Itens
Tema é exactamente
Sindicalismo
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Junho de 2022
Maria Angelina Ferreira
Entrevista realizada a Maria Angelina e José Manuel Ferreira em São Roque, em junho de 2022 P: Podemos começar pela Angelina? A Angelina nasceu aqui? Angelina Ferreira: Nasci em São Roque. Não foi nesta zona, foi no centro da Freguesia. Nasci em 1952 e lá cresci e estive na escola primária. Só fiz a escola primária porque depois o meu apreço e interesse pela costura foi muito grande e eu fui aprender costura. P: A sua mãe já era costureira? Angelina Ferreira: Não, a minha mãe era operária fabril aqui em São Roque, na Sociedade Corretora, que era uma fábrica de conserva de peixe, de atum. Era uma fábrica que sempre trabalhou com muita gente, mas que agora está.... P: Muitas mulheres imagino. Angelina Ferreira: Muitas mulheres, não só que São Roque mas de outras freguesias. P: E o seu pai? Angelina Ferreira: O meu pai também trabalhava na mesma empresa, mas era motorista de camião. P: E também nasceram aqui? Angelina Ferreira: Sim P: A família foi sempre daqui? Angelina Ferreira: Sim, sempre daqui e nunca renegamos a freguesia. P: Porque é que foi para a costura? Angelina Ferreira: Porque sempre gostei de costurar. P: E foi logo que acabou a quarta classe? Angelina Ferreira: Eu ainda estava na escola, porque no tempo em que eu estudava era preciso fazer um exame de admissão para ir estudar. A minha irmã tinha ido estudar, os meus pais também queriam que eu fosse, e eu ainda estava na escola. Fazia-se o exame em Ponta Delgada, aqui na escola primária de São Roque, e claro a minha mãe mandou fazer um vestido a uma costureira para eu ir fazer o exame. Entretanto eu pedi logo à senhora para ficar lá, mas fiz o exame e passei com muito bom resultado. P: Ficou a aprender costura.... Angelina Ferreira: Fiquei a aprender costura. P: Tinha 9 anos, 10 anos? Angelina Ferreira: Não, onze, porque naquele tempo, eu sou de 52, só se ia para a escola depois de fazer os 7 anos e eu fiz 7 anos em Janeiro e entrei em outubro. Portanto já saí com 11 anos feitos da primária e do exame de admissão ao liceu. P: E depois ficou na costura? Angelina Ferreira: Fiquei durante 4 anos e com 15 anos comecei a trabalhar por minha conta. P: Como é que era? Era modista? Tinha um ateliê? Angelina Ferreira: Aqui não havia assim estilistas, era só as chamadas costureiras e eu considero-me uma costureira. P: Mas era em casa? Angelina Ferreira : Era em casa e sempre trabalhei em casa. P: E trabalhava para pessoas individualmente ou para empresas? Angelina Ferreira: Para pessoas individualmente e com um grande leque de clientes que ainda hoje tenho. P: Então foi uma vida inteira? Angelina Ferreira: Uma vida inteira e nunca me arrependi e ainda hoje faço. P: Foi a sua profissão sempre, sempre aqui em São Roque? Angelina Ferreira: Sempre em São Roque, na casa dos meus pais. A casa era grande, mas não era suposto eu trabalhar em casa, não tinha lugar próprio. Era num quarto e ensinei muitas miúdas. Naquele tempo as mães queriam que as miúdas fossem aprender costura, cheguei a ter sete miúdas ao mesmo tempo. Agora trabalho sozinha. P: E depois quando se casou, passou a trabalhar na vossa casa? Angelina Ferreira: Eu fiquei em casa dos meus pais, porque tinha a minha avó. Eu cheguei a ter as duas avós, do lado materno e do lado paterno, lá em casa. Primeiro morreu a mãe da minha mãe e depois...A minha avó paterna é que me criou, porque a minha mãe trabalhava e eu ficava sempre com ela. Eu tinha uma afeição, um amor muito grande pela minha avó. Fiquei sempre na casa dos meus pais, porque o meu pai, naquele tempo quem tinha uma casa era pronto... O meu pai tinha aquela casa e não queria vende-la e não queria que eu construísse outra e, atendendo a que a minha avó precisava dos meus cuidados e a minha mãe já tinha morrido, eu fiquei sempre com o meu pai e com a minha avó, e com o meu marido. Os meus filhos nasceram na mesma casa e depois do meu pai morrer é que construímos esta casa. P: Então e o José Manel também nasceu aqui em São Roque? José Manuel Ferreira: Nasci nesta freguesia, em 23 de Abril de 1954. A minha mãe era doméstica e o meu pai era funcionário público, trabalhava na alfândega de Ponta Delgada. Fiz a quarta classe também aqui, depois fiz exame de admissão ao liceu e à escola Industrial. Optei por ir para a Escola Industrial, porque o liceu não me cheirava muito bem, era mais do tipo dos Fifis, e então fui para a escola Industrial. Tirei o curso de contabilidade em 1971 e comecei a trabalhar, naquela altura. Depois encontrei aqui esta moça ... Angelina Ferreira: Eu não me esforcei ... P: Como é que se conheceram? Angelina Ferreira: Foi nos encontros da JOC. José Manuel Ferreira: Conhecemo-nos e ainda estamos atados. A minha mãe foi sempre dona de casa. Foi quem nos criou. Era uma mulher assim muito metódica. A minha mãe tinha que nos arranjar para quando o meu pai chegasse a gente estar todos limpinhos, todos arranjados.. A gente não se podia sujar nessa altura. A diferença de mim para o meu irmão são três anos. Está a ver o que é, a gente de vez em quando tinha aquelas turras e aquelas coisas entre nós e depois a minha mãe quando o meu pai chegava a casa... O meu pai era uma pessoa muito mais aberta do que a minha mãe. A minha mãe era assim mais fechada e às vezes o meu pai chegava a casa e a minha mãe dizia-lhe assim: Oh Zé (o meu pai era José Jacinto), os rapazes fizeram isto e aquilo, contava a história toda sobre o que a gente fez. E o meu pai respondia: Armanda, quem é que estava em casa? Não eras tu? Então tu é que tinhas de os repreender. O que é que eu vou fazer agora? – portanto, ele era assim muito aberto. P: Naquele tempo não era comum, pois não? José Manuel Ferreira: Não era muito comum. O meu pai era muito mais aberto que a minha mãe. A minha mãe era mais metódica, mais miudinha, mais fechada, mas pronto ela é que nos criou. Na altura, também vivi na casa dos meus avós. Ainda conheci uma bisavó. Depois a minha bisavó faleceu e eu não quis ir vê-la, porque gostava muito dela e não quis ir vê-la. Depois faleceu o meu avô que gostava muito de mim. E tive assim uma história assim um bocado atrapalhada, porque de 27 de Março a 5 de Abril faleceu o meu avô e o meu pai, e eu fiquei assim, naquela altura... A minha avó ficou viva e eu fiquei o único ganhando para a casa. Portanto, comecei novinho, não tinha 20 anos ainda, ia fazer 20 anos. O meu pai morreu a 5 de Abril e eu fiz 20 anos a 23 de Abril. Fez-me bem, porque fui crescendo. Aliás, porque quando o meu pai estava doente e não podia já ir às compras ao mercado, eles faziam-me uma nota e mandavam-me ao mercado e eu dizia: Mas eu não vou saber fazer isto. Vais, porque tens que ir aprendendo. Portanto, foi assim o meu princípio de vida. P: Então e a participação na JOC, começou quando? Angelina Ferreira: Eu tinha 18 anos e com 20 anos quando fui ao Conselho Nacional da JOC. Eu tinha começado na JOC com 16 ou 17 anos. P: Era aqui na freguesia? Angelina Ferreira: Era na freguesia e ao sábado tínhamos o Conselho Regional em Ponta Delgada. Não era bem Ponta Delgada, era em São Pedro, havia lá uma sede. P: E também participava o José Manuel? José Manuel Ferreira: Eu entrei ia fazer também 18 anos. Entrei também para a JOC. P: Para o mesmo grupo? Angelina Ferreira: Não, havia o masculino. José Manuel Ferreira: Era na altura da separação, mas nós tínhamos reunião ao sábado. Também entrei em 1971. Fazia cá em cima a reunião aos sábados e depois fazia o regional lá em baixo, em São Pedro, em que nos reuníamos todos. P: Então foi nesses momentos que se conheceram? Angelina Ferreira: Não, não bem nesses momentos. Veio uma moça do continente que também era da JOC e na minha casa a gente recebia toda a gente. Já conheceu a Manuela não foi? Essa moça vinha cá porque queria vir conhecer a ilha e a Manuela, como a gente tínha uma casa grande, disse-me: Olha, será que vocês podem ficar com uma moça, a [anonimizada]. E nesses encontros a gente ia dar passeios com ela e o Zé também ia e foi nessa altura. P: Então e digam-me uma coisa, os vossos pais também já tinham essa ligação com estes movimentos ou foi uma coisa nova? Angelina Ferreira: Não, não era uma coisa nova. Há muitos anos que já havia JOC em São Roque, porque o meu irmão pertenceu novinho, já tinha um grupinho, mas era só rapazes, isso acabou. Na altura os moços iam para o ultramar e depois alguns casaram e acabou. Ao fim de muitos anos, a Manuela é que veio fazer esses encontros em São Roque e eu fiquei fascinada. Na altura não saíamos muito e naquela altura era tipo uma reunião todas as semanas. E foi quando começou. P: Não havia, só para perceber, não havia nenhuma outra associação aqui na freguesia? Angelina Ferreira: Não, de jovens não. Depois vieram os cursos de Cristandade, mas eram aqueles senhores da Freguesia mais cultos que iam para os cursos de cristandade. Nós éramos solteiros, ainda novos, não participávamos. O meu pai também não, porque a minha mãe não tinha escola e o meu pai foi obrigado a tirar a quarta classe para ter carta de condução de pesados já em adulto. Mas nunca nos impediram de crescer. P: Então e a Manuela chegou cá e como é que ela criou o grupo? Angelina Ferreira: Ela chegou cá, eu não sei se foi o padre [anonimizado], que era o padre da freguesia, que falou com algumas moças... Eu tinha na minha casa uma moça que era da Ribeira Quente e que trabalhava aqui em São Roque e não havia possibilidades dela ir todos os dias para a Ribeira Quente e ela ficou. E ela é que foi a primeira a ir. Na altura, eu estava aprendendo uns bordados numa máquina de costura na junta de Freguesia. E ela foi para aquele grupo com a Manuela e vem para casa e já: Ai Angelina, eu estive numa reunião com uma moça e eu gostei tanto. Na outra semana eu fui e assim foi. P: E o que é que era que a fascinava? Angelina Ferreira: Não sei. Eu sempre fui muito ligada à Igreja e os meus pais. Eu dizia que era uma beata. Fiz a catequese, fiz a comunhão, fiz o Crisma e dei Catequese. Fascinava-me aquelas conversas, aqueles testemunhos de vida que uma dava e outra dava. P: E quais eram os temas mais recorrentes? Angelina Ferreira: Acredite que eu já não me lembro, mas eu sei que na altura eram problemas de trabalho, de igualdade, dos que eram mais e dos que eram menos, que isso não era direito e que a gente devia lutar para haver uma igualdade. E eu já sentia que na minha casa havia isso. Porque essa moça da Ribeira Quente, só ia de mês a mês, porque as viagens eram caras e na altura não havia muitos carros, era só autocarros. E depois o irmão veio estudar e também para não ir, não podia ir para a Ribeira Quente todos os dias, também ficou na minha casa. Os meus pais sempre acolheram toda a gente e aquilo, portanto, ajudou-me a crescer e a entender. José Manuel Ferreira: Até porque a casa dos meus sogros era tipo uma pousada. Eles acolhiam toda a gente, até espanholas que trabalharam na cultura estiveram lá, dormiam e tudo. Portanto, aquilo era uma casa.... Angelina Ferreira: Elas vinham dar formação.. José Manuel Ferreira: Elas vinham dar formação pessoal e depois não havia lugar para ir para baixo e lá ficavam em casa da minha sogra e do meu sogro. Eles eram umas pessoas assim, nesse aspeto, eram muito acolhedoras e gostavam de acolher toda a gente. E depois, como eu estava dizendo, a gente principiou quando a [anonimizada] veio cá. Fomos dar uns passeios, mas já nos conhecíamos há muito tempo. E depois também tinha outra coisa, nós já nos conhecíamos antes, porque fizemos uma peça de teatro. Como estávamos na JOC, o padre naquela altura: Vamos fazer uma peça de teatro para o encerramento da Catequese e pela festa da paróquia - e foi no mesmo sítio, aqui em São Roque. E a minha sogra é que me conquistou e eu vou-lhe dizer porquê. Porque ela fez uma sopa de peixe espetacular, que nós tínhamos que comer na apresentação da peça. Eu era casado com a Angelina e tínhamos o nosso filho, que era o Jorge, o moço que depois foi para América, que era também da JOC. E eu disse: Que peixe tão bom! Se a mãe sabe fazer, a filha também deve saber. E pronto, já comecei tipo a arrastar a asa, como a gente costuma dizer. Depois fomos a uns passeios...E depois fomos num dia fazer uma discussão, no dia 4 de Setembro, eu nunca me esqueço da data. Fomos fazer uma excursão, fomos muita gente e tal e depois quando chegamos dessa excursão, a [anonimizada]: Vamos até... – a gente foi até Pico, ali em São Roque, aquela parte antes, tem uma vista à noite que é muito bonita. Diz ela: Também vou. Lá fomos todos. Subimos lá para cima e eu quando desci já desci mão dada. Já desci de mão dada. Portanto, foi o dia da excursão que aquilo começou e depois foi subindo e eu disse: Não, isto quando descer tem que levar uma volta. Então, já descemos de mão dada e a partir daí foi fazer uma caminhada. Fizemos uma caminhada juntos. Depois o meu pai esteve muito doente... E há uma outra coisa que é assim: antigamente tinha-se que falar com o pai da namorada, para saber qual era o dia que falava, quais os dias que dava e depois os pais tinham que apresentar à noiva do outro lado... A gente não fez nada disso. A gente já estava mais avançados, não se fez nada disso. Começámos a namorar e o meu pai que era muito esperto, passava de vez em conta de baixo da rua e dizia: Ai, Ai, Ai, quando eu chegar a casa.. Mas nunca me disse nada, nunca abriu a boca. Depois o meu pai esteve doente, teve que ir para o hospital. A minha mãe ficou. Então quem é que foi dormir com a minha mãe? A Angelina. Pronto, já está tudo certo, já fica tudo feito. A família já está pronta, já é tudo de casa. Essa história é assim. Na JOC, fiz um percurso a partir dos 17 anos e depois na altura ainda estava acabando mas havia a Juventude Estudantil Católica e eu fui para lá. E comecei a gostar daquilo porque aquilo tinha muita coisa boa. A gente em casa, o meu pai era funcionário público mas era dos do contra. Ele estava doente e os funcionários públicos, na altura, eram obrigados a ir por um papel na urna. E como ele estava doente, fui eu pô-lo. Depois o meu pai já conhecia a Seara Nova, já era daqueles rufiazinhos, e aquilo também mexeu com o sangue. E a maneira como eles trabalhavam, que era o ver, julgar e agir, a revisão operária. Eu não sabia fazer a revisão de vida operária porque ainda estava acabando o curso, depois é que comecei, em agosto de 1971, a trabalhar. Mas o ver, julgar e agir, aquilo já me dizia muita coisa. E depois o contato. Eu ao princípio não sou, mas depois quando começo fico muito sociável, que às vezes fico assim meio coiso... E então eu gostava daquilo, eram muito abertos aqueles encontros, a gente falava à vontade, não havia: cala-te para aí. E uma vez eu estava muito calado e o [anonimizado], que era Presidente aqui de cima, assim: Oh Zé, qual é a tua opinião? Eu disse: Eu vou-te dizer uma coisa, vai sair asneira. E ele assim: Se tu disseres uma asneira estás colaborando para que a gente aprenda também alguma coisa. E a tua asneira até pode ser uma coisa certa, como é que tu sabes que é asneira se ainda não disseste? E, portanto, aquilo ainda me pôs mais à vontade e a partir daí eu estive muito, muito mais à vontade. Fez-me crescer e ainda hoje, por incrível que pareça, ainda hoje às vezes, porque depois comecei a militar em movimentos como a Cáritas e essas coisas assim, às vezes eles começavam: ah não sei quê... e eu começava-me a rir. Agora estás sempre a rir. Isso que estás a dizer agora, isso já há tantos anos atrás já era assim. Isso não é nada de novo. Isso não é nada de novo e isso fez-me viver mais, estar mais à vontade. A JOC para mim foi uma caminhada boa de vida, uma caminhada grande de vida. Foi uma coisa que despertou algumas coisas que deviam estar adormecidas cá para dentro e foi muito bom. P: Estava-me a dizer que o seu pai era do contra, em que é que ele participava? José Manuel Ferreira: O meu pai não podia participar muito às vistas e às claras, porque senão era posto fora do serviço e o que é que ele ia fazer? O que é que a gente ia comer em casa? O meu pai, das coisas que ele mais embirrava, era ser da Legião Portuguesa, mas se não fosse era posto na rua do emprego, que era a Alfândega. O meu pai para entrar para a alfândega teve que ser através de um primo dele, que era informador da PIDE, que teve que dizer que o meu pai era muito bom rapaz, filho de boa gente e não sei quê. E avisou o meu pai: Nunca digas que és da Seara Nova ou que tens livros em casa, tu nunca fales nisso. A primeira vez que falares nisso, procura um emprego noutro lado qualquer porque.... Agora, o meu pai pertenceu à Cáritas, mais aquela que dava leite às crianças. Não era a Cáritas, era uma outra coisa, os vicentinos. O meu pai punha-se nesses movimentos todos que era para ver, porque havia ali quatro ou cinco pessoas aqui na freguesia que eram muito revirados, o pai do [anonimizado], era no seu nível uma pessoa totalmente virada, mas esse ainda estava no privado, assim ainda podia dizer alguma coisa, agora no Público não se podia falar. Falas, vais-te embora. E os filhos? Como é que fazem as coisas em casa? Não se pode fazer nada. Portanto, o meu pai ativamente não podia estar, sem ser nesses movimentos assim, que era a conferência de São Vicente de Paula, essas coisas assim. O que é que se fazia? A minha mãe ia para lá fazer leite em pó que vinha da América para dar às crianças, tinha-se que ir fazer isso. Eram as esposas desses senhores é que iam fazer, do meu pai, do [anonimizado] é que iam fazer, porque os outros... A gente tinha aqui boa gente e gente muito educada, mas era o senhor doutor. Porque depois, quando começámos a entrar através da JOC, quando começámos a entrar nisso que os senhores doutores estavam, nós começámos a discutir com eles. E havia um que claramente não sabia, que era o Dr. [anonimizado], era uma pessoa que chegou a ser vice-reitor aqui do Liceu, mas era uma pessoa compreensiva. Dizia: Não, não, o Ferreira tem razão. Não adiantava também muito mais, porque coitado também estava numa situação que não podia. Mas nessa altura a gente já batia o pezinho. O Padre [anonimizado] quando nos levava a certas coisas: Ai o senhor doutor é que sabe. Ai é? O senhor doutor é que sabe? Nós também sabemos. E eu dizia: Padre [anonimizado], nós somos capazes. Portanto, nós já fomos entrando por aí e já havia pessoas que, de uma maneira mais ou menos camuflada, nos deixavam entrar P: E o padre também deixava? José Manuel Ferreira: O Padre [anonimizado] não era uma pessoa que impusesse muito respeito, mas era uma pessoa que deixava. E para mim e para a Angelina, como a gente andava muito na JOC e essas coisas assim, era uma pessoa aberta. A gente foi-se confessar para ir para o casamento. Angelina Ferreira: Era, ele obrigava a confessar. José Manuel Ferreira: Era obrigatório confessar, mas para já a gente foi logo tirando da moda, porque era assim, os noivos que queriam confessar-se tinham que levar um fato e a noiva um vestido e eu fui de calças de ganga, aqui para as histórias... e a minha mãe: Então filho, como é? Eu vou de calças de ganga, espanto nosso. E falando do Padre [anonimizado], chegamos lá, e ele: Vocês vêm confessar-se? Sim senhora. E a Angelina vai e eu fico cá fora. E ele: Não, eu quero os dois cá dentro na minha frente. Vocês não se vão casar aos olhos de Deus? Então o que vocês vão falar, a confissão que vocês vão fazer aqui comigo é falar de vocês, da vida de vocês os dois em frente a mim e se for preciso dar alguma opinião eu dou, se não, não dou. Eu disse: Opá... Portanto, já começou também... Porque ele tinha uma maneira que estava sempre muito mau, mas para a gente era muito aberto. No dia do meu casamento, eu estava totalmente nervosíssimo, porque a Angelina não aparecia. Angelina Ferreira: O meu pai não tinha carro e pouca gente na freguesia tinha carro e era os táxis e o homenzinho do táxi atrasou-se. E eu à espera, já vestida, à espera do táxi. E o padre era muito rigoroso, mas não foi para a gente. Se saia fora de horas, ele ia-se embora. José Manuel Ferreira: E eu comecei a andar para trás, para frente, para trás, para frente e ele lá assim: Zezinho, nota filho querido, chega aqui. E eu: Já vou levar...Diga senhor padre. Porquê para trás, para frente, para trás, para frente, para trás? Não está vendo a hora? Estás com pressa? Ela vai chegar, ela não te vai deixar. Não, eu estou com pressa é porque...Calma, a Angelina vem, não há de vir. Nesse aspeto foi muito simpático. P: E a sua família Angelina, também era assim do contra? Angelina Ferreira: Os meus pais não eram assim tanto do contra, porque eram analfabetos e trabalhavam na (?), mas o meu pai era muito justo. Se a Joana tivesse necessidade de um escudo, ele emprestava. Se fosse emprestado, a Joana tinha que pagar, se fosse dado, dava. E aquilo era da natureza deles. E a minha mãe então...Mas nunca estiveram assim em movimentos. P: E aqui nesta indústria que como estava a dizer tinha muitas mulheres, nunca houve nenhuma greve? Angelina Ferreira: Não, as mulheres trabalhavam como escravas, mas não se podia fazer greve. P: Depois do 25 de Abril, se calhar... Angelina Ferreira: Depois de 25 de Abril a minha mãe... mas nunca fizeram. Mas o meu pai refilava, era um bom refilador. P: Com que é que refilava? Angelina Pereira: Quando via situações injustas. Havia muita pobreza e aquilo era uma fábrica que fazia conserva de carnes, de galinhas do albacor. E um dia, eu lembro-me, não me esqueço desse dia, cozeram muitas galinhas não sei para fazer o quê e havia os pés das galinhas cozidos e elas todas comeram e a minha mãe também comeu. Ai e depois, quando o chefe soube disse: Lurdes, eu não esperava que tu o fizesses. E porque é que eu não havia de fazer, se toda a gente fazia, se toda a gente fez e eu concordei. Porque a minha mãe era das mais velhas, mas era assim, trabalhavam como escravas e ganhava-se pouco. E o meu pai teve uma reforma muito pequenina, e ele é que foi tolo, porque tinha direito a trabalhar para ganhar como motorista e eles faziam uns descontos pelo mais baixos. E o meu pai nunca se apercebeu disso. Era o mais baixo que podiam descontar. Depois já do 25 de Abril, quando foi para a reforma, pensava que ia receber uma reforma grande e foi uma ninharia. Ele foi à Caixa Nacional de Pensões, em Lisboa, e disseram que com os descontos que tinha não tinha direito a receber mais. 52 anos que o meu pai trabalhou nessa empresa. Agora está tudo de olho aberto e a empresa foi ao fundo. P: E vocês na JOC falavam destas questões do trabalho? Ambos: Sim, sim. P: Quais é que eram os problemas que havia aqui que...? Angelina Ferreira: Exatamente, mas isso foi ainda antes de 25 de Abril, já havia. Eu lembro-me que o padre Fanhais, eu não sei se conhece, veio cá à Terceira. Eu nessa altura estava lá, antes do 25 de Abril. E ele ia cantar na Igreja da Sé, nas escadas, mas isto era proibido. A gente foi para um campo mais isolado para cantar, cânticos de intervenção, mas era proibido. P: Vocês tinham problemas com a PIDE? Angelina Ferreira: Tínhamos. José Manuel Ferreira: Eu tive problemas com a PIDE na JOC, porque pediram-me na altura para eu escrever um artigo sobre emigração e eu escrevi sem problema nenhum. Mas para escrever sobre emigração, tinha que se contar tudo sobre a emigração, porque é que as pessoas emigram. Não era pelos seus olhos belos. E eu escrevi, depois às tantas vejo no jornal, uma coisinha assim mais ou menos [gesto indicando que foi publicado um texto pequeno]. Epá, afinal, tanto que eu escrevi, era um artigo tão grande, era tudo sobre emigração e veio tudo tapado, tudo riscado. P: Era para que jornal? José Manuel Ferreira: Era para o jornal da JOC, eles pediram-me para escrever sobre emigração, porque nos Açores há muita emigração, e porque é que havia a emigração? Toda a gente sabia porque é que havia a emigração, mas toda a gente não dizia, porque senão a PIDE chegava...Eu disse: Então, eu estou na JOC. O meu artigo foi praticamente todo cortado e eu fiquei de olho, mas eles disseram logo: Não, está quieto, sê discreto, porque eles estão de olho em ti. Mas depois disso, quando comecei a trabalhar, eu pertenci à Comissão de Trabalhadores da empresa. P: Ainda antes do 25 de Abril? José Manuel Ferreira: Não, já foi depois disso. Mas pertencia à Comissão de Trabalhadores da empresa e pertencia porque tinha uma grande bagagem que aprendi na JOC. Eu disse: Não, isso não vai ser isso. Na altura fui eleito para a comissão de trabalhadores e era representante. E então a história da firma era a seguinte: Nós tínhamos três contratos de trabalho, um era dos empregados de escritório, outro era das transformadoras e eu era dos eletricistas. Era do sindicato da Manuela, quando a Manuela era das transformadoras e dizia: Se ela precisar de alguma coisa tem amigos – e eu era dos eletricistas. E depois cada um tinha o seu contrato e eles jogavam com isso e pagavam aos trabalhadores de forma diferente. Eu trabalhava na sede de uma grande multinacional, em que a Petrogal é que era dona, mais a Shell. Claro que dinheiro era...e eu disse: Não pode ser assim. E eu comecei, começámos, o que é que foi a minha intervenção nessa situação, foi a de tentar fazer um contrato para a empresa, só para a empresa. Um acordo coletivo de trabalho da empresa, não havia mais conversa. Com muita luta, muita luta, conseguimos, mas eu penei um bocado, inclusivamente o advogado da firma foi um dia a minha casa. Eu fui chamado à administração e eles disseram-me assim: Sabes qual é a porta que entraste? E eu disse: Foi aquela que está ali. É por essa que vais sair. É quando vocês quiserem. Mas é quando vocês quiserem, mas aqui por dentro... eu tinha dois filhos em casa...Ele foi a minha casa e eu disse: Doutor, é estes dois filhos que eu tenho. Mas tu é que vais pagar por isso. Porque ele tinha revelado, a secretária dele é que tinha revelado, elementos para me incriminar. Eu ainda me ia chateando nesse aspeto. E esse contrato coletivo de trabalho, eu consegui, mais os meus colegas, que a gente passasse a ganhar todos por igual nas categorias. Todos os empregados em cimento tinham um vencimento, os escriturários tinham outro tipo de vencimento e os grandes tinham outro tipo de vencimento que não era respeitado, porque as chefias davam-lhes muito mais, mas pronto, mas tinham. Mas isso custou-nos muito trabalho, pelo menos a mim e aos meus colegas, para a gente tenta organizar isso tudo, para ficar direitinho. E ficámos muito marcados, principalmente eu fiquei muito marcado. Mas depois, com o tempo a correr, desmarcaram-me, eu já era um menino. Continuei na Comissão de Trabalhadores, mas já começaram a ver que realmente as coisas estavam a correr melhor. Não havia tantos: Eu não faço...Quando o diretor se foi embora disse: Os senhores estão mais à vontade, as pessoas precisam que lhes deem incentivos. Mas isso foi sempre tudo através daquilo que aprendi na JOC, no ver, ouvir e julgar, nessa revisão de vida operária que me fez. A nível de serviço, cheguei lá acima sem passar por ninguém. Fiz sempre o meu trabalho. P: Ontem, a Manuela estava-me a mostrar um cancioneiro da JOC que era só músicas de intervenção e contra a guerra. Vocês também falavam nisso, falavam da guerra colonial? Angelina Ferreira: Exatamente. Falávamos. Portanto, nessa altura ainda iam tantos rapazes para a guerra, coitadinhos. José Manuel Ferreira: Era uma desgraça e quando eles iam, uma vez foram nas vésperas de Santo Cristo, aqui da festa de São Miguel. Foi o [anonimizado] que os levou e aquelas mães a chorar, para quê? Angelina Ferreira: Para quê a guerra? E continuamos. P: E a igreja acabava por ser um espaço mais protegido para se poder falar sobre essas coisas? Ou seja, estava a imaginar que as outras pessoas que se opunham ao regime eram mais perseguidas. A Igreja dava-vos essa proteção? Angelina Ferreira: Sim, a gente nunca teve problemas. José Manuel Ferreira: A gente nunca teve problemas nesse aspeto, aqui na igreja. A Igreja também, a verdadeira, muitas vezes não faz as coisas certas, mas nessas alturas tinham um bom manto. A verdade é essa. Eu sei que a gente tinha mesmo um bom manto. A gente falava e não havia assim grandes coisas. O padre [anonimizado] deixava falar e depois o outro que veio também era assim. Angelina Ferreira: Mais novo, com mais ideias. José Manuel Ferreira: Portanto, quando a gente também precisava de alguma carreira... E a gente tinha aquela cobertura, chamemos-lhe assim, aquela cobertura da Igreja. Isso nunca nos faltou, pelo menos eu sinto isso por mim. Se eu tinha algum problema ia lá e dizia: Passou-se isto assim, assim. Mesmo quando foi na Comissão de Trabalhadores e às vezes estava assim um bocado e chegava e perguntava e tinha sempre apoio. P: Depois transitaram para a LOC? Ambos: Não. P: Quando é que deixou, em que altura que deixou de haver? José Manuel Ferreira: Isto depois começou a esmorecer Angelina Ferreira: Uns foram casando, outros emigraram. José Manuel Ferreira: Mas a gente ainda hoje de encontra. Angelina Ferreira: Tem, tem. José Manuel Ferreira: A gente tem os nossos, que sabe quem eles são, ainda há dias a gente conversou disso, a gente qualquer dia vai pensar reunir aqueles que a gente tem ainda, para a gente conversar, fazer um almoço, cantar, fazer um chantêzinho [ri-se], cantar com a Manuela, ela gosta muito disso. Angelina Ferreira: A Manuela era uma grande dinamizadora de jovens e das pessoas de idade. P: A Manuela depois seguiu para o movimento sindical. Vocês também se envolveram? Angelina Ferreira: Eu não, o Zé é que esteve José Manuel Ferreira: Eu é que estive depois, na direção dos empregados de escritório. Portanto, era da comissão de trabalhadores e pertencia à direção do sindicato dos empregados de escritório e das transformadoras. P: E houve mais houve mais pessoas da JOC que passaram para o movimento sindical? José Manuel Ferreira: Aqui de São Roque estive eu e o [anonimizado], era representante da FinAçores, portanto, aqui dos pesqueiros, das farinhas, do sindicato, porque depois aproveitava essas pessoas assim que iam para o sindicato. P: E antes do 25 de Abril, não havia aqui aqueles antigos sindicatos nacionais? José Manuel Ferreira: Havia. Era o sindicato nacional dos empregados de escritório. P: E vocês participavam? A JOC não intervinha nesses? José Manuel Ferreira: Que me lembre, não. Não estou dizendo que não, mas que eu me lembro não. Porque eu conheci aqui muitos amigos da JOC, do antigamente, que já são mais velhos do que eu e, portanto, não sei qual era, não deu para acompanhar o que eles faziam. O [anonimizado], o teu irmão e essas pessoas assim, não deu para acompanhar. Na altura, até nem sequer deviam estar... P: E havia aqui aquelas instituições do regime, como as casas do povo, as casas dos pescadores? José Manuel Ferreira: Aqui não, a casa do povo daqui era no Livramento, na freguesia aqui ao lado. Angelina Ferreira: Junto às duas freguesias. José Manuel Ferreira : Uma razão simples, política. A Freguesia de São Roque tinha muitos trabalhadores do campo, eles é que pertenciam às casas do povo. E quem tinha muitos desses trabalhadores era o Sr. [anonimizado]. Angelina Ferreira: A pessoa rica da freguesia. José Manuel Ferreira: Eram os donos da freguesia chamemos-lhes assim. E então a casa do povo era para ser feita em São Roque, que era onde havia mais trabalhadores rurais e ele, para não ficar sujeito à Casa do Povo, que lhe podia dar alguma dentadinha nos calcanhares, disse: Não, isso é melhor fazer-se no Livramento e nós ficamos sem essa coisa – mas por esta questão, para ele não ter muita gente na casa de povo. De repente algum mais virado podia-lhe dizer alguma coisa e então foi a Casa do Povo para o Livramento. Porque eu sei que aqui, há tantos anos, os homens eram comprados, eram arrematados. Havia ali no poço velho, havia ali um canto que era o canto dos homens. As pessoas iam lá buscar o pessoal para irem trabalhar para a Terra. P: Tipo uma praça de jorna? José Manuel Ferreira : Exatamente. E era: Tu vais comigo, eu dou-te dez. Não, não, vai comigo que eu dou-te 12. Portanto, havia escravatura, escravatura encoberta, em que estamos a comprar alguém. E para ele estar à sua vontade, a Casa do Povo foi para o Livramento. P: E essas pessoas que trabalhavam, esses jovens que trabalhavam na terra, também estavam na JOC? José Manuel Ferreira: Não, não estavam. A JOC tinha mais pessoal fabril. Uma Açor (?), era assim mais essas coisas, gráficas que era o caso do [anonimizado] tipógrafo, nas gráficas, em casa, como a Angelina estava, eu estava ainda acabando de estudar e depois passei para a vida. P: Tinha muitas raparigas? Angelina Ferreira : Tinha algumas, mas os pais não deixavam muitas, porque a gente era as mais faladas da freguesia. Os pais eram, as filhas eram em casa. P: Mesmo para a Igreja, não havia assim tanta liberdade? Angelina Ferreira: Iam para a Igreja, para a missa. Pronto, iam para a missa e o seu dever estava cumprido. Estavam desobrigadas de tudo. P: Porque a maior parte das mulheres que eu tenho entrevistado, mesmo do movimento sindical, vêm da JOC. E então eu tinha a ideia de que a JOC tinha sido um espaço onde as mulheres tinham conseguido.... Angelina Ferreira: Conseguiu-se muitas mas...Agora a freguesia de São Roque está muito descaracterizada, porque fazem apartamentos e vêm pessoas de todo o lado, mas no tempo que eu queria, eram as pessoas da Freguesia. E então quando se falava em sair à noite, em ter uma reunião à noite... P: Mas algumas conseguiram? Angelina Ferreira: Conseguiram, conseguiram. Tínhamos um grupinho aí de umas 15,16. P: E foi importante para a emancipação das raparigas? Angelina Ferreira: Para mim foi e para mais algumas. P: Porquê? Angelina Ferreira: Olhe, porque aprendi a ver as coisas por outro prisma. Foi muito importante para o meu crescimento. P: Vocês falavam, por exemplo, da igualdade entre os homens e as Mulheres? Angelina Ferreira: Sim falávamos. Porque ainda neste tempo, os rapazes do meu tempo, não digo na escola primária, mas do meu tempo de estar na JOC, ainda não havia rapazes com raparigas nas escolas. Isso foi muito depois e a gente achava, a gente ficou com má fama na freguesia, muitas das que participavam, porque a gente às vezes encontrávamo-nos com os rapazes e fazíamos passeios. José Manuel Ferreira: Íamos cantar para a praia à noite, isso era tido como... P: E sentiam que havia igualdade já entre os rapazes e as raparigas da JOC? Angelina Ferreira: Sim. José Manuel Ferreira: Havia um espírito aberto. Não havia: Quem manda aqui são os machos, havia muito espírito de abertura, muito espírito de partilha e também se aprendeu muito, muito em espírito de despojamento. Era: Vamos todos para aqui, vamos todos para o Monte, vamos passear e se alguém não podia, não, tu vais com a gente e depois a gente vê isso. Angelina Ferreira: Aqui na freguesia, as moças namoravam muito cedo e eu já tinha 20 anos e não tinha um namorado e nessa altura eu fui ao Conselho Nacional da JOC para o continente e fui muito falada, que tinha ido arranjar um noivo para Lisboa. Mas os meus pais nunca se importaram. P: Foi com quem, foi a única aqui da ilha? Angelina Ferreira: Fui a única de raparigas nesse ano, porque também não havia possibilidades assim financeiras de ir muita gente. P: E como é que foi esse encontro? Foi em que ano? Angelina Ferreira: Não sei se foi em 71? Eu tinha 20 anos, 70. E gostei muito. Eu não conhecia Lisboa, o continente. Nunca tinha ido. Daqui só conhecia a Terceira e cheguei lá sozinha, mas tinha um casal da Terceira, que também foi ao mesmo encontro, foram-me buscar ao aeroporto. E eu tinha uma tia que vivia lá, e a minha mãe telefonou à minha tia e eu fui para casa da minha tia enquanto não fui para Braga. Eu perdia-me, eu olhava assim... É que aqui, agora já há mais movimento, mas antes era muito paradinho e eu cheguei a Lisboa... Eu não vivia lá, mas gostei. Ainda gosto de ir ao continente e se pudesse ia todos os anos. P: Foi em Braga esse encontro? Angelina Ferreira: Esse encontro foi no Sameiro. P: E era com rapazes e raparigas? Angelina Ferreira: Era, rapazes e raparigas, tudo junto. P: E o que é que se discutiu nesse encontro? Angelina Ferreira: Discutíamos de tudo, foram sete dias de intervenções, de cânticos, de missas. P: E foi assim uma coisa já do contra? Angelina Ferreira: Era do contra...era do contra. Na altura ainda havia o Ultramar, ainda havia a guerra. P: E falavam sobre isso? E sobre os problemas também do trabalho? Angelina Ferreira: Do trabalho, exatamente, porque era de todo continente. Tinha moças de Aveiro, tinha moças de Lisboa, tinha moças de Coimbra, de Braga. Juntaram um elemento ou dois por cada região. Fiquei a conhecer, ficámos amigas e na altura ainda escrevíamos muito, mas depois com o passar do tempo... P: A Angelina depois não participou em mais nenhum movimento sem ser a JOC? Angelina Ferreira: Não, era o grupo Coral da Igreja. Não, não participei em mais nenhum, porque entretanto tinha a minha vida profissional, que me ocupava muito tempo. Eu tinha pouco tempo para mim, porque na altura as costureiras ainda havia muito... Eu tinha um leque muito grande de clientes, porque eu fazia por gosto. Depois vieram os filhos e eu trabalhava em casa e os meus filhos, na altura da menina não havia pré, com os outros já havia pré, mas eu criei os meus filhos em casa comigo. A minha mãe ajudava-me até falecer, faleceu nova, com 59 anos, e eu fiquei tomando conta do meu pai. Fiquei com meu pai, com a minha avó, com o meu marido, com os meus filhos e muita rapariga a aprender costura. As mães, mal elas saiam da escola iam logo ter comigo, por eu ter sempre um espírito jovem. Ainda hoje em dia, a minha afilhada está aí. A mãe foi para a minha casa com 14 anos e ainda hoje em dia é como uma filha para mim. E tinha muitas e ficavam a dormir lá na minha casa. Aqui defronte a uma pastelaria, isto aqui era uma terra, que era da mãe do Zé e como a mãe do Zé era viúva... O meu pai gostava muito de vinho e de batata. Quando saía do seu serviço vinha para aqui. E aqui era uma pastelaria e as raparigas que estavam lá na costura: Oh Manel, logo quando tu vieres, trazes-me um bolo? Se ele não trazia, elas no outro dia vinham a pé da freguesia, que ainda é um bocadinho do centro da freguesia para aqui, buscar bolos para o Manel Dias pagar. E ele também gostava muito delas. P: E transmitia-lhes os valores da JOC? Angelina Ferreira: Transmitia! José Manuel Ferreira: Ainda hoje é isso. Angelina Ferreira: A mãe da minha afilhada era de uma família com poucos recursos, a mãe morreu muito nova, com muitos filhos, e ela distribuía pão de manhã e ia deixar à minha casa e dizia: A minha pequena vai sair da escola, tu queres pegar nela para aqui? Porque comíamos todos, a minha mãe na altura fazia panelas de sopa e elas todas comiam e depois eu continuei. E eu dizia: Ai Senhora, eu não quero, porque eu já tenho aí seis ou o que é. Ai mulher, pega-me nela coitadinha, para ela não ficar em casa. E ela foi com 14 anos e ainda hoje em dia é como uma filha para mim. É a minha filha mais velha e ela dá-se muito bem com o meu filho e com a minha filha, mas o meu filho tem mais abertura com ela do que com a irmã. E ela teve uma menina e a nós fomos os padrinhos da menina e o Zé é que vai buscar à escola. De manhã a mãe leva-a, mas a mãe trabalha. José Manuel Ferreira: Ela veio lá para casa, depois faleceu-lhe a mãe... A história dela é essa, ela foi para lá aos 14 anos, ficou sempre filha da casa, eu é que lhe arranjei casa. Portanto, ela é mesmo nossa filha, não é biológica, mas é nossa filha e portanto, e tem os valores todos que a gente foi transmitindo. Aquilo é uma mulher que se mata para ajudar o outro. E às vezes eu: Os teus irmãos? Isso só tive aqui e eu já nem abro mais a boca, porque esse eu tive aqui, eu conheço. Eu é que a levei à Igreja, quando ela casou. Eu disse: então não tens irmãos? Angelina Ferreira: Ela tinha muitos, não podia escolher. José Manuel Ferreira: Ela disse, assim: Não, ou és tu ou eu vou sozinha. Sozinha não vais. Mas também tem aqueles valores todos que aprendeu e que a minha afilhada está continuando assim. Portanto, os valores que a gente foi aprendendo a gente foi transmitindo aos filhos. A minha filha é tesa, aquilo não se brinca com ela. Angelina Ferreira: Ela trabalha na casa do Gaiato. José Manuel Ferreira: O meu filho também. O que tiverem a dizer, dizem, acabou. Justos. Se tiverem que levar nas orelhas também levam. E se virem que não estão corretos, eles também não refilam por isso. P: E o Zé Manel depois esteve no movimento sindical até se reformar? José Manuel Ferreira: Não, depois tive um problema de saúde e aquilo já não dava. Eu fui operado ao coração, não dava para me enervar mais e então foi um colega meu. Mas quando ele precisava, era o [anonimizado], eu dizia: Epá tu vais, que tudo o que tu precisares tens cá o padrinho, o padrinho diz-te tudo o que tu precisares, mas tu é que tens de ir porque eu não posso. Mas sempre gostei, sempre gostei. P: Então mas contei-me lá, como é que foi o 25 de Abril aqui. Angelina Ferreira: Eu trabalhava de costura para a esposa do chefe da Pide cá. E a Senhora era amorosa e gostava muito de mim. Eu era muito magrinha e ela trazia-me suplementos alimentares, mas eu não comia muito. Eu tinha 48 kg e agora estou crescendo mais. E ela dizia: Vais de férias para Santa Maria comigo. Era uma pessoa que também não era egoísta. E no 25 de Abril aqui não tínhamos televisão. Ai uma revolução no continente, em Lisboa, e não sei quê. A gente ouvia na rádio e a minha mãe estava com muito medo. E a minha mãe nesse dia teve uma consulta, eu lembro-me disso, e ela foi a Ponta Delgada, e vi as pessoas a irem a casa buscar o chefe da PIDE, da Dona Lina. E a minha mãe viu a senhora na varanda tão inquieta e foi para casa e disse-me: Ai, eu tive tanta pena da Dona Lina, mas com medo da revolução, que não sabia o que era, não víamos na televisão e ficou tudo com medo. E depois, o Presidente, o Chefe da Pide não foi preso, mas foi para casa de um senhor amigo. E a Dona Lina depois, quando vinha a minha casa dizia: Mas o marido não era desses mais... José Manuel Ferreira: O [anonimizado] na altura não foi preso, não foi para a cadeia, o [anonimizado] foi para a casa dele, sendo tratado como filho dele. Ele também estava aqui nessa Terra, em que a gente se conhecia todos. Ele tinha que se impor senão coitado também ia-se embora, mas não era de fazer mal. Ele chegou a ter uma cubana. Angelina Ferreira: Exatamente, um dia a esposa veio a minha casa e levou uma moça tão bonita e ela disse-me que ela era cubana e o namorado era marinheiro e ela fugiu de barco com o namorado, porque aquilo em Cuba... naqueles anos. E ela não foi presa, foi para a casa deles, desses senhores. Ela levou-a a minha casa e a moça era tão bonita, tão bonita, que eu lembro-me na altura, eu devia ter aí uns 22 anos. Mas era assim uma pessoa que também não era dos piores, mas é claro toda a gente tinha medo. E quando se fez o 25 de Abril a gente não sabia o que é que isso ia dar e depois viu-se que despejaram os senhores lá do Alentejo, das suas propriedades... José Manuel Ferreira: Mas aqui também houve. Angelina Ferreira: Houve depois do 6 de Junho. José Manuel Ferreira: Antes disso também houve, depois do 25 de Abril começou logo a haver as tricas. A tropa começou a sair para a rua. Vinham de metralhadora, eles vieram do continente para cá. Foram postos aqui coitados e isso começou a causar um mal estar. E depois disso começou a haver muitas sessões em que a tropa batia. No seis de junho a lavoura levantou-se toda, incentivados pelos grande proprietários, os ??? e aquelas companhias todas, os homens das terras, houve um grande levantamento de pessoal. Alguns foram presos para a Terceira, de maneira que não se fazia, que era às tantas chegar a casa: Vamos embora, pega nele, mesmo à comunista, como eles costumavam dizer. Epa, o 25 de Abril não pode ser assim. E depois havia as sedes dos partidos incendiadas, logo que fosse do Partido Comunista ou do Partido Separatista, que era o caso da FLA, da Frente de Libertação dos Açores, eram incendiadas. O [anonimizado], que era do Partido Comunista, foi lançado da Avenida para o mar, queimaram-lhe o carro. Houve assim umas cenas tristes em tempo de liberdade. Angelina Ferreira: Era porque as pessoas eram ignorantes. José Manuel Ferreira: Mas era por causa disso, é o que a Angelina diz, a maior parte aqui era ignorante politicamente. P: E como é que se posicionava a JOC nesse período? Angelina Ferreira: Não tinha muito poder. José Manuel Ferreira: A gente podia falar, mas também, és comunista. Tudo o que tu falas assim é porque tu és comunista. Às vezes ainda é assim, já não tanto, mas às vezes se a gente diz alguma coisa assim mais aberto: Epá, tu és um grande comunista. E eu digo: Bem bom, pelas almas que alguém vê que eu sou comunista...porque logo que toque no instalado, és comunista. Agora já está tudo mais calmo, já se convive, já não há problemas de grande coisa, mas às vezes ainda alguns...e eu digo: Bem bom, é bom eu ser comunista, deixa estar. P: Mas naquela altura foi mais difícil? José Manuel Ferreira: Muito mais difícil, foi muito difícil. Por exemplo, tive um colega meu que foi a uma sessão de esclarecimento. Por acaso eu também era para ir, mas fiquei em casa já não sei porquê. Ele levou umas pancadas naquela cabeça com uns capacetes de moto.... P: Era uma sessão de esclarecimento de? José Manuel Ferreira: Do Partido Socialista. Chegaram a mandar uma bomba, em casa de um Dr. [anonimizado] na Madalena, que era um grande socialista. A casa dele levou uma bomba. Havia essas coisas assim e depois nós aqui, está a ver o que é isto num meio muito fechado, apanhar com uma coisa que a gente não sabe o que é, porque não vê na televisão, não vê nada. E depois há notícias que são verdadeiras, outras que são mentirosas, não é? Sempre houve e sempre vai haver. As pessoas ficavam assim: Mas afinal? Eu lembro-me das primeiras eleições que se fez, as velhinhas a desmaiar porque a velhinha se não fosse votar ficava sem a sua triste reforma de meia dúzia de patacos. Angelina Ferreira: Depois do 25 de Abril, as primeiras eleições, credo, as velhinhas a desmaiar. José Manuel Ferreira: Punha dó. Porque eu estive desde as primeiras eleições, estive sempre presente, era refila, fiz sempre parte das mesas de assembleia de voto, sempre. E ainda fazia, agora é que já me deixei, e quando não estava na mesa estava como fiscal do Partido, com uma credencial para ver se havia alguma coisa. E eram aqueles velhinhos, tão velhinhos: Ai senão eu perco... Não perdes nada querida, tenho dó de estares aí em pé, porque também não lhes davam o lugar, para as velhinhas passarem à frente. A gente dizia assim: Deixe passar. Ai não, ela que espere por mim. Ainda não havia bem essa coisa de.... Angelina Ferreira: Solidariedade... José Manuel Ferreira: O 25 de abril foi assim aqui, nesse aspeto, a gente não sabia o que era verdade, a gente não estava preparado para a questão de abrir e, politicamente, as pessoas eram muito ignorantes. P: E no mundo do trabalho, como é foi? Houve melhorias? José Manuel Ferreira: Houve algumas, a verdade também é essa, houve algumas melhorias. Mas todas elas, e ainda hoje, mas todas elas naquele tempo foram tiradas mesmo a ferros, muito a ferros. Eu cheguei, estou falando do meu caso pessoal em que posso falar bem, eu fui jantar com o advogado da firma: Ai e tal a gente vai jantar para a gente acabar o resto do contrato - isso quando foi o contrato. Está bem, pronto, vamos jantar. Não há problema nenhum, vamos jantar. Eu fui jantar aqui ao Bataclan, aqui mesmo em cima. E às tantas ele vira-se assim para mim: Oh Zé, eu trouxe aqui os papéis que é para a gente assinar, não sei quê. E eu disse: Está bem, não tem problema nenhum, a gente veio aqui para ver isso, epá, mas é assim não pode ser muito atrás (?). É assim já está escrito, assinas aqui. Não, não foi isso que a gente combinou. E eu: Oh sr. [anonimizado], que era o dono do restaurante, chega aqui, faz favor. Tira a minha conta que eu vou-me embora. Não, eu vou pagar. Não, não, eu comi e vou pagar e não vou assinar contra os meus colegas. E diz lá na firma que eu é que paguei o meu jantar. Não vaz ficar mal disposto, a firma não te vai fazer nada de mal por causa disso. Mas o meu jantar quem paga sou eu. Artur, para cá a conta. Está percebendo? Havia essas coisas assim, que tentavam: Porque vais ganhar mais que os teus colegas, mesmo do escritório. Hei, eu estou a fazer isto para a gente se igualar e agora vou ganhar mais? Não, não. Mas o jantar é por minha conta, acabou, não há mais problemas aqui. As coisas, é verdade que foram evoluindo, mas muitas coisas tiveram de ser arrancadas a ferros, ainda hoje em dia continua ser assim, secalhar até pior. Angelina Ferreira: E essas pessoas, portanto, que não tinham abertura, diziam que quem era comunista ia para o inferno. E as velhinhas coitadinhas que não queriam ir para o inferno, não eram comunistas nem socialistas. P: Pois claro. E quando ontem falava com a Manuela, ela contou-me quando foi a greve geral de 1982, que aqui houve uma grande adesão, estava no sindicato nessa altura? José Manuel Ferreira: Estava. P: Lembra-se dessa greve? José Manuel Ferreira: Lembro. Houve adesão, pois houve, mas custou-nos P: Como é que foi? José Manuel Ferreira: Eu estava na firma, porque lá aquilo queria cambar, e eu estive sempre lá, disse: Aqui não camba nada. Alguns iam furar a greve. E eu disse: Aqui não camba nem descamba, aqui é assim. E então havia lá os piquetes e eu estava sempre em todos os piquetes. Então tu estás? Então, eu sou representante do sindicato. Porque o Patrão entrava: Vai trabalhar. Vai trabalhar o quê? Eu estou aqui. Ah, porque é preciso encher aquela garrafa de gás, é preciso encher cinco garrafas de gás e levar ao hospital. Sem problema nenhum. Está aí, mas é só cinco garrafas. A gente tinha que fazer os serviços, não é? Não podia dizer que não ia levar ao hospital, às casas de saúde, mas já era para ver.. ah depois... Não, é só cinco, porque de repente algum que tivesse um certo receio, eles podiam dizer: Não, não, vais trabalhar porque senão perdes isto e perdes aquilo. E então eu dizia: Eu estou de piquete de greve, em todos os piquetes de greve eu estou e estava sempre. Do meu sindicato era aquele rapaz o [anonimizado], que era muito meu amigo, e o [anonimizado], que eu tinha que ter o [anonimizado] que era o responsável do enchimento comigo. Eu dizia: [anonimizado], eu quero-te sempre comigo porque se houver precisão de encher três garrafas eu não sei abrir as garrafas, tu é que vais ali encher e levas o [anonimizado]. Mas aguentou-se, tinha que se ter força. P: E depois também esteve na Cáritas. José Manuel Ferreira: Estive. Na altura, oitentas, na altura em que havia, e há, muita fome, mas eu vou-lhe dizer uma coisa. Na Caritas eu também cresci e aprendi muito. Eu só lhe vou contar uma, que me choca mas que eu passei. Uma vez, nós distribuíamos aqueles cabazes de Natal e eu fui encarregado de ir distribuir os cabazes mais um Senhor, ali abaixo ao Terreiro, que é parte aqui da minha freguesia, a uma determinada pessoa. Cheguei lá, eu não gostava de ir bater à porta, deixar e até logo se Deus quiser, bom Natal. Não. Não gostava de estar aí, porque assim, porque assado. Não. Faz-se de maneira que a outra pessoa não veja a dar. E eu cheguei e disse: Está aqui. Oh Senhor Manuel, faz favor, e disse: Eu preciso. Pois está aqui. Mas duas casas abaixo da minha precisam muito mais do que eu, vais lá levar. Eu não sabia. Ninguém sabe, estou eu a dizer-te, porque é muito envergonhada, ela não diz nada. Realmente aquilo demonstrou sentido de solidariedade, de empenho. Sim senhora. Deixei, vim para cima para a Caritas: Hei, mais um cabaz para eu levar ao fulano. Mas não foste levar ao fulano? Fui, mas passou-se isto assim, assim e a mulher não fica sem cabaz. A gente vai lá levar. Portanto, uma lição de vida, uma lição de partilha que se aprende. Eu aprendi e fez-me crescer ainda mais. Porque se eu fosse lá só pôr, é para mim. Por isso, a Caritas também me ensinou isso. E também me ensinou que às vezes... Eu fui levar [um cabaz] a outro lado e eu disse: a gente não vai levar porque o senhor tem dinheiro, ele faz-se assim, mas ele tem muito dinheiro. Vai levar porque assado e cozido – o outro colega meu. E eu disse: Epá, é para se levar, vai-se levar, mas eu vou contigo. A gente bateu à porta: Posso entrar? A Senhora era muito ... era uma pobre de Cristo. Posso entrar? Sim, Senhor, sim, Senhor. Ele estava deitado na cama. Eu disse: Então João está tudo bem? Ele: Está, o que é que vieste fazer? – assim, bruto. Então vim trazer umas coisinhas para vocês, para o Natal. Eu cá não preciso e saca a mão atrás, pega na carteira. Eu tenho aqui dinheiro, para que é que eu quero isso? O que foi lá comigo, que era o que tinha insistido que eu fosse lá levar, disse: Manel, a gente vai levar esse cabaz para trás. Nem penses nisso. Isso vai ficar aqui. Mas agora (a gente estava mesmo perto do centro, da sede da Caritas) tu vais chegar lá e vais dizer que realmente era como eu disse. Tens que dizer, é a única coisa que eu te peço. É que vais ter de dizer e vais ter que aprender que se alguém diz as coisas é porque sabe. Quando eu cheguei lá ele disse ao Dr. [anonimizado]: O Ferreira tinha razão, porque assim e assado. O Dr. [anonimizado] começa a rir e disse assim: Quando o Ferreira disser que é, é porque é, porque ele conhece. Porque eu conhecia muito aqui, fruto também de ter sido presidente da junta e essas coisas assim. Mas porque a prima da Angelina trabalhava no dispensário materno infantil e sabia-se tudo lá, as desgraças entre aspas das pessoas, o não ter o que dar ao bebé, o que a fulana é...E a Laura estava connosco na Cáritas porque era o nosso veio de transmissão de tudo que se passava na materno infantil, a nível da freguesia. E também tínhamos um senhor que nos dava toda a informação da ação social (pertencia também à Cáritas). Aquilo era pela porta do cavalo mas a gente tinha. Portanto, a gente ia estudar, era uma questão de estudar tudo. Uma vez, eu lembro-me, tínhamos um presidente novo: Vamos levar este cabaz a fulano – era o Sr. [anonimizado], que a gente tratava de [anonimizado], que era o sacristão. E eu começo a rir mesmo à gargalhada, mesmo ferrado e eles: Tu estás-te a rir, estás a fazer pouco de quê? Nada, vão dar um cabaz a esse senhor? Ide ver, ele está enterrado, ele está morto. Não havia já a coisa de saber se a pessoa era viva, se não era viva, se precisava, era levar por levar. E eu nessa altura, então: Deixem estar, vocês e que percebem disso – porque eu ia só lá para me chatear e eu já não tinha mais tempo para me chatear. Nesse aspeto, já tinha perdido a paciência. P: Estava-me a dizer que também foi Presidente da Junta, foi quando é que isso foi? José Manuel Ferreira: Foi no dia em que morreu o Sá Carneiro. Eu era o Secretário mais novo da Junta de Freguesia, porque eu estaca com dois senhores com mais idade, o Sr. [anonimizado] e o Sr. [anonimizado], e era o secretário da Junta de Freguesia. Depois fiz dois mandatos como Presidente e fiz três mandatos na Assembleia de Freguesia, sempre pelo Partido Socialista, que ponha os pés no seu voto, porque que eu nunca fui para outro, embora pudesse ter sido, era só pedir que eles davam-me, só tinha de concorrer pelo PSD. Eu disse: Ai Credo, está quieto. Não quero, não renego a minha pátria. É uma questão de princípio. P: Quanto é que entrou para o Partido Socialista? Foi a seguir ao 25 de Abril? José Manuel Ferreira: Foi em 74, eu sou o militante mais velho da secção de Ponta Delgada. Mais velho de anos de inscrição. Quando eu levo o cartão para votação: Hei Ferreira... Vocês ainda estava dormindo e eu já estava cá dentro. P: E conseguiu também, na vida política, aplicar os valores que tinha aprendido na JOC? José Manuel Ferreira: Sim, sim. Eu lembro-me de ir uma vez a um Conselho Nacional do Partido Socialista, mas dizerem-me o seguinte: quando aqui chegares tens que apresentar um relatório. Fiz o relatório e eu tinha muita confiança com um rapaz que já faleceu, que era o [anonimizado]. Eu escrevi o relatório e disse: Olha lá, tu és capaz de ler esse relatório, que eu sou assim novinho nestas coisas, para veres se isso está bem, se é preciso corrigir alguma coisa. Ele começa a ler: Foi isso que se passou? Foi. E tu queres entregar isso? Quero. Entrega, mas eu já te vou dizer uma coisa, vais ficar na prateleira. Estão ai coisas que não se devia dizer. Ai é? Mas posso entregar? Agora decides, queres ficar na prateleira ou queres ser menino bonito. Não, eu prefiro ficar na prateleira. P: O que é que era que o fazia ficar na prateleira? José Manuel Ferreira: Ficar na prateleira era não ser mais chamado para Conselhos Nacionais, nos congressos regionais não ia para as comissões. Ainda me veio dizer um primo, casado com uma prima minha, vai lá pedir para ires. Eu pedir para ir? Tu não tens juízo? Se eles virem que eu sou bom para ir, eu vou. Se eles continuarem a estar com a teima, continuem com a teima. P: Mas o que é que estava lá escrito que eles não concordavam? José Manuel Ferreira: Eu é que não concordava com a maneira como as coisas se tinham passado e a maneira como as pessoas intervinham e como é que se dava a palavra e como é que se retirava a palavra e como é que aquilo era tudo dividido sempre pelos mesmos, parecia ser uma igreja. E eu fiz isso tudo e disse que nunca mais precisava de ir a coisas daquelas. Mas pronto, ele disse-me logo que ia para a prateleira. Mas depois passaram. Eu cheguei a dizer a eles: Eu não devo nada ao Partido Socialista. Eu dei a minha cara pelo meu Partido, portanto por vocês. E depois então, a partir daí...Eu sempre fui muito amigo do [anonimizado], fechamo-nos uma vez num quarto e demos uns murros em cima da mesa, mas sempre amigos. Eu era frontal, eu dizia as coisas e ainda hoje continuo a ser assim. É verdade uma coisa, muitas vezes perde-se por ter uma boca grande. P: Agora queria-vos fazer uma última pergunta, que ontem também fiz à Manuela e ela deu-me uma resposta espetacular. Eu estou a fazer um trabalho de história sobre os movimentos sociais, sobre o associativismo e eu gostava que vocês me dissessem, se fossem vocês a fazer, se fossem historiadores, o que é que vocês acham que era importante estudar destes movimentos? Angelina Ferreira: Conhecer melhores as pessoas, estudar as pessoas, saber as necessidades delas. Mas eu não sei se eu tinha coragem para isso. José Manuel Ferreira: Eu acho que nesse estudo e nesses movimentos, era saber qual era o fim, para que serve esse movimento. Se ele está a fazer para aquilo para que foi criado. Se não está a fazer aquilo para que foi criado, vamos embora. Eu acho que tinha-se que ir estudar e ver se realmente os movimentos cumprem os fins para que foram criados ou se andam a sugar os outros. Isso é que era essencial e não ter medo de por isso a nu, de abrir e dizer, vocês não são isso. Porque muitas vezes o que falta é... A gente diz, mas dá uma volta tão grande, tão grande... Eu costumo dizer assim: Em duas palavras podia-se reduzir o que muitas pessoas dizem em 40. Porque se eu tiver um relatório muito grande, de 30 folhas, eu acho que a gente só vai ver o que diz na conclusão. Mas se eu levar um relatório de uma folha, sintético, e a conclusão, aí eu fiz o meu trabalho e fiz bem feito e percebi para que é que aquele movimento foi criado. P: Especificamente em relação à JOC, acham que foi um movimento que teve importância na história do nosso país? Angelina Ferreira: Penso que sim. P: Porquê, o que é que acham que trouxe? Angelina Ferreira: Olha, eu falo por mim, porque eu fiquei mais aberta ao mundo. A Joana pode não dar o valor, porque sempre viveu no continente, não é? De Portugal vai-se para todos os lados e aqui não, a gente vive numa ilha. E quando eu fui ao continente pela primeira vez marcou-me muito. Foi quando eu vi a grandeza. Porque a gente fechados aqui. Embora se tenha bons sentimentos, ajudar o próximo... Se calhar num meio mais pequeno nós somos capazes de fazer isso melhor, mas eu também penso que é preciso alargar horizontes. P: E a JOC alargou-lhe os horizontes? Angelina Ferreira: Sim. P: E o Zé Manuel, o que é que acha? Acha que foi importante? José Manuel Ferreira: Sim, sim, muito importante, a nível pessoal, para mim foi uma abertura. O nosso menino que estudou, que está juntamente com o [anonimizado], o [anonimizado], com o não sei quê, que quase todos esses tiveram comigo na primária, não tiverem as possibilidade que eu tive. Mas eu tenho que estar com eles. E eu sempre vivi, sempre aprendi muito com esses. Tinha os ensinamento de casa. O meu pai dizia: Ninguém é melhor do que ninguém. Isso fez com que eu me sentisse mesmo irmão deles todos. Portanto, é para ir para a terra? É para ir para a terra. É para ir para ali? É para ir para ali. Eu cheguei a vir...Hei, tu andas a falar com essa prostituta? É uma mulher como outra qualquer, ela quis vir falar comigo e eu não falo com ela? Então que raio é isso? Portanto a JOC fez-me crescer nesse aspeto, não separar ninguém. Foi o essencial, não separar ninguém, não há classes. Tu és tu, o outro também é ele, mas são unos. Se a gente estiver todos juntos, a trabalhar todos para o mesmo lado, é uma categoria. Agora se nós quisermos trabalhar cada um para o seu canto, veja-se o que é que se passa. E a JOC ensinou-me a trabalhar com um rumo certo, todos irmanados, todos iguais. Para mim isso foi muito, muito, muito, muito gratificante e continua a ser. E foi o que me fez aprender muito na vida. P: Então agora eu vou vos dizer o que é que a Manuela me disse que achava que era importante eu perguntar, vou-vos fazer essas perguntas que eu acho que são muito boas. Ela disse-me que eu devia perguntar, o que é que as pessoas sentiram naquela altura? O que sentiam quando participavam na JOC? Angelina Ferreira: Eu senti-me crescer e ver melhor o outro e não ver o meu eu primeiro, ver o eu do outro primeiro. Um exemplo: eu fui a um curso de cristandade, já depois de casada e ter filhos, e vi uma senhora, isto é um exemplo. Eu vi uma senhora, daquelas senhoras da elite, a dizer que tinha de dar um testemunho, que depois de ir aos cursos de cristandade via melhor as outras pessoas e que quando uma pessoa lhe ia pedir qualquer coisa, os mendigos, ela não dava e que depois de ir ao curso de cristandade já dava. E eu disse: eu sempre vi isto na minha casa, desde pequenina. Eu não aprendi nada naquele curso de Cristandade. Mas eu já vi isso por ter estado na JOC e ver que os outros também são gente, que a gente primeiro deve ouvir os outros. Aquela senhora que eu pensava que ia fazer um testemunho muito grande e era aquilo que eu aprendi desde pequenina. P: E o Zé Manel o que é que sentia quando estava na JOC? José Manuel Ferreira: Alegria, para já porque a gente estava com aquela malta toda e depois porque nós éramos um grupo unido, que conversávamos sobre tudo e crescíamos. E não havia gente a tentar separar, porque se a gente tentar separar, tínhamos uma pessoa que era o [anonimizado]: Eu vou dizer meninos uma coisa (ele era muito mais velho), amigos! E depois quando eu comecei no ver, julgar e só agir no fim e de acordo com o evangelho. É isso. É uma coisa que dá trabalho de fazer, uma revisão de vida operária como deve ser. Porque é que é? Porque não é? Porque muitas vezes também não é só o patrão, muitas vezes também somos nós. Mas o ver, julgar e agir era essencial. Porque aí é que a gente, pelo menos para mim, a gente via, a gente julgava à luz do Evangelho. Mas ele vai comigo. E é como nós ajudamos, a ensinar a pescar. Portanto para mim, a revisão de vida operária era o essencial da caminhada, difícil. P: A outra pergunta tem a ver com isso que é o caminho? Também tem algumas dificuldades, não é? Também já contaram aqui várias coisas que não foram fáceis, mas valeu a pena? Valeu a pena esse empenho? Angelina Ferreira: Valeu. José Manuel Ferreira: Muito, muito, muito, muito. Ainda hoje a gente colhe esses frutos. Por exemplo, a gente às vezes: Hei, a gente tem de ir falar com a Manuela. Uma vez havia um padre que eu não gostava, no sentido em que ele quando vinha fazer a homilia debruçava-se assim no altar. Parecia que estava a vender vinho ao balcão. E um dia, eu estava mesmo doido, doido, doido e disse: Oh Manuela, eu preciso de falar contigo. O que é? É o padre fulano....E ela: Não estás bom, vais julga-lo por estar debruçado assim ou vais ouvir a palavra dele. Pronto, não me digas mais nada, já estou bem disposto. E algumas vezes a gente encontra-se, muitas vezes até quando a gente se encontra é um problema para a gente se desencontrar. Porque a gente começa a falar, começa a falar, mais fulano, mais beltrano, o padre fulano que estava na JOC, o Padre [anonimizado], o Padre que já não me recordo. Mas a gente vai sempre falando, sempre conversando. A JOC ainda está muito viva, pelo menos naqueles que estiveram lá e que quiseram estar lá, está muito viva. Se fosse assim, vamos reformar-nos outra vez. Se houvesse alguma coisa para lutar eramos capazes de lutar. Mais velhos, mas lutávamos Angelina Ferreira: Eu acho que já não lutava mais... P: E têm esperança no futuro? Angelina Ferreira: Tenho, tenho esperança que esse futuro seja melhor. Não é melhor em riqueza, mas as pessoas serem felizes e olharem para as outras pessoas. O meu lema é: Nunca faças aos outros aquilo que não queres que te façam a ti e eu às vezes faço, mas depois arrependo-me e tenho coragem de dizer que me arrependi. P: E tem esperança que haja essa evolução? E o Zé Manel também tem? José Manuel Ferreira: Tenho. -
Junho de 2022
Manuela Medeiros
