Imagens e Discursos
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Imagens e Discursos
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'A realidade em preto e branco (ou era uma vez no clube Pinheiros...)'
O cartoon de Daniel Kondo ilustra uma mulher racializada a empurrar um carrinho de bebé, sendo que esta pode ser identificada como “babá” através das suas vestes brancas. O seu uniforme confunde-se com a cor da parede, tornando o seu corpo invisível, em contraste com o carrinho e o próprio bebé, que se destacam no meio da imensidão branca da imagem. Este cartoon acompanha a notícia do jornal BBC News Brasil que, em junho de 2015, publicou uma reportagem sobre a opinião das “babás” acerca da utilização de uniforme branco na sua profissão. Apesar de atualmente o debate parecer ter cessado, este é ainda um tema presente na vida de muitas “babás”. No seio das trabalhadoras, várias afirmam que a utilização de uniforme é algo “natural”, que faz parte da sua profissão. Em oposição, outras defendem que este é um elemento de distinção social que perpetua um discurso discriminatório. O próprio branco do uniforme, apesar de associado à ideia de pureza e higiene, evidencia a sujidade na roupa, humilhando quem é obrigado a usá-la, enquanto invisibiliza a sua individualidade. Mais que uma peça de roupa, “o uniforme deixa claro que você é serviçal. Serviçal é serviçal. Patrão é patrão. A roupa nos marca”, tal como afirma Silvana Félix ao BBC News Brasil. (item concebido por Joana Santos Baptista) -
"A criada penteia a sua senhora"
Imagem gentilmente disponibilizada pelo Arquivo Fotográfico de Lisboa. No seu acervo, esta imagem está disponível com o código de referência: PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002275 -
"Alforria de um Escravo no testamento de Pedro Alves Barradas"
No âmbito da Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação 2018-2030 “Portugal +Igual”, o Arquivo Distrital de Portalegre disponibilizou o testamento cerrado de Pedro de Alva Barradas onde menciona a alforria de um escravo, na condição de casar com Lucrécia, escrava negra, também alforriada. Esse documento, na versão integral, pode ser consultado aqui: https://adptg.dglab.gov.pt/2022/10/03/alforria-de-um-escravo-com-condicao-de-casar-com-lucrecia/ Documento parcialmente transcrito por Ana Luísa R. Moreira (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, UNL): "Em nome de Deos amen e da Santissima Trindade padre, e filho e spiritto tres pessoas e hum so Deos uerdadeiro, eu Pedro de Alua Barradas estando são? e con todo o meu juizo e entendimento mas temendo a morte e por não saber quando nosso senhor sera seruido de me leuar por esta ser a todos inserta fasso e ordeno este meu testamento ou codecilho qual qual [sic], em direito melhor lugar haja pella maneira seguinte Primeiramente encomendo minha alma a Christo senhor nosso que a crio e remio com seu precioso sangue e pesso a sua deuina mai e senhora nossa seja pera com elle minha aduogada e a uos? santos Apostolos S Pedro e S Paulo e todos os Santos e Santas da Corte do Ceo entrecedao por mi . Mando que tendo Deos seruido de me leuar da uida prezente meu corpo seia amortalhado no habito de S Francisco e enterrado no conyento desta Villa na sepultura a onde estão enterrados meus pais e sendo horas? nesse dia, ou no seguinte me dirão hum oficcio no mesmo conuento offertado com des alqueires de trigo sinco almudas de uinho e meia duzia de queiios e hum carneiro e na minha freguezia outro officcio offertado na mesma forma e todos os padres que nos tres dias primeiros de meu falesimento quizerem dizer missa pella minha alma se lhe dara de esmola a oitenta reis . Manda acompanhem? meu corpo todas as confrarias desta Villa pella esmola? / [f. ??] Costumada ainda que seia irmão dellas e assi mais mando que meu corpo seia leuado na tumba noua da misericordia e sendo horas? esteia?? nella as uesperas, e não o sendo ao officio e se lhe dara a escolla cotumada Mando se de aos pobres des alqueres de trigo amassado e dous mil reis em dinheiro e uinte me acompanhem com uinte uelas a sepultura a onde estarão as esporas ou/ao? officio darão meio tostam a cada hum. Mando que uistão doas/dous? pobres dous machos e duas femeas dando lhe a cada hum casaquuo? caluez?? meias e chapeo e as femeas saia e iubão ___ atilhos. Mando me acompanhem os padres da senhora da Estrella e lhe darão sua uella e de esmola quinhentos reis a cada hum e uindo a tempo que digão missa se lha dara a escola de oitenta reis e para a comoridade? des alqueires de trigo e deixo mais outros des alqueires a santa casa da misericordia pera os pobres deixo mais me cantem athe a sepultura sete respo ____ e me lembrarão os cinos? das tres freguezias Deixo Deixo [sic] me digão pella minha alma as tres missas da Rainha D. Catarina e mais sincoenta missas Deixo pella alma de meu pai e minha mai quarenta missas e dous trintarios?? e pella alma de meu irmão Francisco de Alua quarenta missas e pella alma de minha molher Antonia Mendes sincoenta e mais dous trintarios serrados de S Amador? e pella minha seis tambem de S Amador ., (paragrafo?) e por encargos de que não sou / [f. ??] (coisa em cima) sabedor trinta missas e pellas almas do fogo do purgatorio trinta . Mando se de a meu sobrinho Pedro os bois que tiuer e as bestas? com a metade da lauaria?? assim do alqueue?? como de o pão que ouuer sameado e hum moio de pão não cesando com minha uida porque se casar a minha uontade e eu lhe der a per que// porque se cossar?? a minha uontade e eu lhe der algua couza? não tera lugar este Legado , e Declaro que tendo affeitto o ditto lefado e morrendo o ditto Pedro estando ainda enteros i?? bois bestas e alqueue e o mais podera testar delle pella sua alma ou filhos legitimos e não testando ina? o meu erdeiro Deixo mais ao ditto Pedro huma cama dous colchois quatro lensois huma c___ hum cobertor e dous trauiseiros com hum catre uermelho e os cordeiros de caza e hum bufete grande mais tres toalhas de maos duas de meza meia duzia de guardanapos e a sua cama em que dorme e hum arcão com fichadura . Deixo o meu negro liure e lhe darão sua cama e seis mil reis e o uestirão de baetta com condisão que casara com minha escraua Lucresia porque não querendo casar com ella nam ficara liure . Deixo a minha negra Lucresia com sua filha Michaela liures e lhe deixo os seus fatos e cama e hum meio de senteio e des mil reis e deixo a Michaela vinte mil reis em dinheiro os quais tera o Doutor Pedro Viuos? em seu poder para lhos entregar a todo tempo que casar e não casando the idade de dezoitto annos lhos entregara o ditto Pedro Viuos para a ditta Michaela agenciar sua uida com elles e enquanto lhos não Der e tiuer em seu poder lhe dara des tostois a Rezão de iuro pera seu sustento em cada hum anno Deixo a ditta Michaela huma carcha?? da terra noua? que esta en caza dous trauiseiros e dous lensois e hum colcham e huma esteira e hum uestido com sua mantilha e outro uestido a mai e mantilha Deixo mais as minhas casas da Rua do ?? para uiuerem nellas a ditta Lucresia e Michaela ficando de huma a outra e per sua morte? de ambas se anexarão a minha cappella que neste testamento hei de fazer e lhe darão para ornatto e seruisso de sua casa alguidares e bancos e toda lousa hum tacho e huma baua____? sendo a grande? e sua almofada e bilras e hua [sic] arca de pao e dous espettos e tempre e hum colcham e dous lensois e huma manta e chumato e assi mais leh deixo a michaela huma terra que se chama ao curral dos Bofes e tendo filhos a ditta Michaela de legitimo matrimonio lhe ficara a terra para sempre e a podera uender e assi mais se lha dara a ditta Michaela uinte alqueres de trigo Deixo a minha afilhada jsabel filha de Antonio Vas Bello des mil reis . …" -
"As corridas dos criados de café"
Em 1933, o Luna Parque fechou o ano com chave de ouro: a realização das “Corridas de criados de café”. Nas notícias publicadas sobre o evento entre os dias 27 e 30 de outubro, acreditava-se, e comprovou-se, que estas corridas iam ser um êxito, atraídos que seriam os populares para a realização daquele evento organizado pelo próprio jornal Diário de Lisboa, a Associação de Classe dos Empregados na Indústria Hoteleira e Profissões Anexas e o patrocínio de diferentes estabelecimentos do ramo hoteleiro. O Diário de Lisboa criou este “espectáculo inédito e festivo” como uma forma de homenagear aquela “classe útil e simpática”. As provas eram cronometradas por técnicos de desportos atléticos. Podiam candidatar-se à disputa dos troféus os empregados de mesa dos cafés, hotéis, restaurantes, casas de pasto e vacarias. No dia destinado à realização das primeiras provas, compareceram algumas dezenas, todos “de traje irrepreensível.” Na primeira prova, ganhavam aqueles que vertessem menos líquido fora das chávenas e copos de água, transportadas em bandejas. A segunda prova testava o “serviço aéreo” no “carrossel” dos “zepelins” e era descrito desta forma: “nos bancos suspensos, a par, um criado abria uma garrafa, já com o “carrossel” em movimento, e deitava o conteúdo num copo que outro criado levava numa bandeja, e assim sucessivamente”. Numa terceira e derradeira prova, tinha lugar o “jardim zoológico”(sic): sentado num animal de madeira, cada concorrente tinha que dar algumas voltas, sentado num animal de madeira, com um copo cheio de água, sobre uma bandeja. A esta prova também se chamava «o carrossel dos bichos». Foi a prova mais aplaudida pela multidão. Elencado como uma das recompensas, os concorrentes tinham direito a assistir ao «Poço da Morte» de graça. Dizia-se, já no rescaldo que esta prova tinha sido um espectáculo que fechara brilhantemente a época do Luna Parque. De acordo com a notícia publicada, a prova foi ganha “por um novo e por um velho, respetivamente: Custódio Henrique, de “A Brasileira” que obteve o Grande Prémio do Luna Parque, constituído por um fato completo de “smoking”, a fazer na Casa Africana; e Manuel António Antunes, do Hotel de L’Europe, que ganhou a Taça União Europeia. -
