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Sindicatos Corporativos
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Maria do Céu Ferreira
P: Maria do Céu, a sua propensão para a participação associativa é de família? Ou seja, algum familiar seu, o seu pai ou a sua mãe, já tinham alguma participação ou foi a primeira na família? Maria do Céu Ferreira: A minha mãe foi sempre uma mulher muito decidida e sempre se bateu pelo que achava certo. Naquela altura, a participação das mulheres operárias era zero. Militou na acção católica, foi da JOC, num tempo em que a JOC tinha características muito diferentes das que eu conheci. Eram outros tempos. O meu pai era um homem de uma grande generosidade, amigo de ajudar e participava nas comissões das festas do seu bairro de nascimento, no clube de futebol. Foi, com outros, fundador do Rancho Rosas da Biqueira, que mais tarde deu origem ao Rancho Folclórico de Gouveia, que ainda hoje existe. Ele foi sócio da Associação de Socorros Mútuos dos Artistas e Operários de Gouveia, da Banda de Música 5 de Outubro, dos Bombeiros e ainda do Desportivo de Gouveia. Nasci no seio de uma família operária com muita dificuldade, a vida era muito difícil porque de um momento para o outro a semana de trabalho era reduzida de seis para quatro dias com perda de salário, o que para uma família de seis pessoas, naquela altura, era a mesma coisa que recorrer ao “fiado”. Recordo-me da empresa onde o meu pai trabalhava, a fábrica do Alçada, ter encerrado e aí as coisas foram muito difíceis, mas também me lembro que o meu pai não ficou parado, porque quando eu nasci, em 1946, ele tinha construído, com a ajuda de pessoas amigas, um tear de madeira para tecer as primeiras mantas para o berço. Ele era tecelão, foi para uma fábrica com sete anos, por isso nunca foi menino e não aprendeu a ler, mas era um artista. Foi o produto saído desse tear que possibilitou ganhar algum dinheiro. Começou a tecer passadeiras e mantas de trapos e vendia. Eu era a filha mais velha, muitas vezes o acompanhei e apercebi-me que havia gente com muito dinheiro, casas riquíssimas, e casas dos pobres, sobretudo nas aldeias da Serra, onde as casas eram térreas e muitos telhados eram ainda de colmo e onde havia muito pouco, vivia-se da venda do carvão, e de uma agricultura de subsistência. Aquele tipo de desigualdades de certo modo marcou-me. Estas influências todas ficaram… Aos três anos fui para o patronato. Naquela altura, havia grandes empresas que normalmente faziam creches para os filhos dos trabalhadores. Aqui, na altura, não havia empresas de grande dimensão, não sendo a empresa que construiu e administrou o patronato. Foi uma irmã do patrão da empresa Bellino e Bellino, e cunhada do patrão da empresa Alçada, aquela que encerrou e onde o meu pai trabalhava. Esta senhora [...], solteira, católica, de missa diária, é a fundadora do patronato para as filhas dos operários das fábricas acima mencionadas. Dos três aos sete anos, a minha educação religiosa passou muito por esta instituição. Depois fui para a escola primária e, no fim das aulas, voltava ao patronato onde fazíamos os deveres de casa, lanchávamos, rezávamos o terço e íamos para casa. Qualquer ATL de hoje não é melhor do que aquele que eu tinha, excepto na questão religiosa. Quando fiz a quarta classe, e porque os meus pais não podiam pagar a continuação dos estudos, mas também não queriam que fosse para a fábrica, continuei no patronato, onde tínhamos um sistema de estudo como se estivéssemos no liceu (em Gouveia, na altura, era o único estabelecimento de ensino), mas em que as disciplinas eram: cultura religiosa, economia doméstica, puericultura, pedagogia, costura e bordados e tudo aquilo que as mulheres tinham que saber fazer em termos de limpeza da casa. Eram estas meninas que depois cuidavam das mais pequenas, da limpeza do patronato, que ajudavam na cozinha, e que era considerado o trabalho prático do que aprendíamos nas aulas. Tudo isto era orientado por uma assistente social, uma cozinheira e ainda por uma educadora de infância, que na altura não tinha este nome pomposo. Havia rotação de trabalho semanal, hoje aquela menina ia para a cozinha, na semana seguinte ficava a aprender a bordar ou a cuidar das mais pequenas. A minha formação foi nesta área. E claro, aquilo era feito como se estivéssemos numa escola. No Natal, havia testes, na Páscoa havia testes e no fim do ano havia testes com notas expostas e a partir do terceiro e quarto ano havia dois prémios: um prémio de bom comportamento e um prémio das melhores notas. Não sei porquê a Assistente Social começou a dar-me tarefas, que eram desafios grandes e que eu tentava dar o meu melhor, porque ela acreditava que eu era capaz e isso foi determinante para mim. No final dos períodos, ela obrigava-me a ficar no patronato a estudar. E eu sempre aceitei desafios e não queria deixar quem confiava em mim defraudada. De maneira que logo no segundo ano eu ganhei o prémio das melhores notas. Mas como no segundo ano as regras impediam a atribuição de prémios, não o tive, mas fui o centro das atenções. Ganhei o prémio no terceiro e quarto anos. No final de cada ano, fazendo coincidir com o dia 15 de agosto, havia missa cantada pelas alunas do patronato, onde participavam todas as forças vivas de Gouveia: desde o presidente da Câmara ao regedor. É claro que isso também me trazia alguns dissabores... Aprendi a bordar, aprendi a costurar, só não aprendi a tocar piano e a falar francês, mas até latim aprendi, por causa das missas. Posso dizer que tudo o que aprendi foi importante. O que eu estudei em Cultura Religiosa, sobretudo no Antigo Testamento, sobre os Filisteus, a Babilónia, etc., serviu-me quando estudei História para me propor a essa disciplina no antigo 7º ano. Considero-me uma boa gestora de recursos e isso devo à Economia Doméstica, porque ao fim de cada dia tínhamos que escrever, num quadro que existia na cozinha, os preços do que gastámos com a alimentação e dividia-se pelas pessoas que tinham comido e dava o resultado para cada pessoa. Este tipo de coisas é evidente que ficou. P: O que é que o seu pai lhe contava da participação na Associação de Socorros Mútuos? Maria do Céu Ferreira: Falava na maçonaria e dos pedreiros livres, que para mim soava a proibição e falava do homem que fundou aquela associação, que tinha ido como degradado para África (participou no 31 e janeiro no Porto) e que quando voltou casado com uma mulher negra, cuja foto está no Centro Republicano Pedro Amaral Botto Machado, era um homem anti regime. Aliás, todos os irmãos, (se for à Voz do Operário, vai ver lá com certeza o nome de Fernão Botto Machado), todos eram anti regime, por isso foi enviado para África. O meu pai, que foi também ardina, nas horas vagas vendia O Século e uma vez foi preso. Ele não sabia ler, o jornal tinha chegado tarde e alguém (hoje penso que podia ser algum viajante) lhe disse: você não vende o jornal mais rápido porque não quer, caiu o governo, anuncie que caiu o governo. E o meu pai anunciou que o governo tinha caído e foi preso. E foi ameaçado. A sorte dele foi mesmo ser analfabeto e ter uma mãe aleijada de um braço e de uma perna. E que ainda por cima era uma filha da roda. A minha avó paterna era filha da roda, eu não sei quem são os meus bisavôs. O meu pai falava nos disto tudo com um certo humor. Teve uma vida cheia de histórias. Pedreiros livres, maçónicos republicanos, para mim, eram homens bons. O Botto Machado, quando regressa a Gouveia, faz muitas obras em Gouveia. Uma grande avenida, que hoje tem o seu nome, fundou a associação de Socorros Mútuos, fundou uma banda de música, fundou uma escola, tudo isto para que os operários se instruíssem e não fossem para as tabernas, portanto era um homem querido, mas era um homem anti regime. Mesmo durante o regime de Salazar, era quase proibido falar do Botto Machado. Enfim, a associação existia, mas era quase proibido os sócios operários irem lá. Entretanto, lembro-me que o meu pai era sócio e essa associação, quando o meu pai não trabalhou, foi quem lhe pagou os medicamentos, portanto era uma associação que de certo modo foi pioneira a criar uma estrutura de apoio aos trabalhadores quando adoeciam. Considero-a o embrião do movimento sindical. Lembro-me de uma vez o meu pai me levar para o patronato e estava fechado, teve que me levar para a fábrica onde trabalhava, ainda nem sequer estava na escola, tinha quatro ou cinco anos e eu nunca mais me esqueci daquele ambiente escuro e das condições de trabalho. Quando mais tarde li Charles Dickens recordei tudo aquilo que tinha presenciado em miúda. Eu própria nasci e fui criada com fábricas à minha volta. Sempre me fascinou a fábrica, quando a minha mãe ficava a dar horas, e eu podia ir à fábrica levar-lhe o almoço para poder entrar ali, para poder ver aquilo tudo. Um dia em casa ouvi a minha mãe dizer que a Sociedade Industrial de Gouveia ia meter pessoal. No dia seguinte era sexta-feira, fui à empresa pedir trabalho. Nesse mesmo dia recebi a notícia que estava admitida. Fi-lo por duas razões: porque era importante o salário para ajudar a família e porque, como militante da JOC, devia estar onde estavam os trabalhadores. Nesse fim-de-semana fiz a minha bata exactamente igual às das meninas do colégio, com cabeção com umas preguinhas e levei o casaco comprido, que era uma coisa que as operárias não levavam. Para a fábrica levava-se xaile. Fui trabalhar para uma secção de homens, mas com um grupo de mulheres, incluindo a minha mãe. Creio que não fui muito bem aceite, mas foi por pouco tempo. A não aceitação tinha a ver com o facto de vir do patronato e as meninas do patronato não iam para aquela fábrica. Lembro-me que tirava a roupa que levava e metia a manga da bata, tirava a outra manga e punha a manga... portanto, menina católica, puritana. Era olhada com alguma desconfiança. Entretanto, introduzi-me bem e pus aquela gente toda a rezar o terço de volta da minha máquina. Portanto, a máquina era uma coisa grande, três mulheres de um lado, três do outro, e no mês de Maria, que era típico, a gente ir ao terço, eu punha a rezar aquela gente toda. O problema foi quando eu, para além de rezar o terço, quando sentia que alguma coisa estava mal, ia ter com o patrão e dizia que as coisas estavam mal. Um dia aumentaram os trabalhadores e a mim também me aumentaram. Mas deram-me 18 escudos e queriam que eu assinasse 21. E eu não assinei. E depois o patrão mandou-me chamar, porque é que não assina? Não assino porque se eu ganho 18 não posso assinar 21. Aliás, eu ainda ontem estive na missa com o senhor e ouvi dizer: dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. O patrão ficava completamente sem resposta. O pior é quando ele começa a perceber que ela reza o terço, mas depois faz-me a vida negra. Entretanto, na década de 60 é fundada em Gouveia a escola técnica, nocturna. E o sindicato, que era nomeado pelo patronato, paga o bilhete de identidade, paga entrada na escola aos operários/as, porque isto interessava a Gouveia (normalmente os patrões eram os vereadores na Câmara), para que a Escola ficasse em Gouveia e não fosse para Seia, e não tanto a pensar na valorização dos trabalhadores/as. Não era, no caso da Sociedade Industrial de Gouveia (SIG) interessar ter gente culta. Pronto, e o sindicato lá pagou. A mim ninguém me convidou. Não queriam que eu fosse, mas eu matriculei-me e fui para a escola, sem pagamento de ninguém, mas pago por mim. E, por incrível que pareça, fui a única mulher que acabou o curso. Fiz o curso de quatro anos e ao fim de quatro anos pedi equivalência ao segundo ano do Liceu. Entretanto, em 1969, com a queda de Salazar, homens ligados aos organismos da Acção Católica, nomeadamente à LOC, formam uma direcção e candidatam-se ao sindicato. Candidataram-se e ganharam. Eram pessoas com quem eu tinha grandes afinidades de amizades familiares. Numa primeira ou segunda reunião, para discutir contratação coletiva, eu convido uma senhora e vamos ao sindicato, participar na reunião. Coloquei o problema: porque é que tinham que ser homens a tratar de problemas que dizem respeito às mulheres, nomeadamente a maternidade? Deram-me uma salva de palmas, que se eu tivesse um buraco tinha-me metido nele. Entretanto, convidaram-me para fazer um comunicado e eu fiz, a apelar às mulheres para participarem. Na segunda reunião eram mais mulheres que homens. Uma coisa linda, linda. Entretanto, acabei de tirar o curso de fiação, era fiandeira e o patrão quase foi obrigado a promover-me e vou para o armazém, onde continuava a contactar com pessoas com quem tinha trabalhado. O armazém era de apoio à tecelagem e às urdideiras… P: E a participação na JOC, foi antes? Maria do Céu Ferreira: Foi muito antes. A participação na JOC, para além das reuniões que havia semanalmente, onde colocávamos os problemas que tínhamos na fábrica, era também onde começámos a ter contactos com outros núcleos e isso foi muito importante. A JOC de Gouveia começou a ter contactos com a JOC da Covilhã, com a JOC de Lisboa, etc. Isto deu-me a possibilidade de perceber o que é que se passava noutros lugares, noutras latitudes, no Porto, em Lisboa. Eu tive sempre muito mais afinidades com as organizações da Covilhã e zona operária do Sul do Tejo, do que com as do Norte. P: Como é que se estabeleciam esses contactos? Maria do Céu Ferreira: Era eleita a Direção Nacional da JOC e todos os anos havia pelo menos um ou dois encontros nacionais em que se discutia o plano de ação, que depois as direções diocesanas/ regionais implementavam. Houve uma altura em que eu fui nomeada para dirigir só o trabalho das jovens jocistas. O termo era este: responsável pelas novas. De certo modo, foi isto que me levou primeiro quer para a fábrica quer para o sindicato. Para mim, o sindicato era uma coisa que devia defender os trabalhadores, de tal ordem que uma vez subi ao sindicato e perguntei: se o sindicato tem uma biblioteca, porque é que a biblioteca não está ao serviço dos trabalhadores? O homem que lá estava ficou a olhar para mim, deve ter pensado que era maluca. Porque aquilo era um lugar de homens. Os homens iam lá para ver televisão, ler o jornal e não questionar muito. Porque é evidente que, naquela altura, todas as queixas que se fazia os patrões e a PIDE sabiam, que ninguém tenha dúvidas. Claro que eu não tinha essa ideia, eu tinha a ideia de que se eu não