Entrevista a Manuela Medeiros P: Nasceste aqui em São Miguel? Manuela Medeiros: Eu nasci no dia 2/04/1942, aqui na ilha de São Miguel. A freguesia é que não foi esta, foi na freguesia de Santa Clara. Fica na rua direita, depois nós subimos à direita, antes de chegar à Igreja, a avenida que vai para o aeroporto. Era uma freguesia piscatória, agora já não é tanto. Havia muitos pescadores e encontravam-se também aqueles que iam para a pesca do bacalhau, que levavam seis meses fora, a pescar. Eu lembro-me muito bem dessa parte, porque nós tínhamos vizinhos nossos que também iam. E era muito engraçado. Quando eles chegavam, nós íamos lá para o farol da Santa Clara. Nós íamos para lá e acompanhávamos o barco, eles vinham com as caravelas e nós estávamos com os lenços a dizer adeus. Era tão lindo… E depois íamos à casa deles ver a família, eles sobretudo. Eles traziam-nos umas bolachas, eram mesmo assim grandes, de água e sal. Não era nada doce, era mesmo assim, e traziam as caras de bacalhau, essas coisas assim, que depois davam a algumas vizinhas. Lembro-me perfeitamente, tinha uma tia que fazia. A minha mãe não gostava. Aquilo é muito saboroso. Ali nasci e estive na escola até aos 10 anos. Fiz só a quarta classe. Esperei dois anos e comecei a trabalhar na fábrica de tabaco micaelense. Naquela altura era pelo menos com doze anos [que se começava a trabalhar]... É uma coisa que agora, felizmente, não se passa. Quando falo nisto lembro-me sempre que agora uma pessoa já se interessou em defender isso, para as pessoas começarem a trabalhar não com 12 mas com 16, e obrigarem as pessoas primeiro ao estudo, por uma vida melhor, pela qualificação dos empregos, quando nessa altura não se falava. E as pessoas que iam estudar eram aquelas que tinham posses ou tinham madrinhas que ajudavam a família. Nós éramos quatro irmãs, de maneira que nenhuma foi para cursos superiores. Tenho uma irmã que foi jornalista, agora está na reforma. Jornalista primeiro do “Diário dos Açores”, jornal mais antigo, que tinha quase 160 anos, e depois o responsável do jornal “Açoriano Oriental” foi buscá-la e assim foi desse jornal que ela então foi para a reforma. Eu estive na fábrica 47 anos, não foi brincadeira, e aos 16 anos comecei a tomar conta – eles diziam chefiar, eu não gostava –, a tomar conta de quase 200 mulheres. Porque a fábrica tinha mais mulheres do que homens, por causa da mão-de-obra barata. Essa fábrica nunca despedia ninguém, mas quem saía para casar, depois de casada mal ficava a trabalhar. Não ficava, nessa altura não ficava ninguém. A primeira pessoa que ficou a trabalhar na fábrica casada foi uma nora de um patrão. É casada com um filho deles. Porque até aí ninguém ficava. Entravam com 12, 14, 16 anos, mas depois casavam e iam para casa e às vezes era pena, pela qualidade que elas que tinham de serviço. Mas também, às vezes, eu ponho-me a pensar: não se justificava sair de casa a pé daqui dos Arrifes lá para baixo, não se justificava as pessoas caminharem tanto a pé para ganhar isso. Não ganhavam o suficiente para terem uma alimentação muito cuidada. Mas tinham uma vida muito alegre. Eram muitos alegres… As mulheres juntas têm os seus prós e os seus contras. Por exemplo, a minha irmã sempre gostou muito mais de trabalhar com homens do que com mulheres. Eu tive essa fase. Quando eu saía, que ia conferir serviço para o escritório, eu dizia: “Olha, cada uma está por sua conta, cada uma toma conta de si, eu não posso defender ninguém.” Nunca tive problemas, também a verdade é essa. Eu estive 47 anos, quando saí fui para a reforma. No meio disso tudo, portanto noutro ciclo, aos 12 anos, quando comecei a trabalhar, aos domingos nós tínhamos já grupinhos que se juntavam noutras paróquias. Não era na minha de Santa Clara, porque a minha ainda não era paróquia. E então o meu pai ia para o futebol, ele não gostava que a gente saísse sozinhas assim para muito longe, e ele ia para a freguesia de São José, a tal do campo de São Francisco, a Igreja de São José, e aí já tinha um grupinho que se chamava pré-JOC. Era a primeira coisa que nós frequentávamos antes da JOC. E então eu gostava, porque havia aquele convívio, conhecíamos outras pessoas, íamos um grupinho, quatro ou seis, uma coisa assim. E depois fomos crescendo, fomos desenvolvendo, depois criámos um grupinho de jovens em Santa Clara. Depois, mais tarde, apareceram rapazes também. E Santa Clara sempre teve um convívio de gente nova muito bom, assim para o positivo, mesmo com rapazes e raparigas. O padre que estava lá na altura nunca foi daqueles de dividir, de fazer divisões. Felizmente, tivemos isso. E pronto, tudo começou a partir desses grupos pequenos que depois, portanto, eu com os meus 20, antes de 20 anos, já tinha aqui um grupo pequenino da pré-JOC e depois na paróquia de Santa Clara formaram um grupo de adultos, tinham um grupo de homens e já tinham o grupo de senhoras casadas. Elas gostavam muito de mim porque eu sempre fui muito alegre. Achavam-me muita graça. Um dia o padre disse: “Olha, Manuela, eu tenho coisa para te dizer.” ”Tem uma coisa para me dizer, que coisa é essa que o senhor tem de dizer em particular?” “As tuas amigas, tu gostas muito delas e elas de ti [eu às vezes ia para casa tomar conta das crianças para eles irem para as reuniões], elas dizem que têm confiança em ti para ficares com um grupo de adolescentes, para tomares conta.” Eu disse: “Têm?” Naquela altura nós chamávamos o grupo das novas. “Claro, têm.” Eu disse: “eu não vou dizer nada. Eu vou pensar e depois o senhor vai-lhes dar uma resposta.” Fui pensar. Eu pensava e, quando estava com elas, via, pensava, e um dia falando com elas, disse: “Vocês sabem que vai haver novas eleições com um grupo e outro e nós também vamos ter eleições para o nosso grupo, de maneira que não se sabe quem é que vai ficar.” Pronto, não lhes disse o que tinham pensado, mas depois a certeza é que eu fui falar com o padre e disse: “Eu pensei e vou aceitar. Não falo mais com elas daquilo que o senhor falou, mas vou aceitar”. E foi uma maravilha. Tomei conta daquele grupinho, o grupinho desenvolveu-se. Lembro-me perfeitamente, assim perto da Páscoa. E pela Páscoa havia aquelas vigílias e eu fui dizer ao senhor padre que as novas queriam preencher uma hora de Adoração ao Santíssimo Sacramento. Eu disse-lhe uma coisa: “elas é que vão orientar a hora, eu só oriento os cânticos. Elas é que têm as coisas feitas, de maneira que quem estiver nessa hora, vai aceitar essa hora feita por elas e mais nada, como nós aceitamos as outras que os outros fazem.” E foi assim. Mas correu muito bem. Correu tão bem que depois elas disseram: “Manuela, nós queríamos ficar toda a noite, ficar com as outras. Eu disse: “vocês assim obrigam-nos [a maior parte não tinha telefones] a ir à casa de cada uma de vocês [eram umas oito ou dez], para dizer às vossas mães, aos vossos pais, se autorizam que vocês fiquem toda a noite.” E fomos. As mães, se eu dissesse que ia ficar toda a noite e eu já sabia que ia ficar, “eu vou fazer um chazinho, elas vão fazer umas bolachinhas”. Foi assim e foi maravilhoso. De facto, foi um momento mesmo de grande espiritualidade vivido por esse grupo de adolescentes, só com cânticos por mim preparados. Mas foi mesmo uma surpresa para toda a gente, até para mim, porque havia coisas que eu não sabia, porque eu não queria estar no papel de vigilante, queria ter um papel participativo na outra parte dos cânticos. E foi assim, mas correu muito bem. (Isso também é muito positivo, porque nós hoje em dia muitas vezes falamos nos jovens, mas eu e outros adultos somos responsáveis, porque esta sociedade não confia nos jovens. Nós sabemos que há uma grande, ultimamente, portanto, estou a falar dos anos 60 para agora, há muitas coisas que nós não tínhamos, sobretudo a televisão, as diversões à noite e essas coisas todas. Mas se houvesse mais confiança, uma vigilância que não fosse persecutória, mas de confiança, penso que a juventude seria outra. Sempre vi os jovens com um grande espírito de solidariedade e de humanização. E é isso que às vezes as pessoas não gostam de confiar sem saberem sempre quem comanda.) Isto foi desde o início da minha catequese até começar no grupo de jovens como responsável, portanto nos anos 60. Ainda no fim dos anos 50 fui responsável pela Juventude Operária Católica ao nível da diocese, eu fui ao bispo e tudo. As da Terceira é que me guiaram, porque a gente tinha então grupos na Terceira, no Faial, em Santa Maria não. Tinhamos cá e não tínhamos no Pico. Mas pronto, e depois já concordavam que eu fosse e andei um bocado de mala às costas a fazer reuniões, encontros, a juntar todos, a falar nos primeiros objetivos, no que era a JOC e no que é que havia de novidade no movimento católico. P: Era o quê? Estamos a falar nos anos 60? Nessa altura, o que é que essa novidade? Manuela Medeiros: A novidade era a Juventude Operária Católica, uma juventude operária que tinha os problemas do trabalho, da vida do dia-a-dia e, além disso, tinha também a parte espiritual, que é o Evangelho. O Evangelho não era só aquela doutrina de que nós líamos aquele bocadinho, mas que pegávamos nele para a vida do dia-a-dia. Qual é a palavra de ordem que nós vamos levar agora para o nosso trabalho? Porque aquele grupo já estava todo a trabalhar, embora houvesse algumas que estudavam, que não queriam ir para o grupo daquelas estudantes, queriam ficar no meu grupo. Era alegre, como eu dizia, era muito alegre. A gente juntava-se em várias ocasiões, festejávamos as amigas, coisas que vocês lá não têm. Porque no Carnaval as quintas-feiras têm todas um sentido, tem a quinta-feira de amigos, quinta-feira de amigas, quinta-feira de compadres, quinta-feira de comadres. E então pelas amigas nós juntávamo-nos, juntava-se as paróquias todas onde havia. Era São José, a Matriz, era Santa Clara, São Sebastião, que é matriz, e São Pedro. Juntávamo-nos todas e era uma alegria... Não havia os discos, mas havia música gravada, havia alguém que sabia tocar o acordeão ou coisa assim. Elas gostavam muito e eu também. A gente gostava muito disso e a partir daí as pessoas tinham isso. O que é ligado à vida é isso, não havia várias gavetas, ou por outra, havia várias gavetas, como vários conhecimentos, mas todos unidos numa função. A JOC foi uma escola de formação grande para mim, que me preparou para a vida e que me ensinou a ligar o Evangelho à vida. A gente está sempre a pensar naquilo, mas como é que eu vou fazer isso? Tal e qual como a gente vê, ligado às leis do trabalho, o que é que é certo e o que é que é errado? Se eu estivesse aqui, o que é que eu fazia? Se eu tivesse aqui, o que é que pensava? Era sempre com esse princípio… Ainda no outro dia, não há muito tempo, tivemos um encontro, de vez em quando eles fazem, mas para toda a gente, para todos os leigos, encontros pastorais, e eu fui. E depois eu disse: “Olha, o que falta hoje na Igreja é a ação católica”. E estava o bispo presente e disse-me: “A ação católica já está desatualizada.” E eu disse: “Está desatualizada para quem não quer trabalhar. Porque a ação católica leva-nos a uma ação. E a ação é essa, não é falar de Deus a ninguém, é o nosso testemunho de encontro com aquilo que nós aprendemos daquilo que está escrito no evangelho. Isso obriga-nos a mudar e a dar um testemunho em que as pessoas acreditam e não é preciso estar falando.” Ainda ontem lembrei-me disso, porque era assim: “Não julgueis para não seres julgados.” Porque a gente às vezes tem uma tendência: Porque é que ela disse? Porque é que ela fez? Porque é que ela e assim? A gente tem isso, são nessas coisas que nós aplicamos. Não julgueis para não ser julgados. Porque tu tens uma trave na tua vista, não vês, mas vês na vista do outro, que é a crítica. São essas pequenas coisas que nós vivemos e por isso é que digo que a Juventude Operária Católica, para mim, foi uma lição e uma formação para a vida por uns belos anos, e foi isso até ao 25 de Abril. Mas no meio disso, na fábrica, as minhas colegas todas confiavam muito em mim. Depois veio o 25 de Abril e os patrões juntam-se, querem formar uma Junta Administrativa. Eu estava de férias, ligaram para mim. Eu vim das furnas de autocarro para o plenário. Ficou toda a gente admirada. Eu estava de férias, mas não fui proibida de entrar (nessa altura já trabalhava na fábrica há quase 20 anos). Depois eles levavam um papel e perguntaram se eu já tinha assinado aquilo e depois iam a outra fábrica de tabaco e eu disse às minhas colegas no plenário: “Vou dizer uma coisa, eu tenho orgulho de trabalhar na fábrica Micaelense, estou contente que as outras pessoas tenham assinado, mas aqui aos meus colegas eu digo, não estou a falar mal das pessoas que nem conhecemos, mas se assinarem uma proposta dessas, eu amanhã venho para o jornal e digo que tenho um grande desgosto de trabalhar para a Fábrica Micaelense.” (Já havia as máquinas, mas nunca despediram ninguém. As primeiras máquinas da terra, foi engraçadíssimo, foram feitas por um colega nosso, também de lá, era de cigarros. Era um trabalho muito, muito engraçado, e que envolvia muita gente). E ninguém assinou, nem os do escritório assinaram. E não era contra as pessoas, mas a gente não tinha uma explicação para que é que era aquilo. Pronto, era para criar uma junta governativa, era assim. Mas então era uma divisão, queriam separar-se do continente. Eram assim umas movimentações, mas felizmente, pronto, essa parte passou, depois houve outras, e depois entrei para os sindicatos. Um dia estava lendo, porque a gente já descontava para os sindicatos antes do 25 de Abril, e estava lendo o meu cartão do sindicato, que diziam tem dever disso, tem dever disso, tem dever disso... e eu disse: “Vocês leiam o que está aqui para ver se eu estou lendo bem. As pessoas: Isso é tudo deveres, a gente não tem um direito que seja.” P: Isso antes do 25 de Abril? Manuela Medeiros: Era o sindicato das indústrias transformadoras. Disse às pessoas: “O que é que vocês acham?” A gente discutiu e não tinha um direito que fosse. A gente tem de ir à Inspeção do Trabalho, mas nós próprias não confiamos na Inspeção do Trabalho. Então, e foi nessa data que pedi licença ao sindicato dos empregados de escritório, porque das indústrias transformadoras, que era para onde a gente descontava, era uma sala pequenina e havia um pormenor, eu não cabia ali. E então eles emprestaram-nos. Lembro-me perfeitamente. Tive de subir à mesa, porque aquilo estava cheio e as pessoas não viam. E pronto, a partir daí começou a movimentação, o interesse. P: Isso foi em que ano? Manuela Medeiros: Isso já foi em 1975, logo ao princípio, quando a gente começou a estar mais consciente daqueles movimentos. Essa já foi mesmo logo a princípio do 25 de Abril, depois começou-se então os sindicatos. P: Podemos recuar um bocadinho? Manuela Medeiros: Podes fazer as perguntas que quiseres. P: Se calhar, antes de irmos para o 25 de Abril, tinha algumas perguntas sobre o período anterior, se calhar até antes disso. Os seus pais trabalhavam na pesca, o seu pai trabalhava aqui na pesca? Manuela Medeiros: O meu pai era mergulhador… e não sabia nadar. É uma anedota, mas era verdade, todas as pessoas têm essa reação. O meu pai trabalhava ali na Junta Autónoma dos Desportos no Porto de Ponta Delgada. E uma vez eu disse-lhe que queríamos a ver o trabalho dele, como é que ele fazia. E eu fui. Aquilo tinha uns fatos muito pesados, umas botas muito pesadas. Os fatos era eu que remendava. E quando ele fazia serviço, nós íamos às vezes ao fim de semana, estávamos lá com ele na sua oficina, nós sentávamo-nos ali a ver. Mas um dia ele ia para um sítio pertinho, mais à frente, ali junto do estabelecimento prisional, não sei se já passaste lá, na Calheta, e ele disse que ia: “Então vamos.” E eu fui. Ele estava lá para baixo, nós estávamos cá em cima, porque tinha assim mesmo um portozinho, estava muita gente a ver. Ele ia tirar já não sei o que foi, alguma coisa que tinha encalhado de algum barco que valia a pena, mas deu-me uma aflição e eu não quis ver. Porque eu julguei, ele estava aqui, depois aparecia ali, depois aparecia acolá. Eu julguei que ele fazia isso porque estava agoniado. Olha, tomei um medo, eu também era novinha nessa altura, devia ter uns 14 anos. Estava a trabalhar, já, mas com os meus 14 anos não tinha a perceção daquilo. Então eu fui-me embora. Disse à minha mãe que não queria ver mais e pronto. P: E a tua mãe estava em casa? Manuela Medeiros: Era, na altura era quase tudo em casa. A minha mãe, antes de casar, trabalhava com outras senhoras na costura, eram chamadas aprendizes de costura. O que elas ganhavam era o que elas aprendiam, era assim, e faziam serões e tudo. Mas a minha mãe aprendeu, não sabia fazer, também a senhora não fazia, mas a minha mãe fazia muito bem roupa de menina e chegou a criar vestidos pequeninos para crianças de um aninho e tal. Ela criava e fazia, e para a gente chegou-nos a fazer muitos. Então para nós, há muito tempo, a gente adolescentes, chegou-nos a fazer vestidos muito lindos, para mim e para minha irmã, a mais velha já não foi. Foi três, uns vestidos beijes com a fazenda lisa e criou por si. Daqui aqui levava umas tiras, mas umas tiras dobradas que lhe deu muito trabalho. Mas era assim, o entrepano era mais abaixo. Eu vou-te dizer, toda a gente gostava, era muito giro. E ela sabia então fazer isso, entretinha-se e fazia para outra gente. Eu tenho uma sobrinha neta, aquela que está ali, eu disse: “a tua bisa, se fosse viva, ela fazia-te o vestido”. Não queria. Eu disse: “Ela fazia vestidos bem lindos. Tu não sabias, ela não te ia fazer um vestido feio”, assim na brincadeira. Mas ela aí criava. Ela criava e sabia. P: E tu, não chegaste a casar? Manuela Medeiros: Não, não. Nunca namorei nem nunca casei. P: Porque lá na fábrica de tabaco era essa a regra? Manuela Medeiros: Não, não. Antes pelo contrário, havia alguns que brincavam e alguns que diziam coisas. Havia um que dizia assim: “Não sei como é, gostas tanto de crianças e não pensas num casamento ou coisa assim?” E eu disse: “Também se eu quiser ter um filho não é preciso casar.” Portanto, essas coisas assim. E à medida que elas iam saindo, a fábrica nunca ficou com maior percentagem de homens do que de mulheres. Só mais tarde, se calhar quando eu saí, à medida que iam saindo ou coisa assim. Sempre tivemos mais mulheres e do que homens, os homens eram mais na mestrança, à frente das máquinas, os técnicos de máquinas, assim. Havia mulheres que depois também já estavam, algumas raparigas à frente de máquinas e que sabiam tal como eles. E às vezes acontecia se havia alguma pessoa grávida, os patrões não podiam saber porque se não eram mesmo despedidas, aquilo era um segredo. E não havia os seis meses nessa altura, era a questão da produção que não podiam dar igual ou coisa assim, iam faltar mais ao serviço. É ganância, digamos assim, tanto de despedir como de lucro que havia as duas coisas. P: E as mulheres ganhavam muito menos que os homens não era? Manuela Medeiros: Ganhavam. Não havia assim grande diferença para aqueles que não estavam ligados a coisas qualificadas, mas já havia diferença. Aquilo era, em escudos, 6,30 e depois lembro-me de chegar a 9, não sei. Até fizemos uma festa com o primeiro salário mínimo que tivemos. Veio o 25 de abril e eu não conhecia uma nota de 1000 escudos. Quando eles ganharam os 3600, nós recebemos 3300, porque a maior parte que estava lá, era de facto uma maior parte, não recebia mil escudos, mesmo os homens não recebiam. Mas depois foi-se aproximando, mas não vou dizer que nunca se igualou, portanto houve essa diferença e depois veio esse aumento. P: Isso foi já depois do 25 de abril.... Manuela Medeiros: Sim, sim, sim. Primeiro o salário mínimo de 3300 entrou em vigou. Foi uma boa mão cheia, mas aí ninguém se desculpou, ninguém foi dizer que não queria, oh, que não queria. A gente só disse assim: “se fosse dividido por coisas, agora não sentiam tanto e nós tínhamos lucrado muito mais.” A verdade é essa. A gente sabe que os preços e o custo de vida eram elevados, mas dava perfeitamente. O primeiro trabalho que nós tivemos nos sindicatos (eu não era da direção nem nada, mas falei com a direção), fomos para lá por causa do custo de vida, do aumento do custo de vida. Depois para pagarem os salários, aumentavam noutras coisas e o poder de compra diminuiu. Pusemos uma mesa no salão do sindicato, tipo exposição, para sensibilizarmos as pessoas para essa coisa dos aumentos. Porque de nada servia um aumento salarial com o preço de vida a aumentar. P: Isso foi em que ano? Manuela Medeiros: Foi logo a seguir ao 25 de Abril. P: E antes do 25 de Abril, houve alguma reivindicação na sua fábrica? Manuela Medeiros: Sim, a primeira que houve já era por salários e houve noutra, que era também de tabaco. E aí conseguimos mas um aumento pequenino, mas que se conseguiu igualar, digamos, ao subsídio de natal. Porque enquanto umas lá na fábrica recebiam subsídio de Natal de um mês, as do escritório, nós recebíamos à quinzena, era menos 15 dias. E depois nós começámos a ver que não era certo. As do escritório ligavam para mim: “Oh Manuela, já vieste agradecer ao patrão?” “Agradecer ao patrão o quê? Não tenho nada a agradecer.” Vocês têm, mas eu recebi 15 dias, não tenho nada que agradecer. Então, lá fui ao escritório e o patrão: “Oh Manuela, alguma coisa?” E eu disse: “Eu não venho agradecer, ao contrário das minhas amigas, eu venho pedir. Venho pedir, mas não venho pedir um favor ao senhor. Venho pedir é para a fábrica, porque a fábrica somos nós todos. E o senhor, se der, é da Soares Pereira e o que venho pedir não é para mim. Venho pedir é um colchão para um casal que não tem condições nenhumas de viver e são idosos.” “Pronto Manuela, mas então queres que seja em nome da fábrica?” “Porque a fábrica somos nós, trabalhadores, que estamos a dar. E se for o senhor a dar é o seu nome. Portanto, há uma grande diferença, sim.” E depois ele assim: “Queres colchão e a cama?” Eu disse: “Isso também.” “Então vai escolher e a fábrica depois manda um carro buscar e vai entregar onde tu mandares.” E depois ele também disse: “E roupa para a cama?” Quem teve essa iniciativa foi um grupo que se juntava para questões sociais de ajuda. Mas nós não queríamos que as pessoas sentissem que aquilo era esmola. Há uma diferença. E então eu disse: “não senhor, nós também temos que sentir uma coisa do grupo, esse grupo que teve essa iniciativa, essa iniciativa não é só minha. Então nós, o grupo, é que vamos dar os lençóis, os cobertores, nós é que vamos dar.” E correu bem e depois foi feito tudo como eu dizia e ainda ficou uma ou duas a limpar a casa, aquilo não era uma casa, era uma garagem. Fomos limpar, era a tia Maria e o senhor António. E o senhor António chegou-se ao pé de mim e disse (chamava-me menina Maria): “Oh menina Maria, quando viu tudo feito [tinha muitos gatos, os gatos sujavam aquilo tudo], como é que me vou deitar naquela cama?” “Oh senhor, como se deitava na outra, é sua, mas agora já não é nada nosso. A gente vai continuar a vir fazer visitas, mas isso é tudo seu, é tudo vosso”. E foi assim, essa ação também foi bonita. Mas então é a tal parte para eles não sentirem que é esmola. Eu vou-lhe dizer uma coisa que eu gostava também de contribuir para essa despesa. Eu disse: “O senhor, nós ainda estamos devendo, mentira, estamos devendo o resto do colchão. O tio António vai-nos dar todas as semanas dois escudos e meio.” “Sim, senhora, a menina vem aqui buscar?” “Venho sim senhor.” Pronto, quando eu ia lá ele dava os dois escudos e meio e eu nunca disse que o colchão estava pago. Não é que um dia eu estava constipada e depois eles mandaram um recado e eu fui ver alguém doente que estava no hospital. E andava um enfermeiro: “menina Maria, menina Maria”, não sabia quem era. As enfermeiras não sabiam quem era menina Maria. “Senhora, é consigo?” “É comigo.” “É que está lá um senhor, que já está com biombo, que quer falar consigo e diz que tem que falar com a menina, ele já estava com um biombo para morrer.” Eu fui lá e ele disse-me assim: “menina Maria, é só para lhe perguntar quem é que vai pagar o resto do colchão.” E eu não tive coragem de dizer que o colchão estava pago. Eu só disse: “Tio António, o grupo, que gosta tanto de si, não o vai deixar mal. Nós pagamos o resto, só falta um bocadinho.” E pronto, morreu uns minutos depois. Foi das coisas mais maravilhosas também. Isto para dizer que na ajuda que damos aos outros, temos de ter o cuidado de não ferir a sensibilidade das pessoas e de lhes pôr, com aquilo que eles podem (até que seja limpar ou lavar) a colaborarem para aquilo que vai ser bom para eles, para eles sentirem a coisa sua. E muitas coisas em que há estragos, que há, é aquilo a que eles não dão valor porque não sentem as coisas como suas. E tudo o que fazemos é sempre nesse intuito: dá de graça para receberes de graça. P: Esse grupo era ligado também à JOC? Manuela Medeiros: Esse grupo sim, tinha ligações à JOC, mas não era todo. Nós chamámos aqueles que quiseram colaborar nessa parte social, digamos assim. E nem todos queriam. Quando foi da tia Maria e do senhor António, foram mais pessoas de fora para levar a cama, para armar a cama, para levar o que não prestava. Não foi brincadeira, foi muita coisa. E, cá está, nós também não queríamos, só queríamos aquelas que tivessem mais intimidade, para não os deixar vexados com aquilo. Nem toda a gente conhecia o ambiente. Essa foi das ações muito concretas. Reivindicávamos as férias, que só tínhamos uma semana e os outros tinham 15 dias. Nós queríamos as férias iguais, porque trabalhávamos os 365 dias como aos outros. Conseguimos assim alguma coisa antes do 25 de Abril, conseguimos as férias e já não me lembro se conseguimos o subsídio. Também não quero dizer coisas sem ter a certeza… P: E como é que se organizavam essas reivindicações? Era através da JOC? Manuela Medeiros: Não, tínhamos essas que já tinham essa parte social, a JOC também tinha uma parte social. A Juventude Operária Católica mete o Evangelho em tudo aquilo que é justiça, que é verdade. Muita gente, muitas daquelas e daqueles que estavam na JOC gostavam do ambiente, digamos assim. Era um ambiente leve, era um ambiente alegre, era um ambiente em que nada era exigido. As pessoas iam se queriam, as pessoas faziam se queriam. E depois havia sempre os mais responsáveis, que tinham de dar conta e dinamizar, mas não eram obrigados. Por exemplo, aquele grupo de novas ia à vigília e a mais coisas que nós fazíamos, era assim. Ninguém era obrigado, mas sempre nos juntávamos. Essas coisas faziam muito bem, faziam muito bem a todos. E depois, quando havia uma festa, o padre anunciava. A missa era toda cantada. Nós, em Santa Clara, é que começámos, porque eu fui escolhida para representar os jovens à Suíça. Isso em 1968. Aquilo era tudo em francês, eu passei fome, porque não gostava daquelas comidas e um dia eles dão-nos assim umas coisas nuns copos. Eu fiquei tão contente que aquilo era um sumo, era sopa. Eu não gostei nada da sopa, mas pronto. Mas tinha uma que se chamava Manuela Varela e ela, então, guardava para mim o pequeno-almoço, aquelas coisinhas de doce, porque sabia que eu não gostava da comida. Ela guardava e era o que eu comia durante o dia. Uma vez tínhamos a tarde livre e os franceses perguntaram se eu queria ir com eles num passeio. Claro que eu fui, a chefe do grupo, nós tínhamos uma chefe de grupo que era do continente, nessa viagem fomos 14, e cá dos Açores fui só eu. A Lurdes, ainda é viva, disse assim: “Mulher, vai, tu vais gostar tanto”. Era para conhecer, mas também queria comer alguma coisa. Como eles sabiam que eu cantava, enquanto eles comiam, eu cantava. Mas foi tão bom, cantei coisas da minha terra, cantei coisas também do continente, alguma coisa que eu sabia. Não era muito assim, mas cantei e depois à noite houve um serão, eles puseram-me uma capa preta de estudante, os nossos de Lisboa, e cantei um fado de Coimbra. Isso é terrível porque eu sei a música, mas não sei a letra. Mas então cantei: “Coimbra tem mais encanto [canta a primeira frase]”. Olha, apagaram-se as luzes, só acenderam os isqueiros. Eu comecei a inventar letras: “Quando nós não temos dinheiro, temos a solidariedade dos amigos, como abrir os frigoríficos e ver aquilo que pode servir para mais”, essas coisas assim, olha, fomos sempre safando, mas foi lindo. Lembro-me que a minha mãe me fez um fatinho verde, desse verde assim, e uma blusinha amarela. Os rapazes chegaram lá, portanto, homens despiram antes de almoçar, despiram, ficaram em tronco nu, foram-se lavar daqui para cima, vestiram uma blusa, uma camisinha lavada. As mulheres que iam mais finas, cheias de esterco e essas coisas assim, da transpiração, do comboio e da terra. Mas fomos embora assim, porque não tínhamos onde nos mudar. P: Esse encontro era da JOC Europeia? Manuela Medeiros : Era JOC internacional… P: O que é que discutiam nesses encontros? Manuela Medeiros: Nesses encontros da JOC internacional já discutíamos coisas relacionadas com o meio ambiente. Não essa coisa «climática», mas o meio ambiente: respeitamos o meio ambiente, não fazemos fogueiras nem queimas, na altura do Verão. Discutíamos como ocupar os tempos livres. Os franceses é que foram responsáveis por aquela parte da Liturgia naquele dia de como ocupar os tempos livres. Foi engraçadíssima a ideia deles. Eles levaram bolas, eles levaram rádios às costas, eles levaram coisas de jogar póquer e isso tudo, tudo o que eles gostavam de fazer. Levaram livros, levaram cartazes para chamar a atenção das pessoas que estivessem e que não pertencessem ao nosso grupo, como ocupar os tempos livres, como eram necessários os tempos livres, como era urgente a gente ter férias, os trabalhadores todos terem férias. Também foi muito bonito, em 1968. Lembro-me que foi a primeira viagem que eu fiz assim. Parei primeiro em Lisboa e depois fui de comboio, não fui de avião. Por isso ficámos todos cheios de esterco, claro. Mas aquilo tudo era alegria, tudo era folia. P: E como é que era a relação da JOC com a ditadura, havia problemas? Manuela Medeiros: Sim, não havia liberdade. O 25 de Abril, o que me deu de novo foi liberdade de expressão, sobretudo, e de escrita. Não me deu mais nada, a maneira de eu ser, a maneira de sentir, já sentia da formação da JOC, da minha escola de vida. O 25 de abril deu-me foi liberdade de expressão. E depois veio o 1.º de Maio, já depois do 25 de abril. Uma vez, lembro-me perfeitamente, no primeiro ano em que o Mário Soares nos queria descontar 2,8 % de subsídio de natal. A gente juntou-se numa campanha contra. Fomos para a Igreja Matriz. Nós tivemos que ter uma licença da câmara. Fomos à Câmara, claro que ela nos deu a cópia assinada e tudo. Estava eu a dizer: “Não nos roubam 2,8! Queremos o subsídio por inteiro, não é dividido, não é roubado!”. E veio um polícia: “Vamos acompanhá-la a casa.” “A minha casa? O senhor não está bom, eu sei onde é a minha casa. Eu tenho de estar aqui até às 7h00, às 19h00. Os trabalhadores saem às 18h30 e eu tenho que estar aqui até às 19h00, que é para eles nos apanharem, porque a gente também estão contra isso. Eles não querem ser roubados 2,8. O senhor gostava que descontassem o seu subsídio? O senhor também não quer.” “Oh, senhora, mas eu fui mandado.” “Mas diga ao seu patrão que eu não vou porque eu tenho isso aqui, olhe, a Câmara assinou. O senhor presidente da Câmara está cheio de dores cabeça. Olhe, o senhor presidente da Câmara pode ir para a sua casa quando quiser, quem não pode ir para sua casa são os funcionários. Ele pode ir para a sua casa, passe no hospital, trate de si e vá-se embora, não sou eu.” E foi assim. Depois ele veio outra vez e não me lembro. E a polícia quando falava comigo tocava-me no ombro e eu estava com mais homens. Não era uma multidão muito grande, mas estava aquele quadrado assim. E eles mais assim perto de mim, a polícia: “Oh, senhora, a senhora aceite, a gente vai... “ “Já disse que não vou, os senhores para onde me podem levar é para a Boa Nova – a Boa Nova era a cadeia, era a prisão –, porque aí eu não vou sozinha. Para a minha casa eu vou à hora que eu quiser, sei onde é, não preciso de companhias, desculpe lá”. E pronto, nunca vim embora, mas aí um senhor que estava ao pé de mim, era um trabalhador, disse: “Eu vou dizer uma coisa, você não toca mais nela. Eu não me responsabilizo, o senhor, por favor, não toque mais nela.” Olha, quando a gente dá por nós, já não havia só um polícia. Aquilo à volta eram uns 30 ou 40, eles estavam juntinhos, rodeando aquilo tudo e a gente lá no meio. E eu disse: “Olhem meus amigos, a polícia também não quer que lhe roubem o subsídio, estão todos aqui porque não querem que lhes roubem o seu 13.º mês.” Fazíamos isto com muita convicção e também com muita confiança naqueles que me rodeavam. Eu nunca estive sozinha em nada, eram poucos, mas eram bons. Porque às vezes o que tem valor não são as maiorias, mas quando as minorias são boas. E eu tive sempre isso, também havia muitos que eram contra, claro. Mas havia também aquelas que eram minhas amigas na JOC que quando me veem no sindicalismo começam a acusar-me de comunista. Eu era voluntária e ela diz assim: “Ai Manuela, que bom, desde que tu és voluntária que és muito mais católica”. E eu disse: “Eu não conheço a senhora de lado nenhum, como é que a senhora me pode ajuizar, de um valor daquilo que eu sou, de uma coisa que não conhece. Eu não sei se sou mais católica ou não”. “Ai não, a gente nota.” “Nota o quê? Eu vou-lhe dizer: eu não a conheço de lado nenhum.” “Ai, mas a gente no nosso grupo, a gente reza pela Manuela.” Eu disse: “Olha que bom, enquanto vocês rezem, dão-me mais força.” Disse: “eu estou contente, mas diga ao seu grupo que também lá há um dizer que a senhora está usando e que está lá escrito, ‘não julgueis para não seres julgados’. Não se esqueça, marque isso na sua cabeça.” Pronto isso é, são métodos muito ricos. P: Como é que foi o 25 de Abril, o dia 25 de abril? Manuela Medeiros: Ai, o 25 de Abril, eu vou-te dizer, querida. Quando foi o 25 de abril, claro que eu ainda estava a trabalhar, tinha um amigo que era distribuidor de tabaco (a minha secção era de onde saía o tabaco). Eu trabalhava com um guarda, que era fiel da alfândega e eu era fiel da fábrica. E então, eu estou a fazer o pedido, a requisição deste senhor que chegou lá (este senhor já faleceu há muito tempo e eu gostava tanto dele, era uma pessoa tão séria), eles foram distribuir o tabaco, e ele cheio de medo: “Manuela, anda aqui, anda aqui.” E eu disse: “sr. Flávio, porque é que me estás a chamar logo de manhã? O que é que te aconteceu?” ”Houve uma revolução em Lisboa.” “Ah, sr. Flávio, eu ainda não ouvi dizer isso.” Já eram umas 8h30 da manhã ou 9h00 e eu disse assim: “não ouvi.” “Ah, vai-te sentar no meu carro.” Porque ele tinha rádio e estava ouvindo. “Epá é verdade, como é que eu vou fazer isto? O que é que eu ia fazer?” Eu fiquei... uma revolução. Liguei para alguém de mais confiança, mas nesse dia não fizemos nada. Foi tudo para os seus…, tudo queria era ouvir notícias. Eu vim para casa, lembro-me perfeitamente, comprei rebuçados. Nós tínhamos um rádio antigo, muito grande, não havia televisão, havia um rádio. Tomei banho, vesti o pijama, fui para ali, a minha cozinha não era assim, portanto não tinha aquelas obras, era mais simples ainda, fechei tudo e levei toda a noite a comer rebuçados e a ouvir notícias. No outro dia fiquei tão mal-disposta. Cheguei à fábrica, depois fui falar com um, falámos com outro: “Hei, isto tudo vai mudar, agora e que vai ser ela, agora e que não sei quê... o fascismo nunca mais? É!” Então a gente vai é para a rua e pronto. E a primeira manifestação que houve eu não pude ir, porque estava num serviço de responsabilidade na fábrica, que era quando fazíamos a exportação para América. Aquilo era mais difícil. E eu não queria dar a responsabilidade a outra pessoa. Ia para a manifestação e depois, se houvesse um erro? Então a outra foi para a manifestação, mas teve um papel determinante, no Governo Civil. Há fotografias dela. Ela entrou e foi para a varanda gritar: “Fascismo nunca mais!” Ela com mais duas ou três, foi engraçadíssimo, foi engraçadíssimo. Foi uma grande força. Ela já faleceu, foi na América, porque ela depois ainda embarcou. Chamava-se Fátima. Eu não queria acreditar quando ela me disse: “tu vais ver, vais ver fotografias, eu vou comprar.” Eu disse: “tu vais comprar e eu vou-te que dar dinheiro e também quero.” E pronto, foi assim, houve coisas muito interessantes. E depois as pessoas começaram a juntar-se, aqueles que tinham mais confiança, analisando o que é que era. Porque a gente antes vivia, eu vou-te dizer… A gente, na fábrica, no tempo em que eu estive lá, mesmo antes do 25 de abril, uns 20 anos à vontade, eu nunca sofri lá dentro represálias do fascismo. A fábrica sempre teve uma parte socialmente positiva. Dava-nos a alimentação. Tinha salários baixos, tinha a divisão das férias, essas coisas assim. Quer dizer, um patrão copia aquilo que o outro faz, porque eles não querem descer os seus lucros. Era assim, mas nunca tive... Sempre falei com eles: “a gente vai festejar as amigas. Está tudo avisado. Telefonei para o comercio todo que nos fazia pedidos para aquele dia, naquela época, que quinta-feira é tarde de amigas, para não nos telefonarem.” E mesmo no dia antes, a gente trabalhava de maneiras a mandar tudo, para as ilhas, tudo, para ninguém nos pedir nada, para não faltar nada a ninguém, era assim. Portanto, eu sempre tive uma coisa a meu favor, que me ajudou nesse sentido. O que queria dizer de um patrão ia-lhe dizer, nunca mandei dizer por ninguém. Porque a gente nunca sabe como é que vão dizer. E desde que apanhei um amigo meu em falsidade… Pronto, são coisas que às vezes acontecem e a gente quando apanha, apanha. E depois a gente orienta-se de outra maneira e foi o que fiz. Ainda hoje em dia ele aqui vem. Já não nos juntamos tanto, mas não há nada como a gente dizer na cara das pessoas aquilo que a gente sabe. Porque guardando para nós destrói-nos. A gente assim liberta-se do veneno que tem cá dentro. É uma maravilha. Uma vez, lembro-me, uma segunda-feira, três irmãs, que eram tão amigas, foram fazer queixa de mim, depois de um fim-de-semana em que eu nem estive com elas. A gente foi-se embora todas bem, porque é que elas…? Não sei. Foram falar com o patrão e eu fui atrás delas. Cheguei à porta, estava o meu patrão e elas, e eu bati. O patrão disse: “Abre, abre” – porque ela sabia quem era. Então disse: “Podes entrar, Manuela.” Ele disse: “Manuela, é alguma coisa?” Eu disse: “Não senhor, não é nada, eu só venho saber de que é que essas minhas colegas vêm fazer queixa de mim. Porque se elas vierem sozinhas eu não me posso defender. Eu tenho de estar aqui.” Aí elas ficaram.... O patrão disse assim: “A tua secção é um confessionário, vocês que se vão embora todas.” Depois eu disse: “Então o senhor não chegou a saber o que é que elas vinham dizer?” “Eu não tenho gosto de saber.” Então eu nunca soube o que é que elas iam dizer. Portanto, é assim, ou a gente tem que ter coragem e enfrenta ou a gente desanima. Claro, há coisas que às vezes não correm como a gente quer. Depois tivemos a primeira manifestação, no Dia dos Trabalhadores, no 1.º de Maio, logo a seguir ao 25 de Abril, e eu não gostei nada. P: Porquê? Manuela Medeiros: A gente começava sempre com pinturas no campo com as crianças. Aí, às mil maravilhas, cantando, brincando, tudo. E depois tivemos um encontro no Coliseu, digamos assim, um plenário para informar os trabalhadores e tal. Eu também fui. Nós corríamos por todos para não serem sempre os mesmos, a verdade é essa. E como eu ia à televisão, disse “não, eu vou à televisão, é melhor a gente variar.” Eles tornam-se também mais responsáveis. E eu depois disse: “Fico então num Avé Maria em Latim, na Igreja de São José, um casamento de uns amigos meus, um casal.” E o que é que acontece na igreja? O Padre, que que Deus o tenha num bom lugar, disse assim: “Agora, antes de eu vir para aqui para essa cerimónia, para essa missa, vinha um grupo.... P: Estavas a contar-me do casamento no 1.º de Maio? Manuela Medeiros: Fomos cantar, eu cantei a Avé Maria e voltei para o campo, que tinha um quiosque, onde tínhamos a parte do encerramento. E depois alguém veio ter comigo e disse: “Manuela, tu já viste que começaste o teu dia de hoje e o que é que já se passou?” Eu disse: “Ai lembro” e a gente tem isso tudo escrito, porque eu também fazia parte da organização e disse: “Olha, eu comecei com as crianças a pintar no campo, cantando coisas para as crianças, elas dançando, os que pintavam, pintavam-se uns aos outros, isso tudo.” Depois fomos comer qualquer coisa porque íamos para o Coliseu. No Coliseu, já não me lembro quem foi que tinha a apresentação da sensibilização para o 1.º de Maio, a importância que era de comemorar o Dia dos Trabalhadores, os motivos que levaram para isso, realçando a liberdade, porque antes do 1.º de Maio nós tínhamos feito uma manifestação oito dias depois do 25 de Abril, a primeira manifestação, oito dias depois, que foi grande, linda. Mas eu não fui, havia uns outros, uma meia dúzia, gente que trabalhava já contra o fascismo, mas às escondidas claro, e esses depois saíram e fizeram uma grande manifestação, alguns deles já morreram. Tirando aqueles que estavam à frente, nós não tínhamos cravos, uns levaram azálias, que é uma flor que é parecida com o cravo, quando está fechadinha, e há vermelhas. Outros iam sem nada, com faixas do 25 de Abril, e pronto. Nessa primeira manifestação, acho que o Lourenço ainda não estava cá. Depois começou a ir para as outras e a organizar as outras, mas não estava cá. Essa foi mesmo a associação, que depois teve o nome de associação, que não era, era um grupo de antifascistas, digamos assim, que se reuniam. Portanto, era um grupo de que eu não fazia parte, porque não sabia sequer que existia. E depois, quando dessas manifestações, então disseram-nos, mandaram-nos cartas para os trabalhadores, para as fábricas, para os plenários. A gente ainda não tinha aquela postura de fazer os plenários, tinha sido oito dias depois. Não dava para isso. Mas fizemos e tivemos ainda um bom grupo nessa manifestação, uma manifestação muito boa, dessa associação. Portanto juntaram-se todos na Matriz, e viemos por lá, todos cantando, avisando, e houve um carro com micro a avisar todos os que queiram contra o fascismo e aqueles que tinham as palavras de ordem. Aí já havia a partidos clandestinos, como o PCP, e então também se juntaram e foi uma grande manifestação. P: E tu foste com quem? Foi com essa associação? Manuela Medeiros: Fui nessa manifestação, misturada ali com eles. P: Como é que conheceste as pessoas dessa associação? Manuela Medeiros: Eu conhecia-os de cá, não sabia é que eles pertenciam a nada. Não, eu não sabia. Pronto, tinha um que eu sabia que era de esquerda, dizia que era de esquerda, nem sequer sabia distinguir muito os de esquerda dos de direita e essas coisas assim, não tínhamos esse palavreado. Só havia um que era mesmo de esquerda. E ele dizia, numa reunião que nós tivemos, que ele também foi da JOC: “Sabes, Manuela, eu agora sou ateu.” E eu disse: “Olha que bom, cada um é aquilo que é, que bom tu seres ateu, eles já não estão sozinhos, já têm mais uma pessoa.” Mas uma vez estávamos numa reunião e não estavam a dar as coisas certas e ele disse assim: “Ai, meu Deus...” e eu disse assim: “Como é? Então tu és ateu, como é que estás chamando por Deus?” Eu disse: “Mas tu tens razão, porque de facto Deus também gosta dos ateus, para não fazer exceção de pessoas, deixa-te estar onde estás.” É uma questão de a gente estar atentas, mas pronto, nunca criei inimizades com ninguém por causa disso. Na fábrica, nesse tal plenário, alguns diziam: “Desconfiaste dos nossos patrões?” “Não desconfiei.” Ninguém desconfiou daqueles senhores que não conhecia, nem do meu patrão. Como é que eu desconfiei dos meus patrões? Não estava ali nenhum deles. P: Essas comissões administrativas, eram... Manuela Medeiros: Governativa, era uma que era para formar um novo governo já depois do 25 de Abril, sem a gente conhecer quem era... P: Eram os separatistas? Manuela Medeiros: Não eram ainda… Bom, não quer dizer que não tivessem ali algum separatista, porque se calhar estavam à mistura, mas eu agora também não quero afirmar. Porque depois é que foi a FLA (Frente de Libertação dos Açores), que era os separatistas. Pronto, eram os separatistas que inclusivamente... aqueles que não eram do grupo deles não podiam vestir azul, que eram as cores da nossa bandeira. Eles não gostavam. Portanto, se eu vestia azul, era a bandeira deles, e eu não me devia identificar com uma coisa que não concordava. Mas eu queria era a cor, não estava a pensar naquilo que eles eram. P: Mas essa comissão governativa era contra o 25 de Abril? Essa da fábrica que queriam que assinasse… Manuela Medeiros: Eu não sei o que é que eles queriam, o que é que eles eram, porque eram os tais que eu não conhecia. Eu estava nas Furnas, vim para saber o que é que era, mas não que tivesse conhecimento, não conhecia as pessoas. Eram pessoas, como é que eu hei de te dizer, mais ligadas ao capital. Nem sei se alguns eram patrões, eu já não me lembro. Mas pronto, eles foram-se embora, a gente não assinou, e ficou por isso mesmo, acabou. Nem os meus patrões, nunca disseram nada sobre isto, nunca, tenho que dizer a verdade. Só aquele que eu disse, mas pronto, eu não liguei e depois não sei se foi longe demais, mas pronto. E continuaram sempre, quando a gente tinha os plenários. Tivemos de ir para os regulamentos para saber quando podíamos convocar os plenários, essas coisas todas, os estatutos, os estatutos da empresa, que foram criados. O meu sindicato não tinha estatutos, tivemos de fazer os estatutos e cada um depois foi-se organizando nas suas direções, eleições, essas coisas assim, levou o seu tempo. P: Foi logo a seguir ao 25 de Abril que começou essa dinâmica de criar sindicatos? Manuela Medeiros: Sim, sim, havia os sindicatos, não estavam era organizados, não defendiam nada. P: Os sindicatos corporativos, não é? Os sindicatos nacionais? Manuela Medeiros: Eles não tinham o nome de corporativos, havia era o sindicato das indústrias transformadoras e serviços. Depois havia o dos escritórios e venda. Depois havia o dos transportes e turismo. E havia alimentação e bebidas. Mesmo assim, o da alimentação e bebidas era mais difícil para nós. Era um setor fácil de cativar, mas era o mais.... Com o dos escritórios, a gente dava-se às maravilhas, mas o de alimentos e bebidas... Tem a ver com os dirigentes, com aqueles que se querem impor, com aqueles que são melhores... Mas quando era para juntar para o 25 de Abril, a gente colaborava com a associação e conforme as despesas cada sindicato dava tanto. P: Como é que chamava associação? Manuela Medeiros: Era mesmo Associação 25 de Abril e ainda continua. P: E começaram a começaram a criar os sindicatos... Manuela Medeiros: Começámos a criar os sindicatos a partir do 25 de Abril. Portanto, num sinal de liberdade, mas também de responsabilidade e de defesa daqueles que também confiaram e nós e nos elegeram. Começámos a criar primeiro os estatutos, depois as eleições, para as pessoas irem tomando conhecimento. Eles e eu, que também não sabia. P: E tu ficaste dirigente do sindicato... Manuela Medeiros: Das indústrias transformadoras. Primeiro, não fui eu, foi um senhor que existia antes, que era da Fábrica do Açúcar. Depois dele é que fui eu e depois de mim já estiveram outros. P: E coisa que foram assim as primeiras atividades que desenvolveram? Manuela Medeiros: As primeiras atividades foram para dar conhecimento às pessoas, aos trabalhadores, acerca do que era o 25 de abril, quais eram as vantagens que nos dava. Começámos a fazer debates individuais em plenário, para juntar mais, para verem que havia gente diferente também, foi mais nesse sentido. Mas tínhamos atividades conjuntas, essa do 25 de abril foi sempre. Cada sindicato tinha a sua festa própria e depois, então, quando era o Dia do Trabalhador nós fazíamos assembleias com os dirigentes, para que cada um desse a sua opinião, e depois íamos para os sindicatos e para as fábricas também fazer plenários. Era assim. Os sindicatos dos escritórios sempre colaboraram connosco, sempre. Depois os da alimentação e bebidas também iam, mas era com mais cerimónia, digamos. São feitios das pessoas que a gente não pode mudar, é assim. P: Conseguiram uma boa adesão dos trabalhadores e das trabalhadoras nessa altura? Manuela Medeiros: Nos sindicatos? Sim, sim. Porque as pessoas já descontavam, eu já não me lembro quanto é que eu descontava para o sindicato. Depois também tivemos de ver o problema das quotas, porque tivemos que organizar os sindicatos com funcionários. E depois disso, antes do aumento de quotas, tivemos de saber como é que a gente ia pagar. É todo um trabalho que se faz e que demora o seu tempo. E defendíamos mesmo os que não eram sindicalizados. Nós tivemos um problema de um setor da Ribeirinha, que era uma fábrica que fazia fitas para máquinas e elas faziam isso em linho, na Ribeirinha. E um dia foram despedidas e foram ter connosco e nós fomos defendê-las e ganhámos. Nessa altura tínhamos o primeiro presidente [do Governo Regional], João Bosco Mota Amaral, e já não sei a propósito do quê, nós tivemos uma coisa conjunta, em que ele estava também, assim qualquer coisa do governo que ele convidou os sindicatos. Eu fui e essas já não iam receber o décimo terceiro mês, estavam despedidas. Mas ele tinha ido à fábrica, quando os americanos vieram abrir essa fábrica, com televisão e tudo, e ele deu um grande elogio, não sei quê mais. Quando a fábrica fecha, de repente elas aparecem. E ele começa a falar, a desejar as boas festas, era Natal, qualquer coisa do governo que ele convidou os sindicatos, e a falar, e disse: “Os sindicatos o que é que esperam do Natal? Toda a gente quer as suas famílias…” Eu disse: “eu queria que o senhor, com uma palavra vossa, ligue para a Segurança Social – que não pagava porque não queria fazer horas extraordinárias na semana do Natal para pagar aos trabalhadores – para fazerem o favor de pagar aos trabalhadores da Ribeirinha antes do Natal e basta só essa palavra, senhor presidente. Mas eles não querem, eles dizem que não vão fazer horas para pagar aqueles trabalhadores. Mas eles já têm o seu, senhor, isso não está certo. Como é que aquela gente que ganha salários mínimos vão passar o Natal?” Ele telefonou e eles receberam. Também reconheço que em sítios pequenos as coisas são mais fáceis, mas não esperava que eles dissessem uma coisa dessas. E o meu nome não apareceu nisso. P: E quais é que eram os principais problemas que tinham os trabalhadores aqui em são Miguel, quando foi o 25 de Abril? Manuela Medeiros: Quando foi o 25 de Abril, os principais problemas que tinham eram esses mesmos: de férias, de não ganharem igual, de não haver revisão de carreira. Não havia formação. Depois fomos sentindo a necessidade, fomos chamando pessoas. E depois, mesmo entre os sindicalistas havia alguém com mais sabedoria, aqueles que trabalhavam nos computadores e que faziam os quadros e essas coisas assim ajudavam-se uns aos outros nesse sentido e davam essa formação. E sobretudo a coragem e o perder o medo. Não havia razões para ter medo. Com casos concretos, não havia, se havia queixas, eles vinham e diziam mesmo, se for descontado horas ou isso, vocês vêm que a gente trata. Quem diz o medo, não era só meu, os outros tinham também, às vezes as horas extraordinárias que não eram bem remuneradas... E não estão a ser agora. Estamos a voltar atrás neste sentido. P: Foi necessário organizar alguma greve ou movimento? Manuela Medeiros: Sim, tivemos uma greve geral, tivemos uma greve geral cá. Credo, eu trabalhei para aquela greve geral. P: A de 1982? Manuela Medeiros: Foi, foi a nível do país. P: Como é que foi aqui? Manuela Medeiros: Adesão total, total, credo. Andámos de noite, no carro de um, no carro de outro, vigiando a fábrica de um, a fábrica de outro. Andamos nisso, a telefonar, não era telemóvel, percebe? Não foi brincadeira. O meu sindicato estava de serviço ao telefone. Havia uma parte central, o meu e o dos escritórios. Eles é que iam comunicando com os outros. Foi total. Depois fizemos ma manifestação de alegria, todos, como foram capazes, como a gente... a união faz a força, essas coisas assim. Pronto, e houve também muitas greves de setores, sim, sim. Houve várias greves de setores. P: Dessas de setores, consegue lembrar-se as que foram mais importantes? Manuela Medeiros: Parece-me que em cada setor era importante quando se convocava uma greve. Pronto, umas tinham mais adesão do que outras, a verdade é essa. Eu lembro-me que tive um colega na fábrica que estava lá há pouco tempo e não aderiu à greve geral. Eu disse: “O que é que vais fazer? O que é que vais fazer, está tudo fechado.” Abriu o portão e eu disse: “isso é contigo, ninguém te vai pôr na rua, porque é toda a gente.” Pronto, mas é normal, às vezes os medos das coisas e pronto. Mas houve várias greves setoriais, sim, mas aquela greve geral foi inesquecível, credo. P: Não houve repressão? Manuela Medeiros: Não, não. A gente estava à vontade. Pronto, talvez a força também venha disso. Portanto, assim como o mal se reproduz, aquilo que é bom também se reproduz. Mas essas coisas foram inesquecíveis. E depois nós tínhamos encontros de Natal. Nós convidávamos as mulheres dos sindicalistas para elas verem o ambiente. Para elas se aperceberem de como era valioso o trabalho que os maridos faziam. E sobretudo para que elas lhes dessem coragem, porque a gente estava num meio pequeno e as coisas podiam mudar num instante. Também houve essas incertezas na altura dos separatistas, de onde estava a força de maior capital. Não foi brincadeira. E aí houve muita gente, muitos trabalhadores, que aderiram sem saberem o perigo que corriam. E aí não era fácil pensar nisso, por mais que a gente fizesse, por mais que escrevêssemos, por mais... Mas pronto, havia a maior parte, que eram aqueles que davam emprego, que tinham mais facilidade em criar emprego, mas também conseguiu-se e isso foi muito positivo. Foram muitas noites sem dormir e a minha mãe dizia: “Credo, eu gostava muito mais...” A minha mãe fazia a comparação com o tempo em que eu estava só dedicada à JOC e chegava-se a uma certa hora e as pessoas todas iam para as suas casas e ali a gente tinha vezes, conforme as ações reivindicativas, conforme os setores, em que eram noites perdidas. Eram, eram... Houve uma vez que o Sá Carneiro veio cá. Nós estávamos no meu sindicato a trabalhar e os carros do aeroporto a passar com uns sapadores todos contentes a levar o Sá Carneiro. Não me lembro se houve alguma coisa, lembro-me dos carros a passar e de uns apitos. Nós abrimos até as varandas para ver, a gente não sabia o que era, depois é que nos lembrámos quando vimos as bandeiras do PSD. E o sindicato de escritórios ficava assim ao lado, de frente. Mas a gente tinha a preocupação de juntar. Havia a festa de Natal, a gente às vezes juntávamos as crianças, fazíamos uma festa de crianças, cada grupo levava... A gente alargava muito às famílias também. P: Estavas a dizer que convidavam as mulheres dos sindicalistas. Manuela Medeiros: Sim, sim, elas iam. P: Quer dizer que os sindicalistas eram quase todos os homens. Havia poucas mulheres? Manuela Medeiros: Havia mulheres, mas a maioria era homens no sindicato. Depois, mais tarde, já com o 25 de abril avançado, é que começaram, graças a Deus, a aparecer muitas, da fábrica do açúcar, da fábrica do papel, da fábrica de tabaco, também mais, da outra fábrica de cima, dos escritórios, começarem a aparecer mais. Não sei a quantidade em percentagens, porque é assim, eu deixei de trabalhar e depois eles ainda me queriam num serviço que era criar, digamos assim, um setor dos reformados. E eu disse: “vocês desculpem-me, mas eu não estou trabalhando, já não tenho cabeça para mais, eu estou deveras muito cansada e não pego em mais nada. Sou capaz de aparecer aqui, ali e acolá mas sem compromisso.” Quando a gente não pode, não deve aceitar. A gente não aceita só por nome, a gente aceita para trabalhar. Aí deixei de trabalhar e deixei de ter qualquer atividade com responsabilidade, a verdade é essa. Continuei ligada às ações sociais e ingressei como voluntária no hospital e já estou lá há 20 anos. De maneira que é assim e que é um trabalho que nos leva tudo. Nos leva ao contato com trabalhadores, nos leva a discutir problemas que eles têm e que às vezes não têm confiança para discutir com outras pessoas. Pronto, um bom ambiente social e sobre a saúde também. Leva-nos ao contacto com médicos. Isso eu tenho pouco, a minha irmã tem mais com médicos e com enfermeiros, com os auxiliares... P: Então a Manuela, nessa altura, no período após 25 de Abril, era uma mulher entre homens no meio sindical? Era uma das poucas mulheres que estava nos sindicatos? Manuela Medeiros: Não era a única. Era, talvez, a mais atrevida ou ativa, como lhe queiram chamar, mas havia mais algumas. Nos escritórios tinha uma. Depois do 25 de Abril, também tinha uma naqueles que era dos serviços, onde depois chegou o meu afilhado, também tinha. Tinha uma do SITAVA, mas a maioria eram homens. Manuela Medeiros: E era mais difícil para as mulheres serem dirigentes sindicais? Manuela Medeiros: Era mais difícil e não era pelos serviços em si. Eu achava também difícil, mas era porque não havia divisão de tarefas comuns. As mulheres eram aquelas que chegavam a casa e tinham outra tarefa, outro dia de trabalho como tiverem durante o dia na empresa. Talvez ainda com mais responsabilidades e que tinham de sorrir para os filhos e que tinham de apoiar os filhos. Eu sempre valorizei muito a mulher sindicalista, porque tinha duas funções, duas grandes funções de grande responsabilidade, e que tinham de encarar com a mesma disponibilidade e a boa disposição, tanto uma como a outra. E não era nada fácil, depois do cansaço, ter crianças, ter de dar um ambiente aos filhos e ao próprio marido depois de um dia de trabalho. Às vezes não era fácil. Eu sempre valorizei muito isso. De maneira que era mais difícil, sempre foi mais difícil nesse sentido. E não havia a divisão que agora há, embora se note ainda. Eu, no outro dia, estive com alguém que me disse: “Eu admirei-me porque o marido não é capaz de levantar o seu prato da mesa, um prato”. P: E acha que o sindicalismo concorreu para mudar essas diferenças de tratamento das mulheres e dos homens? Manuela Medeiros: Eu vou-lhe dizer, no início não. Nós estávamos virados era para as lutas nas empresas, mas havia uma preocupação com a família, mas não com essa ideia. Agora, às vezes íamos à casa uns dos outros, fazíamos muito isso. Por exemplo a [?]. Ela e o marido também foram sindicalistas. Ela era da função pública foi daquelas poucas que não sentia isso, porque em casa, quando chegavam, os dois trabalhavam. E com toda a abertura ela falava disso. Eram um grande casal, tanto ela como o marido, eu gostava muito deles. No outro dia vi-a, mas foi assim ao longe. Eu gosto muito dela. Era uma pessoa bem disposta e se nós acabávamos uma reunião e se estava ela e o marido, ela dizia: “Vamos a nossa casa, a gente não tem nada, mas ou assa-se um chouriço ou assim”. Eles na altura ainda não tinham filhos, mas depois tiveram dois. Agora já são casados, já têm netos... P: E nessas lutas nas empresas, por exemplo, não se tentava que as mulheres começassem a ganhar o mesmo que os homens? Não havia essa preocupação? Manuela Medeiros: Havia essa preocupação por parte dos sindicalistas, defenderem isso sobretudo para a contratação. Havia já isso de “trabalho igual, salário igual” e de não haver diferenças entre sexos. Mas era um problema, mesmo entre trabalhadores. Diziam que tinham um esforço que nós não tínhamos, que tinham mais força, faziam coisas que nós não éramos capazes de fazer. Procuravam defender-se, mesmo entre trabalhadores, não era só com os patrões. Quando há essas duas coisas é mais difícil, mas pronto, foi um trabalho lento, não podemos dizer que não foi um trabalho lento e que, infelizmente, isso ainda perdura. P: Então diga-me uma coisa, de que forma é que acha que esse envolvimento no movimento sindical marcou a sua vida? Manuela Medeiros: Sim, marcou a minha vida. Mas, como eu disse, eu tinha uma formação anterior, que foi a JOC, que me levava a pensar nos outros, naquilo que os outros se sacrificavam, que não eram correspondidos, que não eram reconhecidos. Portanto, teve uma grande repercussão na minha vida. Por isso é que eu digo que o 25 de Abril, o que me deu, foi liberdade de expressão e mais nada, a formação eu já tinha. A sensibilidade para os outros já tinha. A preocupação pela caminhada dos outros eu já tinha. Digamos assim, para que todos vivamos um momento feliz, era essa a meta, e para atingir a meta temos que passar por coisas muito difíceis. Nós conseguimos passar, mas não conseguimos alcançar tudo, porque depois há outros que vêm e às vezes não vêm com a mesma dinâmica, nem têm a mesma dinâmica, porque quem se mete numa coisa dessas nunca vê os seus próprios interesses. É isso. Eu, uma vez – não sei se já disse isto – tive um convite para ir para uma outra fábrica ganhar mais, para telefonista, e eu não aceitei. E o meu patrão soube e, para me aguentar, queria-me fazer um aumento sem ninguém saber. E eu disse que o que eu ganhasse era para ser público e na contratação, como os outros todos. Porque se eu merecia, todos tinham de conhecer. Portanto, eu sou pobre, mas não aceito. De maneira que é assim. O que ficou na contratação é o que eu recebo, mais nada. De maneira que, muitas vezes, eles precisam é de ver como tem valor a palavra. A palavra de honra, que já se deixou de falar nela. A palavra tem muito valor e muito sentido. Porque ele queria dar-me mais sete escudos e meio, ou seis e meio ou sete e meio, não era brincadeira, estás a perceber? No fim-da-semana era um dinheirinho. Mas eu não, no fim não aceitei. As minhas colegas iam saber, e depois? E depois, eu perdia toda a confiança. Ninguém é perfeito, eu posso ter muitas deformações, mas a de enganar os outros, essa não tenho. Posso ter outras coisas, mais banais ou mais difíceis ou mais prejudiciais, mas logo que seja para mim, que não se reflita nos outros, eu não me importo. Era mais 6 e meio ou 7 e meio eu já não me lembro. Era assim: toda a gente está a telefonar a dar-me os parabéns. Mas como, se eu não vou? Eu agora digo que não vou e eles não vão ver isso na minha folha de ordenado, porque eu de facto não aceito. Nem na folha individual, nem na coletiva, essa quantidade, porque não foi tratada em plenário quando foram apresentados os outros elementos. Se eu mereço, não preciso de ganhar às escondidas. É isso. E quando eles, por exemplo, uma coisa logo no início também, que foi uma edição do 25 de abril que eles queriam, mas depois lá à frente eram os representantes dos trabalhadores na administração. E houve um senhor, que pertencia ao Governo, e que me disse: “Olha, Manuela, daqui a dias tu vais e alguém daqui vai apresentar-te ao Conselho de Administração como reconhecimento.” E eu disse: “O quê, ele vai-me dar posse? O senhor está tão enganado, o senhor não nos conhece.” Eu, como trabalhador, nunca chegaria ali. Pronto, mas depois eu telefonei para si e, de facto, não fui, foi uma do escritório. E depois eu disse, quando fui lá acima dar os parabéns à nova direção: “Tinham-me dito que era eu que vinha para aqui e eu sempre disse que não. Não é que eu não merecesse ou não soubesse, mas eu onde estou, estou melhor. Não é nem o dinheiro, nem os nomes, e vocês sabem, os senhores sabem bem que eu não sou assim. Não tenho a mania de gradezas, eu sou pequenina. Não, essas coisas têm valor na simplicidade e, como eu já disse, na verdade, na palavra de honra.” Eu tenho mesmo pena dessa frase da palavra de honra, ela é dita com tanta convicção e agora já não existe. Agora dá-se por tudo e por nada. Agora veio uma corrida do salve-se quem puder, e quem puder por os pés no pescoço de outro põe, mesmo para saltar para cima. É terrível isso, uma doença. Eu nunca tive. Eu tenho no sindicato, estou no voluntariado, que é outra coisa que muito me orgulho muito, muito, muito. É uma coisa que eu gosto muito de fazer e que estou a sofrer com a paragem nestes dois anos da pandemia. Estou a sofrer com isso. Não só eu, todos os voluntários, que isso faz uma falta na nossa vida... Cada um tinha o seu horário, cada um tinha o seu dia e aquilo era para cumprir, não era para faltar, era para cumprir. Deste o nome, deste a formação, tiveste a formação, tu vais cumprir! E quando faltares, dizes a alguém para te vir substituir. O voluntariado é um serviço de amor, gratuito, mas por ser gratuito, não tem menos valor do que aquele que é remunerado. Não tem. Tem um valor que não se vê. P: Manuela, diz-me uma coisa, eu estou a fazer a história destes movimentos, tanto dos movimentos de ação católica como do movimento sindicalista. O que é que tu achas que é importante destacar e investigar na história destes movimentos? O que é que achas que falta conhecer? Se tu fosses historiadora, o que é que tu ias investigar? Manuela Medeiros: Se eu fosse investigadora ia investigar aquilo que me estás a fazer a mim. Ia saber: o que sentiste quando estiveste lá; se valeu a pena; e, agora, se tens esperança. Porque a esperança é uma coisa que não morre, mas que precisa ser alimentada. E ela só é alimentada se nós formos à procura, porque as coisas não nos vêm bater à porta. E depois dessa esperança alimentada, cria-se a tal confiança entre todos. P: Então responde-me lá às três perguntas? O que é que sentiste quando estiveste lá? Manuela Medeiros: Olha, senti dificuldades, não posso dizer que não, mas depois da confiança, da boa vontade de todos, que era de todos, do compromisso. Alguns – não há duas pessoas iguais – cumprem mais do que outros. Mas, quando assumem a responsabilidade e depois justificam, até é desculpado. Não é desculpado, é mesmo, porque ninguém é obrigado a fazer nada, tem de ser sempre de livre vontade. E depois, nós temos que ter muito em conta, quando nós estamos à frente de um sindicato ou coisa assim, que aquele dinheiro que nós gastamos não é nosso. É dos trabalhadores. Por isso, tudo tem de ser contabilizado. Há muita coisa que eu não ganhei, perdi algum, não estou arrependida. Se eu perdi um bilhete de camioneta, eu perdi, e às vezes tinha vergonha de pedir a segunda via de um táxi, de ele pensar, se quer a segunda via então perdeu. Eu tinha esse escrúpulo. E não sou rica, é sempre do meu trabalho, mas pronto. Mas preferia perder do que as pessoas pensarem mal de mim. Às vezes há escrúpulos que nos levam a perder, como eu estou dizer, mas a gente fica de consciência tranquila. E é preciso também muito cuidado e cada vez mais nos tempos que correm, porque há mais dinheiro a circular e o dinheiro se não for bem aplicado, bem gerido e a pensar sempre que – seja no Governo, sejam patrões, sejam sindicalistas – o dinheiro que nós gastamos, mesmo em serviço sindical, não é nosso, é dos trabalhadores. E por isso tem de ser tudo muito bem gerido. Quando era para aumentar os funcionários do meu sindicato, na direção a gente combinava, a gente não sabe como é, eles é que têm as contas, só resta isso. Se só resta isso, eles é que vão dizer o que é que querem de aumento para ficarem com coisas para as despesas mensais. E era assim. As coisas têm de ser feitas assim. P: Agora a segunda pergunta: valeu a pena? Manuela Medeiros: Valeu a pena! Costuma-se dizer que “tudo vale a pena se a alma não é pequena!” E é isso, tudo vale a pena. Porque no meio disso tudo há amor, há pura gratuidade, há entrega. E valeu a pena porque tive o gosto de fazer muitas coisas que deram frutos, que deram sementes. E é bom saborear quando as pessoas dizem: “Manuela, foi tão bom aquele tempo.” Ainda na semana passada falávamos nisso com pessoas que não via há anos e que tinham passado por isso. “Ai, Manuela foi tão bom aquilo”. Foi saboroso. Porque a gente trabalhava, a gente sofria, mas também tínhamos muitos momentos de alegria. Muitos, muitos. É isso. P: E ainda tem esperança? Manuela Medeiros: A esperança que resta é isso, naqueles bocadinhos e, às vezes, em conversas que temos, ou quando vemos na televisão. Há esperança de uma continuidade, que não seja igual, mas à maneira de agora, porque os tempos de agora não são como os meus tempos, são totalmente diferentes. Até quase que digo que são mais difíceis. São momentos de muito mais tentação. De paragem, porque têm as coisas mais organizadas, têm uns bons sofás para descansar. Têm uns grandes televisores para ver. Têm outras coisas. Há mais tentação para parar. Mas têm de continuar, para gozarem aquilo que fizeram – não em tempos, mas agora, se querem ver frutos dessa esperança. A esperança é alimentada com amores, com total gratuidade. Embora o sindicalista que tem horas e que tem de ganhar pelo sindicato, tem que ser remunerado, tem que ter sempre em conta que essas horas no sindicato têm de ser feitas com tanto amor e com a mesma disponibilidade, como seja um bom profissional no seu campo de trabalho. E a esperança nasce. Porque não se pode chegar a um momento saboroso, digamos assim, ao momento de partir um bolo, sem termos todos os preparos para aquele bolo e, sobretudo, não pode faltar o fermento, que é aquilo que falta. P: Muito obrigado. -
Sebastião Augusto Conceição Mota
P: Antes de falarmos sobre a experiência associativa, ia lhe pedir alguns dados biográficos para também termos a noção da sua história de vida e porque este estudo também permite fazer uma caracterização do tipo de pessoas que se dedicam às associações. Então ia-lhe pedir o seu nome todo. Sebastião Mota: Sebastião Augusto Conceição Mota. P: A data de Nascimento? Sebastião Mota: 20 de março de 1944. P: E o local? Sebastião Mota: Marinha grande. Engenho, Marinha grande. P: Estudou aqui na Marinha Grande? Sebastião Mota: Segundo grau só. Comecei a trabalhar aos 11 anos. P: Começou a trabalhar no quê? Sebastião Mota: No vidro, aprender a pintura do vidro. Posteriormente lapidação e muito posteriormente a pintura outra vez. Foi como terminei, foi com a pintura. P: E os seus pais também trabalhavam na indústria vidreira? Sebastião Mota: Sim, o meu pai era lapidário. P: E a sua mãe? Sebastião Mota: A minha mãe, por força das circunstâncias, o meu pai morreu tinha eu 5 anos, teve de se empregar na indústria vidreira, era roçadeira. Toda a minha família era ligada ao vidro, não havia outra forma. P: A mulher também, casou-se? Sebastião Mota: Sim, sim. Também trabalhou na indústria vidreira. Trabalhou comigo, trabalhava comigo nos lapidários. P: E filhos? Sebastião Mota: Dois, uma filha de 50 e um filho de 46. P: E o que é que eles fazem? Sebastião Mota: Ela é comercial numa multinacional austríaca que está aqui na Marinha grande, está na secção comercial. Ele é gerente de um bar. P: Qual foi a escolaridade que eles fizeram? Sebastião Mota: Ela, o 12º, e depois teve que, por dificuldades... Nós na altura, eu trabalhava mais a mãe na Ivima, chegávamos ao fim do mês, não recebíamos. E por força das circunstâncias, ela teve que ir trabalhar também coitadinha. E depois tirou inglês, alemão, espanhol. E daí ter conseguido o emprego que posteriormente, conseguiu. Mas foi à força dela. P: E o filho também fez o 12º ano? Sebastião Mota: Fez. P: Viveu sempre aqui na Marinha Grande? Sebastião Mota: Olhe, eu costumo dizer minha Senhora, nascido, criado e batizado, fui à guerra e vim, durmo no quarto onde nasci. Que esta é a verdade, verdadinha. P: Foi à guerra colonial? Sebastião Mota: Fui, à Guiné. P: Tem alguma filiação partidária? Sebastião Mota: Tenho, PCP. Eu era simpatizante antes, daí fazer parte das listas do sindicato Vidreiro antes do 25 de Abril, que foram vetadas pelo Presidente da Câmara. E quando se deu o 25 de Abril, entrei logo para o Sindicato como dirigente sindical e para o partido como é óbvio. P: E religião, tem alguma religião? Sebastião Mota: Tenho que ser católico porque sou batizado, mas não sou praticante, nunca fui. P: Muito bem, então estava-me a dizer que participou nas listas do sindicato Vidreiro, ainda antes do 25 de Abril, teve alguma outra participação associativa antes disso? Sebastião Mota: Sim, sim, tinha. Na minha coletividade de sempre, de que o meu pai foi fundador, o Império, o Sport Império Marinhense. P: O que é que o seu pai contava desse período da Fundação? Sebastião Mota: Não me lembro. Então ele morreu eu tinha 5 anos. Lembro-me de ir com ele à primeira sede do Império, que era junto ao parque do Engenho e da minha casa, mas tenho muito pouca ideia da minha infância com o meu pai. P: E quando é que começou a participar no Império? Sebastião Mota: Olhe, começámos a jogar, tínhamos uma equipazinha de pingue-pongue de juvenis. Naquela altura, não é só agora é que há crises diretivas, houve tamanha crise diretiva que fecharam a coletividade. E eu lembro-me perfeitamente de ter 15 anos e ir a um diretor e pedir a chave para abrir aquilo para irmos jogar Ping-pong. E já tínhamos uma televisão e à noite abríamos, ia eu abrir. Porque a minha avó vivia mesmo pegada à coletividade e eu ia abrir aquilo para as velhotas irem ver televisão. Foi aí que começou. Depois houve direções, eu ainda estive na direção antes de ir para a tropa, numa ou duas direções. Depois, quando vim da guerra, assumi logo, fui logo posto em Presidente. E depois vêm aqueles anos de 69 com as eleições do Arlindo Vicente. Era o Arlindo Vicente e era o Humberto Delgado. E depois veio o Congresso de Aveiro de 73, em que eu participei também, mas isso... As reuniões do MDP-CDE, na Marinha, eram feitas em duas coletividades, era no Operário e no Império, porque mais ninguém dava o peito às balas. E lá no meu lugar, no dito Engenho, havia um movimento de rapazes que eram contestatários ao regime, mais velhos do que eu, mas eu cheguei a acompanhá-los. E há uma altura que vão até uma freguesia do Concelho de Leiria, que era Amor, que é aqui ao lado da Marinha distribuir propaganda do MDP CDE à saída da Igreja de Amor. O Padre [anonimizado] telefonou à Pide e foi tudo preso. Eu não fui preso, eu era dos mais pequenitos, fugi lá pelo meio das terras. Mas houve dois que foram passar ainda uns meses valentes a Caxias, essencialmente a Caxias. E pronto, a partir daí o bichinho mordeu e dava gozo na altura nós cedermos o Império ao MDP-CDE, porque sabíamos que tínhamos a PIDE à perna, mas tínhamos que fazer um documento, assinado por todos os elementos da direção para o Governo civil para permitir, dizer que era da nossa inteira responsabilidade a cedência da coletividade. O nosso salão já era enormíssimo. Mas não se podiam invocar determinadas palavras. Eles davam-nos uma lista das palavras que não podiam ser ditas. Os oradores que iam ao palco não podiam usar aquilo. P: Que tipo de palavras? Lembra de algumas? Sebastião Mota: Não me lembro, aquilo já era muita areia para a minha camioneta. Sei que o Doutor Vareda, que era líder daqui, mais o Doutor Vasco da Gama Fernandes, que eram os líderes do MDP/CDE e o Doutor António José Guarda Ribeiro e um economista de Ourém [refere-se a Sérgio Ribeiro], esse ainda é vivo. Esse tinha uma fluência do discurso que era um espetáculo ouvi-lo. E a gente dizia: Olha, se você vão falar de fora deste âmbito, portanto, podem falar de tudo, mas estas palavras não podem ser invocadas. Pronto, eles eram advogados, só o Sérgio Ribeiro de Ourém é que era economista, e conseguiam dar curvas àquilo tudo. Mas mesmo assim o Império, ainda antes do 25 de Abril era perseguido pela PIDE. Agora vou me reportar para o sindicato. P: Mas não quer explorar mais aqui a questão do Império? Sebastião Mota: Sim, eu ia falar precisamente do Império, na cedência do Império ao sindicato, numa das greves que não é nada falada. O sindicato antes do 25 de Abril já lá tinha dois dirigentes filiados do Partido Comunista infiltrados. Um agora está muito mal no hospital, que era o [anonimizado] e era o [anonimizado]. E estavam a negociar um contrato em Lisboa e pediam 100 escudos de aumento por dia, per capita. E aquilo era.... como deve imaginar. O sindicato fazia plenários na sede do sindicato, que era no centro da Marinha, aquilo dava para cem, cento e poucas pessoas e vinha a polícia de choque, quem tivesse a biqueira dos sapatos fora do arrebate do sindicato, pimba. E não deixavam ali parar ninguém. Tomámos uma decisão, tomaram eles: Vamos é telefonar para o Presidente do Império – nunca mais me esquece quem era, era o [anonimizado] – se podemos fazer lá, ir daqui para Império. E foi. Minha Senhora, eu não estou a puxar nada a brasa à minha sardinha por ser do Império, é que era a única que abria a porta era o Império. Era o Império e o Operário. As outras, pronto. Aqui a Comeira não existia. P: Essa greve foi em que ano? Sebastião Mota: 74. 