"Assalariadas domésticas: situação a rever"
Em janeiro de 1971, Helena Neves assina um artigo intitulado “Assalariadas domésticas: situação a rever” no saudoso Diário de Lisboa. O artigo “Assalariadas domésticas: situação a rever”, é assinado pela jornalista Helena Neves e o que nos propõe é uma volta ao mundo sobre trabalho doméstico a partir dos dados discutidos no âmbito da Conferência Internacional do Trabalho, em 1965. Helena Neves foi das primeiras mulheres que escreveram na imprensa diária em áreas para além da crítica de arte ou da página feminina e a sua síntese ajuda-nos a colocar algumas perguntas importantes: por que razão o trabalho doméstico diminuiu essencialmente nos países socialistas, quando comparado com outros? Deve existir uma orientação que afaste os jovens das profissões domésticas e, portanto, a formação neste setor não será prioritária ou, por outro lado, deve haver uma especialização como fator de prestígio social para a profissão? Além disso, faz um diagnóstico muito preciso sobre os problemas estruturais que afetavam o trabalho doméstico, à época, e que permanecem por resolver, nomeadamente, a ausência de direito de descanso, a precariedade, a indistinção da carga de trabalho exigida, a feminização, entre outros. -
"Em dia de convidados"
“Criado mudo” e “mesa de serviço”: a produção de distância entre senhores e servos Quão longínqua pode estar a referência a um objeto de uma referência feita a um trabalhador? Tornada hoje um anátema, a palavra “criado-mudo” foi banalizada durante décadas para se referir a um objeto que hoje designamos por mesa de cabeceira. No Brasil, a discussão atingiu um pouco crítico quando se desvendou que a sua origem estava intimamente ligada ao período esclavagista. Era costume os senhores imporem a obrigação de os seus escravos permanecerem junto à cama, de forma a que suprissem as suas variadas e inesperadas necessidades, durante o período da noite. Tendo um escravo a seu lado, para lhe colmatar a sede, a fome ou o frio, o esforço era totalmente transferido para quem o servia, imóvel e calado. Portador desses objetos, e votado ao silêncio durante a vigília noturna, ficava aos senhores garantido o privilégio de uma noite sem sobressaltos. Após a abolição da escravatura, este ato de total de “coisificação” é substituído pela aquisição do objeto “mesa-de-cabeceira” onde passam a ser albergados e depositados esses mesmos objetos de uso noturno. Hoje a palavra foi proclamada non grata, em respeito pela memória dos escravos. Uma discussão semelhante ocorre, cerca da década de 1940, em Portugal. As famílias que contratavam serviço doméstico interno estavam cada vez menos complacentes com a presença dos seus “criados” nos momentos de convívio alimentar, e em particular por ocasião da presença de convidados, uma vez que a sensação de estarem a ser vigiados crescia, como cresciam os receios de que os seus segredos fossem desvelados. E são por isso incentivadas essas mesmas famílias a adquirirem uma peça de mobiliário para as suas salas de jantar, a “aparador” ou “criado mudo”. Em inglês, a palavra “dumbwaiter” tem uma ressonância de significado muito similar, estando mais próxima também de um móvel auxiliar para pôr pratos e talheres. Deixamos uma citação de um artigo publicado na Revista Modas e Bordados, que atesta esta mesma discussão: “Para evitar certas atrapalhações que, por vezes, tem o pessoal doméstico quando há convidados para jantar, é muito prático organizar a chamada “mesa de serviço” onde se encontram, devidamente alinhados, os pratos, travessas, molheiras, talheres, lavabos e todos os utensílios que devam servir na mesa. É de bom critério ter tudo preparado com muita antecedência a fim de não haver depois essas hesitações do pessoal, que motivam, no momento próprio, troca de olhares, ordens em segredo e sinais de entendimento entre a dona de casa que, em vez de atender apenas aos seus convidados, não tira os olhos da criada…” Destes preparatórios, que pouco trabalho dão a organizar, depende o bom seguimento do serviço no decorrer da refeição em dia de convidados e que marca muito no conceito que possa fazer-se sobre a dona de casa. Nada mais desagradável, no decorrer dum jantar, do que a criada abrindo e fechando constantemente os armários e gavetas da sala de jantar porque lhe falta, à mão, isto ou aquilo que deverá pôr na mesa.” In: “Em dia de convidados”, in Modas e Bordados, No. 1738, 30 de Maio de 1945 -
"Grande Hotel no Porto", Revista de turismo: publicação quinzenal de turismo, propaganda, viagens, navegação, arte e literatura, no Ano II- Edição nº 26.
“Todo o pessoal é atencioso e o sorriso bajulativo não se vê na boca de nenhum criado, como também não se veem nódoas de gordura na sua farda.” Foi assim rematado este artigo que dava conta da inauguração do Grande Hotel, no Porto, no ano de 1916, querendo elogiar as práticas de asseio nos códigos de vestuário dos trabalhadores hoteleiros, emanando do seu corpo um sinal conforme à etiqueta de luxo, mas sobretudo um comportamento emocional que não acusasse demasiado servilismo e adulação. No mesmo artigo, o cronista não esquece de enaltecer a ausência de “cheiro a refugado”, então marca da hotelaria portuguesa. Mas a razão deste progresso era menos favorável para os cozinheiros, pois isso significava trabalhar numa cave para evitar a propagação de cheiros nas “zonas nobres.” Em todo o seu luxo, o Hotel esperava assim “receber a alta sociedade portuense” e vê-la em fraternidade com os turistas. A demora na inauguração do espaço devia-se à "maldita guerra" (uma referência à Primeira Guerra Mundial), responsável pelo atraso na construção. O elogio do luxo é permanente, tendo sempre como pano subjacente a adoção de práticas higienistas mais em conformidade com aquilo que “lá por fora” já seria regra. Assim, descreve-se que “o ar é purificado por meio de ventoinhas eléctricas que o renovam constantemente.” -
"La infanta Isabel Clara Eugenia y Magdalena Ruiz"
Pintura a óleo atribuída a Alonso Sánchez Coello. A jovem retratada é Isabel Clara Eugénia, filha de Filipe II. A infanta apresenta na mão direita um camafeu com a imagem do rei, enquanto apoia a mão esquerda na cabeça de uma idosa: trata-se de Magdalena Ruiz, criada da corte espanhola desde o reinado de Carlos V com Isabel de Portugal. Ajoelhada ao lado da infanta, Magdalena Ruiz segura um medalhão e dois pequenos macacos que se crê oriundos da Amazónia. A obra pertence ao Museu do Prado, em Madrid, e integra o itinerário interativo “Los trabajos de las mujeres” disponível no website desse museu. Encontra-se temporariamente exposta no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. Fontes Museo del Prado – https://www.museodelprado.es, La infanta Isabel Clara Eugenia y Magdalena Ruiz, número de catálogo: P000861. Museu Nacional de Arte Antiga – http://museudearteantiga.pt, Obra Convidada – Alonso Sánchez Coello, Infanta Isabel Clara Eugénia com Magdalena Ruiz. Ruiz Gómez, Leticia (2008), “La infanta Isabel Clara Eugenia y Magdalena Ruiz” in El retrato del Renacimiento, Madrid, Museo Nacional del Prado, pp. 404-405. -
"Mãe e Filho, Peregrinos em Fátima"
