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Fernando Alves

Nome do entrevistador/a

Joana Dias Pereira
Rita Cachado

Local

Marinha Grande

Data

16 de novembro de 2021

Duração

75 minutos

Nome do entrevistado/a

Fernando Alves

Data de nascimento

Nasceu em 1945.

Local de nascimento

Martingança (Alcobaça). Aos 16 anos foi para a Marinha Grande.

Profissão dos pais

O pai era negociante e a mãe doméstica.

Escolaridade

Completou a Instrução primária.

Local de residência

Reside na Marinha Grande.

Situação civil

É Casado.

Filhos

Tem dois filhos.

Profissão

Foi Serralheiro de Moldes.

Associações em que participou

Esperanças da Guarda Nova
Clube Lisboa e Marinha
Atlético Clube Marinhense
Clube de Atletismo da Marinha Grande
Associação de Atletismo de Leiria

Cargos dirigentes

Em 1964 foi fundador de uma equipa de futebol popular , os Esperanças da Guarda Nova. Em 1970 integrou os órgãos sociais do Sport Lisboa e Marinha onde desempenhou vários cargos, inclusive Presidente de Direcção. Em 1977 integra os órgãos do Atlético Clube Marinhense. Em 1995 é Fundador do Clube de Atletismo da Marinha Grande, do qual é presidente da Assembleia Geral e treinador desde a sua fundação.
Faz parte dos órgãos sociais da Associação de Atletismo de Leiria desde a sua fundação em 1987.

Filiação partidária

Foi eleito pela CDU.

Cargos políticos

Foi deputado da Assembleia Municipal da Marinha Grande entre 1991 e 2013 e foi secretário da Junta de Freguesia da Marinha Grande de 2013 a 2017.

Religião

É católico não praticante.

Sinopse da entrevista

Descreve a sua ligação ao associativismo desde a infância.
Destaca o contexto da guerra e do colonialismo como determinante para a sua consciencialização política e descreve
os constrangimentos à participação associativa durante a ditadura. Testemunha a sua experiência de participação num grupo de reflexão sobre as condições de trabalho, orientado por um membro da JOC. Revela as possibilidades de desenvolvimento que o 25 de abril abriu, com a proliferação de mais modalidades desportivas e a sua participação no PRP. Relata, finalmente, parte da sua experiência na autarquia, defendendo que “os melhores políticos são os que começaram pelo associativismo, porque também no associativismo há um interesse de ajudar as pessoas". Reflete sobre as dificuldades porque passam atualmente as coletividades e a importância de as câmaras darem apoio às suas atividades, quer pecuniário quer técnico.

Palavras-chave

Testemunho

P: Começando pelo registo de alguns dados biográficos. Podia-me dizer o seu nome todo e a sua data de nascimento?

Fernando Alves: Fernando da Conceição Alves e nasci em 1945.

P: Nasceu aqui na Marinha Grande?

Fernando Alves: Não, sou da Martingança, que é uma povoação aqui pertinho, que pertence ao concelho de Alcobaça.

P: E fez lá a escola?

Fernando Alves: Fiz a escola primária e vim para aqui para a Marinha Grande já com 16 anos. O meu pai era negociante e teve um AVC. Não recuperou e eu tive de deixar de estudar, tive que ir trabalhar. Porque naquele tempo não havia segurança social como há agora, e o meu pai não recebia nada. Bom, nós vivíamos todos dele. A minha irmã era professora. Naquele tempo havia as professoras regentes, que eram abaixo das professoras oficiais. E o meu irmão trabalhava numa fundação, era fundidor, mas o meu pai era a base da casa. Quando ele adoeceu, tivemos que vender bens que tínhamos, porque ele teve um ano internado em Coimbra numa clínica para ver se recuperava e tínhamos todos os meses de pagar uma conta. Chegou a uma altura que já não tínhamos dinheiro, vendemos as coisas, pinhais e tal, e já não tínhamos dinheiro. Depois, a minha irmã veio trabalhar para uma empresa aqui na Marinha, onde ganhava mais do que em professora e o meu irmão já trabalhava. O meu pai estava assim, por isso viemos para cá para ser mais fácil aos meus irmãos estarem no emprego.