estou a fazer nada de mal, porque é que devo ter medo de dizer o que era a verdade? Era essa inocência, não sei… Para mim, aquilo era o bem, se era algo de bem que eu tinha aprendido na JOC, se era a mensagem de Cristo… Claro, mas isto começou a ser incómodo. Realmente, a minha empresa começou a ser um alfobre de gente, possivelmente com ideias políticas, mas eu não sabia. Aliás, eu quero dizer que foi uma vez num encontro da JOC que eu ouvi um padre pela primeira vez a falar do Mário Soares e nem sequer ouvi falar de Álvaro Cunhal. Eu sabia que havia comunistas, sabia que havia alguns em Gouveia, deliciava-me a ouvir as histórias deles. Mas nesta fase, já muito mais perto dos anos 70, as coisas já estavam um bocadinho mais diluídas. A greve de 1946 foi muito dura, esteve muita gente presa, houve muita gente que teve de emigrar internamente e para o estrangeiro, mas também vieram pessoas estranhas de fora para apaziguar, nomeadamente médicos: um foi presidente da Câmara e mais tarde ministro do Interior, até o padre (os que cá estavam, que eram mais progressistas) veio de uma aldeia, e realmente eles conseguiram. A SIG continuou a ser uma empresa com gente unida e que conseguia travar muitas atitudes divisionistas. Quando fui urdideira, o responsável pela secção dava cinco centavos por cada corte urdido. Ora, quem conhece este trabalho sabe que quem urde mais cortes não é quem mais trabalha, então só havia uma forma de todos nos ajudarmos. O dinheiro juntava-se e no final da semana dividia-se. Isto levou a uma grande entre ajuda e deitou por terra aquilo que o chefe pretendia. P: Era o seu pai que lhe contava sobre a greve de 1946? Maria do Céu Ferreira: A minha mãe, a minha mãe participou na greve e até dizia que as amigas dela diziam: tu fazes greve porque ainda estás a comer da boda de casamento. A greve foi em abril e a minha mãe tinha casado em 27 de fevereiro. O meu pai creio que não fez greve. Mas o meu pai falava muito na associação de classe. Ele falava da associação de classe muito anterior à greve e até contava a história que o patronato dizia: “ide para vossas reuniões que nós vamos para as nossas”. Nós sabemos da vossa e vós não sabeis das nossas. Os patrões sabiam tudo o que se passava na reunião dos trabalhadores, mas eles não sabiam o que se passava na dos patrões. E outra: por exemplo, durante a Segunda Grande Guerra, havia um burguês, que era doutor de leis, que eu não conheci, esse dr. dizia: nós cá ainda não comemos nem cães nem gatos, quer dizer que em Portugal não havia guerra, e que não tinham comido nem cães nem gatos. E o povo que passava fome arrombou-lhe a casa para lhe roubar a “tulha”, porque realmente as pessoas tinham fome. Ele não tinha comido cão nem gato, ele, porque ele tinha muita gente da agricultura a trabalhar para ele. Ele tinha terras, portanto dava terra às “terças”. É assim: dois terços é para nós, um terço é para quem produzia. Portanto, eles tinham tudo. Estas histórias, este ambiente na família existia, eu fui muito tocada por ele. P: Quando começou a participar no sindicato foi na altura da discussão do contrato coletivo de trabalho? Maria do Céu Ferreira: Sim, eu fui à primeira reunião. Como já disse anteriormente, esta segunda reunião em que já participaram muitas mulheres, foi uma coisa mesmo bonita. Nesta altura eu ainda não era dirigente sindical, ainda não estava na direção do sindicato, mas fazia parte de um grupo que fazia os comunicados, sobretudo quando se tratava de problemas específicos de mulheres. Eu ia para a fábrica às seis e meia da manhã, trabalhava por turnos para estudar à noite, saía às 11 da noite e ainda íamos para o sindicato fazer comunicados. Foi um período muito envolvente, foi uma época muito rica. Quando, em 1973, há novamente eleições, eu vou para a direção do sindicato e é aí que eu começo a participar na CGTP, embora eu, não sendo da direção do sindicato, já ia às vezes com eles a algumas reuniões. E aí eu começo a trabalhar muito com as pessoas da Covilhã. Aliás, eu sempre gostei da Covilhã, mesmo ao nível da JOC eu reunia muitas vezes na Covilhã e há uma altura em que havia um homem que era da LOC, um homem muito interessante, que era debuxador, e nós deixámos de o ver e eu fiquei sempre com aquela ideia de que ele tinha emigrado, de que ele tinha fugido. Mais tarde encontrei-o na Festa do Avante! e alguém chamou: Oh [...], anda cá -mas eu conheço o [...]. E perguntei-lhe: não eras tu que estavas na LOC nesta altura e emigraste? Sou eu! Então olha, eu sou a Céu. Foi então que ele me contou que teve mesmo de fugir. Há todas estas influências ao longo desta caminhada. P: Esses contactos com a Intersindical foram ainda antes do 25 de abril? Maria do Céu Ferreira: Sim, eu participei em muitas reuniões antes do 25 de Abril. Eu era menina, porque eu ia de Gouveia com os homens todos e é engraçado porque fui sempre muito bem tratada, no sentido de protecção. Em 8 de dezembro de 1973 há, na Covilhã, um grande encontro do sector dos lanifícios. Eu tinha ido a Lisboa, a uma reunião da Inter, e vim directamente para a Covilhã . Participaram os cinco sindicatos dos lanifícios, que nessa altura já integravam a Intersindical. Era feriado, mas apesar de haver uma certa abertura do regime, a actividade sindical era sempre feita ao fim de semana ou fora do horário de trabalho, e foi nesse encontro que tomei consciência pela primeira vez da presença da PIDE. Estávamos rodeados. Aquilo foi um grande encontro para discutir o aumento dos 1000 escudos. Nessa altura, trouxemos circulares para serem distribuídas pelos trabalhadores e qual é o meu espanto? As circulares desapareceram. Perguntei ao presidente, o tal que fez o discurso no Natal e ele foi se desculpando até que aparecem, mas recusava-se a distribuir. Essa fase de dezembro de 1973 a 1974 foi uma fase muito difícil, em que já se notava uma grande pressão, da PIDE, e das forças vivas de Gouveia. Por exemplo, eu entrava no sindicato sempre com polícia à porta, mas naquela altura nem ligava a isso. Um dia, fui avisada por um amigo: se tens alguma coisa lá em casa que te incomode, é melhor pores fora. O que é que eu tinha em casa que me incomodasse? Assinava as edições D. Quixote, que normalmente saíam e imediatamente eram proibidas. E recebia algumas cartas, por exemplo do Laboratório Bial, e vinha lá dentro propaganda de outros sindicatos e de outra gente, sobretudo do Dia Internacional da Mulher, mulheres que faziam iniciativas e me mandavam. E eu todas essas coisas guardava. Resolvi guardar em casa de um irmão. Vinha eu a voltar para casa com a minha irmã e o meu pai e passam muitos carros. E ao outro dia, a minha irmã que trabalhava num pronto-a-vestir em Gouveia, o presidente da Câmara, que frequentava o estabelecimento perguntou: então menina, ontem você e a mana vinham de onde? Vínhamos de casa do meu irmão. Ele vinha com o Governador Civil. Aí é que eu comecei a sentir, a ter noção da vigilância Entretanto, no fim de março, todos os técnicos e os quadros intermédios da empresa são aumentados e eu, que era quadro intermédio, não tive aumento. Fui ao escritório falar com um dos patrões e disse: sou quadro intermédio, cumpro o meu dever, como sabe, trabalho muito e não me aumentaram. Responde: nós vamos fazer uma reconversão na fábrica e como a Maria do Céu é a pessoa mais nova e não tem família para governar, vamos despedi-la. E no dia 4 de abril era despedida, com um cheque de pouco mais do que 20 mil escudos e com os maiores elogios. Respondi que o meu despedimento era por ser dirigente sindical e que por essa razão o cheque tinha que ser a dobrar. Entretanto, participei aos quatro sindicatos dos lanifícios, participei à CGTP e também não foi nada que me admirasse, aliás eu já tinha escrito ao Manuel Lopes dizendo que mais tarde ou mais cedo era normal que fosse isso que ia acontecer. Aliás, nessa altura aconteceu outro despedimento, na Castanheira de Pera. As manifestações de solidariedade foram muitas, quer dos sindicatos quer ainda dos trabalhadores. Em 17 de Abril realiza-se um plenário pela minha readmissão e pelo aumento de 1000 escudos, com tanta gente que houve muita gente que não conseguiu entrar no sindicato. Nesse dia ficou marcado um outro plenário para o dia 28 de abril de 1974 em instalações que permitissem ter muita gente. Não foi nada fácil ceder instalações, pois o que havia estava dependente de gente do regime. Entretanto, o Governo Civil da Guarda tinha enviado para o sindicato uma contra fé, creio que era assim que se chamava, para me apresentar no Governo Civil no dia 25 de Abril. Eu e um padre. Possivelmente sabiam que, possivelmente, o 1.º de Maio ia ser celebrado e, portanto, era melhor engavetar dois ou três. E isto era geral ao nível do País, como mais tarde se soube. Entretanto, o 25 de Abril acontece e conseguimos o cinema para fazer a reunião no dia 28, que continuava a ser pelo aumento dos 1000 escudos e pela minha readmissão. E ainda nesse dia 28 foi feita a primeira manifestação em Gouveia depois do 25 de abril, onde pela primeira vez se falou em socialismo e comunismo. Houve ainda uma manifestação de trabalhadores junto à sociedade industrial pela minha readmissão, que foi feita no dia 2 de maio. Uma amiga minha trabalhava no laboratório e foi uma ativista pela minha readmissão, e o patrão que sabia ser minha amiga, vai ter com ela e diz-lhe: pode ir ao sindicato dizer à Maria do Céu que pode vir trabalhar amanhã. E eu cheguei à empresa e entreguei o cheque que eles me tinham dado. Porquê? Porque aquele cheque não era aquilo que me pertencia, era o dobro. E como era o dobro eu não aceitei e por isso esperava que fosse resolvido. Entretanto, como eu estava despedida, acabei por ir ao seminário e pedir ao padre, que me tinha e tem muita estima e amizade, para poder facultar as aulas do quinto ano para poder fazer algumas cadeiras. E lembro-me que no 25 de abril chego ao seminário e estava o padre [...] à minha espera. Disse-me: há uma revolta em Lisboa, está a haver uma revolução, e eu só lhe pergunto, é da ala Kaúlza ou é da ala Spínola? Como se fossem muito diferentes, não eram muito diferentes, mas na altura as coisas eram assim, porque, entretanto, o Spínola tinha escrito aquele livro Portugal e o Futuro, e ele disse-me: não sei. Mas, entretanto, ao intervalo diz-me: olha, é do Spínola, porque o professor de Física, a mulher é francesa e ouviu na rádio francesa as notícias. Pronto, e eu vim para casa e digo à minha mãe: olha há uma revolução em Lisboa, eu já não sou presa. E a minha mãe diz-me: o meu filho já não vai para a guerra colonial. O meu irmão mais novo… E digo-lhe eu: olha, mãe, mas atenção, que tu tens dois irmãos, que um é vice-governador de Vila Pery e o outro está na Emissora Nacional. Pois, eu nunca sei do que está em Vila Pery o que será. E realmente era um homem do regime. O que estava na Emissora por acaso era comunista. Depois do 25 de abril, a história não está feita. Foi um tempo com muitas solicitações, eu pesava 55 quilos, perdi 10 quilos. Porque eu vinha de Lisboa, chegava às 15 horas a casa, à meia-noite metia-me num comboio para chegar a Lisboa de manhã, o meu sistema nervoso não me deixa comer, eu sou assim, foi muito tempo… P: E o primeiro de maio em Gouveia, como foi? Maria do Céu Ferreira: Eu não estive no 1º de Maio em Gouveia. O sindicato levou um autocarro para Lisboa, mas aqui ficaram outros dirigentes que o organizaram e foi grande como em todo o lado. Eu, no primeiro de maio, fiz parte da segurança da manifestação em Lisboa e eu escrevi aquilo que eu senti naquela altura, na braçadeira que levei e que guardei até hoje. Depois há o 28 de setembro, depois o 11 de março, eu sempre muito envolvida com o MFA. P: Conte-me lá como foram essas iniciativas? Maria do Céu Ferreira: Íamos às aldeias falar com as pessoas, explicar o que tinha sido o 25 de Abril , o que é que os militares cá estavam a fazer. Era essencialmente isso, nalguns casos aqui não houve muita participação, mas a engenharia militar veio abrir caminhos: na dinamização cultural, na alfabetização, na iniciativa contra a marcha [da chamada maioria ] silenciosa, contra os boicotes nas empresas. Foi gratificante sentir que contribuí para a consolidação do 25 de abril. De tal ordem foi o envolvimento que um dos militares que passou por aqui convidou-me para madrinha de casamento. Quando foi do 11 de março, os militares foram para estrada inspeccionar os carros, quem ia e quem não ia, e nós íamos também. P: Havia uma relação entre o MFA e os sindicatos? Maria do Céu Ferreira: Aqui havia, aqui houve sempre e foi de grande ajuda mútua. P: Quais foram as iniciativas mais importantes em Gouveia? Maria do Céu Ferreira: Estamos a falar em termos sindicais. As iniciativas mais importantes foram ao nível da empresa. Ao contrário do que se imaginava, a empresa onde trabalhava, apesar de ter feito uma festa no final de 1973, de ter aumentado os quadros técnicos e administrativos, parece que não tinha tanto dinheiro assim. Aquilo era uma sociedade anónima, mas em que uma família tinha a maioria das ações e praticamente essa maioria é que governava. Essa maioria não estava interessada em investir dinheiro e então o que é que fazia? Gastava. Comprou outra empresa, depois do 25 de abril, que se dizia que era para acabar com aquela, e para levar só alguns trabalhadores da S.I. Gouveia, onde estavam, para essa empresa que foi comprada. Associou-se essa empresa a um vendedor e a um empreiteiro e formaram uma empresa de construção civil. Servia para fazer obras de construção civil nas empresas e para onde canalizavam o dinheiro. Essa empresa que foi comprada teve que ser reabilitada, havia dividas... e o cheque que a empresa teve de passar era de 300 contos, quando a obra não tinha sido mais do que 30 contos, isto dito por um dos sócios. Esse vendedor vai a minha casa, à casa do meu pai na altura, para eu denunciar o que estava a ser feito, e eu disse-lhe: tenho muita pena, mas se o senhor não me der papéis eu não vou denunciar. Porque depois também havia o aproveitamento de muita gente, a mandar recados para os outros dizerem. Entretanto esse patrão morreu, mas quando foi o 25 de novembro dizia-se que ele estava no Brasil. P: Houve alguma tentativa de implementar o controlo operário? Maria do Céu Ferreira: Na minha empresa criou-se uma cantina, um médico… Esta questão de controlo operário em autogestão