Dançar, um direito desigual. A partir de “Para todo o serviço”, dirigido por Margarida Gil (1975)
Item
Título do recurso
Dançar, um direito desigual. A partir de “Para todo o serviço”, dirigido por Margarida Gil (1975)
Autor
Margarida Gil
Data
1975
Local
Lisboa
Editora
produção Cinequanon
Páginas
Minuto 8:45
Descrição
Dançar, um direito desigual
Por Inês Brasão (Politécnico de Leiria, IHC - NOVA FCSH, CITUR)
A partir de um fotograma do filme “Para todo o serviço”, dirigido por Margarida Gil (1975), e de alguns excertos publicados no jornal A Voz das Criadas, levantamos a questão da dança enquanto direito desigual, e o direito ao lazer e à festa enquanto bem moralmente assediado no caso da condição servil doméstica. Ao longo do período do «Estado Novo», muitas foram as proclamações contra o perigo que representavam os bailes para as “criadas de servir”. Se, num primeiro movimento, podemos enquadrar a descrição desses perigos como a vontade de proteger de alguma vulnerabilidade e assédio as jovens trabalhadoras domésticas, rapidamente nos apercebemos que aquele é sobretudo fruto da vontade de vigiar e punir estas mulheres no direito ao prazer, ao movimento, à interpretação, ao namoro e à sedução. Afinal, se as queremos considerar vítimas, como alguns excertos nos fazem crer, é porque existem agressores, e sobre estes não encontramos condenação. Por outro lado, em alguns dos textos de repúdio pelas criadas em bailes, estão argumentos de uma outra natureza, essencialmente moral: lugares onde estas se entregam à depravação moral e falta de virtude, “desonra” (a ideia de que a pureza não encontra sede além da virgindade), gasto fútil (como se aos menos favorecidos fosse vetado o direito ao divertimento) e uma completa inversão do que sabemos da condição histórica desta profissão, acentuando o quanto as suas trabalhadoras se perderiam em luxos e vaidades. Por último, mas não menos importante, ataques que desde sempre atingiram não apenas as mulheres servis, como todas as mulheres, acusando-as de promiscuidade e indecência pelo simples de admissão a espaços de dança e divertimento, apenas aos homens legitimados.
Deixamo-vos três excertos do jornal nos quais podemos detetar alguns traços comuns:
Excerto 1: Voz das Criadas, agosto de 1954, nº 246, artigo «Convite para o baile, o presidente diretor e mestre Satanás.» p. 3.
«O BAILE – mata o corpo
- apunhala a virtude
- destrói a moralidade
-amortalha a alma!
Pais e mães: Não deixeis vossas filhas e filhos, criados e criadas entrarem em bailes se não quereis:
-desgostos para a vossa vida
-remorsos para a vossa velhice
-desonra para o vosso nome e vossa casa!»
Excerto 2: Voz das Criadas, setembro de 1958
Artigo «Obra Providencial a Favor das Criadas» assinado por A. Rosado c.m.f., p. 1 e 4 (fotocopiar)
“(…)Ao contrário do que sucede em outros países, entre nós, o número de criadas tende a aumentar. O senso de 1940 registava 187.000; o de 1950, 213.000, e haverá actualmente cerca de 220.000 ou 225.000. Só em Lisboa havia 37.000 em 1940; 50.300 em 1950 e calcula-se que sejam agora cerca de 60.000. No Porto, mais de 22.000, actualmente.
(…) Habituadas a nada ter, as criadas gastam o pouco que ganham no luxo, na vaidade, no cinema e nos bailes. A O.P.F.C. ensina-as a serem previdentes, a guardarem nos dias de prosperidade para as horas de doença ou desemprego. (…) desta sorte se combate o adágio corrente entre as Criadas: de nova a servir e de velha a pedir.”
Excerto 3: Voz das Criadas, novembro de 1952, artigo «Ao serviço do comunismo», p. 3.
“O culto do nú, a redução das indumentárias, a licenciosidade das conversas, as liberdades dos costumes, os bailes repetidos, a promiscuidade dos sexos e outras práticas, são o índice mais certo e apavorante de quantos e quantas estão cumprindo à letra, talvez sem o saberem, este diabólico decálogo, ao serviço do comunismo.
