Criadas de Servir vs Donas de Casa - Debates Parlamentares

Item

Título do recurso

Criadas de Servir vs Donas de Casa - Debates Parlamentares

Autor

Assembleia da República

Data

25 de janeiro de 1952

Local

Assembleia Nacional - V Legislatura

Editora

Debates Parlamentares- Diários da República - Catálogos Gerais disponíveis em:
https://debates.parlamento.pt/catalogo/r2/dan/01/05/03/126/1952-01-24?sft=true#p282

Páginas

páginas 176 a 182

Descrição

Criadas de Servir vs Donas de Casa – extracto do Debate Parlamentar levado a cabo na Assembleia Nacional, V Legislatura, no dia 25 de janeiro e registado no DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 126, p. 282:

No dia 25 de janeiro de 1952, a ordem de trabalhos da Assembleia ordenava que se discutisse a proposta de Lei do Condicionamento das Indústrias. Tomou a palavra o Professor Délio Santos (deputado à Assembleia Nacional) que optou por vir dar o seu contributo do ponto de vista da entidade social dos consumidores, já que, nos dias anteriores se tinha discutido o ponto do vista dos industriais, e também o dos agricultores. Antes de avançar propriamente no problema, Délio Santos mostrava-se preocupado com a seguinte questão: “Confesso que sinto um grande pesar quando entro numa loja, numa boa mercearia de Lisboa, e olho para os escaparates e verifico que eles estão cheios de produtos estrangeiros que nós poderíamos preparar e fabricar e pôr ao alcance do consumo nacional. Verifico ainda mais o seguinte: que um grande número de pessoas compra produtos estrangeiros havendo a possibilidade teórica de os comprar nacionais, se eles fossem produzidos em idênticas ou melhores condições económicas e outras. Do trigo e de outros cereais, por exemplo, não se prepara só o pão, podem-se preparar muitos outros produtos, alguns muito mais ricos de valor nutritivo do que o pão fabricado entre nós ou daquilo que a lavoura poderá fabricar, e de melhor uso doméstico, por se prestarem a variadas, cómodas, agradáveis e higiénicas combinações culinárias.” Isto é, o deputado começa por revoltar-se contra o que poderíamos já chamar as núpcias da globalização dos mercados do consumo, nas quais o protecionismo dado ao produto nacional já não conseguia impor-se sobre os demais. E é então que, sem mais intervalos, se desenrola nas palavras do orador a seguinte reflexão publicada na imagem em anexo.

(…)
O Orador: “Hoje em dia há um problema doméstico, complicado na sua resolução, que é o trabalho das donas de casa pela falta das criadas de servir, que tendem a desaparecer ou são de péssima qualidade. Portanto, a dona de casa ou se transforma em criada de servir da família ou procura ter ao seu alcance meios que lhe facilitem a resolução das necessidades domésticas.
O Sr. Mário de Figueiredo: - A teoria de V. Ex.ª acaba no restaurante. Em vez da cozinha cozinhada em casa acaba-se por comprar a cozinha lá fora. É a última expressão do individualismo.
O Orador: - Mas o que eu pretendo evitar é que se vá para o restaurante. Como resolver o problema de uma dona de casa com muitos filhos e sem criados?
O Sr. Mário de Figueiredo: - As condições económicas gerais de ocupação fora de casa para todos é que têm levado à completa desintegração da família. Ou vai ao restaurante cada um dos membros da família por si, ou vai a casa cozinhar o ovo que se recebe da mercearia, em fogões com tempo e temperatura marcados automaticamente, ou come qualquer coisa enlatada que da mercearia vai também. V. Ex.ª está convertendo a cozinha familiar num restaurante!
O Orador: - Mas é precisamente o contrário para o qual me proponho chamar a atenção de VV. Ex.ªs Apontei factos, não apontei teorias.
O Sr. Mário de Figueiredo: - Se eu falei da teoria de V. Ex.ª queria aludir naturalmente ao pressuposto que está na base das suas considerações. Atrás delas há-de estar um certo princípio.
O Orador: - Não há princípio algum pressuposto; ou melhor: se tiverem de ser estabelecidos esses princípios, devem sê-lo depois de conveniente análise, e não serão esses que V. Ex.ª afirma.
Desaparecendo esse instrumento de trabalho que são as criadas de servir, e V. Ex.ª não pode impedi lo, vamos aliviar o trabalho da dona de casa, como trabalhadora, ou vamos torná-la escrava?»

Délio Santos retoma uma questão comum em vários espaços da opinião pública portuguesa que e era o de existir um problema de transformação na sociedade portuguesa fruto do desvanecimento da existência de uma criada de servir que libertava e emancipava a mulher para o trabalho, ou mesmo uma vida ociosa. E o espanto era proferido desta maneira: “Como resolver o problema de uma dona de casa com muitos filhos e sem criados?”- “Desaparecendo esse instrumento de trabalho que são as criadas de servir, e V. Ex.ª não pode impedi lo, vamos aliviar o trabalho da dona de casa, como trabalhadora, ou vamos torná-la escrava?»
O mote está precisamente na última pergunta porque reflete um caso exemplar da questão de classe subordinada à questão de género. A pergunta podia ser feita naqueles moldes porque era dirigida à mulher de classe média e média-alta – e apenas a estas - e não a famílias proletárias camponesas e industrias, aliás, cujos índices de número de filhos eram bem superiores. E, sim, contra toda a fantasia das criadas de servir como trabalhadoras libertas do anátema da venda do trabalho numa relação pré-capitalista, aqui estava: a servidão configurada como a naturalização da instrumentalização do seu corpo e esforço ao abrigo de uma relação não contratualizada.

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