Itens
Tema é exactamente
Resistência política
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Sebastião Augusto Conceição Mota
P: Antes de falarmos sobre a experiência associativa, ia lhe pedir alguns dados biográficos para também termos a noção da sua história de vida e porque este estudo também permite fazer uma caracterização do tipo de pessoas que se dedicam às associações. Então ia-lhe pedir o seu nome todo. Sebastião Mota: Sebastião Augusto Conceição Mota. P: A data de Nascimento? Sebastião Mota: 20 de março de 1944. P: E o local? Sebastião Mota: Marinha grande. Engenho, Marinha grande. P: Estudou aqui na Marinha Grande? Sebastião Mota: Segundo grau só. Comecei a trabalhar aos 11 anos. P: Começou a trabalhar no quê? Sebastião Mota: No vidro, aprender a pintura do vidro. Posteriormente lapidação e muito posteriormente a pintura outra vez. Foi como terminei, foi com a pintura. P: E os seus pais também trabalhavam na indústria vidreira? Sebastião Mota: Sim, o meu pai era lapidário. P: E a sua mãe? Sebastião Mota: A minha mãe, por força das circunstâncias, o meu pai morreu tinha eu 5 anos, teve de se empregar na indústria vidreira, era roçadeira. Toda a minha família era ligada ao vidro, não havia outra forma. P: A mulher também, casou-se? Sebastião Mota: Sim, sim. Também trabalhou na indústria vidreira. Trabalhou comigo, trabalhava comigo nos lapidários. P: E filhos? Sebastião Mota: Dois, uma filha de 50 e um filho de 46. P: E o que é que eles fazem? Sebastião Mota: Ela é comercial numa multinacional austríaca que está aqui na Marinha grande, está na secção comercial. Ele é gerente de um bar. P: Qual foi a escolaridade que eles fizeram? Sebastião Mota: Ela, o 12º, e depois teve que, por dificuldades... Nós na altura, eu trabalhava mais a mãe na Ivima, chegávamos ao fim do mês, não recebíamos. E por força das circunstâncias, ela teve que ir trabalhar também coitadinha. E depois tirou inglês, alemão, espanhol. E daí ter conseguido o emprego que posteriormente, conseguiu. Mas foi à força dela. P: E o filho também fez o 12º ano? Sebastião Mota: Fez. P: Viveu sempre aqui na Marinha Grande? Sebastião Mota: Olhe, eu costumo dizer minha Senhora, nascido, criado e batizado, fui à guerra e vim, durmo no quarto onde nasci. Que esta é a verdade, verdadinha. P: Foi à guerra colonial? Sebastião Mota: Fui, à Guiné. P: Tem alguma filiação partidária? Sebastião Mota: Tenho, PCP. Eu era simpatizante antes, daí fazer parte das listas do sindicato Vidreiro antes do 25 de Abril, que foram vetadas pelo Presidente da Câmara. E quando se deu o 25 de Abril, entrei logo para o Sindicato como dirigente sindical e para o partido como é óbvio. P: E religião, tem alguma religião? Sebastião Mota: Tenho que ser católico porque sou batizado, mas não sou praticante, nunca fui. P: Muito bem, então estava-me a dizer que participou nas listas do sindicato Vidreiro, ainda antes do 25 de Abril, teve alguma outra participação associativa antes disso? Sebastião Mota: Sim, sim, tinha. Na minha coletividade de sempre, de que o meu pai foi fundador, o Império, o Sport Império Marinhense. P: O que é que o seu pai contava desse período da Fundação? Sebastião Mota: Não me lembro. Então ele morreu eu tinha 5 anos. Lembro-me de ir com ele à primeira sede do Império, que era junto ao parque do Engenho e da minha casa, mas tenho muito pouca ideia da minha infância com o meu pai. P: E quando é que começou a participar no Império? Sebastião Mota: Olhe, começámos a jogar, tínhamos uma equipazinha de pingue-pongue de juvenis. Naquela altura, não é só agora é que há crises diretivas, houve tamanha crise diretiva que fecharam a coletividade. E eu lembro-me perfeitamente de ter 15 anos e ir a um diretor e pedir a chave para abrir aquilo para irmos jogar Ping-pong. E já tínhamos uma televisão e à noite abríamos, ia eu abrir. Porque a minha avó vivia mesmo pegada à coletividade e eu ia abrir aquilo para as velhotas irem ver televisão. Foi aí que começou. Depois houve direções, eu ainda estive na direção antes de ir para a tropa, numa ou duas direções. Depois, quando vim da guerra, assumi logo, fui logo posto em Presidente. E depois vêm aqueles anos de 69 com as eleições do Arlindo Vicente. Era o Arlindo Vicente e era o Humberto Delgado. E depois veio o Congresso de Aveiro de 73, em que eu participei também, mas isso... As reuniões do MDP-CDE, na Marinha, eram feitas em duas coletividades, era no Operário e no Império, porque mais ninguém dava o peito às balas. E lá no meu lugar, no dito Engenho, havia um movimento de rapazes que eram contestatários ao regime, mais velhos do que eu, mas eu cheguei a acompanhá-los. E há uma altura que vão até uma freguesia do Concelho de Leiria, que era Amor, que é aqui ao lado da Marinha distribuir propaganda do MDP CDE à saída da Igreja de Amor. O Padre [anonimizado] telefonou à Pide e foi tudo preso. Eu não fui preso, eu era dos mais pequenitos, fugi lá pelo meio das terras. Mas houve dois que foram passar ainda uns meses valentes a Caxias, essencialmente a Caxias. E pronto, a partir daí o bichinho mordeu e dava gozo na altura nós cedermos o Império ao MDP-CDE, porque sabíamos que tínhamos a PIDE à perna, mas tínhamos que fazer um documento, assinado por todos os elementos da direção para o Governo civil para permitir, dizer que era da nossa inteira responsabilidade a cedência da coletividade. O nosso salão já era enormíssimo. Mas não se podiam invocar determinadas palavras. Eles davam-nos uma lista das palavras que não podiam ser ditas. Os oradores que iam ao palco não podiam usar aquilo. P: Que tipo de palavras? Lembra de algumas? Sebastião Mota: Não me lembro, aquilo já era muita areia para a minha camioneta. Sei que o Doutor Vareda, que era líder daqui, mais o Doutor Vasco da Gama Fernandes, que eram os líderes do MDP/CDE e o Doutor António José Guarda Ribeiro e um economista de Ourém [refere-se a Sérgio Ribeiro], esse ainda é vivo. Esse tinha uma fluência do discurso que era um espetáculo ouvi-lo. E a gente dizia: Olha, se você vão falar de fora deste âmbito, portanto, podem falar de tudo, mas estas palavras não podem ser invocadas. Pronto, eles eram advogados, só o Sérgio Ribeiro de Ourém é que era economista, e conseguiam dar curvas àquilo tudo. Mas mesmo assim o Império, ainda antes do 25 de Abril era perseguido pela PIDE. Agora vou me reportar para o sindicato. P: Mas não quer explorar mais aqui a questão do Império? Sebastião Mota: Sim, eu ia falar precisamente do Império, na cedência do Império ao sindicato, numa das greves que não é nada falada. O sindicato antes do 25 de Abril já lá tinha dois dirigentes filiados do Partido Comunista infiltrados. Um agora está muito mal no hospital, que era o [anonimizado] e era o [anonimizado]. E estavam a negociar um contrato em Lisboa e pediam 100 escudos de aumento por dia, per capita. E aquilo era.... como deve imaginar. O sindicato fazia plenários na sede do sindicato, que era no centro da Marinha, aquilo dava para cem, cento e poucas pessoas e vinha a polícia de choque, quem tivesse a biqueira dos sapatos fora do arrebate do sindicato, pimba. E não deixavam ali parar ninguém. Tomámos uma decisão, tomaram eles: Vamos é telefonar para o Presidente do Império – nunca mais me esquece quem era, era o [anonimizado] – se podemos fazer lá, ir daqui para Império. E foi. Minha Senhora, eu não estou a puxar nada a brasa à minha sardinha por ser do Império, é que era a única que abria a porta era o Império. Era o Império e o Operário. As outras, pronto. Aqui a Comeira não existia. P: Essa greve foi em que ano? Sebastião Mota: 74. 5 semanas antes do 25 de Abril. Então vamos para a sede do Império, começa-se a constar, pimba, pimba, contactos, não havia telemóveis, agora mobilizações, sabe melhor que eu, são fáceis. Começa-se a falar, a falar... Tivemos que abrir os portões laterais, não cabia tanta gente no Império. E os gajos da PIDE que estavam lá infiltrados começaram a temer as consequências e chamaram reforços. Chamaram reforços, mas isso não obstou que se fosse avante com uma proposta.... Há um indivíduo que ainda está vivo [anonimizado]. Sobe a uma escada de alumínio que estava encostada a uma das paredes, porque andavam a ornamentar o salão para os bailes de Carnaval, e grita: Vamos para greve, amanhã ninguém pega no trabalho às 8h – Não foi a mesa, mas eu penso que aquilo já estava ensaiado – Amanhã, às 8 da manhã, ninguém pega ao trabalho. Votação por aclamação. Saímos do Império, uns em alta correria, outros não sabiam, no lugar de irem para a Marinha iam para o lado da Vieira, porque a confusão cá fora estava instalada pela polícia de choque. O resultado que se esperava, no outro dia nas fábricas ninguém pegou o trabalho. Onde eu trabalhava, na Crisal, houve um ou dois que fizeram a tentativa de ligar os engenhos lapidários, porque aquilo eram engenhos, motores individuais. Parou tudo, fomos às Mulheres da roça, parou-se o forno, pararam as fábricas todas, começaram a mandar emissários. Da parte da tarde, o calcanhar de Aquiles era o setor da garrafaria, que é este que está aí ainda hoje próspero, e de que maneira, mas eram três da tarde, estava tudo completamente paralisado, tudo. E a polícia de choque vem de Lisboa, vem o capitão [anonimizado] para aqui dirigir isso, nunca mais me esqueço. A partir daí foi recolheres obrigatórios, perseguições, pancadaria. E na madrugada de sexta para sábado, já de madrugada, a polícia de choque vai-se embora. Soubemos que tinha havido um movimento dos capitães das Caldas para Lisboa. A polícia de choque foi daqui da Marinha atrás deles. Porque no dia anterior, até determinada hora do dia, nós conseguíamos mandar telegramas de apoio para a Corporação da Indústria para Lisboa, a apoiar a Comissão negociadora sindical. Cotizávamo-nos nas fábricas, mandávamos os garotos com textos escritos. O gajo da estação dos Correios da Marinha alertou as autoridades. Pronto é tudo cortado e no sábado de manhã eram para aí 10 da manhã recebemos a notícia que tínhamos levado um aumento de 60 escudos per capita para toda a gente exceto, repare nisto, exceto, para as crianças de 12 anos e 13, que levaram 50%, 30 escudos. A partir dos 14 anos, já éramos homens adultos. Toda a gente levou 60 escudos. Isto é um introito um bocado longo para a tal participação do Império. Se não fosse o Império, isto não acontecia. Não havia hipótese de reunir as pessoas. E foi a partir daí, do Império. Depois veio o 25 de Abril e pronto, foi tudo muito.... P: Mas diga-me uma coisa, neste processo, quer na reabertura do Império, quer na cedência do Império para o sindicato, na organização da greve, qual é que foi a participação das Mulheres? Sebastião Mota: As mulheres a nível da direção nessa altura era zero, não havia mulher nenhuma. Agora, a nível de organização de fábrica, elas tinham muita força. Na organização de fábrica não havia as células como há agora. Antigamente, podia haver meia dúzia de mulheres mais ligadas ao PCP, mas em termos de organização não havia, aquilo andava um bocado desgarrado. Mas notou-se, nesta luta que nos levou a esse aumento, quem teve, pelo menos na fábrica onde eu trabalhava, na Crisal, a preponderância, quem foi ao forno mandar parar os homens do forno foram de facto as mulheres, que subiram as escadarias: Ninguém trabalha, estamos em greve - e pronto, eram aqueles gritos. Ali a preponderância das mulheres foi muito importante. P: Elas também receberam um aumento de 60 escudos? Sebastião Mota: Tudo igual, minha querida per capita. P: Mas quanto é que elas ganhavam? Ganhavam o mesmo que os homens? Sebastião Mota: Não, não, ganhavam muito menos e eu era para trazer a tabela número 12 do Ministério das Corporações, que eu tenho lá guardada religiosamente. Tem isso tudo definido, elas ganhavam muito menos. Depois, com o andar do tempo é que nas profissões de pintura, por exemplo. Sebastião Mota: Por exemplo, eu trabalhava junto a quatro senhoras. Não havia quadro de idades nas categorias nem havia nada e as mulheres naturalmente eram todas deixadas para trás. Porque os homens é que, no conceito dos industriais, os homens é que eram produtivos. Mas havia e há, cada vez há mais, profissões em que as mulheres ainda produzem mais que os homens, como é óbvio. E partir daí, voltando ao Império. O Império foi... lutei e tenho lutado. Eu parece-me, parece-me não, de certeza absoluta, que terminei faz amanhã 15 dias, a minha colaboração como dirigente do Império. Porque eu fui agora nos últimos anos, muitos anos, Presidente da Assembleia Geral. Muitos problemas, à beira de encerrar, à beira disto, à beira daquilo, felizmente resolveu-se a semana passada, com a eleição de uma nova direção. E eu estou cansado porque já venci quatro cancros, uma operação ao Coração. Vou fazer 78 anos e há noite já estou bem é no meu cantinho, a ler, a ouvir música, e não a andar em confusões. Mas amanhã ainda tenho uma reunião porque o Presidente, lá está, quer pedir-me uma opinião acerca de um berbicacho que temos e eu vou ver se colaboro com ele. Colaboro sempre, agora estar efetivamente ali, porque também sou o Presidente da Assembleia Geral dos Reformados, da ASURPI aqui da Marinha, e também estava no Conselho Pedagógico da Universidade Sénior, mas pedi escusa. Mas tive o cuidado de indicar dois nomes que foram aprovados e que são duas excelentes pessoas, com licenciaturas, e que não me souberam dizer que não. Porque eu passei muito. Além do Império, foi o sindicato e os reformados. P: Então, e entrou no sindicato em que ano? Sebastião Mota: Em 74. Mas antes já tínhamos reuniões e clandestinas. Joana Dias Pereira: Como é que era? Quando é que começou a participar nessas reuniões? Sebastião Mota_ Foi logo a seguir a eu vir da Guerra. Não, foi depois, foi para aí em 68. Talvez em 68. Eu lembro-me perfeitamente das eleições de 69, da campanha. Depois tenho mais nítido é o Congresso de Aveiro, de andar a correr na célebre Avenida Lourenço Peixinho, isso é que não me esqueço. P: Em que condição é que participou no Congresso de Aveiro? Sebastião Mota: Assistente, não fui delegado, não fui nada. Fomos cinco amigos que fomos daqui de carro, tivemos de fugir para a Costa Nova e tivemos de dormir na Costa Nova, dentro do carro. As estradas estavam todas bloqueadas. Foi muito, olhe deu enquanto deu, enquanto eu pude. Depois com a história das doenças, é que foram dois na bexiga e extração total da próstata e agora, passado quase quatro anos, há dois anos atrás, foi-me detetado um novo tumor. Tive que ir fazer 35 sessões de radioterapia. A radioterapia manda uma pessoa abaixo. Até aqui ao cérebro/computador, vai buscar... Por acaso hoje está a funcionar bem. P: Então diga-me lá, mas disse-me que tinha participado numa direção do sindicato ainda antes do 25 de Abril? Sebastião Mota: Não, antes do 25 de Abril nunca participei. Participei em eleições. A lista foi proposta e o Presidente da Câmara, [anonimizado], cortou todos da Marinha por professarem ideias contrárias ao sentido de Estado, a bem da nação e uma coisa qualquer deste género. Quem não foi cortado foi o Presidente, talvez indigitado para presidente da direção esse [anonimizado], porque pertencia ao Concelho de Alcobaça e o Presidente da Câmara de Alcobaça não o cortou. Não, não, este homem é idóneo e é livre. Livres não éramos, não tínhamos nada de liberdade. Avança o plano B. Avança o plano B e o Presidente da Câmara estava a ir no mesmo sistema, cortar tudo. Neste espaço tempo de 15 dias, dá-se o 25 de Abril, avança ao plano A, do qual do qual eu fazia parte. E ainda lá estive 5 anos. Na vida sindical passava-se semanas absolutas fora da Marinha. Não via os meus filhos, estava sempre em Lisboa. Em Lisboa negociávamos no Hotel Flórida, ali no Marquês de Pombal. Isto era cansativo, até que conseguimos o primeiro contrato coletivo de trabalho vertical em Portugal, foi o nosso, com técnicos de desenho, metalúrgicos, eletricistas, empregado de escritório, tudo. Passado um ano, não chegou a um ano, uma reivindicação da Covina. Só nomes pomposos a dar aos trabalhadores, era tudo técnicos, naquela empresa era tudo técnico. Aí a gente vai lá fazer um plenário e eu e o [anonimizado] passamo-nos dos carretos: Então vocês há meia dúzia de meses levaram 60 escudos de aumento per capita, um aumento para toda a gente, sem lutarem, e agora já querem sair do contrato coletivo de trabalho. Somos chamados a instâncias superiores. Demitimo-nos do sindicato. Eu não, eu nunca mais me esqueço disso. Eu quero ir ao Marinhense, ao Lisboa Marinha ver a bola e não quero que me chamem de traidor. Quero ir ao café e não quero que me chamem traidor. Eu sou natural da Marinha Grande, nasci lá, vivi lá, vocês estão aqui no quinto andar, sabem que o que aqui chega vem tudo deturpado. Eis o que é que eu disse. [Reservado a pedido do entrevistado] Aqueles candeeiros que eram feitos na Crisal em Alcobaça, vêm para aqui para a Marinha, para pintar, só 4 ou 5 pintores é que os pintávamos. Foi a única transformação que eu aceitei, foi mudar de facto da lapidação para a pintura e depois, quando a Ivima deixou de pagar salários, eu armei-me de armas e bagagens e fui trabalhar para casa sozinho. Tive a sorte de um nome esquecido da pintura aqui da Marinha, [anonimizado], que me disse: Não, tu vais para casa eu dou-te trabalho, que ele trabalhava em casa também. E foi assim a minha vida. Pronto, trabalhei, ganhava a minha