5 semanas antes do 25 de Abril. Então vamos para a sede do Império, começa-se a constar, pimba, pimba, contactos, não havia telemóveis, agora mobilizações, sabe melhor que eu, são fáceis. Começa-se a falar, a falar... Tivemos que abrir os portões laterais, não cabia tanta gente no Império. E os gajos da PIDE que estavam lá infiltrados começaram a temer as consequências e chamaram reforços. Chamaram reforços, mas isso não obstou que se fosse avante com uma proposta.... Há um indivíduo que ainda está vivo [anonimizado]. Sobe a uma escada de alumínio que estava encostada a uma das paredes, porque andavam a ornamentar o salão para os bailes de Carnaval, e grita: Vamos para greve, amanhã ninguém pega no trabalho às 8h – Não foi a mesa, mas eu penso que aquilo já estava ensaiado – Amanhã, às 8 da manhã, ninguém pega ao trabalho. Votação por aclamação. Saímos do Império, uns em alta correria, outros não sabiam, no lugar de irem para a Marinha iam para o lado da Vieira, porque a confusão cá fora estava instalada pela polícia de choque. O resultado que se esperava, no outro dia nas fábricas ninguém pegou o trabalho. Onde eu trabalhava, na Crisal, houve um ou dois que fizeram a tentativa de ligar os engenhos lapidários, porque aquilo eram engenhos, motores individuais. Parou tudo, fomos às Mulheres da roça, parou-se o forno, pararam as fábricas todas, começaram a mandar emissários. Da parte da tarde, o calcanhar de Aquiles era o setor da garrafaria, que é este que está aí ainda hoje próspero, e de que maneira, mas eram três da tarde, estava tudo completamente paralisado, tudo. E a polícia de choque vem de Lisboa, vem o capitão [anonimizado] para aqui dirigir isso, nunca mais me esqueço. A partir daí foi recolheres obrigatórios, perseguições, pancadaria. E na madrugada de sexta para sábado, já de madrugada, a polícia de choque vai-se embora. Soubemos que tinha havido um movimento dos capitães das Caldas para Lisboa. A polícia de choque foi daqui da Marinha atrás deles. Porque no dia anterior, até determinada hora do dia, nós conseguíamos mandar telegramas de apoio para a Corporação da Indústria para Lisboa, a apoiar a Comissão negociadora sindical. Cotizávamo-nos nas fábricas, mandávamos os garotos com textos escritos. O gajo da estação dos Correios da Marinha alertou as autoridades. Pronto é tudo cortado e no sábado de manhã eram para aí 10 da manhã recebemos a notícia que tínhamos levado um aumento de 60 escudos per capita para toda a gente exceto, repare nisto, exceto, para as crianças de 12 anos e 13, que levaram 50%, 30 escudos. A partir dos 14 anos, já éramos homens adultos. Toda a gente levou 60 escudos. Isto é um introito um bocado longo para a tal participação do Império. Se não fosse o Império, isto não acontecia. Não havia hipótese de reunir as pessoas. E foi a partir daí, do Império. Depois veio o 25 de Abril e pronto, foi tudo muito.... P: Mas diga-me uma coisa, neste processo, quer na reabertura do Império, quer na cedência do Império para o sindicato, na organização da greve, qual é que foi a participação das Mulheres? Sebastião Mota: As mulheres a nível da direção nessa altura era zero, não havia mulher nenhuma. Agora, a nível de organização de fábrica, elas tinham muita força. Na organização de fábrica não havia as células como há agora. Antigamente, podia haver meia dúzia de mulheres mais ligadas ao PCP, mas em termos de organização não havia, aquilo andava um bocado desgarrado. Mas notou-se, nesta luta que nos levou a esse aumento, quem teve, pelo menos na fábrica onde eu trabalhava, na Crisal, a preponderância, quem foi ao forno mandar parar os homens do forno foram de facto as mulheres, que subiram as escadarias: Ninguém trabalha, estamos em greve - e pronto, eram aqueles gritos. Ali a preponderância das mulheres foi muito importante. P: Elas também receberam um aumento de 60 escudos? Sebastião Mota: Tudo igual, minha querida per capita. P: Mas quanto é que elas ganhavam? Ganhavam o mesmo que os homens? Sebastião Mota: Não, não, ganhavam muito menos e eu era para trazer a tabela número 12 do Ministério das Corporações, que eu tenho lá guardada religiosamente. Tem isso tudo definido, elas ganhavam muito menos. Depois, com o andar do tempo é que nas profissões de pintura, por exemplo. Sebastião Mota: Por exemplo, eu trabalhava junto a quatro senhoras. Não havia quadro de idades nas categorias nem havia nada e as mulheres naturalmente eram todas deixadas para trás. Porque os homens é que, no conceito dos industriais, os homens é que eram produtivos. Mas havia e há, cada vez há mais, profissões em que as mulheres ainda produzem mais que os homens, como é óbvio. E partir daí, voltando ao Império. O Império foi... lutei e tenho lutado. Eu parece-me, parece-me não, de certeza absoluta, que terminei faz amanhã 15 dias, a minha colaboração como dirigente do Império. Porque eu fui agora nos últimos anos, muitos anos, Presidente da Assembleia Geral. Muitos problemas, à beira de encerrar, à beira disto, à beira daquilo, felizmente resolveu-se a semana passada, com a eleição de uma nova direção. E eu estou cansado porque já venci quatro cancros, uma operação ao Coração. Vou fazer 78 anos e há noite já estou bem é no meu cantinho, a ler, a ouvir música, e não a andar em confusões. Mas amanhã ainda tenho uma reunião porque o Presidente, lá está, quer pedir-me uma opinião acerca de um berbicacho que temos e eu vou ver se colaboro com ele. Colaboro sempre, agora estar efetivamente ali, porque também sou o Presidente da Assembleia Geral dos Reformados, da ASURPI aqui da Marinha, e também estava no Conselho Pedagógico da Universidade Sénior, mas pedi escusa. Mas tive o cuidado de indicar dois nomes que foram aprovados e que são duas excelentes pessoas, com licenciaturas, e que não me souberam dizer que não. Porque eu passei muito. Além do Império, foi o sindicato e os reformados. P: Então, e entrou no sindicato em que ano? Sebastião Mota: Em 74. Mas antes já tínhamos reuniões e clandestinas. Joana Dias Pereira: Como é que era? Quando é que começou a participar nessas reuniões? Sebastião Mota_ Foi logo a seguir a eu vir da Guerra. Não, foi depois, foi para aí em 68. Talvez em 68. Eu lembro-me perfeitamente das eleições de 69, da campanha. Depois tenho mais nítido é o Congresso de Aveiro, de andar a correr na célebre Avenida Lourenço Peixinho, isso é que não me esqueço. P: Em que condição é que participou no Congresso de Aveiro? Sebastião Mota: Assistente, não fui delegado, não fui nada. Fomos cinco amigos que fomos daqui de carro, tivemos de fugir para a Costa Nova e tivemos de dormir na Costa Nova, dentro do carro. As estradas estavam todas bloqueadas. Foi muito, olhe deu enquanto deu, enquanto eu pude. Depois com a história das doenças, é que foram dois na bexiga e extração total da próstata e agora, passado quase quatro anos, há dois anos atrás, foi-me detetado um novo tumor. Tive que ir fazer 35 sessões de radioterapia. A radioterapia manda uma pessoa abaixo. Até aqui ao cérebro/computador, vai buscar... Por acaso hoje está a funcionar bem. P: Então diga-me lá, mas disse-me que tinha participado numa direção do sindicato ainda antes do 25 de Abril? Sebastião Mota: Não, antes do 25 de Abril nunca participei. Participei em eleições. A lista foi proposta e o Presidente da Câmara, [anonimizado], cortou todos da Marinha por professarem ideias contrárias ao sentido de Estado, a bem da nação e uma coisa qualquer deste género. Quem não foi cortado foi o Presidente, talvez indigitado para presidente da direção esse [anonimizado], porque pertencia ao Concelho de Alcobaça e o Presidente da Câmara de Alcobaça não o cortou. Não, não, este homem é idóneo e é livre. Livres não éramos, não tínhamos nada de liberdade. Avança o plano B. Avança o plano B e o Presidente da Câmara estava a ir no mesmo sistema, cortar tudo. Neste espaço tempo de 15 dias, dá-se o 25 de Abril, avança ao plano A, do qual do qual eu fazia parte. E ainda lá estive 5 anos. Na vida sindical passava-se semanas absolutas fora da Marinha. Não via os meus filhos, estava sempre em Lisboa. Em Lisboa negociávamos no Hotel Flórida, ali no Marquês de Pombal. Isto era cansativo, até que conseguimos o primeiro contrato coletivo de trabalho vertical em Portugal, foi o nosso, com técnicos de desenho, metalúrgicos, eletricistas, empregado de escritório, tudo. Passado um ano, não chegou a um ano, uma reivindicação da Covina. Só nomes pomposos a dar aos trabalhadores, era tudo técnicos, naquela empresa era tudo técnico. Aí a gente vai lá fazer um plenário e eu e o [anonimizado] passamo-nos dos carretos: Então vocês há meia dúzia de meses levaram 60 escudos de aumento per capita, um aumento para toda a gente, sem lutarem, e agora já querem sair do contrato coletivo de trabalho. Somos chamados a instâncias superiores. Demitimo-nos do sindicato. Eu não, eu nunca mais me esqueço disso. Eu quero ir ao Marinhense, ao Lisboa Marinha ver a bola e não quero que me chamem de traidor. Quero ir ao café e não quero que me chamem traidor. Eu sou natural da Marinha Grande, nasci lá, vivi lá, vocês estão aqui no quinto andar, sabem que o que aqui chega vem tudo deturpado. Eis o que é que eu disse. [Reservado a pedido do entrevistado] Aqueles candeeiros que eram feitos na Crisal em Alcobaça, vêm para aqui para a Marinha, para pintar, só 4 ou 5 pintores é que os pintávamos. Foi a única transformação que eu aceitei, foi mudar de facto da lapidação para a pintura e depois, quando a Ivima deixou de pagar salários, eu armei-me de armas e bagagens e fui trabalhar para casa sozinho. Tive a sorte de um nome esquecido da pintura aqui da Marinha, [anonimizado], que me disse: Não, tu vais para casa eu dou-te trabalho, que ele trabalhava em casa também. E foi assim a minha vida. Pronto, trabalhei, ganhava a minha vida, não era rico, mas também não estava como estou hoje. Porque hoje estou com 545 EUR na reforma, não tenho rigorosamente mais nada. Isto é a vida de um homem de 78 anos, que deu.... Mas estás bem com a tua consciência – dizem. Pois estou, então vai-te governar com a minha consciência que vez o resultado que tiras. E foi isso. No Império Intercalava, não estava constantemente na direção. Mesmo no sindicato. Cheguei a ser Presidente da Assembleia Geral do Império, enquanto estava no sindicato. Mas depois pronto, é a tal teoria, há que dar lugar aos novos. Mas os novos não aparecem e demos lugar aos novos no Império, aqui há dúzia e meia de anos, e tivemos muito maus resultados. Os novos deram cabo daquilo tudo. Ainda hoje se está a pagar a fatura do que eles se meteram. P: Conte-me como foi a passagem do 25 de Abril no Império, nas coletividades? Sebastião Mota: A passagem no Império aconteceu desta forma, eu tenho impressão que na altura eu era secretário. Sei que no dia 25 de Abril estava cá uma equipa do Grupo de Teatro de Campolide a montar a cena para uma peça de teatro que era Filopópus. No outro dia de manhã eu vou para a fábrica. Eu estava a trabalhar, mas tinha um rádio potente e com a autorização da administração com uma antena. Eu ouvia a BBC de Londres. Eu ia sempre às 7:30, mais cedo, porque eles emitiam às 7:30, à 1:30 e acho que era às 7:30 da tarde. Eu fui para a fábrica mais cedo e começo a ouvir aquilo, estava tudo em silêncio, os engenhos só se ligavam às 8. Há um golpe, há um golpe de Estado, começou-se a falar e pronto: Ninguém trabalha, ninguém pega ninguém…e eu pumba, para o Império, vou para o Império. Porque nessa manhã vinha de Lisboa uma camioneta com os nossos carpinteiros para montarem a cena, quando soube...Não houve espetáculo à noite, era no outro dia e teve que ser adiado, porque no outro dia toda a malta do grupo de Teatro de Campolide quis ir para Caxias, para a libertação dos presos políticos. E depois vieram, fizeram o espetáculo, aquilo foi uma euforia, não imagina, o Império, não cabia lá mais ninguém, aquilo era uma alegria incomensurável. E depois lembro-me muito bem de irmos a uma antiga pensão em São Pedro de Moel cear todos, com o grupo de teatro todo. Porque eles vinham cá muito, era o Joaquim Benite, o encenador. Eles vieram cá com o Filópopus, com o Dom Quixote outra peça. Porque nós tínhamos um grupo de teatro muito poderoso e muito famoso também na altura. P: Então vamos lá detalhar as atividades do Império, quais é que foram as primeiras, quando reabriu? Sebastião Mota: Ora bem, o Império, está localizado numa povoação muito sui generis, como já lhe disse que é o Engenho. Não é por acaso que se chama engenho, porque está lá implantado o parque florestal da Marinha Grande. O Parque pertence ao Ministério da Floresta. Eles andam a dizer que vão lá construir um museu da floresta, mas até ver nada. O Império, como já disse, vai fazer 100 anos, em 23. E no tempo do meu pai, e de outros amigos que o fundaram, a primeira sede do Império foi construída pelo sogro do meu pai, pelo primeiro sogro do meu pai. Porque o meu pai era casado, tinha um filho, o meu irmão, mas a esposa morreu queimada por uma faísca. Estava a fazer o almoço para ele, numa trovoada em Maio, fulminou logo. O meu irmão estava num berço ao lado, não lhe aconteceu nada. Mas o sogro do meu pai era um homem que tinha dinheiro e construiu, que não haja dúvida nenhuma que foi construída de raiz, ao lado da moradia dele, mesmo ao lado do parque do Engenho, um edifício de primeiro andar para ser a sede do Império, com o salão de baile, um corredor ao fundo com os gabinetes da direção, as casas de banho e uma escada em madeira para o bufete, porque a gente chamava o bufete antigamente. E é aí que funcionou o Império nos seus primeiros anos. As festas do Império do aniversário de São João eram feitas dentro do parque do Engenho, que mais ninguém aqui na Marinha tinha a capacidade daquilo. Já nesse tempo, os próprios serviços florestais tinham uns arcos em madeira, com luzinhas às cores. Isso eu lembro-me bem, de ver lá dentro das arrecadações, quando era pequenito e ia para lá brincar. A estrada do Engenho daqui do Largo do Luzeirão, por trás da Câmara, até à entrada da Mata, era tudo enfeitado com esses arcos. E as festas do Império passaram a ser feitas dentro do Parque do Engenho. E posteriormente cá fora, mesmo em frente à sede, porque aquilo são largos com árvores. Está lá uma fonte feita na altura do portão do engenho de 1850, com uma pedra enorme em granito. E o Império já tinha ping-pong nessa altura. Há documentos e provas que mostram que nessa altura já tinha sido campeão distrital de ping-pong. Creio que em 1952 ou 1953 foi campeão do distrito Leiria. E depois tinham as tais contradanças, que era, eu tenho fotografias disso também na Casa do Império, também lá estão expostas, e teatro. Mirou-se sempre, sempre, sempre para a cultura. Na sede do Império, não havia espaço para ensaiar, mas tínhamos um amigo que tinha comprado uma fábrica que era da Philips. A primeira fábrica que a Philips, além da Holanda, montou na Europa foi aqui no engenho, que era a FAPAIX, que depois foi para Moscavide. Não sei se ainda existe em Moscavide se não. Aquilo tinha um salão, um barracão grande e era lá que o Império ia ensaiar as peças de teatro, muitas, muitas, muitas, peças de teatro. Aliás, há uma senhora que é secretária do La Féria agora no politeama, que a origem dela de teatro foi aqui no Império. Ela lá não faz teatro, é secretaria, faz parte da produção. Depois o Império teve Voleibol, Andebol, várias atividades. E começa-se a construir a sede atual, tudo ali pá pica, desde os garotos. Ali não havia diferença de idades, uns faziam umas tarefas, outros outras e foi-se construindo. Construiu-se um salão, não havia dinheiro para pôr janelas, pôs-se plátex a tapar para não haver corrente de ar. P: Isso foi em que ano, a nova sede? Sebastião Mota: Ora isto ronda 1960. Quando se começou a iniciar, eu devia ter uns 12 anos por aí assim, a partir de 1955. Começou-se a iniciar, foi em fases distintas, era só do dinheiro dos sócios e peditórios que se faziam. Entretanto, temos uma ajuda tremenda dos serviços florestais. Fomos falar lá com o engenheiro Amaral, que era um homem que superintendia toda esta desgraça e que desapareceu, que foi à mata e cedeu-nos todo o vigamento e todo o parquet, o que já era um luxo, aplicar parquet no chão. O Salão, eu acho que tem 16m por 35m, não 16m por 80m. O salão é enorme. Olhe sinceramente, nunca soube, nunca interiorizei quais são as medidas do Salão do Império. Foi-se construindo depois um palco, com a base em Madeira, mas à frente, a boca de cena, tudo em platex, tudo improvisado. Um bar ao fundo e tal, vivíamos assim. Fazíamos grandes festivais, até que aparece lá um rapaz como Presidente que teve ideias mais alargadas. É um proscrito, quase que é um proscrito, porque deixou as dívidas para os outros. Mas isso tudo se pagou. Mas a minha mantém-se. Se não fosse ele, o Império não tinha estas instalações, porque tem lá umas instalações... Temos dois bares, os bares têm o dobro deste salão. Temos um no primeiro andar e outro no rés chão. Depois temos o salão e ainda temos outro piso por cima, onde temos a sala de dança. Tínhamos grupos de ginástica, tínhamos as atividades, o teatro nunca morreu. Entretanto, as coisas foram naturalmente desaparecendo. As pessoas do Engenho foram também desaparecendo e o Império foi circundado por prédios de gente que vem de fora, que não é assim bairrista aqui como é a Comeira e outros lugares da Marinha. O Império está situado numa estrada que vai da Marinha para a Vieira, é um centro de passagem. A sede inicial era no centro do Engenho, junto ao parque Florestal. Agora não, agora está mais para Sul. E pronto, tem tido muitas dificuldades, mas o teatro ainda está vivo e é a única coisa que se pode dizer que neste momento está vivo no Império. Mais limitado, derivado da época que vivemos e pronto. Tirando isso, alugamos o salão para muitos eventos, muitos, muitos, muitos, que é o que nos mantém. Porque tínhamos um problema, é que gastávamos mais de 1000 EUR por mês numa funcionária que admitiram a contrato, com todos os encargos sociais, com tudo. Não sou contra a Senhora, o Império é que não lhe podia pagar. E os indivíduos que cometeram aquele erro, são dos tais que assumiram uma situação que não ponderaram bem. Conseguimos resolver o problema com ela, olhe, com a ajuda da pandemia. Aquilo fechou, ela foi para o fundo de desemprego. A gente propôs-lhe dar-lhe, enquanto ela andasse no fundo desemprego, o complemento de ordenado, para ter o ordenado completo e acho que já não se deve nada e a senhora vai para a reforma. Agora quem abre o Império são os próprios dirigentes, não todos os dias. Nós tínhamos tudo, seguros e caixa de previdência, tínhamos tudo, e isso custava-nos um balúrdio que a gente não tinha. O bar não tem movimento suficiente, porque o Império foi rodeado de bares, estão lá meia dúzia deles, e as pessoas dispersaram, uns para um lado outros para outro. Olhe, vamos, vão mantendo aquilo. O meu neto, por exemplo, anda lá, porque há uma rapariga que alugou-nos, já há uns anos, uma sala um bocadinho mais pequena que esta onde dá explicações. Essa está lá todos os dias. E alugamos aquilo imenso, a casamentos, batizados, festas... P: O senhor Sebastião fez teatro? Sebastião Mota: Só tive jeito para uma coisa, para ser ponto. Não tive jeito para mais nada. Eu fiz uma vez uma peça qualquer. Lembro-me perfeitamente de um colega que saiu a chorar de cena - a própria cena fazia chorar. Sai da cena e nos bastidores vimo-nos aflitos para o calar, para o consolar, para parar de soluçar, ele soluçava, soluçava. Mas de resto não tive jeito nenhum. O Império teve uma coisa muito boa também, que foi a revista à portuguesa, com as piadas locais, como é óbvio, escrita por autores lá do Engenho, que era o Arnaldo Cruz, que era barbeiro, o Padre Manuel e o Fernando Luz. E foi isso de facto que manteve o Império. P: Havia muita gente ali do Engenho a participar no teatro? Sebastião Mota: Muita, muita. E nas marchas! E na ginástica! O Império todos os anos ia à Sportinguiada, convidado pelo Sporting, às vezes tinham de ir dois autocarros, porque um não chegava. Mas eu veio-me agora à memória aquilo que eu lhe queria contar de antes do 25 de Abril. O Império tinha uma iniciativa, que era a Caravana da Amizade. A Caravana da Amizade, isto antes teve outro nome, mas a pide marrou. Porque a gente fazia uns prospetos a anunciar e era normalmente no dia 10 de Junho. Nós íamos para a mata, para a fonte das canas de bicicleta. Cento e tal bicicletas, com umas carrinhas de apoio com as pessoas mais de idade e com os morfes. Não havia discursos políticos, não havia nada, era só uma questão de camaradagem. Lá está, não podíamos empregar a palavra porque camaradagem era proibido. E chegámos a ser apoquentados por causa da Caravana da Amizade. E fizemos anos, anos, anos seguidos. Entretanto, outras coletividades começaram a fazer, a Ordem e o Casal Galego. Isto não há bairrismo nenhum aqui. Para mim são todos iguais, mas o que foi o facto é que foi o Império que deu pontapé de saída com muitos anos de antecedência. E isso enraizou-se na população do Engenho e toda a gente queria ir de bicicleta para a Fonte das Canas. Íamos por estradas da mata, estradas secundárias. Íamos conviver, levávamos os farnéis. Havia os mais cultos que diziam algumas coisas para a coisa também não ser em vão, mas não se podia também abrir muito, porque a gente infelizmente naquela altura não sabíamos quem é que andava no meio da gente, sabe? Porque tive isso no sindicalismo, tive isso no associativismo, tive isso na fábrica – bufos a controlarem. E depois, a partir das eleições de 1969, acentuou-se mais a perseguição. Mas muitas pessoas iam inocentemente. Eu também comecei a ir inocentemente, mas vi: Não, isto tem uma finalidade, é convivermos e elucidarmo-nos uns aos outros para procurarmos trocar impressões sobre o que estava bem, o que estava mal, não só no clube, como no lugar. E isso despertou o interesse à PIDE também. P: Acha que essas iniciativas foram importantes para a consciencialização política? Sebastião Mota: Foram, sem dúvida, foram, foram. Foram, porque embora praticássemos jogos tradicionais para matar o tempo, ia-se à praia, dava-se banho, vinha-se, almoçava-se e depois as pessoas mais de idade falavam sobre o clube e metiam umas farpazinhas. Porque as pessoas também tinham muito medo, como é óbvio, tinham de acautelar. Porque a PIDE aqui na Marinha... não era tudo perfeito também. Também havia ali muito, então nos locais de trabalhos. Infelizmente, aconteceu muito. É assim que me lembro grosso modo da atividade antiga do Império. Depois houve aquelas modalidades desportivas passageiras, o box, aquilo não se chamava box, era outra modalidade. Disputaram aí campeonatos nacionais, mas passado dois anos morreu tudo. Eram coisas sem continuidade, depois vinha outra direção, com outro iluminado e lembrava-se de: Olha, vamos fazer isto. Tivemos uma boa equipa de andebol, não tínhamos era estrutura para seguir. Foi tudo para o Sporting Clube Marinhense que já tinha pavilhão. Nós tínhamos que treinar na rua, à chuva e ao frio. Chegávamos a ir jogar à Maceira, em Leiria, e claro o que é que nos acontecia. Tínhamos de pedir para nos irem lá pôr, nós nem bicicletas tínhamos. A maioria de nós nem bicicletas tinha e íamos lá, na altura tivemos que vir a pé porque o homem que lá nos foi por com uma carrinha esqueceu-se de nos ir buscar. Tivemos que vir a pé, cheios de fome. Tivemos uma boa equipa de voleibol. Daí foi um para o Benfica, foi Internacional do Benfica e ainda cá está, é o Moisés Nobre. Tínhamos Atletismo. Eu não tomei apontamentos nenhuns e agora isto é que está a vir-me à memória. O Império tinha uma grande prova anual de atletismo que era chamada volta aos Sete. Tínhamos uma equipa com rapazes e raparigas, alguns trinta a competir, mas depois as pessoas vêm com novas ideias, uns cansam-se, outros desistem. E depois, como sabe, as questiúnculas de bairro também são mais que muitas. Por vezes, um indivíduo sacrifica-se, trabalha, trabalha, trabalha e ainda é criticado e mandado abaixo. Ficheiro de áudio MVI_0667.m4a Transcrição P: No 25 de Abril o Império não esteve envolvido em nenhum daqueles movimentos de auto-organização, para o saneamento ou...? Sebastião Mota: Teve, havia as comissões de moradores. Que eu me lembre, depois do 25 de Abril, era na noite do 25 de Abril, o Império chegou a participar, porque a Câmara desafiava as coletividades, num cortejo rumo à praça para nos juntarmos à meia-noite. E eu lembro-me que o Império levava cortejos a pé que era um espetáculo e com música. Juntavam-se meia dúzia, porque lá no nosso lado houve sempre o hábito de conjuntos, música de baile, nns a tocar trompete, outros a tocar saxofone e a gente vinha a marchar por ali acima. E foi lindo enquanto durou. P: Foi criada alguma comissão de moradores lá no Engenho? Sebastião Mota: Foi, foi. Sempre houve comissão de moradores. P: E o que é que fizeram lá o Engenho? Sebastião Mota: Fizeram as coisas essenciais na altura, auxiliavam a Câmara e a junta nalgumas tarefas, mesmo as pessoas a trabalharem. Não podia ser durante a semana, mas trabalhava-se ao sábado e ao domingo. P: O Sr. Sebastião participou? Sebastião Mota: Não, porque eu nessa altura estava praticamente fora da terra, tal como lhe disse, estava no sindicato. E lá vou eu outra vez para a parte do sindicato. Antes do 25 de Abril, havia cinco - Lisboa, Porto, Marinha Grande, Aveiro e Figueira da Foz. Fundimos tudo no sindicato dos Trabalhadores da Indústria vidreira, que ainda existe hoje. Eu por acaso até era o tesoureiro do sindicato, por isso é que estou rico. Comprámos dois apartamentos na rua da Firmeza, no Porto, e mandamos tirar as paredes de dentro para ficar com uma sala boa de reuniões. Porque a sede do sindicato Vidreiro do Porto era num vão de escada na rua da Santa Catarina. Estava na rua mais famosa, mas não tinha condições nenhumas. Comprámos as atuais instalações na calçada da Estrela, em Lisboa (entretanto já compraram outro) e comprámos esta sede aqui na Marinha. A delegação da Figueira da Foz deixou de interessar e ainda tínhamos a de Oliveira de Azeméis. Em Oliveira de Azeméis criaram-nos problemas de toda ordem, de nos quererem matar. Eram populações não tinham nada a ver com o vidro, da indústria de chapelaria, essencialmente mobilizados pelo [anonimizado], que era o dono do Centro Vidreiro Norte Portugal. E passámos bem, andámos a fugir à frente de tiros. E há um episódio que nunca mais me esqueço. Íamos daqui de madrugada, de táxi, para fazer um plenário no Auditório da escola Industrial de Oliveira de Azeméis. Tínhamos autorização do diretor, do Padre, que tinha dito: Não Senhor, isto está cedido. Chegámos lá e havia gente à nossa espera, numa bomba de gasolina antes de Oliveira de Azeméis. Eles perguntaram e nós respondemos: Nós vamos de táxi. Mas nós estamos a responder que vamos táxi para sermos atacados ou quê? A gente andava assim. Parámos e vêm dois que nós conhecemos: Fugi já para o Porto, fugi já para o Porto, vocês não podem voltar atrás, fugi para o Porto. Então vamos fugir para o Porto porquê? Eles deram cabo do piano todo. Deram cabo do piano... – pensámos que fosse no ginásio da escola, onde ia ser a reunião. Estão, eles deram cabo, que paguem. Mas o piano era o nome, era a alcunha, de um delegado sindical nosso. Deram-lhe com uma corrente na cara, que lhe deu cabo da cara toda. Já estava para o hospital. E a gente ignorava que ele tinha a alcunha de Piano. Olha, deram cabo do piano que paguem, e não conseguimos fazer o plenário. Depois decidimos: Fechamos a sede de Oliveira de Azeméis. Quando vocês precisam de reunir,, Oliveira de Azeméis vai reunir ao Porto. Temos condições, metem-se num táxi e vão ao Porto. O nosso sindicato era poderoso na altura. Nós tínhamos uma caixa de previdência própria. Era a Caixa de Previdência do Pessoal da Indústria Vidreira. Os trabalhadores descontavam +1% por mês para ter direito a medicamentos e tudo mais. E o que é que, antes do 25 de Abril, nesses anos antes, o que é que essa gente fazia ao dinheiro? Compravam imóveis na Avenida de Roma. Eu cheguei a andar, eu com técnicos, a ver os bens que o Sindicato tinha. Mas a Caixa do pessoal da Indústria Vidreira só funcionava com o aval do sindicato compreende? Mas que é isto? Meia Avenida de Roma, prédios degradados, para que é que a gente quer isto? Entretanto, houve alguém que se encarregou de ficar com aquilo tudo. Foi o presidente da caixa de Previdência daqui da Marinha Grande, na altura, que era o [anonimizado], açambarcaram tudo da Caixa Vidreira para a Caixa Nacional de Pensões. Ficámos a zero. Nós tínhamos património e ficámos sem nada, tanto que em Lisboa estamos muito bem instalados também. P: Quais é que eram as suas responsabilidades no sindicato? Sebastião Mota: Era tesoureiro. Fui sempre tesoureiro. Era tesoureiro, mas tenho que dizer que tinha um economista e um chefe de serviços atrás da Secretária que me punham a papinha toda na frente e me explicavam tudo. E eu assinava como é óbvio, quando não tinha capacidade para, como é que se chamavam, os balancetes analíticos e aquelas coisas toda. Eu não tinha capacidade para isso, mas tinha confiança nas pessoas que trabalhavam comigo. O nosso economista e técnico de contratação era o Amândio Teixeira Cardoso. O nosso advogado aqui na Marinha era o doutor Guarda Ribeiro, outro homem de excelência e muito sério. E era assim que nós trabalhávamos. P: E depois intervinha em termos de mobilização? Sebastião Mota: Sim, sim, ia a plenárias às empresas. Por isso é que eu dizia, minha Senhora, nós tínhamos sedes em Lisboa e no Porto, tínhamos diretores a tempo inteiro em Lisboa e no Porto, mas para apagar fogos tinham que ir os bombeiros aqui da Marinha. P: Quais foram os fogos que teve que apagar? Sebastião Mota: Olhe, uma vez na Covina, estávamos lá em Santa Iria da Azoia, lá na coletividade local a fazer um plenário, e lá aquela rapaziada do MRPP tenta invadir o plenário, e ainda nos mandaram pedras. Outra vez, foi na Voz do Operário. Nós estávamos atacados pela esquerda, pela direita, pela extrema esquerda, não havia ninguém que não chutasse na gente, mas a gente chegava para isso tudo. Na escadaria da Voz do Operário, há um gajo que vem para mim e que me diz, eu não sei o que é que ele me disse. Mando-lhe um sopapo, só o vi dar a cambalhota. Isto tinha que ser assim. E depois, procedimento incorreto. Querem que nós sejamos Jesus Cristo. Leva numa face oferece a outra. E eu não prestava para essas coisas. Por isso é que olha: Já tens 5 anos disto, já aprendeste o suficiente, vai lá para o teu Engenho trabalhar, trabalhar e não era brincadeira, das 8 da manhã às 8 da noite, que éramos obrigados. Estou a mentir. Isso foi antes do 25 de Abril, trabalhar-se até às 8 da noite. Fazíamos 11 horas por dia, tínhamos 50 minutos para almoçar. Que era das 8 ao meio-dia e meia hora. E da uma meia às 5. Parávamos para tomar uma buchazinha, um quarto de hora, e depois até às 8. P: Diga-me uma coisa, havia algum tipo de solidariedade informal nas fábricas, por exemplo, grupos de doentes. Tenho ouvido em algumas regiões do país? Sebastião Mota: Havia, havia, antes do 25 de Abril. Havia uma coisa que se usava aqui muito na Marinha, que era as subscrições. As subscrições a favor de.... P: Como é que funcionava? Sebastião Mota: Era andar a pedir com uma lista, o nome. Quanto é que dás? 25 tostões, tal, tal, tal e depois entregar à pessoa. Olha, o resultado é isto. Quando havia alguém que precisava, nós tínhamos conhecimento, porque naquela altura nem havia oportunismo. As pessoas nem sabiam ser oportunistas. Eram pessoas sérias que tinham a confiança da Comunidade e pronto trabalhava-se assim. Agora, infelizmente... E tínhamos também, como eu disse há pouco, a Caixa Sindical de Previdência que pagava-nos os medicamentos na íntegra. P: E quando estavam doentes, pagava o ordenado? Sebastião Mota: Não, não. P: E havia ajuda entre os colegas nas fábricas? Sebastião Mota: Era só entre os colegas, a empresa não pagava rigorosamente nada. P: E essa ajuda entre os colegas era só estas subscrições ocasionais ou tinham uma coisa mais formal? Sebastião Mota: Não era só estas subscrições. E não era só para aí, até para os presos políticos. Eu participei em dezenas e dezenas de peditórios. Tinha que ser, não se nega. Havia uma tática, havia um homem que nós tínhamos muita confiança, havia vários, mas um era o Manuel Baridó, o sítio preferido dele, para nos encontrarmos com ele, para lhe levar os 100 ou 200 mil reis, era no café dos ricos, na Marinha, no café cristal. Era onde parava o Presidente da Câmara e essa canalha toda da pide. E aí eu: Ó Manel estás-me a mandar aí ter contigo ao café? – a horas diferentes, não íamos todos juntos. Estás-me a mandar ir ter contigo ao café Cristal? Não te rales, ali é que funciona bem, estamos protegidos. E são histórias. P: E Imprensa clandestina antes do 25 de Abril? Sebastião Mota: Havia o Avante só. Eu recebia, chegava-me a chegar às mãos dentro de uma cana, uma cana assim, enroladinho lá dentro, parecia o testemunho daquela prova de atletismo, passar o testemunho. Isso era o que me acontecia. Eu na minha secção, na altura já éramos 75 lapidários, fiz-me assinante da República, era o número 21. Levava-a para casa, pagava 25 tostões e eu não tinha muito dinheiro. Não tinha muito dinheiro, não tinha nenhum dinheiro, todo o dinheiro do ordenado tinha que o dar à minha mãe. Lia-o de fio a pavio e no outro dia levava-o para a fábrica. Toda a gente lia a República. Foi um serviço que eu fiz. Gente com mais poder económico que eu não fazia isso de certeza absoluta. Não faziam, nunca fizeram, nunca tive conhecimento. Mas lá está, como costumo dizer, nessa altura dava gozo. Eu não sei se o termo será o indicado, mas eu penso que dava gozo um gajo lutar, ter com quem lutar. O que é que se faz agora? Chamam-se nomes aos políticos, bate-se nos polícias, os polícias nem batem nas pessoas. Antigamente era o contrário. O 28 de Outubro por acaso este ano foi comemorado, foi criado aqui um grupo de que eu faço parte também, o Grupo Antifascista Frente 18 de Janeiro. P: Isso foi em que ano? Sebastião Mota: Isto foi em 73. Que eles vêm aqui com a intenção de prender a juventude, os jovens mais ativos. Ali, conhece a Marinha? Está a ver onde está a estátua do vidreiro (está agora aí uma polémica por causa disso, parece que a vão mudar para o lado), em frente há um edifício, havia ai um banco, um grande café, que era o Panorama, ainda ali está uma casa de modas, que é o Sonho da Moda? Começámos a arrancar, só custou a arrancar o primeiro paralelo, daqueles quadrados. Ai, eles deram, mas você pensa que eles não foram bem aviados para Leiria? Ai foram, foram. É evidente que prenderam um ou dois bodes expiatórios, os mais ativos. No outro dia é julgado um aqui na Marinha. Bloqueamos logo a Marinha toda, ei meu Deus. E quando me vêm dizer, olha que Fulano, e vieram-me dizer a mim. E eu não tinha responsabilidades políticas nenhumas, não era controlado, bom era controlado no mínimo, fazia aquilo que me orientavam, mas diretamente do Partido Comunista não, era sempre por interposta pessoa. Vieram-me dizer que fulano foi visto atrás do Tribunal a falar com o Pinto Galante. O Pinto Galante era o diretor da PIDE de Leiria. Isso para mim foi uma faca no coração. Depois constou-se. Depois vínhamos de uma reunião da intersindical com o Presidente dos Metalúrgicos ao meu lado, chegámos às Caldas parámos, quando vínhamos à hora do jantar parávamos num snackbarzinho para comer um bifinho lá na frigideira, e começámos a encontrar pessoas da Marinha: Olha, mas a Marinha deslocou-se para aqui hoje, o que é que se passa? Era malta, gente do partido e do MDP/CDE, porque o [anonimizado], que ia no táxi comigo, que era Presidente dos metalúrgicos da Vieira, era o [anonimizado] da PIDE. E depois, confessou também: Olha, o [anonimizado] também dá informações. Isso já a gente sabe, porque o [anonimizado] era do sindicato e era da caixa de Previdência. Foi expulso de tudo. Mas ainda houve quem passado uns dois ou três anos, quem quisesse reavivar a Memória. Foi o [anonimizado], que era do PS. E eu disse-lhe: Olha doutor, não penses em fazer uma coisa dessas, é um erro político terrível. Queria dar o nome dele a um salão no Operário. E eu assim: Então dá o nome de um homem que traiu tudo? Ele tratava-me por senhor, ele era filho de um dono de um café aqui da Marinha. Oh Mota, eu estive a pensar melhor, você tem razão. Opá, esqueça, deixe estar isso no baú do esquecimento. Esqueça, não se meta nisso. Que a gente não sabia, não sabia o que é que saía. E a mim saíram-me algumas. Felizmente nunca fui preso, mas estive nessas tais reuniões preparatórias para a reunião da direção dos sindicatos antes do 25 de Abril. Eu cheguei a ter que fugir de motorizada, que eu chegava a Casa lá nos subúrbios do Engenho e via o carocha da PSP escondido, o carro da polícia. E não havia telemóveis para falar à mulher nem nada, era uma aflição. Eu ia para a Vieira com o [anonimizado], coitadito já morreu, cada qual na sua motorizada dormir a casa da sogra dele. Mas pronto, além disso eu estive preso depois do 25 de Abril. Numa reunião na Barbosa Almeida, em Avintes, quando o Presidente da região Militar do Porto era o [anonimizado], um facho. Entendem que a gente estava a fazer campanha subversiva, isto depois do 25 de Abril. E chama a gente, manda a gente, tropa, numa carrinha para o quartel-General do Porto. Os senhores ficam aqui em reunião permanente, estão em reunião permanente comigo. Estivemos lá dois dias e meio primeiro que fôssemos libertados. Esta não lembra a ninguém, esta, por isso é que festejas hoje o 25 de Novembro. Não me esqueço destas coisas todas. Isto tudo já estava a ser orquestrado aos poucos. E esta é a história da minha luta, já pareço o Raul Solnado [ri-se]. P: Diga-me, houve uma parte que não falámos, e podemos não falar, mas é a participação na guerra Colonial Sebastião Mota: Sim, sim. P: Houve uma pessoa que eu entrevistei aqui outro dia que disse que mesmo lá criou grupos de futebol, procurou de alguma forma promover algum relação. Sebastião Mota: Sim, sim. Eu tenho fotografias e tenho a faixa de campeão da região leste de Bafata de futebol de Salão. Tenho a faixa de campeão. E está emoldurada, protegida com vidro. Tenho lá na cozinha independente onde como. O que é que a gente lá faz? Ainda faz hoje oito dias, fui daqui com quatro amigos à Lourinhã, a casa de um camarada que esteve comigo na Guiné. Produz bens agrícolas e vinho e tudo: Epá venham cá. E vai lá a uma praia, não sei se já conhece a praia da areia branca, pelo menos já ouviu falar. Ao lado há uma praia selvagem que é Paimogo. Aquilo dá do bom e do melhor, navalheiras e polvos e moreias e ele pôs lá um banquete para a gente. E eu disse, disse aos outros que estavam: O [anonimizado] passou três meses no Mato sem vir ao quartel. Eu passei os 22 meses no quartel, eu nunca saí porque eu era escriturário. Mas não tinha nada que ir para a Guiné eu. Eu tinha que ser livre da tropa por amparo de mãe. Como o meu pai faleceu, a minha mãe foi-lhe detetada a angina do peito, sofria muito com aquilo e estava proibida de trabalhar. E eles levam-me. Tiro a especialidade. Vou para o quartel-general para Tomar, estava muito bem no Conselho administrativo rodeado de gente excecional. O Presidente do Concelho de Administração era um coronel muito amigo do meu chefe de secção de pintura aqui na Marinha, que era o senhor [anonimizado]. Eu estava ali, era jogar ping-pong e futebol salão. Até que me vêm buscar de Castelo Branco e já não pude voltar. Despedi-me da minha mãe por telefone. E como imagina, um homem fica completamente esfrangalhado. Lá vou eu com o Capote para Castelo Branco. Cheguei a Castelo Branco não era nada disso que me tinham dito. O embarque foi passado um mês. Podia ir para casa 15 dias. Mas eu devia ser livre por amparo de mãe, mas mesmo assim na tropa eu fui roubado, fui raptado, porque eu e mais nove, fomos para o quartel-general. Eu não era o primeiro, mas era o segundo e começo a ir à frente do quinto, do Sexto e do Sétimo, que estavam atrás de mim na classificação. E depois na Guiné é que eu percebi como é que se faziam as maroscas. Os primeiros sargentos eram os gajos que ganhavam mais dinheiro daquilo. Houve um gajo que eles mandaram embora, a troco sabe-se lá de quanto, e foram buscar-me a mim. E eu fui, estive lá. A única coisa que me resta é que nunca ninguém desconfiou de mim, nem na vida civil nem na vida militar, porque os relatórios secretos era eu que os fazia com o capitão. Os dois sozinhos num gabinete, como estamos os dois aqui. E o primeiro sargento nunca pôs o olho naquilo. Mas eu dizia-lhe assim: Oh General, quando eu cheguei a Castelo Branco e me apresentei você me perguntou, de onde é que tu és rapaz? Sou da Marinha Grande meu capitão. Opá, já só me faltava isto. Eu disse isso? Então não disse, não se lembra? Não, nós tínhamos muita intimidade, agora ele era General. Aliás, lá em Bafatá o nosso esquadrão tinha dentro do aquartelamento um ringue em cimento para jogar. Eu cheguei a jogar ténis com bolas da Dunlop, raquetes da Dunlop e redes da Dunlop. Deu-se o dia que eu jogava ping-pong e sabia a marca das coisas porque a maioria da rapaziada que lá estava não sabia nada daquilo e depois lá está a tal história, em terra de cego quem tem um olho é rei, brilha-se sempre, não é? Já se sabe, agora a raquete já sabe dar, embora o ténis de mesa seja muito diferente, mas há as noções. Eu gostava muito de andar pelas tabancas. Nunca provoquei ninguém, nunca chateei ninguém. Mas havia lá...eu fui mobilizado de Castelo Branco e 70% da unidade era gente das Beiras. Gente que o melhor que lhes aconteceu foi darem-lhes um colchão de luso-espuma na Guiné para dormir e terem garfo e faca e prato à frente para comer. Que aquilo era gente que vivia, coitados andavam lá nos campos, na pastorícia e pouco mais. E depois havia os outros os mais vivazes e, peço desculpa os mais xicos espertos, que eram os de Lisboa. Mas tenho grandes amigos. Havia lá um que estava de técnico de som na noite do 25 de Abril no Rádio Clube Português, o [anonimizado]. Esse gajo... adoramo-nos um ao outro. E morreu há pouco tempo um da Amadora. E é isto, você falou-me da tropa e os grandes amigos que eu tenho são da tropa. É que a gente vai lá, estamos ali dois anos a gravar aquilo no Coração. Como é óbvio, há lá outros que eu quase não os conheci. Eu tinha o meu núcleo de amigos, todos fazemos, é na escola, é em todo lado. Ai vínhamos cá abaixo, porque Bafatá já tinha três restaurantes, e vínhamos cá abaixo, quando tínhamos dinheiro para comer e tal. Eu ai ia tendo um problema, olhe foi um rapaz do Diário de Notícias que o teve, o [anonimizado], nunca mais me esqueço, já morreu. Era tipógrafo no Diário de Notícias. Quando a comida não agradava, a gente tinha que se manifestar. E eu sabia que tanto o praça, que tinha tanta verba para a alimentação diária como o General, o Governador General, era o Shultz na altura, depois já foi o Spinola. Tinham 24 escudos, o soldado tinha 24 escudos também. Porque é que os oficiais e sargentos têm messes e a gente ia.. eu aí meti a minha colherada por ser da Marinha, ser refilão, levava já um bocado da injeção da vida e há um sábado que nos servem arroz de caril com atum. A gente já não podia ver aquilo. Eu ainda estava na Secretaria. Eu normalmente ia sempre, tinha que fazer a ordem de serviço atrasada, mas guardavam-me a refeição. E chega lá um barulho e o capitão não estava. O que é que se passa? Epá, há um levantamento de rancho, vou já para lá. O Alferes, por acaso hoje é muito meu amigo, meu e dos outros, naquele dia, nunca mais me esqueço, que foi no dia 20 de maio de 1967, um sábado ao jantar. Ele puxa da walther: tau, tau, tau. A malta gritava: Não presta! – a bater tachos, porque pegada ao nosso quartel havia o comando do agrupamento onde estava um coronel. O alferes [anonimizado] (angolano, preto, professor e um gajo com uma classe, da área do MPLA, do Agostinho Neto), começa a levantar a voz e começam-lhe as terrinas a cair nas trombas e na farda, ele era um homem de arroz. Tudo para as casernas sem comer. No outro dia de manhã, eram sete da manhã, era domingo. Domingo para quem estava no quartel, porque para quem andava no Mato não havia domingos. Uma dornier a esta hora? Dornier são aqueles aviões pequenos com três gajos, o piloto e três gajos de gabardine, isto é uma vergonha, óculos escuros e chapéu, em Bafatá que às 7 da manhã já fazem uns 30 e tal graus de calor. Pimba, Pimba, interrogatórios, interrogatórios e interrogatórios. Como é que começou? Chegaram a esse [anonimizado] não sei como. Foi para o Paiol da Pólvora preso e no outro dia para Bissau. Esteve preso em Bissau, mas depois não conseguiram encontrar provas. Mas ficaram lá e foram os dois de Lisboa. Foi o [anonimizado], que trabalhava numa loja de modas em Alcântara, e o [anonimizado]. A senhora não se admire de eu me lembrar dos nomes deles todos. Estão todos aqui. Era todos os dias dois anos ali com os mesmos nomes. Já morreram ambos. Ficaram lá. Eu tenho um grande amigo, ali de Aveiro. Tenho lá dois, mas o [anonimizado] tem 80 anos e é professor doutor. Ele foi professor na universidade de Cambridge, de Lisboa, do Porto e de Aveiro e tem um gabinete de estudos da mineralogia da Ria de Aveiro. É ele que dá assistência, estuda a Ria de Aveiro. É evidente que está cheia de engenheiros. Agora eu assim: Então Lages, mas ainda trabalhas. Epá, trabalho. Mas ele ao pé de mim, parece meu irmão mais novo, com 80 anos. Um homem Atlético que fez sempre desporto, era bruto como um raio a jogar à bola, mas isso era elas por elas. E foi com esta gente que eu vivi, convivíamos muito. O futebol de salão então era a paixão que havia. E em Bafatá o Sporting Clube de Bafatá já tinha já tinha uma piscina, um cinema e um ringue. E o ringue quando chovia muito era outra piscina. Eram duas piscinas no Inverno, no tempo das chuvas, das monções. E nós fazíamos muito futebol de salão. Depois também joguei aqui nos veteranos aqui do Estrela do Mar, joguei aqui muita vez neste campo. Ainda joguei 35 anos à bola na Comeira. P: E diga-me uma coisa, teve alguma responsabilidade na autarquia ou na Junta de Freguesia? Sebastião Mota: Estive na autarquia. Fui deputado municipal. Mas depois era muito, eu não tinha tempo, queriam-me. Porque naturalmente sabe, quem está à frente de uma coisa, normalmente é empurrado para outra. Este gajo está-se a safar ali também é bom para acolá. E eu ainda estive em dois ou três mandatos na Assembleia Municipal. Depois, houve um certo divórcio. Sou militante do Partido, não renego nem nunca renegarei, mas não sou praticante. [Pede para desligar] Sebastião Mota: Eu nunca mais tinha falado com o homem, quando o Jerónimo de Sousa veio à Marinha Grande. Esperei que ele saísse, desse uns beijinhos. Então estás bom Jerónimo? Então como é que estás? E o Pina, tens visto o Pina? Eu já estive em casa dele lá em Benavila. Olha, amanhã tenho um comício em Avis e vou estar com o Pina. Então olha, dá-lhe um abraço. Algumas pessoas daqui da Marinha vieram logo a correr. Não sei se estavam com receio de alguma coisa que eu estava a contar ao Jerónimo Sousa, mas eu estava a única e exclusivamente a falar de coisas pessoais entre nós os dois, da nossa vida que passamos. Efemeramente, foi efemeramente. Mas não, mais nada. A partir daí, pronto, eu segui o meu trilho. Vou colaborando onde posso. Para já estou só com os reformados. Era para ir amanhã com reformados a Santarém, mas não posso. Tenho de estar com a minha mulher no hospital, a minha casa parece Alcoitão, queixa-se um para cada lado, é um manicómio. P: Então e nos reformados, quando é que começou a participar? Sebastião Mota: Olhe, comecei a participar como aluno de informática. Para aí há, sei lá, uns 7 ou 8 anos. Ai tenho que me matricular outra vez que eu já me esqueci de tudo. Pratico pouco. E depois fui abordado em minha casa, três elementos da direção da altura que entendiam que eu devia ir para Presidente da ASURPI e eu disse: Eh pá, não, Presidente da ASURPI não, porque tenho trabalho aqui em casa, porque eu para trabalhei em casa vinte e tal anos e ainda havia que fazer e eu não posso estar a abandonar isto para ir para a ASURPI, tem que ir para uma pessoa disponível. Eles foram lá duas vezes. Em relação ao meu nome desiludam-se. Poderia eventualmente, disse, ser Presidente da Assembleia Geral. Olha, em boa hora que eu fui para lá, mas pus como condição: Quem escolhe os meus secretários sou eu, não quero ninguém imposto. Sabe como é que isto funciona. Eu escolho os meus dois secretários. Um hoje ainda é meu Secretário e o outro é Presidente da Direção, porque eu disse: Não, tu sais daqui vais para Presidente da Direção. Tem feito um bom trabalho. Fizemos um bom trabalho na altura, porque aquilo havia lá uns certos desaguisados. As pessoas não se entendiam. Eu costumo dizer, somos duas vezes crianças. Às vezes tomamos atitudes menos corretas, mas eu cheguei a pacificar situações de aperto de mão. Não há nada escrito, não quero nada escrito em atas de assembleias, está aqui um aperto de mão entre cavalheiros e está assumido. E assumiu-se e resolveu-se felizmente, aquilo está muito mais desanuviado do que estava na altura que eu para lá entrei. E continua pronto e há amanhã uma reunião, a primeira reunião entre o Conselho Pedagógico, os alunos e os professores. Prevê-se para Dezembro arrancar, se a situação não descambar outra vez, vamos lá ver. Eu tenho muita confiança, como disse atrás, naquelas duas pessoas que convidei para lá e que aceitaram, que a direção posteriormente aceitou e que vão assumir. Para já são pessoas que têm conhecimento. Um, eu nem sabia e que me disse: Opá, eu dei sete anos aulas ali no ISDO. Oh Victor vê lá tu o que é que eu sei. Sei que tu és licenciado em recursos humanos e mais não sei. O Paulo é professor doutor também. Perante os próprios alunos, quer queiramos quer não, tem que haver o Dr., para haver um certo respeito. Não é que me faltassem ao respeito, eu é que acho que não tenho nem conhecimentos nem nada para estar a ocupar. Foi um cargo, um caso de emergência durante um ano. E depois fomos apanhados pela pandemia e não fizemos nada. Todos os projetos que tínhamos, tínhamos variadíssimos projetos em carteira para desenvolver, tivemos que fechar, Abrimos a sede dos reformados esta semana, a semana passada. Nós tínhamos ali uma componente social, porque temos muitas senhoras a colaborarem e todos os dias está um casal de serviço ao bar. Há dois bares, há um onde estão uns cadeirões e a televisão e tudo mais. E há outro que é para os homens, mais jogos de cartas, de dominó e onde h´ uma cozinhazinha onde se fazem umas bifanas, fazem-se uns pastéis, fazem-se umas petingas fritas, uns carapaus fritos.. Chegámos a detetar que quatro pessoas, a única refeição quente que comiam era ali, por volta das três da tarde. E então nós até decidimos cobrar um preço simbólico, porque víamos que as pessoas de facto eram necessitadas. Dois já morreram durante esta pandemia, agora ainda lá não fui desde que aquilo abriu. Tenho que lá ir amanhã, porque de facto há, como disse, à tarde a reunião da universidade e eu quero estar presente. E a minha vida resume-se a isto. P: Então mas o que é que o motivou a ter tanta participação? Tanta dedicação, tantas horas de trabalho voluntário, o que é que o motivou? Sebastião Mota : O que me motivou? Concretamente não sei dizer, acho que as atividades. Antes do 25 de Abril, dar o corpo, como se costuma dizer. Eu desempenhei tarefas no Império que ninguém agora dos mais novos imagina. Desde a coletividade lá em baixo, eu ainda fui da direção da Coletividade lá em baixo, na coletividade antiga. E havia um homem, um homem que era industrial, industrial não, tinha uma loja de móveis e também faziam alguns móveis, que me dizia, era o [anonimizado]: Oh Mota, e quando a gente tinha que descer com o cântaro, porque tinha uma piazinha para lavar os copos - era um cântaro de barro para amparar a água de lavar os cálices e os copos, esgoto não havia. As cervejas bebiam-se pela garrafa e as gasosas dos pirolitos. Vínhamos com um cântaro de barro grande, os dois, debruçados para vir despejar à casa de banho. Desde isso, foi tudo, agora está tudo.. está mais moderno por uns lados, está pior pelos outros. P: Mas só para terminar esta questão da motivação, era o desafio das atividades.... Sebastião Mota: Era, era e o amor e o amor. Sem o amor à causa, não se vai lá. E eu tinha muito amor ao Império. Aliás, eu tenho um defeito, por isso é que eu procuro não me ligar a mais coisas. Onde eu me ligo tenho que ir. Eu meti-me em coisas no Império quando era Presidente... Meteu-se-me uma vez na cabeça, lembra-se do conjunto Victor Gomes e os gatos negros? Fizeram um filme. Mas acabam de fazer um filme, o filme passa aqui a Marinha, passado um mês estavam a atuar no Império. Consegui o contato do agente deles. Foi um balúrdio que eles nos levaram, mas nós ganhámos muito dinheiro, tinha que ser portas abertas. Uma vez os Trovante, a seguir ao 25 de Abril, tivemos que montar uma bancada, uma bancada falsa, porque não conseguíamos suportar tanta gente. E pronto eram essas coisas. Eu tinha gosto também de inovar. E gostava de inovar, não sei se também se era das profissões. Porque eu tenho peças em casa, qualquer dia já me passou pela cabeça dar para o museu do vidro, mas ninguém me conhece e deixo lá estar para casa para os meus netos. Eu dava-me gozo o inovar, isso dava-me gozo. Então quando alguém me dizia: Mota, tens de fazer isto - para mim era uma ordem. Eu fazia. Nunca procurei aldrabar em nada e a opinião que as pessoas têm de mim, cada qual tem a sua, como é óbvio. Nós não podemos impor nada a nosso respeito. Mas penso que cumpri no tempo que cá andei, e cá ando, porque não estou para me ir embora já. Penso que cumpri bem com o meu dever. É evidente, há aquela história do sindicalismo que cria muito animosidade. Eu sou do tempo da madisca da carta aberta e disso tudo que esse Mário Soares e esse Gonelha fizeram antes de vir a UGT. E o meu nome chegou a ser alvitrado para representante dos Vidreiros na CGTP. Quando isto aconteceu, foi na altura que eu me afastei do sindicato. Caiu tudo por terra e olhe, cá vou vivendo. -
1981
Trabalhadores têxteis seguram tabuleiros de sardinhas oferecidas pelos pescadores de Peniche, em solidariedade com a greve dos lanifícios da Covilhã, em 1981
Greve do setor dos lanifícios na Covilhã, realizada durante 29 dias intercalados, ao longo de três meses do ano de 1981, em defesa do contrato coletivo de trabalho de 1975. -
3 de junho de 2021
José Marques Martins e João José Silva
P: O Sr. José Marques Martins nasceu aqui? José Marques Martins: Nasci em Tondela, ou melhor, em Canas de Santa Maria, freguesia de Canas de Santa Maria. P: Em que ano? José Marques Martins: Em Tondela, em Setembro de 1946. E inicialmente, por curiosidade, apesar de ter nascido oficialmente no dia 29, nasci no dia 11, que é uma data diferente. Tinha que ser. Eu só soube que tinha sido no dia 11 já tinha perto de 30 anos, de maneira que são coisas de histórias, mas que gosto de recordar sempre. Porque a minha mãe, que Deus a tenha, quando eu a convidei para ir para o aniversário: então mãe venho-te buscar ou venho... Que eu já estava casado, e ela: então, quando é que tu fazes anos? Oh mulher, então tu tiveste-me e não sabes? Pois, mas tu não nasceste no dia 29, o teu pai roubou-te na idade, porque antigamente era assim, portanto para dar uma ideia... P: Os seus pais faziam o quê? José Marques Martins: O meu pai tinha a profissão de sapateiro, mas foi um grande corredor de bicicleta, treinou e correu Porto-Lisboa. Aliás, se chegar à Folha de Tondela tem lá uma grande... e daí nasceu, talvez venha dos genes dele toda esta história da… e tenho ainda recordações, portanto, dos jornais em que o meu pai correu Porto-Lisboa, correu a Volta a Portugal, na altura do Américo, do Faísca, do Trindade. E então, claro, não era um corredor, mas tinha um grupo desportivo... P: Já tinha na família a propensão para o associativismo.... José Marques Martins: A minha mãe é doméstica. E depois mais tarde é que ele aprendeu a profissão de sapateiro e a agricultura. E foi isso. P: E estudou lá... José Marques Martins: Estudei em Tondela, no Colégio agora escola secundária, e depois saí de lá com 18-19 anos. E então fui apanhado, como todos os outros da mesma idade, para irmos até à guerra, que foram dois anos, cada um com as suas memórias, nem tanto agradáveis, mas pronto, não vamos falar nisso. E quando vim, tive que recomeçar a vida. Foi uma geração sacrificada, aquela geração da altura em que fomos para a guerra. Portanto, nós tínhamos uma forma de estar, porque vivíamos no campo, o nosso crescimento estava dominado por uma certa formatação. Nós, quando queríamos respostas, diziam-nos: porque sim, porque tinha que ser assim, assim é que era. O Colégio onde andei, católico, também tinha a rigidez religiosa de então, muito mais forte. E nós na agricultura fomos crescendo. Claro que depois apareceu ali uma… naquela altura dos Beatles. Depois éramos muita juventude, havia muita juventude, havia mais filhos, não havia televisão, como eu costumo dizer na brincadeira. E então havia muita juventude e por isso nós juntávamo-nos, fazíamos o tal grupinho de futebol, para ir tomar banho para o rio, para ir para os bailaricos, portanto, havia isso. E onde é que nós nos juntávamos? Nas tabernas, que era um sítio onde víamos um Bonanza e outros que tais. A taberna antiga foi sempre um local de encontro, ou lá dentro ou cá fora. Enquanto os mais velhos estavam lá dentro a beber uns canecos e a jogar à sueca, nós estávamos cá fora, porque não tínhamos autoridade de entrar, porque éramos miúdos, mas já queríamos ir e esse foi o nosso crescimento. Depois tudo mudou, quando aparece o 25 de Abril, mais tarde, portanto, abre-se. E, é claro, quem teve condições para progredir na formação, muito bem, quem não teve, ficou sempre naquele estado. Claro que depois houve aquela vontade em termos um futuro melhor e foi quando se abriu a possibilidade de os caminhos para a França, para a Suíça, para a Alemanha, em que as mulheres ficavam a tomar conta da agricultura. P: Mas o senhor José não emigrou? José Marques Martins: Era para ter emigrado, mas, felizmente ou não, como tive oportunidades de emprego logo de imediato… P: Qual é que foi a profissão que depois seguiu? José Marques Martins: Depois, quando vim, embora tivesse várias opções, mas porque já tinha família constituída, fui para os laboratórios da celulose, em Vila Velha de Ródão. Estive lá três anos e depois de lá é que vim para a Covilhã, para o Instituto de Emprego, antigamente era o Serviço Nacional de Emprego, e ingressei como técnico de emprego e toda a minha... até à minha aposentação. E depois, mais tarde, também me ordenei diácono, portanto, e aí houve razões para essa via, são histórias de vida. P: Não se casou? José Marques Martins: Casei pois, os diáconos podiam se casar. Casei e já estou viúvo. Tenho dois filhos e duas netas e, portanto, foi essa história de vida. Aqui caí e há histórias que a gente conta, quando venho aqui para a Covilhã, gostei de vir. Porquê? Porque embora estivesse em Castelo Branco, eu passei aqui de madrugada e há duas imagens que eu guardo da Covilhã, que jamais me esquecerei: que foi ver pelas seis horas da manhã, mais coisa menos coisa, ver os trabalhadores que eu não sabia para onde é que iam, todos em fila, lá iam com uma lancheira na mão. E então perguntei para a minha mulher, que ela andou aqui a estudar, eu não estive: onde é que esta malta vai? Vão trabalhar, vão agora para o turno. E eu achei curioso irem àquela hora todos, mas uma grande fila de gente. E uma outra imagem quando chego ao Souto Alto, quando vinha do Fundão e comecei a olhar para a Covilhã de madrugada e a vi toda Iluminada, que me deu uma semelhança com o Funchal, onde passei quando vim da Guiné, porque nós parámos no Funchal, porque trazíamos uma companhia de caçadores do Funchal, e deixámos lá alguns colegas falecidos. E a imagem que guardo do Funchal é quando eu acordo, pela coxia do barco, vejo também aquela montanha toda iluminada, que tem uma certa semelhança com a Covilhã. E eu disse na altura, talvez dois anos antes de vir para aqui trabalhar, para a mulher de então: olha, gostava de trabalhar aqui, mal eu estava já a pressupor que um dia vinha aqui parar. Cheguei e, como vim para aqui morar e esta foi a casa para onde vim cair e caí aqui, vim para aqui jogar, ainda me lembro, jogar às damas com um vizinho nosso que já faleceu, que era o Fernandes… E havia cá um contínuo que até tinha uma certa dificuldade no andar, o Sr. Pinto. E então a história do associativismo também começa um pouco aí, quando nós estávamos os dois muito bem a jogar e o senhor Pinto chega e diz assim: podem continuar a jogar, mas é bom que se façam sócios da casa, têm ali uma fichazinha. Então, deu-me essa ficha. Mas têm que pagar uma joia, e a joia era, salvo erro, 50 escudos, ou coisa do género, na altura pagava-se a joia. E pronto, e foi no ano de 1973-74, depois apanho o 25 de Abril. Eu ingresso no serviço de emprego em 73. Estou em Lisboa porque venho para fazer a formação em 74, Janeiro, e o 25 de Abril nasce a seguir, portanto, eu apanho toda essa zona, claro. Depois também gostei de saber o porquê daqui nas fábricas, porque eu vim trabalhar para uma casa e para eu poder ser capaz de poder fazer um serviço melhor, tinha que saber como é que os trabalhadores trabalhavam, porque quando lá estávamos a fazer uma entrevista e aparecia um tosador, aparecia um tecelão, aparecia uma metedeira de fios, aparecia não sei quê, tinha que saber o que é que isso significava para poder ter uma ideia, numa entrevista, do que tinha à frente. Por exemplo, havia cá umas cento e tal fábricas, ou mais um pouco, e eu fui visitá-las todas e fazer um estudo técnico das máquinas. Técnico, isto é: o que é que a metedeira de fios faz? Como é que ela faz? Que instrumentos é que ela utiliza? E depois via tudo isso durante o dia e à noite era aqui no Grupo Instrução e Recreio, no Campos Mello, no Ginásio, e as atividades eram aquelas que, para além do Futebol Sporting da Covilhã, como é evidente, mas eram aquelas que agregavam mais gente. Claro, depois apareceram, mais tarde, outras. Quando apareceu a Universidade, muito mais se abriu. E portanto, saber o porquê disto, talvez também pelo gosto de saber da História daqui, como é que nasce e, portanto, cheguei sempre à conclusão de que é o mesmo em todo o lado. Havia um objetivo comum daquela gente, juntavam-se. Havia um objetivo comum, havia também um cimento que era a solidariedade entre eles e toca de fazer uma coisa que fosse benéfica para os outros, para o bem comum, para eles próprios, e que desse formação àquela gentinha. Foi sempre essa a evolução associativa. Aquilo que, com quem eu conversava, com os mais velhos, era isso: epá, nós queríamos era, queríamos aprender, mas não sabíamos ler, queríamos saber mais, queríamos que os nossos filhos....E eu lembro-me que os meus pais diziam assim: eu não quero que o meu filho ande com uma enxada nas mãos. Possivelmente aqui os tecelões, eu quero que os meus filhos não saiam e não sejam... P: Queria fazer ao senhor José mais duas questões para estatística. Na realidade, estou a perguntar a toda a gente, se é professa alguma religião. José Marques Martins: Sou católico. P: É católico, claro, e se está filiado em algum partido político ou já esteve. José Marques Martins: No Partido Socialista. P: E já agora também ao senhor João, ficamos já com estas duas questões: é religioso, professa alguma região? João José Silva: Católico. P: Também é católico e é filiado em algum partido político ? João José Silva: Também no PS. P: Então vamos começar pelo início. Nasceu aqui na Covilhã? João José Silva : Sim, nasci, criei, fui criado, fui batizado, fui criado, casei e a minha vida foi sempre praticamente na Covilhã. P: Nasceu em que ano? João José Silva: Em 1947, 12 de janeiro de 1947, e fiz sempre aqui a minha vida. Aliás, sou filho da terra. E sou filho dos meus pais. O meu pai era técnico de tecelagem, afinador de teares, e a minha mãe metedeira de fios, ainda há bocado o Marques Martins estava a dizer que não sabia o que era uma metedeira de fios… a minha mãe era realmente metedeira de fios. P: E o senhor João, também foi trabalhar para a indústria têxtil? João José Silva: Eu trabalhei relativamente pouco tempo, porque era assim, era difícil na altura. Os meus pais… éramos três irmãos, duas irmãs, comigo três, e era muito complicado, porque na altura os ordenados eram relativamente baixos e viemos morar aqui para o bairro do Rodrigo, onde, na altura, a renda já era um pouco cara em relação àquilo que ganhava o casal. E o meu pai teve que me chamar a atenção e dizer: vocês têm que trabalhar, têm que ajudar a casa. Eu fui trabalhar, comecei a trabalhar com 12 anos. O primeiro emprego foi precisamente, não foi na indústria têxtil, acabei por ir para um gabinete de advogados onde estive, fiz alguma formação e depois apareceu uma outra situação, mudei e acabei depois por ir para a indústria, porque a firma para onde eu fui a seguir encerrou por motivos que desconheço. Então eu, para não estar desempregado, sentia-me um inútil, no termo da palavra. Eu queria realmente era a minha independência, ter algum para poder, ao longo da semana, planear o que eu poderia fazer e então foi quando eu estive, pouco tempo, na indústria, fui cardador, com 18-19 anos. Depois surgiu a hipótese de uma outra situação: convidaram-me para ir para o Sindicato da Indústria de Lanifícios do Distrito de Castelo Branco, onde estive desde 1964 a 1968. Entretanto, fui à inspeção, fiquei aprovado e toca de ir para Angola. Não sei o que lá fui fazer, para Angola, fui forçado, fui obrigado. Estive lá três anos em África. Regressei de África e, claro, a minha preocupação foi arranjar alguém com quem casar. Casei e também já estou viúvo. E pronto, tem sido... ainda andei na escola Campos Mello, mas não concluí, porque era difícil na altura. A gente chegava do emprego às sete da tarde, das nove às sete da tarde. E às 7:30 tínhamos que entrar na escola, na escola Industrial e comercial Campos Mello. P: Qual é que era o trabalho que tinha na altura? João José Silva: Na altura estava ligado ao Sindicato dos Lanifícios como funcionário. Entretanto, pronto, não concluí. Reconheço que a própria juventude, os namoriscos... Até acredito que podia ter, podia ter conseguido outras coisas, mas não, porque era muito difícil. Entretanto, depois de ter vindo de África tive um pequeno comércio, uma papelariazinha, que abri na altura. Estive a explorar aquilo durante dois anos, foi quando surgiu a hipótese de ir para o Hospital Distrital da Covilhã, onde estive 40 anos a trabalhar como auxiliar de ação médica. Gostei imenso daquilo que fiz, gostava imenso, adorava a profissão e a prova está que nunca saí do mesmo serviço, não, tive o mesmo trabalho sempre, todo esse tempo. Por incrível que pareça, e não está aqui que não nos ouve, fui apanhar lá o Sr. José Marques Martins com problema de rins. José Marques Martins: Mal eu sabia que tinhas passado pela minha mão para ir para o hospital, eu sabia que ele era bom… João José Silva: Sempre dedicado à cidade e o José Marques Martins é uma pessoa que eu conheci de perto, desde 1973. Agora, porque somos vizinhos… José Marques Martins: Eu andei com as filhas dele ao colo. João José Silva: Éramos uma família aqui, éramos uma família, toda a gente se dava bem, toda a gente se comunicava, era importante. E o Grupo Rodrigo, quer se queira quer não, ajudou e continua a ajudar muito nessa parte. Não tanto como nessa altura, porque era aqui que a gente se concentrava, era aqui que a gente conversava, era aqui que a gente bebia o nosso café e jogámos ao 21, para saber quem é que pagava os cafés, jogava-se as damas, como o Martins dizia, o snooker, o bilhar livre, as cartas, o dominó... José Marques Martins: Depois do trabalho, onde é que nós íamos conversar? Tínhamos o jornal e líamos, ouvíamos as histórias e depois começámos a.... João José Silva: Criar amizades… José Marques Martins: E depois há sempre os mais velhos, aqueles que estão nos órgãos sociais. Quando chegava a altura da revitalização de novos órgãos, iam apontando este e aquele e o outro não sei quantos. Bom, eu falo por mim e pela minha experiência, fomos indo e olha, estive cá desde 1975 até há dois anos atrás. Foi sempre, só tive um interregno de quatro anos. Portanto, depois passei para a Assembleia, que para lá me queriam chutar, mas criámos coisas interessantes e a beleza disto, não sei se concordarás comigo, com certeza de que sim, a beleza disto é que nós, mesmo não tendo a mesma… tendo opiniões diversas, conseguimo-nos juntar para pormos a coisa a funcionar, porque íamos à procura, com a nossa diversidade, de elencarmos um programa que fosse o melhor possível. E deixávamos as diferenças para irmos buscar aquilo que mais nos unia. Hoje, já não vejo, infelizmente, não acho que já não é tanto assim. João José Silva: E, acima de tudo, estavam os interesses da coletividade e não os interesses.... Exatamente como estar ligado à política. Eu, aliás, apanhei o José Manuel Martins na política, mas era muito antes de mim, o estar na política não queria dizer que a gente que se aproveitasse de alguma coisa como interesse pessoal, nós viemos para aqui para defender os interesses da coletividade. Era extremamente importante. José Marques Martins: Era engraçado, era belo, primeiro para nós. Vamos lá ver, o associativismo funcionava, não, funciona, porque nós trazíamos a família connosco, não fisicamente, mas vinham connosco, no coração vinha connosco, e nós queríamos que esta casa, que é a casa que vínhamos também trabalhar, que as famílias se sentissem aqui bem e por isso, quando tudo o que nós fazíamos era sempre com o objetivo… tanta vez que nós dizíamos aqui: as nossas esposas são aquelas que nos aguentam para estarmos aqui nos órgãos sociais. João José Silva: Aliás, a minha até realmente colaborou imenso, e as filhas, no rancho folclórico, nas marchas populares… José Marques Martins: Na costura, elas faziam tudo e a tua filha, ela também, as danças rítmicas, os miúdos… Quer dizer, elas também cresceram com esse gosto porque viam que os pais tinham gosto e se eles... às vezes eu perguntava: vocês gostam? Vocês andam cá… E, portanto, este gosto passava-se de pais para filhos. Porque era uma coisa linda e tudo o que era feito não era com o intuito de “eu fiz”, não, “nós fizemos”. Nós fizemos, e isso para nós foi... P: Então e essa propensão que vocês passaram para os vossos filhos, terão herdado dos vossos pais, os vossos pais tinham participação associativa? João José Silva: Eu no que diz respeito ao meu pai, sim. Foi sempre um....e era trabalhador na indústria de lanifícios, quer dizer, aliás, o movimento operário na Covilhã nessa altura era fortíssimo, como deve calcular. E ele já… ele entrava aqui e eu recordo até uma passagem extremamente importante, importante e desagradável ao mesmo tempo. Aqui na altura só se conseguia, a direção, na altura, só autorizava a admissão de associados que tivessem mais de 17 anos. E o meu pai vinha, eu vinha com o meu pai, mas só podia estar com ele, porque se ele não viesse, não me deixavam entrar e ele ainda arranjou uma chatice porque soube na altura que houve associados que admitiram com menos idade que eu, e só aos 17 anos é que me consegui fazer sócio desta coletividade. José Marques Martins: Aliás, era aquilo que diziam os estatutos. No meu caso, quer dizer, para além daquilo que o meu pai teve, aqueles genes, eu já via a coisa de outra maneira. Depende também tudo daquilo que nós temos na nossa alma, que vai cá dentro, porque repare: o meu pai também tocava numa banda, numa música, numa filarmónica, na Filarmónica de Tondela, e eu aprendi música também, por aqui, para tocar alguma coisa num órgão, porque me ajudava também nas celebrações. Mas gostei sempre do teatro, porque mesmo nos meus tempos de colégio eu fiz muito teatro, que é o teatro da escola. Fora disto, na minha aldeia, na minha zona, nós criávamos grupos, sem querer, que nem sequer chamávamos associação. Era um grupo em que nós nos defendíamos, em que nós sabíamos as coisas uns dos outros, em que nós nos ajudávamos uns aos outros e aprendemos a ver isso na agricultura, quando este grupo ia ajudar aquele na sacha e nas vindimas e aquele ia no outro. E isso, para nós, quer dizer, para nós era bom. Eu gostava porque também andei nisso, íamos: agora vamos ajudar aquele, depois daquele, vamos ajudar aquele e portanto, quando chegávamos ao fim, à noite, para nós era uma alegria vermos que todos estavam felizes, porque alguém ajudou outro e sabia que aquilo funcionava. Se me perguntassem o que é que isso era, eu hoje reconheço que aí já eram… havia um objetivo comum, havia o bem comum, isso era associação, era uma associação. Só que não era… aqui, quando eu chego à Covilhã, a coisa já era diferente, porque existe uma indústria, existe aquilo que nós também lá sentimos, os industriais daqui começaram a dizer assim: alto, precisamos que os nossos filhos… precisam de ter algo que os ensine, que os forme. Porque se nós não dermos condições aos nossos filhos para se educarem, para se formarem, não vale a pena continuar. Essa foi uma das razões que o associativismo nasceu aqui e lá também, pelo desporto, que é sempre uma escola de educação, em que havia também a parte da música, as letras e quando não havia escolas, era ali que nós íamos aprender. P: Fale-me mais nessa ideia, é muito interessante essa ideia de quase comunitarismo que existe na agricultura. José Marques Martins: Sim, muito importante, muito importante. Porque eu sinto isso de nós nos juntarmos em grupos e virmos para as grandes vindimas daquela zona do Dão. Nós íamos em grupos e havia sempre o líder do canto. O canto era aquilo que fazia a agremiação de todos. As desfolhadas, íamos agora a desfolhada, por hipótese, e íamos depois à desfolhada do não sei quantos e então nós todas as noites nos juntávamos e o milho aparecia nas eiras. E então como é que nós criávamos essa... isso é que que eu trouxe e que me ajudou. O que é que nos ajudava? Nós não íamos para as desfolhadas e estávamos ali feitos monos a desfolhar. Havia uma rivalidade como existe nas associações. A rivalidade de rapaz com a rapariga: eu liderava a parte do canto dos rapazes e picava as raparigas, onde havia uma tal Fernanda, que também picava os rapazes e isso criava... e quando nós damos por nós, já estava o milho, já estava tudo desfolhado, já estavam espigas todas no sitio como devia ser e já estava lá uma mãe, ou uma avozinha, a preparar o bacalhau com cebola e com tomates e com pão para nós comermos tudo no final da desfolhada. Isso era festa, fazíamos essa festa. E, portanto, isso cresceu connosco e ficou cá. Depois, é claro, aparecerem condições numa zona, como aqui apareceu, condições para trazer à tona aquilo que nós fazíamos, vamos em frente. Ou paramos ou deixamos que isso cristalize… Ou então fazemos aqui. Eu recordo que uma das primeiras coisas que fiz, que ajudei a fazer, na parte do teatro… fizemos aqui o Grupo Girtec, inclusivamente estive em Évora nessa altura a tirar o curso de animação cultural no teatro Garcia de Rezende, em 76, portanto, que me permitiu algumas luzes. Mas havia essa parte, digamos agrícola, muito interessante em que as pessoas se ajudavam umas às outras… P: E em meio urbano, também havia essa entreajuda informal? José Marques Martins: Diferente das aldeias. Aliás, aqui em meio urbano era assim: as pessoas trabalhavam e praticamente onde se reuniam era no final do trabalho ou nas tascas, nas tabernas, que era a Viene, era quase porta sim, porta sim, e depois à noite vinham às coletividades. A coletividade abria às 6:30 da tarde, todos os dias. E quando eu falo aqui num senhor que era, na altura chamavam-se contínuos, agora são empregados ou colaboradores, falámos aqui no senhor [...], era um homem que... de muita postura, de muita responsabilidade, gostava imenso da coletividade ao ponto de sofrer na carne dessa forte união. O que ele sentia pela coletividade e ao pôr-se ao lado dos dirigentes, na altura, era complicado... Ele foi preso na altura, vieram-no buscar ao Grupo de Rodrigo depois do seu trabalho, a polícia política veio buscá-lo aqui. Porque ele era forte colaborador com a direção, o grupo que esteve na altura... Quando se criou o grupo estávamos em ditadura e todos nós sabemos que as ditaduras viviam um bocadinho às avessas com o associativismo, porque o associativismo é democrático. Juntam-se várias ideias, juntam-se várias pessoas com um objetivo comum, mas as ideias fluem… Não há ali um indivíduo que diga: eu é que eu é que comando, é que não sei quê… Não, todos contribuem. Portanto, a vida associativa é uma vida que se transporta para a cultura, quer dizer, para os objetivos de luta. E é, tal como aqui, as coletividades, qual é que foi a luta aqui? Era o ensino, era a formação e ensino, educação e, neste caso, a lutuosa, como nós também sabemos. Havia razões. E o que era a lutuosa? Coitadas das pessoas… Quando morria alguém não tinham dinheiro, não tinham, sei lá, para mandar tocar um cego, quanto mais, era um objetivo definido, havia uma luta. E já que o governo não conseguia fazer chegar até ao necessitado essa resposta, eram as pessoas que se juntavam numa certa zona para criar essa resposta. E aí, claro, quem tem o poder, não gosta que alguém vá fazer-lhe frente com isso. Isso é verdade e, portanto, o associativismo era isso e daí que veio para aqui. E na altura olhavam-nos com uma certa… João José Silva: Na altura, quem não era deles, era comunista, tudo era comunista, desde que não fosse… Mas não porque aqui o GIR teve nos seus órgãos sociais, um ministro, na altura. José Marques Martins: Que foi presidente da Câmara e que oficializou a primeira escola primária aqui no bairro, que foi aqui na coletividade. O que era isso? Era a possibilidade de termos professores oficiais, porque até aí a escola era aqui do grupo, mas não era oficial, só que havia pessoas que ajudaram a dar a escola aos filhos dos funcionários... João José Silva: Depois foi oficializada… P: Estudou aqui, o João? João José Silva: Eu estudei, não aqui no GIR, não. Eu estudei na escola aqui do bairro do Rodrigo, e esse doutor Almeida foi eu quem travou o encerramento da coletividade. Porque era assim, havia um ajuntamento: o que eles estão a fazer na coletividade? Vamos lá ver o que é que se passa? Porque é que vocês estão a reunir? Porque é que vocês têm que estar a reunir? E aí havia desconfianças… José Marques Martins: Isto foi entre 1921 e 28. E em 1928 é quando a escola é oficializada e, sendo oficializada, já não era fechada de ânimo leve. A partir do momento em se oficializa uma escola, numa instituição, espera lá, isto é o Estado que dá luz verde, se dá luz verde… Porque até aí, é porque houve aí alguém que mexeu os cordelinhos, diga-se em abono da verdade. Agora que o princípio quando, faço ideia, quando isto começou nas tabernas e começaram a querer alugar uma casa aqui e arranjar e não sei quê, é que a PIDE e sei lá que mais o quê andaram de olho acima. O que é que estes indivíduos andam aqui a fazer? O que é que não sei quê, portanto tudo isso era... João José Silva: Até porque a escola oficial terminou aqui em 1950. Foi quando foi inaugurada a escola do Bairro do Rodrigo, em 1951. Ela tem, precisamente… é quase da mesma altura que o bairro em si. Eu, quando vim para o bairro do Rodrigo, a escola tinha sido inaugurada há um mês ou coisa assim. Foi logo a seguir, ou foi antes… Eu vim a seguir, exatamente. Pronto e depois entrei na escola aqui, com seis anos. Seis para sete. P: E nesse período antes do 25 de Abril, quais é que eram as principais atividades em que vocês participaram? José Marques Martins: Eu lembro-me que participei. Eram as damas, eram os jogos de mesa, jogos de… João José Silva: Snooker, bilhar... José Marques Martins: Mesa, era jogos de mesa, porque desporto no exterior não havia. Futebol de salão, de 11, não havia. Isso apareceu mais tarde, na abertura, depois… foi o 25 de abril. João José Silva: Aliás, antes do 25 de Abril, vai me desculpar, dentro desta coletividade foi formada uma outra, que neste momento é o CCD do Rodrigo. O CCD do Rodrigo saiu daqui, formou-se aqui. Porquê? Porque o CCDS, na altura, era um centro de recreios populares ligados à FNAT. E como eles não tinham instalações próprias, tiveram que pedir aqui a cedência de salas ao GIR do Rodrigo, onde eles fizeram os seus estatutos e organizaram-se como coletividade com o auxílio precisamente da FNAT. E aí, o que é que acontecia? Como havia os campeonatos regionais de futebol, que eram patrocinados pela FNAT, só conseguiam entrar se eles tivessem um local, uma sede, um sítio onde pudessem exercer a sua atividade. E essa associação, que funciona aqui, é nossa vizinha, e que está ligada hoje ao INATEL (não sei se já não é INATEL, é fundação), continua viva. E essa associação criou realmente um certo dinamismo a nível de desporto, porque elas estavam direcionadas para o desporto, nós aqui era mais a cultura, o teatro... José Marques Martins: Já fizemos os primeiros jogos florais da Covilhã, fizemos um jornal também, fizemos um boletim. Hoje, olhando um pouco para trás, João, o associativismo tinha uma grande força, porque não havia mais nada, não havia outras respostas. As pessoas procuravam respostas. Onde é que vinham procurá-las? Era aqui. Estar aqui onde havia o jornal, onde havia a televisão, onde havia um rádio. João José Silva: Os banhos. Vinham pessoas com a sua toalhinha, era aqui, na parte de baixo. José Marques Martins: Havia o sapateiro, as máquinas de barbear… Hoje o que é que nós temos? Temos a televisão que nos traz a informação e a contrainformação. E hoje o associativismo é uma forma de estar, portanto, há sempre um objetivo comum. Agora tem de ser recriado com novas formas, já não é como aquela altura. Quando, há um ano atrás, dizia: vamos, temos que fazer isto, ok? Nós vamos fazer, mas temos que fazer de uma outra forma que capte, digamos, que as camadas novas venham. Mas já não é da mesma forma que vinham antigamente. Antigamente vinham à procura de uma resposta, porque não tinham outras. Hoje, sabemos nós, que temos que estar em paralelo com outras respostas e hoje o associativismo vive de outra maneira. João José Silva: Eu digo mais, e com muita pena, o facto de haver grande alteração em tudo isto, porque as coletividades têm tendência a fechar-se. Com muita pena que eu digo isto. Ou terá que haver aí, o próprio governo… José Marques Martins: Eu, as coletividades, eu tenho uma outra... Isto agora, por exemplo, as coletividades têm que tomar juízo. Vamos lá ver, antigamente, lembro-me, lembro-me quando tínhamos água da poça, que era a da poça. Nós tínhamos as nossas hortas e o meu pai dizia-me assim: pega no sacho que hoje a água é nossa. Então eu vinha pelo caminho abaixo a calcar as loras dos bichos que era para a água não fugir, que era para a água chegar mais rápido à minha horta e para evitar que ela fosse para a horta do vizinho. Porque a água era pouca, tínhamos que a distribuir e a água era pouca e naquele dia era para nós, então andávamos a vigiar se alguém... Ora bem, nós tínhamos que ser transparentes, mesmo se quiser, tem que ser transparente. Ou os subsídios que possam vir têm que ser com transparência, saber para que é que servem, para onde vão, como é que são utilizados, porque senão estamos sempre naquela dúvida. Fulano que está mais perto da fogueira, aquece-se mais, não sei quê. Isto foi uma moda que andou e é preciso que pare. Depois também temos uma outra coisa que se torna importante: nós sabemos que nós temos instrumentos e que a outra coletividade não. Tem que haver algo que consiga saber o que é que aquela coletividade precisa e aquela e aquela, e, em vez de andarmos todos a comprar coisinhas diferentes, os instrumentos de uma têm que servir para os instrumentos da outra. É assim que eu entendo. É assim que entendo, porque senão corremos o risco de termos os campos de futebol cheios de tojo e de mato e nas aldeias e corremos o risco de termos grandes instalações em coletividades e termos poucos recursos humanos lá dentro. Eu recordo-me de uma entrevista que uma vez dei, quando esta casa teve a estrutura que tem, é uma beleza, sem dúvida, uma beleza, e paredes novas. Sem dúvida. Eu recordo-me disso. Mais importante do que numa casa aquilo que conta são os recursos humanos, porque se a casa não tiver recursos humanos, fecha, de hoje para manhã fecha, então servirá para outra coisa. Os recursos humanos é a coisa mais importante e trabalhar com recursos humanos dói e é preciso ter capacidade para gerir recursos humanos. Mas, sabendo gerir, nós conseguimos chegar lá desde que as coisas sejam postas na mesa, com toda a clareza. A Câmara subsidia e faz o seu papel. Mas não é, já não é, não pode ser aquele.... Vá lá que agora parece que há uma lei, é uma lei que conseguiram criar, um regulamento, que é importante. Mas o Parlamento… tem que ser feito desta… João José Silva: A atribuição dos subsídios não é dada assim, como era antigamente. Tem que se apresentar um plano de atividades, mas que não seja um plano de intenções: vamos fazer… Não, tem que dizer no papel porque é que vão fazer isto. José Marques Martins: Nós temos aqui um evento associativo que é tremendo e que não colhe frutos, não sei porquê: as marchas populares. Juntam-se várias entidades, várias associações, que gostam, que estão interessadas. Junta-se a Câmara. Há um bolo, há uma água da poça para todos. E então cada um, perante um mote próprio, sei lá, aquilo pode-se de hoje para amanhã, criar uma nova forma. Mas vamos, faz-se festa e só não vê quem não quer ver, não é quem não vê, que o que é que uma marcha faz, ao sair de lá de cima do campo das festas e vir até ao Pelourinho e ver aquele mar de gente a ver, que vem ver. Se vêm ver é porque gostam. E a Câmara sente-se ufana, mas são as coletividades, são as associações que estão a fazer todas um trabalho, cada um. E as pessoas vêm, as pessoas aderem. Porque há um objetivo, de fazer festa. Agora, aquilo que o João dizia é verdade. Se não houver um impulso que dê dinâmica a estas casas, morrem. E morrem porquê? Porque pode haver a cristalização dos órgãos. Isto chega a um ponto que também aborrece. O João esteve aqui muitos anos na direção. Eu tive mais tempo, eu cheguei a um ponto... muitos anos na casa que sentia-me preso, e agora? Não há gente nova e nós, não é que não gostemos da casa, mas o gosto que nós temos por esta casa é, digamos, é ultrapassado por aquilo que nós queríamos, de que outros viessem com novas ideias, como uma forma de estar... E não vêm, não há. E entra-se numa direção com nove elementos e é só quatro ou cinco que às vezes aparecem, sabe Deus com que sacrifício. Porquê? Porque eles próprios também, quando se juntam aqui e… eu não sei o que é que... O João nisso teve muito mais tempo na parte da direção do que eu, mas via, também sei ver. Chegava a um ponto que também se disse: enfim, mas vou trabalhar para quê? Havia a própria pandemia, veio estragar ainda mais. Nós tínhamos aqui a beleza dos Santos populares, aqui neste espaço que depois nós vamos ver, onde fazíamos as sardinhadas, fazíamos essa festa, e isso dava-nos ânimo. Vinha muita gente para a coletividade, sei lá, mais tarde, então vinha, só que veio a pandemia, retirou-nos gente. Agora estamos novamente a começar e, claro, há um elemento que sempre frutificou no associativismo, que é a taberna. A taberna sempre cá ficou. Em todas. Uma associação que não tenha um bar não progride. João José Silva: Em parte, um bar é na realidade... José Marques Martins: Um bar é que chama... é o café, a cerveja, as bebidas... João José Silva: Porque as bebidas são mais baratas... José Marques Martins: Vem desde os primórdios. João José Silva : Sim, já vem. José Marques Martins: Então, o bar tem que lá funcionar, se houver uma associação sem um bar… Nem que lá haja uma máquina de café. João José Silva: E quando refiro aqui, com pena, que digo que as coletividades têm tempos difíceis é que reparo, e aqui o José Marques é da minha opinião, é que não há pessoas a quererem colaborar. Hoje é… quanto é que é? Não há dirigentes E aí a Confederação, e muito bem, tem trabalhado no sentido de que, aliás já há o estatuto de dirigente associativo… Mas porque é que o dirigente associativo, que ocupa um pouco da sua vida, que quer queira quer não, nós andamos aqui uma vida, nós prejudicamos até inclusivamente o ambiente familiar, porque não estamos lá, porque aqui era a nossa segunda casa. Porque é que não há-de haver um incentivo para que as coletividades se mantenham abertas? José Marques Martins: Os governos pecaram. Eu não estou a dizer para nos darem uma reforma, nem nada disso. João José Silva: Porque hoje nota-se as dificuldades. Por exemplo, a Covilhã é rica em associações, como a doutora sabe. Neste momento, posso-lhe dizer que amanhã há Assembleia geral do Grupo, ato Eleitoral para os órgãos sociais, novos órgãos sociais. Posso-lhe dizer que amanhã há n associações que estão precisamente nessa situação: umas não têm direção, têm comissões administrativas, outras têm uma direção, mas à última da hora um não quer, desiste. É essa a parte, e o que é que a quantidade pode oferecer neste momento? Eu muita vez comentava para o Zé Marques, que é a pessoa com quem a gente, com quem a gente lida e eu lido muito bem, porque é um homem com muita cultura, fez coisas belíssimas aqui no Grupo Rodrigo, o Grupo do Rodrigo muito lhe esta agradecido, é verdade. O que é que o GIR pode oferecer às pessoas para virem à coletividade? Televisão... Aliás, a Confederação pôs aqui um posto público [de internet]. Nós tivemos um posto público aqui, na altura, com computadores, oferta pela Confederação, e também a parte dos instrumentos musicais. José Marques Martins: Tu estás a tocar num ponto importantíssimo, que é verdade. O dirigente associativo devia ser considerado, não devia ser só considerado na altura de eleições, nem só para grandes discursos escritos ou orais, através da rádio. Mas devia ter uma dignificação diferente. Nem que para isso tivesse que ter, e eu comungo disso, ainda há pouco tempo tirei um curso de evacuação, por causa de defesa de incêndios. Porquê? Porque estou a presidir a um lar e é uma unidade de idosos e de crianças e, portanto, preciso também de saber um pouco disso. Isso significa o quê? Que o dirigente… e sou voluntário, portanto, vamos cair no voluntariado. Ser voluntário significa algo que nós darmos de mão beijada sem ser à espera de usufrutos para o próprio, é para o bem comum. Isso é ser voluntário. Voluntário é quando damos alguma coisa para o bem comum. Agora, o problema é quando, e muitos pensam hoje que se vem para estas casas, para se atingir, digamos, uma elevação, portanto, um posto. Não pode ser. Se vêm com isso, não vale a pena virem. E, por isso, o dirigente associativo tem que ser alguém que tenha que ser dignificado. Como? Há muita forma. Não é com dinheiro, não é com salários, não é nada disso. Mas há dignidade e há posturas e o dirigente associativo teve muito… e há muito que é louvado pelas autarquias. As autarquias devem louvar os dirigentes associativos. E devem louvar por várias maneiras e posso-lhes dizer como é que podem e quais são as razões, por que é que os levam a isso. O que é que nós podemos oferecer? É a pergunta que se coloca: o que é que vocês lá têm para eu ir lá poder ir. Essa é a pergunta que fazem lá fora: o que é que vocês lá têm? Então temos que criar aqui. As autarquias também têm que entender que nós temos instalações onde podemos dar possibilidade de... dar formação, dar informação, fazer formação, fazer apresentações de pinturas, tanta coisa que se pode... se cá vierem hoje 15 indivíduos ver uma sessão de pintura ou uma sessão de leitura, vêm só cá 15 hoje, mas na próxima já vêm sessenta, porque são os 15 vezes 4, ou seja, se a coisa for bem clara, se houver aqui algo que lhes possa oferecer, caramba, custa assim tanto oferecer umas bolachas e um bolo e um porto para as pessoas aparecerem? Quer dizer, não é isso que lhes vai encher o estômago, mas é uma forma de acolher, uma forma de acolhimento e fazer uma leitura, por exemplo, ou mandar uma informação com as vacinas, com tanta coisa que nós temos, tantas dependências que são gratuitas para as autarquias. João José Silva: O GIR sempre soube receber bem. José Marques Martins: E onde os órgãos de certeza que se disponibilizariam, de acordo da sua especialidades, a ajudar, mas não, prefere-se pagar. Não estou a dizer que não se pague, tudo bem, mas existem possibilidades. Era uma forma de as associações estarem a servir o bem comum. Se as próprias autarquias não nos dão... Se só estão à espera que a gente lá chegue com o boné na mão para pedir o subsídio. Eu não gosto muito disso. 