não, mas que a gente queria saber como é que era e como não era sim. Criámos a cantina, que ainda durou algum tempo, mas depois acabou a empresa, acabou a cantina. O médico era um verdadeiro socialista, mas de verdade, um homem que lutou contra a ditadura e que também por isso sofreu e foi expulso da função pública e que aceitou vir para a empresa dar consultas. E houve melhorias, é evidente, das condições de trabalho. Era uma empresa muito apoiada pelo antigo regime, a maior parte do trabalho era para a guerra, para a Marinha, para a GNR. Portanto, para além da instabilidade de o patrão não se adaptar aos novos tempos, de uma quebra de algumas encomendas, houve greves por não pagarem os salários e mesmo assim conseguimos que o Ministério da Indústria desse dinheiro, aí também com a ajuda do MFA. Entretanto, esse patrão morre, fica o cunhado, que não percebia nada, nada, nada de indústria. Portanto, mete-se a família na empresa, só porque é família, não percebia nada. Depois ainda se tentou uma comissão para controlar, mas não resultou. Depois descambaram, porque numa altura em que os trabalhadores queriam que as coisas andassem, inclusivamente quando veio dinheiro para salários, abdicaram dos salários para comprar matéria-prima, esse patrão despede sete ou oito trabalhadores. Aquilo criou um conflito que nunca mais foi sanado e a empresa fecha. E os trabalhadores ficaram três meses à porta da empresa, em tendas, isto foi no princípio de 1981, com grande apoio e solidariedade, mas também com a polícia a fazer guarda para nos demover. Havia um trabalhador que tinha a incumbência de, se viesse a polícia, ir aos bombeiros tocar a sirene. E fez, e foi julgado, mas absolvido. P: Não está a falar da greve dos 29 dias? Maria do Céu Ferreira: Não, essa greve aqui não existiu. Essa foi na Covilhã. Aqui é uma outra greve, pela readmissão dos sete trabalhadores, mas já era impossível... A greve terminou, mas depois o patrão fez lock out... Foi uma coisa trágica. Depois fechou, foi muito mau, porque eram 400 trabalhadores, famílias inteiras e na altura o que valeu foi a emigração para a Suíça. P: No 25 de abril houve algum movimento popular para a construção de infantários, saneamento básico? Maria do Céu Ferreira: Gouveia era uma terra já com boas infraestruturas, mas por exemplo houve movimentos para mudar nome de ruas e um movimento para criar um lar que era um solar, onde hoje é o museu Abel Manta, mas depois se chegou à conclusão que não havia condições, que aquela casa não tinha condições para ser um lar e a família deu-a para o museu. Houve ocupações de casas, mas não foram coisas muito duradouras. Não sei qual é a explicação, mas, por exemplo na minha empresa, os quadros técnicos eram quase todos oriundos da Covilhã. Sendo assim, não era fácil haver interesse nesta coisa da toponímia, do lar… Acaba por ser uma pequena burguesia, onde depois é importante ter alguns operários e ter o sindicato. Mas é também verdade que, nessa altura, o sindicato estava muito virado para as lutas nas empresas, para a luta das 42 horas e meia. Não era muito possível estar em todo o lado. E também na altura foi obrigatório fazer eleições, foram umas eleições terríveis, aí houve grandes clivagens, apareceu a nossa lista, a minha lista, e apareceu uma lista ligada ao patronato. Foi uma campanha que parecia uma campanha eleitoral. Lembro-me que na noite antes das eleições aparecerem uns panfletos a dizer “não votes na Catarina”, Catarina era eu. “Não votes na lista dos comunistas”, que na altura era eu. E estávamos no sindicato e aparecem três ou quatro a querer falar com o presidente da assembleia-geral, já eram umas nove da noite. E nós não o deixámos ir sozinho e fomos com ele. A ideia era roubarem as urnas, era a gente sair dali, ir atrás dele, e roubarem as urnas. E, entretanto, no sindicato já não havia muita gente nessa altura e eu lembro-me de que tinha lá a minha irmã, e ela realmente tem uma grande perspicácia, e disse “olha que eles estão preparados para… olha que eles até lanternas têm”. E eu lembro-me de ter telefonado para o restaurante onde havia um camarada e onde era possível que alguns trabalhadores tivessem ido para lá. “Venham para cá porque isto está rodeado de gente que não ganhou as eleições, mas que está disposta a boicotar estas”. Ganhámos em todo o lado, menos na cidade da Guarda. P: Qual foi o papel da JOC e da LOC no período revolucionário? Maria do Céu Ferreira: Eu já não participava na JOC. Eu acho que foi muito pacificador. Os antigos dirigentes antes de mim trabalhavam numa empresa e por lá se mantiveram. Embora um deles fizesse parte do sindicato, da assembleia-geral, era um homem pacificador, não era um radical e travava um bocadinho, mas também não foram anti... Mas nessa altura a LOC também já estava muito desfalcada. P: Houve uma maior participação das mulheres neste período? Maria do Céu Ferreira: Sim, sim, sim… Aliás, que já vinha de trás, atenção, já vinha de 1971-1972. Aliás, aquele comunicado foi realmente uma coisa… foi muito bom, nomeadamente quando estivemos três meses à porta da minha empresa. O trabalho das mulheres foi extraordinário. A fazer comida, a revezar-se, a fazerem os turnos. Eu acho que as mulheres às vezes demoram mais a aderir à luta, mas quando aderem é deixá-las ir, é deixá-las andar e às vezes é preciso pôr-lhes travão. P: Foram organizadas iniciativas específicas relativas à mulher trabalhadora na indústria têxtil, não foram? Maria do Céu Ferreira: Sim, nos lanifícios fizemos sempre coisas muito giras no 8 de março, embora também aí convidássemos homens. Não era uma coisa só para mulheres. Eu acho que a luta das mulheres tem a ver com os homens, que participam e ajudam. Mesmo nas empresas faziam-se coisas que depois se foram perdendo, também porque o sindicato mudou, as pessoas não foram as mesmas. Eu deixei o sindicato em 1978, fui para a União dos Sindicatos, e depois tive de voltar. Foi bom, acompanhámos sempre as lutas nacionais, a não ser a greve dos 29 dias, que foi mais na Covilhã. Acho que aqui não tínhamos arcaboiço para essa luta. A Covilhã era uma terra operária mesmo, aqui, a determinada altura, o patronato, mesmo antes do 25 de abril, quando foi da adesão à EFTA, a emigração, a guerra colonial, que levou muitos homens, eles foram buscar as mulheres ao campo. A população feminina era muito rural e isso é também um fenómeno que difere muito da Covilhã. Mas o patronato vai buscá-las não é por acaso, eles sabem muito bem o que fizeram: eles foram busca-las porque sabiam que era ali que deviam investir, porque havia pessoas ali que qualquer tostão era uma coisa ótima. Já muito depois do 25 de abril, estava eu na União dos Sindicatos, e lembro-me que uma empresa, que era dos vestuários, dizer: “o que ganho aqui gasto tudo aqui.” Se estivesse em casa, o que ganhava era para gastar com aquilo que faria em casa. O que ela gastava em transportes para vir da terra onde vivia para trabalhar, teve de pôr o filho na creche e a mãe num lar. E dizia-me: “contas feitas, só ficam 10 euros, mas é importante eu vir trabalhar.” E isto é verdade. Havia outra que me dizia “o meu pai pagava-me o dinheiro da fábrica para eu não vir trabalhar”. Portanto as situações são diferentes. A minha empresa, por exemplo, tinha pessoal que vinha da Covilhã, mesmo trabalhadores que vinham da Covilhã, não era só técnicos. Com outra visão. Era mais fácil de mobilizar. P: E quando foi para Guarda, quais eram as diferenças? Maria do Céu Ferreira: Na União era um bocadinho diferente. Eu fui coordenar vários sindicatos, mas creio que eu consegui, porque antigamente aqui no distrito tínhamos quatro sindicatos, lanifícios, metalúrgicos, rodoviário e o comércio. Claro que depois tínhamos trabalhadores, professores, função pública, que ao longo do tempo também se foram organizando na região. E a minha tarefa era unir essa gente toda. E realmente essa tarefa foi conseguida. Quando eu saí tinha os sindicatos todos praticamente na União, creio que agora também estão praticamente todos. P: E que tipo de atividades é que desenvolvia a União? Maria do Céu Ferreira: Desenvolvia atividade de levar à prática aquilo que a CGTP propunha para a região e sempre que um sindicato travava uma luta a União apoiava, inclusivamente aqueles sindicatos que não tinham qualquer tipo de organização, a União apoiava. Pode-me perguntar como é que a União tinha dinheiro. Os sindicatos davam um X por cada trabalhador, a CGTP dava um X. E mais tarde começámos a fazer formação profissional, muito mais tardiamente do que outros setores. E a União da Guarda sempre cumpriu aquilo que era uma prática: dinheiro da formação não é para a atividade sindical. Porquê? Porque isto podia levar a que a gente descurasse o trabalho sindical, tirava dinheiro daqui, punha aqui. E essa foi também uma tarefa conseguida, a União da Guarda comprou uma sede. Por exemplo, num conflito que houve numa empresa de metalurgia, em que os patrões queriam pôr os trabalhadores ao turno e os trabalhadores assinaram. Mas quando um trabalhador trabalha ao turno, tem de ter meia hora para comer, essa meia hora tem de entrar no horário de trabalho, e eles não queriam dar, e diziam “então eu não assino”. E houve um conflito, lá fui eu para o Ministério do Trabalho, e jornalistas também, isto quando há “sangue” lá vai tudo. Utilizei os argumentos todos, expondo: “se o Ministério do Trabalho é para defender os trabalhadores e para defender a lei, e a lei está aqui, está escrita. Por outro lado, se não fosse para defender a lei, não valia a pena haver Ministério do Trabalho aqui. Por outro lado, se o patrão quisesse fazer uma empresa com máquinas de costura umas em cima das outras, vocês iam lá e diziam que as máquinas deviam ficar a uma determinada distância. Se fazem isto com as máquinas tem de fazer isto com as pessoas. Se é importante para a empresa trabalhar por turnos, a meia hora tem de ser dada.” E a gente não chegou a conclusão nenhuma, e eu disse para um doutor “se a gente não chega a conclusão nenhuma, eu sei que o Manuel Carvalho da Silva amanhã vai ter uma reunião com o Diretor Geral do Trabalho em Lisboa e eu vou já mandar-lhe um email com isto para ele ver”. Mal tínhamos chegado à União, já tínhamos um telefonema a dizer “não mande nada, que o problema já está resolvido, agora é só acertar as coisas”. Claro, não podia ser de outra maneira. Pronto, eram estes pequenos grandes conflitos. Organizar manifestações, fazer uma greve, dar apoio aos sindicatos com mais dificuldades, quer financeiras , quer de quadros. P: Participou na própria estruturação da CGTP ao longo destes mais de 40 anos, quais é que acha que foram os momentos mais importantes? Maria do Céu Ferreira: É evidente que o momento mais importante foi o 1º de maio de 1974. Se não houvesse movimento sindical organizado na CGTP, o 25 de abril teria sido um golpe de Estado, mas nunca teria sido uma revolução. Também se calhar não foi assim tanto... mas conseguiu-se aquilo que se conseguiu, foi porque havia trabalhadores organizados. Eu lembro-me, por exemplo, de o Álvaro Rana ir à Cova da Moura dizer ao Spínola e a quem lá estava “o primeiro de Maio é feriado”. E o Spínola torceu o nariz e o Álvaro Rana disse “se o senhor não decreta, decretamo-lo nós, porque nós vamos para a rua” e tiveram que decretar. A primeira greve Geral de 1982, a marcha contra o desemprego, isto para dizer todos estes momentos foram momentos importantes, até os momentos em que a gente se sentia cercada, mas enumerá-los era quase um livro… P: Como por exemplo? Maria do Céu Ferreira: Por exemplo quando foi do 28 de setembro, lembro-me do patrão da Vodratex vir ao sindicato pedir-me para ir à empresa explicar o que se estava a passar aos trabalhadores. Porque quando se ouviu falar que havia outro golpe, o pessoal parou. E eu disse ao patrão “o que é que eu vou lá fazer?”, “Vem dizer o que se está a passar”. E fui e isso também mostrava a vitalidade do sindicato e a confiança que os trabalhadores tinham na sua organização de classe. Mas era também uma responsabilidade e um compromisso com a verdade. P: Participou nos congressos nacionais da CGTP? Maria do Céu Ferreira: Sim. Por exemplo, o Congresso de todos os Sindicatos foi uma coisa realmente fantástica, de unidade, em que era possível dialogar. Eu acho que a minha geração, a geração que agora tem 70 anos, era gente com convicções muito firmes, mas uma gente com uma capacidade de diálogo muito grande e isso permitiu chegar onde se chegou. O Kalidás era um socialista, puro, o que não o impedia de trabalhar com o Álvaro Rana, que era comunista, e com os católicos. Uma coisa que eu ainda hoje digo, eu lidava com muitos comunistas que não sabia que eram comunistas, mas que tinham um grande respeito pelas minhas convicções enquanto católica. Eu estive na Base-FUT, eu ainda sou da origem da Base-FUT, não continuei na Base-FUT, porque tinha de ir para Lisboa sozinha, não era muito compatível. P: Também participou nos Centros de Cultura Operária? Maria do Céu Ferreira: Participei nos Centros de Cultura Operária, sim senhor. Ainda hoje tenho aí montes de revistas e fazíamos reuniões muito giras em que discutíamos artigos. Eu lembro-me de uma discussão muito gira que foi ler o poema do menino do bairro negro, do José Afonso, e depois discutir. Havia os cadernos GDOC, que tenho ainda guardados, que discutíamos reflectindo e que foi de grande valia em termos sindicais. P: Foi em que altura? Maria do Céu Ferreira: Foi ainda antes do 25 de abril. Depois do 25 de abril foi mais difícil porque já estava muito envolvida. Os CCOs, que deram origem à Base-FUT foram criados antes, e foi aí que se criaram os cadernos GDOC e se fizeram discussões aturadas. P: Lembra-se dos encontros dos CCOs em que participou? Maria do Céu Ferreira: Lembro-me de alguns… . Claro que era tudo gente ligada à JOC, tudo gente que vinha da católica. P: Onde é que se encontravam? Maria do Céu Ferreira: Eu acho que alguns encontros já foram onde é hoje a Base-FUT. Eu não tenho a certeza, mas em Lisboa, na Federação dos Lanifícios, na Avenida Almirante Reis, onde é hoje a Inovinter, onde estava muita gente da Católica, em algumas situações serviu para reunir o CCO. P: Qual é memória mais marcante que tem do período revolucionário? Maria do Céu Ferreira: Marcante, marcante foi a minha readmissão. Depois foi a conquista do sábado, das 42 horas. Em