"Mãe e Filho, Peregrinos em Fátima"
Item
Título do recurso
"Mãe e Filho, Peregrinos em Fátima"
Autor
Cilínio Fraga
Data
2020
Local
Lisboa
Editora
Colibri
Páginas
308páginas
Descrição
Mãe e filho peregrinos em Fátima, de Cilínio Fraga, Lisboa, Edições Colibri, 2020.
Obra lida e comentada por António Silva (“Nica”)
1. O encontro
Numa tarde de sexta-feira, o senhor Celino Neves subiu a íngreme escadaria de pedra e entrou no edifício de dois pisos onde funciona a Divisão de História e Cultura da GNR, em Alcântara, Lisboa. Por insólito que pareça, e devido a uma série de acasos, naquela tarde, eu era a única pessoa a trabalhar na Divisão. O Sr. Celino abordou-me e disse que procurava o processo do seu avô, que tinha sido cabo da GNR, para uma investigação que tentava levar a cabo; que já tinha estado no Arquivo do Exército, que lá lhe tinham dado o número do processo e a caixa dizendo que se encontra no Arquivo da GNR. Já tinha enviado vários e-mails para a GNR, já lhe tinham pedido vários dados, mas como não havia meio de lhe darem uma resposta positiva tinha resolvido “meter os pés ao caminho” e ali estava ele.
- Você está com um azar do “caraças”! – respondi-lhe eu, depois de o ter escutado.
- Então, porquê? – perguntou, intrigado, o Sr. Celino.
- É que hoje não está nenhum arquivista, eu sou bibliotecário, não trabalho no arquivo… Se tivesse telefonado antes… - disse-lhe eu, um pouco embaraçado.
Conversa puxa conversa e, a um dado momento, perguntei:
- E o seu avô era de onde?
- São Pedro da Cova, Gondomar – respondeu de pronto.
- Eh pá, mas é a terra da minha mulher, foi na igreja de lá que casámos! – exclamei eu, animado com a coincidência.
Em parte devido às recomendações do Chefe da Divisão que pretendia que todos soubéssemos um pouco das diferentes áreas de trabalho, e também por curiosidade e interesse natural, eu conhecia os códigos de acesso ao programa de pesquisa dos processos do arquivo e a forma de ordenação das caixas e processos na infinidade de estantes.
- Espere, aqui, que pode ser que o consiga ajudar – disse-lhe eu, dirigindo-me para o interior do Arquivo Histórico.
Inseri o código no computador, digitei os dados na pesquisa e esperei pela resposta da base de dados: “Henrique Barbosa da Neves, 1º cabo, N.º processo X, estante Y, prateleira Z”. Dirigi-me apressado para a estante pensando: “vai ser canja!”
Passado um bom quarto de hora lá fui ter com o Sr. Celino que me esperava ansioso.
- Está perdido, Sr. Celino. O processo está cá no arquivo, está registado na base de dados, mas não está na estante, no local dele – informei-o eu com algum desalento.
- “Então era por isso que não me respondiam” – pensou, falando alto, o Sr. Celino – E agora!?
- Olhe, agora!? São milhares e milhares de processos, pode estar em qualquer lado. Quando se perde um processo só com uma grande sorte é que se volta a encontrá-lo. Pode ser que, daqui a uns tempos, por um acaso qualquer, se dê com ele no sítio errado e se coloque novamente no lugar dele – expliquei eu.
O desânimo era grande no rosto do Sr. Celino que se preparava para regressar a casa de “mãos a abanar”. De repente, tive uma espécie de “iluminação” e disse-lhe:
- Tive uma ideia, espere aqui um bocadinho!
Passado um minuto ou dois lá apareci, sorridente, com o processo do avô do Sr. Celino na mão.
- Aqui está ele! – e li o nome manuscrito na capilha amarelecida pelo tempo – “Henrique Barbosa das Neves”, até tem aqui uma foto dele!