vida, não era rico, mas também não estava como estou hoje. Porque hoje estou com 545 EUR na reforma, não tenho rigorosamente mais nada. Isto é a vida de um homem de 78 anos, que deu.... Mas estás bem com a tua consciência – dizem. Pois estou, então vai-te governar com a minha consciência que vez o resultado que tiras. E foi isso. No Império Intercalava, não estava constantemente na direção. Mesmo no sindicato. Cheguei a ser Presidente da Assembleia Geral do Império, enquanto estava no sindicato. Mas depois pronto, é a tal teoria, há que dar lugar aos novos. Mas os novos não aparecem e demos lugar aos novos no Império, aqui há dúzia e meia de anos, e tivemos muito maus resultados. Os novos deram cabo daquilo tudo. Ainda hoje se está a pagar a fatura do que eles se meteram. P: Conte-me como foi a passagem do 25 de Abril no Império, nas coletividades? Sebastião Mota: A passagem no Império aconteceu desta forma, eu tenho impressão que na altura eu era secretário. Sei que no dia 25 de Abril estava cá uma equipa do Grupo de Teatro de Campolide a montar a cena para uma peça de teatro que era Filopópus. No outro dia de manhã eu vou para a fábrica. Eu estava a trabalhar, mas tinha um rádio potente e com a autorização da administração com uma antena. Eu ouvia a BBC de Londres. Eu ia sempre às 7:30, mais cedo, porque eles emitiam às 7:30, à 1:30 e acho que era às 7:30 da tarde. Eu fui para a fábrica mais cedo e começo a ouvir aquilo, estava tudo em silêncio, os engenhos só se ligavam às 8. Há um golpe, há um golpe de Estado, começou-se a falar e pronto: Ninguém trabalha, ninguém pega ninguém…e eu pumba, para o Império, vou para o Império. Porque nessa manhã vinha de Lisboa uma camioneta com os nossos carpinteiros para montarem a cena, quando soube...Não houve espetáculo à noite, era no outro dia e teve que ser adiado, porque no outro dia toda a malta do grupo de Teatro de Campolide quis ir para Caxias, para a libertação dos presos políticos. E depois vieram, fizeram o espetáculo, aquilo foi uma euforia, não imagina, o Império, não cabia lá mais ninguém, aquilo era uma alegria incomensurável. E depois lembro-me muito bem de irmos a uma antiga pensão em São Pedro de Moel cear todos, com o grupo de teatro todo. Porque eles vinham cá muito, era o Joaquim Benite, o encenador. Eles vieram cá com o Filópopus, com o Dom Quixote outra peça. Porque nós tínhamos um grupo de teatro muito poderoso e muito famoso também na altura. P: Então vamos lá detalhar as atividades do Império, quais é que foram as primeiras, quando reabriu? Sebastião Mota: Ora bem, o Império, está localizado numa povoação muito sui generis, como já lhe disse que é o Engenho. Não é por acaso que se chama engenho, porque está lá implantado o parque florestal da Marinha Grande. O Parque pertence ao Ministério da Floresta. Eles andam a dizer que vão lá construir um museu da floresta, mas até ver nada. O Império, como já disse, vai fazer 100 anos, em 23. E no tempo do meu pai, e de outros amigos que o fundaram, a primeira sede do Império foi construída pelo sogro do meu pai, pelo primeiro sogro do meu pai. Porque o meu pai era casado, tinha um filho, o meu irmão, mas a esposa morreu queimada por uma faísca. Estava a fazer o almoço para ele, numa trovoada em Maio, fulminou logo. O meu irmão estava num berço ao lado, não lhe aconteceu nada. Mas o sogro do meu pai era um homem que tinha dinheiro e construiu, que não haja dúvida nenhuma que foi construída de raiz, ao lado da moradia dele, mesmo ao lado do parque do Engenho, um edifício de primeiro andar para ser a sede do Império, com o salão de baile, um corredor ao fundo com os gabinetes da direção, as casas de banho e uma escada em madeira para o bufete, porque a gente chamava o bufete antigamente. E é aí que funcionou o Império nos seus primeiros anos. As festas do Império do aniversário de São João eram feitas dentro do parque do Engenho, que mais ninguém aqui na Marinha tinha a capacidade daquilo. Já nesse tempo, os próprios serviços florestais tinham uns arcos em madeira, com luzinhas às cores. Isso eu lembro-me bem, de ver lá dentro das arrecadações, quando era pequenito e ia para lá brincar. A estrada do Engenho daqui do Largo do Luzeirão, por trás da Câmara, até à entrada da Mata, era tudo enfeitado com esses arcos. E as festas do Império passaram a ser feitas dentro do Parque do Engenho. E posteriormente cá fora, mesmo em frente à sede, porque aquilo são largos com árvores. Está lá uma fonte feita na altura do portão do engenho de 1850, com uma pedra enorme em granito. E o Império já tinha ping-pong nessa altura. Há documentos e provas que mostram que nessa altura já tinha sido campeão distrital de ping-pong. Creio que em 1952 ou 1953 foi campeão do distrito Leiria. E depois tinham as tais contradanças, que era, eu tenho fotografias disso também na Casa do Império, também lá estão expostas, e teatro. Mirou-se sempre, sempre, sempre para a cultura. Na sede do Império, não havia espaço para ensaiar, mas tínhamos um amigo que tinha comprado uma fábrica que era da Philips. A primeira fábrica que a Philips, além da Holanda, montou na Europa foi aqui no engenho, que era a FAPAIX, que depois foi para Moscavide. Não sei se ainda existe em Moscavide se não. Aquilo tinha um salão, um barracão grande e era lá que o Império ia ensaiar as peças de teatro, muitas, muitas, muitas, peças de teatro. Aliás, há uma senhora que é secretária do La Féria agora no politeama, que a origem dela de teatro foi aqui no Império. Ela lá não faz teatro, é secretaria, faz parte da produção. Depois o Império teve Voleibol, Andebol, várias atividades. E começa-se a construir a sede atual, tudo ali pá pica, desde os garotos. Ali não havia diferença de idades, uns faziam umas tarefas, outros outras e foi-se construindo. Construiu-se um salão, não havia dinheiro para pôr janelas, pôs-se plátex a tapar para não haver corrente de ar. P: Isso foi em que ano, a nova sede? Sebastião Mota: Ora isto ronda 1960. Quando se começou a iniciar, eu devia ter uns 12 anos por aí assim, a partir de 1955. Começou-se a iniciar, foi em fases distintas, era só do dinheiro dos sócios e peditórios que se faziam. Entretanto, temos uma ajuda tremenda dos serviços florestais. Fomos falar lá com o engenheiro Amaral, que era um homem que superintendia toda esta desgraça e que desapareceu, que foi à mata e cedeu-nos todo o vigamento e todo o parquet, o que já era um luxo, aplicar parquet no chão. O Salão, eu acho que tem 16m por 35m, não 16m por 80m. O salão é enorme. Olhe sinceramente, nunca soube, nunca interiorizei quais são as medidas do Salão do Império. Foi-se construindo depois um palco, com a base em Madeira, mas à frente, a boca de cena, tudo em platex, tudo improvisado. Um bar ao fundo e tal, vivíamos assim. Fazíamos grandes festivais, até que aparece lá um rapaz como Presidente que teve ideias mais alargadas. É um proscrito, quase que é um proscrito, porque deixou as dívidas para os outros. Mas isso tudo se pagou. Mas a minha mantém-se. Se não fosse ele, o Império não tinha estas instalações, porque tem lá umas instalações... Temos dois bares, os bares têm o dobro deste salão. Temos um no primeiro andar e outro no rés chão. Depois temos o salão e ainda temos outro piso por cima, onde temos a sala de dança. Tínhamos grupos de ginástica, tínhamos as atividades, o teatro nunca morreu. Entretanto, as coisas foram naturalmente desaparecendo. As pessoas do Engenho foram também desaparecendo e o Império foi circundado por prédios de gente que vem de fora, que não é assim bairrista aqui como é a Comeira e outros lugares da Marinha. O Império está situado numa estrada que vai da Marinha para a Vieira, é um centro de passagem. A sede inicial era no centro do Engenho, junto ao parque Florestal. Agora não, agora está mais para Sul. E pronto, tem tido muitas dificuldades, mas o teatro ainda está vivo e é a única coisa que se pode dizer que neste momento está vivo no Império. Mais limitado, derivado da época que vivemos e pronto. Tirando isso, alugamos o salão para muitos eventos, muitos, muitos, muitos, que é o que nos mantém. Porque tínhamos um problema, é que gastávamos mais de 1000 EUR por mês numa funcionária que admitiram a contrato, com todos os encargos sociais, com tudo. Não sou contra a Senhora, o Império é que não lhe podia pagar. E os indivíduos que cometeram aquele erro, são dos tais que assumiram uma situação que não ponderaram bem. Conseguimos resolver o problema com ela, olhe, com a ajuda da pandemia. Aquilo fechou, ela foi para o fundo de desemprego. A gente propôs-lhe dar-lhe, enquanto ela andasse no fundo desemprego, o complemento de ordenado, para ter o ordenado completo e acho que já não se deve nada e a senhora vai para a reforma. Agora quem abre o Império são os próprios dirigentes, não todos os dias. Nós tínhamos tudo, seguros e caixa de previdência, tínhamos tudo, e isso custava-nos um balúrdio que a gente não tinha. O bar não tem movimento suficiente, porque o Império foi rodeado de bares, estão lá meia dúzia deles, e as pessoas dispersaram, uns para um lado outros para outro. Olhe, vamos, vão mantendo aquilo. O meu neto, por exemplo, anda lá, porque há uma rapariga que alugou-nos, já há uns anos, uma sala um bocadinho mais pequena que esta onde dá explicações. Essa está lá todos os dias. E alugamos aquilo imenso, a casamentos, batizados, festas... P: O senhor Sebastião fez teatro? Sebastião Mota: Só tive jeito para uma coisa, para ser ponto. Não tive jeito para mais nada. Eu fiz uma vez uma peça qualquer. Lembro-me perfeitamente de um colega que saiu a chorar de cena - a própria cena fazia chorar. Sai da cena e nos bastidores vimo-nos aflitos para o calar, para o consolar, para parar de soluçar, ele soluçava, soluçava. Mas de resto não tive jeito nenhum. O Império teve uma coisa muito boa também, que foi a revista à portuguesa, com as piadas locais, como é óbvio, escrita por autores lá do Engenho, que era o Arnaldo Cruz, que era barbeiro, o Padre Manuel e o Fernando Luz. E foi isso de facto que manteve o Império. P: Havia muita gente ali do Engenho a participar no teatro? Sebastião Mota: Muita, muita. E nas marchas! E na ginástica! O Império todos os anos ia à Sportinguiada, convidado pelo Sporting, às vezes tinham de ir dois autocarros, porque um não chegava. Mas eu veio-me agora à memória aquilo que eu lhe queria contar de antes do 25 de Abril. O Império tinha uma iniciativa, que era a Caravana da Amizade. A Caravana da Amizade, isto antes teve outro nome, mas a pide marrou. Porque a gente fazia uns prospetos a anunciar e era normalmente no dia 10 de Junho. Nós íamos para a mata, para a fonte das canas de bicicleta. Cento e tal bicicletas, com umas carrinhas de apoio com as pessoas mais de idade e com os morfes. Não havia discursos políticos, não havia nada, era só uma questão de camaradagem. Lá está, não podíamos empregar a palavra porque camaradagem era proibido. E chegámos a ser apoquentados por causa da Caravana da Amizade. E fizemos anos, anos, anos seguidos. Entretanto, outras coletividades começaram a fazer, a Ordem e o Casal Galego. Isto não há bairrismo nenhum aqui. Para mim são todos iguais, mas o que foi o facto é que foi o Império que deu pontapé de saída com muitos anos de antecedência. E isso enraizou-se na população do Engenho e toda a gente queria ir de bicicleta para a Fonte das Canas. Íamos por estradas da mata, estradas secundárias. Íamos conviver, levávamos os farnéis. Havia os mais cultos que diziam algumas coisas para a coisa também não ser em vão, mas não se podia também abrir muito, porque a gente infelizmente naquela altura não sabíamos quem é que andava no meio da gente, sabe? Porque tive isso no sindicalismo, tive isso no associativismo, tive isso na fábrica – bufos a controlarem. E depois, a partir das eleições de 1969, acentuou-se mais a perseguição. Mas muitas pessoas iam inocentemente. Eu também comecei a ir inocentemente, mas vi: Não, isto tem uma finalidade, é convivermos e elucidarmo-nos uns aos outros para procurarmos trocar impressões sobre o que estava bem, o que estava mal, não só no clube, como no lugar. E isso despertou o interesse à PIDE também. P: Acha que essas iniciativas foram importantes para a consciencialização política? Sebastião Mota: Foram, sem dúvida, foram, foram. Foram, porque embora praticássemos jogos tradicionais para matar o tempo, ia-se à praia, dava-se banho, vinha-se, almoçava-se e depois as pessoas mais de idade falavam sobre o clube e metiam umas farpazinhas. Porque as pessoas também tinham muito medo, como é óbvio, tinham de acautelar. Porque a PIDE aqui na Marinha... não era tudo perfeito também. Também havia ali muito, então nos locais de trabalhos. Infelizmente, aconteceu muito. É assim que me lembro grosso modo da atividade antiga do Império. Depois houve aquelas modalidades desportivas passageiras, o box, aquilo não se chamava box, era outra modalidade. Disputaram aí campeonatos nacionais, mas passado dois anos morreu tudo. Eram coisas sem continuidade, depois vinha outra direção, com outro iluminado e lembrava-se de: Olha, vamos fazer isto. Tivemos uma boa equipa de andebol, não tínhamos era estrutura para seguir. Foi tudo para o Sporting Clube Marinhense que já tinha pavilhão. Nós tínhamos que treinar na rua, à chuva e ao frio. Chegávamos a ir jogar à Maceira, em Leiria, e claro o que é que nos acontecia. Tínhamos de pedir para nos irem lá pôr, nós nem bicicletas tínhamos. A maioria de nós nem bicicletas tinha e íamos lá, na altura tivemos que vir a pé porque o homem que lá nos foi por com uma carrinha esqueceu-se de nos ir buscar. Tivemos que vir a pé, cheios de fome. Tivemos uma boa equipa de voleibol. Daí foi um para o Benfica, foi Internacional do Benfica e ainda cá está, é o Moisés Nobre. Tínhamos Atletismo. Eu não tomei apontamentos nenhuns e agora isto é que está a vir-me à memória. O Império tinha uma grande prova anual de atletismo que era chamada volta aos Sete. Tínhamos uma equipa com rapazes e raparigas, alguns trinta a competir, mas depois as pessoas vêm com novas ideias, uns cansam-se, outros desistem. E depois, como sabe, as questiúnculas de bairro também são mais que muitas. Por vezes, um indivíduo sacrifica-se, trabalha, trabalha, trabalha e ainda é criticado e mandado abaixo. Ficheiro de áudio MVI_0667.m4a Transcrição P: No 25 de Abril o Império não esteve envolvido em nenhum daqueles movimentos de auto-organização, para o saneamento ou...? Sebastião Mota: Teve, havia as comissões de moradores. Que eu me lembre, depois do 25 de Abril, era na noite do 25 de Abril, o Império chegou a participar, porque a Câmara desafiava as coletividades, num cortejo rumo à praça para nos juntarmos à meia-noite. E eu lembro-me que o Império levava cortejos a pé que era um espetáculo e com música. Juntavam-se meia dúzia, porque lá no nosso lado houve sempre o hábito de conjuntos, música de baile, nns a tocar trompete, outros a tocar saxofone e a gente vinha a marchar por ali acima. E foi lindo enquanto durou. P: Foi criada alguma comissão de moradores lá no Engenho? Sebastião Mota: Foi, foi. Sempre houve comissão de moradores. P: E o que é que fizeram lá o Engenho? Sebastião Mota: Fizeram as coisas essenciais na altura, auxiliavam a Câmara e a junta nalgumas tarefas, mesmo as pessoas a trabalharem. Não podia ser durante a semana, mas trabalhava-se ao sábado e ao domingo. P: O Sr. Sebastião participou? Sebastião Mota: Não, porque eu nessa altura estava praticamente fora da terra, tal como lhe disse, estava no sindicato. E lá vou eu outra vez para a parte do sindicato. Antes do 25 de Abril, havia cinco - Lisboa, Porto, Marinha Grande, Aveiro e Figueira da Foz. Fundimos tudo no sindicato dos Trabalhadores da Indústria vidreira, que ainda existe hoje. Eu por acaso até era o tesoureiro do sindicato, por isso é que estou rico. Comprámos dois apartamentos na rua da Firmeza, no Porto, e mandamos tirar as paredes de dentro para ficar com uma sala boa de reuniões. Porque a sede do sindicato Vidreiro do Porto era num vão de escada na rua da Santa Catarina. Estava na rua mais famosa, mas não tinha condições nenhumas. Comprámos as atuais instalações na calçada da Estrela, em Lisboa (entretanto já compraram outro) e comprámos esta sede aqui na Marinha. A delegação da Figueira da Foz deixou de interessar e ainda tínhamos a de Oliveira de Azeméis. Em Oliveira de Azeméis criaram-nos problemas de toda ordem, de nos quererem matar. Eram populações não tinham nada a ver com o vidro, da indústria de chapelaria, essencialmente mobilizados pelo [anonimizado], que era o dono do Centro Vidreiro Norte Portugal. E passámos bem, andámos a fugir à frente de tiros. E há um episódio que nunca mais me esqueço. Íamos daqui de madrugada, de táxi, para fazer um plenário no Auditório da escola Industrial de Oliveira de Azeméis. Tínhamos autorização do diretor, do Padre, que tinha dito: Não Senhor, isto está cedido. Chegámos lá e havia gente à nossa espera, numa bomba de gasolina antes de Oliveira de Azeméis. Eles perguntaram e nós respondemos: Nós vamos de táxi. Mas nós estamos a responder que vamos táxi para sermos atacados ou quê? A gente andava assim. Parámos e vêm dois que nós conhecemos: Fugi já para o Porto, fugi já para o Porto, vocês não podem voltar atrás, fugi para o Porto. Então vamos fugir para o Porto porquê? Eles deram cabo do piano todo. Deram cabo do piano... – pensámos