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2 de junho de 2021
Luzia Lopes Mendes
P: Nasceu aqui na Covilhã? Em que ano? Luzia Lopes: Sim, 1944. P: E estudou aqui? Luzia Lopes: Fiz a quarta classe neste sindicato, havia escola para os filhos dos trabalhadores com mais dificuldades, de maneira que fiz até à quarta classe aqui no sindicato e depois era preciso trabalhar, não é? P: E foi trabalhar para onde? Luzia Lopes: Fui para o Colégio das freiras aprender costura, porque naquela altura só se podia ir para as fábricas depois dos 14 anos, de maneira que fui para o colégio das freiras aprender algumas coisinhas de costura, que me deram um jeito a mais tarde… E depois daqui para a fábrica depois dos 14 anos. P: E qual foi a fábrica para onde foi trabalhar? Luzia Lopes: Pronto, eu fiz a aprendizagem numa fábrica que estava só assim um bocadinho a aguentar-se, o meu primeiro contato foi numa empresa, depois fui para outra empresa. Quando aí, então aprendi a profissão que tinha e depois fui para a fábrica até me reformar, onde estive sempre. P: Qual era a sua profissão? Luzia Lopes: Urdideira mecânica. Há aquela máquina que enrola os fios para depois fazer a largura toda da peça que depois ia para o tear e o tear fazia.... P: E foi sempre esse seu ofício até à reforma? Luzia Lopes: Foi sempre esse até à reforma. Reformei-me por invalidez. P: E os seus pais também já eram da indústria? Luzia Lopes: O meu pai era tecelão e a minha mãe era cerzideira. Era metedeira de fios, que agora já se diz que é cerzideira, pronto, ainda bem. P: E eram ambos daqui da Covilhã, não é? Luzia Lopes: Sim, sim. P: E casou, teve filhos? Luzia Lopes: Tenho 2 filhos e tenho 4 netos. P: E o seu marido também trabalhava.... Luzia Lopes: O meu marido é alfaiate [ri-se]. P: E trabalhava em casa? Luzia Lopes: Em casa. P: E os seus filhos, qual foi depois o percurso que eles fizeram? Luzia Lopes: O mais velho tem 46 anos neste momento. Também fez só até à sétima classe. Ele não queria estudar e então foi para uma confeção de edredões. Mas depois começámos a aperceber-nos de que ele estava a entusiasmar-se com o dinheiro que ia ganhando, e nós vimos que aquilo era muito limitado para o futuro dele. E foi nessa altura que começaram a aparecer os cursos de formação profissional. Lá o conseguimos convencer a deixar de ganhar aquele dinheiro para investir na formação e hoje é mecânico na Mercedes. Pronto, está bem. O outro já estudou, é engenheiro mecânico, está em Angola. Pronto, está bem. P: E viveu sempre aqui na Covilhã? Luzia Lopes: Sim P: É católica? Luzia Lopes: Sou católica praticante. Claro, tinha de ser, porque é daí que as coisas depois partem. Não venham com dúvidas: tudo o que é fora, a gente debate-se com dificuldade, porque o ver, julgar e depois o agir, não está de acordo com aquilo que... P: E filiação partidária, teve alguma? Luzia Lopes: Não P: Então e filiação associativa? Luzia Lopes: Sim, como cristã tive várias coisas. Dei catequese a um grupo de jovens, cerca de 20 anos, Hoje já estão todos… já têm filhos e não sei quê, e depois, fazendo parte daquela equipa do LOC da minha freguesia, demo-nos conta do trabalho que a paróquia tinha feito e que nós colaborámos, demo-nos conta das dificuldades que os pais tinham em tomar conta dos filhos durante as férias, eram 3 meses de férias. É então que nos juntamos e estudamos o assunto e vimos o que é podemos criar neste tempo de férias, chamadas férias grandes na altura e então criamos um espaço... P: Então estávamos a falar da vida associativa… Luzia Lopes: Então, a partir daquele aprofundamento, daquele conhecimento da realidade que se vivia naquela zona - é uma zona pobre, havia a necessidade de fazer alguma coisa para ocupar o tempo livre daquelas crianças -, os esforços uniram-se, abriram-se algumas janelas, criou-se um grupo para fazer o levantamento de quantas crianças, o que é que os pais pensavam, procurar o espaço, a que portas a gente havia de bater, por exemplo. Foi esse trabalho todo. Durou 20 anos. Então tivemos de arranjar. Não tínhamos dinheiro para pagar a educadores e então um amigo nosso que era reformado, trabalhava nos serviços, disponibilizou-se para ir ensinar as crianças como se fazia… montava-se uma ficha... Arranjámos uma moça que hoje também já está reformada, também deu o seu contributo e várias pessoas, quer dizer, recorremos de gente que nós conhecíamos para dar um apoio. Por exemplo, o meu marido, à segunda-feira era o dia que menos trabalho tinha e então tomava conta deles. Pronto, então foi muito interessante… P: Isso foi em que ano? Depois do 25 de Abril? Luzia Lopes: Sim, sim, já já... P: Então, mas se calhar começamos antes do 25 de Abril, sim? Luzia Lopes: Pois, antes do 25 de Abril, a minha caminhada foi de facto na Juventude Operária Católica e foi de facto aí um meu espaço de formação, de sensibilidade, de luta, e procurando onde eu me situava. Como cristã, onde devia ser o meu empenhamento, não era fora das coisas, mas era dentro das coisas, quer nas associações, quer no sindicato, quer na empresa, quer na Igreja. Então, ao nível dessa situação, trabalhando na fábrica, antes do 25 de Abril, já havia alguns mais despertos para estas coisas dos direitos e tal. A gente já ia acompanhando um bocadinho a razão que levava também a falar e a denunciar. Claro que nós éramos novas, pronto, nós éramos novitas, e foi então assim que se criaram na altura as Comissões de Trabalhadores e aqui eu entrei para uma Comissão de Trabalhadores com outros. Mas a dificuldade em ser mulher no meio dos homens, era que a mentalidade, cuidado… Era que às vezes os homens se deixavam emprenhar pela mentalidade das mulheres ou pela ideia das mulheres. Pronto, houve aqui assim alguma coisa mas… Quer dizer, se eu estou no meio da massa, eu não podia desistir. Então, a Comissão de Trabalhadores continuou e havia um delegado sindical. E então havia uma coisa que nos fazia muita impressão, era que o delegado sindical vinha ao sindicato, às reuniões e tal, chegava à empresa e em vez de partilhar connosco um bocadinho do que se tinha visto, que se tinha analisado, o que é que iria fazer… Não, imediatamente, eles informavam era a entidade patronal. Não está correto, a gente devia saber primeiro o que é que os leva lá… Até que depois eu fui nomeada delegada sindical. P: Mas diga-me uma coisa, antes do 25 de Abril já tinha feito parte de alguma Comissão de Trabalhadores, alguma greve? Luzia Lopes: Não, não, foi só depois. P: Mas participou nesta greve [greve em Unhais da Serra, 1969]? Então mas participou desta primeira experiência, foi a primeira experiência de luta ?Julgo que em Unhais da Serra... Luzia Lopes: Não, eu não trabalhava para aí, eu trabalhava já na Covilhã. Eu não trabalhava na Penteadora. Mas tinha conhecimento. Tivemos conhecimento da informação que nos chegava cá, da luta que aquelas mulheres estavam a fazer, mas não estava lá. Pronto, e assim começou um bocadinho a nossa ação na empresa. E assim, por eu ter estado nos movimentos operários, nos momentos de reflexão, de participação, de incentivar e tal a estarmos no meio, também me levou um bocadinho a integrar-me nas questões do sindicato, a nível da empresa. Foi então a partir daí que eu fui delegada sindical da empresa, Fernando da Silva Antunes. Já não existe. E foi a partir daí, porque me parece, sempre e ainda hoje, que a gente para exigir também tem de cumprir. E quem está disponível para se dar, tem de ser coerente com aquilo que defende. Não é porque o partido me mandou lá ou deixou de mandar, era porque eu acreditava que o meu contributo, com as minhas colegas de trabalho, com os meus colegas de trabalho, numa perspetiva de respeito, de coerência, de verdade e de dignidade, levava-me a comprometer-me e foi assim que eu comecei a assumir os espaços no sindicato. Lembro-me que uma vez havia uma greve de duas quintas-feiras. Pronto, decidiu-se no sindicato, naquela altura eu já era delegada sindical, e a luta era porque as nossas empresas tinham metedeiras de fio de cerzir, cerzideiras, em casa, nas casas delas, nas aldeias e tal, mas não eram consideradas trabalhadoras da empresa. Porquê? Porque iam lá pôr os cortes e iam lá buscar. Então, houve duas semanas seguidas, duas quintas-feiras, em que o sindicato propôs uma greve para que as empresas, naquela altura, ainda havia essa força, para que aquelas trabalhadoras fossem consideradas trabalhadoras da empresa, para terem as mesmas regalias que nós tínhamos dentro da empresa: subsídio de férias, essas coisas todas. E na conversa, um dia, encontrei-me lá na casa de banho com uma e perguntei: O que estão a pensar fazer amanhã? Oh, não nos adianta muito vir, então não há ninguém. Pronto, olha, ainda bem, e sabe por quê? Porque normalmente fazem piquetes e os piquetes não é para tratar ninguém mal, mas é para esclarecer as pessoas da razão porque é que a gente está às portas e, sendo assim, não é preciso vir para aqui ninguém. Passou-se, passou-se. Na outra quinta-feira, eu ia para pegar trabalho e já não me deixaram pegar trabalho. Quando o guarda me disse: oh Luzia, não pega trabalho que o patrão quer falar consigo. Esperei que o patrão me viesse chamar e a razão que ele me apontava era de que estavam ali aquelas raparigas para me acusarem, porque eu que as tinha ameaçado… E eu: desculpe, não foi assim. Em frente delas, a verdade foi esta: isto, isto, isto e isto... Bom, mas, desculpe, e ele voltava a falar e eu calava-me e perguntava: posso falar agora? Pode. É mentira, isto foi assim, assim, assim, assim. Pronto, nós estivemos ali duas horas e meia e nessas duas horas e meia a empresa para e batem à porta do escritório: nós queremos saber por que é que a Luzia está aqui. Se eu já estava um bocadinho a lutar pela verdade, aquilo deu-me uma energia… E o patrão ficou assim comigo: vá-se lá… E eu fui dizendo assim: ó senhor [...], há uma coisa que eu não entendo. Então o que é? O senhor vai à missa, que eu vejo-o lá muita vez, como é que o meu Deus me diz isto e o seu diz-lhe outra coisa? Já ficou um bocadinho... E depois diz-me assim: vá, vá-se lá embora, está a máquina parada, a máquina está parada desde as 8 horas. Mas foi o senhor que me chamou. Mas digo-lhe uma coisa, senhor [...], vale a pena lutar pela verdade, porque por cima da verdade ninguém vai passar. Foi remédio santo… Pronto, e passado algum tempo ele chamou-me, que eu merecia mais algum dinheiro e que me ia dar 25 tostões. Aceitei aquilo como cumpridora do meu dever, porque eu era responsável, porque pronto, assumia... Mas depois comecei a sentir interiormente, à minha volta, que as coisas não estavam a correr bem, em termos de colegas de trabalho. Não, isto não pode acontecer, antes quero dormir descansada do que estar a ganhar mais 25 tostões. E então fui lá: então Luzia, passa-se alguma coisa? Vinha-lhe pedir para me tirar os 25 tostões. É o que lhe digo, prefiro dormir descansada. E tirou, também não deu às outras Pronto, isto criava aqui uma divisão… Não valia a pena. P: Porque é que acha que foi eleita delegada sindical? Luzia Lopes: Porque a minha intervenção já na Comissão de trabalhadores, não só nos dava… Nós não podemos ir atrás daquilo que nos mandam. Vamos parar para refletir se esta atitude ou se esta ordem ou se esta informação que vem do sindicato é aquilo que nós achamos… E se for preciso, chamamos... E foi a partir daqui que eles começam a ver que eu tenho outra outra forma de analisar, de ver as coisas... Porque daqui diziam e eu ia atrás disso? Pronto, não, isso não dava. P: Já tinha havido outra delegada sindical mulher? Luzia Lopes: Sim, sim. esta [...] foi delegada sindical e muitas outras antigas que a gente conhecia, na altura. Sim, sim, já havia muitas, mas era mais comum serem homens, claro, não tenha dúvida nenhuma. É engraçado, porque eu acho que os homens, como é que eu vou dizer, contentam-se, deixe-me passar o termo, um bocadinho com aquilo que se lhe diz, não têm, não são capazes de parar para ver se isto é o melhor, se isto pode responder agora, mas quais as consequências disto. Muitas vezes aqui nós debatíamos, porque eu acho que se investiu muito pouco na formação. Apostou-se muito na reivindicação, e dar formação às pessoas? Porque nós temos que reivindicar os nossos direitos, mas também temos cumprir os nossos deveres e porque, como cidadãos, como seres humanos que têm dignidade, nós temos que lutar por isto. Por esta razão e não porque o Partido mandasse ou deixasse de mandar. P: E quando foi o 25 de Abril já estava envolvida no movimento sindical? Luzia Lopes: Não estava. Foi a partir daí que eu me envolvi. Para nós, no trabalho, foi um dia para lembrar o resto da nossa vida. Que a gente acompanhava... Foi viver. P: E depois, o que que aconteceu nesse período revolucionário, na sua empresa? Luzia Lopes: A entidade patronal também se limitava a estar um bocadinho mais calma, para ver onde é que isto ia dar. Só que na altura nós tínhamos um dirigente sindical (que já faleceu) que já antes se falava e debatíamos e conversávamos e tal, e a gente já estava a acompanhar um bocadinho a realidade do trabalho. Há coisas de que a gente se vai lembrando. Eu lembro-me de uma vez, estávamos numa reunião da LOC, no grupo onde estava a nossa [...], a [...] era delegada sindical, e nós tínhamos a ordem de trabalhos do sindicato e, no grupo, refletíamos: olha, atenção a isto, porque isto pode nos levar para aqui. A nossa posição é como cristãos, a nossa atitude não pode ser a atitude de um partido. Mas às vezes acontecia-nos, às vezes eu ficava até um bocadinho arreliada... E então dava-se aqui uma volta que as pessoas ficavam um bocadinho com a noção de que era preciso ir por ali, se não foi isso que nós refletimos. Nós refletimos, nós aprendemos, ensinamos, desfrutámos do que o ver, o julgar e depois o agir de acordo com aquilo que nós estamos a refletir. E, como cristãos, nós não podemos andar uns por um lado e outros por outro. Vou contar uma história muito interessante. Um dia, era aqui em baixo e viemos a uma Assembleia Geral. Era um sábado, na altura, e depois eu dava catequese às cinco horas, e eram quase cinco horas. Estava muita gente, naquela altura, estas assembleias eram… Dava gosto. Assim, pronto, eu tenho de me ir embora e estava um senhor à minha frente, que trabalhou até com o [...], e eu...oh, eu tenho que me ir embora já, que tenho de dar catequese às cinco e meia. Catequese? Sim. Mas chego à Igreja, e tive o mesmo efeito. Digo assim à dona [...]: Hoje já me descuidei um bocadinho, eu estive no sindicato. No sindicato? Por isso, eram coisas… Quando nós achávamos e refletíamos que era no meio da massa que as coisas se transformam, não é fazer aquilo que os outros dizem, mas é aquilo em que eu acredito, passa por aqui também. Pronto, e tivemos assim algumas coisas, como por exemplo, fazermos parte de um departamento das mulheres e ser um homem a coordenar as coisas? P: Isso onde? Luzia Lopes: Na União de sindicatos. P: E depois o que é que fizeram? Luzia Lopes: Então, claro, o homem não dava conta de nós [ri-se]. Um homem não dava conta de nós, não é? E pronto, foi assim. E há outras. Uma vez estávamos também a preparar o Dia Internacional das Mulheres e conseguimos passar um bocadinho, o parar para refletir, vamos lá com calma, isto é importante, não é importante… O que é que nós vamos fazer, que tipo de luta nós vamos fazer, e às tantas estavam em minoria e começaram a chegar mulheres. E de onde é que você vem? Oh, foi o meu marido, que estava no partido, e telefonou-me para eu vir...E isso ainda nos veio dar mais razão de que o ser e estar disponível e o agir tem que ser de acordo com a dignidade da pessoa, seja ela preta ou branca. P: Então, já percebi que aqui havia uma certa tensão entre o movimento católico e os delegados sindicais ligados ao Partido Comunista. Mas foram trabalhando em conjunto... Luzia Lopes: Tinha de ser, até porque, por exemplo, nunca o Partido Comunista fez - nunca não é bem o termo, nalguns anos faziam - uma lista sem virem convidar-nos a nós. Porque era importante estar alguém da Igreja em nome da lista e eu disse ao [...], pela mesma razão que me vens convidar para eu estar aí é a mesma razão que eu te digo que não é necessário estar lá. Porque era um bocadinho para compor o ramo. Pronto e aqui às vezes havia… e nunca alinhámos. Pronto, juntos na ação, quando é preciso estar ao lado dos trabalhadores da luta, que é preciso reivindicar. Claro que nunca foi nada dado de mão beijada, mas não alinharmos só para alinhar, questionarmos, porque assim é que as pessoas cresceram. Olhe, não sei se estou a responder. P: Agora queria fazer outras perguntas, mais de nível pessoal. Qual é que acha que foi a propensão para participar nestes movimentos? Já tinha pessoas de família que estivessem envolvidas? Luzia Lopes: Atenção, a minha mãe tinha quatro filhos. Teve quatro filhos, dois já partiram e ainda somos dois. E nenhum se envolveu por aqui. Eu, a minha mãe dizia assim muita vez: tinha dois filhos, veio a menina, deve ter sido… Eu vim com alguma missão. Pronto, e eu sinto… e eu comecei quer na Comunidade, depois na JOC, as caminhadas da JOC, o aprofundar, comecei a tomar uma consciência maior de classe, que era preciso pôr em prática. Pronto, e foi a partir um bocadinho… Por isso é que digo: a JOC ajudou-me a situar-me como pessoa, a lutar pelo que eu tinha direito, no respeito pelas pessoas, mas sobretudo pela dignidade da pessoa. Portanto, para mim foi a minha escola. P: Foi muito importante na sua formação pessoal? Luzia Lopes: Muito, ainda hoje. Eu estou na LOC, mas ainda hoje a gente aprende uma coisa: dificilmente nos dizem o contrário, não têm capacidade para dizer o contrário. Isto revela-se na família, revela-se na comunidade. O que é verdade tem que ser verdade até ao fim, revela-se no movimento associativo, por aí fora. E como eu estava a dizer há bocadinho, criámos uns tempos livres nessa altura. Então, uma associação que havia, que eram os brincalhões, que hoje já não existem. E conseguimos falar com a direção e tal, porque era uma associação de bairro. Conhecíamo-nos todos uns aos outros e na altura era fácil, porque a gente andava por ali, os nossos homens eram dirigentes e tal. Então fomos fazer a proposta para que nos deixassem um espaço para angariar os miúdos todos. Foi-nos dada uma salinha térrea, eu trouxe da fábrica umas colas para pôr no chão, para os miúdos se sentarem, fizemos umas almofadas grandes, porque não tínhamos nada… E pronto, e assim começaram os tempos livres, naquele espaço que havia um quintal. Um dia ia-se para a Ribeira lanchar e depois chegava-se e fazia-se uma revisão do que se tinha feito no dia. Outro dia caminhávamos para o monumento de nossa Senhora e fazia-se uma revisão de como é que foi o dia... Fazíamos assim. Isto durou, assim aos saltos, três anos. Entretanto, aparece-nos uma pessoa amiga não sei de onde, que era assistente social, e teve conhecimento do trabalho que estamos a desenvolver e nos procurou para ter conhecimento do que estamos a fazer. Nós já tínhamos feito um acampamento na Serra com as tendas. Quando estavam os pais, todos colaboravam. Foi muito interessante. E então, esta senhora veio-nos abrir as janelas para avançarmos com esta atividade muito mais séria, muito mais dinâmica e também com muito mais apoios. E então, desde irmos às juntas de freguesia, irmos a câmara, abriram-se as portas assim. Depois, entretanto, aquela associação começou... Só tinham um espaço pequenino e as pessoas valorizavam mais o jogo das cartas. E então começámos a sentir uma pressão. Na altura, outra associação, que é o Oriental de São Martinho, que é uma coletividade com uma dinâmica já bastante grande. E então nós soubemos que a casa do lado tinha sido desocupada, as senhoras tinham morrido e que seria dada ao Oriental… E então nós pusemo-nos em campo, fomos à Junta de Freguesia e por aí lá furamos o esquema e lá nos deram uma sala. Então aí já tivemos educadoras que já nos davam algum contributo, que se tinham formado, mas não tinham sido colocadas. Dávamos assim um contributo através do subsídio de alimentação, que a gente conseguia dar, e então quando começámos a entrar por aqui, aquilo foi mais localizado e aquilo avançou. P: E foi no âmbito da JOC ou da LOC, que foi pensada essa iniciativa? Luzia Lopes: Esta iniciativa foi pensada no grupo da LOC. Porque nós tínhamos feito, a Comunidade tinha feito, um projeto. A Comunidade dividiu-se em grupos, nas zonas: tu ficas com esta zona, tu ficas com aquela e nós tínhamos umas folhinhas que dávamos a conhecer, mas era uma aproximação que se fazia com as pessoas que moravam naquela zona. Ora, eu fui criada para além, calhou-me a zona que me dava jeito, pronto. E então, ainda trabalhava, o grupo nasceu, algumas pessoas que se disponibilizaram fazer … Quantos filhos tinham? O que é que achavam se nós conseguíssemos fazer isto? Porque é que as crianças ficavam tanto tempo em casa? O que é que elas faziam naquele tempo? Eu às vezes ponho-me assim a pensar: de facto, nós já fizemos muita coisa. Os pais começaram a colaborar, desde cortarem as pernas das mesas da cozinha para pôr as mesas pequeninas e as coisas começaram assim e foi bem. Depois fomos para o Oriental e entretanto dá-se o mesmo problema: os homens precisavam da sala para jogar às cartas e a gente começou a sentir uma pressão. E então a pressão foi de tal maneira, existia uma comissão de pais... Era eu que geria a questão financeira. Os miúdos pagavam X, nós pagávamos à educadora e depois e o resto seria para saídas. Saímos no autocarro da Câmara, fizemos uma visita ao Portugal dos Pequeninos, fizemos muita coisa nos tempos livres de apoio às crianças. Mas depois começámos a sentir, porque as direções dos grupos vão mudando e entrou então uma direção que achava que os tempos livres deviam fazer parte da associação, que era uma coisa que dava nome. Nós não estamos contra que se faça parte, queremos é que tenha uma gestão independente, porque as direções mudam e como de facto, as coisas mesmo acabaram por acabar. Mas pronto, enquanto duraram foram boas… P: Então, isso já foi no âmbito da LOC. E a JOC, começou a participar na JOC antes do 25 de abril? Luzia Lopes: Sim! P: Em que tipo de atividades é que se envolveu no âmbito da JOC? Luzia Lopes: Nós aprendemos na JOC a fazer cursos, formação para o casamento. Nós aprendíamos como se cosiam as meias, coisinhas que hoje a malta não sabe fazer, mas que alguém nos ia… Naquele grupo, adultos nos iam ensinar algumas coisas, como é que nós nos preparávamos para a vida? Eu acho que foi de uma riqueza, que há coisas nunca mais se perdem, nem se esquecem e não deixam de ter sentido. P: Mas já trabalhava, Luzia? E no âmbito da JOC, também se discutiam as questões do trabalho? Luzia Lopes: Com certeza. Pronto, dentro da nossa capacidade de conhecimento, porque nós tínhamos já a gente adulta que já estava no sindicato antes do 25 de Abril e que nos… Eu posso lhe dizer abertamente. Por exemplo, eu lembro-me de quando queríamos ir para alguma atividade da JOC, os nossos pais não tinham dinheiro e então eram as pessoas mais antigas da LOC, e uma delas, como dirigente sindical, foi presidente aqui do sindicato, que nos ia dar 500 escudos para nós irmos às atividades da JOC. Os nossos pais não nos podiam dar dinheiro. Portanto, isto ajuda um bocadinho a formar a nossa consciência, também do que somos e do que podemos aproveitar daquilo que somos. P: E quais é que eram os tipos de atividades, para além dessa formação para a família, que outros tipos de atividades é que desenvolviam? Luzia Lopes: Fazíamos encontros alargados com outras dioceses, que depois se refletia no que o grupo fazia, desenvolvia-se no seu âmbito, quer no trabalho quer na comunidade. Então, esses encontros que se faziam a nível nacional, e que depois a gente começa a ter consciência, de facto, que não somos só nós que temos estas dificuldades, em Braga também têm, no Porto também têm, e então passava por aí essa formação. E depois tivemos, tivemos e temos o padre [...], que é um doce. Foi o nosso pai, que tantos buracos tapou, que a gente não se podia movimentar… Mas nunca nos travou. Tem coragem e vai. Vai lá que tu consegues. Este incentivar, “tu és capaz de fazer, fá-lo como tu sabes”. E lá íamos nós para os encontros. É engraçado, como é que, hoje penso, como é que... Naquela altura os meus pais me deixaram ir, não é? P: E depois traziam esses ensinamentos? Luzia Lopes: Pronto, e depois a malta reunia-se por vários grupos, fazíamos um encontro alargado e partilhávamos o que é que soubemos da outra diocese, como é que eles tinham reagido, qual tinha sido a revisão de vida que fez Aveiro. Um bocadinho assim nessa linha, porque depois passávamos esta mensagem e este entusiasmo também, para que as pessoas... P: Explique-me lá isso da revisão de vida, como é que se faz? Luzia Lopes: Então, a revisão de vida é assim, passa por uma pessoa e por uma realidade que a gente apresente. Por exemplo, havia uma casal em que tinha uma filha em que lhe dava imensos problemas. E isto depois, parecendo que não, contaminava o ambiente em casa, pronto. Um dia chegava alguém e olha: fulana isto assim, assim… Começávamos. Porque é que Isto acontecia? Vamos aqui fazer a revisão, porque é que isto acontece? Acontece porque o pai trabalhava, a mãe trabalhava em casa e não se dava muita atenção ao pormenor dos filhos, ainda hoje acontece. E então chegámos à conclusão de que, de facto, o problema também era dos pais. Pronto, então vimos esta situação.. agora o que é que fazemos? Agora não é só atirar... Como é que nós vamos e por onde é que nós podemos entrar para fazer esta ação para agir perante esta situação? Pronto, e o mais engraçado é que não começámos pelos pais, sendo que eram os pais que precisavam mais, começámos pela miúda. Fomos conversar com a menina. Encontrávamos, partilhávamos as coisas e tal. E a miúda foi percebendo o lugar dela e o respeito para... porque para tu dizeres alguma coisa, tu tens que ter consciência do que estás a fazer. E para provares aos teus pais que é por aqui... então começamos a trabalhar a própria miúda, e depois até veio para a JOC. São coisas concretas. Por exemplo, as questões do namoro. Era uma coisa que se debatia muito. Eu lembro-me que a primeira vez que comecei a namorar, assim, como é que eu… Foi engraçado, eu fazia anos, a minha mãe não sabe, como é que eu vou fazer? Então fui mais uma colega e dois colegas, a casa dele, lanchar. Ele lá preparou a família. Então queres crer que eu vim para casa e não consegui deitar-me enquanto não disse à minha mãe que tinha ido. Isto dá para perceber… P: E como é que se articulava esse trabalho da revisão