Mãe e filho peregrinos em Fátima, de Cilínio Fraga, Lisboa, Edições Colibri, 2020. Obra lida e comentada por António Silva (“Nica”) 1. O encontro Numa tarde de sexta-feira, o senhor Celino Neves subiu a íngreme escadaria de pedra e entrou no edifício de dois pisos onde funciona a Divisão de História e Cultura da GNR, em Alcântara, Lisboa. Por insólito que pareça, e devido a uma série de acasos, naquela tarde, eu era a única pessoa a trabalhar na Divisão. O Sr. Celino abordou-me e disse que procurava o processo do seu avô, que tinha sido cabo da GNR, para uma investigação que tentava levar a cabo; que já tinha estado no Arquivo do Exército, que lá lhe tinham dado o número do processo e a caixa dizendo que se encontra no Arquivo da GNR. Já tinha enviado vários e-mails para a GNR, já lhe tinham pedido vários dados, mas como não havia meio de lhe darem uma resposta positiva tinha resolvido “meter os pés ao caminho” e ali estava ele. - Você está com um azar do “caraças”! – respondi-lhe eu, depois de o ter escutado. - Então, porquê? – perguntou, intrigado, o Sr. Celino. - É que hoje não está nenhum arquivista, eu sou bibliotecário, não trabalho no arquivo… Se tivesse telefonado antes… - disse-lhe eu, um pouco embaraçado. Conversa puxa conversa e, a um dado momento, perguntei: - E o seu avô era de onde? - São Pedro da Cova, Gondomar – respondeu de pronto. - Eh pá, mas é a terra da minha mulher, foi na igreja de lá que casámos! – exclamei eu, animado com a coincidência. Em parte devido às recomendações do Chefe da Divisão que pretendia que todos soubéssemos um pouco das diferentes áreas de trabalho, e também por curiosidade e interesse natural, eu conhecia os códigos de acesso ao programa de pesquisa dos processos do arquivo e a forma de ordenação das caixas e processos na infinidade de estantes. - Espere, aqui, que pode ser que o consiga ajudar – disse-lhe eu, dirigindo-me para o interior do Arquivo Histórico. Inseri o código no computador, digitei os dados na pesquisa e esperei pela resposta da base de dados: “Henrique Barbosa da Neves, 1º cabo, N.º processo X, estante Y, prateleira Z”. Dirigi-me apressado para a estante pensando: “vai ser canja!” Passado um bom quarto de hora lá fui ter com o Sr. Celino que me esperava ansioso. - Está perdido, Sr. Celino. O processo está cá no arquivo, está registado na base de dados, mas não está na estante, no local dele – informei-o eu com algum desalento. - “Então era por isso que não me respondiam” – pensou, falando alto, o Sr. Celino – E agora!? - Olhe, agora!? São milhares e milhares de processos, pode estar em qualquer lado. Quando se perde um processo só com uma grande sorte é que se volta a encontrá-lo. Pode ser que, daqui a uns tempos, por um acaso qualquer, se dê com ele no sítio errado e se coloque novamente no lugar dele – expliquei eu. O desânimo era grande no rosto do Sr. Celino que se preparava para regressar a casa de “mãos a abanar”. De repente, tive uma espécie de “iluminação” e disse-lhe: - Tive uma ideia, espere aqui um bocadinho! Passado um minuto ou dois lá apareci, sorridente, com o processo do avô do Sr. Celino na mão. - Aqui está ele! – e li o nome manuscrito na capilha amarelecida pelo tempo – “Henrique Barbosa das Neves”, até tem aqui uma foto dele! O Sr. Celino, muito animado, não parava de me agradecer e, apressado, foi consultar o processo na sala de leitura, onde descobriu que o avô tinha participado na Primeira Guerra Mundial, tendo combatido na Flandres, na Batalha de La Lys, acabando prisioneiro num campo alemão, sendo libertado e regressando a Portugal já muitos meses depois do fim da Guerra. Fiquei de lhe enviar uma digitalização da fotografia do avô, por e-mail, e o Sr. Celino prometeu oferecer-me um exemplar do livro quando publicado. À despedida, ainda continuávamos emocionados com o “milagroso” achamento do processo: - Ó Sr Celino, você até teve sorte, se eu não estivesse aqui, hoje, sozinho, se calhar nunca mais achava o processo. O arquivista ia à prateleira, não estava lá, e pronto … - disse-lhe eu. - É verdade, Sr. António Silva, isto há coincidências difíceis de entender. Em tantos meses, porque é que hoje, quando me levantei, decidi: “ tenho de ir ao arquivo da GNR!” Olhe se não tenho vindo?! Se não o tenho encontrado a si e se não fosse essa sua ideia?… Passado algum tempo, recebi um telefonema do Senhor Celino que pretendia o meu endereço postal para me enviar o prometido livro, acabado de editar. Conversámos, ainda, um pouco: - Já não me lembro bem, Sr. Celino, e como é que eu descobri o processo do seu avô? – perguntei-lhe eu, já esquecido do assunto. - O meu avô era da GNR e o processo não aparecia em lado nenhum, estava perdido. Então, você teve aquela “intuição” e pensou: Será que se enganaram e colocaram-no na ordenação correta mas junto dos processos da Guarda Fiscal. Porque os processos da GNR e da Guarda Fiscal estavam separados. E lá estava ele, encontrámos o meu avô GNR no meio dos Guardas – Fiscais. Foi assim! 2. A biografia Podemos dizer que Leonida de Jesus Vilela (Provesende 1907-Leiria 1991) nasceu e morreu como criada de servir. Embora tenha tido, esporadicamente, outras ocupações, é a condição de criada que a “persegue” toda a vida. Órfã de pai muito pequena, sem irmãos - os cinco que teve morreram antes de ter nascido - Leonida é “sinalizada”, com seis anos de idade, pelo pároco da aldeia onde vive que “negoceia” com um casal abastado, que habita longe da aldeia, e a mãe, a ida da filha para fazer pequenos serviços e companhia a uma menina de oito anos, filha única desse casal. A intervenção do padre teria como objetivo livrá-la da miséria e da fome – mas haverá, para uma criança, “fome” maior que a falta de uma mãe? É, pois, o argumento de uma “vida melhor” que é usado para convencer a mãe a deixar partir a filha para longe de si. De resto, a mãe de Leonida, Genoveva de Jesus, é também uma mulher “marcada” pela doutrina da Igreja e pelo sistema de servidão rural - é filha do “pecado”, pois nasce devido à relação entre a mãe, criada de servir, com o seu patrão, mas este nunca a virá a ajudar nem reconhecer como filha. A propósito dos abusos sexuais nestes sistemas de servidão, e tendo em mente a avó materna, o autor refere: Infelizmente, a abastança de muitos homens faz deles animais irracionais, que ferem, mordem, e matam – umas vezes com palavras, outras com gestos e muitas vezes com atos – a dignidade de muitas mulheres humildes e indefesas contra a alta esfera da sociedade. Sabemos que sempre existiram, ao longo da nossa história, homens com esta índole, muitos deles vindos de classes sociais mais abastadas ou de ilustres famílias com distintas honrarias, que usavam e abusavam das suas serviçais, perseguindo-as como cães famintos, ávidos de luxúria, para satisfazerem os seus prazeres carnais pela calada da noite, ou em qualquer lugar em que a presa não tivesse a mínima hipótese de saída. Em sentido inverso, a necessidade, a fome, ou o medo de perder o posto de trabalho, o garante de pão em cima da mesa, faz com que muitas mulheres se deixem subjugar por esses ilustres e perversos senhores, que têm o poder de passar um atestado de vergonha às mais fracas e humildes, submetendo-as ao juízo da desonra, sempre com a conveniência das leis da justiça da terra, nem sempre cegas, feitas por alfaiates, que as ajustam à medida da pança de cada um desses abutres (Fraga,2020:38). A pequena Leonida acaba por voltar à aldeia, passado alguns meses, porque a menina não simpatizava com ela e a relação entre ambas não deu os frutos que os pais esperavam. Anos mais tarde, já adolescente, é contratada como criada interna por um coronel do Exército e sua esposa, em Vila Real. É dispensada cinco anos depois, quando essa família se muda para Lisboa, regressando a Provesende. Acaba depois por ser contratada para trabalhar no Porto, sendo criada “novamente” da menina que foi fazer companhia quando tinha seis anos, agora professora no colégio das irmãs Doroteias e recém-casada com um jovem engenheiro dos caminhos de ferro. Na cidade do Porto ainda tem alguns esgares de felicidade, na companhia de outras criadas de servir, durante os passeios que dão nas únicas três ou quatro horas de liberdade que os patrões lhes dão aos domingos à tarde. Volta depois para a aldeia para cuidar da mãe, doente com uma pneumonia, e acaba por casar, aos 32 anos de idade, com José Ramos das Neves, um mineiro que passa longos períodos fora de casa. A família, pouco tempo depois do casamento, muda-se para a aldeia de Justes (Vila Real) onde julgam encontrar melhores meios de subsistência. Os dois primeiros filhos de Leonida morrem cedo, com cerca de 16 meses, e, quando engravida pela terceira vez, o marido abandona-a nunca chegando a conhecer o filho Celino (autor desta biografia). Movida por uma fé enorme, e pelo extremo amor ao filho, promete de ir ao Santuário de Fátima agradecer a Nossa Senhora se ele ultrapassasse os fatídicos 16 meses e completasse, com saúde, os dois anos de idade. Sozinha, com o filho ao colo ou à cabeça enquanto dorme, numa espécie de canastra, Leonida vai percorrer os quase trezentos quilómetros que separa a aldeia de Justes de Cova da Iria. Começa a caminhar pela alvorada e, ao entardecer, assim que avista uma igreja ou campanário para lá se dirige para descansar e procurar auxílio para passar a noite com o filho. Com a ajuda dos habitantes das terras por onde passa chega a Fátima, passado quase um mês, cumprindo a sua promessa e a tempo de assistir às celebrações das aparições de 13 de Maio, que muito a reconfortaram. Finda a peregrinação, no regresso, acaba por não voltar a Trás-os-Montes e vai fixar-se em Leiria onde é apoiada por algumas famílias que tinha conhecido na ida para Fátima. Ali, mãe e filho vão ficar conhecidos por muitos anos como “os peregrinos de Fátima”. Vive com alguma tranquilidade e felicidade com o filho numa pequena casa arrendada, e até consegue que ele frequente, gratuitamente, uma escola particular o Jardim-Escola João de Deus, uma feliz raridade, em Portugal, em termos de inovação pedagógica. Fruto de vários aconselhamentos que lhe procuravam demonstrar a fragilidade da sua situação familiar, recordando uns dias em que esteve internada no hospital, ficando o filho aos cuidados dos vizinhos, acaba por se separar do filho ao inscrevê-lo, aos sete anos, no “Asilo”, o Internato Distrital de Leiria, uma escola para os filhos dos pobres, então dirigida pelo Frei padre franciscano João d’ Alcaravela (que irá escrever a nota de apresentação deste livro). Essa separação é traumática para ambos e, aos 16 anos, quando já não é obrigado a permanecer no Internato, Celino abandona-o com a esperança de arranjar um trabalho, tirar a mãe da condição de criada, alugar uma casa, e ir viver com ela - o sonho de regressar à sua “idade de ouro”, aos poucos anos de felicidade que viveu com a mãe na infância. Não conseguiu esse sonho o adolescente Celino, mas tentou-o, nesse imenso amor pela mãe. Leonida acabou por ficar a trabalhar quase 40 anos para uma mesma família em Leiria, que fez dela quase um seu membro, mas que, na verdade, a impediu de ter a sua própria família, de poder desfrutar a convivência diária o amor com o filho. Morre nos braços do filho Celino num lar em Leiria, a 24 de Dezembro de em 1991, aos 84 anos de idade. 