O Sr. Celino, muito animado, não parava de me agradecer e, apressado, foi consultar o processo na sala de leitura, onde descobriu que o avô tinha participado na Primeira Guerra Mundial, tendo combatido na Flandres, na Batalha de La Lys, acabando prisioneiro num campo alemão, sendo libertado e regressando a Portugal já muitos meses depois do fim da Guerra. Fiquei de lhe enviar uma digitalização da fotografia do avô, por e-mail, e o Sr. Celino prometeu oferecer-me um exemplar do livro quando publicado.
À despedida, ainda continuávamos emocionados com o “milagroso” achamento do processo:
- Ó Sr Celino, você até teve sorte, se eu não estivesse aqui, hoje, sozinho, se calhar nunca mais achava o processo. O arquivista ia à prateleira, não estava lá, e pronto … - disse-lhe eu.
- É verdade, Sr. António Silva, isto há coincidências difíceis de entender. Em tantos meses, porque é que hoje, quando me levantei, decidi: “ tenho de ir ao arquivo da GNR!” Olhe se não tenho vindo?! Se não o tenho encontrado a si e se não fosse essa sua ideia?…
Passado algum tempo, recebi um telefonema do Senhor Celino que pretendia o meu endereço postal para me enviar o prometido livro, acabado de editar. Conversámos, ainda, um pouco:
- Já não me lembro bem, Sr. Celino, e como é que eu descobri o processo do seu avô? – perguntei-lhe eu, já esquecido do assunto.
- O meu avô era da GNR e o processo não aparecia em lado nenhum, estava perdido. Então, você teve aquela “intuição” e pensou: Será que se enganaram e colocaram-no na ordenação correta mas junto dos processos da Guarda Fiscal. Porque os processos da GNR e da Guarda Fiscal estavam separados. E lá estava ele, encontrámos o meu avô GNR no meio dos Guardas – Fiscais. Foi assim!
2. A biografia
Podemos dizer que Leonida de Jesus Vilela (Provesende 1907-Leiria 1991) nasceu e morreu como criada de servir. Embora tenha tido, esporadicamente, outras ocupações, é a condição de criada que a “persegue” toda a vida.
Órfã de pai muito pequena, sem irmãos - os cinco que teve morreram antes de ter nascido - Leonida é “sinalizada”, com seis anos de idade, pelo pároco da aldeia onde vive que “negoceia” com um casal abastado, que habita longe da aldeia, e a mãe, a ida da filha para fazer pequenos serviços e companhia a uma menina de oito anos, filha única desse casal. A intervenção do padre teria como objetivo livrá-la da miséria e da fome – mas haverá, para uma criança, “fome” maior que a falta de uma mãe? É, pois, o argumento de uma “vida melhor” que é usado para convencer a mãe a deixar partir a filha para longe de si. De resto, a mãe de Leonida, Genoveva de Jesus, é também uma mulher “marcada” pela doutrina da Igreja e pelo sistema de servidão rural - é filha do “pecado”, pois nasce devido à relação entre a mãe, criada de servir, com o seu patrão, mas este nunca a virá a ajudar nem reconhecer como filha. A propósito dos abusos sexuais nestes sistemas de servidão, e tendo em mente a avó materna, o autor refere:
Infelizmente, a abastança de muitos homens faz deles animais irracionais, que ferem, mordem, e matam – umas vezes com palavras, outras com gestos e muitas vezes com atos – a dignidade de muitas mulheres humildes e indefesas contra a alta esfera da sociedade. Sabemos que sempre existiram, ao longo da nossa história, homens com esta índole, muitos deles vindos de classes sociais mais abastadas ou de ilustres famílias com distintas honrarias, que usavam e abusavam das suas serviçais, perseguindo-as como cães famintos, ávidos de luxúria, para satisfazerem os seus prazeres carnais pela calada da noite, ou em qualquer lugar em que a presa não tivesse a mínima hipótese de saída. Em sentido inverso, a necessidade, a fome, ou o medo de perder o posto de trabalho, o garante de pão em cima da mesa, faz com que muitas mulheres se deixem subjugar por esses ilustres e perversos senhores, que têm o poder de passar um atestado de vergonha às mais fracas e humildes, submetendo-as ao juízo da desonra, sempre com a conveniência das leis da justiça da terra, nem sempre cegas, feitas por alfaiates, que as ajustam à medida da pança de cada um desses abutres (Fraga,2020:38).