00:20:18 Joana Dias Pereira Então vamos voltar ao passado, pode ser? Embora esta conversa sobre o futuro seja também muito importante. Mas há bocado estava a dizer que também tinha estado antes do 25 de Abril no sindicato. João José Silva: De 1964 a 68. P: Que responsabilidades é que tinha? João José Silva: Eu era um escriturário na altura em que andava assim: eu batia à máquina. 10000 associados que tinha o sindicato, porque eram umas folhas que a gente punha o número daquele operário, a empresa… Por exemplo, posso-lhe dizer: a Nova Penteação, na altura a Penteadora, a Ernesto Cruz, o Alçado e Filho, a Lano Fabril, eram empresas com muitos trabalhadores e eu, a minha função era trabalhar nessas folhas, escrevia os nomes um por um. Joana Dias Pereira: E depois também esteve no sindicalismo, depois do 25 de abril? João José Silva: Estive. Fui dirigente sindical em 80 e picos, fui dirigente sindical, estava na área da saúde. E na altura o Mota, que era o responsável daqui do distrito de Castelo Branco, convidou-me e estive ainda… fiz o mandato de dois anos assim. Estive ainda ... P: Mas eram realidades diferentes, o sindicalismo antes e depois. João José Silva: Muito diferente. Também a verdade é que às vezes os horários... eu era assim, eu quando aceitei ser dirigente sindical pus essa logo ao Mota: eu não vou tirar tempo nenhum ao trabalho. Eu vou ser dirigente, sim senhora, com muito gosto, mas só vou às vossas reuniões, aos vossos congressos quando tiver folgas ou disponibilidade. Não quero meter nenhum documento a dizer que eu tinha direito a determinadas horas e determinados dias. Nunca, nunca, é assim, como diz aqui o Zé Marques, nunca me aproveitei, nunca precisei de nada para me promover, porque tinha a vida feita. Eu nunca, mesmo a nível do Grupo do Rodrigo, mesmo a nível de política, e o Zé Marques sabe perfeitamente, tivemos ali, colaborámos bastante, andámos ali… P: E estiveram noutras associações para além do GIR? José Marques Martins: Dirigente associativo, nunca fui, nunca fui. No serviço do meu do Instituto estive, mas isso...Agora, fora disso, sou sócio, mas não como órgão, lá dentro não… João José Silva: Eu faço parte de três. José Marques Martins: Trabalhei alguns anos na Liga Portuguesa contra o Cancro, mais tempo. Depois deixei, na altura em que a minha mulher adoeceu, e passei para outra área, para esta área do diaconado. Mas outras não, porque quer dizer, ou se trabalha numa... isto é como os presidentes administrativos das empresas, ou é um ou é outro, e depois andam a buscar daqui e dali. Havia lá… ainda bem que havia outros. Hoje, possivelmente, se nós se nos convidassem para ir para outras instituições… Mas também já não temos... Eu, pelo menos... P: O João disse-me que estava também na Liga... João José Silva: Estou, faço parte, faço voluntariado na Liga Portuguesa contra o Cancro, com muito gosto. E agora, sem ser…, fui convidado para fazer parte da Associação de Diabetes da Serra da Estrela. Estou a colaborar, aliás, sempre gostei de servir a comunidade, faço isso com um amor e carinho… E aí é, também um pouco da minha da minha vida. O Zé Marques teve uma vida muito mais ocupada, é uma sorte, mas ele faz muito bem o que faz e também é uma pessoa, não é por estar aqui presente, mas quero lhe dizer que é um homem com muita valia... José Marques Martins: Eu entrei para o diaconado, entrei para esta coisa, porque me interessei e estou a trabalhar em várias paróquias e faço a assistência espiritual também na prisão, o que me dá… Ensina-nos saber a vida deles, porque caíram ali, como caíram, o que é que faziam e, portanto, todos nós ficamos com essa ideia. Por outro lado, a nível da minha profissão no instituto, nós ouvíamos aquilo que as pessoas nos diziam e nós éramos túmulos, ou seja, só púnhamos na ficha aquilo que interessava e que era corriqueiro para outro colega ver. Mas, por exemplo, ouvíamos desabafos. Nós passamos aqui alturas de grandes crises, era cíclico, de três em três anos a têxtil tinha uma crise. João José Silva: E vai-me desculpar, na altura em que estive no sindicato, quando o Martins falou em 60 fábricas, upa, upa. Eu estive no sindicato, na altura eram 123 firmas. Claro que a gente… havia firmas que só tinham cinco teares ou tinham 10 trabalhadores, mas eram consideradas as firmas: 123 firmas, todas elas. Algumas eu recordo perfeitamente. José Marques Martins: Depois veio a crise das confeções e havia coisas deste género, havia desabafos. Eu estive numa Assembleia, pertenci a uma Assembleia Municipal que esteve retida. Trabalhadores de uma empresa não nos deixaram sair. E ouvia coisas, deste género, naquela altura havia a possibilidade de uma empresa que tinha 700 ou 800 trabalhadores, para poder vingar, tinha que pelo menos metade vir para o subsídio de desemprego e ficava lá outra metade. Então ouvia-se isto: ou vêm todos ou nenhum! Quer dizer, ouvia-se isto, era uma forma de estar. As pessoas… quer dizer porquê? Porque não havia uma informação que fosse transparente e concreta cá para fora, é preciso que seja feita desta maneira. Como agora com as vacinas, quando as informações vêm para o exterior como deve de ser, o povo até aceita. Quando não vêm... João José Silva: Aliás, o GIR teve aqui nas suas instalações, durante algum tempo, as formações dessas pessoas, como diz o Martins: vais para o desemprego... E eram colocadas aqui a fazer formações que não tinham nada a ver com a profissão que tinham. José Marques Martins: Nós tínhamos outras entidades e isto era assim: as entidades que nos abriam as portas e que nos facilitavam mais a vida tinham condições. Por outro lado, também havia esta possibilidade de, depois, quando elas começaram a fechar, porque ao princípio as mães, sobretudo as mães e os pais, a menina ou o menino, tinham o quinto ano, tinham de ser telefonista ou empregado de escritório. E eu, tanta vez que eu dizia para elas e para eles: por isso esqueça o emprego de escritório e esqueça o telefone, porque os deficientes também têm o direito a irem para o telefone e nós tínhamos um telefonista. Preparem-se para serem desenhadores, para serem modelistas. Tirem um curso de modelista. Mas porquê? Vêm aí as confeções, começaram a vir as confeções em grande. Claro que depois tiveram que ir tirar o 12º ano para serem modelistas, quer dizer. Portanto, houve um crescimento. P: E como é que era? Como é que se viviam aqui as greves, as lutas? Isto é uma zona muito operária... José Marques Martins: Tem graça, os primeiros mil escudos… Logo a seguir ao 25 de Abril, tivemos então, houve ali um aumento de mil escudos. A Covilhã sempre teve essa fama. João José Silva: Houve uma greve muitíssimo forte, já lá vão uns anos, ainda no tempo do Estado Novo. José Marques Martins: E antes do 25 de Abril, eu lembro-me, não estava cá a viver mas lembro-me de que a Covilhã… Havia aqui umas reuniões que se faziam. João José Silva: Porque era muita gente aqui, na altura o movimento operário era fortíssimo, fábricas com 700 e 800, e depois não era só, eram famílias completas... P: E isso vivia-se aqui no grupo, como é que era? João José Silva: Sim, sim, aqui, portanto, no grupo entrava-se, comentava-se às escondidas, sempre com receio que o parceiro que estivesse ao lado fosse denunciar, que estava numa reunião, que se ia fazer uma greve. José Marques Martins: Sabia-se, primeiro porque havia a parte clandestina e numa empresa é muito fácil e havia códigos próprios. Eu recordo-me, lá para os meus lados havia pedreiros, e tinham um código próprio. Quando o patrão chegava, eles tinham um linguajar próprio e as regiões tinham um linguajar próprio, ou seja, uma forma de se exprimir com uma certas palavras que só eles é que entendiam. Quem estava fora ouvia, mas não percebia. E isto é como eu digo muitas vezes, como se diz na Sagrada Escritura, mas não percebem. Só quem é de dentro é que percebe e, portanto, aqui também é a mesma coisa, nas fábricas, nas associações, comentava-se, mas de maneira a que... João José Silva: Até porque nos seus órgãos, a maior parte deles eram trabalhadores, eram pessoas da indústria de lanifícios, estavam ligados, quer queira quer não, direta ou indiretamente, ligados ao movimento operário, que era forte. José Marques Martins: E havia outra coisa. As famílias eram muito unidas, ou seja, não, não iam, não havia tantos problemas para onde se ir buscar e falar na vida dos outros. As pessoas não falavam, não comentavam, com receio de que lhes caísse em casa algum agente. João José Silva: Claro, a gente sabia aqui no Rodrigo quem é que era da PIDE. Estava sinalizado, a gente sabia, mas não tínhamos a garantia absoluta.... José Marques Martins: Eu cheguei cá, chego aqui em Novembro, e em Dezembro sou avisado, alguém me avisa de dois indivíduos da PIDE, alguém me avisa: cautela com sicrano. João José Silva: Nós tínhamos ... estavam sinalizados por nós, tanto que quando eles entravam aqui… uns não entravam porque não eram sócios e aqueles que entravam, recordo... José Marques Martins: Nós conversávamos, ouvíamos, mas para com ele parava, ali as coisas paravam. P: E nessas greves que duravam muito tempo, não havia movimentos de solidariedade para as famílias grevistas? José Marques Martins: Havia, eu lembro-me, por exemplo, na questão de quem tinha crianças e que as mães não podiam ter leite para as crianças. Então havia os leiteiros, havia uns indivíduos que andavam aí com os potes de leite. E portanto, ouvia às vezes com visitas destas… Não, não, hoje leite tem que ser… só lhe dou tanto, porque a fulana tem lá uma menina pequenina e não ganho nada, o próprio leiteiro tinha assim... e nas lojas nas lojas havia o fiado. João José Silva: O próprio GIR oferecia no início de cada ano letivo. Oferecia aos filhos dos associados esses livros, àqueles que tinham mais dificuldade. José Marques Martins: Pois, deixa-me ver, os vicentinos, nós ajudávamos muito. Os vicentinos são... ainda hoje, nós temos grupos que em que temos esse objetivo, nós temos aí zonas e temos famílias a quem ajudamos, quer com pagamentos de água e da luz, com os remédios e também com alimentos. Quer dizer, para além do Banco Alimentar, que aparece. Mas quando é nessas alturas, nós… quer dizer, ainda se aparece mais e depois até a própria génese das pessoas que vivem aqui, mesmo aqueles que não sendo de cá, mas que já são de cá, por exemplo, o Bairro do Rodrigo, estas casas que foram depois criadas já para outras pessoas que vieram para cá, até eles próprios, portanto, criaram esse élan de ajudar. João José Silva: E as comissões de moradores e tal, que na altura surgiram… O Rodrigo era um bairro operário. Ninguém lá morava que não fosse operário, exceto as quatro professoras da escola oficial. P: A comissão de moradores foi fundada quando? João José Silva: Foi em 76. José Marques Martins: Sim, certo, fizeram-se coisas bonitas também. Nós fizemos coisas interessantes. Aumentámos a escola e havia um Jardim infantil para onde iam os miúdos. Criou-se aqui, ele começou aqui. As festas populares que se faziam dos Santos, criámos uma casa mortuária aqui para o bairro, as festas populares de Santo António, onde a coletividade também teve um papel importante, e fizemos um trabalho… Sei lá, a gente diz assim, conseguimos reunir pessoas, mas nós éramos duros. O objetivo tinha que ser cumprido e às vezes afirmávamos: aquilo tinha que ser cumprido, isto é assim e cada um tinha a sua função. João José Silva: O GIR teve sempre uma ligação à comunidade muito forte. Isso é anteriormente, já não é do tempo dos Zé Marques Martins, porque é uma pessoa que apareceu na cidade em 1973. Antes havia uma festa, que chamavam a festas Zacarias, essa festa, era a festa de chamávamos Zacarias, porque ele é que era o grande impulsionador, um homem ligado ao GIR, mas era a festa das florinhas da rua. Então ele fazia essa festa, ia pelas quintas, dos associados e não só, pedir determinados alimentos e depois vinha para a festa para fazer oferendas. Aquilo era leiloado e o valor daquelas oferendas era entregue às florinhas da rua, que era uma instituição de solidariedade social, onde tinha crianças abandonadas. José Marques Martins: Essa festa depois foi recriada, recriei-a eu, durante três anos, para fazermos a casa mortuária e a Igreja, também fazíamos os tais leilões e depois fazia-se essa festa e a Festa de Santo António, e fazíamos grandes festas, que vinha para aí gente… Porque é que elas morreram? Morreram porque, quando nós olhámos, foi aí que começámos a notar, que se começou a ver o decréscimo dos órgãos diretivos, das pessoas. Começámos a olhar para o lado, ao princípio juntavam-se ali seis ou sete, oito ou nove ou 10, e depois começámos a olhar para o lado e só havia três ou quatro e depois quem ia já não estava interessado. E depois aquilo tirava-nos tempo, porque as famílias… E por isso é que no associativismo a família tem um papel importante. Nós estamos a falar de dirigentes associativos., A família associativa é para criarmos família, mas as nossas famílias eram o nosso alicerce: olha que eu só chego às tantas horas para comer, olha que eu não sei quê, as nossas famílias eram... Um bom dirigente associativo tem que ter atrás uma família capaz de aceitar e ver as dificuldades que às vezes… às vezes eram três da manhã ainda estávamos aqui... Hoje as famílias destroem-se e não estão tão... João José Silva: Hoje é completamente diferente. Por isso é que eu digo, com pena, que as coletividades têm que seguir para outro caminho, como diz o Zé Marques, com outros eventos, outras ideias, ou então… Porque não há ... P: Isso, as mulheres não vinham também? José Marques Martins: Vinham, sim. As senhoras vinham com outras, não vinham para… Depois, mais tarde, passaram a vir também para órgãos diretivos, mas lá mesmo não se sentiam assim tão bem. João José Silva: Não, não era fácil arranjar mulheres para os órgãos sociais. José Marques Martins: Por exemplo, havia um evento, havia o teatro ou havia dança. Vêm as mães com as meninas, vêm as mães… Havia as marchas, até máquinas de costura para aqui vieram para costurar e, portanto, elas colaboravam naquilo que os maridos estavam.... Nós planificamos tudo bem, também entrávamos, mas elas lá faziam, lá compravam, não sei quantos, e aquilo aparecia feito. E depois, no fim, quando fazíamos a festa, de tudo cumprido, dizíamos uns para os outros: epá, mas a malta parece que não fez assim tanto, podíamos ter feito melhor. Quer dizer, tínhamos feito uma coisa em beleza, mas no fim, dizer assim, podíamos ter feito melhor. João José Silva: É, o movimento associativo é.... José Marques Martins: Hoje não. Hoje faço uma coisa: pá, somos os melhores. Não, aquilo era... João José Silva: Hoje é assim, não se faz, manda-se fazer. É o grande problema... José Marques Martins: E depois aparece feito. Há alguém também que faz e esse alguém que faz começa a fugir. O indivíduo, as coisas aparecem feitas, mas o indivíduo começa a fugir. Espera aí, sou só eu? Começa a olhar para o lado e diz assim: mau! Porque depois é aquele que é fustigado, e então começa: não posso. Declina, porque o outro não sabe fazer, porque nunca quis aprender a fazer, porque isto é como os dirigentes associativos, quem vem de novo não é um dirigente associativo sem mais nem menos, tem que se ir modulando e formando com os mais velhos. Porque vai gerir recursos humanos. Ali fora, às vezes há disputas, há bocas, há um ou outro que se porta menos bem, que diz alguma coisa diferente e ser dirigente associativo é saber conciliar às vezes as diferentes ideias. Ser capaz de dizer assim: ele tem razão, realmente é verdade, isso é que é. Ser dirigente associativo não é chegar aqui e dizer assim: vamos fazer aquilo e aqueloutro. Tenho que ir à procura de recursos e saber gerir, e saber gerir é saber chamar as pessoas para um objetivo comum e quando é preciso fazer um objetivo comum, de certeza que se faz. Uma coisa que esta casa sempre teve foi isto: caiu o telhado aqui três vezes, não foi, e as pessoas apareceram. João José Silva: Uma solidariedade enormíssima, arranjar forças e pessoal, a gente ficou surpreendida mesmo. José Marques Martins: Havia um objetivo, eles viam que os dirigentes trabalhavam, nós saíamos do nosso serviço e vínhamos para aqui trabalhar: caramba, vamos lá ajudá-los. Eu tenho um exemplo concreto disto, e o João... na direção a que presidi, na altura, eu recordo-me que nos festejos populares, aqui sempre foi uma casa que teve grandes festejos, mas eu recordo-me que nesses anos, e é a experiência que tenho, de quando chegava aí às cinco horas da manhã, seis, e já havia mesas livres, eu pegava num balde de água e limpava as mesas para arrumar e diziam assim alguns colegas meus: epá, deixa isso, amanhã à tarde… E eu assim: não, se fizermos isso agora, a malta dorme melhor. Porque vamos descansados com isto limpo e ninguém saía daqui sem estar tudo limpo e lavado. E foi uma imagem que pegou. Todas as outras direções que vieram, na sua grande maioria, terminavam os festejos e, em vez de se irem ali sentar,, era mais um esforço, eu sei que era, mas também no outro dia, quando aqui chegavam à tarde, para outro dia de festa, era só pegar. Era um sacrifício, mas quer dizer, mas trabalhávamos. E quando, eu lembro-me de estarem aqui sócios assim: Epá... E havia sócios que: vamos lá dar uma ajuda, andam ali aqueles pobres sozinhos. Quer dizer se nós: Epá deem aqui uma ajuda. Olha, então aqueles não querem fazer nada e agora querem que a gente la vá? Portanto, isto também é ser dirigente associativo... P: Dar o exemplo, não é? José Marques Martins: Sim, porque, ora bem, se nós não dermos o exemplo, os mais novos não vêm… João José Silva: Muitos horários seguidos eu fiz no hospital, porque vinha para aqui trabalhar... Ai é? Queres dança? Então agora vamos fazer 16 horas. Trocava horário para jogar ... José Marques Martins: O João José, aqui na casa, também passou por aqui e sabe muito bem das dificuldades... E quando às vezes nos pedem… Quer dizer, nós gostamos da casa, gostamos da casa, mas já demos muito pela casa e temos pena que um dia possa fechar. Mas, se pudermos colaborar, contribuir para que isto cresça... João José Silva: E penso que estamos habilitados para, de alguma maneira, responder àquilo que é solicitado: um pouco da história do GIR, o que ele foi, o que fez. O que poderá vir a fazer, aí já é com as direções... José Marques Martins: Com as direções, uma ova, com os sócios, a casa faz-se com os sócios. Isto é, a direção pode querer uma coisa e os sócios não. Temos aqui 50 melros e queremos fazer uma coisa diferente… João José Silva: Sim, sim, mas a direção é que decide. P: Mas vocês também se organizam em comissões, por exemplo, o teatro? José Marques Martins: Nessa altura tínhamos as comissões, inclusivamente nas festas, havia comissões, mas havia muita gente, sobretudo nova. Quando eram as festas, quem que nós íamos buscar? Gente nova e fazíamos essas comissões e as comissões criavam o programa. Depois foi o que se… Quem estava à frente das comissões, se começava querer ser independente em demasia, a direção às vezes era ultrapassada e quando dávamos por ela já havia compras feitas assim sem dizer. Agora, no teatro criou-se um grupo muito homogéneo nessa altura. P: Foi em que altura, na década de 70? José Marques Martins: Sim, 60-70... João José Silva: 70 e tal. Não, isso talvez fosse em 80, foi 70-80… E daqui saíram alguns casados e namorados. José Marques Martins: Casaram. Namoraram e casaram. Porque nós andamos por vários locais a levar o teatro e foi numa altura complicada, porque foi o 25 de Abril, em que nós, eu recordo-me, até tenho uma história, que eu até vim mais cedo para cima, porque foi na altura do 11 de março, que essas histórias todas que houve, e eu estava em Évora a tirar… Uma coisa era a animação cultural, que era o Brecht, que nessa altura era o mais importante, mas quer dizer havia a parte política também que se metia em todo o lado. E aí eu nunca, nunca, nunca enveredei por esses caminhos assim um bocado tortuosos, porque isto era assim, isto é quem quer mentir vai para… sem ofensa para os políticos que todos nós somos um pouco, mas é verdade, promete-se, se pudermos fazer depois mais tarde fazemos. E eu às tantas dizia assim: eu não posso ir aí para a gente, para as aldeias, dizer que arranjo emprego para toda a gente, porque isso é mentira. Eu não posso ir mentir, portanto nós… e estou a dar este exemplo. Isto para dizer que ou se tem vocação para aquilo que é ou então não se anda a fazer e, portanto, uma coisa é realmente ter vocação. A minha esposa e outras senhoras é que pintavam, faziam os vestidos… Se não fosse isso, morria. Então, eu não tinha tempo para, quer dizer: camarim, dá-me, entrega, ABC desenrasquem-se, não sei quê, desenrasquem-se. E pronto, e depois aquilo aparecia, as coisas apareciam e nós confiávamos e não invadíamos a esfera uns dos outros. Ou seja, ela vinha pintada com uma sobrancelha preta e outra… Nós confiávamos, porque todos queriam que saísse o melhor possível. E quando o João diz que, todavia, saíram daqui dois ou três casamentos… João José Silva: Sim, sim. José Marques Martins: E depois era muita gente. Nós tínhamos 30 ou 40 elementos e a nossa maneira de gerir todos para... João José Silva: Dava-nos o prazer de escolher o melhor. P: E eram operários? José Marques Martins: Operários, filhos de operários eram todos, e havia um mestre, havia um, sim, mas que tínhamos que gerir aquilo de tal maneira a que ninguém ficasse ofendido. Eu não podia chamar aquele por ser muito bom, tinha de arranjar ali, às vezes, papéis secundários. Mas chegava a um ponto em que era tanta gente… P: O José fazia de encenador, encenava? José Marques Martins: Sim, sim, exatamente. P: Que peças é que encenaram? José Marques Martins: Oh, sei lá… Os dois irmãos gémeos, um era patrão e o outro era empregado, eram gémeos mesmo. E depois fazer o papel de patrão, de ditador, e depois quando mudavam, já na parte da democracia, ver as diferenças... Depois havia um debate a seguir. Uma outra peça, que foi muito importante, que era aquela que tinha três atos que teve para aí. Depois, nós até fazíamos aqui um teatro que demorava três horas ou mais, nós tínhamos a sala cheia, que era a casa do mestre Simão, era uma delas, eram três atos. Outras que foram encenadas, poemas, havia, sei lá, havia poemas, por exemplo… cantos, danças. Depois começou a haver a parte da dança e depois, claro, as coisas foram mudando, mudando, mudando, estão a ir... João José Silva: E a seguir foi feita aqui uma grande peça, Jesus Cristo. José Marques Martins: Também fizemos essa peça de Jesus Cristo superstar, ainda temos aí. O Cristo era um colega, o nosso motorista, o Rui. P: E faziam debates a seguir às peças? José Marques Martins: Começámos a fazer os debates já mais com essas do Brecht, porque estava o povo, já mais… em 76/77. P: Era uma altura em que também as pessoas estavam mais interessadas nessa? José Marques Martins: Já estavam mais, porque aqui, nós não entrámos logo aí. Entrámos naquela, porque aí o povo começou a querer ufa, ufa, quer dizer abriu-se, porque até 78-77, apesar de 74, 75, 76, ainda... João José Silva: Ainda estava tudo muito... José Marques Martins: Mas depois, quer dizer, voltámos novamente e a pôr peças... Fizemos uma sobre as doenças transmissíveis nessa altura também.... Mas era demasiado forte, porque as pessoas tinham medo de fazer perguntas. Olha lá, o que é isso? Sabia-se que, à boca fechada, que a pessoa sofria disto, das doenças transmissíveis ou sexuais, mas não era fácil em público fazer... P: Então já falaram várias vezes que nesse período pós 25 de Abril, esses anos são anos de grande efervescência cultural e da participação das pessoas. O que é que recordam assim mais marcante desse período? João José Silva: Não quer dizer que antes não tivesse sido marcante, antes do 25 de abril... José Marques Martins: Antes de 73, era marcante, mas vamos lá ver, houve uma grande mudança, houve. Eu recordo-me que eu fui trabalhar de manhã… Eu em 73, como disse, vim. Em 74 estava em Janeiro, estava na feira das indústrias, em Lisboa antiga, e tinha uma colega que era a Zélia, a Zélia que era mulher do Zeca Afonso. E quando viemos fazer a nossa visita a Vendas Novas, ao centro de formação, eu vim no carro dela. Vinha ela e vinham mais dois colegas, e ela, há uma frase que é dita na altura, mas que passou-me ao lado. Estávamos a falar que tínhamos vindo lá de forma, que enfim, muitas dificuldades que tínhamos, não sei quê. E ela sai-se assim: é, mas não vai ser por muito tempo. João José Silva: Não estava Longe. José Marques Martins: Nem eu sabia que ela era a mulher de Zeca Afonso, que eu não sabia, sabia que era a Zélia, pronto. Quando depois se dá o 25 de Abril, depois conversámos por telefone e quando nos encontrámos novamente e quando eu soube que era... depois a gente começa a associar. “Não vai ser por muito tempo”, porque já sabia, quer dizer. Quando se dá o 25 de Abril, as pessoas, ao princípio: ah, fica em casa. Mas depois estávamos agarrados à televisão, como estávamos agarrados à BBC de Londres e à Rádio Argel. Eu era daqueles que estava sempre agarrado à Rádio Argel, a ouvir, e a BBC. Eu arranjei um rádio pequenino para ouvir isso, portanto, havia uma ânsia que estava cá dentro. Dá-se o 25 de Abril, dá-se essa possibilidade, e as pessoas, quer dizer, libertam-se... João José Silva: Com o enjeitamento que houve após o 25 de Abril, nada contra os partidos, mas houve um enjeitamento... José Marques Martins: As associações crescem, as associações dinamizam-se muito mais, porque as pessoas já falam mais à vontade, já vêm mais à vontade, já vêm ler, já vem perguntar, já vêm que há mais abertura e já se fala sem medo. E aquilo que mais fez com que as associações crescessem foi a liberdade que apareceu, a liberdade de as pessoas se exprimirem e expressarem-se de toda a forma. João José Silva: Após 25 de Abril, isto era quase todas as semanas, os partidos políticos queriam fazer aqui comícios, congressos, conversas. Alguns outros nem tanto porque, pois começou aqui a surgir o problema de que se o GIR vai ceder as instalações a um determinado grupo político tem que deixar... José Marques Martins: E aqui nesta casa fez-se, quando ali a capela estava em obras, a eucaristia. E sempre se disse: não, vem para cá, mas também vem para cá uma outra religião, fazer também o seu congresso. Toda a Gente tem direitos, aqui é para sócios, sejam eles o que sejam. João José Silva: Tanto era o PCP, como o CDS, como o PSD.... José Marques Martins: Aliás, os estatutos dizem isso: não tem credos nem filosofias políticas. E entram aqui sócios de toda... Agora se me perguntarem assim, se para cá viesse a extrema-direita ou alguma coisa com... Também temos nos estatutos como objetivo a defesa do bem comum. E, portanto, temos essa possibilidade de… As pessoas abriram-se, as pessoas aumentaram, criou-se uma nova forma também de estar na vida. Falava-se mais, começámos a conhecer as dificuldades e os anseios de várias... as festas eram diferentes. Havia, portanto… houve uma abertura mesmo entre os bairros, quer dizer, houve uma explosão, primeiro de alegria. Depois vieram os anos difíceis e quando vêm os anos difíceis, nomeadamente quando vêm as crises e então numa terra destas em que tem uma mono indústria... Apareceu a Universidade, que veio dar vida à cidade, porque isto era uma aldeia pequena. A Universidade veio dar uma vida aqui à Covilhã… P: Estava a falar da abertura das associações e lembrei-me de uma coisa que referiu há bocado, que tiveram uma articulação com a associação mutualista. Como é que isso foi? João José Silva: Sim foi. Aliás, eu não tenho conhecimento pessoal, mas sei pelo que me contaram, pessoas que passaram por aqui, dirigentes e não só. Eu posso lhe dizer que, por exemplo, a Associação de Socorros Mútuos emprestou, em determinado ano, um valor de cem escudos, está aí um documento, cem escudos, para que se fosse concluído o resto da obra. José Marques Martins: Nós servíamos aqui de depósito, de certa maneira, daquilo que eles não tinham condições. E então nós, o grupo, era aqui que eles tinham a sede. A Cruz Vermelha também passou por aqui. João José Silva: Há uma outra associação que foi formada aqui também, a APPACDM, foi criada aqui. Mas essa dos 100 escudos tem a ver com a mutualista. Porquê? Porque na altura, um ou dois dirigentes do Grupo Rodrigo, por exemplo, estou a lembrar-me do [...] e outros, o [...] e não sei quê, eram dirigentes da associação. José Marques Martins: Na Cruz Vermelha também se deu o caso, dirigentes desta casa eram dirigentes da Cruz Vermelha. João José Silva: E, na altura - só para concluir, desculpa - o GIR estava com problemas financeiros para pagar determinado valor e a Associação Mutualista Covilhanense, era assim que se chamava, emprestou ao GIR essa importância, que depois foi paga, há aí um documento, está devidamente aí contabilizado P: E o próprio GIR? Estávamos ali a ver que também tinha uma função, também tinha essa vocação mutualista, não é? Pelo menos com a questão do subsídio de funeral? João José Silva: Não havia previdência, a previdência aparece em 1961. José Marques Martins: A lutuosa aparece para ajudar os funerais, para levar as carretas, porque as famílias não tinham dinheiro: eram 500 escudos, ou 1000, pronto, e depois pararam quando vieram as agências. João José Silva: As agências não se preocupavam com a previdência, que não havia na altura, preocupava-se era pedir o cartão de associado e com esse cartão é que vinha ao GIR levantar o subsídio anual, que era de 500 escudos, hoje são 1000 escudos ou cinco euros. José Marques Martins: Hoje, praticamente, ainda está nos estatutos, mas é uma coisa que está só para fazer memória, porque a previdência hoje já funciona de outra maneira, mas está como memória porque foi essa uma das causas da nascença da coletividade. Há duas causas importantes, que é a educação dos filhos dos sócios, e aqui foram os filhos que levaram os pais. Vamos lá ver, os pais primeiro quiseram que a escola fosse aqui feita para educar os filhos, mas depois os filhos vieram para a escola oficial durante o dia e os pais vinham à noite. Os filhos é que levaram os pais a perceberam que também tinham necessidade de aprender. P: Depois também houve instrução para adultos? José Marques Martins: O pai e a mãe que vinham para aqui aprender… P: Isso em que altura? José Marques Martins: Pois, foi de 1900 a 1928, a escola foi... P: No vosso tempo ainda havia esses cursos para adultos? José Marques Martins: Não, no nosso tempo foi só formação. João José Silva: A escola no GIR acabou em 1950, 49-50. José Marques Martins: Eu aqui tenho as aulas diurnas para os filhos e as aulas noturnas, que era a dona [...], e depois a escola foi apetrechada e inaugurada pelo presidente da Câmara, o [...], em 1928, portanto, passados sete anos. De 21 até 28 funcionaram aqui alguns indivíduos a dar umas aulas que ensinavam os filhos... outras escolas. Em 1931, portanto, passados três anos, é que o governo reconhece o mérito e dá o estatuto de escola pública. Então, nessa altura é que foi nomeada uma professora oficial, que era essa dona [...], que era a professora. Quando as escolas do Rodrigo, como tu dizes, em 50 se fizeram aqui, acabou, não tinha razão de ser. P: Esta questão da memória já deu para perceber que é uma coisa que vocês valorizam muito. Têm ali o museu, os dirigentes conhecem a história, e acham que esta questão da memória é importante para a identidade do movimento, ou seja, os dirigentes vão passando uns para os outros este legado e é uma coisa importante, ou seja, tem aquela ideia de… isto é uma coisa que é tão antiga, esta tradição, a gente tem que continuar isto. Acham que é importante esta questão da história, o peso da história? José Marques Martins: Essa questão está a pôr, torna-se muito importante. E pode ser até uma das formas de revitalizar novamente também o movimento associativo. Eu, para construir… Qualquer pessoa que tenha dois dedos de testa, para construir o futuro tem que viver bem o presente. E sabendo a memória do passado, aquilo que errou e aquilo que fez de bem, portanto, só assim é que se pode construir. Eu, na minha vida, costumo dizer e prego: peço perdão daquilo que foi mal feito, vivo com muito gosto o meu dia a dia e quero fazer melhor ainda no futuro, mas para isso tenho que ter um saber do que é que foi feito atrás. É altura… E eu parece-me que que nós estamos a cometer uma falha, parece-me, que os órgãos sociais estão a cometer uma falha não só aqui, possivelmente em todos, era de dar a conhecer de facto aos novos toda a história desta casa, porque muitos entram aqui sem conhecer a história, vivem de hoje para a frente, vivem este… Vem aqui ao bar um jovem, mas até aqui houve um caminho, houve um percurso e penso que nós devíamos... Nós temos isso, esta casa tem as fotografias, tem livros. Mas as pessoas não leem, não veem as fotografias e, possivelmente de tempos a tempos, devia-se até passar, sei lá, ou em projetor ou retroprojetor ou qualquer coisa do género, digamos, um tempo do que é que foi isto, como é que isto começou, o que é que era a Covilhã naqueles tempos, em 1920, fotografias daquele tempo. E depois, até, haver às vezes debate e outras coisas do género Não era preciso uma tarde, havia de chamar as pessoas mais antigas, pessoas que passaram por aqui, porque há sócios antigos que passaram e eles conheciam as histórias. E começar a fazer isto. Com quê? Com as escolas. Eu não vou chamar os do secundário nem os universitários. É mais fácil os universitários virem cá do que os alunos do secundário. O universitário já está noutra dimensão e gosta também da parte histórica. Mas as crianças das escolas, os do básico ou os do ciclo vinham cá com todo o gosto. Os professores vinham ouvir, quer dizer, era uma forma de levar os miúdos a verem o que é que os bisavós deles… Olha, o meu avô andou ali. Nós tínhamos aqui um presidente da Câmara que cada vez que vinha aqui, o Carlos Pinto: eu andei nesta escola, andei na escola do presunto, e andou também você. Quer dizer, e essa conversa levava a que, quem sabe, lá os miúdos de hoje para amanhã… Era uma forma de espevitar o gosto pela casa. João José Silva: O problema é… Estou completamente de acordo com o Zé Marques, mas falta o melhor, falta a parte humana. Porque nós temos que ver as direções que entram para esta… para o GIR do Rodrigo ou para outro qualquer, às vezes têm tempo limitado, vêm com dois anos e por muita vontade que queiram fazer determinados eventos e dar a volta a isto, olha-se para o lado, como disse o Zé Marques: tinha cá 10 agora só cá tenho três. Onde é que estão os outros sete? Cansam-se, hoje. Eu não tenho nada contra a juventude, mas entendo que era preciso um trabalho muito forte. Falo do GIR, porque é um caso que eu conheço muito bem.Havia que procurar chamar para a coletividade pessoas que desenvolvessem esse tipo de trabalho, porque não é fácil a um dirigente associativo ir às escolas e passar a mensagem: epá vão ao GIR Rodrigo que amanhã temos lá a apresentação de um livro ou a passagem de um vídeo para se saber o historial da coletividade. Não é fácil. E o Zé Marques sabe que não é fácil. É assim, as direções são o que são. Não precisam ser doutores. É preciso é que sejam pessoas realmente com uma vontade extrema de que vem para servir a coletividade e não servir-se dela. E ao mesmo tempo, às vezes não têm tempo, trabalham, têm a sua vida. Nós perdemos aqui n horas… José Marques Martins: Tudo se faz. Olha, vou dar o meu exemplo aqui hoje… Hoje era para estar, de manhã, eu disse para quem me telefonou: espera lá, eu tenho uma celebração às 10:00 e não tinha ainda na altura, mas tinha. Hoje estive no Pezinho. Mas pronto, chegou-se à conclusão que podia ser às 14:00. Isto para dizer que não havendo gente… Mas tu tocaste aí um ponto importante, desde que haja vontade, e de que haja pessoas capazes, nós estamos cá os dois, possivelmente se fossem outros não estariam, mas continuo a dizer que vale a pena investir nesse campo, pegar na gente nova e pô-los em colaboração com os mais velhos e com a riqueza do passado para eles verem: epá de facto estes indivíduos fizeram isto. Caramba, como é que eles conseguiram? Com tão poucos meios conseguiram… E essa é a pergunta que lhes fica e nós, com tantos meios, não conseguimos. Porquê? E aquilo entra e aquilo burila. Talvez eu fale assim, porque como estou numa instituição que tem idosos e tem uma parte infantil e a gente de vez em quando juntamo-los e os mais novitos perguntam e até fazem aquilo, andam lá de bengala e os miúdos também com a bengala atrás dele também, acho eu, a imitá-los. Mas olhamos para aquilo e, sinceramente… um miúdo pegar, vê que o avô, coitadinho, lá anda e quando andam com aqueles com uma cadeira rodas: também quero ir. Quer dizer, os minutos querem andar de cadeira rodas porque... e depois aí o professor tem um papel importante, que é dizer assim: olha, vês, quando ele era assim da tua idade, não sei quê, não tinha esses carrinhos, tinha assim outros bonecos, depois nós temos lá os brinquedos antigos. Aqui também podia ser. Era uma forma de espevitar. Porque nós… Quer dizer, está tudo à espera: quanto é que dá, como tu dizes? Não tem que dar, não pode ser… Mas é uma forma, essa questão que levantou, de que forma é que é indo buscar a nossa história… É importante sabermos a história e os novos, e nós fazermos chegar aos outros essas memórias. Se nós não perdermos, se esta casa perder a memória, esta casa fecha. Mas enquanto esta casa tiver memórias, aí a casa não fecha. João José Silva: A verdade é que nós andamos há muitos anos, e não sei a história do grupo. Completa não sei. José Marques Martins: Possivelmente, há muita gente que não sabe, nem os nomes dos primeiros... João José Silva: Há muita gente que não sabe como é que isto começou.. José Marques Martins: Quando andavam aqui com obras, os livros não estavam ali no meio do lixo. Eu estava em Tondela e, quando vinha, andava no meio do lixo a tirar os livros de atas. João José Silva: Não há sensibilidade. O que é isto? Papéis... José Marques Martins: Nós temos que passar a memória, porque se nós não o fizemos, se esta casa não fizer memória do que foi e do que é, fechará no futuro. João José Silva: É de salientar as pessoas que passaram por aqui e as que vierem no futuro, porque não é fácil. Não é fácil arranjar dirigentes associativos. -
2 de junho de 2021
Luzia Lopes Mendes
P: Nasceu aqui na Covilhã? Em que ano? Luzia Lopes: Sim, 1944. P: E estudou aqui? Luzia Lopes: Fiz a quarta classe neste sindicato, havia escola para os filhos dos trabalhadores com mais dificuldades, de maneira que fiz até à quarta classe aqui no sindicato e depois era preciso trabalhar, não é? P: E foi trabalhar para onde? Luzia Lopes: Fui para o Colégio das freiras aprender costura, porque naquela altura só se podia ir para as fábricas depois dos 14 anos, de maneira que fui para o colégio das freiras aprender algumas coisinhas de costura, que me deram um jeito a mais tarde… E depois daqui para a fábrica depois dos 14 anos. P: E qual foi a fábrica para onde foi trabalhar? Luzia Lopes: Pronto, eu fiz a aprendizagem numa fábrica que estava só assim um bocadinho a aguentar-se, o meu primeiro contato foi numa empresa, depois fui para outra empresa. Quando aí, então aprendi a profissão que tinha e depois fui para a fábrica até me reformar, onde estive sempre. P: Qual era a sua profissão? Luzia Lopes: Urdideira mecânica. Há aquela máquina que enrola os fios para depois fazer a largura toda da peça que depois ia para o tear e o tear fazia.... P: E foi sempre esse seu ofício até à reforma? Luzia Lopes: Foi sempre esse até à reforma. Reformei-me por invalidez. P: E os seus pais também já eram da indústria? Luzia Lopes: O meu pai era tecelão e a minha mãe era cerzideira. Era metedeira de fios, que agora já se diz que é cerzideira, pronto, ainda bem. P: E eram ambos daqui da Covilhã, não é? Luzia Lopes: Sim, sim. P: E casou, teve filhos? Luzia Lopes: Tenho 2 filhos e tenho 4 netos. P: E o seu marido também trabalhava.... Luzia Lopes: O meu marido é alfaiate [ri-se]. P: E trabalhava em casa? Luzia Lopes: Em casa. P: E os seus filhos, qual foi depois o percurso que eles fizeram? Luzia Lopes: O mais velho tem 46 anos neste momento. Também fez só até à sétima classe. Ele não queria estudar e então foi para uma confeção de edredões. Mas depois começámos a aperceber-nos de que ele estava a entusiasmar-se com o dinheiro que ia ganhando, e nós vimos que aquilo era muito limitado para o futuro dele. E foi nessa altura que começaram a aparecer os cursos de formação profissional. Lá o conseguimos convencer a deixar de ganhar aquele dinheiro para investir na formação e hoje é mecânico na Mercedes. Pronto, está bem. O outro já estudou, é engenheiro mecânico, está em Angola. Pronto, está bem. P: E viveu sempre aqui na Covilhã? Luzia Lopes: Sim P: É católica? Luzia Lopes: Sou católica praticante. Claro, tinha de ser, porque é daí que as coisas depois partem. Não venham com dúvidas: tudo o que é fora, a gente debate-se com dificuldade, porque o ver, julgar e depois o agir, não está de acordo com aquilo que... P: E filiação partidária, teve alguma? Luzia Lopes: Não P: Então e filiação associativa? Luzia Lopes: Sim, como cristã tive várias coisas. Dei catequese a um grupo de jovens, cerca de 20 anos, Hoje já estão todos… já têm filhos e não sei quê, e depois, fazendo parte daquela equipa do LOC da minha freguesia, demo-nos conta do trabalho que a paróquia tinha feito e que nós colaborámos, demo-nos conta das dificuldades que os pais tinham em tomar conta dos filhos durante as férias, eram 3 meses de férias. É então que nos juntamos e estudamos o assunto e vimos o que é podemos criar neste tempo de férias, chamadas férias grandes na altura e então criamos um espaço... P: Então estávamos a falar da vida associativa… Luzia Lopes: Então, a partir daquele aprofundamento, daquele conhecimento da realidade que se vivia naquela zona - é uma zona pobre, havia a necessidade de fazer alguma coisa para ocupar o tempo livre daquelas crianças -, os esforços uniram-se, abriram-se algumas janelas, criou-se um grupo para fazer o levantamento de quantas crianças, o que é que os pais pensavam, procurar o espaço, a que portas a gente havia de bater, por exemplo. Foi esse trabalho todo. Durou 20 anos. Então tivemos de arranjar. Não tínhamos dinheiro para pagar a educadores e então um amigo nosso que era reformado, trabalhava nos serviços, disponibilizou-se para ir ensinar as crianças como se fazia… montava-se uma ficha... Arranjámos uma moça que hoje também já está reformada, também deu o seu contributo e várias pessoas, quer dizer, recorremos de gente que nós conhecíamos para dar um apoio. Por exemplo, o meu marido, à segunda-feira era o dia que menos trabalho tinha e então tomava conta deles. Pronto, então foi muito interessante… P: Isso foi em que ano? Depois do 25 de Abril? Luzia Lopes: Sim, sim, já já... P: Então, mas se calhar começamos antes do 25 de Abril, sim? Luzia Lopes: Pois, antes do 25 de Abril, a minha caminhada foi de facto na Juventude Operária Católica e foi de facto aí um meu espaço de formação, de sensibilidade, de luta, e procurando onde eu me situava. Como cristã, onde devia ser o meu empenhamento, não era fora das coisas, mas era dentro das coisas, quer nas associações, quer no sindicato, quer na empresa, quer na Igreja. Então, ao nível dessa situação, trabalhando na fábrica, antes do 25 de Abril, já havia alguns mais despertos para estas coisas dos direitos e tal. A gente já ia acompanhando um bocadinho a razão que levava também a falar e a denunciar. Claro que nós éramos novas, pronto, nós éramos novitas, e foi então assim que se criaram na altura as Comissões de Trabalhadores e aqui eu entrei para uma Comissão de Trabalhadores com outros. Mas a dificuldade em ser mulher no meio dos homens, era que a mentalidade, cuidado… Era que às vezes os homens se deixavam emprenhar pela mentalidade das mulheres ou pela ideia das mulheres. Pronto, houve aqui assim alguma coisa mas… Quer dizer, se eu estou no meio da massa, eu não podia desistir. Então, a Comissão de Trabalhadores continuou e havia um delegado sindical. E então havia uma coisa que nos fazia muita impressão, era que o delegado sindical vinha ao sindicato, às reuniões e tal, chegava à empresa e em vez de partilhar connosco um bocadinho do que se tinha visto, que se tinha analisado, o que é que iria fazer… Não, imediatamente, eles informavam era a entidade patronal. Não está correto, a gente devia saber primeiro o que é que os leva lá… Até que depois eu fui nomeada delegada sindical. P: Mas diga-me uma coisa, antes do 25 de Abril já tinha feito parte de alguma Comissão de Trabalhadores, alguma greve? Luzia Lopes: Não, não, foi só depois. P: Mas participou nesta greve [greve em Unhais da Serra, 1969]? Então mas participou desta primeira experiência, foi a primeira experiência de luta ?Julgo que em Unhais da Serra... Luzia Lopes: Não, eu não trabalhava para aí, eu trabalhava já na Covilhã. Eu não trabalhava na Penteadora. Mas tinha conhecimento. Tivemos conhecimento da informação que nos chegava cá, da luta que aquelas mulheres estavam a fazer, mas não estava lá. Pronto, e assim começou um bocadinho a nossa ação na empresa. E assim, por eu ter estado nos movimentos operários, nos momentos de reflexão, de participação, de incentivar e tal a estarmos no meio, também me levou um bocadinho a integrar-me nas questões do sindicato, a nível da empresa. Foi então a partir daí que eu fui delegada sindical da empresa, Fernando da Silva Antunes. Já não existe. E foi a partir daí, porque me parece, sempre e ainda hoje, que a gente para exigir também tem de cumprir. E quem está disponível para se dar, tem de ser coerente com aquilo que defende. Não é porque o partido me mandou lá ou deixou de mandar, era porque eu acreditava que o meu contributo, com as minhas colegas de trabalho, com os meus colegas de trabalho, numa perspetiva de respeito, de coerência, de verdade e de dignidade, levava-me a comprometer-me e foi assim que eu comecei a assumir os espaços no sindicato. Lembro-me que uma vez havia uma greve de duas quintas-feiras. Pronto, decidiu-se no sindicato, naquela altura eu já era delegada sindical, e a luta era porque as nossas empresas tinham metedeiras de fio de cerzir, cerzideiras, em casa, nas casas delas, nas aldeias e tal, mas não eram consideradas trabalhadoras da empresa. Porquê? Porque iam lá pôr os cortes e iam lá buscar. Então, houve duas semanas seguidas, duas quintas-feiras, em que o sindicato propôs uma greve para que as empresas, naquela altura, ainda havia essa força, para que aquelas trabalhadoras fossem consideradas trabalhadoras da empresa, para terem as mesmas regalias que nós tínhamos dentro da empresa: subsídio de férias, essas coisas todas. E na conversa, um dia, encontrei-me lá na casa de banho com uma e perguntei: O que estão a pensar fazer amanhã? Oh, não nos adianta muito vir, então não há ninguém. Pronto, olha, ainda bem, e sabe por quê? Porque normalmente fazem piquetes e os piquetes não é para tratar ninguém mal, mas é para esclarecer as pessoas da razão porque é que a gente está às portas e, sendo assim, não é preciso vir para aqui ninguém. Passou-se, passou-se. Na outra quinta-feira, eu ia para pegar trabalho e já não me deixaram pegar trabalho. Quando o guarda me disse: oh Luzia, não pega trabalho que o patrão quer falar consigo. Esperei que o patrão me viesse chamar e a razão que ele me apontava era de que estavam ali aquelas raparigas para me acusarem, porque eu que as tinha ameaçado… E eu: desculpe, não foi assim. Em frente delas, a verdade foi esta: isto, isto, isto e isto... Bom, mas, desculpe, e ele voltava a falar e eu calava-me e perguntava: posso falar agora? Pode. É mentira, isto foi assim, assim, assim, assim. Pronto, nós estivemos ali duas horas e meia e nessas duas horas e meia a empresa para e batem à porta do escritório: nós queremos saber por que é que a Luzia está aqui. Se eu já estava um bocadinho a lutar pela verdade, aquilo deu-me uma energia… E o patrão ficou assim comigo: vá-se lá… E eu fui dizendo assim: ó senhor [...], há uma coisa que eu não entendo. Então o que é? O senhor vai à missa, que eu vejo-o lá muita vez, como é que o meu Deus me diz isto e o seu diz-lhe outra coisa? Já ficou um bocadinho... E depois diz-me assim: vá, vá-se lá embora, está a máquina parada, a máquina está parada desde as 8 horas. Mas foi o senhor que me chamou. Mas digo-lhe uma coisa, senhor [...], vale a pena lutar pela verdade, porque por cima da verdade ninguém vai passar. Foi remédio santo… Pronto, e passado algum tempo ele chamou-me, que eu merecia mais algum dinheiro e que me ia dar 25 tostões. Aceitei aquilo como cumpridora do meu dever, porque eu era responsável, porque pronto, assumia... Mas depois comecei a sentir interiormente, à minha volta, que as coisas não estavam a correr bem, em termos de colegas de trabalho. Não, isto não pode acontecer, antes quero dormir descansada do que estar a ganhar mais 25 tostões. E então fui lá: então Luzia, passa-se alguma coisa? Vinha-lhe pedir para me tirar os 25 tostões. É o que lhe digo, prefiro dormir descansada. E tirou, também não deu às outras Pronto, isto criava aqui uma divisão… Não valia a pena. P: Porque é que acha que foi eleita delegada sindical? Luzia Lopes: Porque a minha intervenção já na Comissão de trabalhadores, não só nos dava… Nós não podemos ir atrás daquilo que nos mandam. Vamos parar para refletir se esta atitude ou se esta ordem ou se esta informação que vem do sindicato é aquilo que nós achamos… E se for preciso, chamamos... E foi a partir daqui que eles começam a ver que eu tenho outra outra forma de analisar, de ver as coisas... Porque daqui diziam e eu ia atrás disso? Pronto, não, isso não dava. P: Já tinha havido outra delegada sindical mulher? Luzia Lopes: Sim, sim. esta [...] foi delegada sindical e muitas outras antigas que a gente conhecia, na altura. Sim, sim, já havia muitas, mas era mais comum serem homens, claro, não tenha dúvida nenhuma. É engraçado, porque eu acho que os homens, como é que eu vou dizer, contentam-se, deixe-me passar o termo, um bocadinho com aquilo que se lhe diz, não têm, não são capazes de parar para ver se isto é o melhor, se isto pode responder agora, mas quais as consequências disto. Muitas vezes aqui nós debatíamos, porque eu acho que se investiu muito pouco na formação. Apostou-se muito na reivindicação, e dar formação às pessoas? Porque nós temos que reivindicar os nossos direitos, mas também temos cumprir os nossos deveres e porque, como cidadãos, como seres humanos que têm dignidade, nós temos que lutar por isto. Por esta razão e não porque o Partido mandasse ou deixasse de mandar. P: E quando foi o 25 de Abril já estava envolvida no movimento sindical? Luzia Lopes: Não estava. Foi a partir daí que eu me envolvi. Para nós, no trabalho, foi um dia para lembrar o resto da nossa vida. Que a gente acompanhava... Foi viver. P: E depois, o que que aconteceu nesse período revolucionário, na sua empresa? Luzia Lopes: A entidade patronal também se limitava a estar um bocadinho mais calma, para ver onde é que isto ia dar. Só que na altura nós tínhamos um dirigente sindical (que já faleceu) que já antes se falava e debatíamos e conversávamos e tal, e a gente já estava a acompanhar um bocadinho a realidade do trabalho. Há coisas de que a gente se vai lembrando. Eu lembro-me de uma vez, estávamos numa reunião da LOC, no grupo onde estava a nossa [...], a [...] era delegada sindical, e nós tínhamos a ordem de trabalhos do sindicato e, no grupo, refletíamos: olha, atenção a isto, porque isto pode nos levar para aqui. A nossa posição é como cristãos, a nossa atitude não pode ser a atitude de um partido. Mas às vezes acontecia-nos, às vezes eu ficava até um bocadinho arreliada... E então dava-se aqui uma volta que as pessoas ficavam um bocadinho com a noção de que era preciso ir por ali, se não foi isso que nós refletimos. Nós refletimos, nós aprendemos, ensinamos, desfrutámos do que o ver, o julgar e depois o agir de acordo com aquilo que nós estamos a refletir. E, como cristãos, nós não podemos andar uns por um lado e outros por outro. Vou contar uma história muito interessante. Um dia, era aqui em baixo e viemos a uma Assembleia Geral. Era um sábado, na altura, e depois eu dava catequese às cinco horas, e eram quase cinco horas. Estava muita gente, naquela altura, estas assembleias eram… Dava gosto. Assim, pronto, eu tenho de me ir embora e estava um senhor à minha frente, que trabalhou até com o [...], e eu...oh, eu tenho que me ir embora já, que tenho de dar catequese às cinco e meia. Catequese? Sim. Mas chego à Igreja, e tive o mesmo efeito. Digo assim à dona [...]: Hoje já me descuidei um bocadinho, eu estive no sindicato. No sindicato? Por isso, eram coisas… Quando nós achávamos e refletíamos que era no meio da massa que as coisas se transformam, não é fazer aquilo que os outros dizem, mas é aquilo em que eu acredito, passa por aqui também. Pronto, e tivemos assim algumas coisas, como por exemplo, fazermos parte de um departamento das mulheres e ser um homem a coordenar as coisas? P: Isso onde? Luzia Lopes: Na União de sindicatos. P: E depois o que é que fizeram? Luzia Lopes: Então, claro, o homem não dava conta de nós [ri-se]. Um homem não dava conta de nós, não é? E pronto, foi assim. E há outras. Uma vez estávamos também a preparar o Dia Internacional das Mulheres e conseguimos passar um bocadinho, o parar para refletir, vamos lá com calma, isto é importante, não é importante… O que é que nós vamos fazer, que tipo de luta nós vamos fazer, e às tantas estavam em minoria e começaram a chegar mulheres. E de onde é que você vem? Oh, foi o meu marido, que estava no partido, e telefonou-me para eu vir...E isso ainda nos veio dar mais razão de que o ser e estar disponível e o agir tem que ser de acordo com a dignidade da pessoa, seja ela preta ou branca. P: Então, já percebi que aqui havia uma certa tensão entre o movimento católico e os delegados sindicais ligados ao Partido Comunista. Mas foram trabalhando em conjunto... Luzia Lopes: Tinha de ser, até porque, por exemplo, nunca o Partido Comunista fez - nunca não é bem o termo, nalguns anos faziam - uma lista sem virem convidar-nos a nós. Porque era importante estar alguém da Igreja em nome da lista e eu disse ao [...], pela mesma razão que me vens convidar para eu estar aí é a mesma razão que eu te digo que não é necessário estar lá. Porque era um bocadinho para compor o ramo. Pronto e aqui às vezes havia… e nunca alinhámos. Pronto, juntos na ação, quando é preciso estar ao lado dos trabalhadores da luta, que é preciso reivindicar. Claro que nunca foi nada dado de mão beijada, mas não alinharmos só para alinhar, questionarmos, porque assim é que as pessoas cresceram. Olhe, não sei se estou a responder. P: Agora queria fazer outras perguntas, mais de nível pessoal. Qual é que acha que foi a propensão para participar nestes movimentos? Já tinha pessoas de família que estivessem envolvidas? Luzia Lopes: Atenção, a minha mãe tinha quatro filhos. Teve quatro filhos, dois já partiram e ainda somos dois. E nenhum se envolveu por aqui. Eu, a minha mãe dizia assim muita vez: tinha dois filhos, veio a menina, deve ter sido… Eu vim com alguma missão. Pronto, e eu sinto… e eu comecei quer na Comunidade, depois na JOC, as caminhadas da JOC, o aprofundar, comecei a tomar uma consciência maior de classe, que era preciso pôr em prática. Pronto, e foi a partir um bocadinho… Por isso é que digo: a JOC ajudou-me a situar-me como pessoa, a lutar pelo que eu tinha direito, no respeito pelas pessoas, mas sobretudo pela dignidade da pessoa. Portanto, para mim foi a minha escola. P: Foi muito importante na sua formação pessoal? Luzia Lopes: Muito, ainda hoje. Eu estou na LOC, mas ainda hoje a gente aprende uma coisa: dificilmente nos dizem o contrário, não têm capacidade para dizer o contrário. Isto revela-se na família, revela-se na comunidade. O que é verdade tem que ser verdade até ao fim, revela-se no movimento associativo, por aí fora. E como eu estava a dizer há bocadinho, criámos uns tempos livres nessa altura. Então, uma associação que havia, que eram os brincalhões, que hoje já não existem. E conseguimos falar com a direção e tal, porque era uma associação de bairro. Conhecíamo-nos todos uns aos outros e na altura era fácil, porque a gente andava por ali, os nossos homens eram dirigentes e tal. Então fomos fazer a proposta para que nos deixassem um espaço para angariar os miúdos todos. Foi-nos dada uma salinha térrea, eu trouxe da fábrica umas colas para pôr no chão, para os miúdos se sentarem, fizemos umas almofadas grandes, porque não tínhamos nada… E pronto, e assim começaram os tempos livres, naquele espaço que havia um quintal. Um dia ia-se para a Ribeira lanchar e depois chegava-se e fazia-se uma revisão do que se tinha feito no dia. Outro dia caminhávamos para o monumento de nossa Senhora e fazia-se uma revisão de como é que foi o dia... Fazíamos assim. Isto durou, assim aos saltos, três anos. Entretanto, aparece-nos uma pessoa amiga não sei de onde, que era assistente social, e teve conhecimento do trabalho que estamos a desenvolver e nos procurou para ter conhecimento do que estamos a fazer. Nós já tínhamos feito um acampamento na Serra com as tendas. Quando estavam os pais, todos colaboravam. Foi muito interessante. E então, esta senhora veio-nos abrir as janelas para avançarmos com esta atividade muito mais séria, muito mais dinâmica e também com muito mais apoios. E então, desde irmos às juntas de freguesia, irmos a câmara, abriram-se as portas assim. Depois, entretanto, aquela associação começou... Só tinham um espaço pequenino e as pessoas valorizavam mais o jogo das cartas. E então começámos a sentir uma pressão. Na altura, outra associação, que é o Oriental de São Martinho, que é uma coletividade com uma dinâmica já bastante grande. E então nós soubemos que a casa do lado tinha sido desocupada, as senhoras tinham morrido e que seria dada ao Oriental… E então nós pusemo-nos em campo, fomos à Junta de Freguesia e por aí lá furamos o esquema e lá nos deram uma sala. Então aí já tivemos educadoras que já nos davam algum contributo, que se tinham formado, mas não tinham sido colocadas. Dávamos assim um contributo através do subsídio de alimentação, que a gente conseguia dar, e então quando começámos a entrar por aqui, aquilo foi mais localizado e aquilo avançou. P: E foi no âmbito da JOC ou da LOC, que foi pensada essa iniciativa? Luzia Lopes: Esta iniciativa foi pensada no grupo da LOC. Porque nós tínhamos feito, a Comunidade tinha feito, um projeto. A Comunidade dividiu-se em grupos, nas zonas: tu ficas com esta zona, tu ficas com aquela e nós tínhamos umas folhinhas que dávamos a conhecer, mas era uma aproximação que se fazia com as pessoas que moravam naquela zona. Ora, eu fui criada para além, calhou-me a zona que me dava jeito, pronto. E então, ainda trabalhava, o grupo nasceu, algumas pessoas que se disponibilizaram fazer … Quantos filhos tinham? O que é que achavam se nós conseguíssemos fazer isto? Porque é que as crianças ficavam tanto tempo em casa? O que é que elas faziam naquele tempo? Eu às vezes ponho-me assim a pensar: de facto, nós já fizemos muita coisa. Os pais começaram a colaborar, desde cortarem as pernas das mesas da cozinha para pôr as mesas pequeninas e as coisas começaram assim e foi bem. Depois fomos para o Oriental e entretanto dá-se o mesmo problema: os homens precisavam da sala para jogar às cartas e a gente começou a sentir uma pressão. E então a pressão foi de tal maneira, existia uma comissão de pais... Era eu que geria a questão financeira. Os miúdos pagavam X, nós pagávamos à educadora e depois e o resto seria para saídas. Saímos no autocarro da Câmara, fizemos uma visita ao Portugal dos Pequeninos, fizemos muita coisa nos tempos livres de apoio às crianças. Mas depois começámos a sentir, porque as direções dos grupos vão mudando e entrou então uma direção que achava que os tempos livres deviam fazer parte da associação, que era uma coisa que dava nome. Nós não estamos contra que se faça parte, queremos é que tenha uma gestão independente, porque as direções mudam e como de facto, as coisas mesmo acabaram por acabar. Mas pronto, enquanto duraram foram boas… P: Então, isso já foi no âmbito da LOC. E a JOC, começou a participar na JOC antes do 25 de abril? Luzia Lopes: Sim! P: Em que tipo de atividades é que se envolveu no âmbito da JOC? Luzia Lopes: Nós aprendemos na JOC a fazer cursos, formação para o casamento. Nós aprendíamos como se cosiam as meias, coisinhas que hoje a malta não sabe fazer, mas que alguém nos ia… Naquele grupo, adultos nos iam ensinar algumas coisas, como é que nós nos preparávamos para a vida? Eu acho que foi de uma riqueza, que há coisas nunca mais se perdem, nem se esquecem e não deixam de ter sentido. P: Mas já trabalhava, Luzia? E no âmbito da JOC, também se discutiam as questões do trabalho? Luzia Lopes: Com certeza. Pronto, dentro da nossa capacidade de conhecimento, porque nós tínhamos já a gente adulta que já estava no sindicato antes do 25 de Abril e que nos… Eu posso lhe dizer abertamente. Por exemplo, eu lembro-me de quando queríamos ir para alguma atividade da JOC, os nossos pais não tinham dinheiro e então eram as pessoas mais antigas da LOC, e uma delas, como dirigente sindical, foi presidente aqui do sindicato, que nos ia dar 500 escudos para nós irmos às atividades da JOC. Os nossos pais não nos podiam dar dinheiro. Portanto, isto ajuda um bocadinho a formar a nossa consciência, também do que somos e do que podemos aproveitar daquilo que somos. P: E quais é que eram os tipos de atividades, para além dessa formação para a família, que outros tipos de atividades é que desenvolviam? Luzia Lopes: Fazíamos encontros alargados com outras dioceses, que depois se refletia no que o grupo fazia, desenvolvia-se no seu âmbito, quer no trabalho quer na comunidade. Então, esses encontros que se faziam a nível nacional, e que depois a gente começa a ter consciência, de facto, que não somos só nós que temos estas dificuldades, em Braga também têm, no Porto também têm, e então passava por aí essa formação. E depois tivemos, tivemos e temos o padre [...], que é um doce. Foi o nosso pai, que tantos buracos tapou, que a gente não se podia movimentar… Mas nunca nos travou. Tem coragem e vai. Vai lá que tu consegues. Este incentivar, “tu és capaz de fazer, fá-lo como tu sabes”. E lá íamos nós para os encontros. É engraçado, como é que, hoje penso, como é que... Naquela altura os meus pais me deixaram ir, não é? P: E depois traziam esses ensinamentos? Luzia Lopes: Pronto, e depois a malta reunia-se por vários grupos, fazíamos um encontro alargado e partilhávamos o que é que soubemos da outra diocese, como é que eles tinham reagido, qual tinha sido a revisão de vida que fez Aveiro. Um bocadinho assim nessa linha, porque depois passávamos esta mensagem e este entusiasmo também, para que as pessoas... P: Explique-me lá isso da revisão de vida, como é que se faz? Luzia Lopes: Então, a revisão de vida é assim, passa por uma pessoa e por uma realidade que a gente apresente. Por exemplo, havia uma casal em que tinha uma filha em que lhe dava imensos problemas. E isto depois, parecendo que não, contaminava o ambiente em casa, pronto. Um dia chegava alguém e olha: fulana isto assim, assim… Começávamos. Porque é que Isto acontecia? Vamos aqui fazer a revisão, porque é que isto acontece? Acontece porque o pai trabalhava, a mãe trabalhava em casa e não se dava muita atenção ao pormenor dos filhos, ainda hoje acontece. E então chegámos à conclusão de que, de facto, o problema também era dos pais. Pronto, então vimos esta situação.. agora o que é que fazemos? Agora não é só atirar... Como é que nós vamos e por onde é que nós podemos entrar para fazer esta ação para agir perante esta situação? Pronto, e o mais engraçado é que não começámos pelos pais, sendo que eram os pais que precisavam mais, começámos pela miúda. Fomos conversar com a menina. Encontrávamos, partilhávamos as coisas e tal. E a miúda foi percebendo o lugar dela e o respeito para... porque para tu dizeres alguma coisa, tu tens que ter consciência do que estás a fazer. E para provares aos teus pais que é por aqui... então começamos a trabalhar a própria miúda, e depois até veio para a JOC. São coisas concretas. Por exemplo, as questões do namoro. Era uma coisa que se debatia muito. Eu lembro-me que a primeira vez que comecei a namorar, assim, como é que eu… Foi engraçado, eu fazia anos, a minha mãe não sabe, como é que eu vou fazer? Então fui mais uma colega e dois colegas, a casa dele, lanchar. Ele lá preparou a família. Então queres crer que eu vim para casa e não consegui deitar-me enquanto não disse à minha mãe que tinha ido. Isto dá para perceber… P: E como é que se articulava esse trabalho da revisão de vida com ação sindical? Luzia Lopes: A nossa ligação com o sindicato, a partir do 25 de Abril mais concretamente, já passava por aquelas amigas que nós cá tínhamos, que eram da LOC e que já eram dirigentes sindicais há muito tempo e que nos iam passando. Porque a JOC também se encontrava com a LOC, nos grandes encontros encontrava-se, e a gente ia aprendendo como elas faziam. Por isso, a nível da JOC, eu não estive muito dentro do sindicato. Por exemplo, a [...] acho que esteve diretamente ligada, na altura já era dirigente ou foi a partir daí que ficou dirigente livre. Eu, quando comecei a participar no sindicato, ainda não era, deixe-me passar o termo, a casa do PC. Ainda havia alguma abertura, ainda havia gente aqui consciente. Pronto, esse tal meu colega, que trabalhava lá comigo, que já nos ajudava, ele era dirigente sindical e a gente começou a aprender. Mas depois eles começam também a querer tomar poder. E então queriam-se meter de qualquer maneira, não é? E depois havia aqui assim uma... Pronto, muitas das vezes a gente ouvia dizer: eles que façam lá… Não, é preciso estar lá para ouvir e qual é o nosso parecer. E passaram-se assim algumas coisas. Eu lembro-me uma vez, estávamos numa Assembleia, e um rapaz, já faleceu também, tinha dificuldade em se exprimir, não tinha o dom da palavra, mas fê-lo como soube, e logo assim: mais valia estares calado. E então aqui a gente refletiu: não, desculpem lá, mas o [...] tem direito a falar como as outras pessoas. Eram pequeninas coisas, mas era a maneira de estar e de ser nas coisas grandes. E não é por acaso que hoje tenho uma relação com o [...], não assim muito grande, mas pronto, mas tenho uma coisa, depois é uma questão afetiva também, ele vem, medita, cresce, a gente vai acompanhando, sem medo nenhum de lhe dizer: tu assim por aqui não vais lá. O nosso ponto de vista é este e discutíamos muita vez, pronto, e ele sabia que era por aqui e não é por acaso que muitas vezes, já não é a primeira vez que que há atitudes destas, deste género, e a gente dá o nosso contributo, com aquilo que sabe e aquilo que fez, não fazer mais aquilo que sabe. Foi aquilo que se fez? P: A Luzia foi dirigente do sindicato Têxtil da Beira Baixa. Como é que foi, quando é que foi? Luzia Lopes: Pois… Quando? Eu tenho cartões de dirigente sindical. Na altura em que eu fui dirigente sindical, já tinha passado por ser delegada sindical e membro da Comissão de Trabalhadores, já tinha feito um caminho. E até lhe vou dizer uma coisa. Numa altura em que nós, o grupo, um bocadinho avessa daqueles, criámos uma lista, que era a lista B. Isto porque havia todo um trabalho, todo um acompanhamento que a gente vinha acompanhando que não era por aí, não pode ser só por aí. Os outros também têm direito, pronto, e então um dia nasceu a lista B para concorrer com a lista A. Parece mentira, mas a diferença foram 12 votos. Era meia-noite, estavam em Unhais da Serra a dizerem ao Grupo da LOC que a lista B tinha desistido e eles ficaram: olha, então temos que votar na A. Quando nós nos apresentámos no dia das eleições, na Penteadora de Unhais, para proceder à votação, então, mas pronto, isto é um bocadinho quererem nos tirar o tapete. E aí ganhámos… por 12 votos. Passaram-se muitas coisas, mas pronto é assim, era o que havia. As pessoas também tinham se calhar necessidade de se afirmarem, é da forma como eles achavam, mas não era a minha, nem era a de muita gente. Nós temos também de ter lugar em algum lado. P: E enquanto dirigente do sindicato têxtil, que tarefas é que tinha? Luzia Lopes: Pronto, eu estava naquela altura na assembleia, ia às reuniões que faziam. Naquela altura, discutia-se muito o contrato coletivo de trabalho. Era mais nessa linha e a reflexão ia sempre na linha de defender sempre o contrato coletivo de trabalho. Pronto, agora já nada é assim. O contrato coletivo de trabalho é para todos, não é só para aquele ou para aquele, mas seria para todos. E então isso também nos dava um poder de reforçar um bocadinho a nossa luta para que todos tivessem os mesmos direitos, depois começaram a aparecer os contratos de empresa e as coisas começaram a ser diferentes. Mas nos sindicatos, normalmente, nas assembleias, nas reuniões de direção, era assim que funcionava. P: Lembra-se da greve dos mil escudos? Participou? Luzia Lopes: Perfeitamente. P: Como é que foi? Luzia Lopes: Ainda hoje tenho uma coisinha de louça que eles nos deram, um dia que fizemos… Passado quantos anos? Aqui neste sítio, uma lembrançazinha. Pois foi, e mais uma vez a ação da LOC aqui esteve presente. Eu parece que estou a ver a olhos vistos o [...], que já morreu, que era na altura dirigente sindical, e estávamos lá em baixo, numa coisa que se chamava a FACEC, era um pavilhão onde a malta se encontrava, e lembro-me que chegou a malta de Unhais da Serra num autocarro, que eles ficaram bocadinho a tremer. O direito… nós queríamos os mil escudos, porque era para todos igual. Porque houve sempre diferença de homem para mulher e até nos mesmos setores. E pronto, foi um período forte. P: As Mulheres também conquistaram os mil escudos? Luzia Lopes: Sim, sim, foi igual para todos e tivemos umas semanas boas de greve, de fome, mas depois também sentimos a solidariedade vir aí. Foi um marco na minha vida, pelas duas maneiras: primeiro porque provou-se que se as pessoas estiverem unidas nós conseguimos; segundo, porque os mil escudos não eram nada demais para a vida que se estava a ter; e terceiro, sentiu-se a solidariedade. Porque ninguém sozinho consegue fazer nada, mas se a gente sentir que tem outros do nosso lado e a apoiar-nos, pronto, então as coisas conseguem-se. P: Dê-me lá exemplos dessa solidariedade ... Luzia Lopes: Por exemplo, a nível do PC, vieram na altura, eles também estavam organizados, e vieram do Alentejo com material, feijão, grão, sardinha, percebe? De vários lados e depois foi distribuído pelas pessoas que mais precisavam. Mas depois também foi um incentivo para nós. Eu lembro-me quando foi das Minas da Panasqueira, quando estiveram em greve, vieram para aqui para o pelourinho, fazer greve, estavam aqui e tal, uns a dormir no chão e eu também peguei em mim e vim buscar um casal, que traziam dois filhos, levei-os a casa, dei-lhes de jantar, tomaram um banho e vim cá pô-los. Pronto, era um bocadinho assim. P: E também houve outra greve muito importante, dos 29 dias, em 1981. Luzia Lopes: Foi essa, foi a tal solidariedade. 