pleno inverno, aquilo foi uma coisa... as empresas todas paradas ao sábado, os trabalhadores com fogueiras para se aquecerem e eu, com outros dirigentes, a fazermos a volta às empresas... Isto foi no inverno de 1975, foi antes do 25 de novembro, a conquista do sábado foi antes do 25 de novembro. P: Foi uma greve duradoura? Maria do Céu Ferreira: Não, nós parámos num sábado e nunca mais trabalhámos ao sábado. Aliás, nós fomos os primeiros do sector a ter as 42 horas de trabalho. O sector têxtil, para conseguir as 44 horas, fez outras manifestações e outras lutas. Os lanifícios conseguiram as 42,5 horas muito rapidamente, porque foi uma luta que envolveu quase 100% dos trabalhadores. E pronto, foi uma luta ganha porque as pessoas aderiam em força. P: E depois, ao longo do resto do período democrático, qual foi o momento mais marcante? Maria do Céu Ferreira: Marcante, marcante, foi quando fui para a direcção da CGTP. Não estava nos meus planos e isso pressupunha uma grande responsabilidade. Depois a um nível mais da região, eu acho que muito marcante foi aquele permanecer à porta da minha empresa durante três meses para que nada fosse retirado, mas sobretudo a grande solidariedade que houve, com os sindicatos estrangeiros a enviarem dinheiro para os trabalhadores. Eu acho que nunca mais houve uma iniciativa destas. Os sindicatos europeus manifestaram uma grande solidariedade. P: Eram estreitas as relações internacionais? Foi a algum congresso internacional? Maria do Céu Ferreira: Fui ao congresso da CFDT, Já numa fase posterior, A União fez e ainda faz parte de uma estrutura transfronteiriça com os sindicatos aqui deste lado da raia, Trás-os-Montes e Beiras e Galiza e Castela. Aí fui a uma série de encontros com os espanhóis e iniciativas conjuntas que se fizeram. Umas correram muito bem, outras nem tanto... P: Quais foram as iniciativas que fizeram? Maria do Céu Ferreira: Foi trazer trabalhadores espanhóis uma semana a Portugal. E aí foi necessário pedir apoios. Por exemplo, estou a lembrar-me: Pinhel emprestou-nos uma pousada para dormir, aqui a minha câmara deu-nos oitenta contos, na altura, para um almoço, e essa parte teve toda de ser trabalhada por nós. Depois eles organizavam a ida dos nossos trabalhadores, mas isso não aconteceu. Portanto, foram recebidas autarquias, houve intercâmbios com outras pessoas com outras formações, e isso foi importante. Teria sido importante os trabalhadores daqui terem contactos com os trabalhadores do lado de lá, mas eles não conseguiram. Fazíamos alguns encontros, mas eu acho que nunca passava muito disso. A ideia que eu tinha era de que a União Europeia tinha dinheiro para este tipo de iniciativas e era importante gastá-lo. Aquilo que nós temos é nosso, é com o dinheiro dos trabalhadores, os sindicatos espanhóis têm realmente ajudas estatais. Portanto, a não ser essas iniciativas de trazermos os trabalhadores para cá e os nossos para lá, para serem os trabalhadores in loco a verem a vivência de cada povo, não achei muito mais do que isso e nós não conseguimos levar os nossos trabalhadores, mas não dependeu de nós. P: E os sindicatos portugueses também organizaram movimentos de solidariedade com outros? Por exemplo a campanha de solidariedade com os trabalhadores moçambicanos pela federação têxtil, lembra-se disso? Maria do Céu Ferreira: Sim, mas aqui o próprio sindicato organizou campanhas dessas. Por exemplo, uma campanha de solidariedade a que nos associámos logo após o 25 de Abril foi com os trabalhadores de Gonçalo, que ficaram em autogestão e que depois formaram uma cooperativa. E a gente solidarizou-se não só comprando coisas, mas até fizemos um autocolante que vendemos para angariar dinheiro. Essa foi a primeira iniciativa solidária que fizemos depois do 25 de Abril. Mas com África não era a nível da federação, era ao nível da CGTP. Ao nível da CGTP, eu sei que nós fizemos uma grande campanha de solidariedade e nós contribuímos com muita coisa. P: Isso foi a seguir ao 25 de abril? Maria do Céu Ferreira: Não, isso foi muito depois. Assim a seguir ao 25 de abril foi a ajuda aos trabalhadores de Gonçalo, porque os trabalhadores ficaram em autogestão. É engraçado que a Base-FUT veio a Gonçalo e eu acompanhei essa visita. E outras campanhas que fizemos, de solidariedade, foram com a reforma agrária. Fomos passar um fim-de-semana à reforma agrária para ajudar nas colheitas e para os trabalhadores daqui perceberem o que era a reforma agrária e depois recebemos os trabalhadores da reforma agrária, que trouxeram azeite e tudo aquilo que tinham para venderem aqui. P: Acha que esse tipo de iniciativas ajuda a criar um espírito de solidariedade entre os trabalhadores do país? Maria do Céu Ferreira: Ajuda, não só a esse nível como também a nível dos trabalhadores de várias empresas que não se conhecem, que são de terras também diferentes. Isso era importante. Uma coisa que também se fazia era convívios com os trabalhadores do distrito. Isso era muito importante e infelizmente perdeu-se. P: Também faziam torneios de futebol, não era? Maria do Céu Ferreira: Nós fazíamos isso para o 1º de maio. Quando era o 1º de maio, fazíamos torneios de futebol e no 1º de maio fazíamos o último desafio. E fazíamos estafetas em que se saía de S. Romão e se vinha até Gouveia. Chegámos a ter corredores de grande craveira. Era muito giro, muito importante nessas manifestações do 1º de maio. É evidente, isso perdeu-se desde que eu saí do sindicato, da União, o 1º de maio nunca mais se fez em Gouveia. P: Porque é que acha que se deixou de fazer? Maria do Céu Ferreira: Porque Gouveia perdeu todo o seu operariado, os dirigentes sindicais já não são daqui. É preciso trabalhar! Estar no sindicato, receber os bombeiros, receber a banda de música, fazer o discurso para eles, falar do que é o 1º de maio e depois vestir a outra farda e servir a sandes, servir a bebida. Porque se não há quem faça isto... Claro que eu não era sozinha, mas era mais fácil pegar num grupo de mulheres que me ajudavam do que pegar num grupo de homens que estavam ali para dar as medalhas, para pôr as medalhas ao peito dos participantes nas provas desportivas. P: Acha que as mulheres tinham um papel mais pró-ativo nesse tipo de iniciativas? Maria do Céu Ferreira: Sim, aqui… Não quer dizer que noutros lados os homens não tivessem, mas aqui, infelizmente, era assim. Eu estava na formação a falar do 1º de maio e dizia “amanhã quem é que me vem ajudar?” E elas vinham. Fazíamos as sandes, quer dizer, era mais fácil comprar as sandes já feitas, mas isso era dinheiro dos trabalhadores, é um problema de gestão. O problema é que hoje, mesmo a nível político, é mais fácil mandar fazer do que fazer, mas não tem tanta piada, além de que se gasta muito mais dinheiro. P: Acha que as mulheres têm mais propensão para fazer em vez de comprar feito? Maria do Céu Ferreira: Não direi todas, eu acho que em todos estas coisas, sejam mulheres ou homens, é preciso ganhá-los para isto. Por exemplo, como é que a gente tinha os prémios para dar aos atletas? Mandávamos uma carta às empresas, ao comércio, e depois íamos buscar. Isto dá trabalho. E há gente, que por ser dirigente sindical, considera isto um trabalho menor. P: Conte-me das campanhas que a CGTP organizava com África. Maria do Céu Ferreira: Mandava uma circular para o sindicato a pedir, por exemplo, roupa. E tinham o cuidado de pedir roupa que não fossem roupas pesadas, que fossem roupas leves, fossem roupas garridas. E depois, como é evidente, nós aqui fazíamos uma seleção, porque há muita gente que dá farrapos e eu acho que farrapos são farrapos. De Lisboa organizavam-se contentores para enviar para África. P: Havia a ideia da solidariedade internacionalista, era uma coisa que estava enraizada? Maria do Céu Ferreira: Sim, eu acho que nós em relação a África, o povo português em relação ao povo moçambicano ou angolano sempre foi solidário. Até porque mesmo gente que fez a guerra colonial, homens, operários, essa gente era muito sensível a participar. P: Havia um laço privilegiado com as ex-colónias? Maria do Céu Ferreira: Havia. Eu estou por exemplo a lembrar-me de dois homens que uma vez aparecem no sindicato com muita roupa e diziam assim “isto é para uma terra onde eu estive e que bem precisa”. Acredito também que as pessoas querem desfazer-se do que têm em casa e disso não sou muito apologista. Mas eu acho que com África essa solidariedade existe, de tal ordem que a CGTP às vezes tinha de dizer “agora parem”, porque aquilo também estava sujeito ao espaço dos contentores. P: E a CGTP enviava para outros sindicatos africanos, era via sindical? Maria do Céu Ferreira: Não sei, mas deveria ser via as centrais sindicais. P: Havia contactos frequentes com as centrais sindicais desses países? Maria do Céu Ferreira: Havia. Eu lembro-me que, por exemplo logo a seguir ao 25 de abril, o [...] foi a Angola e os angolanos enviaram café para os dirigentes e funcionários da CGTP, um bom café. Uma vez vieram do Norte da Europa três dirigentes sindicais, que entraram por Vilar Formoso, e o responsável pelas relações internacionais da CGTP pediu o apoio da União e o meu apoio pessoal e, para além do apoio da União, que tinha a ver com alojamento, eu recebi-os na minha casa, onde ofereci o jantar. P: A CGTP promove ações de formação para os sindicalistas dos países africanos? Maria do Céu Ferreira: A CGTP não, o INOVINTER, que é uma escola de formação entre a CGTP e o IEFP, que dá formação a quadros sindicais e formadores. E neste momento já têm uma serie de delegações em Angola. A CGTP deu com certeza formação aos quadros sindicais desses países, o [...] foi pelo menos duas vezes dar formação a Angola. P: A sua experiência na direção da CGTP foi em que anos? Maria do Céu Ferreira: A direção da CGTP, em termos de direção, mudou em alguns congressos. Quando eu fui para a CGTP, o Congresso elegia o Secretariado, que era uma estrutura pequena, éramos 14 pessoas, e eu era suplente do Secretariado, mas nunca fui tratada como tal. Participava nas reuniões como se não estivesse nessa qualidade. Depois o Secretariado passou a ser eleito pelo Concelho Geral e, este sim, eleito em congresso. Fiz seis mandatos. Desde 1981 a 2005. Fui à Bulgária, fui fazer dois cursos de formação a Bernau, na antiga RDA, e fui uma vez a Moscovo. P: Qual foi a importância desses cursos na sua formação enquanto sindicalista? Maria do Céu Ferreira: Foram muito importantes. Lembro-me de uma professora alemã dizer isto, eles davam formação sindical: “Portugal tem uma linguagem tão rica que é possível fazer um comunicado com palavras completamente diferentes de um comunicado político.” Nunca mais me esqueci disto. Tinha sempre isto muito presente. Era este tipo de formação... Claro que havia uns que a recebiam melhor que outros. Em determinada altura eles tinham traduções feitas por eles e pediam para a gente ler e ver se aquilo em português estava bem, era também o nosso contributo para aquilo que nos davam. Essa formação na RDA foi importante até para perceber como era difícil ter a televisão do outro lado a entrar pelas suas casas e a influenciar os jovens. Esse casal de professores tinham um filho adolescente e ela dizia-me muitas vezes, ela falava em português: “é muito difícil explicar aos nossos filhos determinado tipo de coisas porque eles não viveram a guerra”. Isto também me levou a compreender a queda do muro de Berlim. As pessoas envelhecem, os mais jovens querem outras coisas, se calhar hoje já estão arrependidos, e essa preocupação de mulher, de mãe, de pessoa de esquerda, que está naquele país e ela tinha dificuldade de transmitir estes valores ao filho. Era também este tipo de vivência, não era só o curso, era também viver com as pessoas. O povo alemão é um bocadinho frio, mas entretanto uma das vezes que estive lá na Alemanha... Sabe o que é acordar com o hino da CGTP e a diretora da escola vir ter comigo e dar-me um presente? Foi um povo que teve muitas dificuldades, por isso é tudo muito comedido. A gente vê a Merkel, anda sempre com o mesmo estilo de roupa, e um dia uma locutora perguntou-lhe porquê e ela respondeu que é funcionária pública, não é modelo. A outra que está no Parlamento Europeu é igual. Nós não somos assim, não é, damos muito valor a estes artigos... P: Na direção da CGTP que tarefas é que assumia? Maria do Céu Ferreira: Estive no departamento das mulheres e estive no departamento de formação sindical. P: O que é que desenvolveu no departamento das mulheres? Maria do Céu Ferreira: Preparar as iniciativas, levar à prática e sobretudo receber e analisar tudo o que vinha de fora sobre os problemas das mulheres o que de certo modo levou à criação do CIT – Comissão para Igualdade do Trabalho. Foi um departamento onde muitos conflitos foram esgrimidos e positivamente para as mulheres, e onde participavam patrões e sindicatos, que tinham de fazer cumprir a lei, por exemplo, a lei da paternidade, um pai tinha direito a ficar com o filho, na altura, 15 dias, os patrões não queriam, não deixavam. Se uma mulher escrevesse para a CIT, ele era obrigado. Por exemplo, com a amamentação a mesma coisa. As mulheres tinham dois tempos para amamentar e o patrão queria que a mulher amamentasse, por exemplo, a meio da manhã, mas essa mulher tinha um filho a dois ou três quilómetros de casa, portanto é evidente que ela preferia, ou no princípio do turno ou no fim do turno, portanto o patrão dava a meio que era para ela não ir. Este tipo de coisas eram discutidas e analisadas e muitas vezes foram resolvidas, pena que se tenham perdido estes benefícios com o governo da troika. P: E esse departamento das mulheres na CGTP, que tipo de iniciativa é que fazia? Maria do Céu Ferreira: Celebrávamos o 8 de março, fazíamos conferências sobre a maternidade, a paternidade, até mais do que a igualdade de género, porque isso agora é que está mais presente, mas houve conferências que juntavam centenas de mulheres. P: Quais é que eram os principais problemas que as mulheres sentiam no trabalho? Maria do Céu Ferreira: Cada setor tinha problemas específicos mas a discriminação salarial, a discriminação na carreira, esses eram os problemas mais sentidos, a discriminação exatamente por ser mulher e ser mãe é que dificultava sobretudo subir na carreira. Em muitos casos a maternidade não foi possível porque o emprego era mais importante, porque preocupava muito que a maternidade