P: E o senhor Fernando também veio trabalhar nessa altura?

Fernando Alves: Eu comecei a trabalhar com 13/14 anos, não tinha outra hipótese. Eu fui serralheiro de moldes. Primeiro vim para uma fundição de metais, depois para uma oficina de bicicletas e depois acabei a minha carreira numa fábrica de vidros.

P: O seu pai era?

Fernando Alves: O meu pai era negociante de madeiras. E pronto, ficámos assim porquê? Por isso é que às vezes as pessoas não compreendem o 25 de abril. Se soubessem, se tivessem vivido nessa altura compreendiam, porque nós não tínhamos segurança nenhuma, nem fundo de desemprego como há agora.

P: E casou-se aqui na Marinha Grande? O que é que a sua mulher fazia?

Fernando Alves: A minha esposa era filha de um vidreiro, mas como tinha muito bons resultados na escola, havia um organismo que pagava para irem para o liceu e ela conseguiu entrar. Depois foi também trabalhar para uma fábrica, para um escritório.

P: Também na indústria vidreira?

Fernando Alves: Não, nos plásticos. E trabalhou lá muitos anos até se reformar.

P: E tem filhos?

Fernando Alves: Tenho dois filhos.

P: E o que fazem?

Fernando Alves: Um é professor de educação física e o outro tem um bar, não quis estudar. O mais velho nunca quis estudar. Foi para aviação, foi para a tropa mais cedo para eu não obrigar a andar na escola. Andava chateado, tinha 17 anos e foi para aviação, para não ir estudar. Era muito habilidoso, foi eletricista, depois foi vendedor e mais tarde começou a dizer: Eu Não quero trabalhar para ninguém e montou um café.

P: Tem alguma região?

Fernando Alves: Tenho a religião tradicional, embora eu apoie o Partido Comunista. Não sou filiado nem nada, mas sou de esquerda, estou mais chegado ali, mas sou católico, só que não sou praticante, por tradição até sou católico, não tenho outra religião.

P: E no associativismo, quais foram as associações em que participou?

Fernando Alves: O associativismo foi uma coisa que nasceu quase comigo. O meu pai foi fundador de um clube lá na minha terra. Aliás era um clube que já estava morto, e ele mais outros reabilitaram aquilo. E eu habituei-me desde muito novito a ver lá por casa bolas de futebol, equipamentos. A minha mãe era também muito habilidosa na costura. O meu pai era guarda-redes e ela é que fazia as joalheiras, os calções e eu fui logo habituado a isso. Depois o meu pai era assinante do jornal do Benfica e eu tinha todas as semanas aquele jornal e lia aquilo e entusiasmei-me com isso. Tinha 12 anos comecei logo ali a juntar um grupo, juntei um grupo de miúdos para comprarmos uma bola de futebol, umas camisolas, para fazermos um clube e nunca mais parei. Depois vim aqui para a Marinha Grande aos 16 anos e para aí ao já aos 19 anos, frequentávamos um café de uns senhores muito simpáticos, que que eram os donos, e começámos a pensar: Vamos fazer aqui um clube e organizarmos um clube. De maneira que depois estive por aqui até aos 22 anos. Depois fui mobilizado, fui para o ultramar. É claro, tinha que continuar no ultramar lá no meu grupo, juntei as pessoas e fiz um clube de futebol, que era o que se fazia lá para jogar contra as outras companhias que apareciam, que andavam no Mato. Depois, quando vim, fui para um clube aqui da Marinha Grande, para ser jogador de futebol.

P: Com quantos anos?