1981, eu vou-lhe contar. Foi uma greve muito complicada, aí é que houve porrada e eu estava grávida. Eu estava grávida e achei que não me devia ir meter ao barulho lá para baixo para a Paulo de Oliveira, mas estava a ouvir. Ouvíamos nós na rádio e diziam eles: cuidado, tende cuidado que a GNR está a cercar a vila... Isto começa a ferver, eu e mais outras pessoas. Então mas aqueles tipos estão lá sem comer e tal? Então pegámos em malgas de marmelada, pão, e fomos ter Boidobra a pé, eu não sei como é que a gente conseguiu fazer isto, para dar de comer àqueles... e lembro-me que quando lá cheguei, já estava tudo... pronto. Depois o pessoal vinha sair da empresa e a malta estava cá fora para barrar: eh pá, mas depois também há aqueles que são do extremo, às vezes não precisávamos também de atirar pedras nem nada. Eu também sou contra isso. Mas eu quando cheguei lá, já vejo uma colega minha do trabalho com a cabeça a deitar sangue e há um rapaz, que também já morreu, dizia-me assim: foge daqui, que eles vêm aí atrás… Mas eu, então mas eu não fiz mal a ninguém... E a GNR vem ter comigo e diz-me assim: o que está aqui a fazer? Eu não fiz mal a ninguém! Vá já com esta senhora hospital para o hospital e venho com a minha colega, que estava a escorrer sangue para o hospital. P: Essa foi uma foi uma greve... Luzia Lopes: Foi, foi muito dura, foi muito dura, mas eu depois também fico com pena porque as pessoas ficam só nesse sítio e não continuamos a desenvolver este espírito, as pessoas ficaram com medo, alguns.... Mas foi, foi muito duro. P: Mas acha que depois dessa greve foi diferente? Luzia Lopes: Tinha que ser, tinha que ser diferente. Porque aqueles que iam trabalhar, porque eles iam para ali, foram para aquela empresa, porque havia gente a trabalhar. Ora, não é fácil a gente estar cá fora há tantos dias sem ganhar dinheiro e os outros irem trabalhar e fazerem sábados e domingos. Quer dizer, era uma revolta. Penso que mesmo para as pessoas que estavam lá a trabalhar deve também ter sido uma aprendizagem. Porque não é para se ganhar mais uns tostões que se chega a algum lado. Mas pronto, foram coisas duras. Por exemplo, nós vínhamos às 5 da manhã, para nos juntarmos aqui no sindicato, para irmos para a porta das empresas. Eu sempre disse: não quero porrada, esclareçam as pessoas. Sempre fui sem medo nenhum. Mas assisti a alguma porrada. Mas sempre fui, deixava o meu homem e os meus filhos em casa. P: Como é que seu marido… Luzia Lopes: Pois, é muito engraçado, porque... Eu também já casei com algum contrato (ri-se). Eu vinha de uma relação de cinco anos, o dia em que faço cinco anos é o dia em que o meu marido morre. De cinco anos de sofrimento, de luto, o caminho para Lisboa… Eu já tinha namorado o homem que tenho hoje, e digo assim: eu só me caso se eu puder continuar a fazer toda a minha ação, que minha ação que eu tive necessidade de parar agora neste momento. Pronto, ele nunca me impediu, quer na LOC quer no sindicato, nunca me impediu. E às vezes as nossas discussões é porque eu sou mais… como é que eu hei de dizer? Não, tu disseste que era assim, assim é que tem que ser, eu sou mais um bocadinho… porque os homens são mais um bocadinho, até se esquecem do que disseram (ri-se). Estou a falar de mais, mande-me calar... P: Não, não, não está, está ótimo. Mas diga-me uma coisa, depois dessa greve de 1981, tem sido sobretudo um período difícil, com muitas empresas a fechar. Como é que avalia esse período? Luzia Lopes: Muito desemprego... Foi muito complicado. A salvação foi a universidade. Foi muito complicado, muito desemprego, casais nas mesmas empresas, muitas lutas, na medida em que se tem capacidade para perceber que a empresa vai abaixo... não querem aguentá-la. A gente tinha noção disso e deixa-se assim por não ter compromisso e fica-se a dever muitos meses às pessoas. Quer dizer, foi terrível. Foi terrível. P: E como dirigente sindical, esteve envolvida nalgum desses processos? Luzia Lopes: Nessa altura, se calhar já não estava na União, mas nós nas reuniões aqui acompanhávamos a empresa tal: o patrão disse isto, está-nos a ameaçar.... Nós íamos acompanhando nas assembleias que íamos fazendo, estávamos sempre a par das coisas: na minha, não, pronto. Eu também me reformei com 50 anos, que é outra questão, não sermos preparadas para precaver as doenças profissionais. Nunca ninguém nos tinha falado nisso. Passado um tempo é que começaram a ver as equipas lá nas empresas. Eu era urdideira mecânica e trabalhava na bordadeira, e então a minha posição era sempre com a perna direita a carregar no pedal para a máquina andar, de maneira que eu fiz isto, fiz uma escoliose. Andei, andei até que depois, há 20 anos atrás, foi para os ossos, um problema, o micróbio das tuberculoses em vez de ir para o pulmão, foi para aqui, para o meio das vértebras e então fiquei toda coisa, desde partir uma perna a andar... E pronto, se está bem que as máquinas não estavam preparadas para cuidar dos trabalhadores, estavam preparadas para produzir, mas nós também nunca fomos alertadas para a prevenção, para o que a gente podia ir fazendo, por exemplo, sei lá, em vez de estar tanto tempo, podíamos não sei como encontrar ali uma alternativa ou por o estrado mais alto... Quer dizer, não pensávamos, nós não tínhamos capacidade para pensar, podíamos ter evitado muita coisa a nível de saúde. Eu lembro-me que na altura aquilo era frio, quando fomos para a fábrica nova, que aquilo era frio e puseram uma caldeira grande, uma virada para um lado e outra virada para o outro e que trabalhava com nafta, mas aquilo deitava um cheiro do diacho. Todos se queixavam, todos se queixavam, mas a uns fazia mais diferença do que outros já. O que é que acontece? Acontece que aquilo fazia uma dor de cabeça, porque o calor vinha diretamente para a nossa cabeça, mas assim isto não pode continuar. Depois chamámos, falámos à entidade patronal e tal: mas também não vos percebo, não há de ser do frio. Pronto calámo-nos bem caladinhos e fomos ao Ministério Trabalho: existe um aparelho na nossa fábrica que faz isto assim, assim… vira-se diretamente para nós e nós não conseguimos trabalhar. Foi lá a fiscalização e aquilo teve que ser fechado. Por outra vez, aquilo era frio, puseram-nos um radiador por cima, uns araminhos, um radiador numa… (?) assim por cima. Ai caraças, parecemos uns pitos do aviário. Andámos, andámos, isto assim não pode ser: senhor, tire lá os radiadores, porque nós não somos pitos do aviário para estarmos a chocar. Pois o que queria era pô-lo aos pés, se não quiser pôr aos pés não ponha. E então puseram-nos aos pés. Outra vez, era para fazer umas horas e tal: eu faço se puder, se não puder não faço, as outras faziam, durante o dia podiam andar calminhas, mas depois chegavam as cinco horas.... Eu com o trabalho já pronto: Não, eu não faço. Se for preciso para desenrascar um tecelão, eu fico. Mas para fazer coisa assim, não fico, pronto. O que é que aconteceu? Aconteceu que tive uma semana encostada à máquina sem trabalho e as outras a fazerem horas. Um dia, chega lá o patrão, ainda hoje é filho: veja lá se quer uma cadeira, se calhar não era pior. E não... E pronto, passa a gente por várias coisas assim, não é? Mas que nos dão aqui uma.... (ri-se) P: Então e depois de se reformar, continuou a participar no movimento sindical ou virou-se mais para a LOC? Luzia Lopes: Pronto, nos reformados, eu fiquei um bocadinho aquém, porque o problema da minha saúde foi muito complicado. Eu estive três meses e meio nos [Hospital dos ] Covões, fora o tempo em que eu estive aqui nos hospitais. Agora estou a lutar contra uma doença autoimune, sequelas da tuberculose. Continuei com um grupo de jovens na catequese, já não era uma catequese, era grupo de jovens que já tinham feito o Crisma, e na LOC. Convidaram-me muita vez para vir para os reformados, mas eu não achava muita graça. Por exemplo, estou a participar num clube sénior e a gente a aproveitar o tempo da melhor maneira, aquilo que a gente gosta de fazer, cidadania, envelhecimento ativo, informática. Agora ir só para lá para beber o chá, para… Nunca fui para os reformados. P: E na LOC, depois, que tipo de atividades é que desenvolveu? Luzia Lopes: E desenvolvemos... Então, temos o Congresso, que é de três em três anos. Há temáticas para cada ano, desses três anos, sobre a dignidade do trabalho, agora este ano o que estamos a pensar, o que se está a trabalhar é as novas tecnologias, o trabalho em casa. Ainda agora vai ser a equipa nacional sobre os prós e os contras do teletrabalho. E há sempre uma altura das reuniões que se faz a revisão de vida. Hoje já são os homens, já são os velhos, já são os filhos, já são os netos: ah… no nosso tempo não era assim. Mas agora, neste tempo, estamos aqui, que resposta é que... Já passa por aqui um bocadinho a nossa ação, porque somos já quase todos reformados, mas achamos que não somos velhos, eu às vezes digo assim lá em casa: eu tenho como velho um idoso. Porque o idoso, pela idade, mas não para, vai estar nestas coisas e tudo o mais. E, por exemplo, no próximo sábado vamos ao passeio promovido pelo grupo. O que é que nós ontem estivemos a dar, a aprender, a trabalhar, a fazer a língua gestual. Nunca tinha pensado nisto. Então e o aprender, não é bom? Não sei se é preciso nem se não, mas aprender é sempre bom. P: Quais são as responsabilidades que tem agora na LOC? Luzia Lopes: Agora não tenho nenhuma. Porque também pela idade, que muitos se reformaram e já estão em casa. Então, o que é que nós criámos? Uma equipa interparoquial, com os da Boidobra, com os do Ferro... Não deixámos parar e fizemos uma equipe Interparoquial. Eu continuo como animadora daquele grupo dos meus lados, em que é preciso convocar, é preciso chamar, é preciso dizer: olha, vamos fazer isto. Continuo a fazer um bocadinho a dinamização daquilo que me cabe a mim, no meu lado: olha, já avisaste fulana? Pronto, e outros fazem, outro é o tesoureiro, outra é a coordenadora, e pronto, vamos fazendo assim. P: E continua a participar nos encontros nacionais? Luzia Lopes: Não, só vai a equipa nacional. Vou ao Congresso, aos congressos, que são abertos a toda a gente. Só os delegados é que podem votar, mas os convidados podem participar, aí vou. Agora, participar, participar ativamente, só os delegados é que podem votar. P: Qual é a importância desses momentos, dos congressos? Luzia Lopes: É muito importante, muito importante. Para já, é um marco importante, nacional. Segundo, é um desafio à própria Igreja e ao movimento sindical. Porque se trata dos problemas dos trabalhadores, da vida dos trabalhadores. E, como trabalhadores cristãos, nós temos um papel, é diferente, mas temos que estar lá. Não somos mais, somos diferentes, vemos as coisas por este lado. Por isso são importantes, porque a gente se encontra com aquela gente toda dos outros lados e porque cada zona tem sua realidade. Embora o tema do trabalho seja a mesma coisa, mas os pontos de vista e as realidades lá podem ser diferentes dos de cá e então são muito importantes, são marcos muito importantes. P: Diga uma coisa: acha que a JOC e a LOC foram importantes para promover a participação das mulheres na vida social ? Luzia Lopes: Não tenho dúvida nenhuma. Porque então é o que eu estava a dizer, porque os sindicatos nunca se preocuparam muito com a formação das pessoas, porque uma pessoa formada da cidadania encontra onde se encaixar, naquilo onde eu possa fazer alguma coisa boa, que era mais um poder reivindicativo. E quer queiramos quer não, a mulher tem também um lugar próprio, em todos os lados, quer no movimento sindical, quer na Igreja. Há dificuldades? Há. Em aceitar? Muitas. Mas as mulheres são importantes. P: Que tipo de dificuldades e como é que os ultrapassou? Luzia Lopes: Ainda há bocado estava a contar que vinha ao sindicato e diziam: vais dar catequese? E a catequista disse-me a mesma coisa: foste ao sindicato? Porque eram coisas diferentes. As pessoas não tinham de estar, quer dizer, podíamos ser cristãos só na igreja, mas não podíamos ser no momento sindical ou na fábrica, percebe? Havia aqui uma coisa que serve... Isso foi-se esbatendo. Mas a Igreja também tem caminhado muito, para estar na... porque se não se transforma nada. Porque nem toda a gente vai à missa, nem toda a gente ouve. O padre pode explicar muito bem, mas se não aprender o fundamento das coisas eu não consigo trazer nada cá para fora. Se aquilo não mexer comigo, não transformar comigo, eu não posso dizer ao outro, como é que se faz. Pronto, há todo um caminho a percorrer. Mas eu espero que a gente… É assim, ao perfeito ninguém chega, mas não duvido que a Igreja tem um papel importante na divulgação, na formação e em defender a dignidade de quem trabalha. P: E acha que os estes movimentos específicos ligados ao mundo do trabalho são bem aceites pelo resto da igreja enquanto instituição? Luzia Lopes: Nem muito. Sabemos que temos muita estabilidade, há bispos já abertos, com uma mentalidade já aberta, que já chamam as pessoas, já reúnem com as pessoas, já querem ouvir a opinião dos movimentos operários, há bispos já abertos. Não posso dizer que o meu seja. Tentamos dar a volta ao contrário. P: Como é que dão a volta ao contrário? Luzia Lopes: É estar, não desistir, ser persistente e ser coerente. P: Queria perguntar-lhe algumas coisas sobre a questão da Memória, ou seja, tudo isto que nós estamos aqui a falar, estas histórias do antigamente, da resistência, da persistência na luta. Isto é algo que passa dos mais velhos para os mais novos no seio destes movimentos como a JOC e a LOC? Luzia Lopes: Hoje a atualidade é diferente, mas eu sinto isto mesmo até em relação aos meus filhos. Os meus filhos apanharam muito da minha ação, do meu compromisso. Os meus filhos apanharam muito e quantos são filhos de gente que fazem esta experiência saem de lá grandes militantes. Se me disser, já tenho mais dificuldades com a minha neta. Já tenho, que tem 19 anos. Isto é secundário, o que é preciso é eu estar bem. Agora, mas também não desistirem. E às vezes não conseguimos fazer pela conversa, às vezes só pelo testemunho e pelo estar com os netos. Mas eu tenho a felicidade de que os meus filhos apanharam muito da minha luta e do que sou, é engraçado. P: E, por exemplo, na catequese, na relação que tem com os mais novos, passa... Luzia Lopes: Pronto, eu nunca estive com os mais novitos, estive sempre a partir do crisma, já fazem com 15 anos e então muita revisão de vida se fez porque a própria Mensagem do Evangelho nos leva a uma revisão de vida. Eu na escola, como é que eu sou na escola? Como é que eu pratico isto na escola? Como é que eu exijo isto em casa? Esta revisão de vida levada? Eu acho que fui a pessoa mais feliz, porque de facto consegui transmitir... uns são militantes do PS... outra é professora na Universidade, todos fizeram o seu caminho e cada um está no seu, na Figueira, em Lisboa, todos por aí fora, mas é uma relação tão próxima… É uma relação tão próxima que temos um encontro marcado para Novembro, com todos os que passaram por ali. E deixe-me dizer na fábrica, onde eu trabalhei, estes anos todos, dávamo-nos bem. Mesmo que até em determinadas alturas as pessoas não me vissem bem, porque era uma mulher, mas assim... Nós estivemos aqui uma vida inteira, nós fizemos aqui a nossa vida toda, estas horas todas, e agora isto há de acabar assim. E então não é que todos os anos, já lá vão uns aninhos, nos encontramos, fazemos um almoço, alguns já foram. Há dois anos, no dia do almoço, fomos enterrar um. Pronto, encontramo-nos e olha lá... este ano, com a pandemia, não fizemos, mas a ver se a gente este ano… Já comecei a fazer.... Sabe bem, vêm os que estão lá longe. Valorizar estes momentos, porque nós temos ali a nossa vida, fomos para as garotas. E nunca tivemos tempo de perceber, quem tu és. Então, agora nesta idade vamos-mos encontrar para fazer um bocadinho um convívio. É lindo, rezamos missa de manhã pelos que já partiram e fazemos um almoço. P: São tudo pessoas muito ligadas à Igreja? Luzia Lopes: Não, quem não quer ir à missa não vai. Respeitamos cada um e o seu caminho. Agora, a verdade é que nós trabalhámos uma vida inteira todos juntos. Então, não nos há de ligar alguma coisa, nem que seja um convívio para… é interessante. E dizia-se: um dia que tu morreres, calma aí que ainda é cedo, que aquilo que acaba, calma aí que ainda é cedo, já estão todos muito em baixo, velhinhos e tal, temos outros mais novos, que já aparecem depois. Mas isto só para dizer que colhe-se o que semeia. Eu podia não ter a ideia. E até o patrão vai, o filho, o outro já morreu. O [...], quer queiramos, quer não, o senhor fez o caminho connosco. De outra maneira, mas fez. E vai aos almoços. P: E diga-me uma coisa, há essa fraternidade entre os colegas de fábrica, e acha que os movimentos, como o movimento sindical ou como a LOC, criam uma identificação mais alargada com os trabalhadores de todo o país ou até de todo o mundo? Luzia Lopes: A LOC está organizada a nível mundial, diocesana, nacional, internacional e mundial. Isso pronto, a nível da LOC, isso faz. Temos muitos militantes da LOC, a nível nacional, que estiveram na central sindical. Muitos. Com algumas dificuldades, mas não desistiram de estar lá. Porque, pronto, eu vejo de uma maneira diferente, mas eu estou cá. Eu quero acreditar que demos um contributo e estamos a dar um contributo aos que estão e aos que ainda possam vir. É verdade que a idade e as maleitas das pessoas nos vão impedindo da dinâmica ser maior, mas quero acreditar que demos e ainda continuamos a dar um contributo para a sociedade. P: Qual é que acha que é o futuro de movimentos como o movimento sindical ou como a LOC ou a JOC? Luzia Lopes: O movimento sindical terá sempre... Pronto, o movimento, a JOC, pronto é mais a malta… Hoje, é assim, naquela altura que a gente foi da JOC trabalhava na fábrica, hoje a malta está na universidade, tem outras janelas. O movimento sindical tem sempre o seu espaço. Agora que terá também que ver um bocadinho que as coisas hoje não é só para assinar papel, é preciso esta formação, de pessoa, de cidadã. Porque às vezes, uma coisa é dizer e depois não somos coerentes com aquilo que dizemos, não fazemos o que dizemos. Isso deita por baixo o acreditar em alguma coisa. E nós já nos debatíamos aqui há uns anos sobre isso, que era, nós muitas vezes podemo-nos fazer valer pela nossa maneira de ser, às vezes não é preciso falar muito. Eu agora conheço pouco o movimento sindical, nem sei quem é a presidente agora, não sei se é. Sei que é uma menina. Mas eu acho que todos têm o seu lugar e isto há-de ir para a frente, porque todos têm o seu lugar, tem que ser, porque se os patrões se organizam numa determinada matéria, os trabalhadores têm de fazer a mesma coisa. Tem que se investir na formação em primeiro lugar, é importante. Porque se as pessoas estiverem esclarecidas, são capazes de lutar por aquilo que querem e por aquilo que têm direito. P: E a LOC ou os movimentos cristãos ligados ao trabalho, qual é que acha que é o futuro desses movimentos? Luzia Lopes: A JOC tem alguma dificuldade, há grupinhos dispersos. É porque hoje, se eu lhe disser que a mais nova que está na LOC aqui no meu grupo tem 48 anos, de resto é tudo para frente. E temos alguma dificuldade em que as pessoas adiram, porque gostam mais do deixa andar e... mas já nas fábricas era a mesma coisa, porque eles não queriam lutar, eu na minha fábrica não tive grandes problemas, porque era uma fábrica pequena, mas nas grandes fábricas sabemos, se vier para eles também vem para nós. Esta coisa de se encostarem um bocadinho sempre aconteceu. Com os nossos jovens, estou sentir alguma dificuldade, porque sempre cá houve equipas da JOC, mas depois falta de animadores, a falta da Igreja também abrir espaço para eles. Porque não podem ser só ao nível da Comunidade só, têm de se ouvir. Sinto que a JOC está com alguma dificuldade, a LOC também, com a nossa idade já temos alguma dificuldade em... Ainda existe isso? Sim, enquanto formos vivos, mas sentimos que temos o nosso espaço próprio e é pena. Mas é o que eu digo, a malta vai para a universidade, tem outros caminhos, outras propostas, às vezes não são as mais corretas, mas pronto. E a gente sabe, não é? P: Queria perguntar-lhe se esteve em alguma iniciativa específica relacionada especificamente com a emancipação feminina ou lutas pelo igualdade salarial, em torno da mulher trabalhadora. Luzia Lopes: Uma vez, uma vez estavam a preparar, acho que já contei esta história, estavam a preparar o Dia da Mulher e estávamos lá em baixo, numa sala. E nós estávamos a discutir o trabalho que tínhamos lá para fazer e começaram a perceber que não havia gente para aprovar aquilo que nos estavam ali a pôr. E, então, começaram a chegar algumas mulheres. Sem nunca cá estarem. E eu perguntei: olha, então de onde é que vem? Foi o meu homem que me telefonou, que estava no Partido... P: E qual é que era a questão? O que é que estavam a colocar que vocês não queriam? Luzia Lopes: Pronto? Agora, também, assim, concretamente não me lembro o quê, mas sei que nós participámos, fazíamos parte de um grupo de trabalho na União de Sindicatos sobre as questões da mulher, mas éramos coordenadas pelo homem, que não nos entendia. Queria impor a letra, mas espera aí, pronto e aquilo e pronto acabou por desistir e aqui acontecia a mesma coisa, pronto, porque pensam que as mulheres eram mais para encherem o para compor o ramo. Mas passaram também por aí grandes mulheres. No meu tempo de jovem, aquela a [...], aquela mulher… P: O que é que se lembra dela? Luzia Lopes: Muito alta, ela foi dirigente sindical antes do 25 de Abril, mas foi também dirigente livre da JOC e da LOC. Ela percorria as aldeias, a fazer o seu trabalho de ação para são Romão, para Loriga, Gouveia, para Seia. Ela fazia este trabalho de ir ao encontro. Hoje a gente toca-se, se vêm, vêm, se não vêm... mas as pessoas iam. As pessoas chamavam-se nesta altura, e chamam-se ainda, dirigentes livres, as pessoas são dirigentes mas são livres e então não têm rendimento. Vão para Gouveia, comem lá em casa da [...] assim. Lembro-me muito bem do trabalho que esta mulher que ela fazia. P: Mas ela dirigiu algum grupo de trabalho em que tivesse participado, Luzia? Luzia Lopes: Eu já conheci esta mulher na LOC, quando fui para LOC. Já lá estava, já era dirigente sindical. P: E trabalhou com ela diretamente? Luzia Lopes: Na fábrica não. Nos movimentos operários, em termos de LOC, ela era mais velha e eu mais nova. -
2 de junho de 2021
Casimiro dos Santos
P: Onde é que nasceu? Casimiro dos Santos: Nasci no Concelho da Pampilhosa da Serra, distrito de Coimbra. P: Em que ano? Casimiro dos Santos: 1952. P: E estudou lá? Casimiro dos Santos: Estudei lá até acabar a chamada escola primária. Depois fui estudar para Figueira da Foz e Coimbra, que era onde tínhamos o secundário. E depois de Coimbra ainda estive em Lisboa, na universidade, acabei a universidade em Lisboa, em 1980. Foi quando terminei e já tinha trabalhado, tinha acabado o curso como estudante trabalhador. Mas, entretanto, antes de acabar o curso, meteu-se o serviço militar. Portanto, como nota biográfica assim mais pormenorizada, estive na tropa dois anos, 1974 e 1975. Apanhei precisamente o 25 de Abril. P: E trabalhou no quê antes? Casimiro dos Santos: Antes de ser professor, trabalhei na Segurança Social como funcionário administrativo. P: E depois foi toda a vida professor? Casimiro dos Santos: Depois fui toda a vida, professor, de 1981 até há dois anos atrás. P: Qual era a área? Casimiro dos Santos: História, fiz na faculdade de Letras de Lisboa P: E trabalhou, deu aulas sempre aqui nesta região? Casimiro dos Santos: Na margem sul do Tejo também. Almada, Seixal, Setúbal, Moita. Estive aí uns 10 anos e depois voltei aqui para a região da Serra e acabei aqui. Depois estive sempre aqui, no distrito de Castelo Branco. P: E os seus pais, eram também eram daqui desta região? Casimiro dos Santos: Sim, o meu pai era mineiro na Panasqueira, na Pampilhosa da Serra. Faz ali uma fronteira e está na órbita das Minas da Panasqueira, pelo menos aquelas duas freguesias do norte da Pampilhosa da Serra, de maneira que grande parte da população daquelas freguesias trabalhava nas Minas, daí a pertença àquele universo operário. Operário e camponês ao mesmo tempo. P: E a sua mãe também? Casimiro dos Santos: A minha mãe era camponesa e doméstica. Tínhamos propriedades, tínhamos aquela dupla pertença à terra, enquanto pequenos proprietários rurais, mas ao mesmo tempo também ao mundo do trabalho das Minas, enquanto que o meu pai era operário das Minas. Portanto, tínhamos ali uma dupla pertença, digamos assim, não em termos de classe social, pequenos proprietários e operários ao mesmo tempo, aquela duplicidade de ser proprietário de terrenos, mas pequenos proprietários. E, ao mesmo tempo, assalariado, o meu pai. P: E tem filhos? Casimiro dos Santos: Tenho dois filhos, um filho e uma filha. P: E a sua mulher? Casimiro dos Santos: A minha mulher esteve no ensino. Ela é engenheira técnica agrária, portanto faz tempo no ensino e faz trabalhos por conta própria. P: Os seus filhos também seguiram para o ensino superior? Casimiro dos Santos: A minha filha é enfermeira. Está a acabar a especialidade. E o meu filho e técnico de ambiente, está a trabalhar na Câmara de Pampilhosa da Serra, precisamente. P: Professa alguma religião? É católico? Casimiro dos Santos: Só agnóstico. P: E o quanto à filiação partidária? Casimiro dos Santos: Sou militante do PCP P: Em relação à filiação associativa? Casimiro dos Santos: Fui sempre sindicalizado, fui delegado sindical, quase sempre, toda a minha vida profissional. E quando estive em Lisboa, havia um movimento associativo ligado aos concelhos da Beira, Serra, Arganil, Pampilhosa até o Sabugal e a Covilhã também. As casas do concelho agregavam as pessoas que tinham ido para Lisboa desde meados do século, quando se dá aquele grande êxodo rural. Na Pampilhosa da Serra, há aldeias que quase se despovoaram nos anos 40/50 e então associaram-se em estruturas que estavam, mantinham a ligação à aldeia de origem, e em Lisboa tinham a casa do Concelho. Mas mesmo assim, além da casa do Concelho, ainda tinham as chamadas comissões de melhoramentos, ou seja, eram aldeias muito pobres, normalmente, por exemplo, na minha aldeia, nós tínhamos a eletricidade que era produzida a poucos quilómetros, numa barragem de Santa Luzia que abastecia as Minas da Panasqueira e a indústria da Covilhã e a aldeia não tinha eletricidade, até 1970. Está a ver, portanto, isso fez com que os moradores de Lisboa, das aldeias que estavam em Lisboa a trabalhar, ao verem a distância, a falta de vias de comunicação, o fraco desenvolvimento, o atraso no tempo do Salazar, organizaram-se nas Casas do Concelho. Claro que o regime procurou mais ou menos meter a mão e de alguma maneira, condicionar. Havia alguns que até eram da União Nacional. Alguns dirigentes dessas casas do Concelho. Portanto, o regime aproveitava isso, introduzia-se lá dentro. Mas mesmo assim, serviu perfeitamente para criar um algum… a partir do sentimento de pertença às aldeias e da consciência de que havia um atraso muito grande nesta interioridade destes concelhos, fez com que este associativismo criasse de alguma maneira um espírito comunitário. E conseguiram-se alguns melhoramentos, muitas vezes junto das câmaras municipais, junto dos ministérios. Tinham alguma influência. P: E o Casimiro desenvolveu atividades nesse movimento? Casimiro dos Santos: Eu, quando estive em Lisboa, a partir dos 18 anos, pertencia a uma das comissões de melhoramentos da minha aldeia, precisamente. E, portanto, fazíamos festas, tanto na aldeia como na cidade, em Lisboa. E essa era uma maneira de conseguir agregar a população para festas, convívios, etc. E, ao mesmo tempo, procurávamos junto da autarquia, isto já depois do 25 de Abril, já estávamos numa fase posterior, conseguíamos ter alguma influência como movimento associativo, como comissões, algumas até são instituições de utilidade pública. Conseguíamos ter alguma influência junto das autarquias, como comissões de moradores. Entretanto, normalmente funcionavam com sede em Lisboa e uma delegação nas aldeias. Outras vezes era o contrário. A partir de 25 de Abril transformou-se a coisa, a sede já era nas aldeias, porque já havia alguma iniciativa nas próprias localidades e Lisboa era uma delegação. Ainda hoje se faz esse convívio, entre a população que está lá e a população que mora ainda nas aldeias, muito poucos, só os idosos. Mas esse sentimento de pertença ainda está lá. Por isso é que muitos originários dessas aldeias mantêm a casita na aldeia, mantêm aquilo arranjadinho e tal, e continuam a vir passar as férias nas aldeias. Isso é muito interessante, porque esse sentimento de pertença não se apagou. P: Acha que essa propensão para a participação associativa é uma coisa de família? Ou seja, os seus pais já tinham alguma participação nestes movimentos? Casimiro dos Santos: Sim, não é só uma coisa de família, é uma tendência de ver necessidade e as populações se associarem de alguma maneira. Mas o meu pai já era sócio da Comissão, participava nas atividades, etecetera. P: E em greves, lutas no âmbito das Minas da Panasqueira, também participava? Casimiro dos Santos: O meu pai trabalhou lá até precisamente ao 25 de Abril. O meu pai tem uma longa história, porque ele foi trabalhar ainda no início dos anos 40. Ele foi trabalhar para as minas apenas um jovem ainda, quase uma criança. Estava a sair da adolescência quando foi trabalhar para lá para a empresa. Entretanto, a empresa teve... Em 1939 houve uma greve terrível, a greve do carbureto, em que os mineiros tiveram que fazer uma greve porque eram obrigados a providenciar eles próprios, às suas expensas, a iluminação lá dentro, através do carbureto. Tinham uma lâmpada que era o gasômetro, que funcionava a gás acetileno. É água, o gás acetileno e eles tinham aquela chama, ainda não havia as lâmpadas elétricas. É, e então eles tinham que comprar o carbureto, tal como levavam o farnel lá para dentro. Em 1939, muitos mineiros da Panasqueira tinham vindo de Espanha. Alguns estavam lá imigrantes, eram mineiros portugueses, por exemplo, nas Astúrias, nas Minas de carvão, etecetera. Portanto, há ali um grupo de, eu diria, pessoas já com uma consciência social e consciência de classe mais elevada, e em 39 fizeram uma greve que os levou a conseguirem uma vitória. A greve do carbureto. Depois disso, muitos foram identificados, muitos foram presos. E foram despedidos e as lutas lá ficaram muito esmorecidas. Até 1945, mesmo no final da guerra. Entretanto, a empresa teve imensos lucros e aquele mundo do Volfrâmio desenvolveu muito, houve fortunas que se fizeram. Houve pessoas, camponeses, mineiros, que fizeram fortunas ou com o contrabando do volfrâmio, a vender volfrâmio aos alemães que estavam aí. E, portanto, aquela era uma pequena cidade, quase, as Minas da Panasqueira. Despovoou-se no fim da guerra, quando a empresa fechou, uma vez que as vendas foram abaixo, mas elas tinham estado estado em alta. E o meu pai nessa altura foi trabalhar para Lisboa, onde tínhamos lá parentes e tal, e foi trabalhar para Almada, para uma fábrica de cortiça, daquelas fábricas da Cova da Piedade. Uma vez, estive lá com ele, no sítio, já a fábrica estava abandonada, aquelas fábricas da cortiça. Quando a mina reabre em 1947, ele regressa cá e continuou o trabalho ali, até se reformar em 1970. Portanto, aquele tempo das lutas ele não apanhou, ou antes, tenho impressão de que ainda apanhou ali qualquer coisita em jovem, em 39, e quando foi o 25 de Abril e as lutas se acendem lá, portanto, ele já não está na empresa. Portanto, ele não apanhou esse tempo, mas foi extremamente explorado. Foi uma exploração terrível, 40 anos. P: E na sua infância, vivia nesse universo? Casimiro dos Santos: Sim, sim. P: Havia alguma associação, alguma instituição, em que tenha participado? Casimiro dos Santos: Tudo o que era o mundo operário estava reprimido, portanto só em setenta é que houve alguma liberdade sindical, era uma repressão muito grande, as coletividades que existiam nas aldeias ou eram as casas do povo, ou as tais comissões de melhoramentos das aldeias da Pampilhosa da Serra, e nas aldeias do concelho da Covilhã e no Fundão havia já algumas associações, os ranchos folclóricos, os grupos etnográficos, que tinham alguma expressão e normalmente eram as juntas de freguesia que promoviam essas coisas. Primeiro ligados ao regime. Aquele movimento do António Ferro, dos ranchos folclóricos e tal, toda aquela história do folclore. E os concursos das aldeias mais portuguesas, etc. Portanto, era nesse sentido tudo controlado pelo regime. Normalmente, as outras, da Pampilhosa da Serra, o tal sentimento da ligação a Lisboa. Curiosamente, a emigração era muito para Lisboa e pouco para Coimbra e quase nada para o Porto. Era mais para a zona de Lisboa, para as fábricas de cortiça. Muitos, muitos vão trabalhar para as fábricas de cortiça. Eu tive imensos familiares que foram para lá, tanto do lado da minha mãe como do meu pai. Muita gente da Beira, e depois alguns vão para a indústria hoteleira, ainda hoje têm restaurantes, tabernas, etc., na Cova da Piedade, que é gente daqui desta Serra, da Pampilhosa, de Arganil, Tábua, desta área aqui. P: Então vamos detalhar a sua experiência própria enquanto ativista antes do 25 de Abril. Para além dessa comissão de melhoramentos, ainda não teve participação sindical. Ainda estava a estudar? Ou seja, a sua participação associativa foi mais no pós 25 de Abril… Casimiro dos Santos: Sim, mas pronto, tínhamos as associações de estudantes, andava ali a UEC (União dos Estudantes Comunistas), isto na faculdade de Letras de Lisboa, quando já havia alguma coisita, semiclandestina. Já havia uma coisa no primeiro de Maio, por exemplo. Recordo-me bem que antes do 25 de Abril, eu estava lá em Lisboa, e festejava-se o primeiro de Maio. Havia aqueles movimentos estudantis contra a guerra colonial, etc. Manifestações que, na Praça do Chile, acabavam dispersas à bastonada e com cães. Assim como o primeiro de maio, normalmente participávamos aí e cheguei a ser uma vez levado para ir para ser identificado no governo civil. Fui apanhado lá no Martim Moniz, não consegui fugir e pirar-me, porque eu morava no Castelo de São Jorge, na casa de uma tia minha. E, portanto, fui apanhado a fugir numa das ruas, eu e outro. Lá fomos levados para o governo civil e identificados. E pronto, foi ali assim uma tarde/noite. P: Nesse período em que estava a estudar, fazia parte de alguma daquelas associações, tipo os cineclubes, que naquela altura surgiram, as cooperativas editorais? Casimiro dos Santos: Não cheguei a fazer parte, mas ia assistir a muitas coisas. Na faculdade havia Associação de Estudantes e era só através da Associação de Estudantes. Ainda cheguei a ser convidado para o orfeão, porque eu já tinha participado. Ainda fui lá e tal, mas depois não tinha tempo para essas coisas, porque eu o tempo livre aproveitava para fazer uns biscates, trabalhar e tal. E por isso a minha dupla pertença também como estudante trabalhador, quase sempre. No tempo anterior, eu aproveitava para trabalhar e trabalhei na Feira Popular. Havia sempre… para nos dar uns trocos, uns trabalhinhos extra que eu fazia, na Feira Popular .... Trabalhei numa fábrica de engarrafamento de vinhos, e de gins, etc. onde é hoje o Parque das Nações. Havia ali umas fábricas de vinhos, que eram comercializados, engarrafados e tal. Esses armazéns já não existem, que era o Caldeira Lds, e o outro grande rival, logo a seguir. Portanto, eu trabalhava nas férias, quase sempre ali, portanto, não tinha muito tempo para participar, mas ia assistir sempre que podia a coisas do cineclube, etc. A educação política passava muito por ver filmes e participar em debates sobre os próprios filmes, e participava sempre que podia. P: Para as associações de estudantes, não teve tempo? Casimiro dos Santos: Não, não tinha tempo. Eu não tinha tempo para estar na Associação de Estudantes. P: E no contexto de trabalho participou em alguma? Casimiro dos Santos: No contexto trabalhando também não, não, aí não estava. Estava mais na parte cultural das aldeias, etecetera, aí estava mais. No mundo estudantil, eu estava, trabalhando, apoiava, assistia, mas não me envolvia muito, mas estava ali assim, numa situação. Eu só estive dois anos antes do 25 de Abril, antes de ser mobilizado para a tropa, no início de 74. Portanto, fiz ali dois anos do curso de Filosofia e mudei para História depois. Quando vim da tropa. P: E essa participação nesse âmbito das comissões de melhoramentos começou quando? Casimiro dos Santos: Isso só com os meus 18 anos, um bocadinho antes do 25 de Abril, logo que eu fui para lá. Através dos conterrâneos, quando chego. Eu era dirigente da Casa do Concelho e, pronto, isso foi por influência familiar e por querer de alguma maneira participar naquela ideia da pertença à aldeia, ao mundo rural, ao mundo da Pampilhosa da Serra. P: Sentiu algum em algum momento algum episódio de repressão ou censura dessa atividade associativa? Casimiro dos Santos: Não, porque muitos deles eram da União Nacional. Eles eram da União Nacional, quase todos os dirigentes da casa do Concelho da Pampilhosa. O Marcelo Caetano chegou a ir lá fazer uma visita. Mas havia um trabalho subterrâneo, que os mais novos de nós fazíamos lá, de denúncia daquele mundo opressivo, que era a barragem de Santa Luzia produzir eletricidade e as aldeias não terem, etecetera. O Marcelo Caetano pertencia. Os pais dele eram do concelho da Pampilhosa da Serra e, portanto, ele chegava a vir lá fazer visitas oficiais, uma vez ou duas durante o tempo em que ele esteve como primeiro-ministro e ia fazendo promessas. Também lhe devia doer um bocado ver o concelho dele tão atrás em relação aos outros vizinhos e ver as aldeias com os fios da eletricidade que vinham para as fábricas da Covilhã e as aldeias viverem com a candeia de azeite ou petróleo. E, portanto, as aldeias começaram a ser eletrificadas precisamente no consulado de Marcelo Caetano. Ele fez as promessas e tal e com aquelas influências todas. Porque a coisa era quase feudal. A ditadura tinha o seu quê de feudalismo e aí a personalidade do Marcelo Caetano em relação a isso era, portanto, de ligação e de influência através das pessoas. Claro que muitos eram da União Nacional, mas elas estavam interessadas em ter algum progresso na terra, não só pelos lindos olhos dos camponeses, mas porque facilitava a comunicação, o comércio e, se calhar, a criação de mais valias. Até porque havia as resinas, havia as madeiras, começava o eucalipto e, portanto, as vias de comunicação eram essenciais, assim como a energia, portanto, não era pelos lindos olhos ou porque queriam desenvolver a terra. Queriam era fazer negócios com base nos produtos endógenos que lá tinham. As barragens, a energia elétrica, etc., era importante para eles. P: No período revolucionário houve vários movimentos de auto-organização, justamente para garantir saneamento básico. Isso aconteceu lá? Casimiro dos Santos: Ai já são as autarquias eleitas democraticamente. P: E essa Comissão de Melhoramentos ? Casimiro dos Santos: Essa comissão continuou, continua a existir, ainda existe, eu fui presidente da Assembleia Geral até ao último mandato lá. P: E a Comissão envolveu-se nalguns... Casimiro dos Santos: A Comissão envolveu-se e ainda hoje trabalha, vamos lá, quase como comissão de moradores. Trabalha com a autarquia, com a freguesia, com a Junta de Freguesia. P: Que é que se fez assim de importante nessa altura? Casimiro dos Santos: Isso foi muito importante. O poder autárquico fez com que as coisas básicas fossem construídas. O saneamento básico, a eletrificação, as estradinhas, todas alcatroadas e em bom estado. Portanto, as infraestruturas básicas estão lá: água, saneamento, etc. Embora a água não seja de grande qualidade, agora venderam aquilo uma empresa intermunicipal que é AP [Águas de Portugal]. Portanto, as câmaras desligaram-se, mas não foi só a Pampilhosa, foram muitas outras. Portanto, o negócio da água está agora a chegar lá. E muitas vezes foram as populações que, organizadas, elas próprias, fizeram a captação da água. Isto antes do 25 de Abril. Foi o caso de algumas aldeias que eu conheço, fizeram uma mina, fizeram uma vala, por iniciativa deles próprios, porque havia doenças endémicas como, por exemplo, tifo, por causa de não haver saneamento. Isso é que levou a que as próprias populações se organizassem. A população não era salazarista, nem nada, portanto, muito religiosos e tal. O Salazar é um Santo. Toda aquela propaganda baseada na religião católica. isso foi no país todo. Na zona de influência do operário e das Minas, a Igreja Católica não tinha, não tinha tanta audiência. Até que um dia chega lá um padre que vai beber uns copos para a taberna dos operários das minas e consegue levá-los até à Igreja. Faziam assim, tudo dependia da estratégia dos priores lá das aldeias, mas a igreja católica tinha uma influência extraordinária, enorme. Até porque era através da Igreja Católica que muitos jovens conseguiam ir estudar. Foi o meu caso. Eu fui estudar para o seminário de Coimbra, andei lá alguns anos e aquilo ao mesmo tempo também serviu pela negativa. Quer dizer, aquilo que se apanha de um lado, mas que depois também se reagem, não é, também nos forma. Não é só o que é bom que nos forma, aquilo que é mau também nos forma. No aspeto da rejeição, e ao ver as desigualdades com que a Igreja estava complacente, com a guerra colonial, etecetera. Portanto, a igreja era um apoio grande do regime, era um esteio muito forte do regime e isso ao mesmo tempo, fazia com que tanto o mundo operário como o mundo estudantil fizesse a nega ao regime e, portanto, o apoio ia diminuindo cada vez mais. Já naquela última fase do Marcelo Caetano, quando a guerra colonial se tornou um beco sem saída. Foi isso que acabou por levar ao 25 de abril. P: E movimentos como a JOC ou a LOC? Casimiro dos Santos: Não tinham expressão, nem havia Mocidade Portuguesa nem nada disso. Só na sede do concelho, aí é que havia qualquer coisa. Isso não tinha lá, não tinha expressão nenhuma, porque a população estava-se borrifando para essas coisas. Lá iam cumprindo o essencial: ir à missa ao sábado, mas os padres não eram bem vistos pelos operários. P: Quando é que começa efetivamente a sua participação sindical? Foi durante o período revolucionário? Casimiro dos Santos: Antes, quando trabalhava na segurança social, no sindicato da função pública. P: Isso foi quando? Casimiro dos Santos: Depois do 25 de Abril, ali na década de 70. E eu fiz a tropa em 74-75 e quando saí da tropa comecei a trabalhar e a estudar ao mesmo tempo. Eu trabalhava na Avenida dos Estados Unidos, em Lisboa, e ia à tarde para as aulas, à tardinha. Depois de sair do trabalho. Era delegado sindical na própria função pública. P: Mas foi já foi posteriormente àquele período mais exuberante do pós-revolução? Casimiro dos Santos: Estávamos já depois do 25 de Novembro. Eu saí da tropa sete dias depois do 25 de Novembro. Portanto, estive no 25 de Abril, fui para lá em Janeiro de 74, e aqui apanhei estes dois anos do PREC até ao 25 Novembro. Uma semana depois do 25 de Novembro, eles resolveram mandar-me embora, uma leva enorme de gente que estava lá, se calhar a estragar o ambiente que eles queriam ali. E foi aí que eu saí e disse: vou ter que ir trabalhar, não é? E fui trabalhar para a segurança social na altura, depois daquela parte da segurança social, transforma-se na naquilo que é a ARS. E eu fiz ali ainda uns quatro anos. Até acabar o curso, depois concorri e vim para o ensino, até agora. P: Nesse período de quatro anos em que esteve como delegado sindical na função pública, houve algum movimento importante? Casimiro dos Santos: Houve greves, algumas, por aumento de salários. Estávamos ali em 78, 79, 80… Houve uma ou duas greves com alguma expressão... P: Tem alguma memória marcante? Casimiro dos Santos: Recordo-me de uma greve por causa da integração da segurança social na função pública. Havia ali uma perda de regalias e, portanto, lutou-se pela manutenção de algumas das conquistas que os trabalhadores tinham feito. Mas depois a coisa lá se resolveu através do diálogo na altura do governo do PS, o Mário Soares, o primeiro e o segundo. Portanto, naquela fase transitória, 76, 77, 78.Por aí assim. Mas eu estava ainda a estudar e, portanto, às vezes desdobrava-me entre a faculdade e o trabalho. P: Depois começou a dar aulas, quando acabou o curso? Casimiro dos Santos: Sim P: Primeiro na margem sul do Tejo? Casimiro dos Santos: Sim, os primeiros 10 anos. P: E nessa altura foi delegado sindical do Sindicato de Professores? Casimiro dos Santos: Já estava lá, também, sim. P: Como é que foi? Quais foram as principais lutas e reivindicações desse período em que participou? Casimiro dos Santos: Aqueles movimentos dos professores, o estatuto da carreira do centro, principalmente aí. Mas recordo-me de que a principal foi o estatuto da carreira docente. Foi uma luta muito, muito comprida e muito dura. E continua, isso ainda não está resolvido. Resolveu-se, mas depois o estatuto foi sendo alterado. Foi sendo adulterado e ainda hoje, como se sabe. P: E para além de ser delegado sindical, teve outras funções, outras responsabilidades na estrutura sindical? Casimiro dos Santos: Não, sempre delegado sindical. P: Quando veio para cá também? Casimiro dos Santos: Aqui também. Eu não dava tanta importância ao sindicalismo na altura. Dava uma importância bastante grande, mas estava mais virado para a escola propriamente dita. Portanto, nunca quis ser dirigente sindical. Várias vezes fui convidado para listas para as direções sindicais, mas fiquei sempre como delegado sindical. Nunca quis participar num nível mais elevado. P: Mas dessa sua participação, qual é a perspetiva que tem sobre, por exemplo, o processo de construção da CGTP e o papel da CGTP na construção da democracia portuguesa? Casimiro dos Santos: Foi extremamente importante. A fundação da CGTP, em 1970, foi um momento importante no sindicalismo português, na liberdade sindical, que não existia até aí, mas que teve uma importância extraordinária com a fundação da CGTP. Recordo-me perfeitamente e acompanhei bem. Aquele início, já depois do 25 de Abril, a unidade, a unicidade, todo aquele debate que houve em torno, depois acabou por dar mau resultado, porque se criou a UGT dentro daquilo que foi um divisionismo. Na minha opinião, não é? Eu acompanhei isso sempre, esse processo. A adesão do sindicato dos professores. Portanto, depois criou-se, criaram-se muito sindicatos de professores, como sabem. Só aqui na região e nas escolas estão presentes uns quatro ou cinco, portanto. Esta divisão da classe não é benéfica e acaba por dividir os professores, às vezes em situações que não são fundamentais, outras vezes lutam por questiúnculas. Quando é mais importante, às vezes alguns não aderem às lutas mais importantes. Mas, portanto, aquilo que eu acho é que esta divisão sindical só favorece o patronato, digamos assim, neste caso o Ministério da Educação, que acaba por impor a sua política educativa sempre, seja qual for o poder. Daqueles dois partidos que lideram o poder, o bloco central, digamos assim. P: Outra questão mais transversal, acha que o movimento sindical foi importante para a dignificação das mulheres? Casimiro dos Santos: Houve demasiados constrangimentos à participação das mulheres. A questão das mulheres no mundo do trabalho, eu creio que ainda há uma mudança muito grande a fazer nas mentalidades. As mentalidades evoluem mais lentamente. E essa mudança das mentalidades, e se calhar fazer-se a nível tanto dos dirigentes sindicais como das próprias mulheres, que às vezes se retraem e não participam tanto como deviam participar. É um caminho muito grande para percorrer. Está no papel e o Estado cumpre. Mas no mundo do trabalho, muitas vezes as mulheres têm receio de participar. Eu li coisas incríveis sobre… aqui assim não, no mundo operário, das fábricas, a questão do assédio, etc., e o retraimento das próprias mulheres na participação na luta. Apesar de que quando as mulheres lutam, lutam, se calhar com mais força do que os homens. Elas iam para aqui, para o Pelourinho, com as crianças às vezes antes dos homens. Aqui elas são terríveis. Nas Minas da Panasqueira, por exemplo - e eu também conheço mais ou menos bem esse universo -, as mulheres, pela questão da maternidade, não podem trabalhar dentro das minas, isso foi uma conquista que muitas encaram com uma certa duplicidade: então a gente não pode lá trabalhar? Mas tínhamos direito ao trabalho... Mas isto passou-se na Inglaterra, quando os primeiros sindicatos lutaram para que as mulheres não trabalhassem. Não era por causa de uma questão do salário, o trabalho das mulheres nas minas era dos trabalhos mais perigosos e a radiação, isso provocava, por vezes... E conseguiu-se que os patrões não contratassem mulheres. No entanto, nas minas elas trabalhavam no exterior, estavam até em trabalhos mais perigosos, até onde apanhavam mais a silicose, que é a doença dos mineiros aqui na Panasqueira. Na lavaria, na correia, o trabalho da correia é dos meios mais doentios. A correia é um tapete rolante de borracha, correia, chamava a correia o nome comum. E tanto havia mulheres como crianças a trabalhar, umas das outras. Era mais um trabalho para miúdos e miúdas e mulheres do que para os adultos. Como elas estavam proibidas de ir lá dentro por causa das condições de trabalho, que não estava proibido mesmo durante o regime, durante a ditadura, trabalhavam fora. E em que consiste esse trabalho? Vai o minério em bruto de dentro da mina para fora, naquele tapete rolante, e as crianças e as mulheres estavam ali a escolher. Mas a poeira estava a entrar nos pulmões e portanto muitas mulheres chegavam aos 30 anos e já tinham silicose. Aquele trabalho era um suplemento. Assim, como aqui nas fábricas, elas também não faziam trabalhos em casa, que eram trabalhos de… eram as pegadoras de fios e certos trabalhos que se podia fazer em casa, é para aperfeiçoar o pano, que é também um trabalho muito perigoso porque elas acabavam levando com a poeira lá. Também apanhavam doenças respiratórias. A partir do momento em que há liberdade sindical, os sindicatos começam a falar disso e as mulheres começam a entrar nas direções e só aí é que começam a ganhar uma certa consciência. E havia coisas incríveis... as mulheres não descontavam aquele trabalho que elas faziam para as fábricas, não se descontava para a segurança social, portanto, elas acabavam por não ter reforma nenhuma depois de trabalharem dezenas de anos. Era o domestic system em pleno século XX ainda a funcionar, tal como hoje o teletrabalho. Eu comparo o domestic system do século XVIII ao teletrabalho atual, é a mesma coisa. Nós estamos a regredir em certos aspetos. E aqui as mulheres eram extremamente exploradas. Mas elas tinham consciência da exploração. E muitas vezes é que as condições subjetivas das próprias mulheres e dos homens dirigentes dos sindicatos, essas condições não permitiam que elas... e que ainda hoje isso acontece, que elas participem em pé de igualdade com os homens. No papel sim, mas na prática não. P: E, por exemplo, na associação de melhoramento, elas participavam? Casimiro dos Santos: Participavam naqueles trabalhos femininos, eram elas que estavam lá na cozinha a fazer a comidinha. Hoje já não se verifica, algumas já são dirigentes, mas geralmente, era sempre lá nos trabalhos mais tipicamente “femininos”. Acabavam por ser as cuidadoras, ainda isso se verifica em muitas associações, mas já há mulheres dirigentes. P: Na sua especificamente? Casimiro dos Santos: É mesmo nessa em que eu estive na Assembleia Geral. Há uma ou outra situação onde eu, onde eu também estou, que é a Casa do Povo de Casegas, que é aqui no Concelho da Covilhã, em que às vezes há mais mulheres a participar e a organizar coisas do que homens. E até em atividades culturais, num grupo de teatro onde há várias mulheres e expõem ali a sua criatividade, maior que a dos homens, muitas vezes, na arte… fantástico. Temos trabalhado ali muito com mulheres e homens, lado a lado. Sim, mas aí já é o que hoje se passa. Portanto, se formos lá mais para trás, vemo-las a fazer aqueles trabalhos tipicamente “femininos”, a irem fazer a comida e quando se trata de fazer o almoço, o convívio, etc. e lá estão elas a cozinhar. Mas hoje também há homens lá a participar e passamos às vezes a descascar batatas, a fazer os temperos, enfim, tudo... naquelas coisas que é convívio, cultura e que ao mesmo tempo participação conjunta da comunidade, na Casa do Povo de Casegas, que é onde eu hoje eu passo mais tempo. P: Quando é que começou a participar nessa associação? Casimiro dos Santos: Isso foi já nos anos 90 e aí foi a mulher que me levou para lá, e ela também lá está num grupo de teatro, etc. Fazemos lá umas coisitas, em termos culturais, agora estamos a ver se conseguimos arranjar termos lá uma biblioteca. Eu agora estou na parte mais ligada a isto, dos livros. Temos lá muitos livros, que precisam de ser catalogados, muitos livros antigos. Houve algumas doações de pessoas que deram a sua biblioteca quando morreram. Temos lá uma... aquilo já está bem atualizado. Agora andamos a arranjar a infraestrutura que foi a própria casa em si, já tinha 70 e tal anos, portas, janelas, telhado, estas coisas são importantes. E eu agora peguei lá na bibliotecazita, a ver se pomos aquilo como deve ser. Precisamos de umas estantes novas, porque aquelas que lá estão, estão a desconjuntar-se. Aquilo está terrível. Isto agora é o meu hobby. P: Era a casa do povo ainda criada pelo Estado Novo? Casimiro dos Santos: Sim, é de 1934. Funcionou como Instituição. P: Como é que foi a conversão dessas instituições, tipicamente corporativas, em instituições democráticas? Casimiro dos Santos: Mas isso já houve legislação que que tirou às Casas do Povo aquelas competências de segurança social que elas tinham antes. Portanto, foram integradas na segurança social. Algumas morreram ali. Outras, que tinham já alguma validade, algumas outras funções, valências sociais e associativas, recreativas, continuaram. Foi o que aconteceu com esta. Deixou de ser financiada pela segurança social, pronto, mas manteve-se como associação. E com o mesmo nome, Casa do Povo. E, entretanto, conseguiu o estatuto de instituição de utilidade pública e mantém-se agora, como qualquer associação. Aqui a Covilhã tem um movimento associativo incrível. E porquê? Por uma questão educativa e de formação, os dirigentes associativos sabiam muito bem que os operários só podiam ganhar consciência social e alguma autonomia se tivessem leitura. Esta leitura é fundamental. Algumas das associações aqui têm ótimas bibliotecas, mesmo com livros que a ditadura, o regime não... Mas estavam lá e eram lidos: autores como o Aquilino, o Fernando Namora, os neorrealistas... E isto era muito importante porque não havia outra forma, portanto os operários quando acabavam a quarta classe iam para a fábrica trabalhar, havia logo ali trabalho e a maioria não ia estudar, como sabemos. E o associativismo aqui foi uma escola importantíssima. Foi a segunda escola que eles tinham e a leitura era extremamente importante e formou muita gente. Os dirigentes sabiam isso muito bem. Alguns desses dirigentes, uma das preocupações fundamentais era logo uma biblioteca, para lá do teatro, dos saraus, da música, da dança, das filarmónicas...A Casa do Povo tinha uma filarmónica, essa lá de Casegas, como quase todas as associações por aí, isso foi extremamente importante. P: E tem ideia se antes, não sei como é a transmissão da Memória agora para os novos ativistas, mas tem ideia se, antes, a Casa do Povo, antes do 25 de Abril, estava ideologicamente completamente controlada pelo regime, ou se também era aproveitada para a consciencialização? Casimiro dos Santos: Já ia sendo aproveitada por muitos estudantes, gente mais nova que ali a partir dos anos 50/60 começou a fazer atividades. E houve um grupo teatro que se forma, leitura, debates, visitas, excursões, etc. E tudo isso acaba por, a partir dos anos 60 com mais força, 70 e mesmo depois do 25 de Abril, continuaram... P: Há uma certa continuidade? Casimiro dos Santos: Há uma certa continuidade, mas atenção, eu recordo-me de que muitas destas bibliotecas no início tinham livros do regime, os discursos do Salazar e aqueles livrinhos que o regime aconselhava. Estava lá isso tudo, as obras do regime, mas começam a vir outras e as direções que se vão sucedendo. Muitos antigos dirigentes sindicais dos anos 20 e 30, alguns que vieram do anarco-sindicalismo, eram dirigentes associativos aqui mais tarde, nos anos 40. Eu por acaso encontrei numa pesquisa que fiz aqui, um dos dirigentes associativos mais importantes aqui, o José Caetano, tinha sido dirigente anarcosindicalista. E, portanto, era uma pessoa com muito prestígio que acabou nas associações. E ainda, numa das greves dos anos 40, a pedido do regime, a pedido do Sindicato Nacional, conseguem convencer o José Caetano a assinar um manifesto para que a greve acabe. A greve também estava quase num beco sem saída, portanto, não se sabia bem o que é que ia ali surgir, mais repressão ainda... Eles chegaram à conclusão de que o melhor era parar e acreditar nas promessas do regime, do Sindicato Nacional. Por sua vez, o dirigente do Sindicato Nacional também tinha sido dirigente anarcosindicalista, portanto, está a ver o percurso dos anarco-sindicalista… Seria interessante estudar aquilo bem, quase todos acabam nos sindicatos nacionais. O José Caetano não, foi para o movimento associativo e ali continua. Digamos assim, aquela vertente educativa que também vem do anarquismo e vai continuar no associativismo. Isso foi uma escola importantíssima aqui na terra e no Concelho em geral, se calhar no país todo, mas eu conheci melhor esta região. Em Almada, também, atenção, também tem muito associativismo, que eu também conheci um bocadito, dei aulas na Cova da Piedade, na Caparica, no Seixal. P: Para além desta participação associativa, de que já falámos, também assumiu cargos políticos nas autarquias? Há alguma relação entre esta propensão para o movimento associativo e para assumir cargos públicos? Casimiro dos Santos: Quer queiramos quer não, se nós estamos, se queremos participar de alguma maneira, cumprir alguns objetivos que temos, não só pessoais, mas também ideológicos, temos que participar em associações ou mesmo na questão política. Transformar o mundo e não é só ficar em casa a ler um livro, também tem que se ter alguma prática. E isso, seja na política, seja no associativismo, quase sem darmos por ela, estamos lá, quase como genética. P: Mas a ligação tem a ver tem a ver com.... Casimiro dos Santos: A ligação tem a ver com a ligação ao povo, tem a ver com isso. Quer queiramos quer não, há objetivos comuns. Normalmente , quer dizer, a parte cultural, tem a ver com a minha participação. No meu caso concreto, o aspeto da cultura é o que me interessa mais. E ao fim ao cabo, a questão da qualidade de vida das pessoas, que também passa pela participação em associações, em atividades culturais, etc. Portanto, tudo isso se conflui para essa melhoria da qualidade de vida da população. P: Existem muitos casos, não é? Até se costuma dizer que muitos dos dirigentes autárquicos do pós 25 de Abril tinham feito a escola da democracia nas coletividades, que há uma relação muito próxima entre a vida associativa e a participação, sobretudo nas autarquias. Há bocado falávamos da Comissão de Melhoramentos e que o poder autárquico também foi muito importante para as questões das infraestruturas. Como é que essa relação se concretizou, entre as comissões de melhoramentos e as novas autarquias do poder local democrático? Casimiro dos Santos: Essas comissões de melhoramentos acabaram por assumir o papel de associações e muitas vezes associações de moradores, que estão viradas para as condições concretas, infraestruturas, os esgotos, o muro, a ponte que falta ali, as vias de comunicação, o abastecimento de água, etc. Mas também estão viradas para essa qualidade de vida, essas atividades culturais, daí as filarmónicas, etc. E as autarquias aí podem de alguma maneira colaborar com essas instituições, porque, digamos assim, são também uma representação da vida social. Portanto, o poder autárquico hoje também não pode ignorar que as associações estão ali. Porque as associações são também uma representação popular. E o poder autárquico, como estrutura política, com outras capacidades, financiamento, etc., tem que ter essa ligação às associações. Muitas vezes as associações estão mais viradas para o aspeto cultural e recreativo. Porquê? Porque as questões do saneamento básico, as questões das infraestruturas já estão mais ou menos resolvidas, por vezes, outras vezes tem que haver um trabalho contínuo de manutenção. Mas as associações são fundamentais para manter alguma vida, que vida não é só o pão, digamos assim, é também a cultura. E essa parte cultural e recreativa são as associações a todos os níveis, as associações culturais, os reformados, os grupos de teatro, o grupo coral, a Filarmónica, etc. E algumas das associações têm essas valências todas, como é o caso das aldeias. Nas freguesias rurais, normalmente, algumas que conseguem ter uma banda e um grupo de teatro. Outras ainda têm um grupo de caminheiros. E outras defendem o ambiente também, associações de defesa do ambiente e aqui nós temos várias dessas, os Caminheiros da Rosa Negra, por exemplo. É a natureza, o desporto...os caminheiros da Gardunha, os caminheiros de Casegas, que lá fundámos. Eu também estive na origem dos Caminheiros de Casegas. Organizamos caminhadas por aquela Serra, a travessia da Serra do Açor, enfim, uma série de atividades. E fazemos caminhadas, já temos ido até aos Pirenéus, por exemplo, ou até às Astúrias, ou até… Ainda não fomos mais Longe, ainda não fizemos nenhuma aos Andes, mas gostávamos de lá ir. P: Já percebi que a sua participação associativa é variada. Já esteve em vários tipos de instituição ao longo do tempo. De que forma é que acha que essa participação associativa modelou a sua vida a nível pessoal? Casimiro dos Santos: Eu acho que sou o resultado dessas experiências todas, de alguma maneira. Os meus gostos levaram-me a participar nas coisas, e as coisas também me influenciam a mim. As atividades em que participo de alguma maneira também me formam. Não sou só eu que, de alguma maneira, ao tomar a iniciativa de fazermos uma atividade, posso influenciar. Mas a própria atividade também me influencia e o convívio, a descoberta, tudo isso acaba por ter influência na nossa vida. Quer queiramos quer não, há também um retorno. Para nós, é de satisfação, mas não só de satisfação, também aprendemos, estamos sempre a aprender e com toda a gente. P: Tenho aqui um conjunto de questões em torno da identidade e da Memória. Penso que, como historiador, também deve ter estas preocupações. A minha primeira pergunta era: costuma-se dizer que esta é uma região muito marcada pela indústria, que a Covilhã tem uma forte tradição operária. De que forma considera que este contexto marcou e marca o associativismo em geral? Casimiro dos Santos: É como disse, os operários, não tendo outra alternativa para se cultivarem do ponto de vista da leitura, etc., e das atividades recreativas, que não existiam se eles não se associassem. E, portanto, este mundo gregário que aqui se desenvolve, a fábrica, leva-os ao longo do tempo a criarem associações, não só laborais mas também sindicais, de profissão, etc. Mas levam-nos também, na pertença ao bairro, à fábrica, a criar associações recreativas e de lazer e essa parte é extremamente importante. Eu acho que a própria cidade, ao ter toda esta multidão dos operários... quer dizer, a tradição gregária e de associação e associativismo, ela também já viria lá muito atrás. Já viria da Idade Média, com certeza, aqui na Covilhã acho que já vem da Idade Média, quando tínhamos algumas profissões por ruas, como sabemos, como se organizava a coisa, o mundo do trabalho medieval, há aí algumas ruas com nomes ligados mais à indústria de lanifícios, que ao longo das ribeiras... Isso já existe desde a Idade Média. No fundo há um crescimento quantitativo e qualitativo, depois, até chegarmos ao associativismo moderno, já com a revolução industrial. Estas associações, algumas nascem no início do século XX, quando a indústria daqui dá um pulo muito grande, não é? Muitas destas associações que estão aí começam no início do século, anos 20 e 30, por aí. Nos anos 30, muitas delas já existiam, mas elas continuam a ter uma vida.... Também era o único sítio onde os operários, enfim, se podiam libertar um pouco desta opressão da fábrica. Do mundo opressor que é o trabalho, com horários e regras rígidas. E as muitas horas passadas ali, no fim de semana, o domingo não era para ir à missa. No mundo operário não é isso, o mundo operário precisa de outras coisas menos, menos... estar a ouvir ainda a alienação da Igreja Católica, que só é capaz de dizer: sofrei, porque depois temos uma outra vida... Com o tempo da taberna, e para os tirar do álcool da taberna. Porque a vida dos pobres era muito dura e por vezes não lhes dava futuro de dignidade. E alguma da dignidade é encontrada nestas associações, que tinham outros objetivos e onde não se cultivava o álcool. O alcoolismo é uma pecha enorme no operariado, que não tinha uma... Isso era terrível. E isto, de alguma maneira, conseguiu retirá-los da taberna. P: E acha que hoje em dia, já com todo o processo de desindustrialização, encerramento de várias empresas e também alguma transformação do tecido social, acha que essa memória ainda marca o movimento associativo? Essa memória, essa tradição operária? Casimiro dos Santos: Ainda há algo. Ainda alguma dessa memória está viva. As associações de reformados e tal cultivam muito isso. Mas depois há outras associações que já estão mais viradas para o desporto e para a parte recreativa, etc. Mas continuam na mesma, desporto, jogos, etc. Continuam ainda a cumprir o seu papel. Embora a ligação tão direta ao operariado, à fábrica, já não é tão grande. Até porque as fábricas estão a desaparecer. A sociedade está-se a transformar, portanto, nós temos uma cidade de serviços. Já não é tão gregária, portanto, os trabalhadores estão muito mais… O mundo do trabalho está muito mais fragmentado e, portanto, esse gregarismo operário que existia aqui até à desindustrialização já não é tão grande. As associações vivem com muitas dificuldades, atenção. De alguma maneira, o declínio do gregarismo do mundo operário está-se a refletir no associativismo. O associativismo está a atravessar momentos maus. E, portanto, cultivando a Memória ainda se vai conseguindo alguma coisa, mas muito pouco. Há associações em crise. P: Mas acha que as associações são um espaço privilegiado para a transmissão da Memória? Ou seja, os ativistas mais velhos passam este legado de anos de resistência? Casimiro dos Santos: Eu não sei como é que vai ser o futuro, nem sei se a juventude estará muito recetiva, com o individualismo dominante. Há, entre a Juventude... hoje, os mais jovens não são tão gregários. A vida e leva-os a serem mais gregários na escola, mas depois, a partir de uma certa altura, com a fragmentação individualista, vá lá, eu vou dizer isto, do mundo do trabalho, da vida, eles acabam por não ser tão participativos e há direções que não se conseguem renovar com jovens. Isso é um dos problemas que está a encontrar-se aqui no momento associativo. E isso é uma crise que se está a passar. Não sei qual será o futuro, mas não vejo muitos jovens nas direções atuais. Portanto, passar o testemunho dos maiores para os mais novos está a ser difícil em muitas associações. P: Como é que vê, então, o futuro do movimento associativo? Casimiro dos Santos: Não sei como é que vai ser, mas não o vejo muito risonho. Eu acho que estamos a passar uma crise, uma crise muito grande. Não sei como é que se vai ultrapassar essa crise. Mas nós somos seres sociais e eu estou convencido que se vão encontrar outras formas de fazer isso. Vou-lhe dar um exemplo: nós, lá na Casa do Povo, tínhamos uma banda, uma banda grande, tinha uns 30 ou 40 membros. E havia uma escola de música. A banda tinha fundado uma escola de música. A banda tem cento e tal anos. Esteve parada durante uns tempos, durante a ditadura, depois recomeçou nos anos sessenta. E há poucos anos, pela crise demográfica, porque naquela aldeia - já não nasce uma criança há vários anos, é uma freguesia que só tem gente idosa - muitos dos jovens, dos últimos jovens que lá estavam e que aprenderam música e a tocar um instrumento naquela escola, resolveram, uma vez que já não havia gente suficiente para manter uma banda de 30 elementos, eles formaram uma Street Band, 7 ou 8, muito interessados, pegaram em si próprios, discutiram o assunto e formaram uma street band. E hoje andam por aí, nas Festas, fazem animação de rua. Já não é a banda clássica, mas eles encontram uma forma de ultrapassar isso. Portanto, através da imaginação deles, eu assisti a algumas das reuniões que eles fizeram e vi como eles tiveram a imaginação suficiente para sobreviver e fazer sobreviver a ideia de música de outra forma. Portanto, mantêm-se. Muitas vezes à de encontrar-se, mas no meio disto tudo algumas vão acabar. Eu não sei, mas espero que haja imaginação para conseguir ultrapassar estas crises. P: E o movimento sindical, especificamente nas questões da memória, por exemplo, aqui houve greves muito marcantes, a greve dos mil escudos, a greve de 1981, essa Memória permanece, ou seja, aqui no meio sindical continua-se a falar nisso, continua-se a contra essa história? Casimiro dos Santos: Sim, sim, sim, sim, sim. Eu, para as minhas salas, tinha sempre um convidado, que era o Luís garra. Muitas vezes ia às minhas aulas contar a história da greve dos 1000 escudos. E isso, este testemunho, não é só no movimento sindical, mas na comunidade, e neste caso os sindicatos têm alguma coisa a contar também nas escolas, também depende dos professores, dos professores estarem mais ou menos sensibilizados para convidar gente do mundo do trabalho para ir lá falar do trabalho. Ou, até, os alunos irem à fábrica ou ao sindicato conversar com os dirigentes sindicais. Eu acho que isso é muito importante, até para dar um substrato, não só de Memória, mas afetivo e ideológico, ao movimento sindical. O movimento sindical não é só a luta de hoje, é também a luta de amanhã, a luta que é necessário travar amanhã e também tem a ver com as lutas do passado, não é? E é este encadear do tempo que nos projeta para frente. Eu acho que isso, os jovens, os trabalhadores mais novos, muitas vezes não conhecem, por exemplo, essa greve dos mil escudos. Ficam admirados. O quê? vocês fizeram uma greve e tiveram parados tanto tempo para atingir mil escudos? Conseguiram isso, o aumento dos mil escudos? E que é que isso deu como resultado? Ficam muito admirados porque não sabem que os avós deles não tinham frigorífico. E aqueles 1000 escudos permitiram comprar um frigorífico, dar uma dignidade básica à vida das pessoas, dos operários que tinham uma vida muito difícil, estavam sempre no limiar, no fio da navalha da sobrevivência. Aqui foi uma exploração terrível. P: E para além dessa questão da Memória, a questão do internacionalismo. Acha que o movimento sindical e iniciativas, por exemplo, como o primeiro de Maio, que são comemoradas à escala Internacional, os congressos nacionais e internacionais, acha que criam de facto assim, ao nível das bases, uma sensação de identidade entre os trabalhadores do país e à escala Internacional? Casimiro dos Santos: Sim, sim, isso é fundamental. Se não houver esse apelo à Memória de há 100 anos atrás, essa identidade do primeiro de Maio, festejar o primeiro de Maio, isso é fundamental para manter essa identidade e ao mesmo tempo também projetá-la no futuro. Portanto, nós não somos só presente, nós somos o fruto de um movimento também. A sociedade que hoje existe, e eu penso que isso é muito importante, que se mantenha sempre, os congressos e nos Congressos apelar-se a esse culto da Memória, que é muito importante. Porque, muitas vezes, os trabalhadores mais jovens… Nós sabemos que a nossa disciplina de história leva muito pontapé nos programas, nos currículos, muitas vezes é chutada para ter cada vez menos tempo e tal. Portanto, isso não é feito por acaso e às vezes os jovens não saem da escola com as ideias mais ou menos esquematizadas do ponto de vista da evolução histórica humana. No fundo, que lhes permita compreender o mundo em que vivem. Eu acho que os sindicatos e toda esta festa que é o primeiro Maio, as comemorações do 25 de Abril, tudo isto fará, de alguma maneira, parte de uma formação geral, que é construção da Memória identitária de uma comunidade e de uma classe social, os trabalhadores. No fundo, eles acabam de alguma maneira por ir bebendo estas… a comemorar também se aprende e as comemorações têm esse objetivo. Países onde há pouca história, por exemplo, países novos como os Estados Unidos, eles vão buscar tudo, todos os bocadinhos da Memória, ainda que para nós não sejam assim muito significativos, para eles são, porque a identidade constrói-se com estes pedacinhos todos da memória coletiva. Isso é muito importante. Não se pode, não se pode deixar de comemorar essas datas importantes. -
31 de maio de 2021
Luís Pereira Garra