estivesse a diminuir, mas a diminuição da maternidade tem a ver com a entidade patronal não querer admitir mulheres em idade reprodutiva. Havia inquéritos onde perguntavam se iam engravidar ou não, nesta situação a maternidade é uma coisa que pesava, e ainda hoje pesa, não foi só naquela altura. Até mesmo no movimento sindical, nós agora temos uma secretária-geral mulher, mas muitas vezes não era fácil às mulheres assumirem cargos de chefia se não tivessem suporte familiar ou fossem solteiras. Eu não poderia ter feito o que fiz se não tivesse atrás um marido e um filho e, antes do marido e do filho, a família, um pai, uma mãe. P: E acha que a participação sindical foi importante para a emancipação feminina? Maria do Céu Ferreira: Sim, não tenho dúvida nenhuma disso. Nem estou a ver hoje, nem naquela altura, sindicatos sem mulheres. P: Para si pessoalmente, foi importante para a sua emancipação? Maria do Céu Ferreira: Sim, ao princípio era quase uma missão. Não vou para dirigente sindical porque quero ser dirigente sindical, vou porque estou empenhada numa luta… Não era tanto pela emancipação da mulher, era porque eu como pessoa, como católica, eu tinha que estar lá. E depois o resto foi por acréscimo. Quando eu fui àquela reunião dos homens, é evidente que a direcção do sindicato tinha homens que eu conhecia, eram homens da LOC. Mas foi também este tipo de condições que se calhar outras mulheres não tiveram. Eu não sou nenhuma supermulher, apesar de ser muito combativa, de não aceitar um sim ou um não. P: Em que medida é que acha que esta participação, esta dedicação neste caso ao movimento sindical, marcou a sua vida pessoa? Imagina a sua vida sem esta participação? Maria do Céu Ferreira: Eu acho que marcou… Olhe, encontrei o marido no movimento sindical, com quem sou muito feliz. Se não fosse o movimento sindical se calhar não o tinha encontrado. Mas eu hoje olho para trás e fazia tudo de novo, por uma razão. Eu sempre fui muito leal, comigo e com os outros. E este tipo de lealdade hoje também é muito respeitado. Mesmo a nível político, eu nunca fui capaz de ler um papel sem o discutir primeiro. Discuto. Esta linguagem não é a minha, por isso eu não leio isto. E eu tenho a certeza que por isto também sou respeitada. Política é uma coisa muito bonita, mas eu não posso fazer política só porque agora há eleições... P: Também assumiu cargos políticos na autarquia, não foi? Maria do Céu Ferreira: Sim, fui candidata a presidente da Câmara Municipal de Gouveia, com o [...] do PSD, imagine. Portanto, era um político de peso, e outro que era o actual presidente da Câmara e que hoje é deputado. Claro, eu sabia que não ia ser eleita, mas adorei participar na campanha. Foi uma campanha muito verdadeira. Mas, por exemplo, o [...] estava na Assembleia Municipal comigo, ele pelo PSD e eu pela CDU. E ele vinha de Coimbra, chegava ao sábado às 14 horas, hora do início da assembleia, ele ouvia a Maria do Céu e depois ele pegava numa ou outra coisa, e fazia a sua intervenção. E é engraçado, na última assembleia antes das eleições em que éramos candidatos, eu vinha para Coimbra fazer um curso, à distância, eu tinha de ir a Coimbra de 15 em 15 dias a uma aula presencial. Eu tinha de ir nesse dia e, portanto, eu disse “eu tenho mesmo de ir embora e não vou ficar para a tarde”. E ele disse isto: “eu tenho dar parabéns à senhora deputada, porque ela foi quem, nesta assembleia, apresentou mais propostas, mais lutou por elas, apesar de estar sozinha.” Respondi: “agradeço que diga isso na campanha, agora aqui?” Até que um dia, há um boletim municipal na Câmara e, a determinada altura, o director da revista pede-me para eu dar uma entrevista e há uma pergunta no final, se eu preferia ter lá o PS ou o PSD. E eu disse, “olhe, politicamente eu estou mais próxima do PS do que do PSD, mas o que teria sido bom era ter ficado o PSD, o PS e a Maria do Céu, que eram sete”. A partir daí fui pessoa não grata. O [...], que é muito vaidoso, deve ter pensado que por ter feito oposição cerrada ao PS que diria que preferia o PSD. Eu não tinha nada a ver com o PS, mas a minha família política está mais próxima do PS. Aliás, eu fiz parte da primeira direcção do PS em Gouveia, saí quando da discussão da unidade e da unicidade sindical. Escrevi uma carta pública, porque a direcção estava contra a unicidade e não sabia o que era uma coisa e o que era outra. Esse médico que foi para a minha empresa, era socialista de verdade, dizia: “eu não percebo nada disto. Os ingleses, que são os ingleses, são socialistas e têm uma central sindical única, e nós aqui andamos em guerra.” P: Foi a questão da unicidade sindical que a fez sair do Partido Socialista e ir para o PCP? Maria do Céu Ferreira: Eu não entrei para o Partido Comunista nessa altura. A minha entrada teve a ver com uma visita à RDA e com uma votação muito baixa que o Partido teve. O que é facto é que eu, em Gouveia, sou conhecida pela comunista, independentemente se sou filiada ou não, portanto estar filiada foi apenas um proforma. É claro que há coisas com que eu não estou de acordo, mas também tenho espaço para as dizer, não fica nada por dizer. P: E acha que há uma ligação entre a participação sindical e a participação política? Maria do Céu Ferreira: Há. Eu, enquanto dirigente sindical, luto pela defesa dos trabalhadores, o Partido Comunista luta pelo mesmo. Quando deixar de lutar eu não estou lá. P: E as suas funções na autarquia, de que forma é que se relacionam com a atividade sindical? Maria do Céu Ferreira: A minha intervenção enquanto deputada, para além das questões que têm a ver com o desenvolvimento do concelho, tem também a ver com os interesses dos trabalhadores e pelo facto de ser dirigente sindical sentia de forma diferente, defendia e lutava por elas de forma diferente. Na Assembleia de abril levava sempre uma saudação aos trabalhadores no 1º de Maio, no 25 de Abril idem, se houver uma greve a mesma coisa, mas é muito mais pela valorização da terra, aquilo que está mal e que é preciso pôr bem, é muito mais nesse sentido. Agora, é evidente que a atividade sindical dá um arcaboiço muito grande, dá uma vivência muito grande, saber das preocupações, das empresas, etc. Eu acho que, por exemplo, se na discussão do orçamento, a Câmara não chamar os deputados para discutir o quadro dos trabalhadores, está a fazer uma ilegalidade. Eu dizia “os senhores têm de chamar os deputados, porque isto mexe com os trabalhadores e os deputados têm de dar opinião”. Isto é da lei. P: E porque acha que a par da motivação para participar no movimento sindical teve também a motivação para participar na política local? Maria do Céu Ferreira: Primeiro porque gosto muito da minha terra, depois porque antes de ser deputada, por exemplo, e ainda naquele período revolucionário, havia aqui em Gouveia uma reunião com todas as forças vivas da terra para discutir. A Câmara teve cá um geólogo, um arquiteto, para estudar o terreno para a reconversão de algumas coisas, e os sindicatos e outras organizações foram chamadas e logo nessa altura eu percebi que os interesses económicos eram difíceis de conciliar. Aqueles que tinham terras eram uma coisa terrível, queriam transformar parte da reserva agrícola e ecológica em zonas de habitação. E realmente há coisas que eles explicaram que, em determinadas zonas, pelo declive do terreno, etc, não era aconselhável a construção. Não é que mais tarde, quando se constrói o mercado municipal, não é que imediatamente caiu um muro, porque, como os técnicos, diziam há zonas muito vulneráveis. Depois veio o 25 de novembro, e a participação das organizações representativas foi-se, e isso foi perdido. Por isso nós hoje, a nível de Gouveia, uma terra muito bonita, mas em termos da habitação, antiga, ela está toda a deteriorar-se. Mas o que é que temos? Urbanizações longe do centro da cidade, que levam também pessoas. As pessoas não vêm para o centro. Isto realmente descaracteriza uma terra e Gouveia perdeu imenso, perdeu as fábricas, perdeu muito. Portanto, isso também foi uma coisa que me empurrou. Por isso, fiz uma série de mandatos. Agora acabou. Vou na lista, claro, da autarquia, mas num lugar não elegível. P: Qual é que acha que é o futuro do movimento sindical? Maria do Céu Ferreira: Enquanto houver trabalhadores tem de haver sindicatos. É possível que, esta juventude, por exemplo, estou a falar dos jovens que conheço, que têm pouca relação com os sindicatos, e já anteriormente era assim. É sempre quando as pessoas têm problemas. E como eu acredito que os jovens vão ter muitos problemas, infelizmente, vai haver futuro. Evidentemente, com muitas dificuldades, eu não me esqueço que a minha geração foi criada noutra escola, numa escola de luta antes do 25 de abril. Estes jovens agora têm outra formação, têm outra mentalidade, têm a informática à frente deles. Agora, eu digo-lhe uma coisa: eu temo pelo futuro dos jovens. Porque acho que não vai ser fácil para eles. Quando as pessoas começarem a ter problemas, só tem uma porta aonde ir bater. E mais, até podem não ter uma porta, até podem ter que ser eles a organizar-se. A CGTP tem jovens com muito valor, agora é preciso trabalho nas empresas, o trabalho de base, o trabalho com as pessoas é muito importante. Sobretudo saber ouvi-las, discutir, ver como é que seria melhor. Mas eu continuo a acreditar que os sindicatos serão sempre importantes. Aliás, o movimento sindical em Portugal passou por uma fase terrível antes do 25 de abril e não foi por essa razão que os sindicatos acabaram. Antes do 25 de Abril eles reinventaram-se. Os bancários, os seguros, os lanifícios, os metalúrgicos, não tiveram problema nenhum em juntar-se. Esta dinâmica, mais tarde ou mais cedo, vai ser imposta. Já reparou? As reformas agora são aos 68. Um jovem que começa a programar informática agora, acha que até aos 70 anos vai poder fazer isto. Neste momento não há nenhum sindicato para eles. Eu já falei com os camaradas da Inter, a malta tem que começar a organizar esta gente, eles próprios têm noção de que aquilo que eles fazem é de uma tal violência intelectual, que aos 70 anos ninguém está nessa. E como é? Têm de ter futuro... está de acordo? -
16 de novembro de 2021
Francisco Duarte
P: Senhor Francisco, a ideia destas entrevistas é registarmos as experiências de vida, ou seja, experiências que as pessoas têm ao participar no associativismo e a forma como o associativismo enriquece a vida das pessoas e também para percebermos quais são as pessoas que têm maior propensão para participar e, por isso, começava por lhe fazer algumas perguntas sobre a sua vida. Primeiro, gostava que me dissesse, para ficar registado, o seu nome e a sua data de nascimento. Francisco Duarte: Francisco Manuel Carvalho Duarte. 26 de junho de 1937. P: Nasceu aqui, na Marinha Grande? Francisco Duarte: Na Marinha Grande, sem maternidade, nascimento à antiga. P: Estudou aqui? Francisco Duarte: Estudei aqui, na altura na Escola Industrial da Marinha Grande. Ainda não era Escola Industrial e Comercial, era só industrial. Acabei por tirar um curso industrial, o chamado curso de vidraria, que ao início havia um curso de vidraria e um curso de pintor de vidros. Eu como tinha a pretensão de ter de facto a profissão de vidreiro, optei pela vidraria. Pois fui vidreiro dos 12 aos 14 anos e era uma profissão que eu, de facto, sonhava com ela e gostava muito de ser vidreiro. Mas um problema cardíaco, na altura também, um médico daquela altura, neste caso, o Doutor Júlio Vieira, que era uma figura carismática também da Marinha Grande, proibiu-me de ser vidreiro. Então, depois optei, naquela altura, pela chamada Universidade dos Montes. Iniciei uma outra atividade, exatamente como metalúrgico na Aníbal Abrantes, que era uma fábrica de moldes, a mais importante e a primeira que nasceu na Marinha Grande. P: E ficou lá sempre? Francisco Duarte: Fiquei lá durante 10 anos, depois trabalhei mais 10 anos na Emídio Maria da Silva, que era outra empresa também de fabricação de moldes para a matéria plástica e mais 18 anos na Molde Matos. Portanto, tive 38 anos de profissão, uma profissão dura, uma profissão de que eu nunca gostei muito. Portanto, eu sou das muitas pessoas que existem certamente com profissões contrárias à sua vontade. O meu sonho era ser vidreiro, porque gostava muito de vidro. Dava-me um certo gozo interior ver o vidro ser manejado e o equilíbrio do vidro em quente fascinava-me. Mas depois fui para a indústria de moldes, enfim… Na altura, entrar naquela oficina chamava-se ir para a faculdade dos moldes. E então tive uma carreira de metalúrgico de 38 anos, nos quais fui delegado sindical a partir de 1971. Estava naquela lista de um tal senhor da Marinha chamado Beta, um senhor que lhe chamávamos o Beta. Ele era Alberto, acho, mas chamavam-lhe o Beta, que mais tarde viemos a descobrir que era informador da PIDE. Ele tinha por norma, quando eram as assembleias gerais do sindicato, pedir-me para eu redigir, a mim e a um outro senhor chamado Biscaia, para redigirmos sempre, naquela altura, telegramas de protesto para o Governo. E então soube-se depois 25 de Abril, porque ele foi descoberto, que ele era agente, mesmo agente direto. E lá estava o meu nome para a curto prazo ir dentro, entretanto deu-se 1974 e felizmente acabou. Depois fui dirigente sindical. Durante 2 anos, fui delegado sindical e depois fui mesmo dirigente, presidente da Assembleia Geral do Sindicato da Indústria Metalúrgica, cuja sede principal funcionava em Vieira de Leiria, uma outra freguesia pertencente à Marinha Grande. Estudei de dia alguns anos, mas poucos, porque as dificuldades económicas eram muitas. E então eu tive de começar a trabalhar na escola, de dia, antes de tirar o curso. Acho que ainda fiz o primeiro ano de dia, já não me recordo bem, mas depois era trabalhador-estudante. Portanto, o meu horário de trabalho era das 8 da manhã às 6 da tarde, com uma hora para almoço e trabalhávamos aos sábados das 8 às 11, mas tínhamos duas horas para irmos para a escola. Portanto, eu saía sempre às 4. Uma das pessoas que me acompanhava até é hoje um empresário famoso, o senhor Henrique Neto, talvez já tenha ouvido falar. E acabei então por tirar o curso à noite. Antes disso, aos 10 anos, fui empregado na taberna, que era o refúgio dos vidreiros. Normalmente, começavam às 8 e acabavam às 3 e iam para as tabernas e era ali que se consumia muito vinho, de