3. A crítica A leitura de Mãe e filho peregrinos em Fátima, de Cilínio Fraga, envolve-nos num misto de angústia e prazer. Será difícil não sentirmos o estômago apertado por uma impotente revolta. Revolta de não conseguirmos mudar a realidade, de sabermos que aquela “peregrinação” não é só ficção mas a verdade da vida dura, e muitas vezes injusta, de Leonida de Jesus Vilela. Conjugado com todas essas emoções ou comoções vem aquele prazer, próprio da boa escrita, de querermos “devorar” as páginas, de saber o que vem a seguir, de perscrutar as soluções que a mãe Leonida inventa para prosseguir com a sua vida e a do filho. A biografia foi escrita de modo a deixar emergir, “a cada página”, uma corrente de fé católica - ou não fosse Leonida uma fervorosa crente. Assim, vemos que o autor pelo seu carácter benevolente e apaziguador, ou por razões de fé, enaltece todos os membros da Igreja que se cruzaram na vida da mãe e todos os patrões a quem serviu. Mas terá sido mesmo assim? Terão sido todos “anjos da guarda” para Leonida? Há situações que nos levam a duvidar. Leonida tinha, enquanto criança e jovem, uma enorme vontade de aprender a ler e escrever mas nunca conseguiu realizar esse seu desejo. Uma freira em Vila Real ainda lhe deu algumas lições, mas o regresso inesperado a Provesende acabou com esse sonho. De entre toda as outras pessoas letradas, presentes por longos períodos na vida de Leonida, e descritas como caridosas (padres, freiras, militares, engenheiros, professoras), não houve uma que se tenha disponibilizado para lhe ensinar os rudimentos da escrita e da leitura. Seria considerado instrução a mais, e desnecessária, dada a sua condição social? Não será esse desinteresse uma forma de mal? O autor coloca o mal, quase sempre, como ações, ou omissões, de particulares sobre Leonida – o marido, o sogro, o avô materno – um pouco na senda dos exemplos bíblicos da doutrina cristã. Contudo, no caso de Leonida - e de inúmeras “Leonidas”- o mal ter-se-á de equacionar de um modo mais abrangente, coletivo, pois, mais que a ação de um sujeito ou outro, são as normas sócio-políticas, económicas e religiosas do Portugal de então, como um todo, os males maiores que amarraram Leonida à condição servil e lhe retiram a liberdade. A vida de Leonida é um espelho das ideias que a ditadura de então, e a sociedade em geral, tinham para as mulheres, particularmente para as dos estratos sociais mais baixos; mas é-o também das normas e proibições com que a Igreja Católica amordaçava as mulheres, especialmente as mais crentes e desprotegidas. Não eram verdadeiras servas em Cristo, como acreditavam ou lhe faziam crer, mas servas da Igreja Romana e da sua doutrina. Mãe e filho peregrinos em Fátima, de Cilínio Fraga, é também a constatação, em papel impresso, de que uma certa tradição literária elitista das obras biográficas, associadas a supostos ilustres ou famosos, é de crédito duvidoso, pois toda a pessoa humana encerra uma singularidade e uma riqueza de vida que podem ser transpostas para a boa literatura - haja talento para escrever e livreiros interessados em publicar. Não será preciso procurar “longe” ou “alto”, bastará interessamo-nos, ou amarmos (na terminologia cristã) os que nos rodeiam, os que nos são próximos. É, porventura, esse ato profundo de amor pela mãe, transposto para a escrita pelo autor, que faz deste seu livro uma obra de boa literatura que importa ler e divulgar. 17 de Fevereiro de 2022 -
"Polir talheres, todos os dias" Imagem doada por Maria do Mar (nome fictício), cozinheira de restaurante
“Aqui estávamos a aviar, com a lixa, com drenante. Passávamos depois com um pano e depois ainda com pão duro que era para tirar aquela coisa do meio dos garfos, porque criava assim uma coisa esquisita. Aquilo tinha de sair tudo, não podia ficar lá nada. Fazíamos isto todos os dias, tinha de ser feito todos os dias. Eram talheres de cabo de madeira e ferro. Quando começou a aparecer os de aço inoxidável, foi depois.” Maria do Mar (nome fictício), explica ao pormenor todo o processo que era necessário levar a cabo para polir os talheres, uma vez que estes eram feitos de ferro e não podiam correr o risco de enferrujar e, consequentemente, estragar-se. A fotografia mostra, igualmente, que este momento era de convívio e informalidade entre os empregados. Um deles está a sorrir com uma bebida que leva espontaneamente à boca. Também a roupa é destacável pelo seu cuidado e apresentação, através de fatos formais e gravatas, funcionando como projeção da imagem de rigor e protocolo no serviço ao público. -
"Um gato que seja só dela" - Texto concebido para a apresentação do livro "Na Terra dos Outros", de Manuel Abrantes
«Todas as semanas escolho uma palavra para a minha crónica no Expresso. Olho para a atualidade, procuro uma palavra invulgar trazida para a praça pública, invento neologismos. Por vezes, sou vencido pela preguiça e escolho uma palavra encontrada por acaso num livro, repescada de uma entrevista antiga, regresso a uma velha obsessão. Se tivesse de escolher uma palavra para este livro seria “servir”. Serve ou não serve? Terá de servir. E servir é um verbo enganador. É isso que faz Maria do Carmo, a protagonista deste romance. Serve. Serve os patrões, serve o marido, depois serve os filhos, novos patrões. Só não se serve a si mesma. Canta Bob Dylan em “Gotta Serve Somebody” que todos nós, por mais poderosos que sejamos, temos de servir alguém ou alguma coisa, que por mais livres que nos julguemos pagamos sempre o preço dessa suposta liberdade servindo alguém ou alguma coisa. Somos sempre servos, escravos. É esse o sentido etimológico, original, de servir – servidão, escravidão. Haverá dignidade na palavra, no verbo tal como o utilizamos hoje – servir o outro – na ideia de serviço – como em serviço público – e até de uma expressão corriqueira – lindo serviço – desapareceram os vestígios dessa história de sujeição e privação da liberdade. Na vida narrada de Maria do Carmo, esse sentido original é recuperado. Ela serve porque não tem escolha, não pode escolher não servir. Contenta-se com pouco porque, como diz uma das patroas, “quanto menos escolha uma pessoa tem, mais facilmente se contenta.” Bem triste é o contentamento de quem com pouco se contenta por não ter escolhas. É isso que a patroa não diz, é esse contentamento triste que é indizível. E é invisível aquele que o sente. O invisível não é necessariamente aquele que não faz nada. A espécie mais desafortunada de invisíveis são aqueles que estão no centro da vida dos outros mas que, por não terem voz, nem sequer a voz que lhes permita dar nome à tristeza, por não terem escolha, nem sequer a escolha triste de servir, deixam de ser vistos, são fantasmas a organizar as vidas alheias enquanto se escondem à vista de toda a gente. Outra patroa diz a Maria do Carmo: “Que indelicadeza maçá-la com as minhas lamúrias. Conte-me coisas sobre si, Carmo. É tão reservada. A sua vida é um mistério.” Mas Maria do Carmo não é reservada. O que lhe faltam são as palavras para se pensar. A sua vida é um mistério para os outros, que nunca a veem verdadeiramente, mas é, acima de tudo, um mistério para si mesma. Estas mulheres que, tal como Carmo, vieram da província, das aldeias, para servir as famílias ricas da cidade, muitas ainda crianças, que nada conheciam do mundo, pobres e iletradas, não eram invisíveis apenas aos olhos dos outros, eram invisíveis para si mesmas. Os desejos – o que é desejar quando só se aprendeu o verbo servir? – não só lhes estavam interditos como elas não eram sequer capazes de os conceber, quanto mais verbalizar. Havia toda uma gramática interior, do eu, do ser, que lhes era inacessível. Não tinham sonhos e, pior, não tinham palavras, conceitos, para os descrever se os tivessem. Eram duplamente estrangeiras: viviam na terra dos outros, pelos quais se sacrificavam, e exiladas de si mesmas. Nunca poderiam reclamar um quarto que fosse só delas porque antes do quarto era necessário existir um eu capaz de o reclamar, capaz de pensar o quarto e o indivíduo que dele