que fosse no ginásio da escola, onde ia ser a reunião. Estão, eles deram cabo, que paguem. Mas o piano era o nome, era a alcunha, de um delegado sindical nosso. Deram-lhe com uma corrente na cara, que lhe deu cabo da cara toda. Já estava para o hospital. E a gente ignorava que ele tinha a alcunha de Piano. Olha, deram cabo do piano que paguem, e não conseguimos fazer o plenário. Depois decidimos: Fechamos a sede de Oliveira de Azeméis. Quando vocês precisam de reunir,, Oliveira de Azeméis vai reunir ao Porto. Temos condições, metem-se num táxi e vão ao Porto. O nosso sindicato era poderoso na altura. Nós tínhamos uma caixa de previdência própria. Era a Caixa de Previdência do Pessoal da Indústria Vidreira. Os trabalhadores descontavam +1% por mês para ter direito a medicamentos e tudo mais. E o que é que, antes do 25 de Abril, nesses anos antes, o que é que essa gente fazia ao dinheiro? Compravam imóveis na Avenida de Roma. Eu cheguei a andar, eu com técnicos, a ver os bens que o Sindicato tinha. Mas a Caixa do pessoal da Indústria Vidreira só funcionava com o aval do sindicato compreende? Mas que é isto? Meia Avenida de Roma, prédios degradados, para que é que a gente quer isto? Entretanto, houve alguém que se encarregou de ficar com aquilo tudo. Foi o presidente da caixa de Previdência daqui da Marinha Grande, na altura, que era o [anonimizado], açambarcaram tudo da Caixa Vidreira para a Caixa Nacional de Pensões. Ficámos a zero. Nós tínhamos património e ficámos sem nada, tanto que em Lisboa estamos muito bem instalados também. P: Quais é que eram as suas responsabilidades no sindicato? Sebastião Mota: Era tesoureiro. Fui sempre tesoureiro. Era tesoureiro, mas tenho que dizer que tinha um economista e um chefe de serviços atrás da Secretária que me punham a papinha toda na frente e me explicavam tudo. E eu assinava como é óbvio, quando não tinha capacidade para, como é que se chamavam, os balancetes analíticos e aquelas coisas toda. Eu não tinha capacidade para isso, mas tinha confiança nas pessoas que trabalhavam comigo. O nosso economista e técnico de contratação era o Amândio Teixeira Cardoso. O nosso advogado aqui na Marinha era o doutor Guarda Ribeiro, outro homem de excelência e muito sério. E era assim que nós trabalhávamos. P: E depois intervinha em termos de mobilização? Sebastião Mota: Sim, sim, ia a plenárias às empresas. Por isso é que eu dizia, minha Senhora, nós tínhamos sedes em Lisboa e no Porto, tínhamos diretores a tempo inteiro em Lisboa e no Porto, mas para apagar fogos tinham que ir os bombeiros aqui da Marinha. P: Quais foram os fogos que teve que apagar? Sebastião Mota: Olhe, uma vez na Covina, estávamos lá em Santa Iria da Azoia, lá na coletividade local a fazer um plenário, e lá aquela rapaziada do MRPP tenta invadir o plenário, e ainda nos mandaram pedras. Outra vez, foi na Voz do Operário. Nós estávamos atacados pela esquerda, pela direita, pela extrema esquerda, não havia ninguém que não chutasse na gente, mas a gente chegava para isso tudo. Na escadaria da Voz do Operário, há um gajo que vem para mim e que me diz, eu não sei o que é que ele me disse. Mando-lhe um sopapo, só o vi dar a cambalhota. Isto tinha que ser assim. E depois, procedimento incorreto. Querem que nós sejamos Jesus Cristo. Leva numa face oferece a outra. E eu não prestava para essas coisas. Por isso é que olha: Já tens 5 anos disto, já aprendeste o suficiente, vai lá para o teu Engenho trabalhar, trabalhar e não era brincadeira, das 8 da manhã às 8 da noite, que éramos obrigados. Estou a mentir. Isso foi antes do 25 de Abril, trabalhar-se até às 8 da noite. Fazíamos 11 horas por dia, tínhamos 50 minutos para almoçar. Que era das 8 ao meio-dia e meia hora. E da uma meia às 5. Parávamos para tomar uma buchazinha, um quarto de hora, e depois até às 8. P: Diga-me uma coisa, havia algum tipo de solidariedade informal nas fábricas, por exemplo, grupos de doentes. Tenho ouvido em algumas regiões do país? Sebastião Mota: Havia, havia, antes do 25 de Abril. Havia uma coisa que se usava aqui muito na Marinha, que era as subscrições. As subscrições a favor de.... P: Como é que funcionava? Sebastião Mota: Era andar a pedir com uma lista, o nome. Quanto é que dás? 25 tostões, tal, tal, tal e depois entregar à pessoa. Olha, o resultado é isto. Quando havia alguém que precisava, nós tínhamos conhecimento, porque naquela altura nem havia oportunismo. As pessoas nem sabiam ser oportunistas. Eram pessoas sérias que tinham a confiança da Comunidade e pronto trabalhava-se assim. Agora, infelizmente... E tínhamos também, como eu disse há pouco, a Caixa Sindical de Previdência que pagava-nos os medicamentos na íntegra. P: E quando estavam doentes, pagava o ordenado? Sebastião Mota: Não, não. P: E havia ajuda entre os colegas nas fábricas? Sebastião Mota: Era só entre os colegas, a empresa não pagava rigorosamente nada. P: E essa ajuda entre os colegas era só estas subscrições ocasionais ou tinham uma coisa mais formal? Sebastião Mota: Não era só estas subscrições. E não era só para aí, até para os presos políticos. Eu participei em dezenas e dezenas de peditórios. Tinha que ser, não se nega. Havia uma tática, havia um homem que nós tínhamos muita confiança, havia vários, mas um era o Manuel Baridó, o sítio preferido dele, para nos encontrarmos com ele, para lhe levar os 100 ou 200 mil reis, era no café dos ricos, na Marinha, no café cristal. Era onde parava o Presidente da Câmara e essa canalha toda da pide. E aí eu: Ó Manel estás-me a mandar aí ter contigo ao café? – a horas diferentes, não íamos todos juntos. Estás-me a mandar ir ter contigo ao café Cristal? Não te rales, ali é que funciona bem, estamos protegidos. E são histórias. P: E Imprensa clandestina antes do 25 de Abril? Sebastião Mota: Havia o Avante só. Eu recebia, chegava-me a chegar às mãos dentro de uma cana, uma cana assim, enroladinho lá dentro, parecia o testemunho daquela prova de atletismo, passar o testemunho. Isso era o que me acontecia. Eu na minha secção, na altura já éramos 75 lapidários, fiz-me assinante da República, era o número 21. Levava-a para casa, pagava 25 tostões e eu não tinha muito dinheiro. Não tinha muito dinheiro, não tinha nenhum dinheiro, todo o dinheiro do ordenado tinha que o dar à minha mãe. Lia-o de fio a pavio e no outro dia levava-o para a fábrica. Toda a gente lia a República. Foi um serviço que eu fiz. Gente com mais poder económico que eu não fazia isso de certeza absoluta. Não faziam, nunca fizeram, nunca tive conhecimento. Mas lá está, como costumo dizer, nessa altura dava gozo. Eu não sei se o termo será o indicado, mas eu penso que dava gozo um gajo lutar, ter com quem lutar. O que é que se faz agora? Chamam-se nomes aos políticos, bate-se nos polícias, os polícias nem batem nas pessoas. Antigamente era o contrário. O 28 de Outubro por acaso este ano foi comemorado, foi criado aqui um grupo de que eu faço parte também, o Grupo Antifascista Frente 18 de Janeiro. P: Isso foi em que ano? Sebastião Mota: Isto foi em 73. Que eles vêm aqui com a intenção de prender a juventude, os jovens mais ativos. Ali, conhece a Marinha? Está a ver onde está a estátua do vidreiro (está agora aí uma polémica por causa disso, parece que a vão mudar para o lado), em frente há um edifício, havia ai um banco, um grande café, que era o Panorama, ainda ali está uma casa de modas, que é o Sonho da Moda? Começámos a arrancar, só custou a arrancar o primeiro paralelo, daqueles quadrados. Ai, eles deram, mas você pensa que eles não foram bem aviados para Leiria? Ai foram, foram. É evidente que prenderam um ou dois bodes expiatórios, os mais ativos. No outro dia é julgado um aqui na Marinha. Bloqueamos logo a Marinha toda, ei meu Deus. E quando me vêm dizer, olha que Fulano, e vieram-me dizer a mim. E eu não tinha responsabilidades políticas nenhumas, não era controlado, bom era controlado no mínimo, fazia aquilo que me orientavam, mas diretamente do Partido Comunista não, era sempre por interposta pessoa. Vieram-me dizer que fulano foi visto atrás do Tribunal a falar com o Pinto Galante. O Pinto Galante era o diretor da PIDE de Leiria. Isso para mim foi uma faca no coração. Depois constou-se. Depois vínhamos de uma reunião da intersindical com o Presidente dos Metalúrgicos ao meu lado, chegámos às Caldas parámos, quando vínhamos à hora do jantar parávamos num snackbarzinho para comer um bifinho lá na frigideira, e começámos a encontrar pessoas da Marinha: Olha, mas a Marinha deslocou-se para aqui hoje, o que é que se passa? Era malta, gente do partido e do MDP/CDE, porque o [anonimizado], que ia no táxi comigo, que era Presidente dos metalúrgicos da Vieira, era o [anonimizado] da PIDE. E depois, confessou também: Olha, o [anonimizado] também dá informações. Isso já a gente sabe, porque o [anonimizado] era do sindicato e era da caixa de Previdência. Foi expulso de tudo. Mas ainda houve quem passado uns dois ou três anos, quem quisesse reavivar a Memória. Foi o [anonimizado], que era do PS. E eu disse-lhe: Olha doutor, não penses em fazer uma coisa dessas, é um erro político terrível. Queria dar o nome dele a um salão no Operário. E eu assim: Então dá o nome de um homem que traiu tudo? Ele tratava-me por senhor, ele era filho de um dono de um café aqui da Marinha. Oh Mota, eu estive a pensar melhor, você tem razão. Opá, esqueça, deixe estar isso no baú do esquecimento. Esqueça, não se meta nisso. Que a gente não sabia, não sabia o que é que saía. E a mim saíram-me algumas. Felizmente nunca fui preso, mas estive nessas tais reuniões preparatórias para a reunião da direção dos sindicatos antes do 25 de Abril. Eu cheguei a ter que fugir de motorizada, que eu chegava a Casa lá nos subúrbios do Engenho e via o carocha da PSP escondido, o carro da polícia. E não havia telemóveis para falar à mulher nem nada, era uma aflição. Eu ia para a Vieira com o [anonimizado], coitadito já morreu, cada qual na sua motorizada dormir a casa da sogra dele. Mas pronto, além disso eu estive preso depois do 25 de Abril. Numa reunião na Barbosa Almeida, em Avintes, quando o Presidente da região Militar do Porto era o [anonimizado], um facho. Entendem que a gente estava a fazer campanha subversiva, isto depois do 25 de Abril. E chama a gente, manda a gente, tropa, numa carrinha para o quartel-General do Porto. Os senhores ficam aqui em reunião permanente, estão em reunião permanente comigo. Estivemos lá dois dias e meio primeiro que fôssemos libertados. Esta não lembra a ninguém, esta, por isso é que festejas hoje o 25 de Novembro. Não me esqueço destas coisas todas. Isto tudo já estava a ser orquestrado aos poucos. E esta é a história da minha luta, já pareço o Raul Solnado [ri-se]. P: Diga-me, houve uma parte que não falámos, e podemos não falar, mas é a participação na guerra Colonial Sebastião Mota: Sim, sim. P: Houve uma pessoa que eu entrevistei aqui outro dia que disse que mesmo lá criou grupos de futebol, procurou de alguma forma promover algum relação. Sebastião Mota: Sim, sim. Eu tenho fotografias e tenho a faixa de campeão da região leste de Bafata de futebol de Salão. Tenho a faixa de campeão. E está emoldurada, protegida com vidro. Tenho lá na cozinha independente onde como. O que é que a gente lá faz? Ainda faz hoje oito dias, fui daqui com quatro amigos à Lourinhã, a casa de um camarada que esteve comigo na Guiné. Produz bens agrícolas e vinho e tudo: Epá venham cá. E vai lá a uma praia, não sei se já conhece a praia da areia branca, pelo menos já ouviu falar. Ao lado há uma praia selvagem que é Paimogo. Aquilo dá do bom e do melhor, navalheiras e polvos e moreias e ele pôs lá um banquete para a gente. E eu disse, disse aos outros que estavam: O [anonimizado] passou três meses no Mato sem vir ao quartel. Eu passei os 22 meses no quartel, eu nunca saí porque eu era escriturário. Mas não tinha nada que ir para a Guiné eu. Eu tinha que ser livre da tropa por amparo de mãe. Como o meu pai faleceu, a minha mãe foi-lhe detetada a angina do peito, sofria muito com aquilo e estava proibida de trabalhar. E eles levam-me. Tiro a especialidade. Vou para o quartel-general para Tomar, estava muito bem no Conselho administrativo rodeado de gente excecional. O Presidente do Concelho de Administração era um coronel muito amigo do meu chefe de secção de pintura aqui na Marinha, que era o senhor [anonimizado]. Eu estava ali, era jogar ping-pong e futebol salão. Até que me vêm buscar de Castelo Branco e já não pude voltar. Despedi-me da minha mãe por telefone. E como imagina, um homem fica completamente esfrangalhado. Lá vou eu com o Capote para Castelo Branco. Cheguei a Castelo Branco não era nada disso que me tinham dito. O embarque foi passado um mês. Podia ir para casa 15 dias. Mas eu devia ser livre por amparo de mãe, mas mesmo assim na tropa eu fui roubado, fui raptado, porque eu e mais nove, fomos para o quartel-general. Eu não era o primeiro, mas era o segundo e começo a ir à frente do quinto, do Sexto e do Sétimo, que estavam atrás de mim na classificação. E depois na Guiné é que eu percebi como é que se faziam as maroscas. Os primeiros sargentos eram os gajos que ganhavam mais dinheiro daquilo. Houve um gajo que eles mandaram embora, a troco sabe-se lá de quanto, e foram buscar-me a mim. E eu fui, estive lá. A única coisa que me resta é que nunca ninguém desconfiou de mim, nem na vida civil nem na vida militar, porque os relatórios secretos era eu que os fazia com o capitão. Os dois sozinhos num gabinete, como estamos os dois aqui. E o primeiro sargento nunca pôs o olho naquilo. Mas eu dizia-lhe assim: Oh General, quando eu cheguei a Castelo Branco e me apresentei você me perguntou, de onde é que tu és rapaz? Sou da Marinha Grande meu capitão. Opá, já só me faltava isto. Eu disse isso? Então não disse, não se lembra? Não, nós tínhamos muita intimidade, agora ele era General. Aliás, lá em Bafatá o nosso esquadrão tinha dentro do aquartelamento um ringue em cimento para jogar. Eu cheguei a jogar ténis com bolas da Dunlop, raquetes da Dunlop e redes da Dunlop. Deu-se o dia que eu jogava ping-pong e sabia a marca das coisas porque a maioria da rapaziada que lá estava não sabia nada daquilo e depois lá está a tal história, em terra de cego quem tem um olho é rei, brilha-se sempre, não é? Já se sabe, agora a raquete já sabe dar, embora o ténis de mesa seja muito diferente, mas há as noções. Eu gostava muito de andar pelas tabancas. Nunca provoquei ninguém, nunca chateei ninguém. Mas havia lá...eu fui mobilizado de Castelo Branco e 70% da unidade era gente das Beiras. Gente que o melhor que lhes aconteceu foi darem-lhes um colchão de luso-espuma na Guiné para dormir e terem garfo e faca e prato à frente para comer. Que aquilo era gente que vivia, coitados andavam lá nos campos, na pastorícia e pouco mais. E depois havia os outros os mais vivazes e, peço desculpa os mais xicos espertos, que eram os de Lisboa. Mas tenho grandes amigos. Havia lá um que estava de técnico de som na noite do 25 de Abril no Rádio Clube Português, o [anonimizado]. Esse gajo... adoramo-nos um ao outro. E morreu há pouco tempo um da Amadora. E é isto, você falou-me da tropa e os grandes amigos que eu tenho são da tropa. É que a gente vai lá, estamos ali dois anos a gravar aquilo no Coração. Como é óbvio, há lá outros que eu quase não os conheci. Eu tinha o meu núcleo de amigos, todos fazemos, é na escola, é em todo lado. Ai vínhamos cá abaixo, porque Bafatá já tinha três restaurantes, e vínhamos cá abaixo, quando tínhamos dinheiro para comer e tal. Eu ai ia tendo um problema, olhe foi um rapaz do Diário de Notícias que o teve, o [anonimizado], nunca mais me esqueço, já morreu. Era tipógrafo no Diário de Notícias. Quando a comida não agradava, a gente tinha que se manifestar. E eu sabia que tanto o praça, que tinha tanta verba para a alimentação diária como o General, o Governador General, era o Shultz na altura, depois já foi o Spinola. Tinham 24 escudos, o soldado tinha 24 escudos também. Porque é que os oficiais e sargentos têm messes e a gente ia.. eu aí meti a minha colherada por ser da Marinha, ser refilão, levava já um bocado da injeção da vida e há um sábado que nos servem arroz de caril com atum. A gente já não podia ver aquilo. Eu ainda estava na Secretaria. Eu normalmente ia sempre, tinha que fazer a ordem de serviço atrasada, mas guardavam-me a refeição. E chega lá um barulho e o capitão não estava. O que é que se passa? Epá, há um levantamento de rancho, vou já para lá. O Alferes, por acaso hoje é muito meu amigo, meu e dos outros, naquele dia, nunca mais me esqueço, que foi no dia 20 de maio de 1967, um sábado ao jantar. Ele puxa da walther: tau, tau, tau. A malta gritava: Não presta! – a bater tachos, porque pegada ao nosso quartel havia o comando do agrupamento onde estava um coronel. O alferes [anonimizado] (angolano, preto, professor e um gajo com uma classe, da área do MPLA, do Agostinho Neto), começa a levantar a voz e começam-lhe as terrinas a cair nas trombas e na farda, ele era um homem de arroz. Tudo para as casernas sem comer. No outro dia de manhã, eram sete da manhã, era domingo. Domingo para quem estava no quartel, porque para quem andava no Mato não havia domingos. Uma dornier a esta hora? Dornier são aqueles aviões pequenos com três gajos, o piloto e três gajos de gabardine, isto é uma vergonha, óculos escuros e chapéu, em Bafatá que às 7 da