"Em dia de convidados"
Item
Título do recurso
"Em dia de convidados"
Autor
s.a.
Data
30 de maio de 1945
Local
Lisboa
Editora
Jornal "O Século"
Descrição
“Criado mudo” e “mesa de serviço”: a produção de distância entre senhores e servos
Quão longínqua pode estar a referência a um objeto de uma referência feita a um trabalhador? Tornada hoje um anátema, a palavra “criado-mudo” foi banalizada durante décadas para se referir a um objeto que hoje designamos por mesa de cabeceira. No Brasil, a discussão atingiu um pouco crítico quando se desvendou que a sua origem estava intimamente ligada ao período esclavagista. Era costume os senhores imporem a obrigação de os seus escravos permanecerem junto à cama, de forma a que suprissem as suas variadas e inesperadas necessidades, durante o período da noite. Tendo um escravo a seu lado, para lhe colmatar a sede, a fome ou o frio, o esforço era totalmente transferido para quem o servia, imóvel e calado. Portador desses objetos, e votado ao silêncio durante a vigília noturna, ficava aos senhores garantido o privilégio de uma noite sem sobressaltos. Após a abolição da escravatura, este ato de total de “coisificação” é substituído pela aquisição do objeto “mesa-de-cabeceira” onde passam a ser albergados e depositados esses mesmos objetos de uso noturno. Hoje a palavra foi proclamada non grata, em respeito pela memória dos escravos.
Uma discussão semelhante ocorre, cerca da década de 1940, em Portugal. As famílias que contratavam serviço doméstico interno estavam cada vez menos complacentes com a presença dos seus “criados” nos momentos de convívio alimentar, e em particular por ocasião da presença de convidados, uma vez que a sensação de estarem a ser vigiados crescia, como cresciam os receios de que os seus segredos fossem desvelados. E são por isso incentivadas essas mesmas famílias a adquirirem uma peça de mobiliário para as suas salas de jantar, a “aparador” ou “criado mudo”. Em inglês, a palavra “dumbwaiter” tem uma ressonância de significado muito similar, estando mais próxima também de um móvel auxiliar para pôr pratos e talheres.
Deixamos uma citação de um artigo publicado na Revista Modas e Bordados, que atesta esta mesma discussão:
“Para evitar certas atrapalhações que, por vezes, tem o pessoal doméstico quando há convidados para jantar, é muito prático organizar a chamada “mesa de serviço” onde se encontram, devidamente alinhados, os pratos, travessas, molheiras, talheres, lavabos e todos os utensílios que devam servir na mesa. É de bom critério ter tudo preparado com muita antecedência a fim de não haver depois essas hesitações do pessoal, que motivam, no momento próprio, troca de olhares, ordens em segredo e sinais de entendimento entre a dona de casa que, em vez de atender apenas aos seus convidados, não tira os olhos da criada…”
Destes preparatórios, que pouco trabalho dão a organizar, depende o bom seguimento do serviço no decorrer da refeição em dia de convidados e que marca muito no conceito que possa fazer-se sobre a dona de casa. Nada mais desagradável, no decorrer dum jantar, do que a criada abrindo e fechando constantemente os armários e gavetas da sala de jantar porque lhe falta, à mão, isto ou aquilo que deverá pôr na mesa.” In: “Em dia de convidados”, in Modas e Bordados, No. 1738, 30 de Maio de 1945
Quão longínqua pode estar a referência a um objeto de uma referência feita a um trabalhador? Tornada hoje um anátema, a palavra “criado-mudo” foi banalizada durante décadas para se referir a um objeto que hoje designamos por mesa de cabeceira. No Brasil, a discussão atingiu um pouco crítico quando se desvendou que a sua origem estava intimamente ligada ao período esclavagista. Era costume os senhores imporem a obrigação de os seus escravos permanecerem junto à cama, de forma a que suprissem as suas variadas e inesperadas necessidades, durante o período da noite. Tendo um escravo a seu lado, para lhe colmatar a sede, a fome ou o frio, o esforço era totalmente transferido para quem o servia, imóvel e calado. Portador desses objetos, e votado ao silêncio durante a vigília noturna, ficava aos senhores garantido o privilégio de uma noite sem sobressaltos. Após a abolição da escravatura, este ato de total de “coisificação” é substituído pela aquisição do objeto “mesa-de-cabeceira” onde passam a ser albergados e depositados esses mesmos objetos de uso noturno. Hoje a palavra foi proclamada non grata, em respeito pela memória dos escravos.
Uma discussão semelhante ocorre, cerca da década de 1940, em Portugal. As famílias que contratavam serviço doméstico interno estavam cada vez menos complacentes com a presença dos seus “criados” nos momentos de convívio alimentar, e em particular por ocasião da presença de convidados, uma vez que a sensação de estarem a ser vigiados crescia, como cresciam os receios de que os seus segredos fossem desvelados. E são por isso incentivadas essas mesmas famílias a adquirirem uma peça de mobiliário para as suas salas de jantar, a “aparador” ou “criado mudo”. Em inglês, a palavra “dumbwaiter” tem uma ressonância de significado muito similar, estando mais próxima também de um móvel auxiliar para pôr pratos e talheres.
Deixamos uma citação de um artigo publicado na Revista Modas e Bordados, que atesta esta mesma discussão:
“Para evitar certas atrapalhações que, por vezes, tem o pessoal doméstico quando há convidados para jantar, é muito prático organizar a chamada “mesa de serviço” onde se encontram, devidamente alinhados, os pratos, travessas, molheiras, talheres, lavabos e todos os utensílios que devam servir na mesa. É de bom critério ter tudo preparado com muita antecedência a fim de não haver depois essas hesitações do pessoal, que motivam, no momento próprio, troca de olhares, ordens em segredo e sinais de entendimento entre a dona de casa que, em vez de atender apenas aos seus convidados, não tira os olhos da criada…”
Destes preparatórios, que pouco trabalho dão a organizar, depende o bom seguimento do serviço no decorrer da refeição em dia de convidados e que marca muito no conceito que possa fazer-se sobre a dona de casa. Nada mais desagradável, no decorrer dum jantar, do que a criada abrindo e fechando constantemente os armários e gavetas da sala de jantar porque lhe falta, à mão, isto ou aquilo que deverá pôr na mesa.” In: “Em dia de convidados”, in Modas e Bordados, No. 1738, 30 de Maio de 1945