de vida com ação sindical? Luzia Lopes: A nossa ligação com o sindicato, a partir do 25 de Abril mais concretamente, já passava por aquelas amigas que nós cá tínhamos, que eram da LOC e que já eram dirigentes sindicais há muito tempo e que nos iam passando. Porque a JOC também se encontrava com a LOC, nos grandes encontros encontrava-se, e a gente ia aprendendo como elas faziam. Por isso, a nível da JOC, eu não estive muito dentro do sindicato. Por exemplo, a [...] acho que esteve diretamente ligada, na altura já era dirigente ou foi a partir daí que ficou dirigente livre. Eu, quando comecei a participar no sindicato, ainda não era, deixe-me passar o termo, a casa do PC. Ainda havia alguma abertura, ainda havia gente aqui consciente. Pronto, esse tal meu colega, que trabalhava lá comigo, que já nos ajudava, ele era dirigente sindical e a gente começou a aprender. Mas depois eles começam também a querer tomar poder. E então queriam-se meter de qualquer maneira, não é? E depois havia aqui assim uma... Pronto, muitas das vezes a gente ouvia dizer: eles que façam lá… Não, é preciso estar lá para ouvir e qual é o nosso parecer. E passaram-se assim algumas coisas. Eu lembro-me uma vez, estávamos numa Assembleia, e um rapaz, já faleceu também, tinha dificuldade em se exprimir, não tinha o dom da palavra, mas fê-lo como soube, e logo assim: mais valia estares calado. E então aqui a gente refletiu: não, desculpem lá, mas o [...] tem direito a falar como as outras pessoas. Eram pequeninas coisas, mas era a maneira de estar e de ser nas coisas grandes. E não é por acaso que hoje tenho uma relação com o [...], não assim muito grande, mas pronto, mas tenho uma coisa, depois é uma questão afetiva também, ele vem, medita, cresce, a gente vai acompanhando, sem medo nenhum de lhe dizer: tu assim por aqui não vais lá. O nosso ponto de vista é este e discutíamos muita vez, pronto, e ele sabia que era por aqui e não é por acaso que muitas vezes, já não é a primeira vez que que há atitudes destas, deste género, e a gente dá o nosso contributo, com aquilo que sabe e aquilo que fez, não fazer mais aquilo que sabe. Foi aquilo que se fez? P: A Luzia foi dirigente do sindicato Têxtil da Beira Baixa. Como é que foi, quando é que foi? Luzia Lopes: Pois… Quando? Eu tenho cartões de dirigente sindical. Na altura em que eu fui dirigente sindical, já tinha passado por ser delegada sindical e membro da Comissão de Trabalhadores, já tinha feito um caminho. E até lhe vou dizer uma coisa. Numa altura em que nós, o grupo, um bocadinho avessa daqueles, criámos uma lista, que era a lista B. Isto porque havia todo um trabalho, todo um acompanhamento que a gente vinha acompanhando que não era por aí, não pode ser só por aí. Os outros também têm direito, pronto, e então um dia nasceu a lista B para concorrer com a lista A. Parece mentira, mas a diferença foram 12 votos. Era meia-noite, estavam em Unhais da Serra a dizerem ao Grupo da LOC que a lista B tinha desistido e eles ficaram: olha, então temos que votar na A. Quando nós nos apresentámos no dia das eleições, na Penteadora de Unhais, para proceder à votação, então, mas pronto, isto é um bocadinho quererem nos tirar o tapete. E aí ganhámos… por 12 votos. Passaram-se muitas coisas, mas pronto é assim, era o que havia. As pessoas também tinham se calhar necessidade de se afirmarem, é da forma como eles achavam, mas não era a minha, nem era a de muita gente. Nós temos também de ter lugar em algum lado. P: E enquanto dirigente do sindicato têxtil, que tarefas é que tinha? Luzia Lopes: Pronto, eu estava naquela altura na assembleia, ia às reuniões que faziam. Naquela altura, discutia-se muito o contrato coletivo de trabalho. Era mais nessa linha e a reflexão ia sempre na linha de defender sempre o contrato coletivo de trabalho. Pronto, agora já nada é assim. O contrato coletivo de trabalho é para todos, não é só para aquele ou para aquele, mas seria para todos. E então isso também nos dava um poder de reforçar um bocadinho a nossa luta para que todos tivessem os mesmos direitos, depois começaram a aparecer os contratos de empresa e as coisas começaram a ser diferentes. Mas nos sindicatos, normalmente, nas assembleias, nas reuniões de direção, era assim que funcionava. P: Lembra-se da greve dos mil escudos? Participou? Luzia Lopes: Perfeitamente. P: Como é que foi? Luzia Lopes: Ainda hoje tenho uma coisinha de louça que eles nos deram, um dia que fizemos… Passado quantos anos? Aqui neste sítio, uma lembrançazinha. Pois foi, e mais uma vez a ação da LOC aqui esteve presente. Eu parece que estou a ver a olhos vistos o [...], que já morreu, que era na altura dirigente sindical, e estávamos lá em baixo, numa coisa que se chamava a FACEC, era um pavilhão onde a malta se encontrava, e lembro-me que chegou a malta de Unhais da Serra num autocarro, que eles ficaram bocadinho a tremer. O direito… nós queríamos os mil escudos, porque era para todos igual. Porque houve sempre diferença de homem para mulher e até nos mesmos setores. E pronto, foi um período forte. P: As Mulheres também conquistaram os mil escudos? Luzia Lopes: Sim, sim, foi igual para todos e tivemos umas semanas boas de greve, de fome, mas depois também sentimos a solidariedade vir aí. Foi um marco na minha vida, pelas duas maneiras: primeiro porque provou-se que se as pessoas estiverem unidas nós conseguimos; segundo, porque os mil escudos não eram nada demais para a vida que se estava a ter; e terceiro, sentiu-se a solidariedade. Porque ninguém sozinho consegue fazer nada, mas se a gente sentir que tem outros do nosso lado e a apoiar-nos, pronto, então as coisas conseguem-se. P: Dê-me lá exemplos dessa solidariedade ... Luzia Lopes: Por exemplo, a nível do PC, vieram na altura, eles também estavam organizados, e vieram do Alentejo com material, feijão, grão, sardinha, percebe? De vários lados e depois foi distribuído pelas pessoas que mais precisavam. Mas depois também foi um incentivo para nós. Eu lembro-me quando foi das Minas da Panasqueira, quando estiveram em greve, vieram para aqui para o pelourinho, fazer greve, estavam aqui e tal, uns a dormir no chão e eu também peguei em mim e vim buscar um casal, que traziam dois filhos, levei-os a casa, dei-lhes de jantar, tomaram um banho e vim cá pô-los. Pronto, era um bocadinho assim. P: E também houve outra greve muito importante, dos 29 dias, em 1981. Luzia Lopes: Foi essa, foi a tal solidariedade. 1981, eu vou-lhe contar. Foi uma greve muito complicada, aí é que houve porrada e eu estava grávida. Eu estava grávida e achei que não me devia ir meter ao barulho lá para baixo para a Paulo de Oliveira, mas estava a ouvir. Ouvíamos nós na rádio e diziam eles: cuidado, tende cuidado que a GNR está a cercar a vila... Isto começa a ferver, eu e mais outras pessoas. Então mas aqueles tipos estão lá sem comer e tal? Então pegámos em malgas de marmelada, pão, e fomos ter Boidobra a pé, eu não sei como é que a gente conseguiu fazer isto, para dar de comer àqueles... e lembro-me que quando lá cheguei, já estava tudo... pronto. Depois o pessoal vinha sair da empresa e a malta estava cá fora para barrar: eh pá, mas depois também há aqueles que são do extremo, às vezes não precisávamos também de atirar pedras nem nada. Eu também sou contra isso. Mas eu quando cheguei lá, já vejo uma colega minha do trabalho com a cabeça a deitar sangue e há um rapaz, que também já morreu, dizia-me assim: foge daqui, que eles vêm aí atrás… Mas eu, então mas eu não fiz mal a ninguém... E a GNR vem ter comigo e diz-me assim: o que está aqui a fazer? Eu não fiz mal a ninguém! Vá já com esta senhora hospital para o hospital e venho com a minha colega, que estava a escorrer sangue para o hospital. P: Essa foi uma foi uma greve... Luzia Lopes: Foi, foi muito dura, foi muito dura, mas eu depois também fico com pena porque as pessoas ficam só nesse sítio e não continuamos a desenvolver este espírito, as pessoas ficaram com medo, alguns.... Mas foi, foi muito duro. P: Mas acha que depois dessa greve foi diferente? Luzia Lopes: Tinha que ser, tinha que ser diferente. Porque aqueles que iam trabalhar, porque eles iam para ali, foram para aquela empresa, porque havia gente a trabalhar. Ora, não é fácil a gente estar cá fora há tantos dias sem ganhar dinheiro e os outros irem trabalhar e fazerem sábados e domingos. Quer dizer, era uma revolta. Penso que mesmo para as pessoas que estavam lá a trabalhar deve também ter sido uma aprendizagem. Porque não é para se ganhar mais uns tostões que se chega a algum lado. Mas pronto, foram coisas duras. Por exemplo, nós vínhamos às 5 da manhã, para nos juntarmos aqui no sindicato, para irmos para a porta das empresas. Eu sempre disse: não quero porrada, esclareçam as pessoas. Sempre fui sem medo nenhum. Mas assisti a alguma porrada. Mas sempre fui, deixava o meu homem e os meus filhos em casa. P: Como é que seu marido… Luzia Lopes: Pois, é muito engraçado, porque... Eu também já casei com algum contrato (ri-se). Eu vinha de uma relação de cinco anos, o dia em que faço cinco anos é o dia em que o meu marido morre. De cinco anos de sofrimento, de luto, o caminho para Lisboa… Eu já tinha namorado o homem que tenho hoje, e digo assim: eu só me caso se eu puder continuar a fazer toda a minha ação, que minha ação que eu tive necessidade de parar agora neste momento. Pronto, ele nunca me impediu, quer na LOC quer no sindicato, nunca me impediu. E às vezes as nossas discussões é porque eu sou mais… como é que eu hei de dizer? Não, tu disseste que era assim, assim é que tem que ser, eu sou mais um bocadinho… porque os homens são mais um bocadinho, até se esquecem do que disseram (ri-se). Estou a falar de mais, mande-me calar... P: Não, não, não está, está ótimo. Mas diga-me uma coisa, depois dessa greve de 1981, tem sido sobretudo um período difícil, com muitas empresas a fechar. Como é que avalia esse período? Luzia Lopes: Muito desemprego... Foi muito complicado. A salvação foi a universidade. Foi muito complicado, muito desemprego, casais nas mesmas empresas, muitas lutas, na medida em que se tem capacidade para perceber que a empresa vai abaixo... não querem aguentá-la. A gente tinha noção disso e deixa-se assim por não ter compromisso e fica-se a dever muitos meses às pessoas. Quer dizer, foi terrível. Foi terrível. P: E como dirigente sindical, esteve envolvida nalgum desses processos? Luzia Lopes: Nessa altura, se calhar já não estava na União, mas nós nas reuniões aqui acompanhávamos a empresa tal: o patrão disse isto, está-nos a ameaçar.... Nós íamos acompanhando nas assembleias que íamos fazendo, estávamos sempre a par das coisas: na minha, não, pronto. Eu também me reformei com 50 anos, que é outra questão, não sermos preparadas para precaver as doenças profissionais. Nunca ninguém nos tinha falado nisso. Passado um tempo é que começaram a ver as equipas lá nas empresas. Eu era urdideira mecânica e trabalhava na bordadeira, e então a minha posição era sempre com a perna direita a carregar no pedal para a máquina andar, de maneira que eu fiz isto, fiz uma escoliose. Andei, andei até que depois, há 20 anos atrás, foi para os ossos, um problema, o micróbio das tuberculoses em vez de ir para o pulmão, foi para aqui, para o meio das vértebras e então fiquei toda coisa, desde partir uma perna a andar... E pronto, se está bem que as máquinas não estavam preparadas para cuidar dos trabalhadores, estavam preparadas para produzir, mas nós também nunca fomos alertadas para a prevenção, para o que a gente podia ir fazendo, por exemplo, sei lá, em vez de estar tanto tempo, podíamos não sei como encontrar ali uma alternativa ou por o estrado mais alto... Quer dizer, não pensávamos, nós não tínhamos capacidade para pensar, podíamos ter evitado muita coisa a nível de saúde. Eu lembro-me que na altura aquilo era frio, quando fomos para a fábrica nova, que aquilo era frio e puseram uma caldeira grande, uma virada para um lado e outra virada para o outro e que trabalhava com nafta, mas aquilo deitava um cheiro do diacho. Todos se queixavam, todos se queixavam, mas a uns fazia mais diferença do que outros já. O que é que acontece? Acontece que aquilo fazia uma dor de cabeça, porque o calor vinha diretamente para a nossa cabeça, mas assim isto não pode continuar. Depois chamámos, falámos à entidade patronal e tal: mas também não vos percebo, não há de ser do frio. Pronto calámo-nos bem caladinhos e fomos ao Ministério Trabalho: existe um aparelho na nossa fábrica que faz isto assim, assim… vira-se diretamente para nós e nós não conseguimos trabalhar. Foi lá a fiscalização e aquilo teve que ser fechado. Por outra vez, aquilo era frio, puseram-nos um radiador por cima, uns araminhos, um radiador numa… (?) assim por cima. Ai caraças, parecemos uns pitos do aviário. Andámos, andámos, isto assim não pode ser: senhor, tire lá os radiadores, porque nós não somos pitos do aviário para estarmos a chocar. Pois o que queria era pô-lo aos pés, se não quiser pôr aos pés não ponha. E então puseram-nos aos pés. Outra vez, era para fazer umas horas e tal: eu faço se puder, se não puder não faço, as outras faziam, durante o dia podiam andar calminhas, mas depois chegavam as cinco horas.... Eu com o trabalho já pronto: Não, eu não faço. Se for preciso para desenrascar um tecelão, eu fico. Mas para fazer coisa assim, não