se apropria para se exprimir. O quarto que ocupavam em casa dos patrões não era delas, não era extensão física da sua personalidade, era apenas a divisão onde se arrumava a criada. Era um estado anterior ao de que falava Virginia Woolf num discurso proferido para uma organização feminina. Nesse discurso, a escritora afirmava que ganhar o seu próprio dinheiro, conquistar o seu espaço, o seu quarto, eram os primeiros passos da verdadeira revolução que se seguiria para as mulheres: “o quarto já é vosso, mas ainda está vazio. Ele tem de ser mobilado; tem de ser decorado, tem de ser repartido. Como irão vocês mobilá-lo, como irão vocês decorá-lo? Com quem vão dividi-lo, e em que termos?” Tudo isso estava longe do alcance de Maria do Carmo e de mulheres da sua condição. O que determinava a relação entre patrões e criadas era a dependência extrema e a obediência que a ela vinha acoplada. Mesmo quando não era expressamente exigida, era esperada. A boa criada era obediente, servil. Não era refinada, a educação não lhe permitia chegar a tanto, mas cumpria. Não era insolente, não tinha desejos próprios que colidissem com os seus deveres, não reclamava. Apagava-se. E a história de Maria do Carmo é a história do apagamento, do autoapagamento, desse exército silencioso de mulheres que invisivelmente sustentavam a sociedade, a família, a sua e a dos outros, e faziam-no com o sacrifício de arrumarem os seus desejos e ambições para que estes não se intrometessem nas suas tarefas, para que não as atrapalhassem, para que os patrões nunca vissem nelas mais do que uma criada, um utensílio doméstico, um robô de cozinha, de quarto, de sala, da casa toda. Qualquer tentativa de rasgar esse véu de invisibilidade era geradora de conflito. Se já a tinham salvado da miséria o que mais se podia pedir aos patrões? O preço a pagar pela fuga à pobreza mais abjeta era o da abdicação da individualidade, o que era fácil porque não tinham tido oportunidade de a desenvolver. Era tão incipiente esse eu autónomo que quase não se dava por ele. Era preciso um esforço para o reconhecer como faz a filha mais nova de uma das patroas: “Só agora dava por si a questionar-se a respeito daquela mulher afinal dotada de individualidade e de intimidade.” Isto acontecia porque criada não era uma profissão. Era uma condição. Permeava toda a existência da mulher. Irrompia pela sua intimidade, por todas as facetas da sua vida. Ser criada era como ser enviada para um convento em que se renunciava às aspirações e aos sonhos e se vivia para sempre num estado de menoridade intelectual e cívica. Lê-se a certa altura sobre a mãe, Maria do Carmo, e o filho: “só os dois sabiam como o mundo é injusto quando não temos poder, quando os outros nos tratam com arrogância e querem tomar as decisões por nós, como sempre sucede às mulheres e aos filhos mais novos.” Como sempre sucede às mulheres. Como sempre sucedia a estas mulheres. Eternas crianças. E não é possível desligar esse estatuto das privações materiais, porque as duas, privação material e inanição espiritual, andavam a par. As condições materiais são a base para as condições de uma outra vida, a interior, sendo esta fundamental para que a vida não se cinja precisamente às condições materiais, à superfície, aos objetos, às coisas. Só uma vez satisfeitas essas necessidades é possível o desenvolvimento pleno do espírito, a problematização do eu – eu? O que sou eu? O que quero? O que é ser eu? O que há para lá de um animal que respira e come e defeca e dá à luz e serve os outros? O que é ser esta pessoa? Onde está o meu silêncio? A solidão voluntária que não me ensinaram a aproveitar? Onde está a minha solidão, procurada, ansiada, a ilha deserta onde me encontro comigo? Uma das criadas mais célebres da literatura portuguesa é a Juliana, de O Primo Basílio. Sim, tem uma vida interior, embora povoada de invejas e ressentimentos. Imagina-se patroa, com dinheiro, a mandar em alguém, a ter quem a servisse. E, entretanto, servia: “Fazia no entanto o seu serviço, ninguém tinha nada que lhe dizer. O olho aberto sempre e o ouvido à escuta, já se vê! E como perdera a esperança de se estabelecer, não se sujeitava ao rigor de economizar: por isso ia-se consolando com algumas pinguinhas, de vez em quando; e satisfazia o seu vício – trazer o pé catita. O pé era o seu orgulho, a sua mania, a sua despesa. Tinha-o bonito e pequenino.” Negando os desejos do corpo, sufocando-os, concentrava-os todos no culto do pé, no luxo da botina. Esse luxo que sinaliza a individualidade de Juliana, a sua aspiração, o seu consolo, é o que falta a Maria do Carmo. Tudo nela desemboca no sacrifício, no serviço em prol dos outros, que, para piorar, não é reconhecido nem pelos filhos: “Aos dezanove anos, como podia ele ignorar o esforço que Carmo fazia para sobreviver a cada dia, para manter em movimento as engrenagens da vida?” Manter em movimento as engrenagens da vida, esse labor perpétuo, invisível e menosprezado, é o desígnio de Maria do Carmo. Falta-lhe o espaço mental para cultivar o supérfluo e isso tanto deriva das necessidades materiais como da privação espiritual que delas decorre. Naquele discurso de Virginia Woolf que mencionei há pouco, a escritora contava a história do primeiro dinheiro que ganhou com a escrita, uma história para ilustrar o quão distante estava das lutas e das dificuldades das mulheres a quem se dirigia. Recebeu uma libra, dez shillings e seis pences. E o que fez com esse dinheiro? “Em vez de empregar aquela soma em pão e manteiga, renda, sapatos e meias, ou contas do talho, eu comprei um gato – um gato bonito, um gato persa, que logo me envolveu em desagradáveis discussões com os meus vizinhos.” Comprar um gato com o primeiro salário é sinal de que não há necessidades básicas a suprir e que, mais importante, há uma vida interior a comandar as escolhas. Maria do Carmo não tem escolha e vai ganhando consciência dessa falta de vida interior que a torna invisível aos olhos dos outros: “Lamentou que todos lhe fizessem mil e uma exigências, mas também que a ignorassem, como se ela não existisse.” Pergunta-se, perante a fúria do filho que a acusa de não perceber nada: “E a ela, quem a percebia?” Quando a amiga a elogia por finalmente pensar nela própria, vem a culpa. Quando finalmente ganha consciência de si, desenvolve a sua individualidade, questiona a vida e a forma como os outros a veem, já os anos de obediência, de cativeiro, de serviço moldaram os seus sentimentos com o barro da culpa: “Querem lá saber do que se passa comigo. Querem lá saber das coisas más, das coisas sujas. Das coisas que eu não posso contar. Mandam, pagam e acham que já está. Mas realmente nem sequer têm culpa. A culpa é minha, que ainda aqui estou. É minha, que não aproveito a porta entreaberta”. A serva culpa-se pela sua servidão. Sente-se culpada por fazer o que toda a vida foi programada para fazer, obedecer, baixar a cabeça: “O mundo bem te pode encher de porrada, que tu só sabes baixar a cabeça e pedir desculpa”, diz-lhe o filho. Como todos os escravos, como todos os servos, Carmo não sabe se deseja mais a liberdade ou se a teme. Chega a pensar se não teria sido melhor obedecer e resignar-se aos primeiros patrões. A liberdade, tão desejada, assusta. Porém, há dois momentos no livro em que Maria do Carmo experimenta a liberdade, dois lampejos de vida liberta dos grilhões do servir os outros, de lavrar a terra dos outros. No primeiro, ainda muito jovem, Maria do Carmo foge da aldeia e da patroa que para lá regressara e vem para a cidade sem avisar ninguém e sem saber o que a espera. Sofre com o frio, come pão duro, vagueia pelas ruas, dorme ao relento, acorda rodeada de gatos, “que sempre lhe pareciam hostis e traiçoeiros”. Mas essas são as dores de se ser livre. Num segundo momento, a viver numa terra estrangeira, como sempre viveu, pega na bicicleta do filho e pedala pelos passeios e através do tempo, até à infância na aldeia, passando pela rua de Lisboa onde moravam os antigos patrões e, com medo de cair se tiver de parar, imagina-se a pedalar mais, para sempre, rua após rua, mantendo em funcionamento a engrenagem da vida, a engrenagem das ilusões. É verdade. São sempre as mulheres que mantêm as coisas a funcionar, como se lê a meio do livro: “os homens sempre têm as mulheres para manter as coisas a funcionar, para pôr a comida na mesa e para lavar a roupa. E uma mulher? Uma mulher nem isso tem, uma mulher não tem nada, nada.” Mas não ter nada, como também canta Bob Dylan, é não ter nada a perder. Não ter nada é também não ter medo, que talvez seja a forma mais pura de liberdade. E quase no final do livro lemos que Maria do Carmo já “não tinha medo.” Pode ser que na vida que acontece às personagens depois de fecharmos um livro, Maria do Carmo, sem nada e sem medo, use o dinheiro do último salário para comprar um bonito gato persa, um gato que não seja hostil nem traiçoeiro, um gato que seja só dela. Lisboa, 6 de março de 2024» -
“Escola de creados de Meza”