Fernando Alves: Com 25 anos, eu tive lá dos 23 aos 25 anos. Mas nesse clube de futebol, que é o Sport Lisboa e Marinha, era um dos mais conhecidos na altura, aí eu tinha um primo, que não me conhecia, porque a família da minha mãe é daqui da Marinha Grande e tenho muitos primos que ainda hoje não me conhecem ou eu não os conheço a eles. E então esse primo quando soube que era primo: Tu não vais nada jogar, vais me ajudar, mas porque ele era o homem do desporto, como eu sou agora, era ele. Vais me ajudar, ficas aqui em diretor, E pronto nunca mais saí dessas coisas. A minha atividade no associativismo é mais no desporto e na política, eu estive 22 anos na Assembleia Municipal e fui 4 anos secretário da Junta de Freguesia. Foi um mandato agora a minha última intervenção. E pronto, agora estou num clube de atletismo que eu fundei há 26 anos.

P: O que o motivou a dedicar tanto da sua vida à participação associativa?

Fernando Alves: Sabe que isto é viciante. Eu agora tenho 76 anos e ando todos os anos a dizer, porque eu sou dirigente da Associação Distrital de Atletismo, ando sempre a dizer que é o último ano, é o último ano, mas depois dá-me pena e também sei que sou um influenciador e tenho medo de que quando eu parar as coisas acabem. Ainda ontem estava numa reunião e disseram: o senhor Fernando vai à Câmara. E eu disse “não, agora não vou eu, vão vocês, vão os mais novos, porque vocês é que têm de dar seguimento a isto” Tenho de os entusiasmar, não é? “Eu já estou a passar de moda, agora vocês é que têm de continuar”. Isto é como o Carlos [presidente da Associação Cultural e Recreativa da Comeira], isto é viciante, temos pena de deixar as coisas morrer e penso que é isso que me leva a não sair.
Este fim de semana, vou para Évora, para uma ação de reciclagem digamos assim de juízes, porque também ao mesmo tempo sou juiz de atletismo, sou árbitro e a minha mulher claro coitada teve que entrar porque eu nunca estava em casa. Um dia convidaram-na, quando foi aqui a inauguração no Estádio da Marinha, da pista, que fui eu que também trouxe a pista para cá, e os meus colegas: Epá, Fernando, precisamos de uma pessoa para estar ali na entrada a fazer a inscrição dos atletas, diz aí à tua mulher se ela pode dar aqui uma ajuda. E eu disse-lhe e depois convenceram-na, tiveram de volta dela. Às vezes ao domingo, no Verão, por exemplo, eu saía com o clube, íamos para longe e ela ficava sozinha com os 2 filhos. Ia para a praia. Depois eu dizia-lhe que ia lá ter, mas já chegava tarde, já não me apetecia, ficava em casa, era uma guerra.

P: A sua mulher foi consigo, acabou por se envolver, há outros casos?

Fernando Alves: Há outros casos também de colegas meus em que as mulheres estão envolvidas. É uma necessidade também, porque – eu não devia dizer isto que vocês ficam todas vaidosas – as mulheres são necessárias porque são mais aplicadas, têm mais atenção às coisas, são mais focadas. A minha mulher, por exemplo, já é mais do que eu no ajuizamento, já é juiz árbitro, porque se dedicou àquilo, estudou e tal. A minha e outras senhoras que estão lá. A chefe dos juízes aqui em Leiria é uma senhora, por exemplo, e por aí pelo país fora há outras com o mesmo cargo.

P: Eu gostava de recuar outra vez ao período mais recuado. Então começou logo aos 12 anos...