facto. Hoje reconheço que na altura não compreendi que seria assim, que começou aí também há uma certa consciência de que a taberna não era o melhor para os homens, nem para o desenvolvimento do país através deles. Quero eu dizer com isto, pensou-se muito também nas tabernas no movimento associativo. E algumas coletividades, pelo menos aquela a que eu estive mais tempo ligado, começou a ser criada numa taberna de um homem já, naquela altura, com uma cultura razoável e que via mais longe, sabia as condições políticas, em que vivia e porque ele foi também algumas vezes incomodado pela polícia, não numa maneira muito acentuada, mas foi avisado. E penso que também aí começou a haver um bocado a consciência de que seria necessário tirar os homens das tabernas e levá-los para locais onde se pudessem encontrar, o que foi o movimento das coletividades inicialmente. Depois fui dirigente daquela coletividade, e de facto não houve nada que eu não fizesse. Desde a limpeza aos salões antes de abrir a coletividade para os associados entrarem. Nós tínhamos de fazer limpeza, incluindo casas de banho, tínhamos de fazer tudo. Depois fui segundo secretário, lembro-me de que foi o primeiro posto que tive numa direção. Depois fui tesoureiro. Depois fui presidente uns 6 ou 7 anos. Fui 20 anos presidente da Assembleia Geral e 30 anos ligado ao grupo de teatro, onde iniciei essa atividade como ponto, passando depois para o palco, fazendo variadíssimas peças, uma das quais nos deixou uma recordação muito boa, que foi A Promessa. Porque fomos a um concurso num Orfeão em Leiria e tirámos uma menção honrosa. Foi uma coisa maravilhosa para nós, na altura deu-nos bastante gozo. Trabalhávamos muito de facto nas coletividades. Havia nessa altura uma maior ligação a nível associativo, apesar de tudo, porque não havia tantos atrativos, tantas coisas que despertassem as pessoas para outras atividades. Havia uma maior ligação entre as associações, apesar de haver bairrismos muito doentios. Porque as questões entre coletividades, pelo menos na Marinha Grande, que é um meio associativo muito grande, como sabe, tem dezenas de coletividades… Mas, apesar de tudo, havia realizações em conjunto que eram muito interessantes, nomeadamente torneios de pingue-pongue, torneios de bilhar, torneios de sueca. E depois havia uma coletividade que, enfim, depois enveredou por um certo elitismo, mas fez um trabalho muito importante. Começou a criar também torneios a nível nacional, nomeadamente no que diz respeito ao ténis de mesa, trazendo equipes, não digo como um Benfica ou o Sporting, para esses torneios. E começaram a haver algumas realizações entre as coletividades, quando havia sempre uma festa final, onde, por exemplo, elegíamos sempre a Rainha das coletividades, ou uma madrinha das coletividades. Mas a partir daí também começou a criar-se uma certa da consciência política, porque também tínhamos um homem nesse movimento, muito importante do ponto de vista político, que era o Doutor José Henriques Vareda. Certamente que já ouviram falar dele, que é um dos grandes fundadores do Sport Operário Marinhense. E então começou a haver encontros, enfim políticos, com inconformismo relativamente às misérias que se viviam, porque de facto vivia-se miseravelmente. Eu lembro-me, isto um à parte, mas lembro-me de ter os primeiros sapatos aos 13 anos, e mesmo assim meu pai comprou-me os sapatos com 3 ou 4 números a mais, levaram quase um jornal cada um à frente para as biqueiras, os bicos dos sapatos não irem para cima. E depois umas botas cardadas, umas botas que levavam aquelas cardas todas quando pisávamos mais plano ou cimentado, escorregávamos. Portanto era uma miséria muito grande. Lembro-me da minha mãe, quando comíamos bife de vaca com o ovo estrelado, lembro-me da minha mãe não comer, o bife não chegar para ela. Comíamos eu, as minhas irmãs e o meu pai e eu, pelo menos, lembro-me de encarar isso com certa naturalidade. As pessoas eram conformistas, uma grande parte, fora aqueles que se foram revoltando. Mas isto para dizer também que a consciência política de muitos marinhenses nasceu nas coletividades, foi a partir das coletividades. E que muitos tiveram interesse de se ir informando, de ir conhecendo coisas, e ter constantemente o pensamento na coletividade para realizar coisas. Eu posso dizer que enquanto fui presidente da coletividade, da SBR Primeiro de Janeiro, da Ordem da Marinha Grande, lembro-me de fazer coisas que me deixam hoje recordações. É claro que eu dei parte da minha vida àquela coletividade. Eu devo dizer-lhe, isto num à parte que talvez não tenha interesse, que estive quase à beira do divórcio, porque eu passava mais tempo na coletividade. Naquela altura fazia-se as festas de arraial e havia uma fonte de rendimento importante, que era a quermesse. Nós íamos pedir prémios e depois vendíamos rifas. Mas aquela quermesse tinha de ser muito bem organizada, pôr números em mil prémios e depois vender rifas, aquilo tudo… E então especializei-me na organização de quermesses, fui 29 anos seguidos diretor da quermesse. Um ano, a minha mulher perguntou-me: “Sempre quero ver qual é o ano em que vou contigo à festa?” Porque eu organizava a quermesse e depois tinha de estar lá no dia das festas, como é natural. Bom, isto, a nível da importância que o associativismo teve na minha vida, foi de uma importância, passo a repetição, elevada, muito elevada. Ganhei consciência de que tinha de participar na construção de uma sociedade diferente e de alguma maneira ativa, através da minha atividade política. Desde 1974, e até antes, tive atividade política. Aos 15 anos, quando trabalhava na Aníbal Abrantes, já tinha uma missão política. Mas para dizer que, de facto, o associativismo teve uma importância fundamental na formação de muitos homens e também na melhoria da própria sociedade, especialmente a nível desse problema das tabernas, que era uma coisa terrível. P: E o que é que o trouxe para associativismo, o seu pai já era? Francisco Duarte: Não, o meu pai nunca foi dirigente de nenhuma associação. O meu pai foi apenas músico de uma banda filarmónica de uma fábrica que existiu. Eu fui influenciado por esse tal senhor que morava lá na Ordem. Porque eu nasci e fui criado até aos 20 anos num lugar chamado Cruzes e depois comecei a namorar uma rapariga da Ordem e, aos 22 anos, casei-me. Quando eu ia ao barbeiro, o senhor Ilídio Guerra estava sempre presente ali na barbearia, que se chamava barbearia do Arnaldo Martins. E ele discutia muito estes problemas das coletividades e nessa altura já tinha uma casinha pequena, que até era uma casa de habitação, onde começou a Sociedade de Beneficência Primeiro de Janeiro. Eu penso que isto por altura da Guerra Civil de Espanha – 1936, 37. Mas depois veio a ser a coletividade fundada e inaugurada em 1939. Portanto, a data legal do início da Coletividade SBR Primeiro de Janeiro foi em 1939. E esse senhor, até tem hoje o nome de uma rua da Ordem, é que me influenciou de certo modo. Porque ele tinha algumas conversas já acima do normal. Eu apreendia muito as palavras dele e talvez de uma maneira involuntária ou inconsciente foi-me modificando muita coisa, foi ficando muita coisa do ponto de vista cerebral, passo o inconveniente da palavra, se calhar. Depois convidaram-me, ia lá aos bailaricos com a minha namorada e tal e em 1961 fizeram-me o convite para eu ser pertencer aos corpos gerentes da coletividade. E a partir daí comecei, nunca mais de lá saí, praticamente, até 1996, quando eu já era presidente da Junta de Freguesia. E numa altura em que a coletividade teve fechada três meses, numa atitude de salvação da própria coletividade, porque aquilo já estavam a pensar ir entregar as chaves à Câmara, eu ainda fui tomar conta daquilo mais uma vez. Na altura não me deu jeito nenhum, que era presidente da Junta e o trabalho chegava bem. Mas fui presidente várias vezes, fui tesoureiro, fui secretário e não me conformava nunca que a coletividade não tivesse uma atividade qualquer. Ou fazia bailes da Primavera ou fazia bailes de aniversário, de eleição da madrinha da coletividade, bailes das chitas, depois fiz, fez a minha direção, mas devo confessar, não estou a envaidecer-me, mas eram coisas da minha autoria. Fiz um MusicOrdem, que era um espetáculo de 15 em 15 dias, onde entrevistávamos sempre uma figura com importância no governo da Marinha Grande. Foi desde o chefe da polícia até ao diretor da Segurança Social, pessoas ligadas ao teatro, como o Norberto Barroca. Fazíamos entrevistas de poesia. Havia sempre um sketch de teatro da minha autoria, com artistas que eu escolhia do próprio grupo. Havia um sketch, depois havia concursos, concursos de assobios, concursos de anedotas. Era uma coisa interessantíssima. A coletividade da Ordem tem um salão muito grande e tem outro salão idêntico ao lado, são dois salões paralelos. Fazíamos no salão pequeno. E então aquilo de 15 em 15 dias era uma alegria fantástica, pessoas a tentarem cantar, havia um concurso de canto também, interessantíssimo. Depois fizemos também um concurso de fados, que tinha pernas para hoje, se não o tivessem morto... Aqueles bairrismos doentios de que eu falava há pouco, muitas vezes também funcionavam pela negativa. Há pessoas que não podem com o êxito os outros, e os concursos de fado morreram exatamente por os diretores seguintes a mim, nessa época, não estarem muito de acordo com a maneira como funcionavam, porque aquilo era um concurso de fado, tinha eliminatórias ao fim de semana e teve dezenas de concorrentes distritais. E eu penso hoje que aquela realização tinha condições para hoje ser um concurso a nível nacional, porque de facto veio gente de muito lado, até nós ficámos surpresos. Houve várias semanas em que fazíamos um espetáculo e os concorrentes cantavam e faziam um espetáculo com um júri que escolhia em cada sessão um concorrente para apurar para a final. A final desse espetáculo, desse concurso, foi uma coisa inolvidável naquele salão. É um salão muito grande, tem 100m por 18m de largo. Tinha 90 mesas completamente esgotadas e com gente de pé, com um palco magnificamente ornamentado. Os fadistas de muito nível já, com muita categoria, uma delas que ganhou o prémio, nessa altura já havia prémios, fizemos um prémio pecuniário, mas porque se pensou também que só seria possível algum êxito se houvesse os prémios pecuniários, porque se não houvesse também era difícil. E eu lembro-me que nessa altura o primeiro prémio foi 100 contos, que era uma quantia significativa para aquela altura. Estou a falar de oitenta e poucos. P: Vamos recuar um bocadinho. Antes do 25 de Abril, no período do fascismo, como é que era a vida das coletividades? Quais eram os constrangimentos? Francisco Duarte: No teatro, por exemplo, eu cheguei a fazer teatro com dois PIDES na primeira fila, quando fizemos O perdão dos filhos, uma peça chamada perdão dos filhos e aquilo foi à censura e eles puseram lá o lápis azul nalgumas passagens da peça. Nomeadamente a nível cultural, e na área do teatro, tínhamos de ter um cuidado muito grande e de facto aí havia restrições de um grau elevado, que certas peças não podíamos... Mesmo a própria Promessa também teve que ir à censura. E tivemos algumas, porque era o Bernardo Santareno, um escritor, enfim, todos sabemos como é. Lembro-me dessas restrições, nomeadamente a esse respeito. Também tínhamos na Presidência da Câmara sempre alguém que estava ligado aos problemas políticos e que os comunicava. E então, de vez em quando, experimentavam-nos, pelo menos ao nível da coletividade que eu mais frequentei, e as outras eram idênticas. Aliás, o Sport Operário Marinhense foi das coletividades mais perseguidas antes do 25 de Abril. Tinha visitas da PIDE, baldeavam-lhe a biblioteca toda, porque aquela biblioteca tinha a fama de educar os trabalhadores e de dar uma perspetiva política diferente. E então, também ainda nas bibliotecas, porque nós tínhamos muito interesse também em organizar a biblioteca e muitas vezes fazíamos convites aos próprios associados para sessões de leitura e havia essas sessões de leitura que eram, de facto, vigiadas. O próprio presidente da Câmara tinha alguém no lugar que se inscrevia até para essas sessões. Nós viemos a saber isto tudo depois, passado algum tempo, porque as pessoas também, especialmente depois de 25 de Abril, viemos a saber quem eram. Algumas, nem todas. E então nós tínhamos constrangimentos quase em tudo, à exceção dos bailes, que me parece que deixavam passar assim mais ao lado. Mas eu falava há pouco no movimento associativo e quando falei na figura do Doutor José Vareda, que começou também a organizar, a politizar muitos dirigentes das coletividades, com encontros na mata, fazíamos festas apropriadas na mata, trazíamos sempre um cantor da revolução, os cantores de intervenção, essencialmente isso, mas os cantores de vanguarda, também se dizia na altura. E começou a haver uma adesão muito grande também de homens que não tinham nada a ver com o associativismo e depois se foram incorporando. E começou a haver uma consciência política diferente e também, devo dizer que neste percurso todo, muitas tabernas foram perdendo a sua força. Porque havia tabernas por todos os cantos e estavam sempre cheias. O movimento associativo contribui muito também para que esse flagelo, entre aspas, perdesse um bocadinho de força. De maneira que, enfim, penso que o associativismo ajudou muito a ter consciência daquilo que andava a fazer por cá ao de cimo da Terra. E foi também o associativismo que me levou para as autarquias. Como deve saber, fui presidente da Junta durante quatro mandatos, 20 anos, e fui membro do executivo mais quatro. Fui vereador da Câmara Municipal também durante 6 anos, 2 mandatos, quando os mandatos eram de 3 anos ainda. E fui membro da Assembleia Municipal. Portanto, tenho a vida nesse aspeto bem preenchida e com realizações no associativismo. Hoje, tenho a minha opinião sobre o associativismo. Sou da opinião de que a maioria das coletividades perderam o comboio da evolução da sociedade. Faltou gente pensante, não quer dizer que alterar esta situação seja algo de muito fácil porque, como todos nós sabemos, o povo português, uma grande parte do povo português ainda está numa bitola de cultura um bocado abaixo da média, um bocadinho. Porque a gente via bem, especialmente quando íamos a algumas povoações com o teatro, víamos