grupo de 30 pessoas, todos os dias a fazer as mesmas perguntas, e eu não tinha ninguém em quem delegar alguma responsabilidade. Portanto, estas coisas são difíceis. É aqui que eu penso que as câmaras deviam ser ganhas para nos poderem fornecer alguém do ponto de vista intelectual, do ponto de vista cultural, que nos desse uma ajuda quando estes espetáculos aparecem. Agora eu quero dizer o seguinte, não aparece muita gente nas coletividades para fazer isso. E, aliás, esta coletividade tem esta vida toda e tem este esplendor, que para mim tem de facto aqui umas instalações magníficas, graças ao sacrifício de um homem que está aí há tem não sei quantos anos. Quando ele for embora, como é que isto vai ser? Como é que as coisas vão ser? Pronto já se enveredou por outras coisas, alugar os espaços e fazer uns pequenos-almoços, fornecer uns pequenos-almoços. Ter praticamente uma taberna a funcionar também, que há umas sociedades em que as pessoas se juntam para beber do seu copo, mas às vezes são grupos de 15, cada um paga a sua rodada, portanto, fazendo as contas, cada um bebe 15 copos de vinho. São gente que não tem condições para pensar o que quer que seja a não ser ir à coletividade beber um copo. É uma situação muito difícil. Nós temos de reconhecer, independentemente de sermos o mais positivos possível em relação ao associativismo, temos de reconhecer que o associativismo nestes últimos anos tem vivido anos muito difíceis, muito complicados e, no meu ponto de vista, por falta de capital humano. Temos de alterar o panorama. Isto tem de ser alterado, senão morre. Eu já um outro dia disse, se eu hoje fosse novo e se pudesse ter a possibilidade de vender esta coletividade, vendia. E fazia-a de outra maneira. E hoje ia adaptá-la à juventude e ia haver discotecas e ia haver tudo. Não tenho dúvidas nenhumas. Eu, hoje, se tivesse condições de fazer uma coletividade de novo, eu não fazia nada disto que está aqui, estes salões, estas coisas. Isto já passou, acabou. Os grandes bailes, em que era preciso um salão enorme, isso acabou. Portanto, há que adaptar as instalações, há que pensar o movimento associativo, mas pensar com o sentido que dá muito trabalho e custa muito e tem de se perder muita noite e tem que ser inteligente à força para alterar o panorama, porque senão... Aliás, a senhora vai entrar hoje em qualquer coletividade a esta hora, tirando o Sport Operário Marinhense, que tem um bar alugado, um bar de alto luxo alugado, em que o associado da coletividade vai lá, cá fora paga por uma cerveja 1 euro e lá paga 2. Mas é a única coletividade que certamente a senhora vai visitar a esta hora e tem lá muita gente e muitos jovens também, porque é o tal elitismo, se assim se pode chamar. Mas vai às outras coletividades e estão meia-dúzia de gatos sentados a ver a televisão, outros a jogar às cartas E pouco mais. E da parte das direções, conformismo total. Eu também antes dizia, quando era presidente da Junta: “As direções, só para manter espaços abertos, já merecem um subsídio.” Eu era da opinião que o poder local devia pagar, e já aconteceu, pelo menos a água e a luz às coletividades, porque de facto, abrir a coletividade e estar lá já é importante, mesmo que não vão 10, vão lá 5, umas vezes vão mais, outras vezes vão menos, mas é um espaço importante e tem muito a ver com a vida do próprio lugar. Porque ali fizeram-se grandes amizades, fizeram-se casamentos, fizeram-se batizados, aconteceu muita coisa nas coletividades, que diz respeito às pessoas do próprio lugar das coletividades. E as próprias coletividades ajudaram muito a desenvolver as famílias. É por isso que também existe ainda hoje aquele bairrismo antigo, que muitas vezes não deixa levar a que haja união para realizações mais ousadas. P: Muito bem.