manhã já fazem uns 30 e tal graus de calor. Pimba, Pimba, interrogatórios, interrogatórios e interrogatórios. Como é que começou? Chegaram a esse [anonimizado] não sei como. Foi para o Paiol da Pólvora preso e no outro dia para Bissau. Esteve preso em Bissau, mas depois não conseguiram encontrar provas. Mas ficaram lá e foram os dois de Lisboa. Foi o [anonimizado], que trabalhava numa loja de modas em Alcântara, e o [anonimizado]. A senhora não se admire de eu me lembrar dos nomes deles todos. Estão todos aqui. Era todos os dias dois anos ali com os mesmos nomes. Já morreram ambos. Ficaram lá. Eu tenho um grande amigo, ali de Aveiro. Tenho lá dois, mas o [anonimizado] tem 80 anos e é professor doutor. Ele foi professor na universidade de Cambridge, de Lisboa, do Porto e de Aveiro e tem um gabinete de estudos da mineralogia da Ria de Aveiro. É ele que dá assistência, estuda a Ria de Aveiro. É evidente que está cheia de engenheiros. Agora eu assim: Então Lages, mas ainda trabalhas. Epá, trabalho. Mas ele ao pé de mim, parece meu irmão mais novo, com 80 anos. Um homem Atlético que fez sempre desporto, era bruto como um raio a jogar à bola, mas isso era elas por elas. E foi com esta gente que eu vivi, convivíamos muito. O futebol de salão então era a paixão que havia. E em Bafatá o Sporting Clube de Bafatá já tinha já tinha uma piscina, um cinema e um ringue. E o ringue quando chovia muito era outra piscina. Eram duas piscinas no Inverno, no tempo das chuvas, das monções. E nós fazíamos muito futebol de salão. Depois também joguei aqui nos veteranos aqui do Estrela do Mar, joguei aqui muita vez neste campo. Ainda joguei 35 anos à bola na Comeira. P: E diga-me uma coisa, teve alguma responsabilidade na autarquia ou na Junta de Freguesia? Sebastião Mota: Estive na autarquia. Fui deputado municipal. Mas depois era muito, eu não tinha tempo, queriam-me. Porque naturalmente sabe, quem está à frente de uma coisa, normalmente é empurrado para outra. Este gajo está-se a safar ali também é bom para acolá. E eu ainda estive em dois ou três mandatos na Assembleia Municipal. Depois, houve um certo divórcio. Sou militante do Partido, não renego nem nunca renegarei, mas não sou praticante. [Pede para desligar] Sebastião Mota: Eu nunca mais tinha falado com o homem, quando o Jerónimo de Sousa veio à Marinha Grande. Esperei que ele saísse, desse uns beijinhos. Então estás bom Jerónimo? Então como é que estás? E o Pina, tens visto o Pina? Eu já estive em casa dele lá em Benavila. Olha, amanhã tenho um comício em Avis e vou estar com o Pina. Então olha, dá-lhe um abraço. Algumas pessoas daqui da Marinha vieram logo a correr. Não sei se estavam com receio de alguma coisa que eu estava a contar ao Jerónimo Sousa, mas eu estava a única e exclusivamente a falar de coisas pessoais entre nós os dois, da nossa vida que passamos. Efemeramente, foi efemeramente. Mas não, mais nada. A partir daí, pronto, eu segui o meu trilho. Vou colaborando onde posso. Para já estou só com os reformados. Era para ir amanhã com reformados a Santarém, mas não posso. Tenho de estar com a minha mulher no hospital, a minha casa parece Alcoitão, queixa-se um para cada lado, é um manicómio. P: Então e nos reformados, quando é que começou a participar? Sebastião Mota: Olhe, comecei a participar como aluno de informática. Para aí há, sei lá, uns 7 ou 8 anos. Ai tenho que me matricular outra vez que eu já me esqueci de tudo. Pratico pouco. E depois fui abordado em minha casa, três elementos da direção da altura que entendiam que eu devia ir para Presidente da ASURPI e eu disse: Eh pá, não, Presidente da ASURPI não, porque tenho trabalho aqui em casa, porque eu para trabalhei em casa vinte e tal anos e ainda havia que fazer e eu não posso estar a abandonar isto para ir para a ASURPI, tem que ir para uma pessoa disponível. Eles foram lá duas vezes. Em relação ao meu nome desiludam-se. Poderia eventualmente, disse, ser Presidente da Assembleia Geral. Olha, em boa hora que eu fui para lá, mas pus como condição: Quem escolhe os meus secretários sou eu, não quero ninguém imposto. Sabe como é que isto funciona. Eu escolho os meus dois secretários. Um hoje ainda é meu Secretário e o outro é Presidente da Direção, porque eu disse: Não, tu sais daqui vais para Presidente da Direção. Tem feito um bom trabalho. Fizemos um bom trabalho na altura, porque aquilo havia lá uns certos desaguisados. As pessoas não se entendiam. Eu costumo dizer, somos duas vezes crianças. Às vezes tomamos atitudes menos corretas, mas eu cheguei a pacificar situações de aperto de mão. Não há nada escrito, não quero nada escrito em atas de assembleias, está aqui um aperto de mão entre cavalheiros e está assumido. E assumiu-se e resolveu-se felizmente, aquilo está muito mais desanuviado do que estava na altura que eu para lá entrei. E continua pronto e há amanhã uma reunião, a primeira reunião entre o Conselho Pedagógico, os alunos e os professores. Prevê-se para Dezembro arrancar, se a situação não descambar outra vez, vamos lá ver. Eu tenho muita confiança, como disse atrás, naquelas duas pessoas que convidei para lá e que aceitaram, que a direção posteriormente aceitou e que vão assumir. Para já são pessoas que têm conhecimento. Um, eu nem sabia e que me disse: Opá, eu dei sete anos aulas ali no ISDO. Oh Victor vê lá tu o que é que eu sei. Sei que tu és licenciado em recursos humanos e mais não sei. O Paulo é professor doutor também. Perante os próprios alunos, quer queiramos quer não, tem que haver o Dr., para haver um certo respeito. Não é que me faltassem ao respeito, eu é que acho que não tenho nem conhecimentos nem nada para estar a ocupar. Foi um cargo, um caso de emergência durante um ano. E depois fomos apanhados pela pandemia e não fizemos nada. Todos os projetos que tínhamos, tínhamos variadíssimos projetos em carteira para desenvolver, tivemos que fechar, Abrimos a sede dos reformados esta semana, a semana passada. Nós tínhamos ali uma componente social, porque temos muitas senhoras a colaborarem e todos os dias está um casal de serviço ao bar. Há dois bares, há um onde estão uns cadeirões e a televisão e tudo mais. E há outro que é para os homens, mais jogos de cartas, de dominó e onde h´ uma cozinhazinha onde se fazem umas bifanas, fazem-se uns pastéis, fazem-se umas petingas fritas, uns carapaus fritos.. Chegámos a detetar que quatro pessoas, a única refeição quente que comiam era ali, por volta das três da tarde. E então nós até decidimos cobrar um preço simbólico, porque víamos que as pessoas de facto eram necessitadas. Dois já morreram durante esta pandemia, agora ainda lá não fui desde que aquilo abriu. Tenho que lá ir amanhã, porque de facto há, como disse, à tarde a reunião da universidade e eu quero estar presente. E a minha vida resume-se a isto. P: Então mas o que é que o motivou a ter tanta participação? Tanta dedicação, tantas horas de trabalho voluntário, o que é que o motivou? Sebastião Mota : O que me motivou? Concretamente não sei dizer, acho que as atividades. Antes do 25 de Abril, dar o corpo, como se costuma dizer. Eu desempenhei tarefas no Império que ninguém agora dos mais novos imagina. Desde a coletividade lá em baixo, eu ainda fui da direção da Coletividade lá em baixo, na coletividade antiga. E havia um homem, um homem que era industrial, industrial não, tinha uma loja de móveis e também faziam alguns móveis, que me dizia, era o [anonimizado]: Oh Mota, e quando a gente tinha que descer com o cântaro, porque tinha uma piazinha para lavar os copos - era um cântaro de barro para amparar a água de lavar os cálices e os copos, esgoto não havia. As cervejas bebiam-se pela garrafa e as gasosas dos pirolitos. Vínhamos com um cântaro de barro grande, os dois, debruçados para vir despejar à casa de banho. Desde isso, foi tudo, agora está tudo.. está mais moderno por uns lados, está pior pelos outros. P: Mas só para terminar esta questão da motivação, era o desafio das atividades.... Sebastião Mota: Era, era e o amor e o amor. Sem o amor à causa, não se vai lá. E eu tinha muito amor ao Império. Aliás, eu tenho um defeito, por isso é que eu procuro não me ligar a mais coisas. Onde eu me ligo tenho que ir. Eu meti-me em coisas no Império quando era Presidente... Meteu-se-me uma vez na cabeça, lembra-se do conjunto Victor Gomes e os gatos negros? Fizeram um filme. Mas acabam de fazer um filme, o filme passa aqui a Marinha, passado um mês estavam a atuar no Império. Consegui o contato do agente deles. Foi um balúrdio que eles nos levaram, mas nós ganhámos muito dinheiro, tinha que ser portas abertas. Uma vez os Trovante, a seguir ao 25 de Abril, tivemos que montar uma bancada, uma bancada falsa, porque não conseguíamos suportar tanta gente. E pronto eram essas coisas. Eu tinha gosto também de inovar. E gostava de inovar, não sei se também se era das profissões. Porque eu tenho peças em casa, qualquer dia já me passou pela cabeça dar para o museu do vidro, mas ninguém me conhece e deixo lá estar para casa para os meus netos. Eu dava-me gozo o inovar, isso dava-me gozo. Então quando alguém me dizia: Mota, tens de fazer isto - para mim era uma ordem. Eu fazia. Nunca procurei aldrabar em nada e a opinião que as pessoas têm de mim, cada qual tem a sua, como é óbvio. Nós não podemos impor nada a nosso respeito. Mas penso que cumpri no tempo que cá andei, e cá ando, porque não estou para me ir embora já. Penso que cumpri bem com o meu dever. É evidente, há aquela história do sindicalismo que cria muito animosidade. Eu sou do tempo da madisca da carta aberta e disso tudo que esse Mário Soares e esse Gonelha fizeram antes de vir a UGT. E o meu nome chegou a ser alvitrado para representante dos Vidreiros na CGTP. Quando isto aconteceu, foi na altura que eu me afastei do sindicato. Caiu tudo por terra e olhe, cá vou vivendo. -
2019
A reação conservadora e a resistência do associativismo livre nas vésperas do Salazarismo
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3 de junho de 2021
José Marques Martins e João José Silva
P: O Sr. José Marques Martins nasceu aqui? José Marques Martins: Nasci em Tondela, ou melhor, em Canas de Santa Maria, freguesia de Canas de Santa Maria. P: Em que ano? José Marques Martins: Em Tondela, em Setembro de 1946. E inicialmente, por curiosidade, apesar de ter nascido oficialmente no dia 29, nasci no dia 11, que é uma data diferente. Tinha que ser. Eu só soube que tinha sido no dia 11 já tinha perto de 30 anos, de maneira que são coisas de histórias, mas que gosto de recordar sempre. Porque a minha mãe, que Deus a tenha, quando eu a convidei para ir para o aniversário: então mãe venho-te buscar ou venho... Que eu já estava casado, e ela: então, quando é que tu fazes anos? Oh mulher, então tu tiveste-me e não sabes? Pois, mas tu não nasceste no dia 29, o teu pai roubou-te na idade, porque antigamente era assim, portanto para dar uma ideia... P: Os seus pais faziam o quê? José Marques Martins: O meu pai tinha a profissão de sapateiro, mas foi um grande corredor de bicicleta, treinou e correu Porto-Lisboa. Aliás, se chegar à Folha de Tondela tem lá uma grande... e daí nasceu, talvez venha dos genes dele toda esta história da… e tenho ainda recordações, portanto, dos jornais em que o meu pai correu Porto-Lisboa, correu a Volta a Portugal, na altura do Américo, do Faísca, do Trindade. E então, claro, não era um corredor, mas tinha um grupo desportivo... P: Já tinha na família a propensão para o associativismo.... José Marques Martins: A minha mãe é doméstica. E depois mais tarde é que ele aprendeu a profissão de sapateiro e a agricultura. E foi isso. P: E estudou lá... José Marques Martins: Estudei em Tondela, no Colégio agora escola secundária, e depois saí de lá com 18-19 anos. E então fui apanhado, como todos os outros da mesma idade, para irmos até à guerra, que foram dois anos, cada um com as suas memórias, nem tanto agradáveis, mas pronto, não vamos falar nisso. E quando vim, tive que recomeçar a vida. Foi uma geração sacrificada, aquela geração da altura em que fomos para a guerra. Portanto, nós tínhamos uma forma de estar, porque vivíamos no campo, o nosso crescimento estava dominado por uma certa formatação. Nós, quando queríamos respostas, diziam-nos: porque sim, porque tinha que ser assim, assim é que era. O Colégio onde andei, católico, também tinha a rigidez religiosa de então, muito mais forte. E nós na agricultura fomos crescendo. Claro que depois apareceu ali uma… naquela altura dos Beatles. Depois éramos muita juventude, havia muita juventude, havia mais filhos, não havia televisão, como eu costumo dizer na brincadeira. E então havia muita juventude e por isso nós juntávamo-nos, fazíamos o tal grupinho de futebol, para ir tomar banho para o rio, para ir para os bailaricos, portanto, havia isso. E onde é que nós nos juntávamos? Nas tabernas, que era um sítio onde víamos um Bonanza e outros que tais. A taberna antiga foi sempre um local de encontro, ou lá dentro ou cá fora. Enquanto os mais velhos estavam lá dentro a beber uns canecos e a jogar à sueca, nós estávamos cá fora, porque não tínhamos autoridade de entrar, porque éramos miúdos, mas já queríamos ir e esse foi o nosso crescimento. Depois tudo mudou, quando aparece o 25 de Abril, mais tarde, portanto, abre-se. E, é claro, quem teve condições para progredir na formação, muito bem, quem não teve, ficou sempre naquele estado. Claro que depois houve aquela vontade em termos um futuro melhor e foi quando se abriu a possibilidade de os caminhos para a França, para a Suíça, para a Alemanha, em que as mulheres ficavam a tomar conta da agricultura. P: Mas o senhor José não emigrou? José Marques Martins: Era para ter emigrado, mas, felizmente ou não, como tive oportunidades de emprego logo de imediato… P: Qual é que foi a profissão que depois seguiu? José Marques Martins: Depois, quando vim, embora tivesse várias opções, mas porque já tinha família constituída, fui para os laboratórios da celulose, em Vila Velha de Ródão. Estive lá três anos e depois de lá é que vim para a Covilhã, para o Instituto de Emprego, antigamente era o Serviço Nacional de Emprego, e ingressei como técnico de emprego e toda a minha... até à minha aposentação. E depois, mais tarde, também me ordenei diácono, portanto, e aí houve razões para essa via, são histórias de vida. P: Não se casou? José Marques Martins: Casei pois, os diáconos podiam se casar. Casei e já estou viúvo. Tenho dois filhos e duas netas e, portanto, foi essa história de vida. Aqui caí e há histórias que a gente conta, quando venho aqui para a Covilhã, gostei de vir. Porquê? Porque embora estivesse em Castelo Branco, eu passei aqui de madrugada e há duas imagens que eu guardo da Covilhã, que jamais me esquecerei: que foi ver pelas seis horas da manhã, mais coisa menos coisa, ver os trabalhadores que eu não sabia para onde é que iam, todos em fila, lá iam com uma lancheira na mão. E então perguntei para a minha mulher, que ela andou aqui a estudar, eu não estive: onde é que esta malta vai? Vão trabalhar, vão agora para o turno. E eu achei curioso irem àquela hora todos, mas uma grande fila de gente. E uma outra imagem quando chego ao Souto Alto, quando vinha do Fundão e comecei a olhar para a Covilhã de madrugada e a vi toda Iluminada, que me deu uma semelhança com o Funchal, onde passei quando vim da Guiné, porque nós parámos no Funchal, porque trazíamos uma companhia de caçadores do Funchal, e deixámos lá alguns colegas falecidos. E a imagem que guardo do Funchal é quando eu acordo, pela coxia do barco, vejo também aquela montanha toda iluminada, que tem uma certa semelhança com a Covilhã. E eu disse na altura, talvez dois anos antes de vir para aqui trabalhar, para a mulher de então: olha, gostava de trabalhar aqui, mal eu estava já a pressupor que um dia vinha aqui parar. Cheguei e, como vim para aqui morar e esta foi a casa para onde vim cair e caí aqui, vim para aqui jogar, ainda me lembro, jogar às damas com um vizinho nosso que já faleceu, que era o Fernandes… E havia cá um contínuo que até tinha uma certa dificuldade no andar, o Sr. Pinto. E então a história do associativismo também começa um pouco aí, quando nós estávamos os dois muito bem a jogar e o senhor Pinto chega e diz assim: podem continuar a jogar, mas é bom que se façam sócios da casa, têm ali uma fichazinha. Então, deu-me essa ficha. Mas têm que pagar uma joia, e a joia era, salvo erro, 50 escudos, ou coisa do género, na altura pagava-se a joia. E pronto, e foi no ano de 1973-74, depois apanho o 25 de Abril. Eu ingresso no serviço de emprego em 73. Estou em Lisboa porque venho para fazer a formação em 74, Janeiro, e o 25 de Abril nasce a seguir, portanto, eu apanho toda essa zona, claro. Depois também gostei de saber o porquê daqui nas fábricas, porque eu vim trabalhar para uma casa e para eu poder ser capaz de poder fazer um serviço melhor, tinha que saber como é que os trabalhadores trabalhavam, porque quando lá estávamos a fazer uma entrevista e aparecia um tosador, aparecia um tecelão, aparecia uma metedeira de fios, aparecia não sei quê, tinha que saber o que é que isso significava para poder ter uma ideia, numa entrevista, do que tinha à frente. Por exemplo, havia cá umas cento e tal fábricas, ou mais um pouco, e eu fui visitá-las todas e fazer um estudo técnico das máquinas. Técnico, isto é: o que é que a metedeira de fios faz? Como é que