A xenofobia pelos criados de mesa de origem galega atinge um ponto alto nesta crónica. Estávamos em 1918 e, da acusação de ociosidade à acusação de esses trabalhadores ganharem “ordenados de bacharel”, inclusive de ganharem “mais do que o dono de hotel” [sic] somam-se as contradições. E é mesmo a esse propósito que se pensa na urgência de criar uma escola de criados de mesa em albergues e asilos, como a Casa Pia. Sobre os trabalhadores oriundos da Galiza, designados de “servos estrangeiros”, não lhes são poupadas críticas quanto à sua falta de competência profissional, embora se avance serem protegidos pela união das pessoas oriundas da Galiza. O autor da crónica considera que este emprego é “um dos mais renumerados (…) para as classes menos abastadas, (…) pois quer seja em hotel ou em restaurante, a mensalidade é sempre superior aos dos melhores e mais profícuos empregos” (J.A.S., 1918, p.91). Ainda de acordo com o autor da crónica, esta realidade aplica-se maioritariamente às grandes cidades, pela vasta procura turística apresentada, como é o caso de Lisboa e Porto, onde os empregados da restauração tinham a oportunidade de “(…) tirar um ordenado de mais de 100 mil reis por mez; e nos hotéis, desde o porteiro ao simples criado de quarto, os seus honorários são muitas vezes superiores aos do gerente do hotel. Ficam, pois, duas dúvidas: sendo tão bem remunerados estes trabalhos, porque são apenas disponibilizadas as suas formações em asilos e albergues? E, também, sendo estes trabalhadores tão ociosos e defeituosos, por que razão são tão bem onerados pelos seus clientes? -
Avental de cozinha (doação de imagem para catalogação)
Avental de cor bege, em regra usado pelas cozinheiras quando saíam em visita. É uma peça de vestuário que remonta aos anos de 1950-1960. -
Avental de criada de sala
Avental branco, usado por Maria Emília Mota, "criada de sala". Maria Emília nasceu a 28 de janeiro de 1910 e faleceu a 12 de setembro de 2007, com 97 anos. Começou a servir aos 20 anos. O avental foi estreado por ocasião de um batizado realizado pela família dos patrões, no final dos anos de 1940. Esta peça de vestuário era posta em uso em momentos de receção de visitas e saída para recados. Acompanhava com gola e punhos sobre vestido preto. -
Capa de "Ida e Volta de uma caixa de cigarros"
“Maria Archer, A escritora que enfrentou silêncios e cinismos” Por Inês Brasão Politécnico de Leiria – IHC-NOVA-FCSH A pouco menos de um ano do derrube da ditadura em Portugal, Maria Archer endereçou uma carta ao seu sobrinho manifestando o desejo de aceitar um convite para publicar os seus melhores romances, em inglês e mandarim. A escritora acalentava a esperança de ganhar prestígio a partir da divulgação internacional da sua obra, podendo mesmo alcançar a edição em língua francesa, seu maior objetivo. Além da possibilidade de internacionalização, os direitos autorais serviriam para estancar as dificuldades financeiras com que se debatia. Porém, nem mesmo na velhice a sua vida foi facilitada. Tal publicação não chegou a concretizar-se e os últimos dias da vida de Maria Archer foram pintados de abandono, doença e privação. Seis anos após o regresso do exílio, no Brasil, em 1982, faleceu num lar de idosos, vítima de arteriosclerose cerebral, no Bairro de Marvila. As razões por detrás da apreensão de duas das obras da escritora, Ida e Volta de uma Caixa de cigarros (1938) e Casa sem Pão (1947), deixando outras narrativas à disposição do leitor, ainda estão revestidas de incerteza. Quase certo, na nossa interpretação, é que a escritora foi censurada por ter nomeado protagonista uma mulher, Marietta, cuja relação com o corpo, o desejo e o sexo é definida pela vontade feminina. É Marietta quem escolhe os amantes, e é ela quem manipula para “gozar” o corpo que apetece. É também neste livro apreendido pela censura, num conto intitulado "Cai no mar a gota de água" (1936), que o tema da violência sexual surge ligado à dominação de patrões (“ou filhos-bem”) sobre criadas de servir. Na narrativa do conto, Luiz, um estudante de "tez infermiça e amarelada", é hospedado em Lisboa em casa de umas “velhas”, mas a sua aparente debilidade física não impede de usar a força para impor um primeiro momento de intimidade com Júlia, criada de servir, ainda menor de idade. Na primeira ocasião em que Luiz se encontra sem testemunhas na casa, envolveu Júlia “nos braços, pisando-lhe as pernas contra a gaveta aberta, apertando nas mãos, brutalmente, os seios que a inclinação do busto fazia ligeiramente pender.» Em seguida, ameaça “-Parvinha. Se gritas ninguém te acode! Estamos sós! Deixa-te de histórias e sê boa para mim. … e não te faço mal. É melhor vires às boas comigo”. Este é o cenário em que a tragédia se precipita. Sem grande hesitação, Maria Archer dar-nos-á a seguir dois trunfos-chave para entender a reprodução naturalizada do domínio do menino-bem sobre a jovem criada. O primeiro está ligado à cobertura e ao cinismo: descoberto o relacionamento, “as velhas” donas da casa começam por lhe chamar “a porca”, concluindo que “não se podia mexer no sabido sem hostilizar o rapaz e quicá promover a perca do hóspede tão a contento.” A segunda chave interpretativa é a forma como Júlia, a criada, vive psicologicamente o abuso: o seu comportamento é uma amálgama entre a vergonha e o orgulho de ter na cama um homem que julga ser “seu”, rapidamente desenganado, a chantagem, o medo dos pais obcecados pela necessidade de “reparação” da desvirgindade e a tentativa de suicídio. Talvez seja importante introduzir aqui um pé na realidade: as estatísticas referentes a mães-solteiras, estupro, morte ou tratamento por sífilis, aborto e morte da mãe no parto, publicadas nos Boletins do Dispensário de Higiene Social, entre as décadas de 1930 e 1940, sinalizavam as duas classes profissionais mais estigmatizadas por este nexo de problemas: toleradas e, imediatamente a seguir, criadas de servir. Maria Archer pagou caro pelo contexto ditatorial em que publicou, um período de enorme recessão dos direitos públicos das mulheres. Pagou pela dupla audácia: de conteúdo e decorrente da sua condição de mulher-escritora. A sua liberdade criativa foi cerceada por enfrentar silêncios e cinismos. A escritora empresta uma grande densidade psicológica inerente a cada um dos personagens, nunca linear ou superficial, e mantém com o leitor uma interpelação, criando a sensação de ver a sociedade portuguesa refletida em espelho, como se a autora se propusesse traçar um diagnóstico social, espécie de sociologia do quotidiano. Em face da violação dentro do casamento, do espancamento físico apresentado como expediente banalizado de dominação do marido sobre a mulher, ou ainda do assédio sexual perante as mulheres mais vulneráveis, a escritora não hesita na denúncia do cinismo e do silêncio. De cada violência, legitimada e reproduzida como normalidade nas relações entre homens e mulheres, fazem sempre parte cúmplices, mulheres e homens, indistintamente. A cumplicidade parece crescer nos círculos de poder e nas classes abastadas, sendo difícil ficarmos alheios ao facto de Maria Archer ter neles nascido e deles ter sido expulsa por incompatibilidade com os seus vícios, os das «boas famílias». A violência naturalizada sobre as mulheres surge em toda a obra como parte de um caderno de encargos histórico e é uma circunstância considerada fútil em face da necessidade de perpetuar posições e relações de classe. 21 de janeiro de 2022 -
Criadas de Servir vs Donas de Casa - Debates Parlamentares
Criadas de Servir vs Donas de Casa – extracto do Debate Parlamentar levado a cabo na Assembleia Nacional, V Legislatura, no dia 25 de janeiro e registado no DIÁRIO DAS SESSÕES N.º 126, p. 282: No dia 25 de janeiro de 1952, a ordem de trabalhos da Assembleia ordenava que se discutisse a proposta de Lei do Condicionamento das Indústrias. Tomou a palavra o Professor Délio Santos (deputado à Assembleia Nacional) que optou por vir dar o seu contributo do ponto de vista da entidade social dos consumidores, já que, nos dias anteriores se tinha discutido o ponto do vista dos industriais, e também o dos agricultores. Antes de avançar propriamente no problema, Délio Santos mostrava-se preocupado com a seguinte questão: “Confesso que sinto um grande pesar quando entro numa loja, numa boa mercearia de Lisboa, e olho para os escaparates e verifico que eles estão cheios de produtos estrangeiros que nós poderíamos preparar e fabricar e pôr ao alcance do consumo nacional. Verifico ainda mais o seguinte: que um grande número de pessoas compra produtos estrangeiros havendo a possibilidade teórica de os comprar nacionais, se eles fossem produzidos em idênticas ou melhores condições económicas e outras. Do trigo e de outros cereais, por exemplo, não se prepara só o pão, podem-se preparar muitos outros produtos, alguns muito mais ricos de valor nutritivo do que o pão fabricado entre nós ou daquilo que a lavoura poderá fabricar, e de melhor uso doméstico, por se prestarem a variadas, cómodas, agradáveis e higiénicas combinações culinárias.” Isto é, o deputado começa por revoltar-se contra o que poderíamos já chamar as núpcias da globalização dos mercados do consumo, nas quais o protecionismo dado ao produto nacional já não conseguia impor-se sobre os demais. E é então que, sem mais intervalos, se desenrola nas palavras do orador a seguinte reflexão publicada na imagem em anexo. (…) O Orador: “Hoje em dia há um problema doméstico, complicado na sua resolução, que é o trabalho das donas de casa pela falta das criadas de servir, que tendem a desaparecer ou são de péssima qualidade. Portanto, a dona de casa ou se transforma em criada de servir da família ou procura ter ao seu alcance meios que lhe facilitem a resolução das necessidades domésticas. O Sr. Mário de Figueiredo: - A teoria de V. Ex.