P: A primeira questão que te colocava era se a propensão para a participação associativa é uma coisa de família, ou seja, se os teus pais ou outros familiares próximos, durante a tua infância, eram ativistas ou associados de alguma ou de algumas coletividades? Luís Garra: Vamos lá ver, há uma tradição de família, quando, principalmente o meu pai, foi sempre envolvido na vida associativa. Ele foi músico, foi dirigente de uma banda filarmónica, foi jogador de futebol, fez parte da direção da equipa de futebol, isto enquanto esteve na terra, na sua terra de origem, Manteigas. Tanto que eu nasci em Manteigas. E depois, quando veio para a Covilhã, ele continuou a ter essa atividade. Mas a minha ligação foi sempre muito maior ao movimento sindical. Até posso dizer que a minha ligação depois ao movimento associativo é resultado de uma primeira envolvência no movimento sindical, tirando o facto de ter colaborado na criação da Associação de Trabalhadores-Estudantes da Escola Campos Melo, na Covilhã. Mas obviamente, essencialmente nessa altura, quando eu, imediatamente a seguir ao 25 de Abril, tinha 17 anos, quando se dá o impulso às associações de trabalhadores-estudantes e depois ingresso no MJT, no Movimento da Juventude Trabalhadora. Depois, mais tarde, na União das Juventudes Comunistas. E, portanto, depois todo o trajeto de vida política, depois com certeza lá iremos… Mas voltando à questão inicial, o meu pai, mesmo em termos sindicais, não sendo aquilo que se pode chamar um resistente antifascista, era uma referência para os seus colegas de trabalho, no que concerne à explicação dos direitos. Ele tinha com ele, ainda antes do 25 de Abril, o contrato coletivo de trabalho que já estava negociado em 1970, 1969 revisto em 1970 e depois em 1973, e, portanto, ele era uma pessoa a quem os seus colegas... P: Só para ser registado, a profissão do teu pai era... Luís Garra: Era tecelão, operário têxtil, ligado à indústria de lanifícios. E essa vertente, eu retive-a sempre, como uma pessoa informada e que informava, era esta a sua... Portanto, talvez daí venha uma certa ligação, mas eu creio que a referência principal tem a ver com o meu envolvimento imediatamente a seguir ao 25 de Abril, que me apanha com 17 anos. P: Na infância, não foste associado de nenhuma associação ou não usufruíste da oferta cultural de nenhuma associação? Luís Garra: Fui sócio de uma coletividade da minha freguesia, nem era freguesia, era um lugar da freguesia da Covilhã onde eu vivia, que era o CPT de São Vicente de Paulo, no bairro chamado São Vicente de Paulo/Borralheira, hoje Cantagalo. Fui sócio dessa coletividade. Fiz lá teatro muito episodicamente, com 16/17 anos. Porque eu comecei a trabalhar com 10 anos, fui aprender para alfaiate, aos 11 anos ingressei numa fábrica de lanifícios e aos 14 era trabalhador-estudante, trabalhava de dia e estudava de noite. P: Nesse período, ainda antes do 25 de Abril, quando entraste na fábrica, apercebeste-te dessa luta em torno do contrato coletivo de trabalho? Luís Garra: Sim. Nessa altura dos 10 anos não, claramente que não, porque eu entrei em 1967 na fábrica. Mas em 1970, em 1973, já me apercebi das movimentações pelo contrato coletivo de trabalho. Aliás, eu tenho uma referência desse envolvimento, porque as assembleias nos sindicatos, já nessa altura, o salão, este andar onde nós estamos, era o salão de reuniões. O salão de reuniões no sindicato era este andar onde estamos, mas era tudo amplo e a Secretaria era ao fundo do salão. E já nessa altura, em 1973, o salão do sindicato se enchia, incluindo as escadas. Havia reuniões que vinham até à rua. Tem piada que quando eu cheguei, quando comecei a frequentar mais os sindicatos, mesmo já depois do 25 de Abril, já o sindicato ou o salão de reuniões tinha uma aparelhagem com colunas distribuídas no salão e na escada. Porquê? Pois, porque as escadas se enchiam. Portanto, em 1973, tenho perfeita noção disso, eu já era trabalhador-estudante na altura e eu lembro-me de ter ido ao comício da oposição democrática, do MDP/CDE, que foi no teatro-cine, uma sala de cinema muito grande, que tinha perto de 1000 lugares, que foi agora renovado. Muito honestamente, eu fui de uma forma perfeitamente inconsciente. Não tinha perfeita noção, nenhuma noção para onde é que eu ia. Foi um amigo meu, que foi depois quem me inscreveu no MJT, no movimento da Juventude trabalhadora a seguir ao 25 de Abril, que me disse: “Epá, há uma iniciativa no cinema. Vamos lá então.” Pronto, e vi que era uma sessão da oposição democrática e para ser muito mais sincero, a apreensão da importância daquela iniciativa, só depois do 25 de Abril eu a percebi em toda a sua dimensão. Portanto, não tinha uma cultura política nem ideológica que me permitisse perceber. O meu pai falava muito contra o regime, contra o Salazar, contra o Marcelo. A minha mãe, sendo uma mulher de armas, como se costuma dizer, muito consequente, era mais temerosa, protegia. Estava sempre em casa a refilar e tenho a perfeita noção de quando foi o discurso de Marcelo Caetano das vacas, o chamado discurso “acabaram-se as vacas gordas”, eu estar a protestar porque estávamos a ouvir o que ele disse na televisão. As conversas em família... E ela mandou-me calar e eu não me calei e atirou-me com um sapato à cabeça. Portanto, tenho perfeita noção dessa altura. Digamos que, não sendo uma cultura, em casa, de grande contestação ao regime, não era de compreensão pelo regime. Isto talvez tudo junto, o ter sentido a injustiça de não ter ido estudar e ter que ir trabalhar e depois sim, fui estudar como trabalhador-estudante. Isso ajudou a criar a minha consciência. Porque eu fui, passe a imodéstia, portanto não era eu que o dizia, era a professora, eram os meus colegas, eu, a par de um outro amigo meu, éramos os melhores alunos da nossa classe. Era assim que se chamava na altura, da nossa classe. E uma parte deles foram fazer o exame de admissão ao liceu e eu fui trabalhar, com 10 anos. Isso, confesso, criou-me uma certa revolta. Porque se eu gostava de estudar, tinha apetência para o estudo e sou impedido de ir estudar, tenho de ir trabalhar, isso gerou em mim, não digo revolta, mas alguma dor me deixou. P: E estavas a dizer que tinhas criado uma associação ainda imediatamente antes do 25 de Abril de estudantes e trabalhadores? Luís Garra: A seguir ao 25 de abril, imediatamente a seguir ao 25 de Abril… É quando há o boom das associações de estudantes e também se criou a associação de trabalhadores-estudantes da Escola Campos Melo. Eu fiz parte da pró-Comissão. Creio que era assim que se chamava, já não tenho a certeza. E depois, integrei a primeira direção da associação de trabalhadores-estudantes da Escola Campos Melo, que creio que depois... acho que já nem há ensino noturno. Não sei se ainda há, mas, portanto, nessa altura tinha muitos, muitos... A seguir ao 25 de Abril, houve uma procura muito grande de trabalhadores, de jovens trabalhadores, que não tinham podido, lá está, gostavam de estudar, não tiveram condições de ir estudar para o liceu, tiveram de ir trabalhar. E depois, logo que tiveram a oportunidade, a seguir ao 25 de Abril, foram para a escola. P: Então vamos agora focar especificamente o período da experiência associativa durante o período revolucionário, entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro. Quais foram as associações em que participaste durante este período específico? Luís Garra: Foi fundamentalmente a Associação de Trabalhadores-Estudantes. P: Que tipo de atividade desenvolviam? Luís Garra: A Associação de Trabalhadores-Estudantes visava defender os direitos e os interesses dos trabalhadores-estudantes dessa escola e depois eu frequentava muito, nunca tive funções diretivas, mas frequentava, como disse, fazia, cheguei a fazer teatro na colectividade. Isto foi antes do 25 de Abril e depois também ainda fiz alguma coisa na coletividade do lugar onde eu vivia. Joguei futebol na equipa da empresa Sá Pessoas & Irmãos/Gitêxtil e em grupos informais que criavam torneios. Mas, essencialmente, a seguir ao 25 de Abril a minha intervenção foi mais de carácter partidário, político-partidário do que propriamente do movimento associativo. P: E no movimento sindical? Luís Garra: No movimento sindical foi desde logo. Eu fui eleito para delegado sindical em 1974, mas como tinha 17 anos e os estatutos do sindicato diziam que só se podia exercer funções de direção ou diretivas... P: Qual era o sindicato? Luís Garra: Dos Lanifícios do Distrito de Castelo Branco. Só quando fiz 18 anos é que pude vir para delegado sindical. Eu quero assinalar que quando fui eleito delegado sindical foi pelo princípio do mais votado. Portanto, os trabalhadores votavam em quem queriam, não havia listas, era votação aberta. E eu, com 17 anos, fui eleito numa empresa que nessa altura tinha 200 e tal trabalhadores. Depois, mais tarde, fez uma junção de empresas que foi até 500, mas foi pela junção de empresas, da qual fiz parte também da Comissão de Trabalhadores desta junção de empresas. Mas a seguir, imediatamente a seguir ao 25 de Abril, fui eleito delegado sindical. Não foi aceite no sindicato e nas eleições do ano seguinte, com 18 anos, fui eleito. Depois, aos 19 anos, fui convidado pela direção que estava no sindicato para integrar a Comissão Organizadora do 1º de Maio. Nessa altura, criava-se uma comissão organizadora para o primeiro de Maio. Eu fui convidado, integrei em 1977, se a memória não me falha, eu vim para a direção do Sindicato em 1977 ou 1978. Primeiro, fui eleito para a comissão diretiva do sindicato. Houve um vazio na direção do sindicato e depois eu era delegado sindical na minha empresa e fui convidado para integrar a comissão diretiva e, depois da comissão diretiva, integrei a direção do sindicato até há ano e meio. E agora sou presidente da Mesa da Assembleia Geral. P: Com certeza que com essas responsabilidades, terás participado e organizado ações de luta muito importantes... Luís Garra: Sim, eu participei logo, embora não sendo nem delegado sindical nem dirigente, mas participei imediatamente na greve dos 1000 escudos. Participei quer nas assembleias, quer nas votações que houve ao nível de empresa, porque essa foi uma greve que foi decidida em Assembleia Geral do Sindicato, mas que depois foi ratificada por votações feitas nas empresas. E, portanto, eu participei ao nível da minha empresa, daí eu ter sido depois imediatamente eleito delegado sindical, não aceite, como já disse, tinha 17 anos. E, portanto, participei logo na greve dos 1000 escudos, como já tinha participado na manifestação do 25 de Abril na Covilhã. Tinha um certo sentido de justiça, porque nós ganhávamos muito mal, não tínhamos condições de trabalho, não havia condições dignas, era uma vida muito, muito difícil. Eu conto isto muitas vezes. Antes do 25 de Abril, os meus pais não tinham frigorífico, máquina de lavar roupa nem se falava, só muito mais tarde. Tinham o tanquezinho à porta ... não tinham água. Mesmo para lavar a roupa, tínhamos de ir com cântaros buscar água à fonte. E é claro que a nossa vida era muito difícil. Portanto, isto despertou mais a vontade de trabalhar e estudar, já na escola, como trabalhador-estudante. Isto permitiu-me ter uma perceção das injustiças, sem nenhuma consciência política, mas as injustiças sentem-se, não é? Isso fez com que, imediatamente a seguir ao 25 de Abril, eu me envolvesse a fundo, de cabeça, como se costuma dizer. Participei nessa greve dos 1000 escudos. Essa greve foi muito importante para nós, porque 1000 escudos de aumento nessa altura foi uma coisa.... Olhe, permitiu que os trabalhadores comprassem o frigorífico, comprassem o fogão a gás, alguns compraram carro, a prestações, mas compraram. Houve uma subida no nível de vida, nas condições de vida, que foi uma coisa fantástica. Mas não foi importante só para nós, foi importante para o país. Porque foi a partir dessa greve, que teve como desfecho um acordo celebrado no Ministério do Trabalho, na Covilhã, com a vinda do Secretário de Estado de Trabalho, que era o Carlos Carvalhas e do Secretário de Estado, não sei do que é que ele era Secretário de Estado, que era o António Guterres. Tanto que foram eles os dois que vieram à Covilhã para se fazer o acordo entre os sindicatos da Federação de Sindicatos dos Lanifícios, que na altura era dirigida pelo falecido Manuel Correia Lopes e também tinha o Kalidás Barreto, mas também tinha dirigentes aqui da Covilhã. Fez-se esse acordo com a presença desses secretários de Estado, com uma manifestação à porta do Ministério do Trabalho. Ou seja, os trabalhadores concentraram-se. Para além de estarem em greve, concentraram-se na Praça do Município e vieram à manifestação para a porta do Ministério do Trabalho, que era um jardim público. Lembro-me perfeitamente de participar nessa greve, participar na manifestação, e claro, sem qualquer tipo de intervenção sindical. E depois participei em 1975 na luta do contrato coletivo de trabalho, em que a questão principal já não era tanto o salário, embora também fosse. Porque já tínhamos em 1974 conseguido aquele aumento significativo dos salários, mas era a questão do horário. A palavra de ordem da manifestação, da manifestação nacional dos lanifícios que realizámos na Covilhã, era 40 horas Sim 41 Não. Nessa altura conseguimos, conquistamos as 40 horas de trabalho para o setor dos lanifícios, com 2 dias de descanso, sábado e domingo. E lembro-me perfeitamente dessa greve e lembro-me depois de outras greves em que participei pelo contrato, sempre pelo contrato coletivo, principalmente pelo contrato coletivo de trabalho. E, que depois já lá irei, à greve de 81, que merece uma referência muito particular. Mas depois também as greves na minha empresa, porque as greves na minha empresa foram imediatamente a seguir ao 25 de Abril. Foram intensas, porque havia um dos sócios, um dos patrões, que era um homem do regime fascista, muito ressabiado com o poder perdido. Ele era vereador da Câmara da Covilhã antes do 25 de Abril. Pertencia à União Nacional. Vivia muito da revanche e começámos a ter salários em atraso e a lutar pelo pagamento de salários. Só para ter uma ideia: em 1979, eu casei, com 22 anos, e imediatamente fiquei com salários em atraso. Cheguei a estar cinco meses sem salário. E depois eu recebi os salários, resolveu-se a situação e ficou a minha mulher a seguir. Portanto foi assim sempre uma vida, um bocadinho atribulada a esse nível. Ela trabalhava noutra empresa. Depois também tive um processo por causa dessas lutas de salários em atraso, para o pagamento de salários. Eu e mais 19 camaradas de trabalho tivemos um processo disciplinar, suspensão do contrato e suspensão do trabalho durante seis meses. Só que aí houve uma grande solidariedade dos trabalhadores e nós, apesar de estarmos suspensos, nunca houve dia nenhum que não fossemos para a empresa. Não nos deixavam trabalhar, mas nós estávamos lá e, portanto, eram os trabalhadores que se punham ao portão da fábrica, a fazer alas de um lado e do outro para nós entrarmos e, portanto, o patrão nem se atrevia a impedir a nossa entrada. Foram manifestações de solidariedade, e, quer queiramos quer não, em termos de dirigente sindical, porque nessa altura já era da direção do sindicato, marca-nos de uma forma muito, muito profunda. Porque sentimos na pele, com atos concretos, o que é a importância da solidariedade e, portanto, quando nós falamos da solidariedade nessa situação, já não estamos a falar de uma questão abstrata, de um princípio teórico. Nós estamos a falar de uma experiência. E, portanto, lembro-me perfeitamente de outras lutas na minha empresa, em que eu estive contra a luta. Recordo-me, não posso precisar o ano, mas eu já estava a tempo inteiro no sindicato, já era dirigente sindical a tempo inteiro, em que eu estava em Gouveia, porque nós, entretanto evoluímos de Sindicato dos Lanifícios para Sindicatos Têxteis da Beira Baixa, que passou a representar também os trabalhadores das confeções. Portanto, a dinâmica sindical acompanhou a dinâmica económica. Criámos o sindicato têxtil, que era mais do que os lanifícios, e fazíamos uma parceria com os sindicatos da Beira Alta. E tínhamos um jornal. Eu era o responsável por este jornal. Eu estava em Gouveia a reunir com os... P: Era o Laneiro? Luís Garra: Nessa altura, já era O Têxtil. Eu ainda fui responsável pelo Laneiro durante algum tempo, enquanto fui do sindicato dos lanifícios. Eu entrei para a direção em 1977/78. É uma questão de precisarmos melhor... Eu tenho aqui uma confusão de data, mas eu quando entrei para a direção do sindicato, fiquei logo com a responsabilidade do Laneiro e ainda fui o responsável pela sua edição e redação. A redação, quer dizer, não era eu que redigia tudo, mas de acompanhar a redação. E depois, quando criámos o sindicato têxtil, O Têxtil passou a ser o jornal da Beira Interior, Guarda e Castelo Branco. Portanto, eu estava na Guarda, em Gouveia, a reunir com os outros dirigentes do sindicato de Gouveia para prepararmos o jornal seguinte. Telefonam-me a dizer que ia haver um plenário na minha empresa, por causa de uma greve, porque o patrão não queria pagar nem o salário de Dezembro nem o subsídio de Natal. Enfim, só queria pagar 50% do salário de Dezembro e 50% do subsídio de Natal. Eu vim para o plenário e já estava tudo em polvorosa, queriam greve. E eu estive contra aquela greve, porque eu defendia que primeiro devia-se receber o dinheiro que a empresa queria dar e depois é que se ia lutar pelo resto. Porque se assim não fosse a consequência ia ser o patrão já não pagar nem uma coisa nem outra, e nós, em vez de estarmos a lutar por 50%, estávamos a lutar por 100%. E procurei chamá-los à razão, àquilo que eu considerava a razão. Os trabalhadores foram a votação e eu perdi. E depois foi decidido fazer piquetes na empresa, para guardar, para não deixar sair o produto, ou o produto fabricado e eu, que estive contra a greve, lutei contra ela, mas a primeira pessoa a fazer o primeiro turno do piquete da greve fui eu. Porquê? Achei que o facto de eu ter sido derrotado nas minhas posições não significava que eu não tivesse de cumprir com as decisões tomadas. Portanto, foi isto que eu passei a fazer. Mas estávamos a falar das lutas mais intensas. Eu considero que a greve de 1981 ainda entra neste processo. Porquê? Nesta altura já era sindicato têxtil, portanto já não era sindicato dos lanifícios. Eu já era ao mesmo tempo coordenador da União dos Sindicatos e ainda não era presidente do sindicato têxtil. Era membro da direção em 1981. Se não estou em erro, já era vice, já era vice-presidente da direção do sindicato. É porque depois, em 1983, passei a presidente, mas em 1981 eu era vice-presidente e era coordenador da União de Sindicatos de Castelo Branco, desde 1979. Tinha 22 anos quando fui para coordenador da União dos Sindicatos de Castelo Branco. A greve de 1981 foi provocada porque a associação Patronal ANIL, em Julho, toma a decisão de deixar descontar as quotas dos trabalhadores. E as quotas de Julho eram pagas em Agosto. Em Agosto, as fábricas estavam fechadas para férias, a maioria delas. Portanto, nós, na altura em que eles tomaram essa decisão, percebemos logo que ia haver qualquer coisa, porque aquilo foi conjugado em Agosto. Em plenas férias aparece um acordo das associações patronais, assinado com o Sindetex, que era o sindicato paralelo e amarelo da UGT, e que nós classificámos que retirava cem direitos do contrato negociado em 1975. Cem direitos, claro que uns mais importantes que outros, portanto, mas retirava direitos. Em Setembro nós decidimos iniciar um processo de luta, que era uma greve de três dias por semana – terça, quarta e quinta. Trabalhávamos, porque, nessa altura, havia o perigo do desconto do fim de semana. Então nós, para não descontarem a semana toda, a decisão que tomamos foi, à segunda e sexta trabalhamos, já não mexem com o fim de semana e fazemos greve à terça, quarta e quinta. Isto desarticulava completamente a produção, porque à segunda-feira não se fazia nada. E à sexta também não, porque estava tudo desarticulado e nós só perdíamos três dias. Isto foi durante 29 dias. Foi uma luta de 29 dias que suscitou a solidariedade de trabalhadores de todo o país, da siderurgia, dos pescadores, dos trabalhadores agrícolas do Alentejo, dali de Montargil, que vieram apoiar-nos. Porque nós estávamos numa greve muito dolorosa do ponto de vista financeiro, que se prolongou até Novembro e parou assim de uma forma um bocadinho abrupta. Por isso é que aí no guião fala em 28 dias, porque ainda houve um dia, para além dos 28, ainda houve um dia que foi feito, já em desespero de causa, por razões que não vale a pena estar neste momento a esmiuçar, já lá vai o tempo... Quem fazia os avisos era a Federação dos Sindicatos Têxteis, e, estranhamente, nós tomávamos a decisão de greve todas as semanas, ou seja, de uma semana decidíamos para a seguinte, em função do ambiente de greve que havia e não sei por que razões, eu calculo qual foi a razão, a Federação dos Têxteis, na última greve, em vez de marcar três dias, só marcou um. A partir daí, os trabalhadores que queriam três, só foi marcado um... De qualquer das formas, o que é que nós conseguimos com essa greve? Foi que as empresas, individualmente, viessem assinar documentos com os delegados sindicais de cada uma das empresas e dizer que mantinham intactos os direitos do contrato de 1975. Ou seja, não conseguimos mais aumento, mas durante décadas evitámos a aplicação do contrato da UGT com os cortes de direitos. Portanto, só tem a ver com o processo revolucionário, porque foi uma greve que foi motivada, porque veio pôr em causa o contrato que conquistámos no ano imediatamente a seguir ao 25 de Abril. P: Já me falou destas lutas grandes em torno do contrato coletivo de trabalho, especificamente a nível local. E no que diz respeito à estruturação nacional do movimento sindical, participou em congressos setoriais nacionais e internacionais? Luís Garra: Eu participei, lembrou-me. Participei no terceiro Congresso da Federação do Sindicato dos Têxteis e em todos até ao último. Portanto, participei em todos os congressos da Federação dos Sindicatos Têxteis e nunca fui dirigente da Federação, embora tivesse envolvimento direto nos trabalhos da Federação. Portanto, como presidente do Sindicato dos Têxteis, eu participava regularmente em plenários e reuniões, em encontros, em conferências, mas nunca fui da direção. Por opção, porque entendi sempre, que eu era desde 1983 um membro do Conselho Nacional da CGTP e era coordenador da União de Sindicatos de Castelo Branco e sempre entendi que não fazia sentido estar a acumular tantas responsabilidades, que me iriam transformar num dirigente que eu sempre condenei, este tipo de prática sindical que é andar de reunião em reunião a passear conclusões, só a dirigir por cima… Portanto, eu tive sempre uma conceção do exercício da ação sindical que é a de trabalho concreto no terreno. Ora, quem tem muitas, quem exerce muitas funções ao nível supra, falta-lhe tempo depois para o trabalho na base. E, portanto, entendi sempre que, apesar de muitas vezes solicitado para a direção da Federação, não foi por nenhum desprimor em relação à Federação, mas que havia outros dirigentes do sindicato que poderiam fazer melhor do que eu e foi isso que foi sempre acontecendo, até eu deixar de ser presidente do sindicato. Deixei de ser em 2017. E, portanto, envolvi-me sempre muito no trabalho da Federação, no trabalho da CGTP. Por duas ou três vezes, pelo menos, me foi colocada a questão de eu ir a tempo inteiro para Lisboa, para a sede central e por razões várias não me senti em condições de ir e fiquei por cá. E não me arrependo. E nessa qualidade de dirigente sindical participei em múltiplas conferências, não estão todas, mas no guião que mandei estão algumas delas… ¬P: Eu gostava de aprofundar em relação a esta iniciativa específica, que é o Congresso, sobretudo neste período revolucionário. Depois de 48 anos em que não havia essa participação democrática, essa experiência de discussão coletiva, queria que me falasses de como foram estes primeiros congressos em que pessoas, dirigentes sindicais de todo o país, se juntavam para discutir questões sobre a economia do país... Luís Garra: Ora, há um em que eu não participei, mas foi um encontro muito importante que, não tendo sido um Congresso, foi um encontro importante que marcou de uma forma muito clara aquilo que era a política dos sindicatos têxteis a nível nacional para o setor. Havia correntes de opinião muito fortes, que na altura eram muito ativas. Não digo fortes, mas ativas, muito ligadas àquilo que se chamava na altura o esquerdismo, que defendiam a nacionalização de tudo e mais alguma coisa. Estou a falar do encontro de Ofir, no qual eu não participei, mas li as conclusões. Porque foi imediatamente antes de eu vir para a direção do sindicato, não posso precisar o ano em que foi, mas deve ter sido por 1976/77. Esse encontro marca claramente que a Federação Têxtil não quer a nacionalização do setor têxtil e aponta claramente o caminho da reestruturação do setor e da valorização, já nessa altura, da valorização dos trabalhadores, dos salários, etc. Eu depois, estava-me a esquecer, que participei não no terceiro, mas no segundo Congresso. Porquê? Porque quando eu venho para a direção do sindicato, para a Comissão Diretiva do sindicato, o Congresso da Federação Têxtil é realizado na Covilhã. E eu confesso que foi uma grande atrapalhação, porque nós estávamos na altura numa crise diretiva. Eu e mais cinco camaradas, ou mais quatro (acho que eram mais quatro), fomos para a Comissão diretiva e apanhamos com a preparação e a realização do Congresso em cima. Para mim aquilo era chinês, muito honestamente, era peixinho fora da água. Participei já nesse Congresso, que foi realizado num antigo teatro-cine da Covilhã e que culminou com uma grande iniciativa pública no chamado pavilhão da FAEC, da Feira das Atividades Económicas, que já não existe. Participei nesse, deve ter sido o segundo, porque o terceiro foi em Guimarães. Não participei no primeiro, que foi o da fusão, porque havia duas federações: já havia a Federação dos Lanifícios e havia a Federação dos Têxteis e, portanto, depois as duas federações fundem-se numa e é nesse Congresso, neste segundo Congresso aqui realizado e que culminou com o comício nas FAEC, que é eleito o coordenador, aquele que foi durante muitos anos coordenador da Federação, o Manuel Freitas, que ainda hoje é da direção da Federação, embora já não sendo coordenador. Portanto, os congressos foram sempre momentos muito importantes de afirmação da unidade do movimento sindical. Porque o movimento sindical têxtil é um movimento sindical com características muito próprias. Nós falamos do projeto unitário da CGTP, mas se nós queremos uma tradução mais real do que é o caráter unitário da CGTP, é olharmos para a Federação do Sindicatos Têxteis, onde coexistem todas as correntes. P: Muito bem, estavas a dizer que os congressos eram muito importantes? Luís Garra: É, porque afirmavam o caráter unitário, principalmente a questão da unidade dos trabalhadores e a unidade orgânica do movimento sindical. Estava a dizer que a CGTP tem a sua marca, é o caso do seu carácter unitário, mas na Federação dos Têxteis esse caráter unitário é muito expressivo. Porquê? Porque estão lá, têm expressão, todas as correntes de opinião que existem no movimento sindical, com equilíbrios muito, muito, complexos. E, portanto, os congressos eram momentos muito fortes, até do ponto de vista emocional. Eu costumava dizer, mas não é caricatura, é verdade, ultimamente costumava dizer que os nossos congressos já não têm aquele sal que tinham os antigos, já nem se chora. Porque havia, de facto, momentos de grande tensão e muito emotivos, mas também uma afirmação da unidade muito forte. Quando chegávamos ao fim havia um trabalho para o consenso, para procurar linhas de consenso muito, muito fortes. E não havia aquela ideia de: “bom, vamos contar espingardas, temos a maioria, votamos, vota-se a favor, está resolvido”. Não, isso é fácil demais. Eu costumo dizer “fazer isso é fácil demais”, o que é difícil é trabalhar para o consenso, fazer aproximações. E, portanto, os congressos da Federação dos têxteis tinham essa característica. Depois eram congressos muito difíceis, porque o setor têxtil é muito diversificado do ponto de vista das correntes ideológicas, mas é muito diversificado também de subsetor para subsetor. Falar de lanifícios não é a mesma coisa de falar do têxtil algodoeiro, como não é a mesma coisa de falar de calçado, como não é a mesma coisa falar de confeções ou de cordoaria. Portanto, são subsetores que têm muitas especificidades, muito próprias, e, portanto, que obrigam a que a Federação tenha de ter uma linha de intervenção adequada às especificidades de cada subsetor. Portanto, construir uma linha unificadora da ação, com situações tão diferentes, não era fácil e a Federação dos Têxteis foi conseguindo isso ao longo dos anos. Os congressos eram momentos muito importantes para afirmar reivindicações e também afirmar modelos de reestruturação para o setor têxtil. Ainda andava muita gente a falar... ainda não se falava de reestruturação do setor e do que se falava era da liquidação do setor e já os Sindicato dos Têxteis, e agora falo também em particular do sindicato a que eu pertencia, aqui Têxtil da Beira Baixa, já nós tínhamos uma linha de intervenção no sentido de que o setor não estava condenado à liquidação, que o setor tinha futuro, que era preciso ser modernizado, que era preciso inovar o produto, os modelos de organização e os métodos. E que era preciso, acima de tudo, dar maior valor aos trabalhadores, à sua qualificação, mas também à sua remuneração. Portanto, estas foram linhas de intervenção que foram sempre muito claras no nosso horizonte. Nós passámos aqui por vários momentos, muito conturbados em termos de trabalho, que era conciliar a aposta na ação reivindicativa para melhorar salários e combater a chaga do encerramento de empresas. Não é fácil trabalhar assim, porque o exemplo que passa para os trabalhadores que estão nas empresas que estão bem é: “Olha, vê lá o que é que está a passar naquela, também queres cair no desemprego?” Portanto, o contraponto não é um contraponto positivo, é um contraponto negativo. É nós nunca perdemos o Norte. Eu vou usar um palavrão, passo a expressão, mas adotamos aqui um lema do Marquês de Pombal, “tratar dos vivos, enterrar os mortos”, sem deixarmos de ter respeito pelos mortos. Foi por isso que aqui nós, na Beira Baixa, ao mesmo tempo que nunca abandonámos a luta pela contratação coletiva, pela melhoria dos salários, nunca deixámos de acompanhar os processos de luta dos trabalhadores que estavam com salários em atraso, os que estavam noutras empresas, que estavam ameaçadas de encerramento, a luta pelo emprego, a luta pela laboração das empresas. E nunca deixámos de acompanhar os trabalhadores, mesmo já depois das empresas fechadas, de acompanhar os trabalhadores até ao momento em que tinham de receber os créditos laborais. Portanto, isto pressupõe uma visão estrutural do que é a intervenção sindical alargada e em que uma questão não pode condicionar a outra e, portanto, o nosso discurso não é fácil. É difícil, por vezes, fazer passar a mensagem, quando o que nós temos à nossa volta é encerramentos, é desemprego, é dramas sociais. Dizer aos trabalhadores das empresas, “mas isto não é convosco, é com os outros, vocês têm de continuar a lutar”, nem sempre é fácil, mas foi isso que nós fizemos. Não contou com total êxito, porque por isso é que nós somos setores muito assentes no salário mínimo nacional. Não contou com total êxito, mas a avaliação não tem de ser tanto por aquilo que conquistámos, tem que ser mais por aquilo que evitámos. E o balanço que nós fazemos, e que eu faço, é um balanço, tendo em consideração a conjuntura em que nós trabalhávamos, consideramos que, apesar de tudo, resistimos e resistimos bem. Aliás, eu costumo dizer que este sindicato é um caso de estudo. Em condições normais, o sindicato têxtil da Beira Baixa não tinha razão para existir. Porque éramos 10000 trabalhadores em 1975, só nos lanifícios, agora são 3000-4000, já com as confeções, porque associamos as confeções. No entanto, o sindicato têxtil hoje continua a ter direção e delegados sindicais. Não tem uma boa situação financeira, mas também não vive com a corda na garganta. Portanto, isto tem a ver com as opções que fomos fazendo ao longo dos anos. Isto não se consegue de ânimo leve. Nem sempre, ao nível nacional, na Federação dos Têxteis, isto foi suficientemente compreendido e houve regiões do país, onde tiveram igualmente problemas graves ao nível do encerramento das empresas, em que a prioridade foi toda dada para acompanhar estas empresas e desguarneceu-se as empresas que continuaram a trabalhar. E nós, por exemplo, hoje podemos dizer que as nossas posições sobre a reestruturação dos lanifícios deram resultado. Porque hoje os lanifícios não são um setor de mão-de-obra intensiva. Ainda não são totalmente de capital intensivo, mas já se aproximam muito. Ou seja, já têm níveis de rentabilidade e de produtividade muito elevados, mais elevados, por exemplo, que na confeção, porque a confeção ainda é um setor de mão-de-obra intensiva. Portanto, nós não tivemos qualquer tipo de problema quando foi a questão da Integração dos têxteis nas regras da Organização Mundial do Comércio, que nós vimos que aquilo era uma machadada para o setor têxtil em geral e para os lanifícios em particular. Nós fizemos um memorando conjunto, subscrito conjuntamente com a associação patronal, a exigir à União Europeia, a exigir ao Governo português, medidas de apoio ao setor têxtil. Como foi o processo de reestruturação da indústria de lanifícios nos governos de Cavaco Silva? Houve três opções em cima da mesa: uma era salvar tudo indiscriminadamente; outra era salvar as empresas que estavam com dificuldades, que ainda tivessem viabilidade económica e financeira; e a terceira, salvar apenas as que já estavam bem. E nós sabíamos que não era possível salvar tudo. Tínhamos a plena consciência de que não era possível salvar tudo. Mas também sabíamos que aquilo que estava a ser trabalhado era canalizar os apoios financeiros apenas e só para as empresas que já estavam bem. Que ainda por cima eram as empresas que estavam na direção da associação patronal e que tinham ligação direta aos ministérios e que estavam em condições de apresentar as candidaturas aos apoios antes de todos os outros. E foi esta a opção que prevaleceu do Governo de Cavaco Silva. Era o Mira Amaral o ministro da Indústria e da Economia. P: Podemos voltar um bocadinho atrás, não queria interromper o teu raciocínio, mas gostava só de perceber mais uma ou duas questões em relação ao período revolucionário, uma delas é que eu vi que houve algumas formações sobre o controlo operário... Luís Garra: Sim, eu era da comissão de trabalhadores da empresa, que foi a impulsionadora deste processo. Eu era delegado sindical e quem era o nosso delegado sindical, que depois ainda passou pela comissão diretiva do sindicato que eu referi, mas nunca chegou a ser membro da direção do sindicato, era o Joaquim Pinto. Esse homem tinha muito jeito, muita aptidão para as contas. E, portanto, os delegados sindicais e a comissão de trabalhadores da empresa onde eu trabalhava iniciaram o processo de controlo operário daquela empresa. Sabiam exatamente tudo o que se produzia, quando, quanto, para onde se vendia, como se vendia, quanto se vendia e, portanto, nós tínhamos uma informação rigorosa de qual era… Claro que isto deu lugar a experiências e, portanto, depois houve este tipo de iniciativas de formação operária, mas que foram muito influenciadas por essa empresa. Aliás, a empresa, a Sá Pessoa, era muito referenciada por causa do controlo operário, mas houve outros que não tiveram o mesmo rigor do controlo operário, mas que também tinham uma intervenção que se aproximava. Por exemplo, na maior empresa na altura, que era a Nova Penteação, os delegados sindicais também exerciam uma função e depois houve aqui formação para o controlo operário, sim. P: Em que consistia, quais eram os conteúdos? Luís Garra: Eram muitos, eram os elementos elementares de economia, do processo produtivo, do processo de venda, a leitura dos mercados… Portanto, era muito assente em coisas muito rudimentares. Porque estávamos a falar com pessoas que tinham a quarta classe, não podiam ser cursos de profundidade. Mas dava-nos os elementos da análise económica e financeira mínima. Chegámos a ter dentro também do sindicato, havia capacidade financeira para isso, uma avença com uma pessoa ligada à área da economia, que também nos ajudava a ler os relatórios das empresas, os balanços. Tanto que nos permitia depois ter conhecimento sobre as empresas. Bem, é aí, já não tanto de controlo em cima, porque, como sabes, do que estamos a falar é de controlo em cima no momento.... P: Detalha lá mais... Como é que aconteceu? Luís Garra: Nós tínhamos força. Portanto, vamos lá ver, para haver o controlo operário é preciso haver força, porque nenhum patrão dá dados se não for obrigado e, portanto, como nós tínhamos muita força na empresa, os delegados sindicais exigiam que a própria empresa fornecesse os dados. Claro que alguns deles podiam estar até viciados, mas como depois este nosso delegado sindical, o [...], fazia um acompanhamento permanente do número de metros que eram tecidos, ele sabia dia a dia qual era o número de metros que eram tecidos. Portanto, depois conseguia ver se a bota batia com a perdigota e tínhamos esse controlo. Não foi uma coisa que durasse muito tempo. E agora devo dizer que foi muito importante, falou-se muito, mas infelizmente, conforme a correlação de forças se foi alterando, as empresas passaram a resistir mais a dar os dados. A própria legislação, por exemplo, ao nível da segurança social, a legislação dizia que os quadros, as folhas de salários para a segurança social, tinham de ter o visto, a concordância, da comissão dos delegados sindicais. E, portanto, isto também nos permitia, por exemplo, ver o que é que é cada um ganhava, vermos também se o salário que cada um ganhava lá estava todo refletido na folha para a segurança social. A legislação, com Mário Soares, foi toda alterada. Deixou de ser obrigatória a assinatura e daí começaram a aparecer as dívidas à segurança social. Porque nessa altura nós só assinávamos quando víamos o cheque para segurança social. Nessa altura ainda era caixa dos lanifícios, a caixa de previdência do pessoal da indústria dos lanifícios. Nós, só quando víamos o cheque, é que assinávamos a ordem das folhas a seguir com o cheque. Portanto, isto evitava dívidas à segurança social. A partir do momento em que Mário Soares, e outros que fizeram alterações, que os dados da segurança social passaram a ser sigilosos, etc., etc., tudo isso... Portanto, a alteração da correlação de forças levou também ao abrandamento e, também temos de dizer a verdade, isto não foi em todas as empresas, porque nem em todas as empresas nós tínhamos a mesma força que tínhamos naquela. E nem em todas as empresas tínhamos delegados com a mesma apetência que tínhamos naquela. Portanto, isto dependia muito da aptidão, da vontade, da persistência. Esse homem era um homem muito vivo, ensinou-me muito. P: E em relação à participação das mulheres? Estamos a falar de um setor com uma grande percentagem de mão-de-obra feminina, como é que foi a participação das mulheres neste processo, durante o período revolucionário, na vida sindical? Luís Garra: As mulheres foram fundamentais na luta. Porque as mulheres tinham e começaram a ganhar força em termos de presença no setor dos lanifícios. Nas confeções não se discute, porque 90 e tal por cento são mulheres. Mas nos lanifícios houve todo um processo de entrada das mulheres no mercado de trabalho e teve muito a ver com a falta de mão de obra masculina, mas elas sempre entraram. Desde os anos 40, já havia mulheres nas empresas, mas depois a guerra colonial também trouxe, embora as mulheres estivessem geralmente em funções menos qualificadas. Portanto, é o que ainda hoje de alguma maneira acontece, e acontece uma coisa que hoje ainda existe e já existia nessa altura: é que podemos ter uma secção de 100 pessoas com 99 mulheres e um homem. O chefe é um homem. Portanto, foi sempre uma “guerra”. Mas porquê? Mas porque é que tem de ser o chefe o homem? As mulheres tinham uma participação na vida económica, na vida da empresa, na atividade produtiva muito forte. Essa força traduziu-se na participação na luta, sempre, portanto, as greves atingiram quase 100%, sempre praticamente, porque as mulheres também aderiam. Ou seja, havia ali uma comunhão entre homens e mulheres na participação, na luta, que não tinha tradução na vida do sindicato. Quando eu vim para o sindicato, em 15 dirigentes, havia duas mulheres. Esta situação foi-se alterando e hoje, eu não quero dizer que a situação seja de 50/50, mas se não é… E não houve nenhuma preocupação de cotas, foi uma questão perfeitamente natural, claro, pela entrada de mulheres. O facto de o sindicato deixar de ser só de lanifícios para ser também ser de confeções ajudou nessa transformação, não foi apenas os lanifícios, mas mesmo ao nível dos lanifícios, a partir de 1978 começaram a entrar mais mulheres nas direções. Progressivamente e, portanto, com uma inserção muito forte. Agora, nas lutas estiveram sempre. Não seria correto da minha parte dizer que as mulheres eram um entrave ao desenvolvimento da luta. Pelo contrário, até tinha um problema, se havia era o contrário: é que às vezes custavam a entrar e depois quando entravam já era difícil sair. Eu confesso a minha experiência, para mim era muito mais difícil conduzir uma luta numa empresa só de mulheres, do que mista, de homens e mulheres, ou só de homens. É porque as injustiças que elas sentiam eram tão fortes, tão fortes, que quando decidiam aderir, e se depois, o resultado não era exatamente o que estavam à espera, era muito difícil convencê-las e dizer: “Pá, já temos aqui ganhos e tal, não sei quê”. Porque às vezes estávamos a entrar em becos sem saída, portanto, às vezes, os processos de luta estavam tão radicalizados que, se fossem prolongados por mais algum tempo, não havia saída. E, portanto, às vezes, é preciso saber capitalizar o que já se conseguiu para reagrupar forças para se conseguir o resto. Mas nem sempre se conseguiu, mas eu percebo esta atitude. é que: “bolas, nós demos tanto a isto e agora vamos sair sem conseguir tudo”. Era mais esta postura, mas no resto foi com muita facilidade. Eu, para mim, foi extremamente fácil. Eu estou a falar dos têxteis, mas posso falar da União de Sindicatos. Quando entrei para a União de Sindicatos não havia uma mulher na direção e hoje são 40 e tal por cento e já chegaram a ser 51 ou já estiveram em maioria. Portanto, mas isto, volto a dizer, não foi uma questão de pôr jarrões a enfeitar uma mesa, foi um processo natural de envolvimento, participação, de responsabilidade. P: E nos locais de trabalho? Ou seja, não assumiam posições na direção do sindicato, mas na organização das lutas, como delegadas sindicais? Luís Garra: Havia algumas como delegadas sindicais, mas é como digo, a seguir ao 25 de Abril, elas eram mais de estar na luta do que ser delegadas sindicais. Isto depois foi um processo. Até porque a conciliação entre a vida pessoal e familiar, a própria compreensão dos homens em relação às tarefas da mulher… Uma mulher que viesse para o sindicato era olhada de esguelha, como se costuma dizer. Era apelidada de muita coisa: “Olha, lá anda ela no meio dos homens.” Estas coisas existiam. Portanto, foi preciso uma alteração muito forte de mentalidades, de culturas e, portanto, a participação delas na luta foi sempre superior ao envolvimento delas na direção da luta. Não porque elas não soubessem, mas porque havia todo um ambiente cultural que lhe era adverso. Portanto, e conforme fomos evoluindo, e ainda bem, isto foi-se alterando. Portanto, isto foi um processo. O 25 de Abril, claro, foi fantástico também para esta abertura, este sentido de abertura. Repare que também referem aí no guião que havia uma comissão feminina. Sim, é verdade. Mas a comissão feminina, do meu ponto de vista, tinha um lado perverso. Que era a forma de as ter ali compartimentadas, mas que não faziam parte da direção do sindicato. Estavam ali compartimentadas para quê? Para organizar os lavores, os cursos de costura e de bordados. Quando cá cheguei ao sindicato, nós tínhamos a secção feminina com duas senhoras, uma que ensinava as mulheres a costurar e a outra a bordar. Foi uma guerra que vocês não imaginam para acabar com aquilo. Aquilo era profundamente sexista, do meu ponto de vista. Eu não pude fazer a abordagem na altura desta forma tão direta como estou aqui a fazer e tivemos de invocar dificuldades financeiras para manter aquela situação e tal, mas aquilo não era nada. Portanto, nós ganhámos mais mulheres a participar quando passaram a ser delegadas sindicais e passaram à direção do que quando era os lavores. P: Já temos aqui umas incursões no período pós 25 de Abril, mas só para terminar aqui esta secção, quais são as memórias mais marcantes que tu guardas desse período? Luís Garra: É a liberdade estar na rua, a gente sentir que tinha condições para conquistar direitos, para conquistar melhores salários, para conquistar dignidade, no fundo. É a gente poder sonhar. Sonhar que podíamos ter uma vida melhor, portanto, acho que no fundo foi isto, porque nós vínhamos de uma penumbra de uma vida sem perspetivas. Eu tirei o curso de técnico têxtil, como trabalhador-estudante. E a seguir ao 25 de Abril envolvo-me diretamente na vida sindical e adeus à carreira profissional. Mas o que me estava reservado era ser um técnico têxtil, mas depois sujeito à subserviência perante o patrão. Era mais um lacaiozito. E o 25 de Abril abre-nos outro horizonte que, mesmo os técnicos passavam a ser eles próprios criativos, responsáveis, mas livres, e não terem de estar sempre sujeitos ali à tutela. Há sempre aqueles que gostam de andar curvados, mas isso é um problema já de cada um. Agora a vida foi completamente distinta e é evidente que o processo de conquista é muito realizador do ponto de vista da satisfação das nossas necessidades, mas é que o processo de resistência também tem os seus encantos, os seus atrativos. Porque de cada vez que evitamos a perda de um direito é uma alegria incontida, sendo que quando a gente conquista todos sentem. Portanto, se conquistamos um aumento de salários, todos ficam satisfeitos, porque no final do mês sentiram um aumento de salário, não é? E quando nós evitamos a perda de um direito, ninguém sente. Portanto, é mais fácil para um dirigente sindical… é mais fácil o processo de conquista do que o processo de resistência. Mas também dá uma alegria imensa quando nós dizemos, “querias isto, mas não conseguiste”... P: Então, passando para o período de resistência, nestes 47 anos de democracia houve outras lutas, se calhar agora lutas de resistência, quais é que foram aquelas mais relevantes já no pós 25 de novembro? Luís Garra: Eu já referi a greve de 1981, essa é a marca. Depois, a ver se me lembro de oferecer um livro do Gabriel Raimundo que escreveu sobre essa greve. É um bocadinho ficcionada, mas tem alguns elementos de realismo sobre aquilo que se passou. Mas depois, essa greve tem uma característica, dado o processo repressivo que se abateu sobre ela. Porque as forças policiais carregaram sobre os grevistas. Houve tiros, houve pessoas feridas com tiros, houve perseguições de patrões a trabalhadores que culminaram com ferimentos de trabalhadores com tiros. E, portanto, foi um processo muito, muito complexo. Eu, por exemplo, era o porta-voz da greve, não era o presidente do sindicato, mas era o porta-voz da greve e a partir de uma altura iam-me por a casa e iam-me buscar a casa, porque as ameaças sobre mim eram muitas, porque eu era a face visível da greve, embora houvesse dirigentes que tiveram um papel tão destacado ou mais do que o meu. A vantagem dos porta-vozes é que falam, mas depois estão os outros todos ali a dar a cara e o corpo à luta. Você vai entrevistar um homem que teve um papel destacadíssimo, que é o Ramiro Reis, um papel destacadíssimo nessa greve. Se calhar até um papel mais destacado na organização de piquetes, da resistência, do que eu, porque aquilo foi intenso. Eram três dias com piquetes de manhã à noite. Não se dormia. Ia-se à cama 2/3 horas. E era responder a comunicados uns em cima dos outros, contra informação, etc. Portanto, foi um processo muito, muito complexo e exigente, mas também muito formativo. Mas dizia que essa greve, dado o caráter repressivo que teve, o movimento de solidariedade nacional que estabeleceu, deu confiança para que o movimento sindical tivesse as condições para que em Fevereiro se fizesse a primeira greve geral, em 12 de Fevereiro, de 1982. Foi a partir desta greve aqui, repare nesta questão, não é puxar pelos galões, nem sequer são galões pessoais, são galões coletivos: a greve dos mil escudos em 1974 abre caminho à fixação do salário mínimo, 3300 escudos. Foi essa greve. Eu acabei por não dizer, mas eu escrevi no documento que enviei, abre o caminho à fixação do salário mínimo, porque aqueles 1000 escudos davam exatamente, deram a força necessária às forças progressistas que estavam no governo, à esquerda, que estava no governo para criar e faixar o SMN. A greve de 1981, de resistência, já abre o caminho para que se convocasse a greve geral, com um objetivo muito claro, a demissão do Governo da AD. E é partir deste processo da greve de 1981 que se despertou e se criou as condições de confiança. Mas a greve de 1982 coloca na ordem do dia a necessidade do desgaste do governo da AD. E cai o governo depois, mais tarde vem a cair. Portanto, isto enche-nos um bocadinho, e desculpem lá, enche-nos um bocadinho o ego. Principalmente porque estivemos no processo e tínhamos consciência do que é que estávamos a fazer, de que esta greve de 1981 tinha um simbolismo muito forte de resistir contra a retirada de direitos conquistados no 25 de Abril. O contrato de 1975 tinha esse simbolismo, mas também tinha esta dimensão mais política. A estrutura da CGTP foi importante porque a partir do momento que criou o Conselho Nacional, com praticamente todos os coordenadores das uniões, das federações e dos sindicatos nacionais e outros dirigentes, passou a ter uma informação muito mais próxima daquilo que era a realidade do todo nacional. E, portanto, eu sinalizo estas alterações também como muito importantes no trajeto, na afirmação do projeto unitário e na natureza de classe e de massas do movimento sindical. Acho que isto foi muito importante. Eu lembro-me que nós, no início deste processo, nos primeiros anos em que eu fui membro do Conselho Nacional, dos anteriores eu não posso falar, mas nos primeiros em que eu fui membro do Conselho Nacional, a ideia que eu tenho era de debates muito fortes, muito intensos, discutia-se à vírgula. Porque nós estávamos a construir os enunciados teóricos e programáticos da CGTP. Porque aquele processo revolucionário permitiu fazer um caminho e aquilo que está escrito hoje também é o resultado da resistência ao fascismo, do processo revolucionário e depois aquilo vai traduzido para o acervo de orientações que hoje a CGTP tem. Mas lembro-me perfeitamente que eram reuniões quase intermináveis, muito desgastantes. Às vezes duravam dois ou três dias, pela noite dentro. Porquê? Porque nós estávamos a construir, sem aquela preocupação de uns imporem aos outros uma orientação, estávamos a construir, preocupados em encontrar as melhores soluções que nos unissem. Eu já não passei por aquela fase, daquela guerra da unicidade. Passei aqui, mas não na CGTP. Passei por esta fase, mais de construção do acervo teórico e de orientações programáticas que nós hoje temos e os momentos em que foi preciso definir linhas de confrontação com o poder político e com o capital. Aliás, o poder político interpretou sempre os interesses do capital. Nós às vezes dizemos, o poder político e o capital, quando eles no fundo atuaram sempre, às vezes com nuances, dependendo de quem estava no governo, mas no fundamental era uma grande articulação entre o poder económico e o poder político. Ainda hoje essa promiscuidade é uma coisa horrível. Eu hoje sei muito mais dessa promiscuidade do que sabia nessa altura e o que eu hoje vejo, essa promiscuidade, é uma coisa que ofende. Mas esta questão do confronto com o poder político e com o poder económico foi sempre uma questão e, aí, tenho que dizer a verdade: foi sempre possível, mesmo quando era o Partido Socialista sozinho, acompanhado, geralmente mal-acompanhado, que estava no governo, os dirigentes sindicais que tinham como filiação partidária, e ainda têm, o Partido Socialista foram importantes no sentido em que entre o partido e os trabalhadores puseram os trabalhadores à frente. Claro que procurando mitigar sempre o confronto com o partido que estava no governo, mas fazendo uma opção de classe muito forte. Eu retenho com uma grande saudade aqueles dirigentes sindicais que eram militantes do Partido Socialista e que foram fundadores, criadores da CGTP, e que são construtores deste projeto. Porque foram muito importantes no combate ao divisionismo sindical. Muito importantes. É claro que todos, todos os que lá estivemos, fossem comunistas, fossem socialistas, fossem católicos, fossem de outras correntes, todos eles, foram todos importantes. Mas estes, até pela própria natureza da criação do divisionismo em Portugal, da UGT, dos aliciamentos e até dos impulsos e das pressões que sofreram para irem para a UGT, e eles, ao fazerem a opção pela CGTP, também ajudaram a construir o projeto unitário. E eu creio que isto é muito importante e eu acho que este projeto, poderei até ser injusto na apreciação que vou fazer, mas se há projeto útil, belo, que foi construído em Portugal é a CGTP. É um projeto de uma criatividade que é distintiva no plano europeu. Eu conheço alguma coisa da construção do movimento sindical europeu. Estive no congresso que decidiu a adesão da CGTP à CES (Confederação Europeia de Sindicatos), o Congresso em Bruxelas. E, portanto, conheço alguma coisa do movimento sindical europeu. Não há um movimento sindical com estas características na Europa, porque nasceu da base. Não é um prolongamento dos partidos, deste ou daquele. É um projeto que é essencialmente unitário, em que os seus dirigentes têm todo o direito a ter partidos, como é óbvio, e ainda bem que fazem opções, eu tenho a minha também, mas isso não dilui esta importância do projeto unitário da CGTP. P: Queria voltar mais uma vez à questão de género, agora, já pensando nesta evolução. Na pesquisa que fiz, verifiquei que no setor têxtil especificamente foram desenvolvidas algumas iniciativas: houve um encontro da mulher na indústria têxtil. Gostava de perceber como é que foi vivida essa evolução? A luta das mulheres pela igualdade salarial, por exemplo? Luís Garra: Quando há pouco falava neste processo, entram estas iniciativas todas, que não foram todas apenas no distrito de Castelo Branco. Houve iniciativas de encontros unitários de mulheres que não eram propriamente organizadas pelo movimento sindical, mas onde o movimento sindical também estava. Houve esse encontro que refere, e, portanto, tudo isto faz parte do processo de alteração de mentalidades que foi sendo construído. Embora eu continue a dizer que o maior contributo que foi dado para esta alteração de mentalidades foi o da prática. Porque os encontros são importantes, porque sinalizam orientações, sinalizam objetivos, mas só por si não resolvem, pois é preciso no terreno trabalhar para isso. Eu valorizo muito o trabalho feito no terreno, quando se elegem mulheres para delegadas sindicais, quando se convidam mulheres para as direções sindicais, quando se dão responsabilidades às mulheres. Não apenas serem membros da direção, mas depois deixa lá, está lá, está lá, não sei quê e tal, mas não se dão responsabilidades. Por exemplo, hoje a presidente do sindicato têxtil é uma mulher. Fui substituído por uma mulher, portanto, este é que é o processo. Os encontros são muito importantes. Eu não estou a desvalorizar, até porque ajudei a organizar alguns, mas depois é preciso que haja trabalho no terreno e que isso passe a ser uma opção e não uma obrigação. Quando a gente faz as coisas por obrigação é uma chatice, parece que estamos a fazer um favor. Não é uma opção. Se as mulheres têm uma presença forte nas empresas, no trabalho, isso tem de ter tradução nas responsabilidades ao nível sindical. Isto é que tem de ser feito. E não foi preciso andar a dizer “sai um homem para entrar uma mulher”. Não foi preciso. As coisas apareceram, foram evoluindo naturalmente, mas lá está, a opção força. Quando se toma uma opção, naturalmente está-se a forçar as decisões. P: A outra questão que eu também gostava de perceber melhor é como é que se desenvolveu a articulação entre o movimento sindical e os outros movimentos associativos? Luís Garra: A cooperativa era a da Nova Penteação, era de uma empresa. Houve uma cooperativa de consumo, mas estava ligada a uma empresa que era a Nova Penteação. Houve até duas, houve uma outra, também na Lanofabril. Eu não tive uma vivência muito forte a esse nível. P: Mas considerando a tua vivência no movimento associativo em geral, a relação entre o movimento sindical e os outros movimentos associativos? Luís Garra: Nós tivemos sempre uma relação estreita com o movimento associativo. Porquê? Porque a origem do movimento associativo na Covilhã tem uma componente operária muito forte derivada da própria morfologia da Covilhã. Repara: GER Campos Mello, no cimo da Covilhã, GER quer dizer Grupo Educação e Recreio; GIR do Rodrigo, Grupo de Instrução e Recreio, na parte baixa da cidade. E depois tínhamos as coletividades no centro da cidade, a Banda, o Oriental de São Martinho e depois aquelas já no tempo do fascismo, através daquelas coisas da FNAT, multiplicaram-se em uma série de bairros e freguesias. Mas mesmo essas eram espaços do convívio dos trabalhadores, que não tinham televisão, que não tinham casa de banho, era lá que tomavam banho. Era lá que jogavam às cartas, era lá que também conversavam sobre a vida, sobre a vida dura que tinham. E, portanto, dado que o sindicato é uma instituição (isto pode ferir os ouvidos dos mais puristas ideológicos), mas eu não tenho problemas que os sindicatos sejam uma instituição da Covilhã. Como, por exemplo, tínhamos uma delegação no Tortosendo, que era uma instituição no Tortosendo. Tínhamos mais a delegação de Unhais da Serra, que era uma instituição em Unhais da Serra. Tínhamos uma delegação em Cebolais de Cima, que era uma instituição em Cebolais de Cima. E eu quero dizer que sou daqueles que defendo que o movimento sindical deve estar implantado nas empresas, os seus espaços prioritários de ação são as empresas, mas é importante que esteja também implantado nos meios em que se insere. Isto é o tal caráter de instituição, e instituição não significa aculturação, nem significa submissão ao poder. Mas respeito do poder por esta instituição. Portanto, foi assim que eu sempre concebi. Isto vem de antes e manteve-se: o sindicato é reconhecido institucionalmente, está ali a medalha de mérito municipal dado pela Covilhã, pela Câmara da Covilhã. E, portanto, esta ligação, este conceito de instituição, implica ter uma ligação estreita com as coletividades. Por isso somos sócios do INATEL, o sindicato é sócio do INATEL e faz iniciativas com as coletividades e tem relações de cooperação com as coletividades. E, portanto, nós achamos que esta ligação é muito importante, até pelo cordão umbilical que nós temos com elas e elas connosco. P: E também pela própria multiposicionalidade dos dirigentes, não é? Luís Garra: É o meu caso, então. P: O que é que essa realidade de seres dirigente quer sindical quer da coletividade influi na articulação dos movimentos? Ou seja, o facto de haver muitos dirigentes que são simultaneamente de uma coisa e de outra, isso determina um caráter quase conexo aos movimentos? Luís Garra: As vantagens, o que vem daí, é que nós aprendemos com um movimento associativo de base. Com as coletividades aprendemos muito, no relacionamento, nas relações interpessoais, nas dinâmicas locais e trazes para os sindicatos esta experiência e nós levamos para as coletividades uma conceção de organização de trabalho, de conceito de trabalho coletivo que eles não têm muitas vezes. Eu noto, quando entrei naquele mundo, que todos falavam ao mesmo tempo, não havia ali uma linha de condutora. Eu sabia o que queriam, mas era tudo um bocadinho anárquico e, portanto, a nossa forma de trabalhar mais programada, mais organizada, ajuda também as coletividades. E, portanto, eu acho que há aqui uma reciprocidade, um levar e trazer no bom sentido, que é muito importante. E por vezes nós conseguimos introduzir nas coletividades, não sei se se passa assim a nível nacional, aqui há muito esta ideia de “política não entra” e nós temos formas, até pela nossa experiência de trabalho unitário com os trabalhadores todos, tenham eles a filiação partidária que tiverem, nós depois temos uma capacidade de levar a política não no sentido partidário, mas no sentido dos princípios, para dentro das coletividades, sem rupturas, sem conflitos. E, claro, nós aprendemos muito nas coletividades. Nas coletividades nós temos uma sensibilidade para as fragilidades, os dramas sociais, que nas empresas por vezes não se manifesta. Nas empresas o que se manifesta é a compra e venda da força de trabalho, das injustiças que ali se geram, mas depois a tradução para o meio onde vivem só se consegue apreender quando estamos junto daquela malta toda. Portanto, às vezes apercebemo-nos de dramas de que não temos noção. P: Para além dessa dupla participação associativa, também vieste a assumir cargos políticos, depois do 25 de Abril, nomeadamente na autarquia. E como é que é essa relação entre a atividade associativa e a atividade política? Luís Garra: Do ponto de vista da compreensão pública não é fácil. Porque a ideia de que os sindicatos são dos comunistas, que é a voz corrente, acentua-se de cada vez que os seus dirigentes mais destacados, como era o meu caso, assumia responsabilidades de cariz partidário. Portanto, do ponto de vista prático essa ligação teve alguns problemas. Agora o que nós, o que eu tinha de resolver sempre, era como é que eu falava com os trabalhadores. Qual era a minha posição perante os trabalhadores. E, portanto, aquilo que procurei gerir foi: primeiro, o ter partido é um direito constitucional, que não pode ser negado, senão está-se a violar a Constituição da República. Porque a Constituição diz que os cidadãos podem, as pessoas podem estar filiadas em partidos. Se me estão a dizer que porque sou sindicalista não posso ter partido estão-me a retirar direitos. Implica essa explicação mais pedagógica do ponto de vista político. Depois, provando que quando eu estava na atividade política não estava a fazer mais do que levar para o plano político os problemas que eles me colocavam no plano social, no plano laboral e no plano sindical. Foi difícil ao princípio, depois as coisas foram sendo percebidas. Mesmo quando deixei de ter este tipo de responsabilidades políticas, porque hoje sou militante de base, não há essa figura, mas não tenho cargos de direção no partido, mas sou militante do partido, como é óbvio. Mesmo nessa altura, quando deixei de ser dirigente do partido, também ninguém me veio perguntar porquê. Ou melhor, quando deixei de ser, não foi por razões sindicais, foi por outras questões que não têm a ver com o movimento sindical. Portanto, essa questão está perfeitamente resolvida. Do ponto de vista pessoal e do ponto de vista sindical, eu costumo dizer aos dirigentes que um dirigente sindical, pela sua própria função, só consegue ter uma visão transformadora da sociedade se tiver uma boa base de formação ideológica. Porque senão está um misto entre o revoltado e o revolucionário. E os revoltados não fazem revoluções, os revoltados não transformam coisa nenhuma. Quem transforma são os revolucionários e para ser revolucionário tem de ter incorporado em si uma base ideológica. E quem é que pode dar este suporte ideológico? Quem pode dar este suporte ideológico são os partidos e, no caso concreto, dada a natureza de classe do movimento sindical, o único partido que está em condições de dar uma base ideológica de classe é o PCP. Pela sua própria natureza e pela própria origem do PCP, que nasceu do movimento sindical. Estou a falar do PCP português, não estou a falar dos outros, eu comparo-me é com o partido. Eu costumo dizer, eu usava uma expressão quando foi aquilo a Leste: “Eu estou a Leste do Leste pá. Desculpem lá: eu não fui para o PCP por causa da Rússia nem da União Soviética. Eu fui para o PCP, por aquilo que o PCP era, mais nada”. Claro que isto é uma forma de dizer, que eu estive lá e sofri a bom sofrer. Eu acho que o sindicalismo me deu uma base para ter intervenção, ação, o partido deu-me a base ideológica para fazer essa ação com sentido transformador. Depois eu fui candidato a deputado como cabeça de lista três vezes, fiz parte da lista uma vez sem ser cabeça de lista, fui candidato à Câmara Municipal, fui presidente da Assembleia de Freguesia e estive mais, para além destes quatro anos como presidente da Assembleia de Freguesia, estive mais de oito anos como membro da Assembleia de Freguesia, na freguesia onde eu vivo. Estive 19 anos na Assembleia Municipal da Covilhã. Tudo isto foi feito em simultâneo com a vida sindical, com responsabilidades sindicais. Portanto, tive de ter a capacidade de saber fazer muito bem a separação de quando estava a falar o Luís Garra em nome do partido e o Luís Garra em nome do sindicato. Nem sempre é fácil, confesso. Houve ali uns momentos em que às duas por três se gerava a confusão, mas a gente tem que ter o equilíbrio. Se me perguntarem, se eu estivesse noutra região, com maior influência, mais quadros, provavelmente não teria sido necessário fazer este trabalho, desta forma, porque com mais quadros, mais diversidade de tarefas, eu poder-me-ia manter concentrado apenas naquela que mais gostava, que era a tarefa sindical. Estava-me a esquecer, fui também, durante não sei quantos anos, eu tenho escrito, membro do Comité Central do PCP, portanto, estive ainda bastantes anos, saí em 2012. P: Só para terminar esta secção sobre a tua experiência pessoal, diz-me só de que forma é que achas que esta participação associativa mudou a tua vida? Luís Garra: Vamos lá ver. Eu não sei. É difícil responder, porque a gente não sabe se não tivesse sido, o que é que eu teria sido. É a vantagem dos historiadores. Portanto, como é que eu vou responder a isso? Eu provavelmente, dado o meio em eu fui criado, um meio pobre, mesmo o lugar onde fui criado era de muitos excluídos, de marginalidade. Provavelmente, se não tem sido esta minha, senão tem sido o 25 de Abril, a minha vontade no fundo de estudar, de estudar também. Porque eu esqueci-me de dizer que tinha tanta vontade de estudar que a minha primeira vocação foi ir para padre, mas depois não fui. Depois disse que não queria ir. Mas se não tem sido isso, eu provavelmente seria mais um daqueles cidadãos que trabalham, vão para o café, jogam às cartas, têm vícios, outro tipo de vícios. Portanto, a inserção na vida política partidária, a inserção do movimento sindical, a inserção no movimento associativo, deu-me uma dimensão… não me deu riqueza financeira, não permitiu que eu trabalhasse na profissão para que estudei, que era bem remunerada na altura, como técnico têxtil era muito bem remunerado, mas deu-me uma riqueza que de outra maneira não teria, que é a riqueza, primeiro das relações humanas, da perceção do outro e desta possibilidade de estudo permanente, de estudo nalguns casos empírico, noutros casos, porque as responsabilidades obrigavam a ler, a estudar, a interpretar. Permitiu-me um contato com pessoas de outra cultura, de outros graus académicos, que de outra forma, não teria. Isso é impagável. Isso não tem preço. Portanto, são os tais bens imateriais, não é assim que se diz? São os tais bens imateriais que a gente tem e que não são contabilizáveis. Eu acho que isto foi o melhor que me aconteceu. Do ponto de vista pessoal, alguns dizem: “Olha, foi o pior que te aconteceu, porque perdeste uma carreira profissional muito forte”. E eu, que sou desprendido dos bens materiais, digo que este foi o maior bem que eu tive. Não estou absolutamente nada arrependido, para desgosto de alguns familiares, nomeadamente a minha companheira, que gostaria e tem direito, teria direito naturalmente a ter outro tipo de vida. Foi uma vida intensa, multifacetada, cheia de grandes experiências, de grandes momentos, de solidariedade. Também de algumas facadinhas, mas isso faz parte da vida, algumas traições. É isto tudo que nos constrói como seres humanos. Neste momento já estou numa fase mais liberta, ainda tenho responsabilidades nos sindicatos e na União dos Sindicatos, embora já não sendo nem presidente nem coordenador, mas continuo a dar a minha colaboração, contínuo a ser dirigente associativo e estou sempre com projetos para o futuro. Portanto, precisamente porque adquiri esta formação. Isto foi fruto de quem? De todos aqueles com quem trabalhei, todos mesmo, mesmo alguns que disseram mal de mim, porque também esses me ensinaram. Portanto, todos, isso é fruto disso. -
Maria do Céu Ferreira