ela faz? Que instrumentos é que ela utiliza? E depois via tudo isso durante o dia e à noite era aqui no Grupo Instrução e Recreio, no Campos Mello, no Ginásio, e as atividades eram aquelas que, para além do Futebol Sporting da Covilhã, como é evidente, mas eram aquelas que agregavam mais gente. Claro, depois apareceram, mais tarde, outras. Quando apareceu a Universidade, muito mais se abriu. E portanto, saber o porquê disto, talvez também pelo gosto de saber da História daqui, como é que nasce e, portanto, cheguei sempre à conclusão de que é o mesmo em todo o lado. Havia um objetivo comum daquela gente, juntavam-se. Havia um objetivo comum, havia também um cimento que era a solidariedade entre eles e toca de fazer uma coisa que fosse benéfica para os outros, para o bem comum, para eles próprios, e que desse formação àquela gentinha. Foi sempre essa a evolução associativa. Aquilo que, com quem eu conversava, com os mais velhos, era isso: epá, nós queríamos era, queríamos aprender, mas não sabíamos ler, queríamos saber mais, queríamos que os nossos filhos....E eu lembro-me que os meus pais diziam assim: eu não quero que o meu filho ande com uma enxada nas mãos. Possivelmente aqui os tecelões, eu quero que os meus filhos não saiam e não sejam... P: Queria fazer ao senhor José mais duas questões para estatística. Na realidade, estou a perguntar a toda a gente, se é professa alguma religião. José Marques Martins: Sou católico. P: É católico, claro, e se está filiado em algum partido político ou já esteve. José Marques Martins: No Partido Socialista. P: E já agora também ao senhor João, ficamos já com estas duas questões: é religioso, professa alguma região? João José Silva: Católico. P: Também é católico e é filiado em algum partido político ? João José Silva: Também no PS. P: Então vamos começar pelo início. Nasceu aqui na Covilhã? João José Silva : Sim, nasci, criei, fui criado, fui batizado, fui criado, casei e a minha vida foi sempre praticamente na Covilhã. P: Nasceu em que ano? João José Silva: Em 1947, 12 de janeiro de 1947, e fiz sempre aqui a minha vida. Aliás, sou filho da terra. E sou filho dos meus pais. O meu pai era técnico de tecelagem, afinador de teares, e a minha mãe metedeira de fios, ainda há bocado o Marques Martins estava a dizer que não sabia o que era uma metedeira de fios… a minha mãe era realmente metedeira de fios. P: E o senhor João, também foi trabalhar para a indústria têxtil? João José Silva: Eu trabalhei relativamente pouco tempo, porque era assim, era difícil na altura. Os meus pais… éramos três irmãos, duas irmãs, comigo três, e era muito complicado, porque na altura os ordenados eram relativamente baixos e viemos morar aqui para o bairro do Rodrigo, onde, na altura, a renda já era um pouco cara em relação àquilo que ganhava o casal. E o meu pai teve que me chamar a atenção e dizer: vocês têm que trabalhar, têm que ajudar a casa. Eu fui trabalhar, comecei a trabalhar com 12 anos. O primeiro emprego foi precisamente, não foi na indústria têxtil, acabei por ir para um gabinete de advogados onde estive, fiz alguma formação e depois apareceu uma outra situação, mudei e acabei depois por ir para a indústria, porque a firma para onde eu fui a seguir encerrou por motivos que desconheço. Então eu, para não estar desempregado, sentia-me um inútil, no termo da palavra. Eu queria realmente era a minha independência, ter algum para poder, ao longo da semana, planear o que eu poderia fazer e então foi quando eu estive, pouco tempo, na indústria, fui cardador, com 18-19 anos. Depois surgiu a hipótese de uma outra situação: convidaram-me para ir para o Sindicato da Indústria de Lanifícios do Distrito de Castelo Branco, onde estive desde 1964 a 1968. Entretanto, fui à inspeção, fiquei aprovado e toca de ir para Angola. Não sei o que lá fui fazer, para Angola, fui forçado, fui obrigado. Estive lá três anos em África. Regressei de África e, claro, a minha preocupação foi arranjar alguém com quem casar. Casei e também já estou viúvo. E pronto, tem sido... ainda andei na escola Campos Mello, mas não concluí, porque era difícil na altura. A gente chegava do emprego às sete da tarde, das nove às sete da tarde. E às 7:30 tínhamos que entrar na escola, na escola Industrial e comercial Campos Mello. P: Qual é que era o trabalho que tinha na altura? João José Silva: Na altura estava ligado ao Sindicato dos Lanifícios como funcionário. Entretanto, pronto, não concluí. Reconheço que a própria juventude, os namoriscos... Até acredito que podia ter, podia ter conseguido outras coisas, mas não, porque era muito difícil. Entretanto, depois de ter vindo de África tive um pequeno comércio, uma papelariazinha, que abri na altura. Estive a explorar aquilo durante dois anos, foi quando surgiu a hipótese de ir para o Hospital Distrital da Covilhã, onde estive 40 anos a trabalhar como auxiliar de ação médica. Gostei imenso daquilo que fiz, gostava imenso, adorava a profissão e a prova está que nunca saí do mesmo serviço, não, tive o mesmo trabalho sempre, todo esse tempo. Por incrível que pareça, e não está aqui que não nos ouve, fui apanhar lá o Sr. José Marques Martins com problema de rins. José Marques Martins: Mal eu sabia que tinhas passado pela minha mão para ir para o hospital, eu sabia que ele era bom… João José Silva: Sempre dedicado à cidade e o José Marques Martins é uma pessoa que eu conheci de perto, desde 1973. Agora, porque somos vizinhos… José Marques Martins: Eu andei com as filhas dele ao colo. João José Silva: Éramos uma família aqui, éramos uma família, toda a gente se dava bem, toda a gente se comunicava, era importante. E o Grupo Rodrigo, quer se queira quer não, ajudou e continua a ajudar muito nessa parte. Não tanto como nessa altura, porque era aqui que a gente se concentrava, era aqui que a gente conversava, era aqui que a gente bebia o nosso café e jogámos ao 21, para saber quem é que pagava os cafés, jogava-se as damas, como o Martins dizia, o snooker, o bilhar livre, as cartas, o dominó... José Marques Martins: Depois do trabalho, onde é que nós íamos conversar? Tínhamos o jornal e líamos, ouvíamos as histórias e depois começámos a.... João José Silva: Criar amizades… José Marques Martins: E depois há sempre os mais velhos, aqueles que estão nos órgãos sociais. Quando chegava a altura da revitalização de novos órgãos, iam apontando este e aquele e o outro não sei quantos. Bom, eu falo por mim e pela minha experiência, fomos indo e olha, estive cá desde 1975 até há dois anos atrás. Foi sempre, só tive um interregno de quatro anos. Portanto, depois passei para a Assembleia, que para lá me queriam chutar, mas criámos coisas interessantes e a beleza disto, não sei se concordarás comigo, com certeza de que sim, a beleza disto é que nós, mesmo não tendo a mesma… tendo opiniões diversas, conseguimo-nos juntar para pormos a coisa a funcionar, porque íamos à procura, com a nossa diversidade, de elencarmos um programa que fosse o melhor possível. E deixávamos as diferenças para irmos buscar aquilo que mais nos unia. Hoje, já não vejo, infelizmente, não acho que já não é tanto assim. João José Silva: E, acima de tudo, estavam os interesses da coletividade e não os interesses.... Exatamente como estar ligado à política. Eu, aliás, apanhei o José Manuel Martins na política, mas era muito antes de mim, o estar na política não queria dizer que a gente que se aproveitasse de alguma coisa como interesse pessoal, nós viemos para aqui para defender os interesses da coletividade. Era extremamente importante. José Marques Martins: Era engraçado, era belo, primeiro para nós. Vamos lá ver, o associativismo funcionava, não, funciona, porque nós trazíamos a família connosco, não fisicamente, mas vinham connosco, no coração vinha connosco, e nós queríamos que esta casa, que é a casa que vínhamos também trabalhar, que as famílias se sentissem aqui bem e por isso, quando tudo o que nós fazíamos era sempre com o objetivo… tanta vez que nós dizíamos aqui: as nossas esposas são aquelas que nos aguentam para estarmos aqui nos órgãos sociais. João José Silva: Aliás, a minha até realmente colaborou imenso, e as filhas, no rancho folclórico, nas marchas populares… José Marques Martins: Na costura, elas faziam tudo e a tua filha, ela também, as danças rítmicas, os miúdos… Quer dizer, elas também cresceram com esse gosto porque viam que os pais tinham gosto e se eles... às vezes eu perguntava: vocês gostam? Vocês andam cá… E, portanto, este gosto passava-se de pais para filhos. Porque era uma coisa linda e tudo o que era feito não era com o intuito de “eu fiz”, não, “nós fizemos”. Nós fizemos, e isso para nós foi... P: Então e essa propensão que vocês passaram para os vossos filhos, terão herdado dos vossos pais, os vossos pais tinham participação associativa? João José Silva: Eu no que diz respeito ao meu pai, sim. Foi sempre um....e era trabalhador na indústria de lanifícios, quer dizer, aliás, o movimento operário na Covilhã nessa altura era fortíssimo, como deve calcular. E ele já… ele entrava aqui e eu recordo até uma passagem extremamente importante, importante e desagradável ao mesmo tempo. Aqui na altura só se conseguia, a direção, na altura, só autorizava a admissão de associados que tivessem mais de 17 anos. E o meu pai vinha, eu vinha com o meu pai, mas só podia estar com ele, porque se ele não viesse, não me deixavam entrar e ele ainda arranjou uma chatice porque soube na altura que houve associados que admitiram com menos idade que eu, e só aos 17 anos é que me consegui fazer sócio desta coletividade. José Marques Martins: Aliás, era aquilo que diziam os estatutos. No meu caso, quer dizer, para além daquilo que o meu pai teve, aqueles genes, eu já via a coisa de outra maneira. Depende também tudo daquilo que nós temos na nossa alma, que vai cá dentro, porque repare: o meu pai também tocava numa banda, numa música, numa filarmónica, na Filarmónica de Tondela, e eu aprendi música também, por aqui, para tocar alguma coisa num órgão, porque me ajudava também nas celebrações. Mas gostei sempre do teatro, porque mesmo nos meus tempos de colégio eu fiz muito teatro, que é o teatro da escola. Fora disto, na minha aldeia, na minha zona, nós criávamos grupos, sem querer, que nem sequer chamávamos associação. Era um grupo em que nós nos defendíamos, em que nós sabíamos as coisas uns dos outros, em que nós nos ajudávamos uns aos outros e aprendemos a ver isso na agricultura, quando este grupo ia ajudar aquele na sacha e nas vindimas e aquele ia no outro. E isso, para nós, quer dizer, para nós era bom. Eu gostava porque também andei nisso, íamos: agora vamos ajudar aquele, depois daquele, vamos ajudar aquele e portanto, quando chegávamos ao fim, à noite, para nós era uma alegria vermos que todos estavam felizes, porque alguém ajudou outro e sabia que aquilo funcionava. Se me perguntassem o que é que isso era, eu hoje reconheço que aí já eram… havia um objetivo comum, havia o bem comum, isso era associação, era uma associação. Só que não era… aqui, quando eu chego à Covilhã, a coisa já era diferente, porque existe uma indústria, existe aquilo que nós também lá sentimos, os industriais daqui começaram a dizer assim: alto, precisamos que os nossos filhos… precisam de ter algo que os ensine, que os forme. Porque se nós não dermos condições aos nossos filhos para se educarem, para se formarem, não vale a pena continuar. Essa foi uma das razões que o associativismo nasceu aqui e lá também, pelo desporto, que é sempre uma escola de educação, em que havia também a parte da música, as letras e quando não havia escolas, era ali que nós íamos aprender. P: Fale-me mais nessa ideia, é muito interessante essa ideia de quase comunitarismo que existe na agricultura. José Marques Martins: Sim, muito importante, muito importante. Porque eu sinto isso de nós nos juntarmos em grupos e virmos para as grandes vindimas daquela zona do Dão. Nós íamos em grupos e havia sempre o líder do canto. O canto era aquilo que fazia a agremiação de todos. As desfolhadas, íamos agora a desfolhada, por hipótese, e íamos depois à desfolhada do não sei quantos e então nós todas as noites nos juntávamos e o milho aparecia nas eiras. E então como é que nós criávamos essa... isso é que que eu trouxe e que me ajudou. O que é que nos ajudava? Nós não íamos para as desfolhadas e estávamos ali feitos monos a desfolhar. Havia uma rivalidade como existe nas associações. A rivalidade de rapaz com a rapariga: eu liderava a parte do canto dos rapazes e picava as raparigas, onde havia uma tal Fernanda, que também picava os rapazes e isso criava... e quando nós damos por nós, já estava o milho, já estava tudo desfolhado, já estavam espigas todas no sitio como devia ser e já estava lá uma mãe, ou uma avozinha, a preparar o bacalhau com cebola e com tomates e com pão para nós comermos tudo no final da desfolhada. Isso era festa, fazíamos essa festa. E, portanto, isso cresceu connosco e ficou cá. Depois, é claro, aparecerem condições numa zona, como aqui apareceu, condições para trazer à tona aquilo que nós fazíamos, vamos em frente. Ou paramos ou deixamos que isso cristalize… Ou então fazemos aqui. Eu recordo que uma das primeiras coisas que fiz, que ajudei a fazer, na parte do teatro… fizemos aqui o Grupo Girtec, inclusivamente estive em Évora nessa altura a tirar o curso de animação cultural no teatro Garcia de Rezende, em 76, portanto, que me permitiu algumas luzes. Mas havia essa parte, digamos agrícola, muito interessante em que as pessoas se ajudavam umas às outras… P: E em meio urbano, também havia essa entreajuda informal? José Marques Martins: Diferente das aldeias. Aliás, aqui em meio urbano era assim: as pessoas trabalhavam e praticamente onde se reuniam era no final do trabalho ou nas tascas, nas tabernas, que era a Viene, era quase porta sim, porta sim, e depois à noite vinham às coletividades. A coletividade abria às 6:30 da tarde, todos os dias. E quando eu falo aqui num senhor que era, na altura chamavam-se contínuos, agora são empregados ou colaboradores, falámos aqui no senhor [...], era um homem que... de muita postura, de muita responsabilidade, gostava imenso da coletividade ao ponto de sofrer na carne dessa forte união. O que ele sentia pela coletividade e ao pôr-se ao lado dos dirigentes, na altura, era complicado... Ele foi preso na altura, vieram-no buscar ao Grupo de Rodrigo depois do seu trabalho, a polícia política veio buscá-lo aqui. Porque ele era forte colaborador com a direção, o grupo que esteve na altura... Quando se criou o grupo estávamos em ditadura e todos nós sabemos que as ditaduras viviam um bocadinho às avessas com o associativismo, porque o associativismo é democrático. Juntam-se várias ideias, juntam-se várias pessoas com um objetivo comum, mas as ideias fluem… Não há ali um indivíduo que diga: eu é que eu é que comando, é que não sei quê… Não, todos contribuem. Portanto, a vida associativa é uma vida que se transporta para a cultura, quer dizer, para os objetivos de luta. E é, tal como aqui, as coletividades, qual é que foi a luta aqui? Era o ensino, era a formação e ensino, educação e, neste caso, a lutuosa, como nós também sabemos. Havia razões. E o que era a lutuosa? Coitadas das pessoas… Quando morria alguém não tinham dinheiro, não tinham, sei lá, para mandar tocar um cego, quanto mais, era um objetivo definido, havia uma luta. E já que o governo não conseguia fazer chegar até ao necessitado essa resposta, eram as pessoas que se juntavam numa certa zona para criar essa resposta. E aí, claro, quem tem o poder, não gosta que alguém vá fazer-lhe frente com isso. Isso é verdade e, portanto, o associativismo era isso e daí que veio para aqui. E na altura olhavam-nos com uma certa… João José Silva: Na altura, quem não era deles, era comunista, tudo era comunista, desde que não fosse… Mas não porque aqui o GIR teve nos seus órgãos sociais, um ministro, na altura. José Marques Martins: Que foi presidente da Câmara e que oficializou a primeira escola primária aqui no bairro, que foi aqui na coletividade. O que era isso? Era a possibilidade de termos professores oficiais, porque até aí a escola era aqui do grupo, mas não era oficial, só que havia pessoas que ajudaram a dar a escola aos filhos dos funcionários... João José Silva: Depois foi oficializada… P: Estudou aqui, o João? João José Silva: Eu estudei, não aqui no GIR, não. Eu estudei na escola aqui do bairro do Rodrigo, e esse doutor Almeida foi eu quem travou o encerramento da coletividade. Porque era assim, havia um ajuntamento: o que eles estão a fazer na coletividade? Vamos lá ver o que é que se passa? Porque é que vocês estão a reunir? Porque é que vocês têm que estar a reunir? E aí havia desconfianças… José Marques Martins: Isto foi entre 1921 e 28. E em 1928 é quando a escola é oficializada e, sendo oficializada, já não era fechada de ânimo leve. A partir do momento em se oficializa uma escola, numa instituição, espera lá, isto é o Estado que dá luz verde, se dá luz verde… Porque até aí, é porque houve aí alguém que mexeu os cordelinhos, diga-se em abono da verdade. Agora que o princípio quando, faço ideia, quando isto começou nas tabernas e começaram a querer alugar uma casa aqui e arranjar e não sei quê, é que a PIDE e sei lá que mais o quê andaram de olho acima. O que é que estes indivíduos andam aqui a fazer? O que é que não sei quê, portanto