Uma Pandemia, o teletrabalho e a mãe vilã
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Uma Pandemia, o teletrabalho e a mãe vilã
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Em Janeiro, pouco sabia sobre ela. Em Fevereiro, a OMS apelava à calma, à medida que chegavam notícias preocupantes da China. Itália e Espanha participavam ainda despudoradamente em competições desportivas internacionais.
Estavamos pois em março e os ecos timidos de uma doença perigosa e mortal oriunda da China tornavam-se gritantes.
De repente, os acontecimentos precipitaram-se. "Ficar em casa" e "isolamento social", eram as palavras de ordem. Era obrigatório "interromper as nossas vidas normais". O custo de uma recusa seria demasiado pesado como, ainda à data de 16 de maio, nos boletins epidemiológicos da DGS se percebe.
Regressara há pouco tempo ao trabalho. Havia sido mãe e custava-me afastar da minha cria quando tinhamos estado aqueles belos meses juntas 24h/7s, a conhecer-nos uma à outra e a criar aquele vínculo indestrutível, mas ansiava por uma rotina diferente. Por horários para apanhar transportes, por contraste aos horários dos biberões. Apanhor sol, caminhar, socializar, transitar no papel de mãe ao invés de o vestir a toda a hora.
A primeira semana em casa após aquelas declarações do 1.° ministro foi um choque. A possibilidade do teletrabalho sempre foi real mas nunca tinha sido implementada a 100%. Não nestas condições. A verdade é que me senti um pouco perdida. Não por que faltassem orientações da direção ou o apoio dos colegas fosse deficiente. Tão simplesmente porque não havia o hábito. Tive de me habituar a sentar em frente ao PC e não me levantar a correr de cada vez que a bebé chorasse. Sim, porque os pais ficaram em casa e ela que ia já entrar dentro de dias numa creche também.
Decidiram e bem, a meu ver, que as creches e escolas estariam encerradas até 19 de abril, sujeito a nova avaliação consoante a realidade dos números de infetados em Portugal. Assim, pelo menos mais um mês podia estar com ela, junto de mim, enquanto entrava em pleno na força de trabalho. Como viriamos a saber os sucessivos estados de emergência eliminaram essas e outras possibilidades de deslocação.
No meu posto, que inclui uma mesa formal de jantar, ladeada por um móvel cheio de coleções de livros e merchandise de coisas que nós pais apreciamos, a vida não estava fácil: o meu portátil faleceu ao fim de uma semana. O meu Asus guerreiro de 2,8 kilos, que tantas vezes subiu a 8a colina, viu trabalhos de licenciatura e mestrado e, por que não dizê-lo, dislates, faleceu. Tive de ocupar o posto de trabalho do meu companheiro até chegar o notebook em que já estava de olho há demasiado tempo. Entretanto, aconteceram coisas fantásticas: por via do impensável, iniciativas foram criadas, eventos sucederam, ferramentas de que antes tinhamos meros vislumbres tornaram-se nossas amigas. A camisola já estava vestida, era só arregaçar as mangas. Zooms, webexs, entre outros, já não são o futuro mas o dia-a-dia. E as reuniões menos densas e as análises mais objetivas: não era necessário mais do que discar um número ou enviar um e-mail. Surgiu um dinamismo na sociedade que espero que não se desvaneça no desconfinamento. Pelos entermeios fiz reuniões enquanto balançava uma princesa adormecida na espreguiçadeira, telefonemas enquanto lhe dava sopa e mails enquanto a vigiava no monitor de bebé. Não foi fácil e momentos houve em que me questionei se estava a dar o meu melhor em todas as frentes. E perguntava-me e ainda não sei, se ela não estranhava estar com a mãe sabendo que não possuia o monopólio da sua atenção, se ela se apercebia que não saía de casa e que não via os avós há quase dois meses. Sentia-me e sinto-me culpada. A vilã que para a proteger, a fechou em casa.
Hoje a discussão gira em torno da reabertura das creches: será cedo demais? As regras serão demasiado restritivas? Vejo mães, com quem mantenho alguma proximidade refugiar-se na certeza de uma ama. "Mas as amas não são obrigadas a fazer testes de despiste da COVID-19" digo eu. Encolher de ombros. Relembram-me as declarações de há dias sobre as recomendações da DGS serem impraticáveis, quiçá uma “tirania para o desenvolvimento das crianças”. Reflito. Tenho lido entrevistas sobre a saúde mental dos portugueses em tempos de confinamento, tenho visto estudos (diversos até), webinars - assim de repente, lembro-me de dois. Tudo pertinente e interessante mas com pouco enfoque no impacto sobre os pequeninos. E vou olhando para a pequena que embalo junto ao peito e penso que ela pertence à geração COVID-19 e um dia vou-lhe explicar como, em nome de uma doença perigosa da qual pouco sabemos, para seu bem, ficou fechada 2 meses em casa, sem ver outros meninos e sem aprender com o ambiente fora da segurança da sua casa.
Lisboa, 16 de maio de 2020
Ana Rita Santos
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Sintra
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16
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Maio
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2020
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Este item foi submetido em 13 de julho de 2020 por Ana Rita Sousa Santos usando o formulário "Conte a sua história" do site "Memória COVID": https://projetos.dhlab.fcsh.unl.pt/s/memoriacovid
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