A pequena Leonida acaba por voltar à aldeia, passado alguns meses, porque a menina não simpatizava com ela e a relação entre ambas não deu os frutos que os pais esperavam.
Anos mais tarde, já adolescente, é contratada como criada interna por um coronel do Exército e sua esposa, em Vila Real. É dispensada cinco anos depois, quando essa família se muda para Lisboa, regressando a Provesende. Acaba depois por ser contratada para trabalhar no Porto, sendo criada “novamente” da menina que foi fazer companhia quando tinha seis anos, agora professora no colégio das irmãs Doroteias e recém-casada com um jovem engenheiro dos caminhos de ferro. Na cidade do Porto ainda tem alguns esgares de felicidade, na companhia de outras criadas de servir, durante os passeios que dão nas únicas três ou quatro horas de liberdade que os patrões lhes dão aos domingos à tarde. Volta depois para a aldeia para cuidar da mãe, doente com uma pneumonia, e acaba por casar, aos 32 anos de idade, com José Ramos das Neves, um mineiro que passa longos períodos fora de casa.
A família, pouco tempo depois do casamento, muda-se para a aldeia de Justes (Vila Real) onde julgam encontrar melhores meios de subsistência. Os dois primeiros filhos de Leonida morrem cedo, com cerca de 16 meses, e, quando engravida pela terceira vez, o marido abandona-a nunca chegando a conhecer o filho Celino (autor desta biografia).
Movida por uma fé enorme, e pelo extremo amor ao filho, promete de ir ao Santuário de Fátima agradecer a Nossa Senhora se ele ultrapassasse os fatídicos 16 meses e completasse, com saúde, os dois anos de idade. Sozinha, com o filho ao colo ou à cabeça enquanto dorme, numa espécie de canastra, Leonida vai percorrer os quase trezentos quilómetros que separa a aldeia de Justes de Cova da Iria. Começa a caminhar pela alvorada e, ao entardecer, assim que avista uma igreja ou campanário para lá se dirige para descansar e procurar auxílio para passar a noite com o filho. Com a ajuda dos habitantes das terras por onde passa chega a Fátima, passado quase um mês, cumprindo a sua promessa e a tempo de assistir às celebrações das aparições de 13 de Maio, que muito a reconfortaram.
Finda a peregrinação, no regresso, acaba por não voltar a Trás-os-Montes e vai fixar-se em Leiria onde é apoiada por algumas famílias que tinha conhecido na ida para Fátima. Ali, mãe e filho vão ficar conhecidos por muitos anos como “os peregrinos de Fátima”. Vive com alguma tranquilidade e felicidade com o filho numa pequena casa arrendada, e até consegue que ele frequente, gratuitamente, uma escola particular o Jardim-Escola João de Deus, uma feliz raridade, em Portugal, em termos de inovação pedagógica. Fruto de vários aconselhamentos que lhe procuravam demonstrar a fragilidade da sua situação familiar, recordando uns dias em que esteve internada no hospital, ficando o filho aos cuidados dos vizinhos, acaba por se separar do filho ao inscrevê-lo, aos sete anos, no “Asilo”, o Internato Distrital de Leiria, uma escola para os filhos dos pobres, então dirigida pelo Frei padre franciscano João d’ Alcaravela (que irá escrever a nota de apresentação deste livro). Essa separação é traumática para ambos e, aos 16 anos, quando já não é obrigado a permanecer no Internato, Celino abandona-o com a esperança de arranjar um trabalho, tirar a mãe da condição de criada, alugar uma casa, e ir viver com ela - o sonho de regressar à sua “idade de ouro”, aos poucos anos de felicidade que viveu com a mãe na infância. Não conseguiu esse sonho o adolescente Celino, mas tentou-o, nesse imenso amor pela mãe.