tudo isso era... João José Silva: Até porque a escola oficial terminou aqui em 1950. Foi quando foi inaugurada a escola do Bairro do Rodrigo, em 1951. Ela tem, precisamente… é quase da mesma altura que o bairro em si. Eu, quando vim para o bairro do Rodrigo, a escola tinha sido inaugurada há um mês ou coisa assim. Foi logo a seguir, ou foi antes… Eu vim a seguir, exatamente. Pronto e depois entrei na escola aqui, com seis anos. Seis para sete. P: E nesse período antes do 25 de Abril, quais é que eram as principais atividades em que vocês participaram? José Marques Martins: Eu lembro-me que participei. Eram as damas, eram os jogos de mesa, jogos de… João José Silva: Snooker, bilhar... José Marques Martins: Mesa, era jogos de mesa, porque desporto no exterior não havia. Futebol de salão, de 11, não havia. Isso apareceu mais tarde, na abertura, depois… foi o 25 de abril. João José Silva: Aliás, antes do 25 de Abril, vai me desculpar, dentro desta coletividade foi formada uma outra, que neste momento é o CCD do Rodrigo. O CCD do Rodrigo saiu daqui, formou-se aqui. Porquê? Porque o CCDS, na altura, era um centro de recreios populares ligados à FNAT. E como eles não tinham instalações próprias, tiveram que pedir aqui a cedência de salas ao GIR do Rodrigo, onde eles fizeram os seus estatutos e organizaram-se como coletividade com o auxílio precisamente da FNAT. E aí, o que é que acontecia? Como havia os campeonatos regionais de futebol, que eram patrocinados pela FNAT, só conseguiam entrar se eles tivessem um local, uma sede, um sítio onde pudessem exercer a sua atividade. E essa associação, que funciona aqui, é nossa vizinha, e que está ligada hoje ao INATEL (não sei se já não é INATEL, é fundação), continua viva. E essa associação criou realmente um certo dinamismo a nível de desporto, porque elas estavam direcionadas para o desporto, nós aqui era mais a cultura, o teatro... José Marques Martins: Já fizemos os primeiros jogos florais da Covilhã, fizemos um jornal também, fizemos um boletim. Hoje, olhando um pouco para trás, João, o associativismo tinha uma grande força, porque não havia mais nada, não havia outras respostas. As pessoas procuravam respostas. Onde é que vinham procurá-las? Era aqui. Estar aqui onde havia o jornal, onde havia a televisão, onde havia um rádio. João José Silva: Os banhos. Vinham pessoas com a sua toalhinha, era aqui, na parte de baixo. José Marques Martins: Havia o sapateiro, as máquinas de barbear… Hoje o que é que nós temos? Temos a televisão que nos traz a informação e a contrainformação. E hoje o associativismo é uma forma de estar, portanto, há sempre um objetivo comum. Agora tem de ser recriado com novas formas, já não é como aquela altura. Quando, há um ano atrás, dizia: vamos, temos que fazer isto, ok? Nós vamos fazer, mas temos que fazer de uma outra forma que capte, digamos, que as camadas novas venham. Mas já não é da mesma forma que vinham antigamente. Antigamente vinham à procura de uma resposta, porque não tinham outras. Hoje, sabemos nós, que temos que estar em paralelo com outras respostas e hoje o associativismo vive de outra maneira. João José Silva: Eu digo mais, e com muita pena, o facto de haver grande alteração em tudo isto, porque as coletividades têm tendência a fechar-se. Com muita pena que eu digo isto. Ou terá que haver aí, o próprio governo… José Marques Martins: Eu, as coletividades, eu tenho uma outra... Isto agora, por exemplo, as coletividades têm que tomar juízo. Vamos lá ver, antigamente, lembro-me, lembro-me quando tínhamos água da poça, que era a da poça. Nós tínhamos as nossas hortas e o meu pai dizia-me assim: pega no sacho que hoje a água é nossa. Então eu vinha pelo caminho abaixo a calcar as loras dos bichos que era para a água não fugir, que era para a água chegar mais rápido à minha horta e para evitar que ela fosse para a horta do vizinho. Porque a água era pouca, tínhamos que a distribuir e a água era pouca e naquele dia era para nós, então andávamos a vigiar se alguém... Ora bem, nós tínhamos que ser transparentes, mesmo se quiser, tem que ser transparente. Ou os subsídios que possam vir têm que ser com transparência, saber para que é que servem, para onde vão, como é que são utilizados, porque senão estamos sempre naquela dúvida. Fulano que está mais perto da fogueira, aquece-se mais, não sei quê. Isto foi uma moda que andou e é preciso que pare. Depois também temos uma outra coisa que se torna importante: nós sabemos que nós temos instrumentos e que a outra coletividade não. Tem que haver algo que consiga saber o que é que aquela coletividade precisa e aquela e aquela, e, em vez de andarmos todos a comprar coisinhas diferentes, os instrumentos de uma têm que servir para os instrumentos da outra. É assim que eu entendo. É assim que entendo, porque senão corremos o risco de termos os campos de futebol cheios de tojo e de mato e nas aldeias e corremos o risco de termos grandes instalações em coletividades e termos poucos recursos humanos lá dentro. Eu recordo-me de uma entrevista que uma vez dei, quando esta casa teve a estrutura que tem, é uma beleza, sem dúvida, uma beleza, e paredes novas. Sem dúvida. Eu recordo-me disso. Mais importante do que numa casa aquilo que conta são os recursos humanos, porque se a casa não tiver recursos humanos, fecha, de hoje para manhã fecha, então servirá para outra coisa. Os recursos humanos é a coisa mais importante e trabalhar com recursos humanos dói e é preciso ter capacidade para gerir recursos humanos. Mas, sabendo gerir, nós conseguimos chegar lá desde que as coisas sejam postas na mesa, com toda a clareza. A Câmara subsidia e faz o seu papel. Mas não é, já não é, não pode ser aquele.... Vá lá que agora parece que há uma lei, é uma lei que conseguiram criar, um regulamento, que é importante. Mas o Parlamento… tem que ser feito desta… João José Silva: A atribuição dos subsídios não é dada assim, como era antigamente. Tem que se apresentar um plano de atividades, mas que não seja um plano de intenções: vamos fazer… Não, tem que dizer no papel porque é que vão fazer isto. José Marques Martins: Nós temos aqui um evento associativo que é tremendo e que não colhe frutos, não sei porquê: as marchas populares. Juntam-se várias entidades, várias associações, que gostam, que estão interessadas. Junta-se a Câmara. Há um bolo, há uma água da poça para todos. E então cada um, perante um mote próprio, sei lá, aquilo pode-se de hoje para amanhã, criar uma nova forma. Mas vamos, faz-se festa e só não vê quem não quer ver, não é quem não vê, que o que é que uma marcha faz, ao sair de lá de cima do campo das festas e vir até ao Pelourinho e ver aquele mar de gente a ver, que vem ver. Se vêm ver é porque gostam. E a Câmara sente-se ufana, mas são as coletividades, são as associações que estão a fazer todas um trabalho, cada um. E as pessoas vêm, as pessoas aderem. Porque há um objetivo, de fazer festa. Agora, aquilo que o João dizia é verdade. Se não houver um impulso que dê dinâmica a estas casas, morrem. E morrem porquê? Porque pode haver a cristalização dos órgãos. Isto chega a um ponto que também aborrece. O João esteve aqui muitos anos na direção. Eu tive mais tempo, eu cheguei a um ponto... muitos anos na casa que sentia-me preso, e agora? Não há gente nova e nós, não é que não gostemos da casa, mas o gosto que nós temos por esta casa é, digamos, é ultrapassado por aquilo que nós queríamos, de que outros viessem com novas ideias, como uma forma de estar... E não vêm, não há. E entra-se numa direção com nove elementos e é só quatro ou cinco que às vezes aparecem, sabe Deus com que sacrifício. Porquê? Porque eles próprios também, quando se juntam aqui e… eu não sei o que é que... O João nisso teve muito mais tempo na parte da direção do que eu, mas via, também sei ver. Chegava a um ponto que também se disse: enfim, mas vou trabalhar para quê? Havia a própria pandemia, veio estragar ainda mais. Nós tínhamos aqui a beleza dos Santos populares, aqui neste espaço que depois nós vamos ver, onde fazíamos as sardinhadas, fazíamos essa festa, e isso dava-nos ânimo. Vinha muita gente para a coletividade, sei lá, mais tarde, então vinha, só que veio a pandemia, retirou-nos gente. Agora estamos novamente a começar e, claro, há um elemento que sempre frutificou no associativismo, que é a taberna. A taberna sempre cá ficou. Em todas. Uma associação que não tenha um bar não progride. João José Silva: Em parte, um bar é na realidade... José Marques Martins: Um bar é que chama... é o café, a cerveja, as bebidas... João José Silva: Porque as bebidas são mais baratas... José Marques Martins: Vem desde os primórdios. João José Silva : Sim, já vem. José Marques Martins: Então, o bar tem que lá funcionar, se houver uma associação sem um bar… Nem que lá haja uma máquina de café. João José Silva: E quando refiro aqui, com pena, que digo que as coletividades têm tempos difíceis é que reparo, e aqui o José Marques é da minha opinião, é que não há pessoas a quererem colaborar. Hoje é… quanto é que é? Não há dirigentes E aí a Confederação, e muito bem, tem trabalhado no sentido de que, aliás já há o estatuto de dirigente associativo… Mas porque é que o dirigente associativo, que ocupa um pouco da sua vida, que quer queira quer não, nós andamos aqui uma vida, nós prejudicamos até inclusivamente o ambiente familiar, porque não estamos lá, porque aqui era a nossa segunda casa. Porque é que não há-de haver um incentivo para que as coletividades se mantenham abertas? José Marques Martins: Os governos pecaram. Eu não estou a dizer para nos darem uma reforma, nem nada disso. João José Silva: Porque hoje nota-se as dificuldades. Por exemplo, a Covilhã é rica em associações, como a doutora sabe. Neste momento, posso-lhe dizer que amanhã há Assembleia geral do Grupo, ato Eleitoral para os órgãos sociais, novos órgãos sociais. Posso-lhe dizer que amanhã há n associações que estão precisamente nessa situação: umas não têm direção, têm comissões administrativas, outras têm uma direção, mas à última da hora um não quer, desiste. É essa a parte, e o que é que a quantidade pode oferecer neste momento? Eu muita vez comentava para o Zé Marques, que é a pessoa com quem a gente, com quem a gente lida e eu lido muito bem, porque é um homem com muita cultura, fez coisas belíssimas aqui no Grupo Rodrigo, o Grupo do Rodrigo muito lhe esta agradecido, é verdade. O que é que o GIR pode oferecer às pessoas para virem à coletividade? Televisão... Aliás, a Confederação pôs aqui um posto público [de internet]. Nós tivemos um posto público aqui, na altura, com computadores, oferta pela Confederação, e também a parte dos instrumentos musicais. José Marques Martins: Tu estás a tocar num ponto importantíssimo, que é verdade. O dirigente associativo devia ser considerado, não devia ser só considerado na altura de eleições, nem só para grandes discursos escritos ou orais, através da rádio. Mas devia ter uma dignificação diferente. Nem que para isso tivesse que ter, e eu comungo disso, ainda há pouco tempo tirei um curso de evacuação, por causa de defesa de incêndios. Porquê? Porque estou a presidir a um lar e é uma unidade de idosos e de crianças e, portanto, preciso também de saber um pouco disso. Isso significa o quê? Que o dirigente… e sou voluntário, portanto, vamos cair no voluntariado. Ser voluntário significa algo que nós darmos de mão beijada sem ser à espera de usufrutos para o próprio, é para o bem comum. Isso é ser voluntário. Voluntário é quando damos alguma coisa para o bem comum. Agora, o problema é quando, e muitos pensam hoje que se vem para estas casas, para se atingir, digamos, uma elevação, portanto, um posto. Não pode ser. Se vêm com isso, não vale a pena virem. E, por isso, o dirigente associativo tem que ser alguém que tenha que ser dignificado. Como? Há muita forma. Não é com dinheiro, não é com salários, não é nada disso. Mas há dignidade e há posturas e o dirigente associativo teve muito… e há muito que é louvado pelas autarquias. As autarquias devem louvar os dirigentes associativos. E devem louvar por várias maneiras e posso-lhes dizer como é que podem e quais são as razões, por que é que os levam a isso. O que é que nós podemos oferecer? É a pergunta que se coloca: o que é que vocês lá têm para eu ir lá poder ir. Essa é a pergunta que fazem lá fora: o que é que vocês lá têm? Então temos que criar aqui. As autarquias também têm que entender que nós temos instalações onde podemos dar possibilidade de... dar formação, dar informação, fazer formação, fazer apresentações de pinturas, tanta coisa que se pode... se cá vierem hoje 15 indivíduos ver uma sessão de pintura ou uma sessão de leitura, vêm só cá 15 hoje, mas na próxima já vêm sessenta, porque são os 15 vezes 4, ou seja, se a coisa for bem clara, se houver aqui algo que lhes possa oferecer, caramba, custa assim tanto oferecer umas bolachas e um bolo e um porto para as pessoas aparecerem? Quer dizer, não é isso que lhes vai encher o estômago, mas é uma forma de acolher, uma forma de acolhimento e fazer uma leitura, por exemplo, ou mandar uma informação com as vacinas, com tanta coisa que nós temos, tantas dependências que são gratuitas para as autarquias. João José Silva: O GIR sempre soube receber bem. José Marques Martins: E onde os órgãos de certeza que se disponibilizariam, de acordo da sua especialidades, a ajudar, mas não, prefere-se pagar. Não estou a dizer que não se pague, tudo bem, mas existem possibilidades. Era uma forma de as associações estarem a servir o bem comum. Se as próprias autarquias não nos dão... Se só estão à espera que a gente lá chegue com o boné na mão para pedir o subsídio. Eu não gosto muito disso. 00:20:18 Joana Dias Pereira Então vamos voltar ao passado, pode ser? Embora esta conversa sobre o futuro seja também muito importante. Mas há bocado estava a dizer que também tinha estado antes do 25 de Abril no sindicato. João José Silva: De 1964 a 68. P: Que responsabilidades é que tinha? João José Silva: Eu era um escriturário na altura em que andava assim: eu batia à máquina. 10000 associados que tinha o sindicato, porque eram umas folhas que a gente punha o número daquele operário, a empresa… Por exemplo, posso-lhe dizer: a Nova Penteação, na altura a Penteadora, a Ernesto Cruz, o Alçado e Filho, a Lano Fabril, eram empresas com muitos trabalhadores e eu, a minha função era trabalhar nessas folhas, escrevia os nomes um por um. Joana Dias Pereira: E depois também esteve no sindicalismo, depois do 25 de abril? João José Silva: Estive. Fui dirigente sindical em 80 e picos, fui dirigente sindical, estava na área da saúde. E na altura o Mota, que era o responsável daqui do distrito de Castelo Branco, convidou-me e estive ainda… fiz o mandato de dois anos assim. Estive ainda ... P: Mas eram realidades diferentes, o sindicalismo antes e depois. João José Silva: Muito diferente. Também a verdade é que às vezes os horários... eu era assim, eu quando aceitei ser dirigente sindical pus essa logo ao Mota: eu não vou tirar tempo nenhum ao trabalho. Eu vou ser dirigente, sim senhora, com muito gosto, mas só vou às vossas reuniões, aos vossos congressos quando tiver folgas ou disponibilidade. Não quero meter nenhum documento a dizer que eu tinha direito a determinadas horas e determinados dias. Nunca, nunca, é assim, como diz aqui o Zé Marques, nunca me aproveitei, nunca precisei de nada para me promover, porque tinha a vida feita. Eu nunca, mesmo a nível do Grupo do Rodrigo, mesmo a nível de política, e o Zé Marques sabe perfeitamente, tivemos ali, colaborámos bastante, andámos ali… P: E estiveram noutras associações para além do GIR? José Marques Martins: Dirigente associativo, nunca fui, nunca fui. No serviço do meu do Instituto estive, mas isso...Agora, fora disso, sou sócio, mas não como órgão, lá dentro não… João José Silva: Eu faço parte de três. José Marques Martins: Trabalhei alguns anos na Liga Portuguesa contra o Cancro, mais tempo. Depois deixei, na altura em que a minha mulher adoeceu, e passei para outra área, para esta área do diaconado. Mas outras não, porque quer dizer, ou se trabalha numa... isto é como os presidentes administrativos das empresas, ou é um ou é outro, e depois andam a buscar daqui e dali. Havia lá… ainda bem que havia outros. Hoje, possivelmente, se nós se nos convidassem para ir para outras instituições… Mas também já não temos... Eu, pelo menos... P: O João disse-me que estava também na Liga... João José Silva: Estou, faço parte, faço voluntariado na Liga Portuguesa contra o Cancro, com muito gosto. E agora, sem ser…, fui convidado para fazer parte da Associação de Diabetes da Serra da Estrela. Estou a colaborar, aliás, sempre gostei de servir a comunidade, faço isso com um amor e carinho… E aí é, também um pouco da minha da minha vida. O Zé Marques teve uma vida muito mais ocupada, é uma sorte, mas ele faz muito bem o que faz e também é uma pessoa, não é por estar aqui presente, mas quero lhe dizer que é um homem com muita valia... José Marques Martins: Eu entrei para o diaconado, entrei para esta coisa, porque me interessei e estou a trabalhar em várias paróquias e faço a assistência espiritual também na prisão, o que me dá… Ensina-nos saber a vida deles, porque caíram ali, como caíram, o que é que faziam e, portanto, todos nós ficamos com essa ideia. Por outro lado, a nível da minha profissão no instituto, nós