fico, pronto. O que é que aconteceu? Aconteceu que tive uma semana encostada à máquina sem trabalho e as outras a fazerem horas. Um dia, chega lá o patrão, ainda hoje é filho: veja lá se quer uma cadeira, se calhar não era pior. E não... E pronto, passa a gente por várias coisas assim, não é? Mas que nos dão aqui uma.... (ri-se) P: Então e depois de se reformar, continuou a participar no movimento sindical ou virou-se mais para a LOC? Luzia Lopes: Pronto, nos reformados, eu fiquei um bocadinho aquém, porque o problema da minha saúde foi muito complicado. Eu estive três meses e meio nos [Hospital dos ] Covões, fora o tempo em que eu estive aqui nos hospitais. Agora estou a lutar contra uma doença autoimune, sequelas da tuberculose. Continuei com um grupo de jovens na catequese, já não era uma catequese, era grupo de jovens que já tinham feito o Crisma, e na LOC. Convidaram-me muita vez para vir para os reformados, mas eu não achava muita graça. Por exemplo, estou a participar num clube sénior e a gente a aproveitar o tempo da melhor maneira, aquilo que a gente gosta de fazer, cidadania, envelhecimento ativo, informática. Agora ir só para lá para beber o chá, para… Nunca fui para os reformados. P: E na LOC, depois, que tipo de atividades é que desenvolveu? Luzia Lopes: E desenvolvemos... Então, temos o Congresso, que é de três em três anos. Há temáticas para cada ano, desses três anos, sobre a dignidade do trabalho, agora este ano o que estamos a pensar, o que se está a trabalhar é as novas tecnologias, o trabalho em casa. Ainda agora vai ser a equipa nacional sobre os prós e os contras do teletrabalho. E há sempre uma altura das reuniões que se faz a revisão de vida. Hoje já são os homens, já são os velhos, já são os filhos, já são os netos: ah… no nosso tempo não era assim. Mas agora, neste tempo, estamos aqui, que resposta é que... Já passa por aqui um bocadinho a nossa ação, porque somos já quase todos reformados, mas achamos que não somos velhos, eu às vezes digo assim lá em casa: eu tenho como velho um idoso. Porque o idoso, pela idade, mas não para, vai estar nestas coisas e tudo o mais. E, por exemplo, no próximo sábado vamos ao passeio promovido pelo grupo. O que é que nós ontem estivemos a dar, a aprender, a trabalhar, a fazer a língua gestual. Nunca tinha pensado nisto. Então e o aprender, não é bom? Não sei se é preciso nem se não, mas aprender é sempre bom. P: Quais são as responsabilidades que tem agora na LOC? Luzia Lopes: Agora não tenho nenhuma. Porque também pela idade, que muitos se reformaram e já estão em casa. Então, o que é que nós criámos? Uma equipa interparoquial, com os da Boidobra, com os do Ferro... Não deixámos parar e fizemos uma equipe Interparoquial. Eu continuo como animadora daquele grupo dos meus lados, em que é preciso convocar, é preciso chamar, é preciso dizer: olha, vamos fazer isto. Continuo a fazer um bocadinho a dinamização daquilo que me cabe a mim, no meu lado: olha, já avisaste fulana? Pronto, e outros fazem, outro é o tesoureiro, outra é a coordenadora, e pronto, vamos fazendo assim. P: E continua a participar nos encontros nacionais? Luzia Lopes: Não, só vai a equipa nacional. Vou ao Congresso, aos congressos, que são abertos a toda a gente. Só os delegados é que podem votar, mas os convidados podem participar, aí vou. Agora, participar, participar ativamente, só os delegados é que podem votar. P: Qual é a importância desses momentos, dos congressos? Luzia Lopes: É muito importante, muito importante. Para já, é um marco importante, nacional. Segundo, é um desafio à própria Igreja e ao movimento sindical. Porque se trata dos problemas dos trabalhadores, da vida dos trabalhadores. E, como trabalhadores cristãos, nós temos um papel, é diferente, mas temos que estar lá. Não somos mais, somos diferentes, vemos as coisas por este lado. Por isso são importantes, porque a gente se encontra com aquela gente toda dos outros lados e porque cada zona tem sua realidade. Embora o tema do trabalho seja a mesma coisa, mas os pontos de vista e as realidades lá podem ser diferentes dos de cá e então são muito importantes, são marcos muito importantes. P: Diga uma coisa: acha que a JOC e a LOC foram importantes para promover a participação das mulheres na vida social ? Luzia Lopes: Não tenho dúvida nenhuma. Porque então é o que eu estava a dizer, porque os sindicatos nunca se preocuparam muito com a formação das pessoas, porque uma pessoa formada da cidadania encontra onde se encaixar, naquilo onde eu possa fazer alguma coisa boa, que era mais um poder reivindicativo. E quer queiramos quer não, a mulher tem também um lugar próprio, em todos os lados, quer no movimento sindical, quer na Igreja. Há dificuldades? Há. Em aceitar? Muitas. Mas as mulheres são importantes. P: Que tipo de dificuldades e como é que os ultrapassou? Luzia Lopes: Ainda há bocado estava a contar que vinha ao sindicato e diziam: vais dar catequese? E a catequista disse-me a mesma coisa: foste ao sindicato? Porque eram coisas diferentes. As pessoas não tinham de estar, quer dizer, podíamos ser cristãos só na igreja, mas não podíamos ser no momento sindical ou na fábrica, percebe? Havia aqui uma coisa que serve... Isso foi-se esbatendo. Mas a Igreja também tem caminhado muito, para estar na... porque se não se transforma nada. Porque nem toda a gente vai à missa, nem toda a gente ouve. O padre pode explicar muito bem, mas se não aprender o fundamento das coisas eu não consigo trazer nada cá para fora. Se aquilo não mexer comigo, não transformar comigo, eu não posso dizer ao outro, como é que se faz. Pronto, há todo um caminho a percorrer. Mas eu espero que a gente… É assim, ao perfeito ninguém chega, mas não duvido que a Igreja tem um papel importante na divulgação, na formação e em defender a dignidade de quem trabalha. P: E acha que os estes movimentos específicos ligados ao mundo do trabalho são bem aceites pelo resto da igreja enquanto instituição? Luzia Lopes: Nem muito. Sabemos que temos muita estabilidade, há bispos já abertos, com uma mentalidade já aberta, que já chamam as pessoas, já reúnem com as pessoas, já querem ouvir a opinião dos movimentos operários, há bispos já abertos. Não posso dizer que o meu seja. Tentamos dar a volta ao contrário. P: Como é que dão a volta ao contrário? Luzia Lopes: É estar, não desistir, ser persistente e ser coerente. P: Queria perguntar-lhe algumas coisas sobre a questão da Memória, ou seja, tudo isto que nós estamos aqui a falar, estas histórias do antigamente, da resistência, da persistência na luta. Isto é algo que passa dos mais velhos para os mais novos no seio destes movimentos como a JOC e a LOC? Luzia Lopes: Hoje a atualidade é diferente, mas eu sinto isto mesmo até em relação aos meus filhos. Os meus filhos apanharam muito da minha ação, do meu compromisso. Os meus filhos apanharam muito e quantos são filhos de gente que fazem esta experiência saem de lá grandes militantes. Se me disser, já tenho mais dificuldades com a minha neta. Já tenho, que tem 19 anos. Isto é secundário, o que é preciso é eu estar bem. Agora, mas também não desistirem. E às vezes não conseguimos fazer pela conversa, às vezes só pelo testemunho e pelo estar com os netos. Mas eu tenho a felicidade de que os meus filhos apanharam muito da minha luta e do que sou, é engraçado. P: E, por exemplo, na catequese, na relação que tem com os mais novos, passa... Luzia Lopes: Pronto, eu nunca estive com os mais novitos, estive sempre a partir do crisma, já fazem com 15 anos e então muita revisão de vida se fez porque a própria Mensagem do Evangelho nos leva a uma revisão de vida. Eu na escola, como é que eu sou na escola? Como é que eu pratico isto na escola? Como é que eu exijo isto em casa? Esta revisão de vida levada? Eu acho que fui a pessoa mais feliz, porque de facto consegui transmitir... uns são militantes do PS... outra é professora na Universidade, todos fizeram o seu caminho e cada um está no seu, na Figueira, em Lisboa, todos por aí fora, mas é uma relação tão próxima… É uma relação tão próxima que temos um encontro marcado para Novembro, com todos os que passaram por ali. E deixe-me dizer na fábrica, onde eu trabalhei, estes anos todos, dávamo-nos bem. Mesmo que até em determinadas alturas as pessoas não me vissem bem, porque era uma mulher, mas assim... Nós estivemos aqui uma vida inteira, nós fizemos aqui a nossa vida toda, estas horas todas, e agora isto há de acabar assim. E então não é que todos os anos, já lá vão uns aninhos, nos encontramos, fazemos um almoço, alguns já foram. Há dois anos, no dia do almoço, fomos enterrar um. Pronto, encontramo-nos e olha lá... este ano, com a pandemia, não fizemos, mas a ver se a gente este ano… Já comecei a fazer.... Sabe bem, vêm os que estão lá longe. Valorizar estes momentos, porque nós temos ali a nossa vida, fomos para as garotas. E nunca tivemos tempo de perceber, quem tu és. Então, agora nesta idade vamos-mos encontrar para fazer um bocadinho um convívio. É lindo, rezamos missa de manhã pelos que já partiram e fazemos um almoço. P: São tudo pessoas muito ligadas à Igreja? Luzia Lopes: Não, quem não quer ir à missa não vai. Respeitamos cada um e o seu caminho. Agora, a verdade é que nós trabalhámos uma vida inteira todos juntos. Então, não nos há de ligar alguma coisa, nem que seja um convívio para… é interessante. E dizia-se: um dia que tu morreres, calma aí que ainda é cedo, que aquilo que acaba, calma aí que ainda é cedo, já estão todos muito em baixo, velhinhos e tal, temos outros mais novos, que já aparecem depois. Mas isto só para dizer que colhe-se o que semeia. Eu podia não ter a ideia. E até o patrão vai, o filho, o outro já morreu. O [...], quer queiramos, quer não, o senhor fez o caminho connosco. De outra maneira, mas fez. E vai aos almoços. P: E diga-me uma coisa, há essa fraternidade entre os colegas de fábrica, e acha que os movimentos, como o movimento sindical ou como a LOC, criam uma identificação mais alargada com os trabalhadores de todo o país ou até de todo o mundo? Luzia Lopes: A LOC está organizada a nível mundial, diocesana, nacional, internacional e mundial. Isso pronto, a nível da LOC, isso faz. Temos muitos militantes da LOC, a nível nacional, que estiveram na central sindical. Muitos. Com algumas dificuldades, mas não desistiram de estar lá. Porque, pronto, eu vejo de uma maneira diferente, mas eu estou cá. Eu quero acreditar que demos um contributo e estamos a dar um contributo aos que estão e aos que ainda possam vir. É verdade que a idade e as maleitas das pessoas nos vão impedindo da dinâmica ser maior, mas quero acreditar que demos e ainda continuamos a dar um contributo para a sociedade. P: Qual é que acha que é o futuro de movimentos como o movimento sindical ou como a LOC ou a JOC? Luzia Lopes: O movimento sindical terá sempre... Pronto, o movimento, a JOC, pronto é mais a malta… Hoje, é assim, naquela altura que a gente foi da JOC trabalhava na fábrica, hoje a malta está na universidade, tem outras janelas. O movimento sindical tem sempre o seu espaço. Agora que terá também que ver um bocadinho que as coisas hoje não é só para assinar papel, é preciso esta formação, de pessoa, de cidadã. Porque às vezes, uma coisa é dizer e depois não somos coerentes com aquilo que dizemos, não fazemos o que dizemos. Isso deita por baixo o acreditar em alguma coisa. E nós já nos debatíamos aqui há uns anos sobre isso, que era, nós muitas vezes podemo-nos fazer valer pela nossa maneira de ser, às vezes não é preciso falar muito. Eu agora conheço pouco o movimento sindical, nem sei quem é a presidente agora, não sei se é. Sei que é uma menina. Mas eu acho que todos têm o seu lugar e isto há-de ir para a frente, porque todos têm o seu lugar, tem que ser, porque se os patrões se organizam numa determinada matéria, os trabalhadores têm de fazer a mesma coisa. Tem que se investir na formação em primeiro lugar, é importante. Porque se as pessoas estiverem esclarecidas, são capazes de lutar por aquilo que querem e por aquilo que têm direito. P: E a LOC ou os movimentos cristãos ligados ao trabalho, qual é que acha que é o futuro desses movimentos? Luzia Lopes: A JOC tem alguma dificuldade, há grupinhos dispersos. É porque hoje, se eu lhe disser que a mais nova que está na LOC aqui no meu grupo tem 48 anos, de resto é tudo para frente. E temos alguma dificuldade em que as pessoas adiram, porque gostam mais do deixa andar e... mas já nas fábricas era a mesma coisa, porque eles não queriam lutar, eu na minha fábrica não tive grandes problemas, porque era uma fábrica pequena, mas nas grandes fábricas sabemos, se vier para eles também vem para nós. Esta coisa de se encostarem um bocadinho sempre aconteceu. Com os nossos jovens, estou sentir alguma dificuldade, porque sempre cá houve equipas da JOC, mas depois falta de animadores, a falta da Igreja também abrir espaço para eles. Porque não podem ser só ao nível da Comunidade só, têm de se ouvir. Sinto que a JOC está com alguma dificuldade, a LOC também, com a nossa idade já temos alguma dificuldade em... Ainda existe isso? Sim, enquanto formos vivos, mas sentimos que temos o nosso espaço próprio e é pena. Mas é o que eu digo, a malta vai para a universidade, tem outros caminhos, outras propostas, às vezes não são as mais corretas, mas pronto. E a gente sabe, não é? P: Queria