Às nossas companheiras, criadas de Portugal, dirigimos neste momento o nosso grito de «alerta!» pondo-as de sobreaviso, para que saibam desviar-se e defender-se da lama infernal que escorre por toda a parte, e que tantas vítimas tem feito entre as nossas irmãs de trabalho.”
Por Inês Brasão (Politécnico de Leiria, IHC - NOVA FCSH, CITUR)
A partir de um fotograma do filme “Para todo o serviço”, dirigido por Margarida Gil (1975), e de alguns excertos publicados no jornal A Voz das Criadas, levantamos a questão da dança enquanto direito desigual, e o direito ao lazer e à festa enquanto bem moralmente assediado no caso da condição servil doméstica. Ao longo do período do «Estado Novo», muitas foram as proclamações contra o perigo que representavam os bailes para as “criadas de servir”. Se, num primeiro movimento, podemos enquadrar a descrição desses perigos como a vontade de proteger de alguma vulnerabilidade e assédio as jovens trabalhadoras domésticas, rapidamente nos apercebemos que aquele é sobretudo fruto da vontade de vigiar e punir estas mulheres no direito ao prazer, ao movimento, à interpretação, ao namoro e à sedução. Afinal, se as queremos considerar vítimas, como alguns excertos nos fazem crer, é porque existem agressores, e sobre estes não encontramos condenação. Por outro lado, em alguns dos textos de repúdio pelas criadas em bailes, estão argumentos de uma outra natureza, essencialmente moral: lugares onde estas se entregam à depravação moral e falta de virtude, “desonra” (a ideia de que a pureza não encontra sede além da virgindade), gasto fútil (como se aos menos favorecidos fosse vetado o direito ao divertimento) e uma completa inversão do que sabemos da condição histórica desta profissão, acentuando o quanto as suas trabalhadoras se perderiam em luxos e vaidades. Por último, mas não menos importante, ataques que desde sempre atingiram não apenas as mulheres servis, como todas as mulheres, acusando-as de promiscuidade e indecência pelo simples de admissão a espaços de dança e divertimento, apenas aos homens legitimados.
Deixamo-vos três excertos do jornal nos quais podemos detetar alguns traços comuns:
Excerto 1: Voz das Criadas, agosto de 1954, nº 246, artigo «Convite para o baile, o presidente diretor e mestre Satanás.» p. 3.
«O BAILE – mata o corpo
- apunhala a virtude
- destrói a moralidade
-amortalha a alma!
Pais e mães: Não deixeis vossas filhas e filhos, criados e criadas entrarem em bailes se não quereis:
-desgostos para a vossa vida
-remorsos para a vossa velhice
-desonra para o vosso nome e vossa casa!»
Excerto 2: Voz das Criadas, setembro de 1958
Artigo «Obra Providencial a Favor das Criadas» assinado por A. Rosado c.m.f., p. 1 e 4 (fotocopiar)
“(…)Ao contrário do que sucede em outros países, entre nós, o número de criadas tende a aumentar. O senso de 1940 registava 187.000; o de 1950, 213.000, e haverá actualmente cerca de 220.000 ou 225.000. Só em Lisboa havia 37.000 em 1940; 50.300 em 1950 e calcula-se que sejam agora cerca de 60.000. No Porto, mais de 22.000, actualmente.
(…) Habituadas a nada ter, as criadas gastam o pouco que ganham no luxo, na vaidade, no cinema e nos bailes. A O.P.F.C. ensina-as a serem previdentes, a guardarem nos dias de prosperidade para as horas de doença ou desemprego. (…) desta sorte se combate o adágio corrente entre as Criadas: de nova a servir e de velha a pedir.”
Excerto 3: Voz das Criadas, novembro de 1952, artigo «Ao serviço do comunismo», p. 3.
“O culto do nú, a redução das indumentárias, a licenciosidade das conversas, as liberdades dos costumes, os bailes repetidos, a promiscuidade dos sexos e outras práticas, são o índice mais certo e apavorante de quantos e quantas estão cumprindo à letra, talvez sem o saberem, este diabólico decálogo, ao serviço do comunismo.
Às nossas companheiras, criadas de Portugal, dirigimos neste momento o nosso grito de «alerta!» pondo-as de sobreaviso, para que saibam desviar-se e defender-se da lama infernal que escorre por toda a parte, e que tantas vítimas tem feito entre as nossas irmãs de trabalho.”