Leonida acabou por ficar a trabalhar quase 40 anos para uma mesma família em Leiria, que fez dela quase um seu membro, mas que, na verdade, a impediu de ter a sua própria família, de poder desfrutar a convivência diária o amor com o filho. Morre nos braços do filho Celino num lar em Leiria, a 24 de Dezembro de em 1991, aos 84 anos de idade.
3. A crítica
A leitura de Mãe e filho peregrinos em Fátima, de Cilínio Fraga, envolve-nos num misto de angústia e prazer. Será difícil não sentirmos o estômago apertado por uma impotente revolta. Revolta de não conseguirmos mudar a realidade, de sabermos que aquela “peregrinação” não é só ficção mas a verdade da vida dura, e muitas vezes injusta, de Leonida de Jesus Vilela. Conjugado com todas essas emoções ou comoções vem aquele prazer, próprio da boa escrita, de querermos “devorar” as páginas, de saber o que vem a seguir, de perscrutar as soluções que a mãe Leonida inventa para prosseguir com a sua vida e a do filho.
A biografia foi escrita de modo a deixar emergir, “a cada página”, uma corrente de fé católica - ou não fosse Leonida uma fervorosa crente. Assim, vemos que o autor pelo seu carácter benevolente e apaziguador, ou por razões de fé, enaltece todos os membros da Igreja que se cruzaram na vida da mãe e todos os patrões a quem serviu. Mas terá sido mesmo assim? Terão sido todos “anjos da guarda” para Leonida? Há situações que nos levam a duvidar.
Leonida tinha, enquanto criança e jovem, uma enorme vontade de aprender a ler e escrever mas nunca conseguiu realizar esse seu desejo. Uma freira em Vila Real ainda lhe deu algumas lições, mas o regresso inesperado a Provesende acabou com esse sonho. De entre toda as outras pessoas letradas, presentes por longos períodos na vida de Leonida, e descritas como caridosas (padres, freiras, militares, engenheiros, professoras), não houve uma que se tenha disponibilizado para lhe ensinar os rudimentos da escrita e da leitura. Seria considerado instrução a mais, e desnecessária, dada a sua condição social? Não será esse desinteresse uma forma de mal?
O autor coloca o mal, quase sempre, como ações, ou omissões, de particulares sobre Leonida – o marido, o sogro, o avô materno – um pouco na senda dos exemplos bíblicos da doutrina cristã. Contudo, no caso de Leonida - e de inúmeras “Leonidas”- o mal ter-se-á de equacionar de um modo mais abrangente, coletivo, pois, mais que a ação de um sujeito ou outro, são as normas sócio-políticas, económicas e religiosas do Portugal de então, como um todo, os males maiores que amarraram Leonida à condição servil e lhe retiram a liberdade. A vida de Leonida é um espelho das ideias que a ditadura de então, e a sociedade em geral, tinham para as mulheres, particularmente para as dos estratos sociais mais baixos; mas é-o também das normas e proibições com que a Igreja Católica amordaçava as mulheres, especialmente as mais crentes e desprotegidas. Não eram verdadeiras servas em Cristo, como acreditavam ou lhe faziam crer, mas servas da Igreja Romana e da sua doutrina.
Mãe e filho peregrinos em Fátima, de Cilínio Fraga, é também a constatação, em papel impresso, de que uma certa tradição literária elitista das obras biográficas, associadas a supostos ilustres ou famosos, é de crédito duvidoso, pois toda a pessoa humana encerra uma singularidade e uma riqueza de vida que podem ser transpostas para a boa literatura - haja talento para escrever e livreiros interessados em publicar. Não será preciso procurar “longe” ou “alto”, bastará interessamo-nos, ou amarmos (na terminologia cristã) os que nos rodeiam, os que nos são próximos. É, porventura, esse ato profundo de amor pela mãe, transposto para a escrita pelo autor, que faz deste seu livro uma obra de boa literatura que importa ler e divulgar.
