Capa de "Ida e Volta de uma caixa de cigarros"

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Título do recurso

Capa de "Ida e Volta de uma caixa de cigarros"

Autor

Maria Archer

Data

1938

Local

Lisboa

Editora

Editorial "O Século"

Páginas

261 páginas

Descrição

“Maria Archer, A escritora que enfrentou silêncios e cinismos”

Por Inês Brasão
Politécnico de Leiria – IHC-NOVA-FCSH

A pouco menos de um ano do derrube da ditadura em Portugal, Maria Archer endereçou uma carta ao seu sobrinho manifestando o desejo de aceitar um convite para publicar os seus melhores romances, em inglês e mandarim. A escritora acalentava a esperança de ganhar prestígio a partir da divulgação internacional da sua obra, podendo mesmo alcançar a edição em língua francesa, seu maior objetivo. Além da possibilidade de internacionalização, os direitos autorais serviriam para estancar as dificuldades financeiras com que se debatia. Porém, nem mesmo na velhice a sua vida foi facilitada. Tal publicação não chegou a concretizar-se e os últimos dias da vida de Maria Archer foram pintados de abandono, doença e privação. Seis anos após o regresso do exílio, no Brasil, em 1982, faleceu num lar de idosos, vítima de arteriosclerose cerebral, no Bairro de Marvila.
As razões por detrás da apreensão de duas das obras da escritora, Ida e Volta de uma Caixa de cigarros (1938) e Casa sem Pão (1947), deixando outras narrativas à disposição do leitor, ainda estão revestidas de incerteza. Quase certo, na nossa interpretação, é que a escritora foi censurada por ter nomeado protagonista uma mulher, Marietta, cuja relação com o corpo, o desejo e o sexo é definida pela vontade feminina. É Marietta quem escolhe os amantes, e é ela quem manipula para “gozar” o corpo que apetece.
É também neste livro apreendido pela censura, num conto intitulado "Cai no mar a gota de água" (1936), que o tema da violência sexual surge ligado à dominação de patrões (“ou filhos-bem”) sobre criadas de servir. Na narrativa do conto, Luiz, um estudante de "tez infermiça e amarelada", é hospedado em Lisboa em casa de umas “velhas”, mas a sua aparente debilidade física não impede de usar a força para impor um primeiro momento de intimidade com Júlia, criada de servir, ainda menor de idade. Na primeira ocasião em que Luiz se encontra sem testemunhas na casa, envolveu Júlia “nos braços, pisando-lhe as pernas contra a gaveta aberta, apertando nas mãos, brutalmente, os seios que a inclinação do busto fazia ligeiramente pender.» Em seguida, ameaça “-Parvinha. Se gritas ninguém te acode! Estamos sós! Deixa-te de histórias e sê boa para mim. … e não te faço mal. É melhor vires às boas comigo”. Este é o cenário em que a tragédia se precipita. Sem grande hesitação, Maria Archer dar-nos-á a seguir dois trunfos-chave para entender a reprodução naturalizada do domínio do menino-bem sobre a jovem criada.
O primeiro está ligado à cobertura e ao cinismo: descoberto o relacionamento, “as velhas” donas da casa começam por lhe chamar “a porca”, concluindo que “não se podia mexer no sabido sem hostilizar o rapaz e quicá promover a perca do hóspede tão a contento.” A segunda chave interpretativa é a forma como Júlia, a criada, vive psicologicamente o abuso: o seu comportamento é uma amálgama entre a vergonha e o orgulho de ter na cama um homem que julga ser “seu”, rapidamente desenganado, a chantagem, o medo dos pais obcecados pela necessidade de “reparação” da desvirgindade e a tentativa de suicídio. Talvez seja importante introduzir aqui um pé na realidade: as estatísticas referentes a mães-solteiras, estupro, morte ou tratamento por sífilis, aborto e morte da mãe no parto, publicadas nos Boletins do Dispensário de Higiene Social, entre as décadas de 1930 e 1940, sinalizavam as duas classes profissionais mais estigmatizadas por este nexo de problemas: toleradas e, imediatamente a seguir, criadas de servir.

Maria Archer pagou caro pelo contexto ditatorial em que publicou, um período de enorme recessão dos direitos públicos das mulheres. Pagou pela dupla audácia: de conteúdo e decorrente da sua condição de mulher-escritora. A sua liberdade criativa foi cerceada por enfrentar silêncios e cinismos. A escritora empresta uma grande densidade psicológica inerente a cada um dos personagens, nunca linear ou superficial, e mantém com o leitor uma interpelação, criando a sensação de ver a sociedade portuguesa refletida em espelho, como se a autora se propusesse traçar um diagnóstico social, espécie de sociologia do quotidiano. Em face da violação dentro do casamento, do espancamento físico apresentado como expediente banalizado de dominação do marido sobre a mulher, ou ainda do assédio sexual perante as mulheres mais vulneráveis, a escritora não hesita na denúncia do cinismo e do silêncio. De cada violência, legitimada e reproduzida como normalidade nas relações entre homens e mulheres, fazem sempre parte cúmplices, mulheres e homens, indistintamente. A cumplicidade parece crescer nos círculos de poder e nas classes abastadas, sendo difícil ficarmos alheios ao facto de Maria Archer ter neles nascido e deles ter sido expulsa por incompatibilidade com os seus vícios, os das «boas famílias». A violência naturalizada sobre as mulheres surge em toda a obra como parte de um caderno de encargos histórico e é uma circunstância considerada fútil em face da necessidade de perpetuar posições e relações de classe.

21 de janeiro de 2022

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