bem o atraso cultural de muita gente, o que começou a dificultar também a vida das próprias coletividades. Porque não havia muita gente disponível para ir e começaram também muitos a ter medo, os que frequentavam a Igreja, por exemplo, começaram a ter medo das coletividades e a não frequentar tanto. Havia assim estas contradições. Não sei especificar muito bem isto, este pensamento devia ser mais bem ordenado. Mas, apesar de tudo, hoje penso que há um conformismo muito grande dos próprios dirigentes das coletividades. E tenho de dizer abertamente, gente eleita também para as coletividades com muito poucas competências culturais. Isso, se de facto o poder local, eu na altura em que fui vereador, fui vereador da Cultura, e a primeira, uma das primeiras iniciativas que tive foi a Câmara contratar um animador cultural para trabalhar fora de horas. Qual seria o funcionamento dele nas próprias coletividades? Cada dia da semana ia a uma coletividade para tentar organizar grupos de teatro, grupos corais, porque a pessoa que foi contratada tinha estas valências todas e estava disponível para ter um horário diferente do normal. Isto para dizer o quê? Se o poder local, de facto, não tomar algumas medidas no sentido de ter técnicos que possam dar uma ajuda às próprias coletividades, não é ajuda material, essa ajuda cultural, vamos chamar-lhe assim… Tirando uma ou duas coletividades, mas eu apenas classifico o Sport Operário Marinhense, que apesar de ser no outro tempo uma coletividade que mais fez pela cultura e que mais fez para desenvolvimento político das próprias pessoas e que mais fez pelo movimento associativo, depois teve uma mudança muito grande. Hoje, eu considero que é uma coletividade um pouco elitista. Tem muitas atividades, claro, mas nem todos têm acesso a elas porque têm de ser muito bem pagas. O Operário tem hoje alguns associados (outros já morreram, conheci-os todos) que no tempo antes do 25 de Abril nem à rua onde ficava situada a sede do Operário iam. Após o 25 de Abril, eram sócios do Sport Operário Marinhense. Portanto, há aqui uma contradição. Há aqui uma mudança de atitude própria das pessoas e também uma mudança de carisma da própria coletividade. Começou a ser uma coletividade onde uma grande parte dos empresários e dos novos empresários começaram a ter placas douradas nos placares. Mas, retomando, o discurso anterior, eu penso que nas coletividades de hoje os seus responsáveis são conformistas. Eu, se estivesse hoje numa coletividade, mesmo na minha coletividade, eu tinha de inventar coisas para conseguir que a minha coletividade… Nem que copiasse pela televisão, copiasse programas de televisão para a coletividade ter vida. Agora, ter magníficas instalações, com áreas enormes, meses e meses sem nenhuma atividade, dói-me, a mim dói-me e eu não me conformava. Eu voltava às coisas antigas, não tinha problema nenhum. Eu não tinha problema nenhum hoje em pôr em realização um grande baile de vestidos de papel, de trajes estapafúrdios, digamos assim. Depois, com um concurso onde estivesse um artista final, um cantor ou um declamador, fosse o que fosse. E eu hoje realizava novamente um rally paper. Fomos dos primeiros a realizar um rally paper. Claro que hoje é complicado, porque a gasolina está muito cara, fazia-se de bicicleta. Também se pode fazer de bicicleta, a um domingo, faz-se um rally paper ciclista. Portanto, isto para dizer o quê? Apesar de reconhecer que é bastante complicado e difícil as coletividades apanharem o comboio, têm que trabalhar muito. E hoje não há aquela dedicação que havia também naquela altura. Porque naquela altura, como eu lhe disse, nós limpávamos a coletividade e abríamos e estávamos de serviço ao bar, uma equipa por semana, dois dirigentes faziam a semana inteira. Hoje isso é difícil. Eu vejo, por exemplo, na coletividade do meu lugar, já chegou a ter três empregadas, agora tem duas. Eu tenho dúvidas que se ganhe para empregadas, é um bocado complicado. Portanto, esta dedicação às próprias coletividades, que a própria evolução da sociedade também trouxe. Porque hoje podemos estar num sofá requintado, numa sala quente a ver televisão, e a televisão tem programas para todos os gostos. Temos os computadores e, enfim, centenas de milhares de pessoas que passam serões aos computadores. Há, de facto, muitas atrações e não é fácil levar as pessoas para as coletividades. Agora, realizando alguma coisa de diferente e depois é urgente que alguém tenha a capacidade e a força de unir mais as coletividades, porque as coletividades em conjunto têm muita força. Nem que tenham uma realização por ano de uma grandeza palpável, nem que sejam os tais concertos ou uma danceteria modernizada, bem equipada, para levar lá as pessoas. Pode ser só num sítio, mas explorado por todas. Porque não estou a ver todas as coletividades, por exemplo, a adaptarem as suas instalações a uma pequena danceteria, equipada convenientemente com os psicadélicos e tudo isso, mas é possível pelo menos fazer uma que funcione por todos, com o conjunto de todos. Mas, aliás, quase todas as coletividades teriam condições para fazer um pequeno espaço, porque hoje as danceterias levam muita gente. P: Mas não acha que, e voltando um bocadinho ao que tem estado a sublinhar ao longo da sua história, da ligação que havia entre a participação das coletividades e a intervenção política, que essa dimensão, essa ligação também faz parte da identidade das coletividades e que também é muito essa dedicação dos dirigentes também é muito por vocação política, ou seja, também é uma motivação política? Francisco Duarte: Sem dúvida. Agora nem tanto, mas houve uma época em que os partidos políticos disputavam acerrimamente as direções das coletividades. Havia e continua a haver ligações das coletividades à política, sem dúvida nenhuma, e à atividade política. Agora, vamos lá ver, as coletividades hoje são frequentadas por muito poucas pessoas, por pouca gente. E nalguns casos, gente já de uma certa idade também, com um nível cultural muito abaixo do que era desejável. E que o interesse deles é estarem ali a beber uns copos e a coletividade passa muito tempo despercebida, completamente despercebida. Posso estar completamente enganado, mas eu penso que para levantar tem de haver alguém, como eu dizia, com a força capaz de organizar, de coletividades terem a mesma vontade no sentido de algumas organizações, organizações com o vulto, que marquem e que possam durar vários anos, desejadas pelo próprio público. P: Mas diga-nos lá, das suas realizações, daquilo que realizou, há bocado estava a dizer que tem realizações que o marcaram. Quais é que foram aquelas que foram mais marcantes? Francisco Duarte: E eu devo dizer-lhe que a mais marcante foi esse concurso de fado e foram os vários bailes que nós fazíamos alusivos a qualquer coisa. Fazíamos o Baile da Primavera, por exemplo, e o salão era decorado, tanto o chão como as paredes, com flores da mata. Com mulheres que, voluntárias, que depois também conseguiu-se criar-se um grupo de mulheres que trabalharam imenso. Ainda hoje trabalham em muitas coletividades. Na minha, digamos assim, também acontece ainda isso. P: Quando é que elas começaram a participar mais? Francisco Duarte: A partir da década de 80, no caso da minha coletividade. Nas outras, na grande maioria, foi um bocadinho mais tarde. Mas aquela coletividade que também tinha umas instalações mais amplas, digamos assim, e onde se podiam realizar mais coisas e havia mais gente também, porque é o lugar do concelho com mais gente. Tem 7000 habitantes, 7000 habitantes é muita coisa. P: Como é que elas entraram? O que é que elas vieram fazer? Quais foram as atividades que começaram a desenvolver? Francisco Duarte: Começaram primeiro nos lavores, nas costuras e nessas coisas. Depois compraram, no caso da coletividade da Honra, compraram uma televisão só para a sala delas. Depois começaram também, quando fazíamos os MusicOrdens, por exemplo, eram elas que faziam a cozinha toda e nas festas faziam a cozinha toda. Depois faziam alguns sorteios para passeios delas. Tinha uma atividade ali que ajudava muita a coletividade. Ajudavam muito o grupo de teatro, era de lá que vinham as costureiras, era de lá que vinham as ajudantes das costureiras, tudo isso. Não tiveram assim realizações de grande vulto, tinham aquela presença delas, que era importante. Eu acho que iam à coletividade quase todos os dias, juntavam-se ali nas suas conversas, enfim, algumas a costurar e outras não. P: Faziam parte dos órgãos dirigentes? Francisco Duarte: Muitas fizeram, mas isso já a partir da década de 90. Houve quase sempre mulheres na direção. Ainda hoje há, mas numa percentagem – salvo raras exceções –diminuta. Só houve aqui há uns dez anos, talvez, que era uma direção só praticamente de mulheres. Mulheres não, de raparigas, digamos assim, raparigas muito jovens, ainda muito jovens. É a direção de que eu me lembro que teve mais mulheres, creio que foi essa, creio que na década de 80, já não posso precisar, ou de 90. P: Fale-me também um bocadinho da sua participação sindical. Disse-me que ainda antes do 25 de Abril foi para o sindicato, ainda o sindicato corporativo, o sindicato nacional. Como é que entrou? Francisco Duarte: Entrei em 1971, mas aí era delegado sindical. Então íamos às empresas ver o que é que se passava. Na maioria dos casos éramos escorraçados, especialmente quando íamos ali ao Bombarral tentar ver quem eram os aprendizes que trabalhavam nas oficinas sem terem idade. Os próprios operários chegaram a escorraçar-nos, como nos fizerem em Pombal uma vez, por exemplo. Era mais nessa área que trabalhávamos, a de levarmos os problemas à própria direção do sindicato, com reivindicações já salariais, com reivindicações de férias. Porque eu comecei a trabalhar, para ter direito a férias tinha que trabalhar, já não me lembro, mas era uma série de anos para ter 8 dias de férias. Pronto eram essas reivindicações todas, foi-se massacrando, massacrando... Era o sindicato metalúrgico. P: E a direção do Sindicato Metalúrgico, ainda era uma direção próxima do regime? Francisco Duarte: Na altura era muito próxima do regime, o presidente era agente da PIDE, agente oficial mesmo… P: E foi assim até ao 25 de Abril? Francisco Duarte: E foi assim até ao 25 de Abril. E portanto, como delegado sindical, foi essa atividade que tínhamos nas empresas. E depois fui presidente da Assembleia Geral, mas nessa altura, o presidente da Assembleia Geral trabalhava com a direção do próprio sindicato. P: Ainda antes do 25 de Abril ou já depois? Francisco Duarte: Depois do 25 de Abril, já depois do 25 de Abril é que eu fui presidente da Assembleia Geral. Mas na altura o presidente da Assembleia Geral trabalhava também com a direção, ia às reuniões e depois, enfim, tinha um dia por semana que era para ir ao sindicato. E aí também desenvolvia atividade sindical nessas reivindicações, marcando algumas manifestações, também visitando novamente as empresas após o 25 de Abril, ainda com muitas dificuldades de conseguirmos entrar nas empresas, especialmente ali na zona das Meirinhas, Pombal e Bombarral. É onde me lembro de termos maiores dificuldades de lidarmos com os problemas. Depois também houve um período em que os metalúrgicos marinhenses tentaram que a direção e as instalações do sindicato que fizeram na Vieira de Leiria viessem para a Marinha Grande. Foi uma Assembleia Geral a que até as peixeiras todas foram, porque não queriam de maneira nenhuma o sindicato fora da freguesia da Vieira. Eu também nunca defendi isso e ganharam, eles ganharam e o sindicato continua lá. De maneira que foi uma atividade sindical muito contrariada, muitas vezes, pelo patronato. Fui de facto sempre muito prejudicado, especialmente a nível salarial, ganhava sempre menos do que os outros. E tive uma vez um patrão que me fez uma proposta de eu abandonar a vida política e sindical, que poderia ser chefe da fábrica. Tivemos uma discussão que ainda hoje está na mente dos dois, certamente. Portanto, ser dirigente sindical, mesmo após 25 de Abril, não era tarefa fácil. Nem eram todos que queriam. Porque éramos discriminados, altamente discriminados, e ganhávamos menos do que os outros. Quando éramos aumentados, era menos do que os outros e tínhamos anos que nem aumentos tínhamos, porque éramos dirigentes sindicais. Eu fui 6 anos, não fui muito tempo, mas foi suficiente para ficar marcado para sempre. Mas, enfim, quem corre por gosto não cansa e sujeita-se a tudo. P: Como é que foi o 25 de Abril aqui na Marinha Grande? Francisco Duarte: O 25 de Abril foi um acontecimento inesquecível para toda a gente. Foi de uma alegria transbordante. Eu estava na fábrica, já eram 7 horas e 15 minutos quando soubemos. É evidente que a fábrica parou imediatamente, viemos todos para a rua, nem sabíamos bem o que é que tinha acontecido, uma coisa brilhante. Depois, no 1.º de Maio seguinte então, na Praça Stephens, foi uma coisa inesquecível, eu nunca vi na minha vida tanta gente junta. Eu sei lá, aquilo era gente a perder de vista. Era nas ruas todas que davam para a praça e na praça, no 1.