perguntar-lhe se esteve em alguma iniciativa específica relacionada especificamente com a emancipação feminina ou lutas pelo igualdade salarial, em torno da mulher trabalhadora. Luzia Lopes: Uma vez, uma vez estavam a preparar, acho que já contei esta história, estavam a preparar o Dia da Mulher e estávamos lá em baixo, numa sala. E nós estávamos a discutir o trabalho que tínhamos lá para fazer e começaram a perceber que não havia gente para aprovar aquilo que nos estavam ali a pôr. E, então, começaram a chegar algumas mulheres. Sem nunca cá estarem. E eu perguntei: olha, então de onde é que vem? Foi o meu homem que me telefonou, que estava no Partido... P: E qual é que era a questão? O que é que estavam a colocar que vocês não queriam? Luzia Lopes: Pronto? Agora, também, assim, concretamente não me lembro o quê, mas sei que nós participámos, fazíamos parte de um grupo de trabalho na União de Sindicatos sobre as questões da mulher, mas éramos coordenadas pelo homem, que não nos entendia. Queria impor a letra, mas espera aí, pronto e aquilo e pronto acabou por desistir e aqui acontecia a mesma coisa, pronto, porque pensam que as mulheres eram mais para encherem o para compor o ramo. Mas passaram também por aí grandes mulheres. No meu tempo de jovem, aquela a [...], aquela mulher… P: O que é que se lembra dela? Luzia Lopes: Muito alta, ela foi dirigente sindical antes do 25 de Abril, mas foi também dirigente livre da JOC e da LOC. Ela percorria as aldeias, a fazer o seu trabalho de ação para são Romão, para Loriga, Gouveia, para Seia. Ela fazia este trabalho de ir ao encontro. Hoje a gente toca-se, se vêm, vêm, se não vêm... mas as pessoas iam. As pessoas chamavam-se nesta altura, e chamam-se ainda, dirigentes livres, as pessoas são dirigentes mas são livres e então não têm rendimento. Vão para Gouveia, comem lá em casa da [...] assim. Lembro-me muito bem do trabalho que esta mulher que ela fazia. P: Mas ela dirigiu algum grupo de trabalho em que tivesse participado, Luzia? Luzia Lopes: Eu já conheci esta mulher na LOC, quando fui para LOC. Já lá estava, já era dirigente sindical. P: E trabalhou com ela diretamente? Luzia Lopes: Na fábrica não. Nos movimentos operários, em termos de LOC, ela era mais velha e eu mais nova. -
2 de junho de 2021
Casimiro dos Santos
P: Onde é que nasceu? Casimiro dos Santos: Nasci no Concelho da Pampilhosa da Serra, distrito de Coimbra. P: Em que ano? Casimiro dos Santos: 1952. P: E estudou lá? Casimiro dos Santos: Estudei lá até acabar a chamada escola primária. Depois fui estudar para Figueira da Foz e Coimbra, que era onde tínhamos o secundário. E depois de Coimbra ainda estive em Lisboa, na universidade, acabei a universidade em Lisboa, em 1980. Foi quando terminei e já tinha trabalhado, tinha acabado o curso como estudante trabalhador. Mas, entretanto, antes de acabar o curso, meteu-se o serviço militar. Portanto, como nota biográfica assim mais pormenorizada, estive na tropa dois anos, 1974 e 1975. Apanhei precisamente o 25 de Abril. P: E trabalhou no quê antes? Casimiro dos Santos: Antes de ser professor, trabalhei na Segurança Social como funcionário administrativo. P: E depois foi toda a vida professor? Casimiro dos Santos: Depois fui toda a vida, professor, de 1981 até há dois anos atrás. P: Qual era a área? Casimiro dos Santos: História, fiz na faculdade de Letras de Lisboa P: E trabalhou, deu aulas sempre aqui nesta região? Casimiro dos Santos: Na margem sul do Tejo também. Almada, Seixal, Setúbal, Moita. Estive aí uns 10 anos e depois voltei aqui para a região da Serra e acabei aqui. Depois estive sempre aqui, no distrito de Castelo Branco. P: E os seus pais, eram também eram daqui desta região? Casimiro dos Santos: Sim, o meu pai era mineiro na Panasqueira, na Pampilhosa da Serra. Faz ali uma fronteira e está na órbita das Minas da Panasqueira, pelo menos aquelas duas freguesias do norte da Pampilhosa da Serra, de maneira que grande parte da população daquelas freguesias trabalhava nas Minas, daí a pertença àquele universo operário. Operário e camponês ao mesmo tempo. P: E a sua mãe também? Casimiro dos Santos: A minha mãe era camponesa e doméstica. Tínhamos propriedades, tínhamos aquela dupla pertença à terra, enquanto pequenos proprietários rurais, mas ao mesmo tempo também ao mundo do trabalho das Minas, enquanto que o meu pai era operário das Minas. Portanto, tínhamos ali uma dupla pertença, digamos assim, não em termos de classe social, pequenos proprietários e operários ao mesmo tempo, aquela duplicidade de ser proprietário de terrenos, mas pequenos proprietários. E, ao mesmo tempo, assalariado, o meu pai. P: E tem filhos? Casimiro dos Santos: Tenho dois filhos, um filho e uma filha. P: E a sua mulher? Casimiro dos Santos: A minha mulher esteve no ensino. Ela é engenheira técnica agrária, portanto faz tempo no ensino e faz trabalhos por conta própria. P: Os seus filhos também seguiram para o ensino superior? Casimiro dos Santos: A minha filha é enfermeira. Está a acabar a especialidade. E o meu filho e técnico de ambiente, está a trabalhar na Câmara de Pampilhosa da Serra, precisamente. P: Professa alguma religião? É católico? Casimiro dos Santos: Só agnóstico. P: E o quanto à filiação partidária? Casimiro dos Santos: Sou militante do PCP P: Em relação à filiação associativa? Casimiro dos Santos: Fui sempre sindicalizado, fui delegado sindical, quase sempre, toda a minha vida profissional. E quando estive em Lisboa, havia um movimento associativo ligado aos concelhos da Beira, Serra, Arganil, Pampilhosa até o Sabugal e a Covilhã também. As casas do concelho agregavam as pessoas que tinham ido para Lisboa desde meados do século, quando se dá aquele grande êxodo rural. Na Pampilhosa da Serra, há aldeias que quase se despovoaram nos anos 40/50 e então associaram-se em estruturas que estavam, mantinham a ligação à aldeia de origem, e em Lisboa tinham a casa do Concelho. Mas mesmo assim, além da casa do Concelho, ainda tinham as chamadas comissões de melhoramentos, ou seja, eram aldeias muito pobres, normalmente, por exemplo, na minha aldeia, nós tínhamos a eletricidade que era produzida a poucos quilómetros, numa barragem de Santa Luzia que abastecia as Minas da Panasqueira e a indústria da Covilhã e a aldeia não tinha eletricidade, até 1970. Está a ver, portanto, isso fez com que os moradores de Lisboa, das aldeias que estavam em Lisboa a trabalhar, ao verem a distância, a falta de vias de comunicação, o fraco desenvolvimento, o atraso no tempo do Salazar, organizaram-se nas Casas do Concelho. Claro que o regime procurou mais ou menos meter a mão e de alguma maneira, condicionar. Havia alguns que até eram da União Nacional. Alguns dirigentes dessas casas do Concelho. Portanto, o regime aproveitava isso, introduzia-se lá dentro. Mas mesmo assim, serviu perfeitamente para criar um algum… a partir do sentimento de pertença às aldeias e da consciência de que havia um atraso muito grande nesta interioridade destes concelhos, fez com que este associativismo criasse de alguma maneira um espírito comunitário. E conseguiram-se alguns melhoramentos, muitas vezes junto das câmaras municipais, junto dos ministérios. Tinham alguma influência. P: E o Casimiro desenvolveu atividades nesse movimento? Casimiro dos Santos: Eu, quando estive em Lisboa, a partir dos 18 anos, pertencia a uma das comissões de melhoramentos da minha aldeia, precisamente. E, portanto, fazíamos festas, tanto na aldeia como na cidade, em Lisboa. E essa era uma maneira de conseguir agregar a população para festas, convívios, etc. E, ao mesmo tempo, procurávamos junto da autarquia, isto já depois do 25 de Abril, já estávamos numa fase posterior, conseguíamos ter alguma influência como movimento associativo, como comissões, algumas até são instituições de utilidade pública. Conseguíamos ter alguma influência junto das autarquias, como comissões de moradores. Entretanto, normalmente funcionavam com sede em Lisboa e uma delegação nas aldeias. Outras vezes era o contrário. A partir de 25 de Abril transformou-se a coisa, a sede já era nas aldeias, porque já havia alguma iniciativa nas próprias localidades e Lisboa era uma delegação. Ainda hoje se faz esse convívio, entre a população que está lá e a população que mora ainda nas aldeias, muito poucos, só os idosos. Mas esse sentimento de pertença ainda está lá. Por isso é que muitos originários dessas aldeias mantêm a casita na aldeia, mantêm aquilo arranjadinho e tal, e continuam a vir passar as férias nas aldeias. Isso é muito interessante, porque esse sentimento de pertença não se apagou. P: Acha que essa propensão para a participação associativa é uma coisa de família? Ou seja, os seus pais já tinham alguma participação nestes movimentos? Casimiro dos Santos: Sim, não é só uma coisa de família, é uma tendência de ver necessidade e as populações se associarem de alguma maneira. Mas o meu pai já era sócio da Comissão, participava nas atividades, etecetera. P: E em greves, lutas no âmbito das Minas da Panasqueira, também participava? Casimiro dos Santos: O meu pai trabalhou lá até precisamente ao 25 de Abril. O meu pai tem uma longa história, porque ele foi trabalhar ainda no início dos anos 40. Ele foi trabalhar para as minas apenas um jovem ainda, quase uma criança. Estava a sair da adolescência quando foi trabalhar para lá para a empresa. Entretanto, a empresa teve... Em 1939 houve uma greve terrível, a greve do carbureto, em que os mineiros tiveram que fazer uma greve porque eram obrigados a providenciar eles próprios, às suas expensas, a iluminação lá dentro, através do carbureto. Tinham uma lâmpada que era o gasômetro, que funcionava a gás acetileno. É água, o gás acetileno e eles tinham aquela chama, ainda não havia as lâmpadas elétricas. É, e então eles tinham que comprar o carbureto, tal como levavam o farnel lá para dentro. Em 1939, muitos mineiros da Panasqueira tinham vindo de Espanha. Alguns estavam lá imigrantes, eram mineiros portugueses, por exemplo, nas Astúrias, nas Minas de carvão, etecetera. Portanto, há ali um grupo de, eu diria, pessoas já com uma consciência social e consciência de classe mais elevada, e em 39 fizeram uma greve que os levou a conseguirem uma vitória. A greve do carbureto. Depois disso, muitos foram identificados, muitos foram presos. E foram despedidos e as lutas lá ficaram muito esmorecidas. Até 1945, mesmo no final da guerra. Entretanto, a empresa teve imensos lucros e aquele mundo do Volfrâmio desenvolveu muito, houve fortunas que se fizeram. Houve pessoas, camponeses, mineiros, que fizeram fortunas ou com o contrabando do volfrâmio, a vender volfrâmio aos alemães que estavam aí. E, portanto, aquela era uma pequena cidade, quase, as Minas da Panasqueira. Despovoou-se no fim da guerra, quando a empresa fechou, uma vez que as vendas foram abaixo, mas elas tinham estado estado em alta. E o meu pai nessa altura foi trabalhar para Lisboa, onde tínhamos lá parentes e tal, e foi trabalhar para Almada, para uma fábrica de cortiça, daquelas fábricas da Cova da Piedade. Uma vez, estive lá com ele, no sítio, já a fábrica estava abandonada, aquelas fábricas da cortiça. Quando a mina reabre em 1947, ele regressa cá e continuou o trabalho ali, até se reformar em 1970. Portanto, aquele tempo das lutas ele não apanhou, ou antes, tenho impressão de que ainda apanhou ali qualquer coisita em jovem, em 39, e quando foi o 25 de Abril e as lutas se acendem lá, portanto, ele já não está na empresa. Portanto, ele não apanhou esse tempo, mas foi extremamente explorado. Foi uma exploração terrível, 40 anos. P: E na sua infância, vivia nesse universo? Casimiro dos Santos: Sim, sim. P: Havia alguma associação, alguma instituição, em que tenha participado? Casimiro dos Santos: Tudo o que era o mundo operário estava reprimido, portanto só em setenta é que houve alguma liberdade sindical, era uma repressão muito grande, as coletividades que existiam nas aldeias ou eram as casas do povo, ou as tais comissões de melhoramentos das aldeias da Pampilhosa da Serra, e nas aldeias do concelho da Covilhã e no Fundão havia já algumas associações, os ranchos folclóricos, os grupos etnográficos, que tinham alguma expressão e normalmente eram as juntas de freguesia que promoviam essas coisas. Primeiro ligados ao regime. Aquele movimento do António Ferro, dos ranchos folclóricos e tal, toda aquela história do folclore. E os concursos das aldeias mais portuguesas, etc. Portanto, era nesse sentido tudo controlado pelo regime. Normalmente, as outras, da Pampilhosa da Serra, o tal sentimento da ligação a Lisboa. Curiosamente, a emigração era muito para Lisboa e pouco para Coimbra e quase nada para o Porto. Era mais para a zona de Lisboa, para as fábricas de cortiça. Muitos, muitos vão trabalhar para as fábricas de cortiça. Eu tive imensos familiares que foram para lá, tanto do lado da minha mãe como do meu pai. Muita gente da Beira, e depois alguns vão para a indústria hoteleira, ainda hoje têm restaurantes, tabernas, etc., na Cova da Piedade, que é gente daqui desta Serra, da Pampilhosa, de Arganil, Tábua, desta área aqui. P: Então vamos detalhar a sua experiência própria enquanto ativista antes do 25 de Abril. Para além dessa comissão de melhoramentos, ainda não teve participação sindical. Ainda estava a estudar? Ou seja, a sua participação associativa foi mais no