ouvíamos aquilo que as pessoas nos diziam e nós éramos túmulos, ou seja, só púnhamos na ficha aquilo que interessava e que era corriqueiro para outro colega ver. Mas, por exemplo, ouvíamos desabafos. Nós passamos aqui alturas de grandes crises, era cíclico, de três em três anos a têxtil tinha uma crise. João José Silva: E vai-me desculpar, na altura em que estive no sindicato, quando o Martins falou em 60 fábricas, upa, upa. Eu estive no sindicato, na altura eram 123 firmas. Claro que a gente… havia firmas que só tinham cinco teares ou tinham 10 trabalhadores, mas eram consideradas as firmas: 123 firmas, todas elas. Algumas eu recordo perfeitamente. José Marques Martins: Depois veio a crise das confeções e havia coisas deste género, havia desabafos. Eu estive numa Assembleia, pertenci a uma Assembleia Municipal que esteve retida. Trabalhadores de uma empresa não nos deixaram sair. E ouvia coisas, deste género, naquela altura havia a possibilidade de uma empresa que tinha 700 ou 800 trabalhadores, para poder vingar, tinha que pelo menos metade vir para o subsídio de desemprego e ficava lá outra metade. Então ouvia-se isto: ou vêm todos ou nenhum! Quer dizer, ouvia-se isto, era uma forma de estar. As pessoas… quer dizer porquê? Porque não havia uma informação que fosse transparente e concreta cá para fora, é preciso que seja feita desta maneira. Como agora com as vacinas, quando as informações vêm para o exterior como deve de ser, o povo até aceita. Quando não vêm... João José Silva: Aliás, o GIR teve aqui nas suas instalações, durante algum tempo, as formações dessas pessoas, como diz o Martins: vais para o desemprego... E eram colocadas aqui a fazer formações que não tinham nada a ver com a profissão que tinham. José Marques Martins: Nós tínhamos outras entidades e isto era assim: as entidades que nos abriam as portas e que nos facilitavam mais a vida tinham condições. Por outro lado, também havia esta possibilidade de, depois, quando elas começaram a fechar, porque ao princípio as mães, sobretudo as mães e os pais, a menina ou o menino, tinham o quinto ano, tinham de ser telefonista ou empregado de escritório. E eu, tanta vez que eu dizia para elas e para eles: por isso esqueça o emprego de escritório e esqueça o telefone, porque os deficientes também têm o direito a irem para o telefone e nós tínhamos um telefonista. Preparem-se para serem desenhadores, para serem modelistas. Tirem um curso de modelista. Mas porquê? Vêm aí as confeções, começaram a vir as confeções em grande. Claro que depois tiveram que ir tirar o 12º ano para serem modelistas, quer dizer. Portanto, houve um crescimento. P: E como é que era? Como é que se viviam aqui as greves, as lutas? Isto é uma zona muito operária... José Marques Martins: Tem graça, os primeiros mil escudos… Logo a seguir ao 25 de Abril, tivemos então, houve ali um aumento de mil escudos. A Covilhã sempre teve essa fama. João José Silva: Houve uma greve muitíssimo forte, já lá vão uns anos, ainda no tempo do Estado Novo. José Marques Martins: E antes do 25 de Abril, eu lembro-me, não estava cá a viver mas lembro-me de que a Covilhã… Havia aqui umas reuniões que se faziam. João José Silva: Porque era muita gente aqui, na altura o movimento operário era fortíssimo, fábricas com 700 e 800, e depois não era só, eram famílias completas... P: E isso vivia-se aqui no grupo, como é que era? João José Silva: Sim, sim, aqui, portanto, no grupo entrava-se, comentava-se às escondidas, sempre com receio que o parceiro que estivesse ao lado fosse denunciar, que estava numa reunião, que se ia fazer uma greve. José Marques Martins: Sabia-se, primeiro porque havia a parte clandestina e numa empresa é muito fácil e havia códigos próprios. Eu recordo-me, lá para os meus lados havia pedreiros, e tinham um código próprio. Quando o patrão chegava, eles tinham um linguajar próprio e as regiões tinham um linguajar próprio, ou seja, uma forma de se exprimir com uma certas palavras que só eles é que entendiam. Quem estava fora ouvia, mas não percebia. E isto é como eu digo muitas vezes, como se diz na Sagrada Escritura, mas não percebem. Só quem é de dentro é que percebe e, portanto, aqui também é a mesma coisa, nas fábricas, nas associações, comentava-se, mas de maneira a que... João José Silva: Até porque nos seus órgãos, a maior parte deles eram trabalhadores, eram pessoas da indústria de lanifícios, estavam ligados, quer queira quer não, direta ou indiretamente, ligados ao movimento operário, que era forte. José Marques Martins: E havia outra coisa. As famílias eram muito unidas, ou seja, não, não iam, não havia tantos problemas para onde se ir buscar e falar na vida dos outros. As pessoas não falavam, não comentavam, com receio de que lhes caísse em casa algum agente. João José Silva: Claro, a gente sabia aqui no Rodrigo quem é que era da PIDE. Estava sinalizado, a gente sabia, mas não tínhamos a garantia absoluta.... José Marques Martins: Eu cheguei cá, chego aqui em Novembro, e em Dezembro sou avisado, alguém me avisa de dois indivíduos da PIDE, alguém me avisa: cautela com sicrano. João José Silva: Nós tínhamos ... estavam sinalizados por nós, tanto que quando eles entravam aqui… uns não entravam porque não eram sócios e aqueles que entravam, recordo... José Marques Martins: Nós conversávamos, ouvíamos, mas para com ele parava, ali as coisas paravam. P: E nessas greves que duravam muito tempo, não havia movimentos de solidariedade para as famílias grevistas? José Marques Martins: Havia, eu lembro-me, por exemplo, na questão de quem tinha crianças e que as mães não podiam ter leite para as crianças. Então havia os leiteiros, havia uns indivíduos que andavam aí com os potes de leite. E portanto, ouvia às vezes com visitas destas… Não, não, hoje leite tem que ser… só lhe dou tanto, porque a fulana tem lá uma menina pequenina e não ganho nada, o próprio leiteiro tinha assim... e nas lojas nas lojas havia o fiado. João José Silva: O próprio GIR oferecia no início de cada ano letivo. Oferecia aos filhos dos associados esses livros, àqueles que tinham mais dificuldade. José Marques Martins: Pois, deixa-me ver, os vicentinos, nós ajudávamos muito. Os vicentinos são... ainda hoje, nós temos grupos que em que temos esse objetivo, nós temos aí zonas e temos famílias a quem ajudamos, quer com pagamentos de água e da luz, com os remédios e também com alimentos. Quer dizer, para além do Banco Alimentar, que aparece. Mas quando é nessas alturas, nós… quer dizer, ainda se aparece mais e depois até a própria génese das pessoas que vivem aqui, mesmo aqueles que não sendo de cá, mas que já são de cá, por exemplo, o Bairro do Rodrigo, estas casas que foram depois criadas já para outras pessoas que vieram para cá, até eles próprios, portanto, criaram esse élan de ajudar. João José Silva: E as comissões de moradores e tal, que na altura surgiram… O Rodrigo era um bairro operário. Ninguém lá morava que não fosse operário, exceto as quatro professoras da escola oficial. P: A comissão de moradores foi fundada quando? João José Silva: Foi em 76. José Marques Martins: Sim, certo, fizeram-se coisas bonitas também. Nós fizemos coisas interessantes. Aumentámos a escola e havia um Jardim infantil para onde iam os miúdos. Criou-se aqui, ele começou aqui. As festas populares que se faziam dos Santos, criámos uma casa mortuária aqui para o bairro, as festas populares de Santo António, onde a coletividade também teve um papel importante, e fizemos um trabalho… Sei lá, a gente diz assim, conseguimos reunir pessoas, mas nós éramos duros. O objetivo tinha que ser cumprido e às vezes afirmávamos: aquilo tinha que ser cumprido, isto é assim e cada um tinha a sua função. João José Silva: O GIR teve sempre uma ligação à comunidade muito forte. Isso é anteriormente, já não é do tempo dos Zé Marques Martins, porque é uma pessoa que apareceu na cidade em 1973. Antes havia uma festa, que chamavam a festas Zacarias, essa festa, era a festa de chamávamos Zacarias, porque ele é que era o grande impulsionador, um homem ligado ao GIR, mas era a festa das florinhas da rua. Então ele fazia essa festa, ia pelas quintas, dos associados e não só, pedir determinados alimentos e depois vinha para a festa para fazer oferendas. Aquilo era leiloado e o valor daquelas oferendas era entregue às florinhas da rua, que era uma instituição de solidariedade social, onde tinha crianças abandonadas. José Marques Martins: Essa festa depois foi recriada, recriei-a eu, durante três anos, para fazermos a casa mortuária e a Igreja, também fazíamos os tais leilões e depois fazia-se essa festa e a Festa de Santo António, e fazíamos grandes festas, que vinha para aí gente… Porque é que elas morreram? Morreram porque, quando nós olhámos, foi aí que começámos a notar, que se começou a ver o decréscimo dos órgãos diretivos, das pessoas. Começámos a olhar para o lado, ao princípio juntavam-se ali seis ou sete, oito ou nove ou 10, e depois começámos a olhar para o lado e só havia três ou quatro e depois quem ia já não estava interessado. E depois aquilo tirava-nos tempo, porque as famílias… E por isso é que no associativismo a família tem um papel importante. Nós estamos a falar de dirigentes associativos., A família associativa é para criarmos família, mas as nossas famílias eram o nosso alicerce: olha que eu só chego às tantas horas para comer, olha que eu não sei quê, as nossas famílias eram... Um bom dirigente associativo tem que ter atrás uma família capaz de aceitar e ver as dificuldades que às vezes… às vezes eram três da manhã ainda estávamos aqui... Hoje as famílias destroem-se e não estão tão... João José Silva: Hoje é completamente diferente. Por isso é que eu digo, com pena, que as coletividades têm que seguir para outro caminho, como diz o Zé Marques, com outros eventos, outras ideias, ou então… Porque não há ... P: Isso, as mulheres não vinham também? José Marques Martins: Vinham, sim. As senhoras vinham com outras, não vinham para… Depois, mais tarde, passaram a vir também para órgãos diretivos, mas lá mesmo não se sentiam assim tão bem. João José Silva: Não, não era fácil arranjar mulheres para os órgãos sociais. José Marques Martins: Por exemplo, havia um evento, havia o teatro ou havia dança. Vêm as mães com as meninas, vêm as mães… Havia as marchas, até máquinas de costura para aqui vieram para costurar e, portanto, elas colaboravam naquilo que os maridos estavam.... Nós planificamos tudo bem, também entrávamos, mas elas lá faziam, lá compravam, não sei quantos, e aquilo aparecia feito. E depois, no fim, quando fazíamos a festa, de tudo cumprido, dizíamos uns para os outros: epá, mas a malta parece que não fez assim tanto, podíamos ter feito melhor. Quer dizer, tínhamos feito uma coisa em beleza, mas no fim, dizer assim, podíamos ter feito melhor. João José Silva: É, o movimento associativo é.... José Marques Martins: Hoje não. Hoje faço uma coisa: pá, somos os melhores. Não, aquilo era... João José Silva: Hoje é assim, não se faz, manda-se fazer. É o grande problema... José Marques Martins: E depois aparece feito. Há alguém também que faz e esse alguém que faz começa a fugir. O indivíduo, as coisas aparecem feitas, mas o indivíduo começa a fugir. Espera aí, sou só eu? Começa a olhar para o lado e diz assim: mau! Porque depois é aquele que é fustigado, e então começa: não posso. Declina, porque o outro não sabe fazer, porque nunca quis aprender a fazer, porque isto é como os dirigentes associativos, quem vem de novo não é um dirigente associativo sem mais nem menos, tem que se ir modulando e formando com os mais velhos. Porque vai gerir recursos humanos. Ali fora, às vezes há disputas, há bocas, há um ou outro que se porta menos bem, que diz alguma coisa diferente e ser dirigente associativo é saber conciliar às vezes as diferentes ideias. Ser capaz de dizer assim: ele tem razão, realmente é verdade, isso é que é. Ser dirigente associativo não é chegar aqui e dizer assim: vamos fazer aquilo e aqueloutro. Tenho que ir à procura de recursos e saber gerir, e saber gerir é saber chamar as pessoas para um objetivo comum e quando é preciso fazer um objetivo comum, de certeza que se faz. Uma coisa que esta casa sempre teve foi isto: caiu o telhado aqui três vezes, não foi, e as pessoas apareceram. João José Silva: Uma solidariedade enormíssima, arranjar forças e pessoal, a gente ficou surpreendida mesmo. José Marques Martins: Havia um objetivo, eles viam que os dirigentes trabalhavam, nós saíamos do nosso serviço e vínhamos para aqui trabalhar: caramba, vamos lá ajudá-los. Eu tenho um exemplo concreto disto, e o João... na direção a que presidi, na altura, eu recordo-me que nos festejos populares, aqui sempre foi uma casa que teve grandes festejos, mas eu recordo-me que nesses anos, e é a experiência que tenho, de quando chegava aí às cinco horas da manhã, seis, e já havia mesas livres, eu pegava num balde de água e limpava as mesas para arrumar e diziam assim alguns colegas meus: epá, deixa isso, amanhã à tarde… E eu assim: não, se fizermos isso agora, a malta dorme melhor. Porque vamos descansados com isto limpo e ninguém saía daqui sem estar tudo limpo e lavado. E foi uma imagem que pegou. Todas as outras direções que vieram, na sua grande maioria, terminavam os festejos e, em vez de se irem ali sentar,, era mais um esforço, eu sei que era, mas também no outro dia, quando aqui chegavam à tarde, para outro dia de festa, era só pegar. Era um sacrifício, mas quer dizer, mas trabalhávamos. E quando, eu lembro-me de estarem aqui sócios assim: Epá... E havia sócios que: vamos lá dar uma ajuda, andam ali aqueles pobres sozinhos. Quer dizer se nós: Epá deem aqui uma ajuda. Olha, então aqueles não querem fazer nada e agora querem que a gente la vá? Portanto, isto também é ser dirigente associativo... P: Dar o exemplo, não é? José Marques Martins: Sim, porque, ora bem, se nós não dermos o exemplo, os mais novos não vêm… João José Silva: Muitos horários seguidos eu fiz no hospital, porque vinha para aqui trabalhar... Ai é? Queres dança? Então agora vamos fazer 16 horas. Trocava horário para jogar ... José Marques Martins: O João José, aqui na casa, também passou por aqui e sabe muito bem das dificuldades... E quando às vezes nos pedem… Quer dizer, nós gostamos da casa, gostamos da casa, mas já demos muito pela casa e temos pena que um dia possa fechar. Mas, se pudermos colaborar, contribuir para que isto cresça... João José Silva: E penso que estamos habilitados para, de alguma maneira, responder àquilo que é solicitado: um pouco da história do GIR, o que ele foi, o que fez. O que poderá vir a fazer, aí já é com as direções... José Marques Martins: Com as direções, uma ova, com os sócios, a casa faz-se com os sócios. Isto é, a direção pode querer uma coisa e os sócios não. Temos aqui 50 melros e queremos fazer uma coisa diferente… João José Silva: Sim, sim, mas a direção é que decide. P: Mas vocês também se organizam em comissões, por exemplo, o teatro? José Marques Martins: Nessa altura tínhamos as comissões, inclusivamente nas festas, havia comissões, mas havia muita gente, sobretudo nova. Quando eram as festas, quem que nós íamos buscar? Gente nova e fazíamos essas comissões e as comissões criavam o programa. Depois foi o que se… Quem estava à frente das comissões, se começava querer ser independente em demasia, a direção às vezes era ultrapassada e quando dávamos por ela já havia compras feitas assim sem dizer. Agora, no teatro criou-se um grupo muito homogéneo nessa altura. P: Foi em que altura, na década de 70? José Marques Martins: Sim, 60-70... João José Silva: 70 e tal. Não, isso talvez fosse em 80, foi 70-80… E daqui saíram alguns casados e namorados. José Marques Martins: Casaram. Namoraram e casaram. Porque nós andamos por vários locais a levar o teatro e foi numa altura complicada, porque foi o 25 de Abril, em que nós, eu recordo-me, até tenho uma história, que eu até vim mais cedo para cima, porque foi na altura do 11 de março, que essas histórias todas que houve, e eu estava em Évora a tirar… Uma coisa era a animação cultural, que era o Brecht, que nessa altura era o mais importante, mas quer dizer havia a parte política também que se metia em todo o lado. E aí eu nunca, nunca, nunca enveredei por esses caminhos assim um bocado tortuosos, porque isto era assim, isto é quem quer mentir vai para… sem ofensa para os políticos que todos nós somos um pouco, mas é verdade, promete-se, se pudermos fazer depois mais tarde fazemos. E eu às tantas dizia assim: eu não posso ir aí para a gente, para as aldeias, dizer que arranjo emprego para toda a gente, porque isso é mentira. Eu não posso ir mentir, portanto nós… e estou a dar este exemplo. Isto para dizer que ou se tem vocação para aquilo que é ou então não se anda a fazer e, portanto, uma coisa é realmente ter vocação. A minha esposa e outras senhoras é que pintavam, faziam os vestidos… Se não fosse isso, morria. Então, eu não tinha tempo para, quer dizer: camarim, dá-me, entrega, ABC desenrasquem-se, não sei quê, desenrasquem-se. E pronto, e depois aquilo aparecia, as coisas apareciam e nós confiávamos e não invadíamos a esfera uns dos outros. Ou seja, ela vinha pintada com uma sobrancelha preta e outra… Nós confiávamos, porque todos queriam que saísse o melhor possível. E quando o João diz que, todavia, saíram daqui dois ou três casamentos… João José Silva: Sim, sim. José