P: Maria do Céu, a sua propensão para a participação associativa é de família? Ou seja, algum familiar seu, o seu pai ou a sua mãe, já tinham alguma participação ou foi a primeira na família? Maria do Céu Ferreira: A minha mãe foi sempre uma mulher muito decidida e sempre se bateu pelo que achava certo. Naquela altura, a participação das mulheres operárias era zero. Militou na acção católica, foi da JOC, num tempo em que a JOC tinha características muito diferentes das que eu conheci. Eram outros tempos. O meu pai era um homem de uma grande generosidade, amigo de ajudar e participava nas comissões das festas do seu bairro de nascimento, no clube de futebol. Foi, com outros, fundador do Rancho Rosas da Biqueira, que mais tarde deu origem ao Rancho Folclórico de Gouveia, que ainda hoje existe. Ele foi sócio da Associação de Socorros Mútuos dos Artistas e Operários de Gouveia, da Banda de Música 5 de Outubro, dos Bombeiros e ainda do Desportivo de Gouveia. Nasci no seio de uma família operária com muita dificuldade, a vida era muito difícil porque de um momento para o outro a semana de trabalho era reduzida de seis para quatro dias com perda de salário, o que para uma família de seis pessoas, naquela altura, era a mesma coisa que recorrer ao “fiado”. Recordo-me da empresa onde o meu pai trabalhava, a fábrica do Alçada, ter encerrado e aí as coisas foram muito difíceis, mas também me lembro que o meu pai não ficou parado, porque quando eu nasci, em 1946, ele tinha construído, com a ajuda de pessoas amigas, um tear de madeira para tecer as primeiras mantas para o berço. Ele era tecelão, foi para uma fábrica com sete anos, por isso nunca foi menino e não aprendeu a ler, mas era um artista. Foi o produto saído desse tear que possibilitou ganhar algum dinheiro. Começou a tecer passadeiras e mantas de trapos e vendia. Eu era a filha mais velha, muitas vezes o acompanhei e apercebi-me que havia gente com muito dinheiro, casas riquíssimas, e casas dos pobres, sobretudo nas aldeias da Serra, onde as casas eram térreas e muitos telhados eram ainda de colmo e onde havia muito pouco, vivia-se da venda do carvão, e de uma agricultura de subsistência. Aquele tipo de desigualdades de certo modo marcou-me. Estas influências todas ficaram… Aos três anos fui para o patronato. Naquela altura, havia grandes empresas que normalmente faziam creches para os filhos dos trabalhadores. Aqui, na altura, não havia empresas de grande dimensão, não sendo a empresa que construiu e administrou o patronato. Foi uma irmã do patrão da empresa Bellino e Bellino, e cunhada do patrão da empresa Alçada, aquela que encerrou e onde o meu pai trabalhava. Esta senhora [...], solteira, católica, de missa diária, é a fundadora do patronato para as filhas dos operários das fábricas acima mencionadas. Dos três aos sete anos, a minha educação religiosa passou muito por esta instituição. Depois fui para a escola primária e, no fim das aulas, voltava ao patronato onde fazíamos os deveres de casa, lanchávamos, rezávamos o terço e íamos para casa. Qualquer ATL de hoje não é melhor do que aquele que eu tinha, excepto na questão religiosa. Quando fiz a quarta classe, e porque os meus pais não podiam pagar a continuação dos estudos, mas também não queriam que fosse para a fábrica, continuei no patronato, onde tínhamos um sistema de estudo como se estivéssemos no liceu (em Gouveia, na altura, era o único estabelecimento de ensino), mas em que as disciplinas eram: cultura religiosa, economia doméstica, puericultura, pedagogia, costura e bordados e tudo aquilo que as mulheres tinham que saber fazer em termos de limpeza da casa. Eram estas meninas que depois cuidavam das mais pequenas, da limpeza do patronato, que ajudavam na cozinha, e que era considerado o trabalho prático do que aprendíamos nas aulas. Tudo isto era orientado por uma assistente social, uma cozinheira e ainda por uma educadora de infância, que na altura não tinha este nome pomposo. Havia rotação de trabalho semanal, hoje aquela menina ia para a cozinha, na semana seguinte ficava a aprender a bordar ou a cuidar das mais pequenas. A minha formação foi nesta área. E claro, aquilo era feito como se estivéssemos numa escola. No Natal, havia testes, na Páscoa havia testes e no fim do ano havia testes com notas expostas e a partir do terceiro e quarto ano havia dois prémios: um prémio de bom comportamento e um prémio das melhores notas. Não sei porquê a Assistente Social começou a dar-me tarefas, que eram desafios grandes e que eu tentava dar o meu melhor, porque ela acreditava que eu era capaz e isso foi determinante para mim. No final dos períodos, ela obrigava-me a ficar no patronato a estudar. E eu sempre aceitei desafios e não queria deixar quem confiava em mim defraudada. De maneira que logo no segundo ano eu ganhei o prémio das melhores notas. Mas como no segundo ano as regras impediam a atribuição de prémios, não o tive, mas fui o centro das atenções. Ganhei o prémio no terceiro e quarto anos. No final de cada ano, fazendo coincidir com o dia 15 de agosto, havia missa cantada pelas alunas do patronato, onde participavam todas as forças vivas de Gouveia: desde o presidente da Câmara ao regedor. É claro que isso também me trazia alguns dissabores... Aprendi a bordar, aprendi a costurar, só não aprendi a tocar piano e a falar francês, mas até latim aprendi, por causa das missas. Posso dizer que tudo o que aprendi foi importante. O que eu estudei em Cultura Religiosa, sobretudo no Antigo Testamento, sobre os Filisteus, a Babilónia, etc., serviu-me quando estudei História para me propor a essa disciplina no antigo 7º ano. Considero-me uma boa gestora de recursos e isso devo à Economia Doméstica, porque ao fim de cada dia tínhamos que escrever, num quadro que existia na cozinha, os preços do que gastámos com a alimentação e dividia-se pelas pessoas que tinham comido e dava o resultado para cada pessoa. Este tipo de coisas é evidente que ficou. P: O que é que o seu pai lhe contava da participação na Associação de Socorros Mútuos? Maria do Céu Ferreira: Falava na maçonaria e dos pedreiros livres, que para mim soava a proibição e falava do homem que fundou aquela associação, que tinha ido como degradado para África (participou no 31 e janeiro no Porto) e que quando voltou casado com uma mulher negra, cuja foto está no Centro Republicano Pedro Amaral Botto Machado, era um homem anti regime. Aliás, todos os irmãos, (se for à Voz do Operário, vai ver lá com certeza o nome de Fernão Botto Machado), todos eram anti regime, por isso foi enviado para África. O meu pai, que foi também ardina, nas horas vagas vendia O Século e uma vez foi preso. Ele não sabia ler, o jornal tinha chegado tarde e alguém (hoje penso que podia ser algum viajante) lhe disse: você não vende o jornal mais rápido porque não quer, caiu o governo, anuncie que caiu o governo. E o meu pai anunciou que o governo tinha caído e foi preso. E foi ameaçado. A sorte dele foi mesmo ser analfabeto e ter uma mãe aleijada de um braço e de uma perna. E que ainda por cima era uma filha da roda. A minha avó paterna era filha da roda, eu não sei quem são os meus bisavôs. O meu pai falava nos disto tudo com um certo humor. Teve uma vida cheia de histórias. Pedreiros livres, maçónicos republicanos, para mim, eram homens bons. O Botto Machado, quando regressa a Gouveia, faz muitas obras em Gouveia. Uma grande avenida, que hoje tem o seu nome, fundou a associação de Socorros Mútuos, fundou uma banda de música, fundou uma escola, tudo isto para que os operários se instruíssem e não fossem para as tabernas, portanto era um homem querido, mas era um homem anti regime. Mesmo durante o regime de Salazar, era quase proibido falar do Botto Machado. Enfim, a associação existia, mas era quase proibido os sócios operários irem lá. Entretanto, lembro-me que o meu pai era sócio e essa associação, quando o meu pai não trabalhou, foi quem lhe pagou os medicamentos, portanto era uma associação que de certo modo foi pioneira a criar uma estrutura de apoio aos trabalhadores quando adoeciam. Considero-a o embrião do movimento sindical. Lembro-me de uma vez o meu pai me levar para o patronato e estava fechado, teve que me levar para a fábrica onde trabalhava, ainda nem sequer estava na escola, tinha quatro ou cinco anos e eu nunca mais me esqueci daquele ambiente escuro e das condições de trabalho. Quando mais tarde li Charles Dickens recordei tudo aquilo que tinha presenciado em miúda. Eu própria nasci e fui criada com fábricas à minha volta. Sempre me fascinou a fábrica, quando a minha mãe ficava a dar horas, e eu podia ir à fábrica levar-lhe o almoço para poder entrar ali, para poder ver aquilo tudo. Um dia em casa ouvi a minha mãe dizer que a Sociedade Industrial de Gouveia ia meter pessoal. No dia seguinte era sexta-feira, fui à empresa pedir trabalho. Nesse mesmo dia recebi a notícia que estava admitida. Fi-lo por duas razões: porque era importante o salário para ajudar a família e porque, como militante da JOC, devia estar onde estavam os trabalhadores. Nesse fim-de-semana fiz a minha bata exactamente igual às das meninas do colégio, com cabeção com umas preguinhas e levei o casaco comprido, que era uma coisa que as operárias não levavam. Para a fábrica levava-se xaile. Fui trabalhar para uma secção de homens, mas com um grupo de mulheres, incluindo a minha mãe. Creio que não fui muito bem aceite, mas foi por pouco tempo. A não aceitação tinha a ver com o facto de vir do patronato e as meninas do patronato não iam para aquela fábrica. Lembro-me que tirava a roupa que levava e metia a manga da bata, tirava a outra manga e punha a manga... portanto, menina católica, puritana. Era olhada com alguma desconfiança. Entretanto, introduzi-me bem e pus aquela gente toda a rezar o terço de volta da minha máquina. Portanto, a máquina era uma coisa grande, três mulheres de um lado, três do outro, e no mês de Maria, que era típico, a gente ir ao terço, eu punha a rezar aquela gente toda. O problema foi quando eu, para além de rezar o terço, quando sentia que alguma coisa estava mal, ia ter com o patrão e dizia que as coisas estavam mal. Um dia aumentaram os trabalhadores e a mim também me aumentaram. Mas deram-me 18 escudos e queriam que eu assinasse 21. E eu não assinei. E depois o patrão mandou-me chamar, porque é que não assina? Não assino porque se eu ganho 18 não posso assinar 21. Aliás, eu ainda ontem estive na missa com o senhor e ouvi dizer: dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. O patrão ficava completamente sem resposta. O pior é quando ele começa a perceber que ela reza o terço, mas depois faz-me a vida negra. Entretanto, na década de 60 é fundada em Gouveia a escola técnica, nocturna. E o sindicato, que era nomeado pelo patronato, paga o bilhete de identidade, paga entrada na escola aos operários/as, porque isto interessava a Gouveia (normalmente os patrões eram os vereadores na Câmara), para que a Escola ficasse em Gouveia e não fosse para Seia, e não tanto a pensar na valorização dos trabalhadores/as. Não era, no caso da Sociedade Industrial de Gouveia (SIG) interessar ter gente culta. Pronto, e o sindicato lá pagou. A mim ninguém me convidou. Não queriam que eu fosse, mas eu matriculei-me e fui para a escola, sem pagamento de ninguém, mas pago por mim. E, por incrível que pareça, fui a única mulher que acabou o curso. Fiz o curso de quatro anos e ao fim de quatro anos pedi equivalência ao segundo ano do Liceu. Entretanto, em 1969, com a queda de Salazar, homens ligados aos organismos da Acção Católica, nomeadamente à LOC, formam uma direcção e candidatam-se ao sindicato. Candidataram-se e ganharam. Eram pessoas com quem eu tinha grandes afinidades de amizades familiares. Numa primeira ou segunda reunião, para discutir contratação coletiva, eu convido uma senhora e vamos ao sindicato, participar na reunião. Coloquei o problema: porque é que tinham que ser homens a tratar de problemas que dizem respeito às mulheres, nomeadamente a maternidade? Deram-me uma salva de palmas, que se eu tivesse um buraco tinha-me metido nele. Entretanto, convidaram-me para fazer um comunicado e eu fiz, a apelar às mulheres para participarem. Na segunda reunião eram mais mulheres que homens. Uma coisa linda, linda. Entretanto, acabei de tirar o curso de fiação, era fiandeira e o patrão quase foi obrigado a promover-me e vou para o armazém, onde continuava a contactar com pessoas com quem tinha trabalhado. O armazém era de apoio à tecelagem e às urdideiras… P: E a participação na JOC, foi antes? Maria do Céu Ferreira: Foi muito antes. A participação na JOC, para além das reuniões que havia semanalmente, onde colocávamos os problemas que tínhamos na fábrica, era também onde começámos a ter contactos com outros núcleos e isso foi muito importante. A JOC de Gouveia começou a ter contactos com a JOC da Covilhã, com a JOC de Lisboa, etc. Isto deu-me a possibilidade de perceber o que é que se passava noutros lugares, noutras latitudes, no Porto, em Lisboa. Eu tive sempre muito mais afinidades com as organizações da Covilhã e zona operária do Sul do Tejo, do que com as do Norte. P: Como é que se estabeleciam esses contactos? Maria do Céu Ferreira: Era eleita a Direção Nacional da JOC e todos os anos havia pelo menos um ou dois encontros nacionais em que se discutia o plano de ação, que depois as direções diocesanas/ regionais implementavam. Houve uma altura em que eu fui nomeada para dirigir só o trabalho das jovens jocistas. O termo era este: responsável pelas novas. De certo modo, foi isto que me levou primeiro quer para a fábrica quer para o sindicato. Para mim, o sindicato era uma coisa que devia defender os trabalhadores, de tal ordem que uma vez subi ao sindicato e perguntei: se o sindicato tem uma biblioteca, porque é que a biblioteca não está ao serviço dos trabalhadores? O homem que lá estava ficou a olhar para mim, deve ter pensado que era maluca. Porque aquilo era um lugar de homens. Os homens iam lá para ver televisão, ler o jornal e não questionar muito. Porque é evidente que, naquela altura, todas as queixas que se fazia os patrões e a PIDE sabiam, que ninguém tenha dúvidas. Claro que eu não tinha essa ideia, eu tinha a ideia de que se eu não estou a fazer nada de mal, porque é que devo ter medo de dizer o que era a verdade? Era essa inocência, não sei… Para mim, aquilo era o bem, se era algo de bem que eu tinha aprendido na JOC, se era a mensagem de Cristo… Claro, mas isto começou a ser incómodo. Realmente, a minha empresa começou a ser um alfobre de gente, possivelmente com ideias políticas, mas eu não sabia. Aliás, eu quero dizer que foi uma vez num encontro da JOC que eu ouvi um padre pela primeira vez a falar do Mário Soares e nem sequer ouvi falar de Álvaro Cunhal. Eu sabia que havia comunistas, sabia que havia alguns em Gouveia, deliciava-me a ouvir as histórias deles. Mas nesta fase, já muito mais perto dos anos 70, as coisas já estavam um bocadinho mais diluídas. A greve de 1946 foi muito dura, esteve muita gente presa, houve muita gente que teve de emigrar internamente e para o estrangeiro, mas também vieram pessoas estranhas de fora para apaziguar, nomeadamente médicos: um foi presidente da Câmara e mais tarde ministro do Interior, até o padre (os que cá estavam, que eram mais progressistas) veio de uma aldeia, e realmente eles conseguiram. A SIG continuou a ser uma empresa com gente unida e que conseguia travar muitas atitudes divisionistas. Quando fui urdideira, o responsável pela secção dava cinco centavos por cada corte urdido. Ora, quem conhece este trabalho sabe que quem urde mais cortes não é quem mais trabalha, então só havia uma forma de todos nos ajudarmos. O dinheiro juntava-se e no final da semana dividia-se. Isto levou a uma grande entre ajuda e deitou por terra aquilo que o chefe pretendia. P: Era o seu pai que lhe contava sobre a greve de 1946? Maria do Céu Ferreira: A minha mãe, a minha mãe participou na greve e até dizia que as amigas dela diziam: tu fazes greve porque ainda estás a comer da boda de casamento. A greve foi em abril e a minha mãe tinha casado em 27 de fevereiro. O meu pai creio que não fez greve. Mas o meu pai falava muito na associação de classe. Ele falava da associação de classe muito anterior à greve e até contava a história que o patronato dizia: “ide para vossas reuniões que nós vamos para as nossas”. Nós sabemos da vossa e vós não sabeis das nossas. Os patrões sabiam tudo o que se passava na reunião dos trabalhadores, mas eles não sabiam o que se passava na dos patrões. E outra: por exemplo, durante a Segunda Grande Guerra, havia um burguês, que era doutor de leis, que eu não conheci, esse dr. dizia: nós cá ainda não comemos nem cães nem gatos, quer dizer que em Portugal não havia guerra, e que não tinham comido nem cães nem gatos. E o povo que passava fome arrombou-lhe a casa para lhe roubar a “tulha”, porque realmente as pessoas tinham fome. Ele não tinha comido cão nem gato, ele, porque ele tinha muita gente da agricultura a trabalhar para ele. Ele tinha terras, portanto dava terra às “terças”. É assim: dois terços é para nós, um terço é para quem produzia. Portanto, eles tinham tudo. Estas histórias, este ambiente na família existia, eu fui muito tocada por ele. P: Quando começou a participar no sindicato foi na altura da discussão do contrato coletivo de trabalho? Maria do Céu Ferreira: Sim, eu fui à primeira reunião. Como já disse anteriormente, esta segunda reunião em que já participaram muitas mulheres, foi uma coisa mesmo bonita. Nesta altura eu ainda não era dirigente sindical, ainda não estava na direção do sindicato, mas fazia parte de um grupo que fazia os comunicados, sobretudo quando se tratava de problemas específicos de mulheres. Eu ia para a fábrica às seis e meia da manhã, trabalhava por turnos para estudar à noite, saía às 11 da noite e ainda íamos para o sindicato fazer comunicados. Foi um período muito envolvente, foi uma época muito rica. Quando, em 1973, há novamente eleições, eu vou para a direção do sindicato e é aí que eu começo a participar na CGTP, embora eu, não sendo da direção do sindicato, já ia às vezes com eles a algumas reuniões. E aí eu começo a trabalhar muito com as pessoas da Covilhã. Aliás, eu sempre gostei da Covilhã, mesmo ao nível da JOC eu reunia muitas vezes na Covilhã e há uma altura em que havia um homem que era da LOC, um homem muito interessante, que era debuxador, e nós deixámos de o ver e eu fiquei sempre com aquela ideia de que ele tinha emigrado, de que ele tinha fugido. Mais tarde encontrei-o na Festa do Avante! e alguém chamou: Oh [...], anda cá -mas eu conheço o [...]. E perguntei-lhe: não eras tu que estavas na LOC nesta altura e emigraste? Sou eu! Então olha, eu sou a Céu. Foi então que ele me contou que teve mesmo de fugir. Há todas estas influências ao longo desta caminhada. P: Esses contactos com a Intersindical foram ainda antes do 25 de abril? Maria do Céu Ferreira: Sim, eu participei em muitas reuniões antes do 25 de Abril. Eu era menina, porque eu ia de Gouveia com os homens todos e é engraçado porque fui sempre muito bem tratada, no sentido de protecção. Em 8 de dezembro de 1973 há, na Covilhã, um grande encontro do sector dos lanifícios. Eu tinha ido a Lisboa, a uma reunião da Inter, e vim directamente para a Covilhã . Participaram os cinco sindicatos dos lanifícios, que nessa altura já integravam a Intersindical. Era feriado, mas apesar de haver uma certa abertura do regime, a actividade sindical era sempre feita ao fim de semana ou fora do horário de trabalho, e foi nesse encontro que tomei consciência pela primeira vez da presença da PIDE. Estávamos rodeados. Aquilo foi um grande encontro para discutir o aumento dos 1000 escudos. Nessa altura, trouxemos circulares para serem distribuídas pelos trabalhadores e qual é o meu espanto? As circulares desapareceram. Perguntei ao presidente, o tal que fez o discurso no Natal e ele foi se desculpando até que aparecem, mas recusava-se a distribuir. Essa fase de dezembro de 1973 a 1974 foi uma fase muito difícil, em que já se notava uma grande pressão, da PIDE, e das forças vivas de Gouveia. Por exemplo, eu entrava no sindicato sempre com polícia à porta, mas naquela altura nem ligava a isso. Um dia, fui avisada por um amigo: se tens alguma coisa lá em casa que te incomode, é melhor pores fora. O que é que eu tinha em casa que me incomodasse? Assinava as edições D. Quixote, que normalmente saíam e imediatamente eram proibidas. E recebia algumas cartas, por exemplo do Laboratório Bial, e vinha lá dentro propaganda de outros sindicatos e de outra gente, sobretudo do Dia Internacional da Mulher, mulheres que faziam iniciativas e me mandavam. E eu todas essas coisas guardava. Resolvi guardar em casa de um irmão. Vinha eu a voltar para casa com a minha irmã e o meu pai e passam muitos carros. E ao outro dia, a minha irmã que trabalhava num pronto-a-vestir em Gouveia, o presidente da Câmara, que frequentava o estabelecimento perguntou: então menina, ontem você e a mana vinham de onde? Vínhamos de casa do meu irmão. Ele vinha com o Governador Civil. Aí é que eu comecei a sentir, a ter noção da vigilância Entretanto, no fim de março, todos os técnicos e os quadros intermédios da empresa são aumentados e eu, que era quadro intermédio, não tive aumento. Fui ao escritório falar com um dos patrões e disse: sou quadro intermédio, cumpro o meu dever, como sabe, trabalho muito e não me aumentaram. Responde: nós vamos fazer uma reconversão na fábrica e como a Maria do Céu é a pessoa mais nova e não tem família para governar, vamos despedi-la. E no dia 4 de abril era despedida, com um cheque de pouco mais do que 20 mil escudos e com os maiores elogios. Respondi que o meu despedimento era por ser dirigente sindical e que por essa razão o cheque tinha que ser a dobrar. Entretanto, participei aos quatro sindicatos dos lanifícios, participei à CGTP e também não foi nada que me admirasse, aliás eu já tinha escrito ao Manuel Lopes dizendo que mais tarde ou mais cedo era normal que fosse isso que ia acontecer. Aliás, nessa altura aconteceu outro despedimento, na Castanheira de Pera. As manifestações de solidariedade foram muitas, quer dos sindicatos quer ainda dos trabalhadores. Em 17 de Abril realiza-se um plenário pela minha readmissão e pelo aumento de 1000 escudos, com tanta gente que houve muita gente que não conseguiu entrar no sindicato. Nesse dia ficou marcado um outro plenário para o dia 28 de abril de 1974 em instalações que permitissem ter muita gente. Não foi nada fácil ceder instalações, pois o que havia estava dependente de gente do regime. Entretanto, o Governo Civil da Guarda tinha enviado para o sindicato uma contra fé, creio que era assim que se chamava, para me apresentar no Governo Civil no dia 25 de Abril. Eu e um padre. Possivelmente sabiam que, possivelmente, o 1.º de Maio ia ser celebrado e, portanto, era melhor engavetar dois ou três. E isto era geral ao nível do País, como mais tarde se soube. Entretanto, o 25 de Abril acontece e conseguimos o cinema para fazer a reunião no dia 28, que continuava a ser pelo aumento dos 1000 escudos e pela minha readmissão. E ainda nesse dia 28 foi feita a primeira manifestação em Gouveia depois do 25 de abril, onde pela primeira vez se falou em socialismo e comunismo. Houve ainda uma manifestação de trabalhadores junto à sociedade industrial pela minha readmissão, que foi feita no dia 2 de maio. Uma amiga minha trabalhava no laboratório e foi uma ativista pela minha readmissão, e o patrão que sabia ser minha amiga, vai ter com ela e diz-lhe: pode ir ao sindicato dizer à Maria do Céu que pode vir trabalhar amanhã. E eu cheguei à empresa e entreguei o cheque que eles me tinham dado. Porquê? Porque aquele cheque não era aquilo que me pertencia, era o dobro. E como era o dobro eu não aceitei e por isso esperava que fosse resolvido. Entretanto, como eu estava despedida, acabei por ir ao seminário e pedir ao padre, que me tinha e tem muita estima e amizade, para poder facultar as aulas do quinto ano para poder fazer algumas cadeiras. E lembro-me que no 25 de abril chego ao seminário e estava o padre [...] à minha espera. Disse-me: há uma revolta em Lisboa, está a haver uma revolução, e eu só lhe pergunto, é da ala Kaúlza ou é da ala Spínola? Como se fossem muito diferentes, não eram muito diferentes, mas na altura as coisas eram assim, porque, entretanto, o Spínola tinha escrito aquele livro Portugal e o Futuro, e ele disse-me: não sei. Mas, entretanto, ao intervalo diz-me: olha, é do Spínola, porque o professor de Física, a mulher é francesa e ouviu na rádio francesa as notícias. Pronto, e eu vim para casa e digo à minha mãe: olha há uma revolução em Lisboa, eu já não sou presa. E a minha mãe diz-me: o meu filho já não vai para a guerra colonial. O meu irmão mais novo… E digo-lhe eu: olha, mãe, mas atenção, que tu tens dois irmãos, que um é vice-governador de Vila Pery e o outro está na Emissora Nacional. Pois, eu nunca sei do que está em Vila Pery o que será. E realmente era um homem do regime. O que estava na Emissora por acaso era comunista. Depois do 25 de abril, a história não está feita. Foi um tempo com muitas solicitações, eu pesava 55 quilos, perdi 10 quilos. Porque eu vinha de Lisboa, chegava às 15 horas a casa, à meia-noite metia-me num comboio para chegar a Lisboa de manhã, o meu sistema nervoso não me deixa comer, eu sou assim, foi muito tempo… P: E o primeiro de maio em Gouveia, como foi? Maria do Céu Ferreira: Eu não estive no 1º de Maio em Gouveia. O sindicato levou um autocarro para Lisboa, mas aqui ficaram outros dirigentes que o organizaram e foi grande como em todo o lado. Eu, no primeiro de maio, fiz parte da segurança da manifestação em Lisboa e eu escrevi aquilo que eu senti naquela altura, na braçadeira que levei e que guardei até hoje. Depois há o 28 de setembro, depois o 11 de março, eu sempre muito envolvida com o MFA. P: Conte-me lá como foram essas iniciativas? Maria do Céu Ferreira: Íamos às aldeias falar com as pessoas, explicar o que tinha sido o 25 de Abril , o que é que os militares cá estavam a fazer. Era essencialmente isso, nalguns casos aqui não houve muita participação, mas a engenharia militar veio abrir caminhos: na dinamização cultural, na alfabetização, na iniciativa contra a marcha [da chamada maioria ] silenciosa, contra os boicotes nas empresas. Foi gratificante sentir que contribuí para a consolidação do 25 de abril. De tal ordem foi o envolvimento que um dos militares que passou por aqui convidou-me para madrinha de casamento. Quando foi do 11 de março, os militares foram para estrada inspeccionar os carros, quem ia e quem não ia, e nós íamos também. P: Havia uma relação entre o MFA e os sindicatos? Maria do Céu Ferreira: Aqui havia, aqui houve sempre e foi de grande ajuda mútua. P: Quais foram as iniciativas mais importantes em Gouveia? Maria do Céu Ferreira: Estamos a falar em termos sindicais. As iniciativas mais importantes foram ao nível da empresa. Ao contrário do que se imaginava, a empresa onde trabalhava, apesar de ter feito uma festa no final de 1973, de ter aumentado os quadros técnicos e administrativos, parece que não tinha tanto dinheiro assim. Aquilo era uma sociedade anónima, mas em que uma família tinha a maioria das ações e praticamente essa maioria é que governava. Essa maioria não estava interessada em investir dinheiro e então o que é que fazia? Gastava. Comprou outra empresa, depois do 25 de abril, que se dizia que era para acabar com aquela, e para levar só alguns trabalhadores da S.I. Gouveia, onde estavam, para essa empresa que foi comprada. Associou-se essa empresa a um vendedor e a um empreiteiro e formaram uma empresa de construção civil. Servia para fazer obras de construção civil nas empresas e para onde canalizavam o dinheiro. Essa empresa que foi comprada teve que ser reabilitada, havia dividas... e o cheque que a empresa teve de passar era de 300 contos, quando a obra não tinha sido mais do que 30 contos, isto dito por um dos sócios. Esse vendedor vai a minha casa, à casa do meu pai na altura, para eu denunciar o que estava a ser feito, e eu disse-lhe: tenho muita pena, mas se o senhor não me der papéis eu não vou denunciar. Porque depois também havia o aproveitamento de muita gente, a mandar recados para os outros dizerem. Entretanto esse patrão morreu, mas quando foi o 25 de novembro dizia-se que ele estava no Brasil. P: Houve alguma tentativa de implementar o controlo operário? Maria do Céu Ferreira: Na minha empresa criou-se uma cantina, um médico… Esta questão de controlo operário em autogestão não, mas que a gente queria saber como é que era e como não era sim. Criámos a cantina, que ainda durou algum tempo, mas depois acabou a empresa, acabou a cantina. O médico era um verdadeiro socialista, mas de verdade, um homem que lutou contra a ditadura e que também por isso sofreu e foi expulso da função pública e que aceitou vir para a empresa dar consultas. E houve melhorias, é evidente, das condições de trabalho. Era uma empresa muito apoiada pelo antigo regime, a maior parte do trabalho era para a guerra, para a Marinha, para a GNR. Portanto, para além da instabilidade de o patrão não se adaptar aos novos tempos, de uma quebra de algumas encomendas, houve greves por não pagarem os salários e mesmo assim conseguimos que o Ministério da Indústria desse dinheiro, aí também com a ajuda do MFA. Entretanto, esse patrão morre, fica o cunhado, que não percebia nada, nada, nada de indústria. Portanto, mete-se a família na empresa, só porque é família, não percebia nada. Depois ainda se tentou uma comissão para controlar, mas não resultou. Depois descambaram, porque numa altura em que os trabalhadores queriam que as coisas andassem, inclusivamente quando veio dinheiro para salários, abdicaram dos salários para comprar matéria-prima, esse patrão despede sete ou oito trabalhadores. Aquilo criou um conflito que nunca mais foi sanado e a empresa fecha. E os trabalhadores ficaram três meses à porta da empresa, em tendas, isto foi no princípio de 1981, com grande apoio e solidariedade, mas também com a polícia a fazer guarda para nos demover. Havia um trabalhador que tinha a incumbência de, se viesse a polícia, ir aos bombeiros tocar a sirene. E fez, e foi julgado, mas absolvido. P: Não está a falar da greve dos 29 dias? Maria do Céu Ferreira: Não, essa greve aqui não existiu. Essa foi na Covilhã. Aqui é uma outra greve, pela readmissão dos sete trabalhadores, mas já era impossível... A greve terminou, mas depois o patrão fez lock out... Foi uma coisa trágica. Depois fechou, foi muito mau, porque eram 400 trabalhadores, famílias inteiras e na altura o que valeu foi a emigração para a Suíça. P: No 25 de abril houve algum movimento popular para a construção de infantários, saneamento básico? Maria do Céu Ferreira: Gouveia era uma terra já com boas infraestruturas, mas por exemplo houve movimentos para mudar nome de ruas e um movimento para criar um lar que era um solar, onde hoje é o museu Abel Manta, mas depois se chegou à conclusão que não havia condições, que aquela casa não tinha condições para ser um lar e a família deu-a para o museu. Houve ocupações de casas, mas não foram coisas muito duradouras. Não sei qual é a explicação, mas, por exemplo na minha empresa, os quadros técnicos eram quase todos oriundos da Covilhã. Sendo assim, não era fácil haver interesse nesta coisa da toponímia, do lar… Acaba por ser uma pequena burguesia, onde depois é importante ter alguns operários e ter o sindicato. Mas é também verdade que, nessa altura, o sindicato estava muito virado para as lutas nas empresas, para a luta das 42 horas e meia. Não era muito possível estar em todo o lado. E também na altura foi obrigatório fazer eleições, foram umas eleições terríveis, aí houve grandes clivagens, apareceu a nossa lista, a minha lista, e apareceu uma lista ligada ao patronato. Foi uma campanha que parecia uma campanha eleitoral. Lembro-me que na noite antes das eleições aparecerem uns panfletos a dizer “não votes na Catarina”, Catarina era eu. “Não votes na lista dos comunistas”, que na altura era eu. E estávamos no sindicato e aparecem três ou quatro a querer falar com o presidente da assembleia-geral, já eram umas nove da noite. E nós não o deixámos ir sozinho e fomos com ele. A ideia era roubarem as urnas, era a gente sair dali, ir atrás dele, e roubarem as urnas. E, entretanto, no sindicato já não havia muita gente nessa altura e eu lembro-me de que tinha lá a minha irmã, e ela realmente tem uma grande perspicácia, e disse “olha que eles estão preparados para… olha que eles até lanternas têm”. E eu lembro-me de ter telefonado para o restaurante onde havia um camarada e onde era possível que alguns trabalhadores tivessem ido para lá. “Venham para cá porque isto está rodeado de gente que não ganhou as eleições, mas que está disposta a boicotar estas”. Ganhámos em todo o lado, menos na cidade da Guarda. P: Qual foi o papel da JOC e da LOC no período revolucionário? Maria do Céu Ferreira: Eu já não participava na JOC. Eu acho que foi muito pacificador. Os antigos dirigentes antes de mim trabalhavam numa empresa e por lá se mantiveram. Embora um deles fizesse parte do sindicato, da assembleia-geral, era um homem pacificador, não era um radical e travava um bocadinho, mas também não foram anti... Mas nessa altura a LOC também já estava muito desfalcada. P: Houve uma maior participação das mulheres neste período? Maria do Céu Ferreira: Sim, sim, sim… Aliás, que já vinha de trás, atenção, já vinha de 1971-1972. Aliás, aquele comunicado foi realmente uma coisa… foi muito bom, nomeadamente quando estivemos três meses à porta da minha empresa. O trabalho das mulheres foi extraordinário. A fazer comida, a revezar-se, a fazerem os turnos. Eu acho que as mulheres às vezes demoram mais a aderir à luta, mas quando aderem é deixá-las ir, é deixá-las andar e às vezes é preciso pôr-lhes travão. P: Foram organizadas iniciativas específicas relativas à mulher trabalhadora na indústria têxtil, não foram? Maria do Céu Ferreira: Sim, nos lanifícios fizemos sempre coisas muito giras no 8 de março, embora também aí convidássemos homens. Não era uma coisa só para mulheres. Eu acho que a luta das mulheres tem a ver com os homens, que participam e ajudam. Mesmo nas empresas faziam-se coisas que depois se foram perdendo, também porque o sindicato mudou, as pessoas não foram as mesmas. Eu deixei o sindicato em 1978, fui para a União dos Sindicatos, e depois tive de voltar. Foi bom, acompanhámos sempre as lutas nacionais, a não ser a greve dos 29 dias, que foi mais na Covilhã. Acho que aqui não tínhamos arcaboiço para essa luta. A Covilhã era uma terra operária mesmo, aqui, a determinada altura, o patronato, mesmo antes do 25 de abril, quando foi da adesão à EFTA, a emigração, a guerra colonial, que levou muitos homens, eles foram buscar as mulheres ao campo. A população feminina era muito rural e isso é também um fenómeno que difere muito da Covilhã. Mas o patronato vai buscá-las não é por acaso, eles sabem muito bem o que fizeram: eles foram busca-las porque sabiam que era ali que deviam investir, porque havia pessoas ali que qualquer tostão era uma coisa ótima. Já muito depois do 25 de abril, estava eu na União dos Sindicatos, e lembro-me que uma empresa, que era dos vestuários, dizer: “o que ganho aqui gasto tudo aqui.” Se estivesse em casa, o que ganhava era para gastar com aquilo que faria em casa. O que ela gastava em transportes para vir da terra onde vivia para trabalhar, teve de pôr o filho na creche e a mãe num lar. E dizia-me: “contas feitas, só ficam 10 euros, mas é importante eu vir trabalhar.” E isto é verdade. Havia outra que me dizia “o meu pai pagava-me o dinheiro da fábrica para eu não vir trabalhar”. Portanto as situações são diferentes. A minha empresa, por exemplo, tinha pessoal que vinha da Covilhã, mesmo trabalhadores que vinham da Covilhã, não era só técnicos. Com outra visão. Era mais fácil de mobilizar. P: E quando foi para Guarda, quais eram as diferenças? Maria do Céu Ferreira: Na União era um bocadinho diferente. Eu fui coordenar vários sindicatos, mas creio que eu consegui, porque antigamente aqui no distrito tínhamos quatro sindicatos, lanifícios, metalúrgicos, rodoviário e o comércio. Claro que depois tínhamos trabalhadores, professores, função pública, que ao longo do tempo também se foram organizando na região. E a minha tarefa era unir essa gente toda. E realmente essa tarefa foi conseguida. Quando eu saí tinha os sindicatos todos praticamente na União, creio que agora também estão praticamente todos. P: E que tipo de atividades é que desenvolvia a União? Maria do Céu Ferreira: Desenvolvia atividade de levar à prática aquilo que a CGTP propunha para a região e sempre que um sindicato travava uma luta a União apoiava, inclusivamente aqueles sindicatos que não tinham qualquer tipo de organização, a União apoiava. Pode-me perguntar como é que a União tinha dinheiro. Os sindicatos davam um X por cada trabalhador, a CGTP dava um X. E mais tarde começámos a fazer formação profissional, muito mais tardiamente do que outros setores. E a União da Guarda sempre cumpriu aquilo que era uma prática: dinheiro da formação não é para a atividade sindical. Porquê? Porque isto podia levar a que a gente descurasse o trabalho sindical, tirava dinheiro daqui, punha aqui. E essa foi também uma tarefa conseguida, a União da Guarda comprou uma sede. Por exemplo, num conflito que houve numa empresa de metalurgia, em que os patrões queriam pôr os trabalhadores ao turno e os trabalhadores assinaram. Mas quando um trabalhador trabalha ao turno, tem de ter meia hora para comer, essa meia hora tem de entrar no horário de trabalho, e eles não queriam dar, e diziam “então eu não assino”. E houve um conflito, lá fui eu para o Ministério do Trabalho, e jornalistas também, isto quando há “sangue” lá vai tudo. Utilizei os argumentos todos, expondo: “se o Ministério do Trabalho é para defender os trabalhadores e para defender a lei, e a lei está aqui, está escrita. Por outro lado, se não fosse para defender a lei, não valia a pena haver Ministério do Trabalho aqui. Por outro lado, se o patrão quisesse fazer uma empresa com máquinas de costura umas em cima das outras, vocês iam lá e diziam que as máquinas deviam ficar a uma determinada distância. Se fazem isto com as máquinas tem de fazer isto com as pessoas. Se é importante para a empresa trabalhar por turnos, a meia hora tem de ser dada.” E a gente não chegou a conclusão nenhuma, e eu disse para um doutor “se a gente não chega a conclusão nenhuma, eu sei que o Manuel Carvalho da Silva amanhã vai ter uma reunião com o Diretor Geral do Trabalho em Lisboa e eu vou já mandar-lhe um email com isto para ele ver”. Mal tínhamos chegado à União, já tínhamos um telefonema a dizer “não mande nada, que o problema já está resolvido, agora é só acertar as coisas”. Claro, não podia ser de outra maneira. Pronto, eram estes pequenos grandes conflitos. Organizar manifestações, fazer uma greve, dar apoio aos sindicatos com mais dificuldades, quer financeiras , quer de quadros. P: Participou na própria estruturação da CGTP ao longo destes mais de 40 anos, quais é que acha que foram os momentos mais importantes? Maria do Céu Ferreira: É evidente que o momento mais importante foi o 1º de maio de 1974. Se não houvesse movimento sindical organizado na CGTP, o 25 de abril teria sido um golpe de Estado, mas nunca teria sido uma revolução. Também se calhar não foi assim tanto... mas conseguiu-se aquilo que se conseguiu, foi porque havia trabalhadores organizados. Eu lembro-me, por exemplo, de o Álvaro Rana ir à Cova da Moura dizer ao Spínola e a quem lá estava “o primeiro de Maio é feriado”. E o Spínola torceu o nariz e o Álvaro Rana disse “se o senhor não decreta, decretamo-lo nós, porque nós vamos para a rua” e tiveram que decretar. A primeira greve Geral de 1982, a marcha contra o desemprego, isto para dizer todos estes momentos foram momentos importantes, até os momentos em que a gente se sentia cercada, mas enumerá-los era quase um livro… P: Como por exemplo? Maria do Céu Ferreira: Por exemplo quando foi do 28 de setembro, lembro-me do patrão da Vodratex vir ao sindicato pedir-me para ir à empresa explicar o que se estava a passar aos trabalhadores. Porque quando se ouviu falar que havia outro golpe, o pessoal parou. E eu disse ao patrão “o que é que eu vou lá fazer?”, “Vem dizer o que se está a passar”. E fui e isso também mostrava a vitalidade do sindicato e a confiança que os trabalhadores tinham na sua organização de classe. Mas era também uma responsabilidade e um compromisso com a verdade. P: Participou nos congressos nacionais da CGTP? Maria do Céu Ferreira: Sim. Por exemplo, o Congresso de todos os Sindicatos foi uma coisa realmente fantástica, de unidade, em que era possível dialogar. Eu acho que a minha geração, a geração que agora tem 70 anos, era gente com convicções muito firmes, mas uma gente com uma capacidade de diálogo muito grande e isso permitiu chegar onde se chegou. O Kalidás era um socialista, puro, o que não o impedia de trabalhar com o Álvaro Rana, que era comunista, e com os católicos. Uma coisa que eu ainda hoje digo, eu lidava com muitos comunistas que não sabia que eram comunistas, mas que tinham um grande respeito pelas minhas convicções enquanto católica. Eu estive na Base-FUT, eu ainda sou da origem da Base-FUT, não continuei na Base-FUT, porque tinha de ir para Lisboa sozinha, não era muito compatível. P: Também participou nos Centros de Cultura Operária? Maria do Céu Ferreira: Participei nos Centros de Cultura Operária, sim senhor. Ainda hoje tenho aí montes de revistas e fazíamos reuniões muito giras em que discutíamos artigos. Eu lembro-me de uma discussão muito gira que foi ler o poema do menino do bairro negro, do José Afonso, e depois discutir. Havia os cadernos GDOC, que tenho ainda guardados, que discutíamos reflectindo e que foi de grande valia em termos sindicais. P: Foi em que altura? Maria do Céu Ferreira: Foi ainda antes do 25 de abril. Depois do 25 de abril foi mais difícil porque já estava muito envolvida. Os CCOs, que deram origem à Base-FUT foram criados antes, e foi aí que se criaram os cadernos GDOC e se fizeram discussões aturadas. P: Lembra-se dos encontros dos CCOs em que participou? Maria do Céu Ferreira: Lembro-me de alguns… . Claro que era tudo gente ligada à JOC, tudo gente que vinha da católica. P: Onde é que se encontravam? Maria do Céu Ferreira: Eu acho que alguns encontros já foram onde é hoje a Base-FUT. Eu não tenho a certeza, mas em Lisboa, na Federação dos Lanifícios, na Avenida Almirante Reis, onde é hoje a Inovinter, onde estava muita gente da Católica, em algumas situações serviu para reunir o CCO. P: Qual é memória mais marcante que tem do período revolucionário? Maria do Céu Ferreira: Marcante, marcante foi a minha readmissão. Depois foi a conquista do sábado, das 42 horas. Em pleno inverno, aquilo foi uma coisa... as empresas todas paradas ao sábado, os trabalhadores com fogueiras para se aquecerem e eu, com outros dirigentes, a fazermos a volta às empresas... Isto foi no inverno de 1975, foi antes do 25 de novembro, a conquista do sábado foi antes do 25 de novembro. P: Foi uma greve duradoura? Maria do Céu Ferreira: Não, nós parámos num sábado e nunca mais trabalhámos ao sábado. Aliás, nós fomos os primeiros do sector a ter as 42 horas de trabalho. O sector têxtil, para conseguir as 44 horas, fez outras manifestações e outras lutas. Os lanifícios conseguiram as 42,5 horas muito rapidamente, porque foi uma luta que envolveu quase 100% dos trabalhadores. E pronto, foi uma luta ganha porque as pessoas aderiam em força. P: E depois, ao longo do resto do período democrático, qual foi o momento mais marcante? Maria do Céu Ferreira: Marcante, marcante, foi quando fui para a direcção da CGTP. Não estava nos meus planos e isso pressupunha uma grande responsabilidade. Depois a um nível mais da região, eu acho que muito marcante foi aquele permanecer à porta da minha empresa durante três meses para que nada fosse retirado, mas sobretudo a grande solidariedade que houve, com os sindicatos estrangeiros a enviarem dinheiro para os trabalhadores. Eu acho que nunca mais houve uma iniciativa destas. Os sindicatos europeus manifestaram uma grande solidariedade. P: Eram estreitas as relações internacionais? Foi a algum congresso internacional? Maria do Céu Ferreira: Fui ao congresso da CFDT, Já numa fase posterior, A União fez e ainda faz parte de uma estrutura transfronteiriça com os sindicatos aqui deste lado da raia, Trás-os-Montes e Beiras e Galiza e Castela. Aí fui a uma série de encontros com os espanhóis e iniciativas conjuntas que se fizeram. Umas correram muito bem, outras nem tanto... P: Quais foram as iniciativas que fizeram? Maria do Céu Ferreira: Foi trazer trabalhadores espanhóis uma semana a Portugal. E aí foi necessário pedir apoios. Por exemplo, estou a lembrar-me: Pinhel emprestou-nos uma pousada para dormir, aqui a minha câmara deu-nos oitenta contos, na altura, para um almoço, e essa parte teve toda de ser trabalhada por nós. Depois eles organizavam a ida dos nossos trabalhadores, mas isso não aconteceu. Portanto, foram recebidas autarquias, houve intercâmbios com outras pessoas com outras formações, e isso foi importante. Teria sido importante os trabalhadores daqui terem contactos com os trabalhadores do lado de lá, mas eles não conseguiram. Fazíamos alguns encontros, mas eu acho que nunca passava muito disso. A ideia que eu tinha era de que a União Europeia tinha dinheiro para este tipo de iniciativas e era importante gastá-lo. Aquilo que nós temos é nosso, é com o dinheiro dos trabalhadores, os sindicatos espanhóis têm realmente ajudas estatais. Portanto, a não ser essas iniciativas de trazermos os trabalhadores para cá e os nossos para lá, para serem os trabalhadores in loco a verem a vivência de cada povo, não achei muito mais do que isso e nós não conseguimos levar os nossos trabalhadores, mas não dependeu de nós. P: E os sindicatos portugueses também organizaram movimentos de solidariedade com outros? Por exemplo a campanha de solidariedade com os trabalhadores moçambicanos pela federação têxtil, lembra-se disso? Maria do Céu Ferreira: Sim, mas aqui o próprio sindicato organizou campanhas dessas. Por exemplo, uma campanha de solidariedade a que nos associámos logo após o 25 de Abril foi com os trabalhadores de Gonçalo, que ficaram em autogestão e que depois formaram uma cooperativa. E a gente solidarizou-se não só comprando coisas, mas até fizemos um autocolante que vendemos para angariar dinheiro. Essa foi a primeira iniciativa solidária que fizemos depois do 25 de Abril. Mas com África não era a nível da federação, era ao nível da CGTP. Ao nível da CGTP, eu sei que nós fizemos uma grande campanha de solidariedade e nós contribuímos com muita coisa. P: Isso foi a seguir ao 25 de abril? Maria do Céu Ferreira: Não, isso foi muito depois. Assim a seguir ao 25 de abril foi a ajuda aos trabalhadores de Gonçalo, porque os trabalhadores ficaram em autogestão. É engraçado que a Base-FUT veio a Gonçalo e eu acompanhei essa visita. E outras campanhas que fizemos, de solidariedade, foram com a reforma agrária. Fomos passar um fim-de-semana à reforma agrária para ajudar nas colheitas e para os trabalhadores daqui perceberem o que era a reforma agrária e depois recebemos os trabalhadores da reforma agrária, que trouxeram azeite e tudo aquilo que tinham para venderem aqui. P: Acha que esse tipo de iniciativas ajuda a criar um espírito de solidariedade entre os trabalhadores do país? Maria do Céu Ferreira: Ajuda, não só a esse nível como também a nível dos trabalhadores de várias empresas que não se conhecem, que são de terras também diferentes. Isso era importante. Uma coisa que também se fazia era convívios com os trabalhadores do distrito. Isso era muito importante e infelizmente perdeu-se. P: Também faziam torneios de futebol, não era? Maria do Céu Ferreira: Nós fazíamos isso para o 1º de maio. Quando era o 1º de maio, fazíamos torneios de futebol e no 1º de maio fazíamos o último desafio. E fazíamos estafetas em que se saía de S. Romão e se vinha até Gouveia. Chegámos a ter corredores de grande craveira. Era muito giro, muito importante nessas manifestações do 1º de maio. É evidente, isso perdeu-se desde que eu saí do sindicato, da União, o 1º de maio nunca mais se fez em Gouveia. P: Porque é que acha que se deixou de fazer? Maria do Céu Ferreira: Porque Gouveia perdeu todo o seu operariado, os dirigentes sindicais já não são daqui. É preciso trabalhar! Estar no sindicato, receber os bombeiros, receber a banda de música, fazer o discurso para eles, falar do que é o 1º de maio e depois vestir a outra farda e servir a sandes, servir a bebida. Porque se não há quem faça isto... Claro que eu não era sozinha, mas era mais fácil pegar num grupo de mulheres que me ajudavam do que pegar num grupo de homens que estavam ali para dar as medalhas, para pôr as medalhas ao peito dos participantes nas provas desportivas. P: Acha que as mulheres tinham um papel mais pró-ativo nesse tipo de iniciativas? Maria do Céu Ferreira: Sim, aqui… Não quer dizer que noutros lados os homens não tivessem, mas aqui, infelizmente, era assim. Eu estava na formação a falar do 1º de maio e dizia “amanhã quem é que me vem ajudar?” E elas vinham. Fazíamos as sandes, quer dizer, era mais fácil comprar as sandes já feitas, mas isso era dinheiro dos trabalhadores, é um problema de gestão. O problema é que hoje, mesmo a nível político, é mais fácil mandar fazer do que fazer, mas não tem tanta piada, além de que se gasta muito mais dinheiro. P: Acha que as mulheres têm mais propensão para fazer em vez de comprar feito? Maria do Céu Ferreira: Não direi todas, eu acho que em todos estas coisas, sejam mulheres ou homens, é preciso ganhá-los para isto. Por exemplo, como é que a gente tinha os prémios para dar aos atletas? Mandávamos uma carta às empresas, ao comércio, e depois íamos buscar. Isto dá trabalho. E há gente, que por ser dirigente sindical, considera isto um trabalho menor. P: Conte-me das campanhas que a CGTP organizava com África. Maria do Céu Ferreira: Mandava uma circular para o sindicato a pedir, por exemplo, roupa. E tinham o cuidado de pedir roupa que não fossem roupas pesadas, que fossem roupas leves, fossem roupas garridas. E depois, como é evidente, nós aqui fazíamos uma seleção, porque há muita gente que dá farrapos e eu acho que farrapos são farrapos. De Lisboa organizavam-se contentores para enviar para África. P: Havia a ideia da solidariedade internacionalista, era uma coisa que estava enraizada? Maria do Céu Ferreira: Sim, eu acho que nós em relação a África, o povo português em relação ao povo moçambicano ou angolano sempre foi solidário. Até porque mesmo gente que fez a guerra colonial, homens, operários, essa gente era muito sensível a participar. P: Havia um laço privilegiado com as ex-colónias? Maria do Céu Ferreira: Havia. Eu estou por exemplo a lembrar-me de dois homens que uma vez aparecem no sindicato com muita roupa e diziam assim “isto é para uma terra onde eu estive e que bem precisa”. Acredito também que as pessoas querem desfazer-se do que têm em casa e disso não sou muito apologista. Mas eu acho que com África essa solidariedade existe, de tal ordem que a CGTP às vezes tinha de dizer “agora parem”, porque aquilo também estava sujeito ao espaço dos contentores. P: E a CGTP enviava para outros sindicatos africanos, era via sindical? Maria do Céu Ferreira: Não sei, mas deveria ser via as centrais sindicais. P: Havia contactos frequentes com as centrais sindicais desses países? Maria do Céu Ferreira: Havia. Eu lembro-me que, por exemplo logo a seguir ao 25 de abril, o [...] foi a Angola e os angolanos enviaram café para os dirigentes e funcionários da CGTP, um bom café. Uma vez vieram do Norte da Europa três dirigentes sindicais, que entraram por Vilar Formoso, e o responsável pelas relações internacionais da CGTP pediu o apoio da União e o meu apoio pessoal e, para além do apoio da União, que tinha a ver com alojamento, eu recebi-os na minha casa, onde ofereci o jantar. P: A CGTP promove ações de formação para os sindicalistas dos países africanos? Maria do Céu Ferreira: A CGTP não, o INOVINTER, que é uma escola de formação entre a CGTP e o IEFP, que dá formação a quadros sindicais e formadores. E neste momento já têm uma serie de delegações em Angola. A CGTP deu com certeza formação aos quadros sindicais desses países, o [...] foi pelo menos duas vezes dar formação a Angola. P: A sua experiência na direção da CGTP foi em que anos? Maria do Céu Ferreira: A direção da CGTP, em termos de direção, mudou em alguns congressos. Quando eu fui para a CGTP, o Congresso elegia o Secretariado, que era uma estrutura pequena, éramos 14 pessoas, e eu era suplente do Secretariado, mas nunca fui tratada como tal. Participava nas reuniões como se não estivesse nessa qualidade. Depois o Secretariado passou a ser eleito pelo Concelho Geral e, este sim, eleito em congresso. Fiz seis mandatos. Desde 1981 a 2005. Fui à Bulgária, fui fazer dois cursos de formação a Bernau, na antiga RDA, e fui uma vez a Moscovo. P: Qual foi a importância desses cursos na sua formação enquanto sindicalista? Maria do Céu Ferreira: Foram muito importantes. Lembro-me de uma professora alemã dizer isto, eles davam formação sindical: “Portugal tem uma linguagem tão rica que é possível fazer um comunicado com palavras completamente diferentes de um comunicado político.” Nunca mais me esqueci disto. Tinha sempre isto muito presente. Era este tipo de formação... Claro que havia uns que a recebiam melhor que outros. Em determinada altura eles tinham traduções feitas por eles e pediam para a gente ler e ver se aquilo em português estava bem, era também o nosso contributo para aquilo que nos davam. Essa formação na RDA foi importante até para perceber como era difícil ter a televisão do outro lado a entrar pelas suas casas e a influenciar os jovens. Esse casal de professores tinham um filho adolescente e ela dizia-me muitas vezes, ela falava em português: “é muito difícil explicar aos nossos filhos determinado tipo de coisas porque eles não viveram a guerra”. Isto também me levou a compreender a queda do muro de Berlim. As pessoas envelhecem, os mais jovens querem outras coisas, se calhar hoje já estão arrependidos, e essa preocupação de mulher, de mãe, de pessoa de esquerda, que está naquele país e ela tinha dificuldade de transmitir estes valores ao filho. Era também este tipo de vivência, não era só o curso, era também viver com as pessoas. O povo alemão é um bocadinho frio, mas entretanto uma das vezes que estive lá na Alemanha... Sabe o que é acordar com o hino da CGTP e a diretora da escola vir ter comigo e dar-me um presente? Foi um povo que teve muitas dificuldades, por isso é tudo muito comedido. A gente vê a Merkel, anda sempre com o mesmo estilo de roupa, e um dia uma locutora perguntou-lhe porquê e ela respondeu que é funcionária pública, não é modelo. A outra que está no Parlamento Europeu é igual. Nós não somos assim, não é, damos muito valor a estes artigos... P: Na direção da CGTP que tarefas é que assumia? Maria do Céu Ferreira: Estive no departamento das mulheres e estive no departamento de formação sindical. P: O que é que desenvolveu no departamento das mulheres? Maria do Céu Ferreira: Preparar as iniciativas, levar à prática e sobretudo receber e analisar tudo o que vinha de fora sobre os problemas das mulheres o que de certo modo levou à criação do CIT – Comissão para Igualdade do Trabalho. Foi um departamento onde muitos conflitos foram esgrimidos e positivamente para as mulheres, e onde participavam patrões e sindicatos, que tinham de fazer cumprir a lei, por exemplo, a lei da paternidade, um pai tinha direito a ficar com o filho, na altura, 15 dias, os patrões não queriam, não deixavam. Se uma mulher escrevesse para a CIT, ele era obrigado. Por exemplo, com a amamentação a mesma coisa. As mulheres tinham dois tempos para amamentar e o patrão queria que a mulher amamentasse, por exemplo, a meio da manhã, mas essa mulher tinha um filho a dois ou três quilómetros de casa, portanto é evidente que ela preferia, ou no princípio do turno ou no fim do turno, portanto o patrão dava a meio que era para ela não ir. Este tipo de coisas eram discutidas e analisadas e muitas vezes foram resolvidas, pena que se tenham perdido estes benefícios com o governo da troika. P: E esse departamento das mulheres na CGTP, que tipo de iniciativa é que fazia? Maria do Céu Ferreira: Celebrávamos o 8 de março, fazíamos conferências sobre a maternidade, a paternidade, até mais do que a igualdade de género, porque isso agora é que está mais presente, mas houve conferências que juntavam centenas de mulheres. P: Quais é que eram os principais problemas que as mulheres sentiam no trabalho? Maria do Céu Ferreira: Cada setor tinha problemas específicos mas a discriminação salarial, a discriminação na carreira, esses eram os problemas mais sentidos, a discriminação exatamente por ser mulher e ser mãe é que dificultava sobretudo subir na carreira. Em muitos casos a maternidade não foi possível porque o emprego era mais importante, porque preocupava muito que a maternidade estivesse a diminuir, mas a diminuição da maternidade tem a ver com a entidade patronal não querer admitir mulheres em idade reprodutiva. Havia inquéritos onde perguntavam se iam engravidar ou não, nesta situação a maternidade é uma coisa que pesava, e ainda hoje pesa, não foi só naquela altura. Até mesmo no movimento sindical, nós agora temos uma secretária-geral mulher, mas muitas vezes não era fácil às mulheres assumirem cargos de chefia se não tivessem suporte familiar ou fossem solteiras. Eu não poderia ter feito o que fiz se não tivesse atrás um marido e um filho e, antes do marido e do filho, a família, um pai, uma mãe. P: E acha que a participação sindical foi importante para a emancipação feminina? Maria do Céu Ferreira: Sim, não tenho dúvida nenhuma disso. Nem estou a ver hoje, nem naquela altura, sindicatos sem mulheres. P: Para si pessoalmente, foi importante para a sua emancipação? Maria do Céu Ferreira: Sim, ao princípio era quase uma missão. Não vou para dirigente sindical porque quero ser dirigente sindical, vou porque estou empenhada numa luta… Não era tanto pela emancipação da mulher, era porque eu como pessoa, como católica, eu tinha que estar lá. E depois o resto foi por acréscimo. Quando eu fui àquela reunião dos homens, é evidente que a direcção do sindicato tinha homens que eu conhecia, eram homens da LOC. Mas foi também este tipo de condições que se calhar outras mulheres não tiveram. Eu não sou nenhuma supermulher, apesar de ser muito combativa, de não aceitar um sim ou um não. P: Em que medida é que acha que esta participação, esta dedicação neste caso ao movimento sindical, marcou a sua vida pessoa? Imagina a sua vida sem esta participação? Maria do Céu Ferreira: Eu acho que marcou… Olhe, encontrei o marido no movimento sindical, com quem sou muito feliz. Se não fosse o movimento sindical se calhar não o tinha encontrado. Mas eu hoje olho para trás e fazia tudo de novo, por uma razão. Eu sempre fui muito leal, comigo e com os outros. E este tipo de lealdade hoje também é muito respeitado. Mesmo a nível político, eu nunca fui capaz de ler um papel sem o discutir primeiro. Discuto. Esta linguagem não é a minha, por isso eu não leio isto. E eu tenho a certeza que por isto também sou respeitada. Política é uma coisa muito bonita, mas eu não posso fazer política só porque agora há eleições... P: Também assumiu cargos políticos na autarquia, não foi? Maria do Céu Ferreira: Sim, fui candidata a presidente da Câmara Municipal de Gouveia, com o [...] do PSD, imagine. Portanto, era um político de peso, e outro que era o actual presidente da Câmara e que hoje é deputado. Claro, eu sabia que não ia ser eleita, mas adorei participar na campanha. Foi uma campanha muito verdadeira. Mas, por exemplo, o [...] estava na Assembleia Municipal comigo, ele pelo PSD e eu pela CDU. E ele vinha de Coimbra, chegava ao sábado às 14 horas, hora do início da assembleia, ele ouvia a Maria do Céu e depois ele pegava numa ou outra coisa, e fazia a sua intervenção. E é engraçado, na última assembleia antes das eleições em que éramos candidatos, eu vinha para Coimbra fazer um curso, à distância, eu tinha de ir a Coimbra de 15 em 15 dias a uma aula presencial. Eu tinha de ir nesse dia e, portanto, eu disse “eu tenho mesmo de ir embora e não vou ficar para a tarde”. E ele disse isto: “eu tenho dar parabéns à senhora deputada, porque ela foi quem, nesta assembleia, apresentou mais propostas, mais lutou por elas, apesar de estar sozinha.” Respondi: “agradeço que diga isso na campanha, agora aqui?” Até que um dia, há um boletim municipal na Câmara e, a determinada altura, o director da revista pede-me para eu dar uma entrevista e há uma pergunta no final, se eu preferia ter lá o PS ou o PSD. E eu disse, “olhe, politicamente eu estou mais próxima do PS do que do PSD, mas o que teria sido bom era ter ficado o PSD, o PS e a Maria do Céu, que eram sete”. A partir daí fui pessoa não grata. O [...], que é muito vaidoso, deve ter pensado que por ter feito oposição cerrada ao PS que diria que preferia o PSD. Eu não tinha nada a ver com o PS, mas a minha família política está mais próxima do PS. Aliás, eu fiz parte da primeira direcção do PS em Gouveia, saí quando da discussão da unidade e da unicidade sindical. Escrevi uma carta pública, porque a direcção estava contra a unicidade e não sabia o que era uma coisa e o que era outra. Esse médico que foi para a minha empresa, era socialista de verdade, dizia: “eu não percebo nada disto. Os ingleses, que são os ingleses, são socialistas e têm uma central sindical única, e nós aqui andamos em guerra.” P: Foi a questão da unicidade sindical que a fez sair do Partido Socialista e ir para o PCP? Maria do Céu Ferreira: Eu não entrei para o Partido Comunista nessa altura. A minha entrada teve a ver com uma visita à RDA e com uma votação muito baixa que o Partido teve. O que é facto é que eu, em Gouveia, sou conhecida pela comunista, independentemente se sou filiada ou não, portanto estar filiada foi apenas um proforma. É claro que há coisas com que eu não estou de acordo, mas também tenho espaço para as dizer, não fica nada por dizer. P: E acha que há uma ligação entre a participação sindical e a participação política? Maria do Céu Ferreira: Há. Eu, enquanto dirigente sindical, luto pela defesa dos trabalhadores, o Partido Comunista luta pelo mesmo. Quando deixar de lutar eu não estou lá. P: E as suas funções na autarquia, de que forma é que se relacionam com a atividade sindical? Maria do Céu Ferreira: A minha intervenção enquanto deputada, para além das questões que têm a ver com o desenvolvimento do concelho, tem também a ver com os interesses dos trabalhadores e pelo facto de ser dirigente sindical sentia de forma diferente, defendia e lutava por elas de forma diferente. Na Assembleia de abril levava sempre uma saudação aos trabalhadores no 1º de Maio, no 25 de Abril idem, se houver uma greve a mesma coisa, mas é muito mais pela valorização da terra, aquilo que está mal e que é preciso pôr bem, é muito mais nesse sentido. Agora, é evidente que a atividade sindical dá um arcaboiço muito grande, dá uma vivência muito grande, saber das preocupações, das empresas, etc. Eu acho que, por exemplo, se na discussão do orçamento, a Câmara não chamar os deputados para discutir o quadro dos trabalhadores, está a fazer uma ilegalidade. Eu dizia “os senhores têm de chamar os deputados, porque isto mexe com os trabalhadores e os deputados têm de dar opinião”. Isto é da lei. P: E porque acha que a par da motivação para participar no movimento sindical teve também a motivação para participar na política local? Maria do Céu Ferreira: Primeiro porque gosto muito da minha terra, depois porque antes de ser deputada, por exemplo, e ainda naquele período revolucionário, havia aqui em Gouveia uma reunião com todas as forças vivas da terra para discutir. A Câmara teve cá um geólogo, um arquiteto, para estudar o terreno para a reconversão de algumas coisas, e os sindicatos e outras organizações foram chamadas e logo nessa altura eu percebi que os interesses económicos eram difíceis de conciliar. Aqueles que tinham terras eram uma coisa terrível, queriam transformar parte da reserva agrícola e ecológica em zonas de habitação. E realmente há coisas que eles explicaram que, em determinadas zonas, pelo declive do terreno, etc, não era aconselhável a construção. Não é que mais tarde, quando se constrói o mercado municipal, não é que imediatamente caiu um muro, porque, como os técnicos, diziam há zonas muito vulneráveis. Depois veio o 25 de novembro, e a participação das organizações representativas foi-se, e isso foi perdido. Por isso nós hoje, a nível de Gouveia, uma terra muito bonita, mas em termos da habitação, antiga, ela está toda a deteriorar-se. Mas o que é que temos? Urbanizações longe do centro da cidade, que levam também pessoas. As pessoas não vêm para o centro. Isto realmente descaracteriza uma terra e Gouveia perdeu imenso, perdeu as fábricas, perdeu muito. Portanto, isso também foi uma coisa que me empurrou. Por isso, fiz uma série de mandatos. Agora acabou. Vou na lista, claro, da autarquia, mas num lugar não elegível. P: Qual é que acha que é o futuro do movimento sindical? Maria do Céu Ferreira: Enquanto houver trabalhadores tem de haver sindicatos. É possível que, esta juventude, por exemplo, estou a falar dos jovens que conheço, que têm pouca relação com os sindicatos, e já anteriormente era assim. É sempre quando as pessoas têm problemas. E como eu acredito que os jovens vão ter muitos problemas, infelizmente, vai haver futuro. Evidentemente, com muitas dificuldades, eu não me esqueço que a minha geração foi criada noutra escola, numa escola de luta antes do 25 de abril. Estes jovens agora têm outra formação, têm outra mentalidade, têm a informática à frente deles. Agora, eu digo-lhe uma coisa: eu temo pelo futuro dos jovens. Porque acho que não vai ser fácil para eles. Quando as pessoas começarem a ter problemas, só tem uma porta aonde ir bater. E mais, até podem não ter uma porta, até podem ter que ser eles a organizar-se. A CGTP tem jovens com muito valor, agora é preciso trabalho nas empresas, o trabalho de base, o trabalho com as pessoas é muito importante. Sobretudo saber ouvi-las, discutir, ver como é que seria melhor. Mas eu continuo a acreditar que os sindicatos serão sempre importantes. Aliás, o movimento sindical em Portugal passou por uma fase terrível antes do 25 de abril e não foi por essa razão que os sindicatos acabaram. Antes do 25 de Abril eles reinventaram-se. Os bancários, os seguros, os lanifícios, os metalúrgicos, não tiveram problema nenhum em juntar-se. Esta dinâmica, mais tarde ou mais cedo, vai ser imposta. Já reparou? As reformas agora são aos 68. Um jovem que começa a programar informática agora, acha que até aos 70 anos vai poder fazer isto. Neste momento não há nenhum sindicato para eles. Eu já falei com os camaradas da Inter, a malta tem que começar a organizar esta gente, eles próprios têm noção de que aquilo que eles fazem é de uma tal violência intelectual, que aos 70 anos ninguém está nessa. E como é? Têm de ter futuro... está de acordo? -
16 de novembro de 2021
Francisco Duarte
P: Senhor Francisco, a ideia destas entrevistas é registarmos as experiências de vida, ou seja, experiências que as pessoas têm ao participar no associativismo e a forma como o associativismo enriquece a vida das pessoas e também para percebermos quais são as pessoas que têm maior propensão para participar e, por isso, começava por lhe fazer algumas perguntas sobre a sua vida. Primeiro, gostava que me dissesse, para ficar registado, o seu nome e a sua data de nascimento. Francisco Duarte: Francisco Manuel Carvalho Duarte. 26 de junho de 1937. P: Nasceu aqui, na Marinha Grande? Francisco Duarte: Na Marinha Grande, sem maternidade, nascimento à antiga. P: Estudou aqui? Francisco Duarte: Estudei aqui, na altura na Escola Industrial da Marinha Grande. Ainda não era Escola Industrial e Comercial, era só industrial. Acabei por tirar um curso industrial, o chamado curso de vidraria, que ao início havia um curso de vidraria e um curso de pintor de vidros. Eu como tinha a pretensão de ter de facto a profissão de vidreiro, optei pela vidraria. Pois fui vidreiro dos 12 aos 14 anos e era uma profissão que eu, de facto, sonhava com ela e gostava muito de ser vidreiro. Mas um problema cardíaco, na altura também, um médico daquela altura, neste caso, o Doutor Júlio Vieira, que era uma figura carismática também da Marinha Grande, proibiu-me de ser vidreiro. Então, depois optei, naquela altura, pela chamada Universidade dos Montes. Iniciei uma outra atividade, exatamente como metalúrgico na Aníbal Abrantes, que era uma fábrica de moldes, a mais importante e a primeira que nasceu na Marinha Grande. P: E ficou lá sempre? Francisco Duarte: Fiquei lá durante 10 anos, depois trabalhei mais 10 anos na Emídio Maria da Silva, que era outra empresa também de fabricação de moldes para a matéria plástica e mais 18 anos na Molde Matos. Portanto, tive 38 anos de profissão, uma profissão dura, uma profissão de que eu nunca gostei muito. Portanto, eu sou das muitas pessoas que existem certamente com profissões contrárias à sua vontade. O meu sonho era ser vidreiro, porque gostava muito de vidro. Dava-me um certo gozo interior ver o vidro ser manejado e o equilíbrio do vidro em quente fascinava-me. Mas depois fui para a indústria de moldes, enfim… Na altura, entrar naquela oficina chamava-se ir para a faculdade dos moldes. E então tive uma carreira de metalúrgico de 38 anos, nos quais fui delegado sindical a partir de 1971. Estava naquela lista de um tal senhor da Marinha chamado Beta, um senhor que lhe chamávamos o Beta. Ele era Alberto, acho, mas chamavam-lhe o Beta, que mais tarde viemos a descobrir que era informador da PIDE. Ele tinha por norma, quando eram as assembleias gerais do sindicato, pedir-me para eu redigir, a mim e a um outro senhor chamado Biscaia, para redigirmos sempre, naquela altura, telegramas de protesto para o Governo. E então soube-se depois 25 de Abril, porque ele foi descoberto, que ele era agente, mesmo agente direto. E lá estava o meu nome para a curto prazo ir dentro, entretanto deu-se 1974 e felizmente acabou. Depois fui dirigente sindical. Durante 2 anos, fui delegado sindical e depois fui mesmo dirigente, presidente da Assembleia Geral do Sindicato da Indústria Metalúrgica, cuja sede principal funcionava em Vieira de Leiria, uma outra freguesia pertencente à Marinha Grande. Estudei de dia alguns anos, mas poucos, porque as dificuldades económicas eram muitas. E então eu tive de começar a trabalhar na escola, de dia, antes de tirar o curso. Acho que ainda fiz o primeiro ano de dia, já não me recordo bem, mas depois era trabalhador-estudante. Portanto, o meu horário de trabalho era das 8 da manhã às 6 da tarde, com uma hora para almoço e trabalhávamos aos sábados das 8 às 11, mas tínhamos duas horas para irmos para a escola. Portanto, eu saía sempre às 4. Uma das pessoas que me acompanhava até é hoje um empresário famoso, o senhor Henrique Neto, talvez já tenha ouvido falar. E acabei então por tirar o curso à noite. Antes disso, aos 10 anos, fui empregado na taberna, que era o refúgio dos vidreiros. Normalmente, começavam às 8 e acabavam às 3 e iam para as tabernas e era ali que se consumia muito vinho, de facto. Hoje reconheço que na altura não compreendi que seria assim, que começou aí também há uma certa consciência de que a taberna não era o melhor para os homens, nem para o desenvolvimento do país através deles. Quero eu dizer com isto, pensou-se muito também nas tabernas no movimento associativo. E algumas coletividades, pelo menos aquela a que eu estive mais tempo ligado, começou a ser criada numa taberna de um homem já, naquela altura, com uma cultura razoável e que via mais longe, sabia as condições políticas, em que vivia e porque ele foi também algumas vezes incomodado pela polícia, não numa maneira muito acentuada, mas foi avisado. E penso que também aí começou a haver um bocado a consciência de que seria necessário tirar os homens das tabernas e levá-los para locais onde se pudessem encontrar, o que foi o movimento das coletividades inicialmente. Depois fui dirigente daquela coletividade, e de facto não houve nada que eu não fizesse. Desde a limpeza aos salões antes de abrir a coletividade para os associados entrarem. Nós tínhamos de fazer limpeza, incluindo casas de banho, tínhamos de fazer tudo. Depois fui segundo secretário, lembro-me de que foi o primeiro posto que tive numa direção. Depois fui tesoureiro. Depois fui presidente uns 6 ou 7 anos. Fui 20 anos presidente da Assembleia Geral e 30 anos ligado ao grupo de teatro, onde iniciei essa atividade como ponto, passando depois para o palco, fazendo variadíssimas peças, uma das quais nos deixou uma recordação muito boa, que foi A Promessa. Porque fomos a um concurso num Orfeão em Leiria e tirámos uma menção honrosa. Foi uma coisa maravilhosa para nós, na altura deu-nos bastante gozo. Trabalhávamos muito de facto nas coletividades. Havia nessa altura uma maior ligação a nível associativo, apesar de tudo, porque não havia tantos atrativos, tantas coisas que despertassem as pessoas para outras atividades. Havia uma maior ligação entre as associações, apesar de haver bairrismos muito doentios. Porque as questões entre coletividades, pelo menos na Marinha Grande, que é um meio associativo muito grande, como sabe, tem dezenas de coletividades… Mas, apesar de tudo, havia realizações em conjunto que eram muito interessantes, nomeadamente torneios de pingue-pongue, torneios de bilhar, torneios de sueca. E depois havia uma coletividade que, enfim, depois enveredou por um certo elitismo, mas fez um trabalho muito importante. Começou a criar também torneios a nível nacional, nomeadamente no que diz respeito ao ténis de mesa, trazendo equipes, não digo como um Benfica ou o Sporting, para esses torneios. E começaram a haver algumas realizações entre as coletividades, quando havia sempre uma festa final, onde, por exemplo, elegíamos sempre a Rainha das coletividades, ou uma madrinha das coletividades. Mas a partir daí também começou a criar-se uma certa da consciência política, porque também tínhamos um homem nesse movimento, muito importante do ponto de vista político, que era o Doutor José Henriques Vareda. Certamente que já ouviram falar dele, que é um dos grandes fundadores do Sport Operário Marinhense. E então começou a haver encontros, enfim políticos, com inconformismo relativamente às misérias que se viviam, porque de facto vivia-se miseravelmente. Eu lembro-me, isto um à parte, mas lembro-me de ter os primeiros sapatos aos 13 anos, e mesmo assim meu pai comprou-me os sapatos com 3 ou 4 números a mais, levaram quase um jornal cada um à frente para as biqueiras, os bicos dos sapatos não irem para cima. E depois umas botas cardadas, umas botas que levavam aquelas cardas todas quando pisávamos mais plano ou cimentado, escorregávamos. Portanto era uma miséria muito grande. Lembro-me da minha mãe, quando comíamos bife de vaca com o ovo estrelado, lembro-me da minha mãe não comer, o bife não chegar para ela. Comíamos eu, as minhas irmãs e o meu pai e eu, pelo menos, lembro-me de encarar isso com certa naturalidade. As pessoas eram conformistas, uma grande parte, fora aqueles que se foram revoltando. Mas isto para dizer também que a consciência política de muitos marinhenses nasceu nas coletividades, foi a partir das coletividades. E que muitos tiveram interesse de se ir informando, de ir conhecendo coisas, e ter constantemente o pensamento na coletividade para realizar coisas. Eu posso dizer que enquanto fui presidente da coletividade, da SBR Primeiro de Janeiro, da Ordem da Marinha Grande, lembro-me de fazer coisas que me deixam hoje recordações. É claro que eu dei parte da minha vida àquela coletividade. Eu devo dizer-lhe, isto num à parte que talvez não tenha interesse, que estive quase à beira do divórcio, porque eu passava mais tempo na coletividade. Naquela altura fazia-se as festas de arraial e havia uma fonte de rendimento importante, que era a quermesse. Nós íamos pedir prémios e depois vendíamos rifas. Mas aquela quermesse tinha de ser muito bem organizada, pôr números em mil prémios e depois vender rifas, aquilo tudo… E então especializei-me na organização de quermesses, fui 29 anos seguidos diretor da quermesse. Um ano, a minha mulher perguntou-me: “Sempre quero ver qual é o ano em que vou contigo à festa?” Porque eu organizava a quermesse e depois tinha de estar lá no dia das festas, como é natural. Bom, isto, a nível da importância que o associativismo teve na minha vida, foi de uma importância, passo a repetição, elevada, muito elevada. Ganhei consciência de que tinha de participar na construção de uma sociedade diferente e de alguma maneira ativa, através da minha atividade política. Desde 1974, e até antes, tive atividade política. Aos 15 anos, quando trabalhava na Aníbal Abrantes, já tinha uma missão política. Mas para dizer que, de facto, o associativismo teve uma importância fundamental na formação de muitos homens e também na melhoria da própria sociedade, especialmente a nível desse problema das tabernas, que era uma coisa terrível. P: E o que é que o trouxe para associativismo, o seu pai já era? Francisco Duarte: Não, o meu pai nunca foi dirigente de nenhuma associação. O meu pai foi apenas músico de uma banda filarmónica de uma fábrica que existiu. Eu fui influenciado por esse tal senhor que morava lá na Ordem. Porque eu nasci e fui criado até aos 20 anos num lugar chamado Cruzes e depois comecei a namorar uma rapariga da Ordem e, aos 22 anos, casei-me. Quando eu ia ao barbeiro, o senhor Ilídio Guerra estava sempre presente ali na barbearia, que se chamava barbearia do Arnaldo Martins. E ele discutia muito estes problemas das coletividades e nessa altura já tinha uma casinha pequena, que até era uma casa de habitação, onde começou a Sociedade de Beneficência Primeiro de Janeiro. Eu penso que isto por altura da Guerra Civil de Espanha – 1936, 37. Mas depois veio a ser a coletividade fundada e inaugurada em 1939. Portanto, a data legal do início da Coletividade SBR Primeiro de Janeiro foi em 1939. E esse senhor, até tem hoje o nome de uma rua da Ordem, é que me influenciou de certo modo. Porque ele tinha algumas conversas já acima do normal. Eu apreendia muito as palavras dele e talvez de uma maneira involuntária ou inconsciente foi-me modificando muita coisa, foi ficando muita coisa do ponto de vista cerebral, passo o inconveniente da palavra, se calhar. Depois convidaram-me, ia lá aos bailaricos com a minha namorada e tal e em 1961 fizeram-me o convite para eu ser pertencer aos corpos gerentes da coletividade. E a partir daí comecei, nunca mais de lá saí, praticamente, até 1996, quando eu já era presidente da Junta de Freguesia. E numa altura em que a coletividade teve fechada três meses, numa atitude de salvação da própria coletividade, porque aquilo já estavam a pensar ir entregar as chaves à Câmara, eu ainda fui tomar conta daquilo mais uma vez. Na altura não me deu jeito nenhum, que era presidente da Junta e o trabalho chegava bem. Mas fui presidente várias vezes, fui tesoureiro, fui secretário e não me conformava nunca que a coletividade não tivesse uma atividade qualquer. Ou fazia bailes da Primavera ou fazia bailes de aniversário, de eleição da madrinha da coletividade, bailes das chitas, depois fiz, fez a minha direção, mas devo confessar, não estou a envaidecer-me, mas eram coisas da minha autoria. Fiz um MusicOrdem, que era um espetáculo de 15 em 15 dias, onde entrevistávamos sempre uma figura com importância no governo da Marinha Grande. Foi desde o chefe da polícia até ao diretor da Segurança Social, pessoas ligadas ao teatro, como o Norberto Barroca. Fazíamos entrevistas de poesia. Havia sempre um sketch de teatro da minha autoria, com artistas que eu escolhia do próprio grupo. Havia um sketch, depois havia concursos, concursos de assobios, concursos de anedotas. Era uma coisa interessantíssima. A coletividade da Ordem tem um salão muito grande e tem outro salão idêntico ao lado, são dois salões paralelos. Fazíamos no salão pequeno. E então aquilo de 15 em 15 dias era uma alegria fantástica, pessoas a tentarem cantar, havia um concurso de canto também, interessantíssimo. Depois fizemos também um concurso de fados, que tinha pernas para hoje, se não o tivessem morto... Aqueles bairrismos doentios de que eu falava há pouco, muitas vezes também funcionavam pela negativa. Há pessoas que não podem com o êxito os outros, e os concursos de fado morreram exatamente por os diretores seguintes a mim, nessa época, não estarem muito de acordo com a maneira como funcionavam, porque aquilo era um concurso de fado, tinha eliminatórias ao fim de semana e teve dezenas de concorrentes distritais. E eu penso hoje que aquela realização tinha condições para hoje ser um concurso a nível nacional, porque de facto veio gente de muito lado, até nós ficámos surpresos. Houve várias semanas em que fazíamos um espetáculo e os concorrentes cantavam e faziam um espetáculo com um júri que escolhia em cada sessão um concorrente para apurar para a final. A final desse espetáculo, desse concurso, foi uma coisa inolvidável naquele salão. É um salão muito grande, tem 100m por 18m de largo. Tinha 90 mesas completamente esgotadas e com gente de pé, com um palco magnificamente ornamentado. Os fadistas de muito nível já, com muita categoria, uma delas que ganhou o prémio, nessa altura já havia prémios, fizemos um prémio pecuniário, mas porque se pensou também que só seria possível algum êxito se houvesse os prémios pecuniários, porque se não houvesse também era difícil. E eu lembro-me que nessa altura o primeiro prémio foi 100 contos, que era uma quantia significativa para aquela altura. Estou a falar de oitenta e poucos. P: Vamos recuar um bocadinho. Antes do 25 de Abril, no período do fascismo, como é que era a vida das coletividades? Quais eram os constrangimentos? Francisco Duarte: No teatro, por exemplo, eu cheguei a fazer teatro com dois PIDES na primeira fila, quando fizemos O perdão dos filhos, uma peça chamada perdão dos filhos e aquilo foi à censura e eles puseram lá o lápis azul nalgumas passagens da peça. Nomeadamente a nível cultural, e na área do teatro, tínhamos de ter um cuidado muito grande e de facto aí havia restrições de um grau elevado, que certas peças não podíamos... Mesmo a própria Promessa também teve que ir à censura. E tivemos algumas, porque era o Bernardo Santareno, um escritor, enfim, todos sabemos como é. Lembro-me dessas restrições, nomeadamente a esse respeito. Também tínhamos na Presidência da Câmara sempre alguém que estava ligado aos problemas políticos e que os comunicava. E então, de vez em quando, experimentavam-nos, pelo menos ao nível da coletividade que eu mais frequentei, e as outras eram idênticas. Aliás, o Sport Operário Marinhense foi das coletividades mais perseguidas antes do 25 de Abril. Tinha visitas da PIDE, baldeavam-lhe a biblioteca toda, porque aquela biblioteca tinha a fama de educar os trabalhadores e de dar uma perspetiva política diferente. E então, também ainda nas bibliotecas, porque nós tínhamos muito interesse também em organizar a biblioteca e muitas vezes fazíamos convites aos próprios associados para sessões de leitura e havia essas sessões de leitura que eram, de facto, vigiadas. O próprio presidente da Câmara tinha alguém no lugar que se inscrevia até para essas sessões. Nós viemos a saber isto tudo depois, passado algum tempo, porque as pessoas também, especialmente depois de 25 de Abril, viemos a saber quem eram. Algumas, nem todas. E então nós tínhamos constrangimentos quase em tudo, à exceção dos bailes, que me parece que deixavam passar assim mais ao lado. Mas eu falava há pouco no movimento associativo e quando falei na figura do Doutor José Vareda, que começou também a organizar, a politizar muitos dirigentes das coletividades, com encontros na mata, fazíamos festas apropriadas na mata, trazíamos sempre um cantor da revolução, os cantores de intervenção, essencialmente isso, mas os cantores de vanguarda, também se dizia na altura. E começou a haver uma adesão muito grande também de homens que não tinham nada a ver com o associativismo e depois se foram incorporando. E começou a haver uma consciência política diferente e também, devo dizer que neste percurso todo, muitas tabernas foram perdendo a sua força. Porque havia tabernas por todos os cantos e estavam sempre cheias. O movimento associativo contribui muito também para que esse flagelo, entre aspas, perdesse um bocadinho de força. De maneira que, enfim, penso que o associativismo ajudou muito a ter consciência daquilo que andava a fazer por cá ao de cimo