pós 25 de Abril… Casimiro dos Santos: Sim, mas pronto, tínhamos as associações de estudantes, andava ali a UEC (União dos Estudantes Comunistas), isto na faculdade de Letras de Lisboa, quando já havia alguma coisita, semiclandestina. Já havia uma coisa no primeiro de Maio, por exemplo. Recordo-me bem que antes do 25 de Abril, eu estava lá em Lisboa, e festejava-se o primeiro de Maio. Havia aqueles movimentos estudantis contra a guerra colonial, etc. Manifestações que, na Praça do Chile, acabavam dispersas à bastonada e com cães. Assim como o primeiro de maio, normalmente participávamos aí e cheguei a ser uma vez levado para ir para ser identificado no governo civil. Fui apanhado lá no Martim Moniz, não consegui fugir e pirar-me, porque eu morava no Castelo de São Jorge, na casa de uma tia minha. E, portanto, fui apanhado a fugir numa das ruas, eu e outro. Lá fomos levados para o governo civil e identificados. E pronto, foi ali assim uma tarde/noite. P: Nesse período em que estava a estudar, fazia parte de alguma daquelas associações, tipo os cineclubes, que naquela altura surgiram, as cooperativas editorais? Casimiro dos Santos: Não cheguei a fazer parte, mas ia assistir a muitas coisas. Na faculdade havia Associação de Estudantes e era só através da Associação de Estudantes. Ainda cheguei a ser convidado para o orfeão, porque eu já tinha participado. Ainda fui lá e tal, mas depois não tinha tempo para essas coisas, porque eu o tempo livre aproveitava para fazer uns biscates, trabalhar e tal. E por isso a minha dupla pertença também como estudante trabalhador, quase sempre. No tempo anterior, eu aproveitava para trabalhar e trabalhei na Feira Popular. Havia sempre… para nos dar uns trocos, uns trabalhinhos extra que eu fazia, na Feira Popular .... Trabalhei numa fábrica de engarrafamento de vinhos, e de gins, etc. onde é hoje o Parque das Nações. Havia ali umas fábricas de vinhos, que eram comercializados, engarrafados e tal. Esses armazéns já não existem, que era o Caldeira Lds, e o outro grande rival, logo a seguir. Portanto, eu trabalhava nas férias, quase sempre ali, portanto, não tinha muito tempo para participar, mas ia assistir sempre que podia a coisas do cineclube, etc. A educação política passava muito por ver filmes e participar em debates sobre os próprios filmes, e participava sempre que podia. P: Para as associações de estudantes, não teve tempo? Casimiro dos Santos: Não, não tinha tempo. Eu não tinha tempo para estar na Associação de Estudantes. P: E no contexto de trabalho participou em alguma? Casimiro dos Santos: No contexto trabalhando também não, não, aí não estava. Estava mais na parte cultural das aldeias, etecetera, aí estava mais. No mundo estudantil, eu estava, trabalhando, apoiava, assistia, mas não me envolvia muito, mas estava ali assim, numa situação. Eu só estive dois anos antes do 25 de Abril, antes de ser mobilizado para a tropa, no início de 74. Portanto, fiz ali dois anos do curso de Filosofia e mudei para História depois. Quando vim da tropa. P: E essa participação nesse âmbito das comissões de melhoramentos começou quando? Casimiro dos Santos: Isso só com os meus 18 anos, um bocadinho antes do 25 de Abril, logo que eu fui para lá. Através dos conterrâneos, quando chego. Eu era dirigente da Casa do Concelho e, pronto, isso foi por influência familiar e por querer de alguma maneira participar naquela ideia da pertença à aldeia, ao mundo rural, ao mundo da Pampilhosa da Serra. P: Sentiu algum em algum momento algum episódio de repressão ou censura dessa atividade associativa? Casimiro dos Santos: Não, porque muitos deles eram da União Nacional. Eles eram da União Nacional, quase todos os dirigentes da casa do Concelho da Pampilhosa. O Marcelo Caetano chegou a ir lá fazer uma visita. Mas havia um trabalho subterrâneo, que os mais novos de nós fazíamos lá, de denúncia daquele mundo opressivo, que era a barragem de Santa Luzia produzir eletricidade e as aldeias não terem, etecetera. O Marcelo Caetano pertencia. Os pais dele eram do concelho da Pampilhosa da Serra e, portanto, ele chegava a vir lá fazer visitas oficiais, uma vez ou duas durante o tempo em que ele esteve como primeiro-ministro e ia fazendo promessas. Também lhe devia doer um bocado ver o concelho dele tão atrás em relação aos outros vizinhos e ver as aldeias com os fios da eletricidade que vinham para as fábricas da Covilhã e as aldeias viverem com a candeia de azeite ou petróleo. E, portanto, as aldeias começaram a ser eletrificadas precisamente no consulado de Marcelo Caetano. Ele fez as promessas e tal e com aquelas influências todas. Porque a coisa era quase feudal. A ditadura tinha o seu quê de feudalismo e aí a personalidade do Marcelo Caetano em relação a isso era, portanto, de ligação e de influência através das pessoas. Claro que muitos eram da União Nacional, mas elas estavam interessadas em ter algum progresso na terra, não só pelos lindos olhos dos camponeses, mas porque facilitava a comunicação, o comércio e, se calhar, a criação de mais valias. Até porque havia as resinas, havia as madeiras, começava o eucalipto e, portanto, as vias de comunicação eram essenciais, assim como a energia, portanto, não era pelos lindos olhos ou porque queriam desenvolver a terra. Queriam era fazer negócios com base nos produtos endógenos que lá tinham. As barragens, a energia elétrica, etc., era importante para eles. P: No período revolucionário houve vários movimentos de auto-organização, justamente para garantir saneamento básico. Isso aconteceu lá? Casimiro dos Santos: Ai já são as autarquias eleitas democraticamente. P: E essa Comissão de Melhoramentos ? Casimiro dos Santos: Essa comissão continuou, continua a existir, ainda existe, eu fui presidente da Assembleia Geral até ao último mandato lá. P: E a Comissão envolveu-se nalguns... Casimiro dos Santos: A Comissão envolveu-se e ainda hoje trabalha, vamos lá, quase como comissão de moradores. Trabalha com a autarquia, com a freguesia, com a Junta de Freguesia. P: Que é que se fez assim de importante nessa altura? Casimiro dos Santos: Isso foi muito importante. O poder autárquico fez com que as coisas básicas fossem construídas. O saneamento básico, a eletrificação, as estradinhas, todas alcatroadas e em bom estado. Portanto, as infraestruturas básicas estão lá: água, saneamento, etc. Embora a água não seja de grande qualidade, agora venderam aquilo uma empresa intermunicipal que é AP [Águas de Portugal]. Portanto, as câmaras desligaram-se, mas não foi só a Pampilhosa, foram muitas outras. Portanto, o negócio da água está agora a chegar lá. E muitas vezes foram as populações que, organizadas, elas próprias, fizeram a captação da água. Isto antes do 25 de Abril. Foi o caso de algumas aldeias que eu conheço, fizeram uma mina, fizeram uma vala, por iniciativa deles próprios, porque havia doenças endémicas como, por exemplo, tifo, por causa de não haver saneamento. Isso é que levou a que as próprias populações se organizassem. A população não era salazarista, nem nada, portanto, muito religiosos e tal. O Salazar é um Santo. Toda aquela propaganda baseada na religião católica. isso foi no país todo. Na zona de influência do operário e das Minas, a Igreja Católica não tinha, não tinha tanta audiência. Até que um dia chega lá um padre que vai beber uns copos para a taberna dos operários das minas e consegue levá-los até à Igreja. Faziam assim, tudo dependia da estratégia dos priores lá das aldeias, mas a igreja católica tinha uma influência extraordinária, enorme. Até porque era através da Igreja Católica que muitos jovens conseguiam ir estudar. Foi o meu caso. Eu fui estudar para o seminário de Coimbra, andei lá alguns anos e aquilo ao mesmo tempo também serviu pela negativa. Quer dizer, aquilo que se apanha de um lado, mas que depois também se reagem, não é, também nos forma. Não é só o que é bom que nos forma, aquilo que é mau também nos forma. No aspeto da rejeição, e ao ver as desigualdades com que a Igreja estava complacente, com a guerra colonial, etecetera. Portanto, a igreja era um apoio grande do regime, era um esteio muito forte do regime e isso ao mesmo tempo, fazia com que tanto o mundo operário como o mundo estudantil fizesse a nega ao regime e, portanto, o apoio ia diminuindo cada vez mais. Já naquela última fase do Marcelo Caetano, quando a guerra colonial se tornou um beco sem saída. Foi isso que acabou por levar ao 25 de abril. P: E movimentos como a JOC ou a LOC? Casimiro dos Santos: Não tinham expressão, nem havia Mocidade Portuguesa nem nada disso. Só na sede do concelho, aí é que havia qualquer coisa. Isso não tinha lá, não tinha expressão nenhuma, porque a população estava-se borrifando para essas coisas. Lá iam cumprindo o essencial: ir à missa ao sábado, mas os padres não eram bem vistos pelos operários. P: Quando é que começa efetivamente a sua participação sindical? Foi durante o período revolucionário? Casimiro dos Santos: Antes, quando trabalhava na segurança social, no sindicato da função pública. P: Isso foi quando? Casimiro dos Santos: Depois do 25 de Abril, ali na década de 70. E eu fiz a tropa em 74-75 e quando saí da tropa comecei a trabalhar e a estudar ao mesmo tempo. Eu trabalhava na Avenida dos Estados Unidos, em Lisboa, e ia à tarde para as aulas, à tardinha. Depois de sair do trabalho. Era delegado sindical na própria função pública. P: Mas foi já foi posteriormente àquele período mais exuberante do pós-revolução? Casimiro dos Santos: Estávamos já depois do 25 de Novembro. Eu saí da tropa sete dias depois do 25 de Novembro. Portanto, estive no 25 de Abril, fui para lá em Janeiro de 74, e aqui apanhei estes dois anos do PREC até ao 25 Novembro. Uma semana depois do 25 de Novembro, eles resolveram mandar-me embora, uma leva enorme de gente que estava lá, se calhar a estragar o ambiente que eles queriam ali. E foi aí que eu saí e disse: vou ter que ir trabalhar, não é? E fui trabalhar para a segurança social na altura, depois daquela parte da segurança social, transforma-se na naquilo que é a ARS. E eu fiz ali ainda uns quatro anos. Até acabar o curso, depois concorri e vim para o ensino, até agora. P: Nesse período de quatro anos em que esteve como delegado sindical na função pública, houve algum movimento importante? Casimiro dos Santos: Houve greves, algumas, por aumento de salários. Estávamos ali em 78, 79, 80… Houve uma ou duas greves com alguma expressão... P: Tem alguma memória marcante? Casimiro dos Santos: Recordo-me de uma greve por causa da integração da segurança social na função pública. Havia ali uma perda de regalias e, portanto, lutou-se pela manutenção de algumas das conquistas que os trabalhadores tinham feito. Mas depois a coisa lá se resolveu através do diálogo na altura do governo do PS, o Mário Soares, o primeiro e o segundo. Portanto, naquela fase transitória, 76, 77, 78.Por aí assim. Mas eu estava ainda a estudar e, portanto, às vezes desdobrava-me entre a faculdade e o trabalho. P: Depois começou a dar aulas, quando acabou o curso? Casimiro dos Santos: Sim P: Primeiro na margem sul do Tejo? Casimiro dos Santos: Sim, os primeiros 10 anos. P: E nessa altura foi delegado sindical do Sindicato de Professores? Casimiro dos Santos: Já estava lá, também, sim. P: Como é que foi? Quais foram as principais lutas e reivindicações desse período em que participou? Casimiro dos Santos: Aqueles movimentos dos professores, o estatuto da carreira do centro, principalmente aí. Mas recordo-me de que a principal foi o estatuto da carreira docente. Foi uma luta muito, muito comprida e muito dura. E continua, isso ainda não está resolvido. Resolveu-se, mas depois o estatuto foi sendo alterado. Foi sendo adulterado e ainda hoje, como se sabe. P: E para além de ser delegado sindical, teve outras funções, outras responsabilidades na estrutura sindical? Casimiro dos Santos: Não, sempre delegado sindical. P: Quando veio para cá também? Casimiro dos Santos: Aqui também. Eu não dava tanta importância ao sindicalismo na altura. Dava uma importância bastante grande, mas estava mais virado para a escola propriamente dita. Portanto, nunca quis ser dirigente sindical. Várias vezes fui convidado para listas para as direções sindicais, mas fiquei sempre como delegado sindical. Nunca quis participar num nível mais elevado. P: Mas dessa sua participação, qual é a perspetiva que tem sobre, por exemplo, o processo de construção da CGTP e o papel da CGTP na construção da democracia portuguesa? Casimiro dos Santos: Foi extremamente importante. A fundação da CGTP, em 1970, foi um momento importante no sindicalismo português, na liberdade sindical, que não existia até aí, mas que teve uma importância extraordinária com a fundação da CGTP. Recordo-me perfeitamente e acompanhei bem. Aquele início, já depois do 25 de Abril, a unidade, a unicidade, todo aquele debate que houve em torno, depois acabou por dar mau resultado, porque se criou a UGT dentro daquilo que foi um divisionismo. Na minha opinião, não é? Eu acompanhei isso sempre, esse processo. A adesão do sindicato dos professores. Portanto, depois criou-se, criaram-se muito sindicatos de professores, como sabem. Só aqui na região e nas escolas estão presentes uns quatro ou cinco, portanto. Esta divisão da classe não é benéfica e acaba por dividir os professores, às vezes em situações que não