Marques Martins: E depois era muita gente. Nós tínhamos 30 ou 40 elementos e a nossa maneira de gerir todos para... João José Silva: Dava-nos o prazer de escolher o melhor. P: E eram operários? José Marques Martins: Operários, filhos de operários eram todos, e havia um mestre, havia um, sim, mas que tínhamos que gerir aquilo de tal maneira a que ninguém ficasse ofendido. Eu não podia chamar aquele por ser muito bom, tinha de arranjar ali, às vezes, papéis secundários. Mas chegava a um ponto em que era tanta gente… P: O José fazia de encenador, encenava? José Marques Martins: Sim, sim, exatamente. P: Que peças é que encenaram? José Marques Martins: Oh, sei lá… Os dois irmãos gémeos, um era patrão e o outro era empregado, eram gémeos mesmo. E depois fazer o papel de patrão, de ditador, e depois quando mudavam, já na parte da democracia, ver as diferenças... Depois havia um debate a seguir. Uma outra peça, que foi muito importante, que era aquela que tinha três atos que teve para aí. Depois, nós até fazíamos aqui um teatro que demorava três horas ou mais, nós tínhamos a sala cheia, que era a casa do mestre Simão, era uma delas, eram três atos. Outras que foram encenadas, poemas, havia, sei lá, havia poemas, por exemplo… cantos, danças. Depois começou a haver a parte da dança e depois, claro, as coisas foram mudando, mudando, mudando, estão a ir... João José Silva: E a seguir foi feita aqui uma grande peça, Jesus Cristo. José Marques Martins: Também fizemos essa peça de Jesus Cristo superstar, ainda temos aí. O Cristo era um colega, o nosso motorista, o Rui. P: E faziam debates a seguir às peças? José Marques Martins: Começámos a fazer os debates já mais com essas do Brecht, porque estava o povo, já mais… em 76/77. P: Era uma altura em que também as pessoas estavam mais interessadas nessa? José Marques Martins: Já estavam mais, porque aqui, nós não entrámos logo aí. Entrámos naquela, porque aí o povo começou a querer ufa, ufa, quer dizer abriu-se, porque até 78-77, apesar de 74, 75, 76, ainda... João José Silva: Ainda estava tudo muito... José Marques Martins: Mas depois, quer dizer, voltámos novamente e a pôr peças... Fizemos uma sobre as doenças transmissíveis nessa altura também.... Mas era demasiado forte, porque as pessoas tinham medo de fazer perguntas. Olha lá, o que é isso? Sabia-se que, à boca fechada, que a pessoa sofria disto, das doenças transmissíveis ou sexuais, mas não era fácil em público fazer... P: Então já falaram várias vezes que nesse período pós 25 de Abril, esses anos são anos de grande efervescência cultural e da participação das pessoas. O que é que recordam assim mais marcante desse período? João José Silva: Não quer dizer que antes não tivesse sido marcante, antes do 25 de abril... José Marques Martins: Antes de 73, era marcante, mas vamos lá ver, houve uma grande mudança, houve. Eu recordo-me que eu fui trabalhar de manhã… Eu em 73, como disse, vim. Em 74 estava em Janeiro, estava na feira das indústrias, em Lisboa antiga, e tinha uma colega que era a Zélia, a Zélia que era mulher do Zeca Afonso. E quando viemos fazer a nossa visita a Vendas Novas, ao centro de formação, eu vim no carro dela. Vinha ela e vinham mais dois colegas, e ela, há uma frase que é dita na altura, mas que passou-me ao lado. Estávamos a falar que tínhamos vindo lá de forma, que enfim, muitas dificuldades que tínhamos, não sei quê. E ela sai-se assim: é, mas não vai ser por muito tempo. João José Silva: Não estava Longe. José Marques Martins: Nem eu sabia que ela era a mulher de Zeca Afonso, que eu não sabia, sabia que era a Zélia, pronto. Quando depois se dá o 25 de Abril, depois conversámos por telefone e quando nos encontrámos novamente e quando eu soube que era... depois a gente começa a associar. “Não vai ser por muito tempo”, porque já sabia, quer dizer. Quando se dá o 25 de Abril, as pessoas, ao princípio: ah, fica em casa. Mas depois estávamos agarrados à televisão, como estávamos agarrados à BBC de Londres e à Rádio Argel. Eu era daqueles que estava sempre agarrado à Rádio Argel, a ouvir, e a BBC. Eu arranjei um rádio pequenino para ouvir isso, portanto, havia uma ânsia que estava cá dentro. Dá-se o 25 de Abril, dá-se essa possibilidade, e as pessoas, quer dizer, libertam-se... João José Silva: Com o enjeitamento que houve após o 25 de Abril, nada contra os partidos, mas houve um enjeitamento... José Marques Martins: As associações crescem, as associações dinamizam-se muito mais, porque as pessoas já falam mais à vontade, já vêm mais à vontade, já vêm ler, já vem perguntar, já vêm que há mais abertura e já se fala sem medo. E aquilo que mais fez com que as associações crescessem foi a liberdade que apareceu, a liberdade de as pessoas se exprimirem e expressarem-se de toda a forma. João José Silva: Após 25 de Abril, isto era quase todas as semanas, os partidos políticos queriam fazer aqui comícios, congressos, conversas. Alguns outros nem tanto porque, pois começou aqui a surgir o problema de que se o GIR vai ceder as instalações a um determinado grupo político tem que deixar... José Marques Martins: E aqui nesta casa fez-se, quando ali a capela estava em obras, a eucaristia. E sempre se disse: não, vem para cá, mas também vem para cá uma outra religião, fazer também o seu congresso. Toda a Gente tem direitos, aqui é para sócios, sejam eles o que sejam. João José Silva: Tanto era o PCP, como o CDS, como o PSD.... José Marques Martins: Aliás, os estatutos dizem isso: não tem credos nem filosofias políticas. E entram aqui sócios de toda... Agora se me perguntarem assim, se para cá viesse a extrema-direita ou alguma coisa com... Também temos nos estatutos como objetivo a defesa do bem comum. E, portanto, temos essa possibilidade de… As pessoas abriram-se, as pessoas aumentaram, criou-se uma nova forma também de estar na vida. Falava-se mais, começámos a conhecer as dificuldades e os anseios de várias... as festas eram diferentes. Havia, portanto… houve uma abertura mesmo entre os bairros, quer dizer, houve uma explosão, primeiro de alegria. Depois vieram os anos difíceis e quando vêm os anos difíceis, nomeadamente quando vêm as crises e então numa terra destas em que tem uma mono indústria... Apareceu a Universidade, que veio dar vida à cidade, porque isto era uma aldeia pequena. A Universidade veio dar uma vida aqui à Covilhã… P: Estava a falar da abertura das associações e lembrei-me de uma coisa que referiu há bocado, que tiveram uma articulação com a associação mutualista. Como é que isso foi? João José Silva: Sim foi. Aliás, eu não tenho conhecimento pessoal, mas sei pelo que me contaram, pessoas que passaram por aqui, dirigentes e não só. Eu posso lhe dizer que, por exemplo, a Associação de Socorros Mútuos emprestou, em determinado ano, um valor de cem escudos, está aí um documento, cem escudos, para que se fosse concluído o resto da obra. José Marques Martins: Nós servíamos aqui de depósito, de certa maneira, daquilo que eles não tinham condições. E então nós, o grupo, era aqui que eles tinham a sede. A Cruz Vermelha também passou por aqui. João José Silva: Há uma outra associação que foi formada aqui também, a APPACDM, foi criada aqui. Mas essa dos 100 escudos tem a ver com a mutualista. Porquê? Porque na altura, um ou dois dirigentes do Grupo Rodrigo, por exemplo, estou a lembrar-me do [...] e outros, o [...] e não sei quê, eram dirigentes da associação. José Marques Martins: Na Cruz Vermelha também se deu o caso, dirigentes desta casa eram dirigentes da Cruz Vermelha. João José Silva: E, na altura - só para concluir, desculpa - o GIR estava com problemas financeiros para pagar determinado valor e a Associação Mutualista Covilhanense, era assim que se chamava, emprestou ao GIR essa importância, que depois foi paga, há aí um documento, está devidamente aí contabilizado P: E o próprio GIR? Estávamos ali a ver que também tinha uma função, também tinha essa vocação mutualista, não é? Pelo menos com a questão do subsídio de funeral? João José Silva: Não havia previdência, a previdência aparece em 1961. José Marques Martins: A lutuosa aparece para ajudar os funerais, para levar as carretas, porque as famílias não tinham dinheiro: eram 500 escudos, ou 1000, pronto, e depois pararam quando vieram as agências. João José Silva: As agências não se preocupavam com a previdência, que não havia na altura, preocupava-se era pedir o cartão de associado e com esse cartão é que vinha ao GIR levantar o subsídio anual, que era de 500 escudos, hoje são 1000 escudos ou cinco euros. José Marques Martins: Hoje, praticamente, ainda está nos estatutos, mas é uma coisa que está só para fazer memória, porque a previdência hoje já funciona de outra maneira, mas está como memória porque foi essa uma das causas da nascença da coletividade. Há duas causas importantes, que é a educação dos filhos dos sócios, e aqui foram os filhos que levaram os pais. Vamos lá ver, os pais primeiro quiseram que a escola fosse aqui feita para educar os filhos, mas depois os filhos vieram para a escola oficial durante o dia e os pais vinham à noite. Os filhos é que levaram os pais a perceberam que também tinham necessidade de aprender. P: Depois também houve instrução para adultos? José Marques Martins: O pai e a mãe que vinham para aqui aprender… P: Isso em que altura? José Marques Martins: Pois, foi de 1900 a 1928, a escola foi... P: No vosso tempo ainda havia esses cursos para adultos? José Marques Martins: Não, no nosso tempo foi só formação. João José Silva: A escola no GIR acabou em 1950, 49-50. José Marques Martins: Eu aqui tenho as aulas diurnas para os filhos e as aulas noturnas, que era a dona [...], e depois a escola foi apetrechada e inaugurada pelo presidente da Câmara, o [...], em 1928, portanto, passados sete anos. De 21 até 28 funcionaram aqui alguns indivíduos a dar umas aulas que ensinavam os filhos... outras escolas. Em 1931, portanto, passados três anos, é que o governo reconhece o mérito e dá o estatuto de escola pública. Então, nessa altura é que foi nomeada uma professora oficial, que era essa dona [...], que era a professora. Quando as escolas do Rodrigo, como tu dizes, em 50 se fizeram aqui, acabou, não tinha razão de ser. P: Esta questão da memória já deu para perceber que é uma coisa que vocês valorizam muito. Têm ali o museu, os dirigentes conhecem a história, e acham que esta questão da memória é importante para a identidade do movimento, ou seja, os dirigentes vão passando uns para os outros este legado e é uma coisa importante, ou seja, tem aquela ideia de… isto é uma coisa que é tão antiga, esta tradição, a gente tem que continuar isto. Acham que é importante esta questão da história, o peso da história? José Marques Martins: Essa questão está a pôr, torna-se muito importante. E pode ser até uma das formas de revitalizar novamente também o movimento associativo. Eu, para construir… Qualquer pessoa que tenha dois dedos de testa, para construir o futuro tem que viver bem o presente. E sabendo a memória do passado, aquilo que errou e aquilo que fez de bem, portanto, só assim é que se pode construir. Eu, na minha vida, costumo dizer e prego: peço perdão daquilo que foi mal feito, vivo com muito gosto o meu dia a dia e quero fazer melhor ainda no futuro, mas para isso tenho que ter um saber do que é que foi feito atrás. É altura… E eu parece-me que que nós estamos a cometer uma falha, parece-me, que os órgãos sociais estão a cometer uma falha não só aqui, possivelmente em todos, era de dar a conhecer de facto aos novos toda a história desta casa, porque muitos entram aqui sem conhecer a história, vivem de hoje para a frente, vivem este… Vem aqui ao bar um jovem, mas até aqui houve um caminho, houve um percurso e penso que nós devíamos... Nós temos isso, esta casa tem as fotografias, tem livros. Mas as pessoas não leem, não veem as fotografias e, possivelmente de tempos a tempos, devia-se até passar, sei lá, ou em projetor ou retroprojetor ou qualquer coisa do género, digamos, um tempo do que é que foi isto, como é que isto começou, o que é que era a Covilhã naqueles tempos, em 1920, fotografias daquele tempo. E depois, até, haver às vezes debate e outras coisas do género Não era preciso uma tarde, havia de chamar as pessoas mais antigas, pessoas que passaram por aqui, porque há sócios antigos que passaram e eles conheciam as histórias. E começar a fazer isto. Com quê? Com as escolas. Eu não vou chamar os do secundário nem os universitários. É mais fácil os universitários virem cá do que os alunos do secundário. O universitário já está noutra dimensão e gosta também da parte histórica. Mas as crianças das escolas, os do básico ou os do ciclo vinham cá com todo o gosto. Os professores vinham ouvir, quer dizer, era uma forma de levar os miúdos a verem o que é que os bisavós deles… Olha, o meu avô andou ali. Nós tínhamos aqui um presidente da Câmara que cada vez que vinha aqui, o Carlos Pinto: eu andei nesta escola, andei na escola do presunto, e andou também você. Quer dizer, e essa conversa levava a que, quem sabe, lá os miúdos de hoje para amanhã… Era uma forma de espevitar o gosto pela casa. João José Silva: O problema é… Estou completamente de acordo com o Zé Marques, mas falta o melhor, falta a parte humana. Porque nós temos que ver as direções que entram para esta… para o GIR do Rodrigo ou para outro qualquer, às vezes têm tempo limitado, vêm com dois anos e por muita vontade que queiram fazer determinados eventos e dar a volta a isto, olha-se para o lado, como disse o Zé Marques: tinha cá 10 agora só cá tenho três. Onde é que estão os outros sete? Cansam-se, hoje. Eu não tenho nada contra a juventude, mas entendo que era preciso um trabalho muito forte. Falo do GIR, porque é um caso que eu conheço muito bem.Havia que procurar chamar para a coletividade pessoas que desenvolvessem esse tipo de trabalho, porque não é fácil a um dirigente associativo ir às escolas e passar a mensagem: epá vão ao GIR Rodrigo que amanhã temos lá a apresentação de um livro ou a passagem de um vídeo para se saber o historial da coletividade. Não é fácil. E o Zé Marques sabe que não é fácil. É assim, as direções são o que são. Não precisam ser doutores. É preciso é que sejam pessoas realmente com uma vontade extrema de que vem para servir a coletividade e não servir-se dela. E ao mesmo tempo, às vezes não têm tempo, trabalham, têm a sua vida. Nós perdemos aqui n horas… José Marques Martins: Tudo se faz. Olha, vou dar o meu exemplo aqui hoje… Hoje era para estar, de manhã, eu disse para quem me telefonou: espera lá, eu tenho uma celebração às 10:00 e não tinha ainda na altura, mas tinha. Hoje estive no Pezinho. Mas pronto, chegou-se à conclusão que podia ser às 14:00. Isto para dizer que não havendo gente… Mas tu tocaste aí um ponto importante, desde que haja vontade, e de que haja pessoas capazes, nós estamos cá os dois, possivelmente se fossem outros não estariam, mas continuo a dizer que vale a pena investir nesse campo, pegar na gente nova e pô-los em colaboração com os mais velhos e com a riqueza do passado para eles verem: epá de facto estes indivíduos fizeram isto. Caramba, como é que eles conseguiram? Com tão poucos meios conseguiram… E essa é a pergunta que lhes fica e nós, com tantos meios, não conseguimos. Porquê? E aquilo entra e aquilo burila. Talvez eu fale assim, porque como estou numa instituição que tem idosos e tem uma parte infantil e a gente de vez em quando juntamo-los e os mais novitos perguntam e até fazem aquilo, andam lá de bengala e os miúdos também com a bengala atrás dele também, acho eu, a imitá-los. Mas olhamos para aquilo e, sinceramente… um miúdo pegar, vê que o avô, coitadinho, lá anda e quando andam com aqueles com uma cadeira rodas: também quero ir. Quer dizer, os minutos querem andar de cadeira rodas porque... e depois aí o professor tem um papel importante, que é dizer assim: olha, vês, quando ele era assim da tua idade, não sei quê, não tinha esses carrinhos, tinha assim outros bonecos, depois nós temos lá os brinquedos antigos. Aqui também podia ser. Era uma forma de espevitar. Porque nós… Quer dizer, está tudo à espera: quanto é que dá, como tu dizes? Não tem que dar, não pode ser… Mas é uma forma, essa questão que levantou, de que forma é que é indo buscar a nossa história… É importante sabermos a história e os novos, e nós fazermos chegar aos outros essas memórias. Se nós não perdermos, se esta casa perder a memória, esta casa fecha. Mas enquanto esta casa tiver memórias, aí a casa não fecha. João José Silva: A verdade é que nós andamos há muitos anos, e não sei a história do grupo. Completa não sei. José Marques Martins: Possivelmente, há muita gente que não sabe, nem os nomes dos primeiros... João José Silva: Há muita gente que não sabe como é que isto começou.. José Marques Martins: Quando andavam aqui com obras, os livros não estavam ali no meio do lixo. Eu estava em Tondela e, quando vinha, andava no meio do lixo a tirar os livros de atas. João José Silva: Não há sensibilidade. O que é isto? Papéis... José Marques Martins: Nós temos que passar a memória, porque se nós não o fizemos, se esta casa não fizer memória do que foi e do que é, fechará no futuro. João José Silva: É de salientar as pessoas que passaram por aqui e as que vierem no futuro, porque não é fácil. Não é fácil arranjar dirigentes associativos. -
25 de novembro de 2021
Leontina Tojeira Pereira