da Terra. E foi também o associativismo que me levou para as autarquias. Como deve saber, fui presidente da Junta durante quatro mandatos, 20 anos, e fui membro do executivo mais quatro. Fui vereador da Câmara Municipal também durante 6 anos, 2 mandatos, quando os mandatos eram de 3 anos ainda. E fui membro da Assembleia Municipal. Portanto, tenho a vida nesse aspeto bem preenchida e com realizações no associativismo. Hoje, tenho a minha opinião sobre o associativismo. Sou da opinião de que a maioria das coletividades perderam o comboio da evolução da sociedade. Faltou gente pensante, não quer dizer que alterar esta situação seja algo de muito fácil porque, como todos nós sabemos, o povo português, uma grande parte do povo português ainda está numa bitola de cultura um bocado abaixo da média, um bocadinho. Porque a gente via bem, especialmente quando íamos a algumas povoações com o teatro, víamos bem o atraso cultural de muita gente, o que começou a dificultar também a vida das próprias coletividades. Porque não havia muita gente disponível para ir e começaram também muitos a ter medo, os que frequentavam a Igreja, por exemplo, começaram a ter medo das coletividades e a não frequentar tanto. Havia assim estas contradições. Não sei especificar muito bem isto, este pensamento devia ser mais bem ordenado. Mas, apesar de tudo, hoje penso que há um conformismo muito grande dos próprios dirigentes das coletividades. E tenho de dizer abertamente, gente eleita também para as coletividades com muito poucas competências culturais. Isso, se de facto o poder local, eu na altura em que fui vereador, fui vereador da Cultura, e a primeira, uma das primeiras iniciativas que tive foi a Câmara contratar um animador cultural para trabalhar fora de horas. Qual seria o funcionamento dele nas próprias coletividades? Cada dia da semana ia a uma coletividade para tentar organizar grupos de teatro, grupos corais, porque a pessoa que foi contratada tinha estas valências todas e estava disponível para ter um horário diferente do normal. Isto para dizer o quê? Se o poder local, de facto, não tomar algumas medidas no sentido de ter técnicos que possam dar uma ajuda às próprias coletividades, não é ajuda material, essa ajuda cultural, vamos chamar-lhe assim… Tirando uma ou duas coletividades, mas eu apenas classifico o Sport Operário Marinhense, que apesar de ser no outro tempo uma coletividade que mais fez pela cultura e que mais fez para desenvolvimento político das próprias pessoas e que mais fez pelo movimento associativo, depois teve uma mudança muito grande. Hoje, eu considero que é uma coletividade um pouco elitista. Tem muitas atividades, claro, mas nem todos têm acesso a elas porque têm de ser muito bem pagas. O Operário tem hoje alguns associados (outros já morreram, conheci-os todos) que no tempo antes do 25 de Abril nem à rua onde ficava situada a sede do Operário iam. Após o 25 de Abril, eram sócios do Sport Operário Marinhense. Portanto, há aqui uma contradição. Há aqui uma mudança de atitude própria das pessoas e também uma mudança de carisma da própria coletividade. Começou a ser uma coletividade onde uma grande parte dos empresários e dos novos empresários começaram a ter placas douradas nos placares. Mas, retomando, o discurso anterior, eu penso que nas coletividades de hoje os seus responsáveis são conformistas. Eu, se estivesse hoje numa coletividade, mesmo na minha coletividade, eu tinha de inventar coisas para conseguir que a minha coletividade… Nem que copiasse pela televisão, copiasse programas de televisão para a coletividade ter vida. Agora, ter magníficas instalações, com áreas enormes, meses e meses sem nenhuma atividade, dói-me, a mim dói-me e eu não me conformava. Eu voltava às coisas antigas, não tinha problema nenhum. Eu não tinha problema nenhum hoje em pôr em realização um grande baile de vestidos de papel, de trajes estapafúrdios, digamos assim. Depois, com um concurso onde estivesse um artista final, um cantor ou um declamador, fosse o que fosse. E eu hoje realizava novamente um rally paper. Fomos dos primeiros a realizar um rally paper. Claro que hoje é complicado, porque a gasolina está muito cara, fazia-se de bicicleta. Também se pode fazer de bicicleta, a um domingo, faz-se um rally paper ciclista. Portanto, isto para dizer o quê? Apesar de reconhecer que é bastante complicado e difícil as coletividades apanharem o comboio, têm que trabalhar muito. E hoje não há aquela dedicação que havia também naquela altura. Porque naquela altura, como eu lhe disse, nós limpávamos a coletividade e abríamos e estávamos de serviço ao bar, uma equipa por semana, dois dirigentes faziam a semana inteira. Hoje isso é difícil. Eu vejo, por exemplo, na coletividade do meu lugar, já chegou a ter três empregadas, agora tem duas. Eu tenho dúvidas que se ganhe para empregadas, é um bocado complicado. Portanto, esta dedicação às próprias coletividades, que a própria evolução da sociedade também trouxe. Porque hoje podemos estar num sofá requintado, numa sala quente a ver televisão, e a televisão tem programas para todos os gostos. Temos os computadores e, enfim, centenas de milhares de pessoas que passam serões aos computadores. Há, de facto, muitas atrações e não é fácil levar as pessoas para as coletividades. Agora, realizando alguma coisa de diferente e depois é urgente que alguém tenha a capacidade e a força de unir mais as coletividades, porque as coletividades em conjunto têm muita força. Nem que tenham uma realização por ano de uma grandeza palpável, nem que sejam os tais concertos ou uma danceteria modernizada, bem equipada, para levar lá as pessoas. Pode ser só num sítio, mas explorado por todas. Porque não estou a ver todas as coletividades, por exemplo, a adaptarem as suas instalações a uma pequena danceteria, equipada convenientemente com os psicadélicos e tudo isso, mas é possível pelo menos fazer uma que funcione por todos, com o conjunto de todos. Mas, aliás, quase todas as coletividades teriam condições para fazer um pequeno espaço, porque hoje as danceterias levam muita gente. P: Mas não acha que, e voltando um bocadinho ao que tem estado a sublinhar ao longo da sua história, da ligação que havia entre a participação das coletividades e a intervenção política, que essa dimensão, essa ligação também faz parte da identidade das coletividades e que também é muito essa dedicação dos dirigentes também é muito por vocação política, ou seja, também é uma motivação política? Francisco Duarte: Sem dúvida. Agora nem tanto, mas houve uma época em que os partidos políticos disputavam acerrimamente as direções das coletividades. Havia e continua a haver ligações das coletividades à política, sem dúvida nenhuma, e à atividade política. Agora, vamos lá ver, as coletividades hoje são frequentadas por muito poucas pessoas, por pouca gente. E nalguns casos, gente já de uma certa idade também, com um nível cultural muito abaixo do que era desejável. E que o interesse deles é estarem ali a beber uns copos e a coletividade passa muito tempo despercebida, completamente despercebida. Posso estar completamente enganado, mas eu penso que para levantar tem de haver alguém, como eu dizia, com a força capaz de organizar, de coletividades terem a mesma vontade no sentido de algumas organizações, organizações com o vulto, que marquem e que possam durar vários anos, desejadas pelo próprio público. P: Mas diga-nos lá, das suas realizações, daquilo que realizou, há bocado estava a dizer que tem realizações que o marcaram. Quais é que foram aquelas que foram mais marcantes? Francisco Duarte: E eu devo dizer-lhe que a mais marcante foi esse concurso de fado e foram os vários bailes que nós fazíamos alusivos a qualquer coisa. Fazíamos o Baile da Primavera, por exemplo, e o salão era decorado, tanto o chão como as paredes, com flores da mata. Com mulheres que, voluntárias, que depois também conseguiu-se criar-se um grupo de mulheres que trabalharam imenso. Ainda hoje trabalham em muitas coletividades. Na minha, digamos assim, também acontece ainda isso. P: Quando é que elas começaram a participar mais? Francisco Duarte: A partir da década de 80, no caso da minha coletividade. Nas outras, na grande maioria, foi um bocadinho mais tarde. Mas aquela coletividade que também tinha umas instalações mais amplas, digamos assim, e onde se podiam realizar mais coisas e havia mais gente também, porque é o lugar do concelho com mais gente. Tem 7000 habitantes, 7000 habitantes é muita coisa. P: Como é que elas entraram? O que é que elas vieram fazer? Quais foram as atividades que começaram a desenvolver? Francisco Duarte: Começaram primeiro nos lavores, nas costuras e nessas coisas. Depois compraram, no caso da coletividade da Honra, compraram uma televisão só para a sala delas. Depois começaram também, quando fazíamos os MusicOrdens, por exemplo, eram elas que faziam a cozinha toda e nas festas faziam a cozinha toda. Depois faziam alguns sorteios para passeios delas. Tinha uma atividade ali que ajudava muita a coletividade. Ajudavam muito o grupo de teatro, era de lá que vinham as costureiras, era de lá que vinham as ajudantes das costureiras, tudo isso. Não tiveram assim realizações de grande vulto, tinham aquela presença delas, que era importante. Eu acho que iam à coletividade quase todos os dias, juntavam-se ali nas suas conversas, enfim, algumas a costurar e outras não. P: Faziam parte dos órgãos dirigentes? Francisco Duarte: Muitas fizeram, mas isso já a partir da década de 90. Houve quase sempre mulheres na direção. Ainda hoje há, mas numa percentagem – salvo raras exceções –diminuta. Só houve aqui há uns dez anos, talvez, que era uma direção só praticamente de mulheres. Mulheres não, de raparigas, digamos assim, raparigas muito jovens, ainda muito jovens. É a direção de que eu me lembro que teve mais mulheres, creio que foi essa, creio que na década de 80, já não posso precisar, ou de 90. P: Fale-me também um bocadinho da sua participação sindical. Disse-me que ainda antes do 25 de Abril foi para o sindicato, ainda o sindicato corporativo, o sindicato nacional. Como é que entrou? Francisco Duarte: Entrei em 1971, mas aí era delegado sindical. Então íamos às empresas ver o que é que se passava. Na maioria dos casos éramos escorraçados, especialmente quando íamos ali ao Bombarral tentar ver quem eram os aprendizes que trabalhavam nas oficinas sem terem idade. Os próprios operários chegaram a escorraçar-nos, como nos fizerem em Pombal uma vez, por exemplo. Era mais nessa área que trabalhávamos, a de levarmos os problemas à própria direção do sindicato, com reivindicações já salariais, com reivindicações de férias. Porque eu comecei a trabalhar, para ter direito a férias tinha que trabalhar, já não me lembro, mas era uma série de anos para ter 8 dias de férias. Pronto eram essas reivindicações todas, foi-se massacrando, massacrando... Era o sindicato metalúrgico. P: E a direção do Sindicato Metalúrgico, ainda era uma direção próxima do regime? Francisco Duarte: Na altura era muito próxima do regime, o presidente era agente da PIDE, agente oficial mesmo… P: E foi assim até ao 25 de Abril? Francisco Duarte: E foi assim até ao 25 de Abril. E portanto, como delegado sindical, foi essa atividade que tínhamos nas empresas. E depois fui presidente da Assembleia Geral, mas nessa altura, o presidente da Assembleia Geral trabalhava com a direção do próprio sindicato. P: Ainda antes do 25 de Abril ou já depois? Francisco Duarte: Depois do 25 de Abril, já depois do 25 de Abril é que eu fui presidente da Assembleia Geral. Mas na altura o presidente da Assembleia Geral trabalhava também com a direção, ia às reuniões e depois, enfim, tinha um dia por semana que era para ir ao sindicato. E aí também desenvolvia atividade sindical nessas reivindicações, marcando algumas manifestações, também visitando novamente as empresas após o 25 de Abril, ainda com muitas dificuldades de conseguirmos entrar nas empresas, especialmente ali na zona das Meirinhas, Pombal e Bombarral. É onde me lembro de termos maiores dificuldades de lidarmos com os problemas. Depois também houve um período em que os metalúrgicos marinhenses tentaram que a direção e as instalações do sindicato que fizeram na Vieira de Leiria viessem para a Marinha Grande. Foi uma Assembleia Geral a que até as peixeiras todas foram, porque não queriam de maneira nenhuma o sindicato fora da freguesia da Vieira. Eu também nunca defendi isso e ganharam, eles ganharam e o sindicato continua lá. De maneira que foi uma atividade sindical muito contrariada, muitas vezes, pelo patronato. Fui de facto sempre muito prejudicado, especialmente a nível salarial, ganhava sempre menos do que os outros. E tive uma vez um patrão que me fez uma proposta de eu abandonar a vida política e sindical, que poderia ser chefe da fábrica. Tivemos uma discussão que ainda hoje está na mente dos dois, certamente. Portanto, ser dirigente sindical, mesmo após 25 de Abril, não era tarefa fácil. Nem eram todos que queriam. Porque éramos discriminados, altamente discriminados, e ganhávamos menos do que os outros. Quando éramos aumentados, era menos do que os outros e tínhamos anos que nem aumentos tínhamos, porque éramos dirigentes sindicais. Eu fui 6 anos, não fui muito tempo, mas foi suficiente para ficar marcado para sempre. Mas, enfim, quem corre por gosto não cansa e sujeita-se a tudo. P: Como é que foi o 25 de Abril aqui na Marinha Grande? Francisco Duarte: O 25 de Abril foi um acontecimento inesquecível para toda a gente. Foi de uma alegria transbordante. Eu estava na fábrica, já eram 7 horas e 15 minutos quando soubemos. É evidente que a fábrica parou imediatamente, viemos todos para a rua, nem sabíamos bem o que é que tinha acontecido, uma coisa brilhante. Depois, no 1.º de Maio seguinte então, na Praça Stephens, foi uma coisa inesquecível, eu nunca vi na minha vida tanta gente junta. Eu sei lá, aquilo era gente a perder de vista. Era nas ruas todas que davam para a praça e na praça, no 1.º de Maio ainda mais que no 25 de Abril. Mas foi de facto um acontecimento que nos marcou a todos da maneira indelével. Ainda hoje, quando falamos disso, sentimos a emoção do que foi. Porque eu ainda vivi 37 anos no salazarismo. É, enfim, as dificuldades por que passámos, aquela esperança que nasceu com o 25 de Abril, aquela perspetiva de uma sociedade mais justa… No meu ponto de vista, infelizmente, não tão justa como gostaria. Mas, enfim, cá estamos. P: Como é que isso se viveu nas coletividades, mesmo aqueles meses do PREC? Como é que isso foi dentro das coletividades? Francisco Duarte: Não se sentiu muito nas coletividades. Não me recordo bem, mas passou um bocado ao lado das coletividades. Não houve assim grandes movimentações, a não ser algumas reuniões em que pediram as instalações para o efeito, de grupos políticos. P: Mas não se abriram oportunidades para novos tipos de realizações? Não se participou naquelas organizações populares para o saneamento básico? As coletividades não estiveram envolvidas nesse processo? P: Tiveram, de certo modo. As coletividades estiveram envolvidas em quase todo o processo político que se desenvolveu, porque as coletidades foram sempre espaços onde qualquer coisa que se organizava tinha de funcionar. Agora, em muitos casos, as próprias direções das coletividades alheavam-se um bocado dos problemas. Eram mais movimentos de associados e não associados, que se reuniam naquelas instalações para algumas realizações. Mas numa grande parte dos casos, as coletividades estavam um bocadinho ao lado. Agora, as próprias coletividades depois tiveram a sua atividade após o 25 de Abril, que já era de facto uma atividade mais, com uma perspetiva de sociedade diferente. O movimento teatral foi de uma importância muito grande depois do 25 de Abril. Fizeram-se imensos espetáculos com uma perspetiva política muito diferente. P: Como por exemplo? Francisco Duarte: As peças de teatro que escolhíamos eram sempre de autores que tinham um cariz político muito. No início de qualquer espetáculo de teatro, íamos apresentar a razão pela qual aquela peça ia ser apresentada, o seu cariz e, enfim, o que podia influenciar na vida das pessoas. Porque as pessoas também não tinham muita capacidade de absorver o conteúdo da própria peça. E havia então esse procedimento: alguém apresentava a peça antes de se iniciar os espetáculos e havia alguns ensaiadores, eu conheci alguns, que quase contavam a peça toda, e era bom para alguns porque, tem de se reconhecer que muita gente que ia ver peças de teatro que saía de lá quase na mesma. Não percebiam muito bem a mensagem. Nesse aspeto foi muito importante. Depois nós não tínhamos também a possibilidade, do ponto de vista político, de recrutar muita gente, porque as pessoas também não aderiam muito, queriam espetáculos populares. Qualquer espetáculo que nós realizámos na coletividade, não há comparação com os espetáculos de revista à portuguesa que nós fizemos. Nós fizemos quatro revistas à portuguesa, revista popular portuguesa, e, aí sim, do ponto de vista político isso era saliente. O conteúdo dos próprios sketches era marcante. Nós fazíamos uma peça de teatro e marcávamos logo dois espetáculos, numa casa que levava entre 450 e 500 espetadores. Mas quando era uma revista à portuguesa tínhamos de marcar quatro, porque tínhamos a garantia de quatro espetáculos certos de casa cheia. Portanto, as pessoas, também do ponto de vista político, viveram aquela euforia, aquilo tudo, mas não foi muita gente a aderir a movimentos e realizações. Isso ficou ainda com as pessoas politizadas que já vinham de trás e foram depois ganhando ou conseguindo ganhar alguns para alguma realização. P: A Marinha Grande é uma zona com uma grande percentagem da população a trabalhar na indústria, ou seja, com uma tradição do movimento operário muito forte. É quase mítica a história do 18 de janeiro. De que forma é que isso marca as características do movimento associativo? Francisco Duarte: Marca porque os inconformados do ponto de vista político frequentavam todas as coletividades e expressavam a sua vontade de mudar, de as coisas melhorarem. E o povo da Marinha Grande é um povo lutador, não é por acaso que temos dos melhores níveis de vida do distrito, segundo a última averiguação. Mas, estava eu a dizer, esse espírito de luta e de melhorar a vida nunca desapareceu dos habitantes da Marinha Grande e depois aconteceu um fenómeno importantíssimo. Dois terços da população da Marinha Grande já não são marinhenses. E esses dois terços vieram para cá como os portugueses iam, por exemplo, para a Alemanha, para ganharem dinheiro. Especialmente do Alentejo, muitos alentejanos, muitos ali na zona da Figueira da Foz, e desses lados. Muitos do Tramagal, que vieram para a indústria dos moldes, muita gente de Maceira do Liz, aqui perto, mas enfim, ainda hoje há muitos empresários da indústria dos moldes que são maceirenses. Esse espírito de luta nunca desapareceu da Marinha Grande e ainda hoje se luta. P: Estava a falar dessas correntes migratórias, qual foi o papel que as coletividades tiveram na integração dessas pessoas que chegavam fora? Francisco Duarte: Era uma integração natural, porque era um dos pontos que eles procuravam também para conhecer gente e para terem outro conhecimento do sítio em que viviam. O lugar em que eu vivo, por exemplo, é dos que tem mais forasteiros, há muita gente que não tem nada a ver com a Ordem. Das famílias tradicionais do lugar da Ordem praticamente já não existe quase ninguém. E, então, onde é que era o melhor paradeiro deles? Era a coletividade. Frequentavam a coletividade e aquilo para eles também era novidade, na terra deles não tinham e não tinham tido a possibilidade também de ganharem dinheiro. Eu lembro-me de umas famílias de Lamego que vieram lá para a Ordem e eles diziam: “Oh, senhor Duarte, nós estamos a viver num paraíso” – e eu lembro-me que eles tinham um ordenado miserável na altura, um ordenado muito abaixo da média. Vieram para ajudantes, quando as fábricas ainda trabalhavam a lenha, preparavam a lenha para meter nos gasómetros e tinham um ordenado baixíssimo. Ainda não havia o salário mínimo nacional. Eles diziam-me que a Marinha Grande era a melhor terra do mundo. Eles viam as chaminés e vinham por aí fora e de facto temos uma grande parte das famílias que estão na Marinha Grande – hoje, claro que já têm agora muitos marinhenses, filhos e netos, já marinhenses – são oriundas de muitos lugares do país. P: Parece que há um período de clímax do movimento associativo. Como é que essa memória é passada dos dirigentes mais velhos para os mais novos? Vamos voltar mais atrás, para quando entrou. Como é que os dirigentes mais velhos lhe contavam que era que era o associativismo e como é que deveria de ser o associativismo? Francisco Duarte: A maioria deles não contava nada. Eu, quando entrei numa direção, comecei a ver como é que eles funcionavam. Porque não havia muitos dirigentes associativos com uma perceção da importância que podia ter o movimento associativo na mudança da sociedade. Não se falava, não havia muitos que falassem nesses termos e nessa condição. Havia o tal senhor que eu lhe relatei, o senhor Ilídio Guerra e mais uma meia dúzia, mas esses desapareceram, foram desaparecendo. Depois era mais um espírito de missão de manter a coletividade. Aliás, muitos dirigentes até tinham muito receio da política. Quando se dispensava a coletividade para uma sessão política, mesmo após 25 de Abril, muitos ainda tinham muitas dúvidas em relação àquilo, se devíamos dispensar ou não a coletividade. Do ponto de vista pessoal, eu fui apreendendo o que é que era o movimento associativo, onde é que se podia chegar e o que é que se podia fazer. E como é que eu, da minha parte, transmiti aos mais novos, que eu tive gente muito nova também nas minhas direções? Fui dando essa perspetiva. Mas muitos não assimilaram. Não quiseram saber, tirando raras exceções. Muitos não quiseram saber disso para nada. Portanto, o associativismo é passado naturalmente se as pessoas estiverem disponíveis mentalmente para isso. Porque nós não conseguimos convencer ninguém: “Tu vens para o movimento associativo porque o movimento associativo pode contribuir muito para alterar a própria sociedade.” Não se fala muito nesses termos, fala-se mais do progresso da própria coletividade. Independentemente de, atualmente, eu no meu ponto de vista as coletividades fazerem muito pouca coisa. Eu também sou um bocado contra as coletividades que estão a tornar-se instituições de solidariedade social. Primeiro, não têm condições para isso, não têm a tendência, e depois perdem aquele significado de uma coletividade de cultura, desporto e recreio. Não quer dizer que as coletividades que estão a enveredar nesse sentido que estejam a fazer um mau trabalho à sociedade. Mas deixam de ter aquele carisma de coletividade que havia e que caminhava mais para a mudança da própria sociedade. Acham que estão a desenvolver um bom papel, que estão a prestar um bom serviço à sociedade, nalguns casos nem é de tanta qualidade como isso, deixa muito a desejar. Mas ficaram por ali. E também por isso muita atividade das próprias coletividades vai decaindo. Isto independentemente de eu continuar a considerar que o movimento associativo atravessa um momento difícil. E é preciso cabeças pensantes para alterar este tipo de situação, mas tem que ser em conjunto, eu não vejo do outro modo. Não podemos individualizar e fazer coisinhas a nível de escola. Independentemente das próprias coletividades terem a sua atividade, é importante começar a haver realizações em conjunto, de grandeza, que deem que falar. E se as coletividades em conjunto conseguirem três ou quatro realizações anuais com essa grandeza, o movimento associativo passa a ter mais aderentes, passa a ter mais gente interessada. E pode não vir interessada, pode não vir com o pensamento no avanço do associativismo em todas as vertentes, mas vai-o ganhando. O associativismo é, para mim, de uma importância fundamental. Não é por acaso que o país teve mais de 20 mil coletividades e mais de 200 mil dirigentes associativos. Por isso, o associativismo é de uma importância fundamental. Agora eu diria, num derradeiro apelo: temos de salvar o associativismo e temos de ser suficientemente inteligentes para o salvar, porque se o associativismo vai cada vez tendo menos esforço. Eu acho que nesta coletividade, por exemplo, está-se a fazer um trabalho razoável. Mas ainda não é o que devia. Porque deviam ser desenvolvidas mais atividades que fossem da própria coletividade. Porque alugar espaços para Costura e Bordados e trazer umas companhias de teatro que, por sua própria conta, vão fazendo alguns espetáculos… O que eu gostava de ver aqui era um grupo de teatro da Cumeeira, um grupo de teatro com força, que se impusesse com peças, com coisas boas. O que falta aqui é um cérebro na própria direção, que avance com essas coisas, porque eu digo-lhe com toda franqueza e sem nenhuma atitude de sobranceria: na coletividade da Ordem houve homens que souberam fazer as coisas, mas foram desaparecendo. Mas não houve ninguém que aprendesse aquilo… Eu escrevi, fui autor e encenador de uma revista à portuguesa, de um Bate Bate, Coração, o grupo tinha 30 pessoas. Se eu não morri naquele período, não morro mais, porque era um trabalho extenuante. Porque também não tinha gente preparada para me ajudar, porque se tivesse... Eu tinha era muita gente no grupo que fazia teatro, porque fazer teatro era bonito e as pessoas batiam palmas e ficavam todos inchados. Mas tinha uma grande parte dos atores amadores que todos os dias de ensaio me faziam a mesma pergunta: “Como é que eu vou daqui para ali? Como é que ponho o braço para cima quando estiver a fazer o discurso de Presidente da Câmara?” Então, para quem tem a responsabilidade de ensaiar uma revista, de ver as marcações, de ver isso tudo… Era um grupo de 30 pessoas, todos os dias a fazer as mesmas perguntas, e eu não tinha ninguém em quem delegar alguma responsabilidade. Portanto, estas coisas são difíceis. É aqui que eu penso que as câmaras deviam ser ganhas para nos poderem fornecer alguém do ponto de vista intelectual, do ponto de vista cultural, que nos desse uma ajuda quando estes espetáculos aparecem. Agora eu quero dizer o seguinte, não aparece muita gente nas coletividades para fazer isso. E, aliás, esta coletividade tem esta vida toda e tem este esplendor, que para mim tem de facto aqui umas instalações magníficas, graças ao sacrifício de um homem que está aí há tem não sei quantos anos. Quando ele for embora, como é que isto vai ser? Como é que as coisas vão ser? Pronto já se enveredou por outras coisas, alugar os espaços e fazer uns pequenos-almoços, fornecer uns pequenos-almoços. Ter praticamente uma taberna a funcionar também, que há umas sociedades em que as pessoas se juntam para beber do seu copo, mas às vezes são grupos de 15, cada um paga a sua rodada, portanto, fazendo as contas, cada um bebe 15 copos de vinho. São gente que não tem condições para pensar o que quer que seja a não ser ir à coletividade beber um copo. É uma situação muito difícil. Nós temos de reconhecer, independentemente de sermos o mais positivos possível em relação ao associativismo, temos de reconhecer que o associativismo nestes últimos anos tem vivido anos muito difíceis, muito complicados e, no meu ponto de vista, por falta de capital humano. Temos de alterar o panorama. Isto tem de ser alterado, senão morre. Eu já um outro dia disse, se eu hoje fosse novo e se pudesse ter a possibilidade de vender esta coletividade, vendia. E fazia-a de outra maneira. E hoje ia adaptá-la à juventude e ia haver discotecas e ia haver tudo. Não tenho dúvidas nenhumas. Eu, hoje, se tivesse condições de fazer uma coletividade de novo, eu não fazia nada disto que está aqui, estes salões, estas coisas. Isto já passou, acabou. Os grandes bailes, em que era preciso um salão enorme, isso acabou. Portanto, há que adaptar as instalações, há que pensar o movimento associativo, mas pensar com o sentido que dá muito trabalho e custa muito e tem de se perder muita noite e tem que ser inteligente à força para alterar o panorama, porque senão... Aliás, a senhora vai entrar hoje em qualquer coletividade a esta hora, tirando o Sport Operário Marinhense, que tem um bar alugado, um bar de alto luxo alugado, em que o associado da coletividade vai lá, cá fora paga por uma cerveja 1 euro e lá paga 2. Mas é a única coletividade que certamente a senhora vai visitar a esta hora e tem lá muita gente e muitos jovens também, porque é o tal elitismo, se assim se pode chamar. Mas vai às outras coletividades e estão meia-dúzia de gatos sentados a ver a televisão, outros a jogar às cartas E pouco mais. E da parte das direções, conformismo total. Eu também antes dizia, quando era presidente da Junta: “As direções, só para manter espaços abertos, já merecem um subsídio.” Eu era da opinião que o poder local devia pagar, e já aconteceu, pelo menos a água e a luz às coletividades, porque de facto, abrir a coletividade e estar lá já é importante, mesmo que não vão 10, vão lá 5, umas vezes vão mais, outras vezes vão menos, mas é um espaço importante e tem muito a ver com a vida do próprio lugar. Porque ali fizeram-se grandes amizades, fizeram-se casamentos, fizeram-se batizados, aconteceu muita coisa nas coletividades, que diz respeito às pessoas do próprio lugar das coletividades. E as próprias coletividades ajudaram muito a desenvolver as famílias. É por isso que também existe ainda hoje aquele bairrismo antigo, que muitas vezes não deixa levar a que haja união para realizações mais ousadas. P: Muito bem. -
29-11-2021
Etelvina Lopes Rosa Ribeiro
P: Qual é o seu nome todo? Etelvina Rosa: Maria Etelvina Rosa Ribeiro, mas o normal é ser Etelvina Rosa. P: Em que ano e em que dia nasceu? Etelvina Rosa: 16 de maio de 1955. P: E nasceu aqui, na Marinha Grande? Etelvina Rosa: Sim. P: Fez aqui a escolaridade? Etelvina Rosa: Fiz só a quarta classe e, depois, já foi aos 50 anos que tirei o nono nas Novas Oportunidades. P: Depois da quarta classe foi trabalhar, na altura? Etelvina Rosa: Fui aprender costura tinha 11 aninhos, costura e bordados. E aos 18 anos, na véspera do 25 de Abril, entrei para a fábrica. Tinha 18 e fiz logo em maio os 19. P: E os seus pais, também trabalhavam aqui na Marinha Grande? Etelvina Rosa: Nas empresas vidreiras? Sim. P: E casou-se aqui? Etelvina Rosa: Casei-me aqui. P: Tem filhos? Etelvina Rosa: Uma filha e uma neta. P: E o seu marido, trabalhou aqui também na indústria vidreira? Etelvina Rosa: Não, trabalhou nos moldes primeiro. Quando regressou da chamada tropa, ainda trabalhou uns anos nos moldes. Depois foi trabalhar na secção dos moldes, mas na indústria vidreira, na empresa Crisal. P: E a sua filha, o que é que faz? Etelvina Rosa: É engenheira florestal. P: Tem aqui um Pinhal de Leiria para tratar, não é? Etelvina Rosa: Por acaso esteve até este ano em São Brás de Alportel, a trabalhar na Proteção Civil, agora é que veio para a Marinha Grande, não sei se ainda vai ficar mesmo. Em princípio ficará… P: Faz parte de algum partido político, tem filiação partidária? Etelvina Rosa: Sim, do PCP. P: E religião? Etelvina Rosa: Não. P: Então, vamos tentar fazer assim uma linha do tempo. Quando é que começou a participar ativamente em movimentos sociais? Foi antes ou depois do 25 de abril? Etelvina Rosa: Foi depois. Eu não tinha noções políticas nenhumas. Eu sou filha única. Os meus pais eram assim de terem a menina protegida ali em casa. E, como eu disse, fui trabalhar em fevereiro de 74, apanhei logo uma greve por aumento de salários em março, que coincidiu com o dia do movimento militar das Caldas, que fez a pré-revolução, o tubo de ensaio. Tínhamos entrado para a fábrica naquela altura 18 a 20 jovens, com idades entre os 18 e 20 anos, e aí é que nós percebemos o sentido político, porque fazendo greve na indústria vidreira, não foi só na fábrica onde eu estava, foi na indústria vidreira, tínhamos a Marinha toda cercada por polícia a cavalo, um aparato tenebroso de se passar nas ruas da Marinha. Isso despertou-nos a percebermos muito bem o porquê das coisas. A partir do 25 de Abril... Não comecei a participar por ser dirigente de coisa nenhuma. Comecei a participar na atividade normal das lutas reivindicativas. Para o bem ou para o mal, na fábrica Manuel Pereira Roldão os patrões, logo em novembro de 1974, abandonaram a empresa que esteve cinco anos em autogestão, com os trabalhadores a gerirem a empresa. E isso deu-nos um outro sentido, porque era uma empresa que na altura teria mais de 600 trabalhadores e conseguiu-se gerir, porque foi nomeada uma Comissão em que cada secção elegeu um representante, digamos assim, para fazer parte da gestão da empresa e nós trabalhámos durante cinco anos como se fosse uma cooperativa, o que nos deu bastante consciência política. Cada uma vinha da sua vida, algumas com o quinto ano, que hoje seria o nono, outras apenas com a 4.ª classe, mas não tínhamos qualquer consciência política. E, realmente, vermo-nos ali a braços com a empresa e ter que gerir e tratar de tudo como se fôssemos a entidade patronal deu-nos uma vivência que, para mim, pelo menos, serviu para a vida. Depois o ser delegada sindical é só em 1982, que é o ano em que nasceu a minha filha. Eu casei em 1977, depois em 1982 nasceu a minha filha e, por coincidência, entrei para delegada sindical, que é o representante do sindicato dentro da empresa. P: Mas conte-me mais detalhadamente essa experiência da autogestão. Fala sempre no feminino, era uma empresa com muitas mulheres? Etelvina Rosa: Falo no feminino porque a indústria vidreira até há pouco tempo estava dividida, o que nós chamamos a zona quente era só homens, o que nós chamamos zona fria era só mulheres. Por isso é que eu falo no feminino, porque era onde eu estava integrada. P: O que se faz na zona fria? Etelvina Rosa: Enquanto na parte do forno é trabalhado o vidro a quente, o fabrico é manual, a cana, o soprar do vidro e o manusear o vidro à mão. A zona fria é a parte dos acabamentos, ou seja, todas as peças têm que ser cortadas, roçadas, têm que ser polidas, lapidadas, pintadas, há uma série de transformações, o fosco também, tudo o que é acabamentos, depois também a embalagem e a expedição, é já a parte final, faz parte da chamada zona fria, com trabalho de mulheres. De referir uma componente, que ainda perdura nos dias de hoje, que é o salário. Não é que não recebessem pelas tabelas… Olha, nessa altura eram melhor aplicadas que agora, existia o contrato coletivo de trabalho e as empresas eram obrigadas a cumprir as tabelas publicadas, mas como era considerado o trabalho feminino menos qualificado, digamos assim, nestes anos que estamos a falar, não digo que fosse metade o salário de uma mulher, mas era pouco mais que metade do salário de um homem do forno. Claro que o ser artista vidreiro não é para qualquer um e o trabalho na zona quente é um trabalho que exige especialidade. Mas a roça também é um trabalho específico, porque se a peça não fosse roçada a direito e não fosse polida como deve ser não poderia ir para o cliente, é um trabalho bastante duro, porque em plenas madrugadas de geada, sem qualquer aquecimento é difícil trabalhar. Se os trabalhadores do forno trabalhavam com muito calor, ali trabalhava-se em secções extremamente frias, porque eram muito amplas, e com água gelada, em que as peças tinham que ser manuseadas sempre com água, para não rebentarem, e portanto, este trabalho era duro e não valorizado convenientemente para o tipo de trabalho que estas mulheres exerciam. E aí era mesmo feito por mulheres, o que aconteceu durante décadas é que o chefe era homem [ri-se]. Essa também era questão muito interessante. Se formos ver a história, eram 30 mulheres numa secção, o chefe era homem. Depois isto só se inverteu já no final dos anos 80. P: Então e o que é que a Etelvina fazia quando entrou na fábrica? Qual é que era a função que desempenhava? Etelvina Rosa: Eu entrei para a parte da embalagem, a secção de exportação. Portanto, desde escolher as peças, empalhá-las, porque quando eu cheguei ainda muitas das peças não eram embaladas em caixas de cartão, eram empilhadas em palha e depois encaixotadas para seguirem para embarque. Depois passou-se para a caixa de cartão, que já era um trabalho melhorzinho, não era tão difícil e agressivo para as nossas mãos. Devo ter estado ali até aos anos 90. P: E foi nesse período, nessas funções, que viveu a experiência de autogestão? Etelvina Rosa: A autogestão só foi cinco anos, de 1974 a 1979. Estava nessa parte da embalagem. Depois, em 1979, entrou o Mário Soares e acabou com a autogestão, assim como com a Reforma Agrária. P: Como é que esta alteração das relações laborais se refletiu no seu trabalho enquanto delegada sindical? Etelvina Rosa: É muito difícil falar de nós, mas é mesmo assim, teve de ser com muita persistência, muita teimosia e com o retirar muito à minha vida pessoal. Porque quando as chefias me chamaram e disseram: “A gente precisa de ti agora, aqui, neste posto de trabalho”, a primeira coisa que eu respondi foi “vocês sabem a responsabilidade que eu tenho a nível sindical nesta empresa. Eu não abdico. Portanto, o que eu tiver de fazer, terá que ser feito da mesma forma como sempre o fiz”. “Isso não é impedimento, fará como entender”. Sabemos que, infelizmente, numa grande parte dos casos, não é fácil ser responsável sindical e chefiar isto ou aquilo, porque no fundo acabava por ter de fazer cumprir ordens superiores. Eu não era uma chefia superior, mas tinha que fazer esta gestão até mesmo internamente para conseguir ter as peças para levar para fora. E isso implicou eu ter de fazer, no fundo, à minha conta, muitas horas. Porque o normal seria: tenho de sair para uma reunião e saio, ponto. Mas como eu tinha esta responsabilidade, era a última coisa que eu queria que me acontecesse na vida é que alguém me dissesse “esta carga não saiu porque tu não tiveste atenta à situação, não a resolveste atempadamente”. E então, todas as reuniões sindicais que eram na Marinha, eu não saía diretamente de casa para a reunião, ia sempre à hora que fosse à fábrica deixar as coisas previamente preparadas, porque normalmente eu fazia as cargas e descargas, depois alguém fazia o trabalho de distribuição, mas eu tinha que saber que o que estava nas caixas, por exemplo, eram 100 peças para irem para o fornecedor José, Manuel ou Francisco, eu tinha a certeza, com a guia passada, para alguém as entregar, para amanhã ou passado um dia ou dois serem levantadas. Também o normal era os trabalhadores saírem às cinco da tarde, se eu tivesse que voltar à fábrica, voltava. E estou a dizer isto, que foi sempre da minha responsabilidade, porque ninguém me dizia isto tem de estar feito ou não, se eu estivesse na fábrica, das cinco às seis ou das cinco às sete, eu não apontava uma hora extraordinária. Por isso é que eu digo que fui muito teimosa, no assumir as funções. Isto para mim também me ajudava na parte sindical, porque numa fábrica de grande dimensão, com setores muito variados, com profissões diferentes, dava para perceber os problemas dos trabalhadores em cada secção. Porque, por exemplo, quando eu entrei para embalagem, eu entrava e saía dentro da secção. Se via alguém era à hora de almoço. Como tinha estas funções, em que tinha de ir às secções todas, tinha a liberdade de passar por diversos setores, conhecer e tentar perceber o tipo de trabalho. Às vezes digo, isto pode parecer que não é bem assim, mas é, eu tive colegas minhas que entraram na mesma altura do que eu e saíram na mesma altura do que eu, e que, como trabalhavam na zona fria, estavam tão compartimentadas que não chegaram a estar perto de um vidreiro a vê-lo trabalhar ao vivo e a cores, não tinham noção da temperatura do forno, da composição de que as peças eram feitas. E agora, a falar nisto, estou a lembrar-me de uma parte, que também me ensinou muito relativamente ao vidro, quando estávamos na fase de autogestão, isto foi a seguir ao 25 de Abril, que só quem o viveu, acho que a minha geração nisso foi muito privilegiada, porque conheceu o antes, conheceu o 25 de Abril e conhece agora. O ano de 1974 era de uma efervescência e de uma novidade para todo o cidadão português. E era muito comum haver excursões do Porto, de Gaia, de aldeias da Serra da Estrela e dos mais diversos pontos do país, vir visitar a empresa ver trabalhar o vidro e até do estrangeiro vinham excursões, em passeios culturais, chamemos-lhe assim. Vinham aqui, mas também à Reforma Agrária, aproveitavam para vir a Portugal, os que vinham de fora, e um dia iam a um local e outro dia a outro. Eu tinha pouquíssimo tempo de empresa, enfiada lá na tal secção que era só de embalagem, quando na altura os colegas responsáveis falaram comigo para acompanhar os visitantes, porque chegavam às vezes duas camionetes, que eram 100 pessoas, para ir visitar o forno. Tinha de ser limitado, no máximo dos máximos eram 20 pessoas para aquela situação, às vezes já era um grande aglomerado na zona chamada quente. E então tinham que arranjar duas ou três pessoas que fossem os cicerones, digamos assim, a passar pelas secções para tentar perceber o trabalho do fabrico manual. E quando me chamaram pela primeira vez, eu só sabia que havia copos para meter em caixas e eu era muito envergonhadita à data. “Mas eu não percebo nada disto, o que é que eu vou fazer?” “Tens de ir, tens que acompanhar.” Portanto, isto levou-me a ter de parar ao pé de um vidreiro e dizer: “está a fazer isso, como se faz?” O vidreiro explicava: “é assim, tira-se o vidro do forno, está a fundir a 1000 e tal graus. Eu estou a trabalhá-lo a mais de 700 graus e aqui põe-se a asa e ali corta-se o bico do jarro e ali coloca-se o pé do cálice.” Depois passava por de trás do forno para ver a composição e saber quais eram os ingredientes da composição. Assim toda a minha vida fabril deu-me uma experiência, que eu não quis ter, mas fui tendo. E, realmente, essa parte foi nos anos da autogestão, que eu tive essa experiência que me foi ajudando ao longo da vida. Depois, quando já estou nas outras funções, também já tinha algum à vontade para ir, até porque tinha que escolher as peças, tinham defeito, estavam tortas ou tinham bolha, ou outo defeito. Portanto, também já tinha à vontade para ir junto do colega trabalhador e dizer como é que isto se resolve sem estarmos a estragar alguma peça. E também lhe dava a ele o à vontade para me colocar os problemas que depois tínhamos de levar a reuniões com a entidade patronal. P: Quais eram os principais problemas? Quais foram, ao longo dessa experiência de delegada sindical na fábrica, os principais problemas com que se deparou? Etelvina Rosa: Eu aí tive esse espacinho de tempo que não foi muito, mas que foi gratificante, quando entrou o novo patrão. Já não houve salários em atraso até 1992. Mas há sempre a nota de culpa, porque o trabalhador fez um erro qualquer, ou faltou ao trabalho, ou teve algum problema, porque existem muitas categorias profissionais, de oficial e primeiro ajudante e segundo ajudante, que tem determinados tempos para subir de categoria e até podia não ser por mal, mas o trabalhador já estava a exercer determinada categoria acima do que recebia e não estar a ser pago corretamente. É este tipo de situações que a delegada sindical tem de resolver. Naquela altura, nem se passou nada de tão grave assim, mas era dentro desta base de situações que íamos tratando. Por exemplo, estávamos a falar das mulheres da roça e do frio, tínhamos de reportar essa situação: “tem de resolver a questão, como pôr ali uns aquecedores a gás ou qualquer coisa que seja, porque é impossível trabalhar naquelas condições. Arranjem condições para que o fio de água que está a correr, não seja só um fio de água gelado.” Eram estas algumas questões. Podem parecer até de somenos importância, mas que para o trabalho são fundamentais, até para ter a rentabilidade produtiva que é precisa nas empresas. Depois, deve ter sido nos anos 90, que fiz parte já da direção do sindicato, mas a minha postura foi sempre a mesma. Nunca descurei nada do trabalho que tinha de fazer profissionalmente e sempre fiz o que me foi possível em termos sindicais, mais gerais, porque já não era só na empresa Manuel Pereira Roldão, também havia problemas, e muitos, noutras empresas. Também tinha de ir. Claro que não estava a tempo inteiro no sindicato, nada disso, portanto tirava dias, dois ou três por mês, não tirava mais do que isso, mas sempre muito às minhas custas, digamos assim. Depois, com uma filha pequena, também foi preciso gerir muito bem os meus dias, tirando algumas horitas de sono para conseguir que tudo encaixasse e que se levasse à prática. P: E nesse período da direção do sindicato? Ainda faz parte da direção do sindicato hoje em dia? Etelvina Rosa: Sim, já agora vou contar um bocadinho da história, depois corta o que entender. Quando entrou o patrão, estes patrões, pronto um é que era o mentor da empresa, em 1986, ele mudou radicalmente o circuito da empresa e lidava com os trabalhadores de igual para igual e foi uma pessoa muito empenhada e, especialmente nos dois primeiros anos de fábrica, ele entrava às 7h00 da manhã e saía à meia-noite. Portanto, ele era uma pessoa com muitas capacidades, na altura tinha 33 anos, salvo erro. Como já tinha o conhecimento do internacional, ele manteve sempre a parte das encomendas, criou um design novo para as peças de vidro, porque a M.P. Roldão, anteriormente trabalhava numa linha, que era até ali muito competitiva, não só com outras empresas da cristalaria, mas até já com algumas do semiautomático e era incomportável o custo que ficava um copo manual para um semiautomático. E ele alterou muito o trabalho para a cor, com um design para o decorativo, que não tínhamos em mais nenhuma empresa na Marinha Grande, nem noutro sítio do país. Como já não existia ninguém a trabalhar naquele tipo de peças, tínhamos encomendas a perder de vista. O patrão, sempre muito empenhado em gerir tudo, em passar por todas as secções, a ver ao vivo e a cores os problemas, a estar ali para perceber o que os trabalhadores dizem, porque por vezes não é só o que dizem, é também ver no concreto, reunia com todas as chefias e havia uma coordenação e uma interligação espetacular. Quando a empresa, com a nova gestão, começou a dar frutos, a estar estabilizada e a dar lucros, porque diga-se em abono da verdade que as empresas de cristalaria manual têm de ser mesmo bem geridas, porque não são empresas que deem lucros fabulosos. Têm um custo energético muito grande. A composição do vidro tem um grande custo e então quando é de cor, é muito cara. E para ser competitiva tem que efetivamente ser muito bem gerida, foi o que o patrão fez nos primeiros dois, três anos. Depois, achou que que já estava noutro patamar da vida e em vez de ser ele a gerir no dia a dia, começou a arranjar o primo, o amigo, um conhecido que mandou de Lisboa, os quais não estavam para se preocupar com a gestão. E então a empresa, que chegou a um patamar excelente, começou outra vez a decair. E também estou a dizer isto porque tinha conhecimento, porque estava nas funções de andar dentro e fora, que para além das peças de vidro também tinha de ir às cartonagens, carregar caixas, outros materiais e diversas compras, andava com a camionete na rua e tinha essa ligação aos fornecedores, que eram essenciais para a empresa e que durante x tempo eles até iam oferecer os materiais. Depois, já se começou a sentir “só levas o material se pagares primeiro”, é sempre o que acontece antes de faltar o salário, começam a cortar o pagamento aos fornecedores, à Segurança Social. Ao deixar de gerir por diretamente e achar que podia ser por interposta pessoa, as coisas começaram a correr mal e a empresa quase encerra em 1994. Lá se arranja um outro empresário que ficou com a M. P. Roldão, também não foi nada de especial, encerra em 1997 nas instalações e passa a ser outra empresa, filha daquela e construída na zona industrial, mas que já não tinha, nem de perto nem de Longe, a mesma dinâmica e apostando na produção de cristal, o qual não tinha mercado. P: Entretanto, foi para a direção do sindicato... Etelvina Rosa: Deve ter sido também no início dos anos 90. Aí estava na direção, mas a direção normalmente só tem uma pessoa a tempo inteiro, que está mesmo no sindicato a tempo inteiro. Os outros dirigentes têm os quatro créditos sindicais que são do Código do Trabalho há muitos anos e conforme as necessidades utilizamos ou não. Eu estava na mesa da Assembleia Geral e depois estive na direção, nesse formato. Também fui das que passei da Manuel Pereira Roldão para a outra empresa, a Mandata, que encerrou em final de 2002. P: E durante esse período esteve sempre na direção do sindicato… Etelvina Rosa: Sim, mas de forma parcial, digamos assim, só com créditos. Depois fiquei no desemprego e assim com mais tempo livre para o trabalho sindical. A minha filha também já estava grande, porque na altura existiam muitas empresas vidreiras do ramo manual com muitos problemas e acabei por dar o meu tempo, recebia o subsídio de desemprego, não recebia mais nada, não estava todos os dias no sindicato, mas sempre que tinha disponibilidade passava alguns dias da semana a ir às empresas, a dar a ajuda necessária aos trabalhadores, até pela experiência boa e má que tive na Manuel Pereira Roldão. Ajudava a transmitir confiança aos trabalhadores, mas sempre em ligação aos coordenadores do sindicato. Em 2005, reformou-se o coordenador e a direção que ficou entendeu que seria necessário fazer uma proposta para eu ficar na direção, mas então paga pelo sindicato. Fiquei a tempo inteiro a partir de 2005, assumi a coordenação em 2013. Entretanto reformei-me, mas vou ficar até final do mandato que termina em maio de 2022. Portanto, será posto o fim como dirigente do STIV (Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Vidreira). Nestes anos todos não tive só atividade sindical. Embora acumule trabalho que por vezes nem se consegue dar resposta. Alguns dos meus traumas existenciais têm um bocado a ver com isso, é que até se sabe o que temos para fazer mas depois o tempo útil não dá para tudo. Eu também comecei a participar, logo a seguir ao 25 de abril, no Movimento Democrático de Mulheres, núcleo da Marinha Grande, que teve uma dinâmica espetacular, não sei se ainda em 1974, mas em 1975 garantidamente. Onde é a Junta de Freguesia da Marinha Grande hoje, era uma casa, não sei quem seriam os donos, estava desabitada à data, e cederam a casa para fazer uma creche. Porque não existiam. As fábricas maiores até tinham para lá uns cubículos e punham para lá uma mulher ou duas a tomar conta das crianças. As mulheres, para irem de bicicleta para a fábrica, tinham que deixar os miúdos nalgum lado. Havia algumas fábricas que tinham creche, mas as mais pequenas não tinham. Os filhos ficavam com os avós, lá nos terrenos, porque estes tinham agricultura, os miúdos andavam pelos terrenos. E então, uma das primeiras coisas que o núcleo da Marinha Grande do Movimento democrático de Mulheres fez foi implementar uma creche. Não tenho noção se foi até aos anos 80, deve ter sido, quando fizeram uns jardins de infância públicos que existem perto do centro de saúde. Como já existiam alternativas, terminou a creche que o MDM criou. Mas foi assim, ninguém tinha formação de coisa nenhuma, foram as mulheres com algum tempo que se disponibilizaram para tomar conta das crianças e os homens que tinham jeito para carpintaria fizeram as caminhas para as crianças e foi assim durante muitos anos. O núcleo do MDM envolvia muitas mulheres, fossem elas trabalhadoras das fábricas ou as chamadas trabalhadoras domésticas. E tinham muitas atividades, não se compara aos dias de hoje. Por vezes até nos esquecemos do que foi feito, só quando olhamos para álbuns antigos é que se dá conta. Desde os primeiros de maio com desfile de carros alegóricos e decorados pelas mulheres. As coletividades também participavam com os seus carros. Não havia dia 1 de junho nenhum em que o núcleo não realizasse iniciativas de rua para pôr os jovens e as crianças a pintar, a fazer jogos, entre diversas iniciativas. Também tomavam posição sobre o que acontecia no concelho. Na defesa do Serviço Nacional de Saúde criaram-se parcerias muito engraçadas na altura, porque não existia nada de nada. Até a exigência de ginecologistas para os centros de saúde, que se foram conseguindo, e entretanto se perderam. Em 1974 ainda estávamos naquela fase em que as mulheres não usavam nada para prevenir a gravidez. Portanto, o que acontecesse, acontecia, se engravidava ou não engravidava. Se engravidava N vezes, as que já não queriam ter mais filhos faziam o aborto clandestino, que depois corria mal, pondo em risco de vida as mulheres. O MDM teve um papel fundamental até se conseguir o direito ao aborto sem penalização. Eu não conhecia o trabalho desenvolvido a nível nacional pelo Movimento Democrático de Mulheres, não sei se foi feito em muitos núcleos. Mas na Marinha tenho ideia de realmente se ter um empenhamento muito forte, em que se conseguia parcerias com médicas, com enfermeiras e depois ir junto das instituições exigir que as necessidades de determinados serviços se concretizassem e as mulheres fossem tratadas convenientemente. E não pertencendo à direção do Movimento Democrático de Mulheres, também participava nas iniciativas que levavam à prática. Já nos anos 2000, as amigas que pertenciam ao núcleo da Marinha ficaram mais envelhecidas, porque também são eleitas no Congresso Nacional do MDM representantes do distrito – não é por concelho, é por distrito –, também sou eleita para a direção do Movimento Democrático de Mulheres. Isto para dizer que também passei a ter mais responsabilidades e, sendo um acumular de tarefas que nos tira muito do nosso tempo, depois olhamos para trás e fica assim um sentimento “mas eu poderia ter ido passear acolá, podia ter ido à festa não sei de onde e não fui”, porque para participar numa atividade, não faremos outra. Mas isso não me aflige nem penso assim “devia ter feito e não fiz”. Não. Acho que o que fiz, fiz, e enriqueceu-me, porque falando de forma ampla, ter atividades politicas faz-nos perceber a vida de forma diferente e com uma perspetiva mais alargada. Também acho que dei o meu contributo, dentro do que me foi possível, não o desejável, nem o que seria necessário, mas contribuí para que o coletivo no seu todo também melhorasse um bocadinho a vida. Infelizmente, temos uma situação política que não é de agora, já há uns anos a esta parte não é o que nós pretendíamos, e perdemos alguns direitos conquistados com o 25 de abril. Mas se não fosse a luta, esta força, a teimosia e persistência dos trabalhadores, teríamos perdido muito mais. Acho, mesmo assim, que é um esforço que tem sido feito com bons resultados. P: Então e neste período desde 2005, em que tem estado a tempo inteiro no sindicato, quais foram as principais lutas que teve que organizar? Etelvina Rosa: Isso só desfolhando o rol, que as lutas são tantas... Desde 2005, para já não falar nas anteriores, até 2008 ainda existiam aí algumas empresas: a Marividros, a Canividro, a Dâmaso, que era uma empresa em Vieira de Leiria, que produzia as peças mais utilitárias, era na altura o polo de subsistência dos trabalhadores da freguesia da Vieira de Leiria e que de um momento para o outro se viram confrontados com o seu encerramento. Na Dâmaso, assim como outras na Marinha Grande. Quando hoje, nalgumas empresas, se declara a insolvência, apesar do desânimo dos trabalhadores, estes não lutam, encerrou e fica assim. No nosso concelho realmente houve sempre uma forte resistência ao encerramento das firmas. Por exemplo, estou-me a lembrar que a Dâmaso encerra em 2006 ou 2007 e são outra vez N idas ao Governo Civil, que existia na época, N idas à Assembleia da República, ao Presidente da República. Tentar-se, por tudo e mais alguma coisa, denunciar e procurar alternativas ao encerramento, até o sindicato contactar com alguns empresários: “tens essa fábrica, não queres ficar com aquela também, para que os trabalhadores não fiquem desempregados?” São lutas que duram meses, têm um desgaste muito grande, depois consegue-se melhor ou pior, por vezes não se consegue ficar com os trabalhadores todos, mas consegue-se ficar com alguns. A Dâmaso acabou por ir mesmo para a insolvência e encerrar. A Marividros, salvo erro em 2008, entra em processo de insolvência, durante meses a fio. Isso é uma outra questão. As insolvências não só não são só porque a empresa já não dá lucro e fecha, as entidades patronais programam que se fecharem e ficarem com as maquinarias, depois abrem ali ao lado, até arranjam uma maneira e abrem no mesmo sítio com outra designação, mas com o mesmo tipo de produção. O fundo de garantia salarial, que existe desde há uns anitos a esta parte, nem sempre existiu e nem sempre teve a mesma dimensão e os trabalhadores, numa insolvência, por norma só vêm a receber uma parte dos créditos que lhe são devidos, por o que resta da massa insolvente ser um montante pequeno. E então a experiência também nos foi dizendo que é decretada a insolvência, mas ficam os bens. Se os trabalhadores forem cada um para a sua casa à espera que se resolva, quando for para ser vendida a massa insolvente, ela não existe. Porque já foram não sei quantos camiões, carregaram durante a noite ou durante o fim de semana as máquinas e os materiais, apenas existem paredes. E, por exemplo, na Marividros tivemos cinco ou seis meses em que os trabalhadores se revezavam por turnos e estavam dia e noite na empresa, um sítio um bocado ermo, mas guardaram os bens, 24 sobre 24 horas. Claro que tem de ser coordenado com os dirigentes sindicais. Obriga a que os dirigentes sindicais não digam: “Vocês têm que ficar aí” – e os próprios não aparecem. Portanto, tínhamos de nos revezar também, pelo menos um da direção por turno, para estar com os trabalhadores, dando a coragem e a esperança necessária. Era preciso levar umas sandes, uns sumos, umas águas, até o tribunal decidir sobre o processo. A fábrica manteve o seu recheio e foi vendida totalmente equipada (neste caso, os trabalhadores recebem o total dos valores em divida). São dois exemplos do que eu estava a referir, das lutas que se fazem deste tipo, porque também nós, quando estamos na direção, o sindicato não é estanque, só o STIV e os seus sócios. Pertencemos ao Movimento Sindical Unitário, à CGTP, temos de ter as ligações às uniões dos Sindicatos, à federação e à própria central sindical, porque tem de existir coordenação. Portanto, há uma série de envolventes que se complementam pelo mesmo bem, mas que nos consome algum tempo, porque as reuniões não são na sede do nosso sindicato, temos de nos dividir. Mas, já agora, quando estava aqui a falar nesta questão das empresas, estava-me a lembrar de uma parte, que foi fundamental, para o bem e para o mal, e me enriqueceu pessoalmente, embora seja mau o que aconteceu no concreto, que é esta passagem de quando o patrão Carlos Antero, até ao fecho parcial. Porque, como a M. P. Roldão ficou com outro patrão, passou a ser Mandata, uma filha enteada. É que o vidro tem esta condição específica: enquanto se tiver uma empresa de moldes, seja num dia de greve, seja num encerramento, desligou-se a máquina, a máquina ficou parada, está tudo em segurança, fica tudo normal. As fábricas de vidro têm um forno ou mais. No forno a tanque, se houver uma falha de luz ou uma falha de gás, o vidro solidifica, é como se fosse esta casa cheia de vidro até aqui de composição que, estando quente, está sempre líquida. Mas se houver uma falha de gás ou de energia sem ter um gerador que atue logo, solidifica e já não se pode fazer mais nada. Em finais de 1993, inícios de 1994, ficámos outra vez sem patrão, porque não tinha condições para pagar aos trabalhadores e acabou por abandonar a M.P.R. em dezembro, mais um Natal. Foram uns natais e passagem de ano muito jeitosos. O que é que os trabalhadores decidiram, sempre em coordenação com os dirigentes do sindicato vidreiro, claro, não poderia ser de outra forma (era impossível levar a luta a bom porto se não fosse assim)? Como não queríamos que o forno encerrasse, porque se o forno fosse desligado então é que aí já não teríamos ninguém interessado em ficar com a empresa, fizemos uma autogestão meia manhosa, mas foi uma autogestão. Porquê? Porque os patrões abandonaram, mas todas as transações de forma legal estavam em nome deles e dependentes da sua assinatura. E então o que é que os trabalhadores decidiram? Não é dizer eles inventaram estar doentes, não é verdade, porque quem fica com salários em atraso não fica bem psicologicamente, nem de saúde. E então, essencialmente, quem era casal, o que estava pior fisicamente ia para a baixa e o outro ficava a trabalhar. Surgiu a ideia, que os trabalhadores aprovaram e decidiram concretizar. Iam produzindo peças para alguns clientes e até a chamada jarra da solidariedade, que correu o país inteiro, e criámos uma gestão paralela, digamos assim, ou seja, fabricávamos peças que vendíamos. Tínhamos de receber em dinheiro para não passar nada pelos bancos, porque ainda por cima havia dívidas, o dinheiro se entrasse na conta bancária ficava retido. Quando ficámos sem os gestores, a empresa tinha uma carteira de encomendas que ainda hoje me dói, para o estrangeiro, porque os clientes ficaram sem as peças e normalmente até adiantavam o pagamento de meia encomenda e alguns clientes ficaram sem elas. Os trabalhadores a produzir para o estrangeiro deixaram de ter condições de realizar. Passámos a produzir para empresas pequenas, peças para os candeeiros e outras que tínhamos condições de fabricar, acabavam-se, vendiam-se, recebiam-se, para termos dinheiro para manter o forno a laborar e para a composição. Não era para nós, foi para conseguirmos este circuito, sempre naquela esperança que aparecesse uma entidade que, entretanto, ficasse com a fábrica. E tinha de ser com a empresa a laborar, porque se o forno estivesse encerrado não era possível, porque depois de estar um vidro solidificado, só à picareta se retira os blocos de vidro. E ainda durou seis meses, em que nós de manhã trabalhávamos, à tarde fazíamos manifestações de rua, que foi quando a polícia também veio dar porrada em todos, fossem manifestantes ou não. Quando sabíamos que havia uma feira numa localidade do distrito, lá íamos nós com uma banquinha e com as pecinhas para venda, para conseguir manter o forno ligado. Toda esta vivência obriga-nos a ter um espírito solidário diferente do comum dos trabalhadores. P: E conte-me lá melhor como é que foi essa questão da jarra da solidariedade. Foi nesse período que produziram essa peça? Etelvina Rosa: Sim, porque quando há situações em que os trabalhadores desenvolvem lutas mais visíveis, ao nível dos sindicatos cria-se também um elo solidário. E na altura pensámos: se nós conseguíssemos fazer uma peça que diversos núcleos comprassem, era mais uma ajuda que seria certa. Então os trabalhadores produziam, mas existia a dúvida se teria venda ou não. E realmente funcionou. Eu agora não faço ideia de quantos milhares de peças se fizeram, mas ainda foram uns milhares largos, de uma jarra simples no fabrico, como se fosse um copo grande, com uma gravação dum trabalhador vidreiro. A jarra foi para muitas localidades do país. Era despachada pelos Correios, aqui mais perto entregávamos diretamente, claro, mas se pediam do Porto 100 ou 200 jarras eram despachadas ou pela empresa ou pelos Correios, para realizarmos receita. Mas o dinheiro era fundamentalmente para manter o forno e comprar a composição que é necessária. Foi uma experiência única no país, a de se trabalhar sem receber salário para manter os postos de trabalho. Pelo menos não tenho conhecimento desta forma de luta noutras empresas. Sei que há muitas, ainda agora nos têxteis e muitas outras, para o Norte, em que se conseguiu frutos. Mas esta de trabalhar de forma gratuita e conciliar o fabrico das peças e a luta para ir a bom porto realmente creio que é única. E realmente conseguiu-se os objetivos. Quando se foi para esta situação, tínhamos cerca de 300 trabalhadores. E alguns não aguentaram, porque nem todos se aguentam, sem ter uma subsistência diária. Alguns trabalhadores foram arranjando um emprego aqui ou acolá. Mas quando conseguimos a tal nova pessoa que ficasse com a empresa, só ficou com 144 ou 146. Mesmo assim, foi melhor manter aqueles postos de trabalho do que encerrar. Infelizmente, a empresa – à data Mandata – também não durou muito e o senhor que ficou com ela passado uns anitos faleceu prematuramente. Mas acho que é uma luta marcante que deve ficar para a história. P: E houve outros movimentos de solidariedade semelhantes com casos de empresas que estivessem para fechar assim à escala nacional? Ou seja, pelo que eu tenho estado a perceber, a Etelvina acompanhou outros encerramentos. Houve outros movimentos assim parecidos? Etelvina Rosa: Sim, terá havido e participei em diversas, agora não me lembro de quais, em que terei participado. P: Esse tipo de lutas foram lutas marcantes, as lutas para salvar as empresas, fecharam muitas fábricas aqui nestes últimos 40 anos? Etelvina Rosa: Sim, nos últimos 30 anos fecharam mesmo muitas e depois, se quiser que lhe mande as que fecharam de 2000 para cá – mesmo assim, ainda foram muitas, ainda foi a Ivima, a Manuel Pereira Roldão, a Dâmaso, a Marividros, a Canividro, só no Concelho da Marinha, N empresas, praticamente todas de fabrico manual que encerraram. No concelho, nós podemos dizer que existem vidreiros, porque temos as fábricas de fabrico automático, a que chamamos garrafeiras, mas nem todas fabricam só garrafas, algumas até fizeram um bom dinheiro no ano de 2020, com a pandemia, porque estavam mais vocacionadas para o fabrico de garrafas de azeite, ou boiões dos iogurtes, frascos para o feijão, grão, como aumentou a compra do enlatado, do feijão, do grão, entre outros. As empresas que estavam nesse mercado tiveram encomendas que não conseguiram satisfazer, como se estava em casa, não existiam restaurantes a funcionar, tínhamos de comprar os produtos para fazer o comer em casa. Ou seja, estas empresas não tiveram problemas, mas é na área do fabrico automático que existem no concelho da Marinha Grande algumas empresas. O sindicato abrange as empresas de vidro a nível nacional, existem a que chamamos transformadores de chapa de vidro, que são as empresas que fazem janelas e portas. Ou seja, é tudo o que abrange o vidro nacional. Agora temos aquela desgraça da Sekurit em Santa Iria da Azóia. Em 2009 fecharam o único forno que que fazia a chapa de vidro e ficaram só com a transformação, não só desta chapa de vidro, mas do vidro automóvel, que também era a única empresa no país que transformava o vidro para qualquer carro, carrinha, ou autocarro. A direção da empresa resolveu encerrá-la, é mesmo um crime nacional que foi cometido e a forma como foi tratado. Deixaram os trabalhadores ir de férias e no dia que regressam de férias dizem: “têm aqui uma carta em como vão terminar os postos de trabalhos.” Portugal fica assim sem empresa de transformação de chapa de vidro. O sindicato tem dirigentes que trabalham nas empresas de colocação de vidros e não têm matéria-prima agora para satisfazer os clientes. Um dizia: “eu estou a ficar sem trabalho porque o meu patrão tem casas para colocar os vidros, mas não tem o vidro e o que consegue tem o dobro do preço.” Ele até dizia o que era a 12 euros o metro quadrado já está a 20. P: O que é que o sindicato fez em relação a essa questão? Etelvina Rosa: O sindicato foi com os trabalhadores reunir com o Governo para evitar que fosse assim, para que o Governo tomasse medidas imediatas. Estivemos em N reuniões com o Secretário de Estado, que até me pareceu bastante empenhado, só que, entendo eu, não foi por acaso que o Grupo Saint Gobain agiu assim de um momento para o outro. Porque entre o dia 25 de agosto – foi quando os trabalhadores receberam a notícia – e, por exemplo, 25 de setembro, foi um mês com os fins de semana que dá poucos dias úteis. Para os trabalhadores é um drama: como é que vão resolver a vida? Mas para um governo tomar posição, mesmo que esteja empenhado – e muitas vezes não está, é a minha opinião –, os dias úteis são curtíssimos. Até nos davam dicas de que se conseguiria manter a empresa com outra produção que não a de vidro, diziam ter alguns contactos que iriam realizar. Entretanto, também se criou a situação política que está, estamos a insistir com reuniões. Ainda agora, antes de vir, estava a nossa federação a insistir com mais um pedido de reunião ao ministério, mas os secretários de Estado também estão naquela fase em que não sabem se ficam se vão, estão a deixar andar. Os trabalhadores continuam com a luta de rua, com denúncias públicas, do crime que está a ser cometido. Terá uma decisão em concreto que se consegue resolver a bem dos trabalhadores ou não. P: Diga-me uma coisa, é que a Marinha Grande é uma terra com uma tradição de luta quase mítica, desde o 18 de janeiro de 1934, uma aura. Como é que isso se vive no meio sindical? Esta questão da memória, da tradição de luta, é algo que marca de uma forma específica o movimento sindical, aqui no contexto da Marinha Grande? Etelvina Rosa: O 18 de Janeiro não vem por acaso. É que os miúdos iam trabalhar aos sete, oito anos. Tanto quanto eu conheço, as raparigas antes dos 12 anos não foram trabalhar, isto é mesmo assim, eu ainda conheci pessoas que contavam a história de levarem os miúdos ao colo até à fábrica. As mães que eram rurais trabalhavam no campo, mas como tinham muitos filhos e precisavam de sobreviver, com sete, oito anos levavam os miúdos para o trabalho. Muitos não aprenderam a ler no tempo dos meus pais. A Marinha, mesmo assim, era onde se aprendia a ler e a escrever, mas se calhar 80% eram rapazes. É que para as raparigas achava-se que não havia necessidade. Os pais dos rapazes ainda os punham a aprender a fazer o nome, mas iam para a fábrica muito novos. Ou seja, quando se chegava aos 16 anos a maturidade da pessoa – atrevo-me a dizer – que era maior que hoje, quando se tem quase 30. Porque eu nem consigo pôr-me no lugar dos pais em 1934. Hoje, com uma criança de oito anos, andamos com ela ao colo e “coitadinho do menino”. Eu não consigo bem pôr-me na pele do que era uma criança de oito anos a fazer um trabalho tão duro. Porque não ia fazer um trabalhito qualquer, ia fazer o trabalho a que chamamos de fechar o molde, um trabalho extremamente duro, com moldes de madeira maiores que a criança. E, pela vida rude que todos levavam, o adulto que estava ali também não poupava. “Estás aqui, tens que fazer e se não fizeres levas uma lambadazinha que é para ver se amanhã já fazes.” Eu estou a ser muito dura e crua, mas era mesmo assim. Então havia aqui toda uma vivência em que eram muito adultos e tanto é que se casavam logo aos 18 anos e começavam a ter filhos. Era uma vivência muito diferente da dos dias de hoje, pode-se dizer assim, e existia uma organização política – temos que dar o nome às coisas –, houve uma organização partidária que conseguiu dar alguns nós em termos organizativos para concretizar o 18 de janeiro. Porque até foi considerado um polo na Marinha Grande, mas foi um movimento a nível nacional, que dizem chamado de anarco-sindicalismo. Mas teve tudo a ver, no meu entender, que não tenho nada a ver com o historiador, com a vivência de trabalho duro e mal pago desde muito novos. Como naquele tempo não havia na mesma empresa dois fornos, em que se um parar para arranjo fica outro a funcionar, só existia um e quando parava para arranjo estavam meses sem forno, porque têm duração curta. E os trabalhadores, qual subsídio de desemprego? Não trabalhas, não há dinheiro. Quando houver forno voltas outra vez. É por isso que algumas estradas da mata foram feitas por vidreiros, mas outros nem isso tinham para sobreviver. Eu acho que foi assim que se criou, na Marinha, uma raiz de classe operária e o sentimento de que tinham que ser unidos e lutarem pelos seus direitos, pela sua liberdade e dar um pontapé ao sistema fascista. O Salazar, a repressão, o decreto do governo para controlar os sindicatos, retirar o direito à greve, foi todo um despoletar de situações. E ficaram as raízes para o futuro, porque existia muito este sentimento de classe. E não é inocente que, no pós-25 de Abril, a parte mais à direita da sociedade tenha tentado sempre dividir esse elo operário. Tanto que não é inocente, não serão todas as empresas, mas agora quase todas, não é o patrão e o trabalhador, é o patrão e o “colaborador”. Não é inocente. Até parece muito bonito. Porque colaborar, por exemplo colaborei com MDM sim, mas não estou a colaborar com o meu patrão, estou a vender a minha força de trabalho. É isso e o criar prémios de tudo mais sei lá o quê, há empresas que têm alguns 10 prémios, de produtividade, de performance e muitos outros, em que fazemos a mesma coisa, mas cada um tem um prémio diferente, porque ele é mais bonito ou pinta o cabelo da cor azul. É tudo um sistema muito complicado e não se perdeu mesmo assim ainda as raízes operárias e o sentido de classe, mas hoje já não é a mesma coisa que era há 40 anos, já não digo há 50. Porque foi fomentado o individualismo. Agora acho que os trabalhadores neste momento também já estão a ter uma postura diferente e a média etária entre os 30 e os 40, até há uns anos achava que se estava bem e ia-se andando, mas agora estão a perceber que não têm futuro na vida se não se puserem à vida pela luta, pela sua própria vida, não é só pelo emprego. Porque há hoje empresas que o que fazem é contratar uma prestadora de serviço para fazer um trabalho qualificado. Nem é para o trabalhador, que não tem futuro, não sabe se está ali um dia, um mês ou um ano, e as próprias empresas têm de começar a perceber que não vão ter trabalhadores qualificados no futuro se continuarem com esta linha. Se me disserem que se for para varrer esta casa, tanto varro eu ou senhor engenheiro, é a mesma coisa. Mas se tiver de trabalhar o vidro manual, esse então tem que ter muitos anos para se lá chegar, mas mesmo para tomar conta de uma máquina que produz vidro tem que ter uns anitos para saber os chamados truques da máquina e se o vidro está mais grosso ou mais fino ou se sai com bolha ou sai com cordas. Isto tem muito que se lhe diga, e acho que ou os empresários mudam mentalidades ou também eles não vão ficar bem. P: E outra questão em relação à identidade da Marinha Grande, este papel das mulheres e até a importância que o MDM aqui teve. Acha que também tem a ver com essa consciência de classe? Ou seja, o facto de as mulheres também estarem juntas nas fábricas e terem uma participação nas lutas sindicais, por exemplo, acha que isso também faz que haja uma maior mobilização das mulheres aqui na Marinha Grande? Etelvina Rosa: Sim, isso é daquelas coisas que, por acaso agora, há dois ou três anos para cá, se tem falado mais no feminino e das lutas das mulheres, mas elas ficaram durante muitos anos esquecidas e era quase como se não existissem, o que não é verdade. E falando só do concelho da Marinha Grande, é o que mais conheço, ainda sobrevivem algumas que até pelas prisões passaram. Mas eu ainda agora falava do difícil trabalho que era o das mulheres da roça, já da minha geração. Mas indo 10 anitos atrás, ou seja, se for aos anos 60 e já vinha de mais tarde, mas pronto reportando-nos agora a estas épocas dos anos 60 ao final dos anos 70, havia aqui uma outra profissão que era só para mulheres, extremamente difícil, é daquelas que eu também tenho dificuldade em perceber como é que as mulheres aguentavam aquele trabalho um ano inteiro: as fábricas que, à data, produziam garrafões em vidro. Agora eu creio que já não se produzem no nosso país garrafões em vidro. Eram empalhados em palha de vime, não era o plástico que veio nos anos 80. E então, e existem fotos da altura em que as trabalhadoras estão com os vimes, com o garrafão e têm uma caixa de madeira atrás perto delas, com o filhote. O vime tem de ser demolhado para ficar com possibilidade de dobrar e de encaixar. Estamos a imaginar um garrafão que depois vai estreitecendo. O trabalho era pago à peça, ou seja, ainda há pouco tempo algumas mulheres diziam que eram 12 tostões por cada garrafão, referir que em maio de 1958 as empalhadeiras fizeram greve pelo aumento de mais dois tostões por cada garrafão e saíram vitoriosas.