Fernando Alves: Comecei aos 12 anos e de uma maneira engraçada, porque sabe, agora os miúdos, nós vamos aí à loja dos chineses ou ao continente e há bolas de futebol baratas. Nós nesse tempo não tínhamos. Nós fazíamos bolas com meias. A minha mãe de vez em quando andava a dar-me umas palmadas, agora já não são palmadas, porque traumatiza os miúdos, mas antes, eu não me sinto nada traumatizado e levei algumas. Porque eu roubava-lhe as meias, aquelas meias altas que se usavam, não eram meias de vidro, eram daquele tecido mais grosso. No Inverno. as senhoras usavam aquelas meias. Como eram grandes, dava para fazer uma bola maior. E nós aí, então, andámos à procura de ferro velho, bocados de ferro e chumbo, para vendermos a um senhor la da terra que comprava, para comprarmos uma bola de borracha, porque a bola de borracha era um tesouro. E começámos por ali, mas assim desta maneira. Porque também não tínhamos ninguém que nos ajudasse como agora há clubes e há esta coisa do desporto para os jovens. Nesse tempo não havia nada, nem nas escolas, nem nada.
Depois eu vim-me embora e ficaram lá os outros miúdos. Eu vim para aqui para a Marinha Grande e procurei logo onde é que havia alguma coisa onde eu me pudesse entreter e isto já era mais evoluído. E então formamos aquele clube de futebol que lhe disse há pouco. Depois, a partir daí fiquei agarrado àquilo. Depois nesse clube havia um senhor que andava em Lisboa a estudar e trouxe a moda do vólei e fizemos uma equipa de vólei. Depois tínhamos ténis de mesa, a minha mulher também foi jogadora de ténis mesa.

P: Isso foi ainda antes do 25 de abril?

Fernando Alves: Isto foi muito antes do 25 de abril. Tive de assinar um papel para ser diretor, em como estava de acordo com a constituição de 1933, porque não havia partidos políticos nem podíamos dizer que as coisas estavam mal. Isto foi quando estive no clube do meu primo, em 1969-70. A primeira vez ainda foi assim, depois isso acabou.

Como era o mundo associativo no período da ditadura?


Fernando Alves: O mundo associativo era tratado com muito cuidado. Esse meu primo já era do contra e então nós, para falarmos, tínhamos de estar ver quem é que estava por ali, não se falava à vontade, não podíamos dizer coisas que agora são banais, não se podia dizer “epá ganha-se tão pouco, isto está tão mau, a vida...” Depois, mais tarde, viemos a saber que tínhamos lá um senhor que era da PIDE...
Nesse tempo, as coisas não eram como agora, não havia as condições que hoje há. Nem toda a gente tinha automóvel para as deslocações, era um sarilho, tínhamos que andar a pedir a pessoas que já viviam um bocadinho melhor “epá, no domingo podes ir com os rapazes jogar não sei onde, aqui e ali?”, era muito mais difícil que agora, para termos equipamentos, não tínhamos dinheiro... Era preciso ter dedicação e gostar para se conseguir fazer alguma coisa.
A Marinha Grande é uma terra com uma grande tradição operária. Qual era a relação entre esse movimento clubístico e o movimento operário?
Muitas das coletividades eram realmente os locais onde as pessoas iam para poderem falar à vontade, para falarem da vida, das dificuldades... Havia um clube, e há, que era o Sport Operário Marinhense, que foi uma escola, que teve pessoas políticas, pessoas já com inclinações para a esquerda, onde se aprendia a falar francês e inglês, onde já havia volley, ténis de mesa, etc. Arranjavam maneira de juntar as pessoas ali e depois de as encaminharem, de as instruírem. Foram escolas muito boas para o povo, as coletividades.

P: E não tiveram problemas com a PIDE?

Fernando Alves: Sempre, de vez em quando lá aparecia a PIDE... No Operário, por exemplo, já havia uma biblioteca nesse tempo, onde os livros eram retirados, eram proibidos. Porque assim como havia pessoas de esquerda aqui, também havia informadores.

P: E durante as greves, havia apoio aos grevistas por parte das associações?

Fernando Alves: Havia o possível, mas não tenho conhecimento de haver assim um apoio... Apoio havia era durante a vida toda, durante a vida normal, não é de cada um. A vida de todos os dias. Procuravam trazer as pessoas para a coletividade e depois, aos poucos iam-nos ensinando e comparando a nossa vida com a vida de alguns países estrangeiros. Havia pessoas já com uma instrução a superior que eram dirigentes, que andavam sempre vigiados, mas conseguiam passar por entre os pingos da chuva. E realmente foram as coletividades foram importantíssimas.