º de Maio ainda mais que no 25 de Abril. Mas foi de facto um acontecimento que nos marcou a todos da maneira indelével. Ainda hoje, quando falamos disso, sentimos a emoção do que foi. Porque eu ainda vivi 37 anos no salazarismo. É, enfim, as dificuldades por que passámos, aquela esperança que nasceu com o 25 de Abril, aquela perspetiva de uma sociedade mais justa… No meu ponto de vista, infelizmente, não tão justa como gostaria. Mas, enfim, cá estamos. P: Como é que isso se viveu nas coletividades, mesmo aqueles meses do PREC? Como é que isso foi dentro das coletividades? Francisco Duarte: Não se sentiu muito nas coletividades. Não me recordo bem, mas passou um bocado ao lado das coletividades. Não houve assim grandes movimentações, a não ser algumas reuniões em que pediram as instalações para o efeito, de grupos políticos. P: Mas não se abriram oportunidades para novos tipos de realizações? Não se participou naquelas organizações populares para o saneamento básico? As coletividades não estiveram envolvidas nesse processo? P: Tiveram, de certo modo. As coletividades estiveram envolvidas em quase todo o processo político que se desenvolveu, porque as coletidades foram sempre espaços onde qualquer coisa que se organizava tinha de funcionar. Agora, em muitos casos, as próprias direções das coletividades alheavam-se um bocado dos problemas. Eram mais movimentos de associados e não associados, que se reuniam naquelas instalações para algumas realizações. Mas numa grande parte dos casos, as coletividades estavam um bocadinho ao lado. Agora, as próprias coletividades depois tiveram a sua atividade após o 25 de Abril, que já era de facto uma atividade mais, com uma perspetiva de sociedade diferente. O movimento teatral foi de uma importância muito grande depois do 25 de Abril. Fizeram-se imensos espetáculos com uma perspetiva política muito diferente. P: Como por exemplo? Francisco Duarte: As peças de teatro que escolhíamos eram sempre de autores que tinham um cariz político muito. No início de qualquer espetáculo de teatro, íamos apresentar a razão pela qual aquela peça ia ser apresentada, o seu cariz e, enfim, o que podia influenciar na vida das pessoas. Porque as pessoas também não tinham muita capacidade de absorver o conteúdo da própria peça. E havia então esse procedimento: alguém apresentava a peça antes de se iniciar os espetáculos e havia alguns ensaiadores, eu conheci alguns, que quase contavam a peça toda, e era bom para alguns porque, tem de se reconhecer que muita gente que ia ver peças de teatro que saía de lá quase na mesma. Não percebiam muito bem a mensagem. Nesse aspeto foi muito importante. Depois nós não tínhamos também a possibilidade, do ponto de vista político, de recrutar muita gente, porque as pessoas também não aderiam muito, queriam espetáculos populares. Qualquer espetáculo que nós realizámos na coletividade, não há comparação com os espetáculos de revista à portuguesa que nós fizemos. Nós fizemos quatro revistas à portuguesa, revista popular portuguesa, e, aí sim, do ponto de vista político isso era saliente. O conteúdo dos próprios sketches era marcante. Nós fazíamos uma peça de teatro e marcávamos logo dois espetáculos, numa casa que levava entre 450 e 500 espetadores. Mas quando era uma revista à portuguesa tínhamos de marcar quatro, porque tínhamos a garantia de quatro espetáculos certos de casa cheia. Portanto, as pessoas, também do ponto de vista político, viveram aquela euforia, aquilo tudo, mas não foi muita gente a aderir a movimentos e realizações. Isso ficou ainda com as pessoas politizadas que já vinham de trás e foram depois ganhando ou conseguindo ganhar alguns para alguma realização. P: A Marinha Grande é uma zona com uma grande percentagem da população a trabalhar na indústria, ou seja, com uma tradição do movimento operário muito forte. É quase mítica a história do 18 de janeiro. De que forma é que isso marca as características do movimento associativo? Francisco Duarte: Marca porque os inconformados do ponto de vista político frequentavam todas as coletividades e expressavam a sua vontade de mudar, de as coisas melhorarem. E o povo da Marinha Grande é um povo lutador, não é por acaso que temos dos melhores níveis de vida do distrito, segundo a última averiguação. Mas, estava eu a dizer, esse espírito de luta e de melhorar a vida nunca desapareceu dos habitantes da Marinha Grande e depois aconteceu um fenómeno importantíssimo. Dois terços da população da Marinha Grande já não são marinhenses. E esses dois terços vieram para cá como os portugueses iam, por exemplo, para a Alemanha, para ganharem dinheiro. Especialmente do Alentejo, muitos alentejanos, muitos ali na zona da Figueira da Foz, e desses lados. Muitos do Tramagal, que vieram para a indústria dos moldes, muita gente de Maceira do Liz, aqui perto, mas enfim, ainda hoje há muitos empresários da indústria dos moldes que são maceirenses. Esse espírito de luta nunca desapareceu da Marinha Grande e ainda hoje se luta. P: Estava a falar dessas correntes migratórias, qual foi o papel que as coletividades tiveram na integração dessas pessoas que chegavam fora? Francisco Duarte: Era uma integração natural, porque era um dos pontos que eles procuravam também para conhecer gente e para terem outro conhecimento do sítio em que viviam. O lugar em que eu vivo, por exemplo, é dos que tem mais forasteiros, há muita gente que não tem nada a ver com a Ordem. Das famílias tradicionais do lugar da Ordem praticamente já não existe quase ninguém. E, então, onde é que era o melhor paradeiro deles? Era a coletividade. Frequentavam a coletividade e aquilo para eles também era novidade, na terra deles não tinham e não tinham tido a possibilidade também de ganharem dinheiro. Eu lembro-me de umas famílias de Lamego que vieram lá para a Ordem e eles diziam: “Oh, senhor Duarte, nós estamos a viver num paraíso” – e eu lembro-me que eles tinham um ordenado miserável na altura, um ordenado muito abaixo da média. Vieram para ajudantes, quando as fábricas ainda trabalhavam a lenha, preparavam a lenha para meter nos gasómetros e tinham um ordenado baixíssimo. Ainda não havia o salário mínimo nacional. Eles diziam-me que a Marinha Grande era a melhor terra do mundo. Eles viam as chaminés e vinham por aí fora e de facto temos uma grande parte das famílias que estão na Marinha Grande – hoje, claro que já têm agora muitos marinhenses, filhos e netos, já marinhenses – são oriundas de muitos lugares do país. P: Parece que há um período de clímax do movimento associativo. Como é que essa memória é passada dos dirigentes mais velhos para os mais novos? Vamos voltar mais atrás, para quando entrou. Como é que os dirigentes mais velhos lhe contavam que era que era o associativismo e como é que deveria de ser o associativismo? Francisco Duarte: A maioria deles não contava nada. Eu, quando entrei numa direção, comecei a ver como é que eles funcionavam. Porque não havia muitos dirigentes associativos com uma perceção da importância que podia ter o movimento associativo na mudança da sociedade. Não se falava, não havia muitos que falassem nesses termos e nessa condição. Havia o tal senhor que eu lhe relatei, o senhor Ilídio Guerra e mais uma meia dúzia, mas esses desapareceram, foram desaparecendo. Depois era mais um espírito de missão de manter a coletividade. Aliás, muitos dirigentes até tinham muito receio da política. Quando se dispensava a coletividade para uma sessão política, mesmo após 25 de Abril, muitos ainda tinham muitas dúvidas em relação àquilo, se devíamos dispensar ou não a coletividade. Do ponto de vista pessoal, eu fui apreendendo o que é que era o movimento associativo, onde é que se podia chegar e o que é que se podia fazer. E como é que eu, da minha parte, transmiti aos mais novos, que eu tive gente muito nova também nas minhas direções? Fui dando essa perspetiva. Mas muitos não assimilaram. Não quiseram saber, tirando raras exceções. Muitos não quiseram saber disso para nada. Portanto, o associativismo é passado naturalmente se as pessoas estiverem disponíveis mentalmente para isso. Porque nós não conseguimos convencer ninguém: “Tu vens para o movimento associativo porque o movimento associativo pode contribuir muito para alterar a própria sociedade.” Não se fala muito nesses termos, fala-se mais do progresso da própria coletividade. Independentemente de, atualmente, eu no meu ponto de vista as coletividades fazerem muito pouca coisa. Eu também sou um bocado contra as coletividades que estão a tornar-se instituições de solidariedade social. Primeiro, não têm condições para isso, não têm a tendência, e depois perdem aquele significado de uma coletividade de cultura, desporto e recreio. Não quer dizer que as coletividades que estão a enveredar nesse sentido que estejam a fazer um mau trabalho à sociedade. Mas deixam de ter aquele carisma de coletividade que havia e que caminhava mais para a mudança da própria sociedade. Acham que estão a desenvolver um bom papel, que estão a prestar um bom serviço à sociedade, nalguns casos nem é de tanta qualidade como isso, deixa muito a desejar. Mas ficaram por ali. E também por isso muita atividade das próprias coletividades vai decaindo. Isto independentemente de eu continuar a considerar que o movimento associativo atravessa um momento difícil. E é preciso cabeças pensantes para alterar este tipo de situação, mas tem que ser em conjunto, eu não vejo do outro modo. Não podemos individualizar e fazer coisinhas a nível de escola. Independentemente das próprias coletividades terem a sua atividade, é importante começar a haver realizações em conjunto, de grandeza, que deem que falar. E se as coletividades em conjunto conseguirem três ou quatro realizações anuais com essa grandeza, o movimento associativo passa a ter mais aderentes, passa a ter mais gente interessada. E pode não vir interessada, pode não vir com o pensamento no avanço do associativismo em todas as vertentes, mas vai-o ganhando. O associativismo é, para mim, de uma importância fundamental. Não é por acaso que o país teve mais de 20 mil coletividades e mais de 200 mil dirigentes associativos. Por isso, o associativismo é de uma importância fundamental. Agora eu diria, num derradeiro apelo: temos de salvar o associativismo e temos de ser suficientemente inteligentes para o salvar, porque se o associativismo vai cada vez tendo menos esforço. Eu acho que nesta coletividade, por exemplo, está-se a fazer um trabalho razoável. Mas ainda não é o que devia. Porque deviam ser desenvolvidas mais atividades que fossem da própria coletividade. Porque alugar espaços para Costura e Bordados e trazer umas companhias de teatro que, por sua própria conta, vão fazendo alguns espetáculos… O que eu gostava de ver aqui era um grupo de teatro da Cumeeira, um grupo de teatro com força, que se impusesse com peças, com coisas boas. O que falta aqui é um cérebro na própria direção, que avance com essas coisas, porque eu digo-lhe com toda franqueza e sem nenhuma atitude de sobranceria: na coletividade da Ordem houve homens que souberam fazer as coisas, mas foram desaparecendo. Mas não houve ninguém que aprendesse aquilo… Eu escrevi, fui autor e encenador de uma revista à portuguesa, de um Bate Bate, Coração, o grupo tinha 30 pessoas. Se eu não morri naquele período, não morro mais, porque era um trabalho extenuante. Porque também não tinha gente preparada para me ajudar, porque se tivesse... Eu tinha era muita gente no grupo que fazia teatro, porque fazer teatro era bonito e as pessoas batiam palmas e ficavam todos inchados. Mas tinha uma grande parte dos atores amadores que todos os dias de ensaio me faziam a mesma pergunta: “Como é que eu vou daqui para ali? Como é que ponho o braço para cima quando estiver a fazer o discurso de Presidente da Câmara?” Então, para quem tem a responsabilidade de ensaiar uma revista, de ver as marcações, de ver isso tudo… Era um grupo de 30 pessoas, todos os dias a fazer as mesmas perguntas, e eu não tinha ninguém em quem delegar alguma responsabilidade. Portanto, estas coisas são difíceis. É aqui que eu penso que as câmaras deviam ser ganhas para nos poderem fornecer alguém do ponto de vista intelectual, do ponto de vista cultural, que nos desse uma ajuda quando estes espetáculos aparecem. Agora eu quero dizer o seguinte, não aparece muita gente nas coletividades para fazer isso. E, aliás, esta coletividade tem esta vida toda e tem este esplendor, que para mim tem de facto aqui umas instalações magníficas, graças ao sacrifício de um homem que está aí há tem não sei quantos anos. Quando ele for embora, como é que isto vai ser? Como é que as coisas vão ser? Pronto já se enveredou por outras coisas, alugar os espaços e fazer uns pequenos-almoços, fornecer uns pequenos-almoços. Ter praticamente uma taberna a funcionar também, que há umas sociedades em que as pessoas se juntam para beber do seu copo, mas às vezes são grupos de 15, cada um paga a sua rodada, portanto, fazendo as contas, cada um bebe 15 copos de vinho. São gente que não tem condições para pensar o que quer que seja a não ser ir à coletividade beber um copo. É uma situação muito difícil. Nós temos de reconhecer, independentemente de sermos o mais positivos possível em relação ao associativismo, temos de reconhecer que o associativismo nestes últimos anos tem vivido anos muito difíceis, muito complicados e, no meu ponto de vista, por falta de capital humano. Temos de alterar o panorama. Isto tem de ser alterado, senão morre. Eu já um outro dia disse, se eu hoje fosse novo e se pudesse ter a possibilidade de vender esta coletividade, vendia. E fazia-a de outra maneira. E hoje ia adaptá-la à juventude e ia haver discotecas e ia haver tudo. Não tenho dúvidas nenhumas. Eu, hoje, se tivesse condições de fazer uma coletividade de novo, eu não fazia nada disto que está aqui, estes salões, estas coisas. Isto já passou, acabou. Os grandes bailes, em que era preciso um salão enorme, isso acabou. Portanto, há que adaptar as instalações, há que pensar o movimento associativo, mas pensar com o sentido que dá muito trabalho e custa muito e tem de se perder muita noite e tem que ser inteligente à força para alterar o panorama, porque senão... Aliás, a senhora vai entrar hoje em qualquer coletividade a esta hora, tirando o Sport Operário Marinhense, que tem um bar alugado, um bar de alto luxo alugado, em que o associado da coletividade vai lá, cá fora paga por uma cerveja 1 euro e lá paga 2. Mas é a única coletividade que certamente a senhora vai visitar a esta hora e tem lá muita gente e muitos jovens também, porque é o tal elitismo, se assim se pode chamar. Mas vai às outras coletividades e estão meia-dúzia de gatos sentados a ver a televisão, outros a jogar às cartas E pouco mais. E da parte das direções, conformismo total. Eu também antes dizia, quando era presidente da Junta: “As direções, só para manter espaços abertos, já merecem um subsídio.” Eu era da opinião que o poder local devia pagar, e já aconteceu, pelo menos a água e a luz às coletividades, porque de facto, abrir a coletividade e estar lá já é importante, mesmo que não vão 10, vão lá 5, umas vezes vão mais, outras vezes vão menos, mas é um espaço importante e tem muito a ver com a vida do próprio lugar. Porque ali fizeram-se grandes amizades, fizeram-se casamentos, fizeram-se batizados, aconteceu muita coisa nas coletividades, que diz respeito às pessoas do próprio lugar das coletividades. E as próprias coletividades ajudaram muito a desenvolver as famílias. É por isso que também existe ainda hoje aquele bairrismo antigo, que muitas vezes não deixa levar a que haja união para realizações mais ousadas. P: Muito bem.