ª acaba no restaurante. Em vez da cozinha cozinhada em casa acaba-se por comprar a cozinha lá fora. É a última expressão do individualismo. O Orador: - Mas o que eu pretendo evitar é que se vá para o restaurante. Como resolver o problema de uma dona de casa com muitos filhos e sem criados? O Sr. Mário de Figueiredo: - As condições económicas gerais de ocupação fora de casa para todos é que têm levado à completa desintegração da família. Ou vai ao restaurante cada um dos membros da família por si, ou vai a casa cozinhar o ovo que se recebe da mercearia, em fogões com tempo e temperatura marcados automaticamente, ou come qualquer coisa enlatada que da mercearia vai também. V. Ex.ª está convertendo a cozinha familiar num restaurante! O Orador: - Mas é precisamente o contrário para o qual me proponho chamar a atenção de VV. Ex.ªs Apontei factos, não apontei teorias. O Sr. Mário de Figueiredo: - Se eu falei da teoria de V. Ex.ª queria aludir naturalmente ao pressuposto que está na base das suas considerações. Atrás delas há-de estar um certo princípio. O Orador: - Não há princípio algum pressuposto; ou melhor: se tiverem de ser estabelecidos esses princípios, devem sê-lo depois de conveniente análise, e não serão esses que V. Ex.ª afirma. Desaparecendo esse instrumento de trabalho que são as criadas de servir, e V. Ex.ª não pode impedi lo, vamos aliviar o trabalho da dona de casa, como trabalhadora, ou vamos torná-la escrava?» Délio Santos retoma uma questão comum em vários espaços da opinião pública portuguesa que e era o de existir um problema de transformação na sociedade portuguesa fruto do desvanecimento da existência de uma criada de servir que libertava e emancipava a mulher para o trabalho, ou mesmo uma vida ociosa. E o espanto era proferido desta maneira: “Como resolver o problema de uma dona de casa com muitos filhos e sem criados?”- “Desaparecendo esse instrumento de trabalho que são as criadas de servir, e V. Ex.ª não pode impedi lo, vamos aliviar o trabalho da dona de casa, como trabalhadora, ou vamos torná-la escrava?» O mote está precisamente na última pergunta porque reflete um caso exemplar da questão de classe subordinada à questão de género. A pergunta podia ser feita naqueles moldes porque era dirigida à mulher de classe média e média-alta – e apenas a estas - e não a famílias proletárias camponesas e industrias, aliás, cujos índices de número de filhos eram bem superiores. E, sim, contra toda a fantasia das criadas de servir como trabalhadoras libertas do anátema da venda do trabalho numa relação pré-capitalista, aqui estava: a servidão configurada como a naturalização da instrumentalização do seu corpo e esforço ao abrigo de uma relação não contratualizada. -
Criados de hotel na inauguração do Vidago Palace Hotel
Fotografia tirada à data da inauguração do Vidago Palace Hotel, no mês de outubro de 1910. Oito corpos, seis deles seguramente criados de hotel, surgem dispostos numa coreografia de espera e solenidade conforme à de um Grand Hotel. No Blog "Restos de Coleção" encontramos uma diversidade de fontes sobre a história deste icónico hotel construído há mais de 110 anos atrás. Mas a razão pela qual nos debruçamos sobre esta imagem é o facto de ela nos permitir pensar a extrema proximidade histórica e social existente entre criados hoteleiros e criados domésticos. Muitos deles eram – e continuam a ser – caracterizados por uma população migrante, e ambos partilharam condições de trabalho comuns: em períodos históricos mais recuados, também aos criados hoteleiros e do setor da restauração era oferecida cama e mesa em troca de trabalho, pernoitando nas instalações dessas casas comerciais à espera de, no dia seguinte, trocar a cama pela mesa de servir. Esta face da história do trabalho é bem documentada por Américo Nunes no seu livro Hotelaria – De criados domésticos a trabalhadores assalariados (Diálogo com a História sindical), Lisboa, Edições Avante, Coleção Resistência, Agosto de 2007. Há, porém, um dado que carece de maior estudo. Trata-se de compreender até que ponto o servilismo doméstico evoluiu para uma franca feminização, enquanto, no caso da hotelaria, permanece até mais tarde o facto de ser representada pela masculinidade, sobretudo num conjunto de espaços de contacto como a receção, rua, elevador, lobby ou bar. -
Dançar, um direito desigual. A partir de “Para todo o serviço”, dirigido por Margarida Gil (1975)
Dançar, um direito desigual Por Inês Brasão (Politécnico de Leiria, IHC - NOVA FCSH, CITUR) A partir de um fotograma do filme “Para todo o serviço”, dirigido por Margarida Gil (1975), e de alguns excertos publicados no jornal A Voz das Criadas, levantamos a questão da dança enquanto direito desigual, e o direito ao lazer e à festa enquanto bem moralmente assediado no caso da condição servil doméstica. Ao longo do período do «Estado Novo», muitas foram as proclamações contra o perigo que representavam os bailes para as “criadas de servir”. Se, num primeiro movimento, podemos enquadrar a descrição desses perigos como a vontade de proteger de alguma vulnerabilidade e assédio as jovens trabalhadoras domésticas, rapidamente nos apercebemos que aquele é sobretudo fruto da vontade de vigiar e punir estas mulheres no direito ao prazer, ao movimento, à interpretação, ao namoro e à sedução. Afinal, se as queremos considerar vítimas, como alguns excertos nos fazem crer, é porque existem agressores, e sobre estes não encontramos condenação. Por outro lado, em alguns dos textos de repúdio pelas criadas em bailes, estão argumentos de uma outra natureza, essencialmente moral: lugares onde estas se entregam à depravação moral e falta de virtude, “desonra” (a ideia de que a pureza não encontra sede além da virgindade), gasto fútil (como se aos menos favorecidos fosse vetado o direito ao divertimento) e uma completa inversão do que sabemos da condição histórica desta profissão, acentuando o quanto as suas trabalhadoras se perderiam em luxos e vaidades. Por último, mas não menos importante, ataques que desde sempre atingiram não apenas as mulheres servis, como todas as mulheres, acusando-as de promiscuidade e indecência pelo simples de admissão a espaços de dança e divertimento, apenas aos homens legitimados. Deixamo-vos três excertos do jornal nos quais podemos detetar alguns traços comuns: Excerto 1: Voz das Criadas, agosto de 1954, nº 246, artigo «Convite para o baile, o presidente diretor e mestre Satanás.» p. 3. «O BAILE – mata o corpo - apunhala a virtude - destrói a moralidade -amortalha a alma! Pais e mães: Não deixeis vossas filhas e filhos, criados e criadas entrarem em bailes se não quereis: -desgostos para a vossa vida -remorsos para a vossa velhice -desonra para o vosso nome e vossa casa!» Excerto 2: Voz das Criadas, setembro de 1958 Artigo «Obra Providencial a Favor das Criadas» assinado por A. Rosado c.m.f., p. 1 e 4 (fotocopiar) “(…)Ao contrário do que sucede em outros países, entre nós, o número de criadas tende a aumentar. O senso de 1940 registava 187.000; o de 1950, 213.000, e haverá actualmente cerca de 220.000 ou 225.000. Só em Lisboa havia 37.000 em 1940; 50.300 em 1950 e calcula-se que sejam agora cerca de 60.000. No Porto, mais de 22.000, actualmente. (…) Habituadas a nada ter, as criadas gastam o pouco que ganham no luxo, na vaidade, no cinema e nos bailes. A O.P.F.C. ensina-as a serem previdentes, a guardarem nos dias de prosperidade para as horas de doença ou desemprego. (…) desta sorte se combate o adágio corrente entre as Criadas: de nova a servir e de velha a pedir.” Excerto 3: Voz das Criadas, novembro de 1952, artigo «Ao serviço do comunismo», p. 3. “O culto do nú, a redução das indumentárias, a licenciosidade das conversas, as liberdades dos costumes, os bailes repetidos, a promiscuidade dos sexos e outras práticas, são o índice mais certo e apavorante de quantos e quantas estão cumprindo à letra, talvez sem o saberem, este diabólico decálogo, ao serviço do comunismo. Às nossas companheiras, criadas de Portugal, dirigimos neste momento o nosso grito de «alerta!» pondo-as de sobreaviso, para que saibam desviar-se e defender-se da lama infernal que escorre por toda a parte, e que tantas vítimas tem feito entre as nossas irmãs de trabalho.” -
Desporto na Hotelaria