P: E havia coletividades que apoiavam os sócios com auxílios mútuos, por exemplo para pagar os funerais?

Fernando Alves: Não tenho informação disso, naquelas que eu conheço. Havia era pessoas particulares que ajudavam e pertenciam às coletividades. Para mim o operário era o foco principal dessa época nesse aspecto.

P: E depois, quando foi o 25 de abril, quais é que foram as grandes transformações? Como é que se viveu aquele período imediatamente a seguir à revolução? Como é que isso foi vivido no meio associativo?

Fernando Alves: Foi vivido com muita alegria e com movimentos, começaram a aparecer as bibliotecas já à vontade, as pessoas já podiam falar, já não havia medo de ninguém. Foi muito bom, a formação começou a aparecer, as modalidades desportivas começaram a diversificar-se, o atletismo, o desporto à porta de casa, o desporto a trazer muita gente, muitos jovens, muito miúdo, foi um tempo de alegria, foi um tempo fantástico. Também muitas greves...alguma confusão.

P: E houve algum projeto pessoal que tenha concretizado nessa altura?

Fernando Alves: Antes do 25 de abril fazia parte de um grupo que se juntava e tinha reuniões num colégio que era liderado por um padre. Ele não sabia que era isso que se passava, foi pedido por um rapaz da JOC, que mais tarde foi preso, já depois do 25 de abril, porque era do PRP e fez para aí uns assaltos e tal. Ele ia às fábricas, ia às oficinas onde nós trabalhávamos e ia ver as condições de trabalho, depois ao sábado fazíamos uma reunião à tarde e cada um dizia “epá, lá na minha fábrica falta isto, falta aquilo”. Depois discutíamos, fazíamos grupos, juntávamo-nos todos para as conclusões. E é engraçado que depois passado um tempo, depois do 25 de abril foram presos por nós mesmo uns tipos que eram da PIDE e um deles era nosso colega lá. Quando fomos a ver, tínhamos todos o nome registado. Se não fosse o 25 de abril tínhamos ido presos.
Depois isso deixou de ser necessário, começaram a aparecer os partidos políticos, o Partido Comunista, o Partido Socialista, e eles próprios começaram a atrair pessoas, a fazer sessões de esclarecimento.

P: O Senhor Fernando participou na JOC?

Fernando Alves: Eram pessoas da JOC, mas nós não sabíamos. Era da Igreja e a igreja católica, como sabe, alinhava com a situação anterior. E eu admirava-me porque esses rapazes eram da JOC, eram religiosos, e foram eles os grandes mentores destas coisas, destas revoltas do povo, das condições de trabalho, das condições de vida.

P: Como é que começou a participar?

Fernando Alves: Depois, por influência desse jovem, que era colega da minha esposa no trabalho. Fui também do PRP, que era um partido assim esquerdista mesmo. Inclusivamente eu fui um bocado prejudicado na empresa porque era chefe e sabiam que eu era do PRP. A certa altura, o PRP tinha a ideia da terra queimada, era contra as eleições, e eu andei a distribuir papéis a dizer para não votarmos, uma altura que éramos contra a votação normal, contra as eleições. Nós queríamos que a revolução fosse feita pelo povo e que o povo é que tinha de mandar e tal... A partir daí, nos aumentos de ordenado, etc., passei a não ser igual aos outros...