17 de Fevereiro de 2022
Obra lida e comentada por António Silva (“Nica”)
1. O encontro
Numa tarde de sexta-feira, o senhor Celino Neves subiu a íngreme escadaria de pedra e entrou no edifício de dois pisos onde funciona a Divisão de História e Cultura da GNR, em Alcântara, Lisboa. Por insólito que pareça, e devido a uma série de acasos, naquela tarde, eu era a única pessoa a trabalhar na Divisão. O Sr. Celino abordou-me e disse que procurava o processo do seu avô, que tinha sido cabo da GNR, para uma investigação que tentava levar a cabo; que já tinha estado no Arquivo do Exército, que lá lhe tinham dado o número do processo e a caixa dizendo que se encontra no Arquivo da GNR. Já tinha enviado vários e-mails para a GNR, já lhe tinham pedido vários dados, mas como não havia meio de lhe darem uma resposta positiva tinha resolvido “meter os pés ao caminho” e ali estava ele.
- Você está com um azar do “caraças”! – respondi-lhe eu, depois de o ter escutado.
- Então, porquê? – perguntou, intrigado, o Sr. Celino.
- É que hoje não está nenhum arquivista, eu sou bibliotecário, não trabalho no arquivo… Se tivesse telefonado antes… - disse-lhe eu, um pouco embaraçado.
Conversa puxa conversa e, a um dado momento, perguntei:
- E o seu avô era de onde?
- São Pedro da Cova, Gondomar – respondeu de pronto.
- Eh pá, mas é a terra da minha mulher, foi na igreja de lá que casámos! – exclamei eu, animado com a coincidência.
Em parte devido às recomendações do Chefe da Divisão que pretendia que todos soubéssemos um pouco das diferentes áreas de trabalho, e também por curiosidade e interesse natural, eu conhecia os códigos de acesso ao programa de pesquisa dos processos do arquivo e a forma de ordenação das caixas e processos na infinidade de estantes.
- Espere, aqui, que pode ser que o consiga ajudar – disse-lhe eu, dirigindo-me para o interior do Arquivo Histórico.
Inseri o código no computador, digitei os dados na pesquisa e esperei pela resposta da base de dados: “Henrique Barbosa da Neves, 1º cabo, N.º processo X, estante Y, prateleira Z”. Dirigi-me apressado para a estante pensando: “vai ser canja!”
Passado um bom quarto de hora lá fui ter com o Sr. Celino que me esperava ansioso.
- Está perdido, Sr. Celino. O processo está cá no arquivo, está registado na base de dados, mas não está na estante, no local dele – informei-o eu com algum desalento.
- “Então era por isso que não me respondiam” – pensou, falando alto, o Sr. Celino – E agora!?
- Olhe, agora!? São milhares e milhares de processos, pode estar em qualquer lado. Quando se perde um processo só com uma grande sorte é que se volta a encontrá-lo. Pode ser que, daqui a uns tempos, por um acaso qualquer, se dê com ele no sítio errado e se coloque novamente no lugar dele – expliquei eu.
O desânimo era grande no rosto do Sr. Celino que se preparava para regressar a casa de “mãos a abanar”. De repente, tive uma espécie de “iluminação” e disse-lhe:
- Tive uma ideia, espere aqui um bocadinho!
Passado um minuto ou dois lá apareci, sorridente, com o processo do avô do Sr. Celino na mão.
- Aqui está ele! – e li o nome manuscrito na capilha amarelecida pelo tempo – “Henrique Barbosa das Neves”, até tem aqui uma foto dele!