são fundamentais, outras vezes lutam por questiúnculas. Quando é mais importante, às vezes alguns não aderem às lutas mais importantes. Mas, portanto, aquilo que eu acho é que esta divisão sindical só favorece o patronato, digamos assim, neste caso o Ministério da Educação, que acaba por impor a sua política educativa sempre, seja qual for o poder. Daqueles dois partidos que lideram o poder, o bloco central, digamos assim. P: Outra questão mais transversal, acha que o movimento sindical foi importante para a dignificação das mulheres? Casimiro dos Santos: Houve demasiados constrangimentos à participação das mulheres. A questão das mulheres no mundo do trabalho, eu creio que ainda há uma mudança muito grande a fazer nas mentalidades. As mentalidades evoluem mais lentamente. E essa mudança das mentalidades, e se calhar fazer-se a nível tanto dos dirigentes sindicais como das próprias mulheres, que às vezes se retraem e não participam tanto como deviam participar. É um caminho muito grande para percorrer. Está no papel e o Estado cumpre. Mas no mundo do trabalho, muitas vezes as mulheres têm receio de participar. Eu li coisas incríveis sobre… aqui assim não, no mundo operário, das fábricas, a questão do assédio, etc., e o retraimento das próprias mulheres na participação na luta. Apesar de que quando as mulheres lutam, lutam, se calhar com mais força do que os homens. Elas iam para aqui, para o Pelourinho, com as crianças às vezes antes dos homens. Aqui elas são terríveis. Nas Minas da Panasqueira, por exemplo - e eu também conheço mais ou menos bem esse universo -, as mulheres, pela questão da maternidade, não podem trabalhar dentro das minas, isso foi uma conquista que muitas encaram com uma certa duplicidade: então a gente não pode lá trabalhar? Mas tínhamos direito ao trabalho... Mas isto passou-se na Inglaterra, quando os primeiros sindicatos lutaram para que as mulheres não trabalhassem. Não era por causa de uma questão do salário, o trabalho das mulheres nas minas era dos trabalhos mais perigosos e a radiação, isso provocava, por vezes... E conseguiu-se que os patrões não contratassem mulheres. No entanto, nas minas elas trabalhavam no exterior, estavam até em trabalhos mais perigosos, até onde apanhavam mais a silicose, que é a doença dos mineiros aqui na Panasqueira. Na lavaria, na correia, o trabalho da correia é dos meios mais doentios. A correia é um tapete rolante de borracha, correia, chamava a correia o nome comum. E tanto havia mulheres como crianças a trabalhar, umas das outras. Era mais um trabalho para miúdos e miúdas e mulheres do que para os adultos. Como elas estavam proibidas de ir lá dentro por causa das condições de trabalho, que não estava proibido mesmo durante o regime, durante a ditadura, trabalhavam fora. E em que consiste esse trabalho? Vai o minério em bruto de dentro da mina para fora, naquele tapete rolante, e as crianças e as mulheres estavam ali a escolher. Mas a poeira estava a entrar nos pulmões e portanto muitas mulheres chegavam aos 30 anos e já tinham silicose. Aquele trabalho era um suplemento. Assim, como aqui nas fábricas, elas também não faziam trabalhos em casa, que eram trabalhos de… eram as pegadoras de fios e certos trabalhos que se podia fazer em casa, é para aperfeiçoar o pano, que é também um trabalho muito perigoso porque elas acabavam levando com a poeira lá. Também apanhavam doenças respiratórias. A partir do momento em que há liberdade sindical, os sindicatos começam a falar disso e as mulheres começam a entrar nas direções e só aí é que começam a ganhar uma certa consciência. E havia coisas incríveis... as mulheres não descontavam aquele trabalho que elas faziam para as fábricas, não se descontava para a segurança social, portanto, elas acabavam por não ter reforma nenhuma depois de trabalharem dezenas de anos. Era o domestic system em pleno século XX ainda a funcionar, tal como hoje o teletrabalho. Eu comparo o domestic system do século XVIII ao teletrabalho atual, é a mesma coisa. Nós estamos a regredir em certos aspetos. E aqui as mulheres eram extremamente exploradas. Mas elas tinham consciência da exploração. E muitas vezes é que as condições subjetivas das próprias mulheres e dos homens dirigentes dos sindicatos, essas condições não permitiam que elas... e que ainda hoje isso acontece, que elas participem em pé de igualdade com os homens. No papel sim, mas na prática não. P: E, por exemplo, na associação de melhoramento, elas participavam? Casimiro dos Santos: Participavam naqueles trabalhos femininos, eram elas que estavam lá na cozinha a fazer a comidinha. Hoje já não se verifica, algumas já são dirigentes, mas geralmente, era sempre lá nos trabalhos mais tipicamente “femininos”. Acabavam por ser as cuidadoras, ainda isso se verifica em muitas associações, mas já há mulheres dirigentes. P: Na sua especificamente? Casimiro dos Santos: É mesmo nessa em que eu estive na Assembleia Geral. Há uma ou outra situação onde eu, onde eu também estou, que é a Casa do Povo de Casegas, que é aqui no Concelho da Covilhã, em que às vezes há mais mulheres a participar e a organizar coisas do que homens. E até em atividades culturais, num grupo de teatro onde há várias mulheres e expõem ali a sua criatividade, maior que a dos homens, muitas vezes, na arte… fantástico. Temos trabalhado ali muito com mulheres e homens, lado a lado. Sim, mas aí já é o que hoje se passa. Portanto, se formos lá mais para trás, vemo-las a fazer aqueles trabalhos tipicamente “femininos”, a irem fazer a comida e quando se trata de fazer o almoço, o convívio, etc. e lá estão elas a cozinhar. Mas hoje também há homens lá a participar e passamos às vezes a descascar batatas, a fazer os temperos, enfim, tudo... naquelas coisas que é convívio, cultura e que ao mesmo tempo participação conjunta da comunidade, na Casa do Povo de Casegas, que é onde eu hoje eu passo mais tempo. P: Quando é que começou a participar nessa associação? Casimiro dos Santos: Isso foi já nos anos 90 e aí foi a mulher que me levou para lá, e ela também lá está num grupo de teatro, etc. Fazemos lá umas coisitas, em termos culturais, agora estamos a ver se conseguimos arranjar termos lá uma biblioteca. Eu agora estou na parte mais ligada a isto, dos livros. Temos lá muitos livros, que precisam de ser catalogados, muitos livros antigos. Houve algumas doações de pessoas que deram a sua biblioteca quando morreram. Temos lá uma... aquilo já está bem atualizado. Agora andamos a arranjar a infraestrutura que foi a própria casa em si, já tinha 70 e tal anos, portas, janelas, telhado, estas coisas são importantes. E eu agora peguei lá na bibliotecazita, a ver se pomos aquilo como deve ser. Precisamos de umas estantes novas, porque aquelas que lá estão, estão a desconjuntar-se. Aquilo está terrível. Isto agora é o meu hobby. P: Era a casa do povo ainda criada pelo Estado Novo? Casimiro dos Santos: Sim, é de 1934. Funcionou como Instituição. P: Como é que foi a conversão dessas instituições, tipicamente corporativas, em instituições democráticas? Casimiro dos Santos: Mas isso já houve legislação que que tirou às Casas do Povo aquelas competências de segurança social que elas tinham antes. Portanto, foram integradas na segurança social. Algumas morreram ali. Outras, que tinham já alguma validade, algumas outras funções, valências sociais e associativas, recreativas, continuaram. Foi o que aconteceu com esta. Deixou de ser financiada pela segurança social, pronto, mas manteve-se como associação. E com o mesmo nome, Casa do Povo. E, entretanto, conseguiu o estatuto de instituição de utilidade pública e mantém-se agora, como qualquer associação. Aqui a Covilhã tem um movimento associativo incrível. E porquê? Por uma questão educativa e de formação, os dirigentes associativos sabiam muito bem que os operários só podiam ganhar consciência social e alguma autonomia se tivessem leitura. Esta leitura é fundamental. Algumas das associações aqui têm ótimas bibliotecas, mesmo com livros que a ditadura, o regime não... Mas estavam lá e eram lidos: autores como o Aquilino, o Fernando Namora, os neorrealistas... E isto era muito importante porque não havia outra forma, portanto os operários quando acabavam a quarta classe iam para a fábrica trabalhar, havia logo ali trabalho e a maioria não ia estudar, como sabemos. E o associativismo aqui foi uma escola importantíssima. Foi a segunda escola que eles tinham e a leitura era extremamente importante e formou muita gente. Os dirigentes sabiam isso muito bem. Alguns desses dirigentes, uma das preocupações fundamentais era logo uma biblioteca, para lá do teatro, dos saraus, da música, da dança, das filarmónicas...A Casa do Povo tinha uma filarmónica, essa lá de Casegas, como quase todas as associações por aí, isso foi extremamente importante. P: E tem ideia se antes, não sei como é a transmissão da Memória agora para os novos ativistas, mas tem ideia se, antes, a Casa do Povo, antes do 25 de Abril, estava ideologicamente completamente controlada pelo regime, ou se também era aproveitada para a consciencialização? Casimiro dos Santos: Já ia sendo aproveitada por muitos estudantes, gente mais nova que ali a partir dos anos 50/60 começou a fazer atividades. E houve um grupo teatro que se forma, leitura, debates, visitas, excursões, etc. E tudo isso acaba por, a partir dos anos 60 com mais força, 70 e mesmo depois do 25 de Abril, continuaram... P: Há uma certa continuidade? Casimiro dos Santos: Há uma certa continuidade, mas atenção, eu recordo-me de que muitas destas bibliotecas no início tinham livros do regime, os discursos do Salazar e aqueles livrinhos que o regime aconselhava. Estava lá isso tudo, as obras do regime, mas começam a vir outras e as direções que se vão sucedendo. Muitos antigos dirigentes sindicais dos anos 20 e 30, alguns que vieram do anarco-sindicalismo, eram dirigentes associativos aqui mais tarde, nos anos 40. Eu por acaso encontrei numa pesquisa que fiz aqui, um dos dirigentes associativos mais importantes aqui, o José Caetano, tinha sido dirigente anarcosindicalista. E, portanto, era uma pessoa com muito prestígio que acabou nas associações. E ainda, numa das greves dos anos 40, a pedido do regime, a pedido do Sindicato Nacional, conseguem convencer o José Caetano a assinar um manifesto para que a greve acabe. A greve também estava quase num beco sem saída, portanto, não se sabia bem o que é que ia ali surgir, mais repressão ainda... Eles chegaram à conclusão de que o melhor era parar e acreditar nas promessas do regime, do Sindicato Nacional. Por sua vez, o dirigente do Sindicato Nacional também tinha sido dirigente anarcosindicalista, portanto, está a ver o percurso dos anarco-sindicalista… Seria interessante estudar aquilo bem, quase todos acabam nos sindicatos nacionais. O José Caetano não, foi para o movimento associativo e ali continua. Digamos assim, aquela vertente educativa que também vem do anarquismo e vai continuar no associativismo. Isso foi uma escola importantíssima aqui na terra e no Concelho em geral, se calhar no país todo, mas eu conheci melhor esta região. Em Almada, também, atenção, também tem muito associativismo, que eu também conheci um bocadito, dei aulas na Cova da Piedade, na Caparica, no Seixal. P: Para além desta participação associativa, de que já falámos, também assumiu cargos políticos nas autarquias? Há alguma relação entre esta propensão para o movimento associativo e para assumir cargos públicos? Casimiro dos Santos: Quer queiramos quer não, se nós estamos, se queremos participar de alguma maneira, cumprir alguns objetivos que temos, não só pessoais, mas também ideológicos, temos que participar em associações ou mesmo na questão política. Transformar o mundo e não é só ficar em casa a ler um livro, também tem que se ter alguma prática. E isso, seja na política, seja no associativismo, quase sem darmos por ela, estamos lá, quase como genética. P: Mas a ligação tem a ver tem a ver com.... Casimiro dos Santos: A ligação tem a ver com a ligação ao povo, tem a ver com isso. Quer queiramos quer não, há objetivos comuns. Normalmente , quer dizer, a parte cultural, tem a ver com a minha participação. No meu caso concreto, o aspeto da cultura é o que me interessa mais. E ao fim ao cabo, a questão da qualidade de vida das pessoas, que também passa pela participação em associações, em atividades culturais, etc. Portanto, tudo isso se conflui para essa melhoria da qualidade de vida da população. P: Existem muitos casos, não é? Até se costuma dizer que muitos dos dirigentes autárquicos do pós 25 de Abril tinham feito a escola da democracia nas coletividades, que há uma relação muito próxima entre a vida associativa e a participação, sobretudo nas autarquias. Há bocado falávamos da Comissão de Melhoramentos e que o poder autárquico também foi muito importante para as questões das infraestruturas. Como é que essa relação se concretizou, entre as comissões de melhoramentos e as novas autarquias do poder local democrático? Casimiro dos Santos: Essas comissões de melhoramentos acabaram por assumir o papel de associações e muitas vezes associações de moradores, que estão viradas para as condições concretas, infraestruturas, os esgotos, o muro, a ponte que falta ali, as vias de comunicação, o abastecimento de água, etc. Mas também estão viradas para essa