As intermitências da morte
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As intermitências da morte
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Sou médica e trabalho há quatro anos no Hospital de S. António no Porto. Os corredores, centenários, e as suas orgulhosas abóbadas, ecoam quase sempre os ruídos metálicos de uma maca em transporte, dos mais variados carrinhos de transporte de comida ou material médico ou as mais humanas vozes, em conversas, confidências de colegas de trabalho, lamentações de doentes ou familiares, os risos de um encontro fortuito com quem no mesmo edifício trabalha mas tão raramente se encontra.
Durante a quarentena, os corredores foram privados de ruído, a tensão palpável o abafava, os tectos altos pareciam tão eminentemente próximos, tão sufocantes e ameaçadores. Já ninguém ousava falar, a máscara abafava a voz mas os olhos passaram a cumprimentar, reconhecer e transmitir a ansiedade do desconhecido, do que aí vem, do que víamos todos os dias. Nesta foto, num corredor vazio, encontrei uma maca; os metálicos últimos leitos daqueles que ao vírus sucumbiram; esperava, em silêncio sepulcral, respeitoso por quem, envolto em mortalhas várias, sairia para o seu último destino. E, perto, o cansado barqueiro; olhando o infinito, de mãos enluvadas e fechadas, temendo o toque na moeda.
Os que partiram, morreram solitários,ermos, ensurdecedoramente silenciosos; o Vazio do corredor como guarda de Honra, o bradar metálico da maca o cortejo fúnebre de quem ao Pó voltou sem ninguém sobre ele derramar a saudade.
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Porto
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10
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Abril
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2020
- Conjuntos de itens
Este item foi submetido em 16 de julho de 2020 por Diana Sofia Borges Duarte usando o formulário "Conte a sua história" do site "Memória COVID": https://projetos.dhlab.fcsh.unl.pt/s/memoriacovid
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