O Sr. Celino, muito animado, não parava de me agradecer e, apressado, foi consultar o processo na sala de leitura, onde descobriu que o avô tinha participado na Primeira Guerra Mundial, tendo combatido na Flandres, na Batalha de La Lys, acabando prisioneiro num campo alemão, sendo libertado e regressando a Portugal já muitos meses depois do fim da Guerra. Fiquei de lhe enviar uma digitalização da fotografia do avô, por e-mail, e o Sr. Celino prometeu oferecer-me um exemplar do livro quando publicado.
À despedida, ainda continuávamos emocionados com o “milagroso” achamento do processo:
- Ó Sr Celino, você até teve sorte, se eu não estivesse aqui, hoje, sozinho, se calhar nunca mais achava o processo. O arquivista ia à prateleira, não estava lá, e pronto … - disse-lhe eu.
- É verdade, Sr. António Silva, isto há coincidências difíceis de entender. Em tantos meses, porque é que hoje, quando me levantei, decidi: “ tenho de ir ao arquivo da GNR!” Olhe se não tenho vindo?! Se não o tenho encontrado a si e se não fosse essa sua ideia?…
Passado algum tempo, recebi um telefonema do Senhor Celino que pretendia o meu endereço postal para me enviar o prometido livro, acabado de editar. Conversámos, ainda, um pouco:
- Já não me lembro bem, Sr. Celino, e como é que eu descobri o processo do seu avô? – perguntei-lhe eu, já esquecido do assunto.
- O meu avô era da GNR e o processo não aparecia em lado nenhum, estava perdido. Então, você teve aquela “intuição” e pensou: Será que se enganaram e colocaram-no na ordenação correta mas junto dos processos da Guarda Fiscal. Porque os processos da GNR e da Guarda Fiscal estavam separados. E lá estava ele, encontrámos o meu avô GNR no meio dos Guardas – Fiscais. Foi assim!
2. A biografia
Podemos dizer que Leonida de Jesus Vilela (Provesende 1907-Leiria 1991) nasceu e morreu como criada de servir. Embora tenha tido, esporadicamente, outras ocupações, é a condição de criada que a “persegue” toda a vida.
Órfã de pai muito pequena, sem irmãos - os cinco que teve morreram antes de ter nascido - Leonida é “sinalizada”, com seis anos de idade, pelo pároco da aldeia onde vive que “negoceia” com um casal abastado, que habita longe da aldeia, e a mãe, a ida da filha para fazer pequenos serviços e companhia a uma menina de oito anos, filha única desse casal. A intervenção do padre teria como objetivo livrá-la da miséria e da fome – mas haverá, para uma criança, “fome” maior que a falta de uma mãe? É, pois, o argumento de uma “vida melhor” que é usado para convencer a mãe a deixar partir a filha para longe de si. De resto, a mãe de Leonida, Genoveva de Jesus, é também uma mulher “marcada” pela doutrina da Igreja e pelo sistema de servidão rural - é filha do “pecado”, pois nasce devido à relação entre a mãe, criada de servir, com o seu patrão, mas este nunca a virá a ajudar nem reconhecer como filha. A propósito dos abusos sexuais nestes sistemas de servidão, e tendo em mente a avó materna, o autor refere:
Infelizmente, a abastança de muitos homens faz deles animais irracionais, que ferem, mordem, e matam – umas vezes com palavras, outras com gestos e muitas vezes com atos – a dignidade de muitas mulheres humildes e indefesas contra a alta esfera da sociedade. Sabemos que sempre existiram, ao longo da nossa história, homens com esta índole, muitos deles vindos de classes sociais mais abastadas ou de ilustres famílias com distintas honrarias, que usavam e abusavam das suas serviçais, perseguindo-as como cães famintos, ávidos de luxúria, para satisfazerem os seus prazeres carnais pela calada da noite, ou em qualquer lugar em que a presa não tivesse a mínima hipótese de saída. Em sentido inverso, a necessidade, a fome, ou o medo de perder o posto de trabalho, o garante de pão em cima da mesa, faz com que muitas mulheres se deixem subjugar por esses ilustres e perversos senhores, que têm o poder de passar um atestado de vergonha às mais fracas e humildes, submetendo-as ao juízo da desonra, sempre com a conveniência das leis da justiça da terra, nem sempre cegas, feitas por alfaiates, que as ajustam à medida da pança de cada um desses abutres (Fraga,2020:38).