qualidade de vida, essas atividades culturais, daí as filarmónicas, etc. E as autarquias aí podem de alguma maneira colaborar com essas instituições, porque, digamos assim, são também uma representação da vida social. Portanto, o poder autárquico hoje também não pode ignorar que as associações estão ali. Porque as associações são também uma representação popular. E o poder autárquico, como estrutura política, com outras capacidades, financiamento, etc., tem que ter essa ligação às associações. Muitas vezes as associações estão mais viradas para o aspeto cultural e recreativo. Porquê? Porque as questões do saneamento básico, as questões das infraestruturas já estão mais ou menos resolvidas, por vezes, outras vezes tem que haver um trabalho contínuo de manutenção. Mas as associações são fundamentais para manter alguma vida, que vida não é só o pão, digamos assim, é também a cultura. E essa parte cultural e recreativa são as associações a todos os níveis, as associações culturais, os reformados, os grupos de teatro, o grupo coral, a Filarmónica, etc. E algumas das associações têm essas valências todas, como é o caso das aldeias. Nas freguesias rurais, normalmente, algumas que conseguem ter uma banda e um grupo de teatro. Outras ainda têm um grupo de caminheiros. E outras defendem o ambiente também, associações de defesa do ambiente e aqui nós temos várias dessas, os Caminheiros da Rosa Negra, por exemplo. É a natureza, o desporto...os caminheiros da Gardunha, os caminheiros de Casegas, que lá fundámos. Eu também estive na origem dos Caminheiros de Casegas. Organizamos caminhadas por aquela Serra, a travessia da Serra do Açor, enfim, uma série de atividades. E fazemos caminhadas, já temos ido até aos Pirenéus, por exemplo, ou até às Astúrias, ou até… Ainda não fomos mais Longe, ainda não fizemos nenhuma aos Andes, mas gostávamos de lá ir. P: Já percebi que a sua participação associativa é variada. Já esteve em vários tipos de instituição ao longo do tempo. De que forma é que acha que essa participação associativa modelou a sua vida a nível pessoal? Casimiro dos Santos: Eu acho que sou o resultado dessas experiências todas, de alguma maneira. Os meus gostos levaram-me a participar nas coisas, e as coisas também me influenciam a mim. As atividades em que participo de alguma maneira também me formam. Não sou só eu que, de alguma maneira, ao tomar a iniciativa de fazermos uma atividade, posso influenciar. Mas a própria atividade também me influencia e o convívio, a descoberta, tudo isso acaba por ter influência na nossa vida. Quer queiramos quer não, há também um retorno. Para nós, é de satisfação, mas não só de satisfação, também aprendemos, estamos sempre a aprender e com toda a gente. P: Tenho aqui um conjunto de questões em torno da identidade e da Memória. Penso que, como historiador, também deve ter estas preocupações. A minha primeira pergunta era: costuma-se dizer que esta é uma região muito marcada pela indústria, que a Covilhã tem uma forte tradição operária. De que forma considera que este contexto marcou e marca o associativismo em geral? Casimiro dos Santos: É como disse, os operários, não tendo outra alternativa para se cultivarem do ponto de vista da leitura, etc., e das atividades recreativas, que não existiam se eles não se associassem. E, portanto, este mundo gregário que aqui se desenvolve, a fábrica, leva-os ao longo do tempo a criarem associações, não só laborais mas também sindicais, de profissão, etc. Mas levam-nos também, na pertença ao bairro, à fábrica, a criar associações recreativas e de lazer e essa parte é extremamente importante. Eu acho que a própria cidade, ao ter toda esta multidão dos operários... quer dizer, a tradição gregária e de associação e associativismo, ela também já viria lá muito atrás. Já viria da Idade Média, com certeza, aqui na Covilhã acho que já vem da Idade Média, quando tínhamos algumas profissões por ruas, como sabemos, como se organizava a coisa, o mundo do trabalho medieval, há aí algumas ruas com nomes ligados mais à indústria de lanifícios, que ao longo das ribeiras... Isso já existe desde a Idade Média. No fundo há um crescimento quantitativo e qualitativo, depois, até chegarmos ao associativismo moderno, já com a revolução industrial. Estas associações, algumas nascem no início do século XX, quando a indústria daqui dá um pulo muito grande, não é? Muitas destas associações que estão aí começam no início do século, anos 20 e 30, por aí. Nos anos 30, muitas delas já existiam, mas elas continuam a ter uma vida.... Também era o único sítio onde os operários, enfim, se podiam libertar um pouco desta opressão da fábrica. Do mundo opressor que é o trabalho, com horários e regras rígidas. E as muitas horas passadas ali, no fim de semana, o domingo não era para ir à missa. No mundo operário não é isso, o mundo operário precisa de outras coisas menos, menos... estar a ouvir ainda a alienação da Igreja Católica, que só é capaz de dizer: sofrei, porque depois temos uma outra vida... Com o tempo da taberna, e para os tirar do álcool da taberna. Porque a vida dos pobres era muito dura e por vezes não lhes dava futuro de dignidade. E alguma da dignidade é encontrada nestas associações, que tinham outros objetivos e onde não se cultivava o álcool. O alcoolismo é uma pecha enorme no operariado, que não tinha uma... Isso era terrível. E isto, de alguma maneira, conseguiu retirá-los da taberna. P: E acha que hoje em dia, já com todo o processo de desindustrialização, encerramento de várias empresas e também alguma transformação do tecido social, acha que essa memória ainda marca o movimento associativo? Essa memória, essa tradição operária? Casimiro dos Santos: Ainda há algo. Ainda alguma dessa memória está viva. As associações de reformados e tal cultivam muito isso. Mas depois há outras associações que já estão mais viradas para o desporto e para a parte recreativa, etc. Mas continuam na mesma, desporto, jogos, etc. Continuam ainda a cumprir o seu papel. Embora a ligação tão direta ao operariado, à fábrica, já não é tão grande. Até porque as fábricas estão a desaparecer. A sociedade está-se a transformar, portanto, nós temos uma cidade de serviços. Já não é tão gregária, portanto, os trabalhadores estão muito mais… O mundo do trabalho está muito mais fragmentado e, portanto, esse gregarismo operário que existia aqui até à desindustrialização já não é tão grande. As associações vivem com muitas dificuldades, atenção. De alguma maneira, o declínio do gregarismo do mundo operário está-se a refletir no associativismo. O associativismo está a atravessar momentos maus. E, portanto, cultivando a Memória ainda se vai conseguindo alguma coisa, mas muito pouco. Há associações em crise. P: Mas acha que as associações são um espaço privilegiado para a transmissão da Memória? Ou seja, os ativistas mais velhos passam este legado de anos de resistência? Casimiro dos Santos: Eu não sei como é que vai ser o futuro, nem sei se a juventude estará muito recetiva, com o individualismo dominante. Há, entre a Juventude... hoje, os mais jovens não são tão gregários. A vida e leva-os a serem mais gregários na escola, mas depois, a partir de uma certa altura, com a fragmentação individualista, vá lá, eu vou dizer isto, do mundo do trabalho, da vida, eles acabam por não ser tão participativos e há direções que não se conseguem renovar com jovens. Isso é um dos problemas que está a encontrar-se aqui no momento associativo. E isso é uma crise que se está a passar. Não sei qual será o futuro, mas não vejo muitos jovens nas direções atuais. Portanto, passar o testemunho dos maiores para os mais novos está a ser difícil em muitas associações. P: Como é que vê, então, o futuro do movimento associativo? Casimiro dos Santos: Não sei como é que vai ser, mas não o vejo muito risonho. Eu acho que estamos a passar uma crise, uma crise muito grande. Não sei como é que se vai ultrapassar essa crise. Mas nós somos seres sociais e eu estou convencido que se vão encontrar outras formas de fazer isso. Vou-lhe dar um exemplo: nós, lá na Casa do Povo, tínhamos uma banda, uma banda grande, tinha uns 30 ou 40 membros. E havia uma escola de música. A banda tinha fundado uma escola de música. A banda tem cento e tal anos. Esteve parada durante uns tempos, durante a ditadura, depois recomeçou nos anos sessenta. E há poucos anos, pela crise demográfica, porque naquela aldeia - já não nasce uma criança há vários anos, é uma freguesia que só tem gente idosa - muitos dos jovens, dos últimos jovens que lá estavam e que aprenderam música e a tocar um instrumento naquela escola, resolveram, uma vez que já não havia gente suficiente para manter uma banda de 30 elementos, eles formaram uma Street Band, 7 ou 8, muito interessados, pegaram em si próprios, discutiram o assunto e formaram uma street band. E hoje andam por aí, nas Festas, fazem animação de rua. Já não é a banda clássica, mas eles encontram uma forma de ultrapassar isso. Portanto, através da imaginação deles, eu assisti a algumas das reuniões que eles fizeram e vi como eles tiveram a imaginação suficiente para sobreviver e fazer sobreviver a ideia de música de outra forma. Portanto, mantêm-se. Muitas vezes à de encontrar-se, mas no meio disto tudo algumas vão acabar. Eu não sei, mas espero que haja imaginação para conseguir ultrapassar estas crises. P: E o movimento sindical, especificamente nas questões da memória, por exemplo, aqui houve greves muito marcantes, a greve dos mil escudos, a greve de 1981, essa Memória permanece, ou seja, aqui no meio sindical continua-se a falar nisso, continua-se a contra essa história? Casimiro dos Santos: Sim, sim, sim, sim, sim. Eu, para as minhas salas, tinha sempre um convidado, que era o Luís garra. Muitas vezes ia às minhas aulas contar a história da greve dos 1000 escudos. E isso, este testemunho, não é só no movimento sindical, mas na comunidade, e neste caso os sindicatos têm alguma coisa a contar também nas escolas, também depende dos professores, dos professores estarem mais ou menos sensibilizados para convidar gente do mundo do trabalho para ir lá falar do trabalho. Ou, até, os alunos irem à fábrica ou ao sindicato conversar com os dirigentes sindicais. Eu acho que isso é muito importante, até para dar um substrato, não só de Memória, mas afetivo e ideológico, ao movimento sindical. O movimento sindical não é só a luta de hoje, é também a luta de amanhã, a luta que é necessário travar amanhã e também tem a ver com as lutas do passado, não é? E é este encadear do tempo que nos projeta para frente. Eu acho que isso, os jovens, os trabalhadores mais novos, muitas vezes não conhecem, por exemplo, essa greve dos mil escudos. Ficam admirados. O quê? vocês fizeram uma greve e tiveram parados tanto tempo para atingir mil escudos? Conseguiram isso, o aumento dos mil escudos? E que é que isso deu como resultado? Ficam muito admirados porque não sabem que os avós deles não tinham frigorífico. E aqueles 1000 escudos permitiram comprar um frigorífico, dar uma dignidade básica à vida das pessoas, dos operários que tinham uma vida muito difícil, estavam sempre no limiar, no fio da navalha da sobrevivência. Aqui foi uma exploração terrível. P: E para além dessa questão da Memória, a questão do internacionalismo. Acha que o movimento sindical e iniciativas, por exemplo, como o primeiro de Maio, que são comemoradas à escala Internacional, os congressos nacionais e internacionais, acha que criam de facto assim, ao nível das bases, uma sensação de identidade entre os trabalhadores do país e à escala Internacional? Casimiro dos Santos: Sim, sim, isso é fundamental. Se não houver esse apelo à Memória de há 100 anos atrás, essa identidade do primeiro de Maio, festejar o primeiro de Maio, isso é fundamental para manter essa identidade e ao mesmo tempo também projetá-la no futuro. Portanto, nós não somos só presente, nós somos o fruto de um movimento também. A sociedade que hoje existe, e eu penso que isso é muito importante, que se mantenha sempre, os congressos e nos Congressos apelar-se a esse culto da Memória, que é muito importante. Porque, muitas vezes, os trabalhadores mais jovens… Nós sabemos que a nossa disciplina de história leva muito pontapé nos programas, nos currículos, muitas vezes é chutada para ter cada vez menos tempo e tal. Portanto, isso não é feito por acaso e às vezes os jovens não saem da escola com as ideias mais ou menos esquematizadas do ponto de vista da evolução histórica humana. No fundo, que lhes permita compreender o mundo em que vivem. Eu acho que os sindicatos e toda esta festa que é o primeiro Maio, as comemorações do 25 de Abril, tudo isto fará, de alguma maneira, parte de uma formação geral, que é construção da Memória identitária de uma comunidade e de uma classe social, os trabalhadores. No fundo, eles acabam de alguma maneira por ir bebendo estas… a comemorar também se aprende e as comemorações têm esse objetivo. Países onde há pouca história, por exemplo, países novos como os Estados Unidos, eles vão buscar tudo, todos os bocadinhos da Memória, ainda que para nós não sejam assim muito significativos, para eles são, porque a identidade constrói-se com estes pedacinhos todos da memória coletiva. Isso é muito importante. Não se pode, não se pode deixar de comemorar essas datas importantes. -
Isabel Freitas