"A nossa equipa, acarinhada moral e materialmente pela administração, pratica do melhor futebol que se vê no campeonato da Indústria Hoteleira" (Zumbido, 1970). Numa altura em que os trabalhadores hoteleiros já tinham exorcizado a nomenclatura de criados, os Centros de Alegria no Trabalho promoviam a prática desportiva com um objetivo de higienizar o lazer das classes trabalhadoras e treinar a arte de bem servir. Na imagem, O “Zumbido”: Boletim do Centro de Alegria no Trabalho dos empregados do Hotel, publicou no seu número 1 (em 1970), uma imagem de arquivo da Equipa representativa do Grupo desportivo do Hotel Tivoli, vencedora do 1º campeonato da Indústria Hoteleira, disputada em 1946-47.A revista “Zumbido”, foi dirigida por Américo Nunes, autor de inúmeras publicações e atividade sindical no ramo hoteleiro. -
Elas estiveram nas prisões do fascismo
“Elas – criadas de servir – estiveram nas prisões do fascismo” Adelina Meireles, Adrenne Jeanne Delcenserie, Amélia Pereira, Amélia Soeiro, Antónia Monteiro, Aurora Afonso, Belmira Bastos, Damiana Macedo, Ermelinda de Jesus, Eulália de Jesus (6 anos)Francisca Martinez y Mara, Gregória Reina, Isabel Guerreiro, Jacinta Cano, Josefa Ortin, Laurinda Tocha, Lucinda Balseiro, Margaret Lily Adams, Maria Augusta, Maria Augusta Gonçalves, Maria Casal Sanches, Maria da Conceição Silva, Maria da Conceição Duarte, Maria de Paiva e Sousa, Maria del Carmen Pantoja, Maria do Carmo Monteiro de Almeida, Maria Emília Camossa, Maria Eulália Lázaro, Maria Fernanda Gomes de Oliveira, Maria Luísa Parragues, Maria Ribeiro Gonçalves, Maria Rosa Rodrigues, Maria Rosa Pires, Matilde Maria Montes, Virgínia Cardoso. Não é incomum associar um comportamento de alheamento, incapacidade ou mesmo ignorância às trabalhadoras domésticas, servidoras internas em casa de patrões, relativamente ao mundo que as envolviam. O escrutínio da lista das mulheres que foram presas no período da ditadura, por razões políticas, de exílio ou emigração/imigração, desmente essa ideia. Elas - “serviçais”, “criadas de servir” “preceptoras” “empregadas domésticas” e “domésticas” também estiveram presas e representam uma significativa porção do conjunto, em especial as integradas na última classificação. Editado pela URAP (União de Resistentes Antifascistas Portugueses) o livro “Elas estiveram nas prisões do fascismo” congrega importantes reflexões, depoimentos, relatos de fugas, entre outros aspetos relevantes. Aqui destacamos um olhar sobre as listas das presas que nos permitem desagregar dados em função da profissão/condição e nacionalidade. De acordo com a análise dos dados, no que toca às mulheres de nacionalidade estrangeira, 10%, têm a indicação de motivos relacionados com a i/emigração, mas também uma clara conexão com refugiadas da Guerra Civil de Espanha (1936-1939) ou da II Guerra Mundial (1939-1945). Também se encontram aqui razões ligadas à Revolta do Leite na Madeira, as Marchas da Fome de Maio de 1944, ou presas no episódio da Cantina da Universidade de Lisboa a 11 de maio de 1962. Serviçais enquadradas na categoria dos “Serviços Pessoais”, correspondente a 6,1 das categorias representadas, com as “Domésticas” à cabeça, representando 49,2%. -
Fotogramas de vídeo (sreenshots) a partir da Performance de Natascha Fiala, com Elisabeth Morcellet, Suzanne Krist, K. Grunewall
Imagens de um Vídeo exibido no programa EGÍDIO ÁLVARO (1937-2020). “LEMBRAR O FUTURO: ARQUIVO DE PERFORMANCES”, que decorreu no espaço RAMPA (Porto), entre 21 abril – 11 junho 2022 - Momento 3: 11 maio – 21 maio 2022 CORPO MANIFESTAÇÃO : ARTISTAS PERFORMERS NO ARQUIVO DE EGÍDIO ÁLVARO Curadoria PAULA PINTO -
Imagem que representa uma lavadeira negra nos jardins do Palácio Nacional de Sintra
Pouco ou nada sabemos sobre o seu nome, a sua história, de onde partiu e como aqui chegou. Não ficamos a saber se o nome dado ao “Jardim da Preta”, no Palácio Nacional de Sintra, é uma espécie de homenagem, ou penas figuração, de uma mulher que lavava no tanque. Ou se, em jeito de generalização, está a ali a sua figura a representar um grupo, uma etnia, uma condição servil, a própria história da escravatura. De acordo com a informação disponibilizada pelo site oficial parquesdesintra.pt, “O Jardim da Preta” ganhou a designação devido a uma composição em massa pintada, representando uma negra lavadeira de roupa acompanhada de uma figura masculina de libré vermelha. Graças ao trabalho de Patrícia Monteiro (2021:185), ficamos também a saber que “o espaço deve a sua designação à figura de uma lavadeira (negra) que, encostada a um tanque, escuta um pajem, que com ela conversa, apoiado numa bengala (…) As figuras pertencem a extractos sociais de baixa condição, num retrato mordaz da moral e costumes da época: a mulher (neste caso, a lavadeira) que interrompe as suas tarefas para, distraidamente, ser cortejada por um pajem. O tanque, ou lavadouro, tal como as fontes, o forno, ou o moinho, eram espaços colectivos considerados como de “vocação feminina”, onde as mulheres se podiam entreter trocando mexericos entre vizinhas enquanto que, por oposição, outros locais (como as tabernas) lhes estavam interditos.” Acerca de uma outra nota sobre A Sala dos Archeiros do mesmo Palácio, dá-se nota de que “aqui se cruzavam os reis com a nobreza e com os embaixadores estrangeiros, com as autoridades locais, com os serviçais, com a população desfavorecida e os escravos, os burocratas e os diversos visitantes.” O Palácio Nacional de Sintra é bem conhecido pelas duas chaminés cónicas que coroam a cozinha real, o lado material do Património que impressiona. Sobre o outro lado, continuamos bastante alheios à história social e às relações de poder ali desenhadas. -
Jazigo onde se encontra sepultado um conjunto de empregados domésticos que serviram uma mesma casa.
Imagem do jazigo que acolhe um conjunto de empregados que serviram uma mesma família durante décadas, e foi por esta mandado edificar, na zona norte do país. É o jazigo de uma “família de criados”, prolongando laços intensificados pela natureza do trabalho, mas também pela partilha da casa onde cresceram, conviveram, casaram, tiveram e educaram os seus filhos, e cuidaram de outros que não os seus. Uma destas trabalhadoras aqui sepultada terá pedido, ainda em vida: “Eu posso ficar com o lençol de linho?”. E assim foi mantida a sua vontade, abrigada por esse tecido, no momento em que partiu. O jazigo fica situado num lugar próximo da capela do cemitério. É um jazigo alto, projetado, do qual consta a imagem de uma Nossa Senhora suportada por dois leões de pedra. -
Juliana
Juliana, personagem d’ O Primo Basílio (1878) de Eça de Queirós, encontra-se catalogada n’ O Dicionário de Personagens da Ficção Portuguesa" (disponível em: http://dp.uc.pt/). A entrada oferece-nos uma ilustração assinada pelo cartoonista António e um texto concebido por Maria do Rosário Cunha. Deixamo-vos um pequeno trecho da entrada: “Numa crítica publicada n’O Cruzeiro em 1878, Machado de Assis considera “Juliana, o carácter mais completo e verdadeiro do livro” (apud Rosa, 1979: 159-160). Defende a superioridade desta personagem em relação à de Luísa que, na sua perspetiva, não passa de um “títere” sem sentimentos ou conteúdo moral, e serve-se dela para apontar as falhas na conceção do romance.” Link de acesso ao texto integral: http://dp.uc.pt/conteudos/entradas-do-dicionario/item/211-juliana -
População da Cidade de Lisboa segundo Instrução e Sexo, Censo Extraordinário da População das Cidades de Lisboa e Porto
O gráfico que hoje publicamos em "Imagens e Discursos" consta d'O Censo Extraordinário da População das Cidades de Lisboa e Porto, publicado em 1927. O gráfico tenta sintetizar uma correlação entre género e grau de instrução. Na memória descritiva assinada por Vitorino Mendes Godinho, pai de Vitorino Magalhães Godinho, o Diretor interpreta os números, esclarecendo sobre a desproporção relativa aos níveis de alfabetização verificados na cidade: “É certo que boa parte dos analfabetos das duas capitais é constituída pelos indivíduos que das províncias a elas afluem, para desempenharem serviços domésticos, exercerem a sua profissão de operários ou outros mesteres para os quais não é exigida instrução literária alguma(…)” A associação entre a população genericamente analfabeta e as trabalhadoras domésticas é explícita, mas ganha ainda mais relevo na informação gráfica, de poderosa amplitude interpretativa. No topo superior, o dos alfabetizados, a mulher aparece num plano secundário, mas acompanhando o ato da leitura do marido. Percebemos, pelos números, que o desnível de instrução entre os detentores de maior status não é despiciendo, mas pouco assimétrico. Na imagem de cima, o estilo usado pela mulher evidencia que a belle époque também passou por Portugal, quer através do uso do corte à bob (um estilo de penteado famoso na época), quer pelo uso do vestido de cintura descaída, um must dos anos 20. Na imagem de baixo, as figuras de proporção mais pequena aparecem individualizadas. Porém, não é difícil adivinhar a representação de uma “criada de servir” enquanto emblema do analfabetismo feminino. O cabelo está apanhado em coque, o uso do avental é explícito, e os sapatos são rasos, ao contrário dos da “patroa”. É, portanto, também a luta – ou assimetria – de classes que aqui se encontram bem representados, e a figura masculina é igualmente caricaturada à imagem e semelhança de um moço de recados ou ardina, ambas profissões socialmente pouco valorizadas.