A pequena Leonida acaba por voltar à aldeia, passado alguns meses, porque a menina não simpatizava com ela e a relação entre ambas não deu os frutos que os pais esperavam.
Anos mais tarde, já adolescente, é contratada como criada interna por um coronel do Exército e sua esposa, em Vila Real. É dispensada cinco anos depois, quando essa família se muda para Lisboa, regressando a Provesende. Acaba depois por ser contratada para trabalhar no Porto, sendo criada “novamente” da menina que foi fazer companhia quando tinha seis anos, agora professora no colégio das irmãs Doroteias e recém-casada com um jovem engenheiro dos caminhos de ferro. Na cidade do Porto ainda tem alguns esgares de felicidade, na companhia de outras criadas de servir, durante os passeios que dão nas únicas três ou quatro horas de liberdade que os patrões lhes dão aos domingos à tarde. Volta depois para a aldeia para cuidar da mãe, doente com uma pneumonia, e acaba por casar, aos 32 anos de idade, com José Ramos das Neves, um mineiro que passa longos períodos fora de casa.
A família, pouco tempo depois do casamento, muda-se para a aldeia de Justes (Vila Real) onde julgam encontrar melhores meios de subsistência. Os dois primeiros filhos de Leonida morrem cedo, com cerca de 16 meses, e, quando engravida pela terceira vez, o marido abandona-a nunca chegando a conhecer o filho Celino (autor desta biografia).
Movida por uma fé enorme, e pelo extremo amor ao filho, promete de ir ao Santuário de Fátima agradecer a Nossa Senhora se ele ultrapassasse os fatídicos 16 meses e completasse, com saúde, os dois anos de idade. Sozinha, com o filho ao colo ou à cabeça enquanto dorme, numa espécie de canastra, Leonida vai percorrer os quase trezentos quilómetros que separa a aldeia de Justes de Cova da Iria. Começa a caminhar pela alvorada e, ao entardecer, assim que avista uma igreja ou campanário para lá se dirige para descansar e procurar auxílio para passar a noite com o filho. Com a ajuda dos habitantes das terras por onde passa chega a Fátima, passado quase um mês, cumprindo a sua promessa e a tempo de assistir às celebrações das aparições de 13 de Maio, que muito a reconfortaram.
Finda a peregrinação, no regresso, acaba por não voltar a Trás-os-Montes e vai fixar-se em Leiria onde é apoiada por algumas famílias que tinha conhecido na ida para Fátima. Ali, mãe e filho vão ficar conhecidos por muitos anos como “os peregrinos de Fátima”. Vive com alguma tranquilidade e felicidade com o filho numa pequena casa arrendada, e até consegue que ele frequente, gratuitamente, uma escola particular o Jardim-Escola João de Deus, uma feliz raridade, em Portugal, em termos de inovação pedagógica. Fruto de vários aconselhamentos que lhe procuravam demonstrar a fragilidade da sua situação familiar, recordando uns dias em que esteve internada no hospital, ficando o filho aos cuidados dos vizinhos, acaba por se separar do filho ao inscrevê-lo, aos sete anos, no “Asilo”, o Internato Distrital de Leiria, uma escola para os filhos dos pobres, então dirigida pelo Frei padre franciscano João d’ Alcaravela (que irá escrever a nota de apresentação deste livro). Essa separação é traumática para ambos e, aos 16 anos, quando já não é obrigado a permanecer no Internato, Celino abandona-o com a esperança de arranjar um trabalho, tirar a mãe da condição de criada, alugar uma casa, e ir viver com ela - o sonho de regressar à sua “idade de ouro”, aos poucos anos de felicidade que viveu com a mãe na infância. Não conseguiu esse sonho o adolescente Celino, mas tentou-o, nesse imenso amor pela mãe.
Leonida acabou por ficar a trabalhar quase 40 anos para uma mesma família em Leiria, que fez dela quase um seu membro, mas que, na verdade, a impediu de ter a sua própria família, de poder desfrutar a convivência diária o amor com o filho. Morre nos braços do filho Celino num lar em Leiria, a 24 de Dezembro de em 1991, aos 84 anos de idade.
3. A crítica
A leitura de Mãe e filho peregrinos em Fátima, de Cilínio Fraga, envolve-nos num misto de angústia e prazer. Será difícil não sentirmos o estômago apertado por uma impotente revolta. Revolta de não conseguirmos mudar a realidade, de sabermos que aquela “peregrinação” não é só ficção mas a verdade da vida dura, e muitas vezes injusta, de Leonida de Jesus Vilela. Conjugado com todas essas emoções ou comoções vem aquele prazer, próprio da boa escrita, de querermos “devorar” as páginas, de saber o que vem a seguir, de perscrutar as soluções que a mãe Leonida inventa para prosseguir com a sua vida e a do filho.
A biografia foi escrita de modo a deixar emergir, “a cada página”, uma corrente de fé católica - ou não fosse Leonida uma fervorosa crente. Assim, vemos que o autor pelo seu carácter benevolente e apaziguador, ou por razões de fé, enaltece todos os membros da Igreja que se cruzaram na vida da mãe e todos os patrões a quem serviu. Mas terá sido mesmo assim? Terão sido todos “anjos da guarda” para Leonida? Há situações que nos levam a duvidar.
Leonida tinha, enquanto criança e jovem, uma enorme vontade de aprender a ler e escrever mas nunca conseguiu realizar esse seu desejo. Uma freira em Vila Real ainda lhe deu algumas lições, mas o regresso inesperado a Provesende acabou com esse sonho. De entre toda as outras pessoas letradas, presentes por longos períodos na vida de Leonida, e descritas como caridosas (padres, freiras, militares, engenheiros, professoras), não houve uma que se tenha disponibilizado para lhe ensinar os rudimentos da escrita e da leitura. Seria considerado instrução a mais, e desnecessária, dada a sua condição social? Não será esse desinteresse uma forma de mal?
O autor coloca o mal, quase sempre, como ações, ou omissões, de particulares sobre Leonida – o marido, o sogro, o avô materno – um pouco na senda dos exemplos bíblicos da doutrina cristã. Contudo, no caso de Leonida - e de inúmeras “Leonidas”- o mal ter-se-á de equacionar de um modo mais abrangente, coletivo, pois, mais que a ação de um sujeito ou outro, são as normas sócio-políticas, económicas e religiosas do Portugal de então, como um todo, os males maiores que amarraram Leonida à condição servil e lhe retiram a liberdade. A vida de Leonida é um espelho das ideias que a ditadura de então, e a sociedade em geral, tinham para as mulheres, particularmente para as dos estratos sociais mais baixos; mas é-o também das normas e proibições com que a Igreja Católica amordaçava as mulheres, especialmente as mais crentes e desprotegidas. Não eram verdadeiras servas em Cristo, como acreditavam ou lhe faziam crer, mas servas da Igreja Romana e da sua doutrina.
Mãe e filho peregrinos em Fátima, de Cilínio Fraga, é também a constatação, em papel impresso, de que uma certa tradição literária elitista das obras biográficas, associadas a supostos ilustres ou famosos, é de crédito duvidoso, pois toda a pessoa humana encerra uma singularidade e uma riqueza de vida que podem ser transpostas para a boa literatura - haja talento para escrever e livreiros interessados em publicar. Não será preciso procurar “longe” ou “alto”, bastará interessamo-nos, ou amarmos (na terminologia cristã) os que nos rodeiam, os que nos são próximos. É, porventura, esse ato profundo de amor pela mãe, transposto para a escrita pelo autor, que faz deste seu livro uma obra de boa literatura que importa ler e divulgar.
17 de Fevereiro de 2022