Eu era muito dedicado, nessa altura já não era serralheiro, era chefe de uma fábrica de vidros e não tive cuidado. Era aquilo que eu queria, que eu ouvia que o povo merecia, porque mesmo na fábrica onde eu trabalhava ganhava-se muito mal e aquilo fazia-me confusão e eu fui naquela doutrina e depois tramei-me, mas não estou nada arrependido. Só consegui sobreviver até à reforma porque as pessoas tinham dúvidas, porque eu era muito cumpridor. Eu não tinha um horário de trabalho fixo, entrava e saia à hora que queria, mas era o primeiro a chegar à fábrica, fazia cumprir tudo e dizia sempre aos meus colegas de esquerda que trabalhavam lá, porque eu ralhava com as pessoas, chamava a atenção. Eu dizia “nós temos de ser os melhores, temos de dar o exemplo, para podemos depois falar e exigir”. E eles pronto concordavam. E então o Patrão e os meus chefes, os meus chefes eram piores que o meu Patrão, o meu Patrão foi um homem fantástico, arranjavam maneira de dizer mal de mim ao Patrão, aqueles que estavam acima de mim, os intermédios. Tenho mais queixa deles do que do Patrão. O Patrão, quando deixarem que tivesse contato comigo, tudo o que eu lhe dizia, ele aceitava.

P: Nessa altura, ainda antes do 25 de abril, as mulheres participavam no movimento associativo?

Fernando Alves: Muito pouco. Lembro-me de algumas que já na fase final, já muito próximo do 25 de abril, a minha mulher, por exemplo, foi uma delas. Eu era da direção do Sport Lisboa e Marinha, ela foi tesoureira, mas eram poucas.

P: Porque acha que era assim?

Fernando Alves: Sabe, naquele tempo...às vezes a minha mulher diz-me: és machista, quando eu digo alguma coisa. Mas nós éramos mesmo machistas, porque nós, a minha mãe, a vida da minha mãe era estar em casa, não trabalhava, era fazer a comida, lavar a louça, limpar a roupa e não passeava. Não. O meu pai não levava a lado nenhum. As Mulheres eram, eram para estar em casa, cuidar dos filhos...E nós fomos criados assim. Portanto, não me venham exigir que eu não seja um bocadinho, machista às vezes porque eu fui assim educado. A minha mãe alguma vez queria que eu fizesse comida, por exemplo, ou que eu andasse lá ou que o meu pai entrasse na cozinha? Porque sabe que as senhoras, mesmo as senhoras, estavam de tal maneira educadas que a cozinha era delas, as Mulheres: aqui vocês não mandam nada, não entram aqui, era onde elas mandavam coitadas. Pronto era o Reino delas, não é? E nós ficávamos todos, os homens ficavam todos contentes, era menos trabalho, mas era assim. As Mulheres eram um bocado, criadas, digamos assim, eram as nossas sopeiras.

P: E acha que o movimento associativo ajudou a mudar essa situação?

Fernando Alves: Muito, ajudou muito, ajudou a mudar as mentalidades. Quando elas começaram a entrar no movimento associativo. Começaram a ser reguilas, a exigir, a dizer, nós também temos direitos e tal. Acho que sim. O movimento associativo foi muito importante nisso. Mesmo neste processo de mudança, foi muito importante. Porque as pessoas também começaram a conviver mais e a falar umas com as outras. Começaram a frequentar.
As Mulheres não iam às coletividades. Quem ia eram os homens, para jogar as cartas e beber uns copos e as mulheres ficavam em casa. Pois, eu também sou do tempo em que as Mulheres ao domingo (não havia cafés nas aldeias, mas aqui na marinha já havia), não iam ao café. Eu ainda não levava a minha mulher ao café quando eu vim da tropa.

Há uma coisa engraçada, quando eu vim da tropa. À sexta-feira à noite, aqui na Marinha, era a noite dos casados. Os homens casados iam dar uma volta para passear e as Mulheres ficavam em casa, não iam ao café e a minha mulher começou a dizer: Eu também quero ir beber um café. E eu não queria, porque depois não estava mais mulher nenhuma, os meus colegas não levavam. Depois gozavam comigo, diziam: Epa, tu estás controlado e não sei quê. E então não queria que ela fosse. Ela um dia há noite agarrou nos filhos, eu tinha 2 filho, e foi para o café. Quando eu cheguei a casa, ela não estava em casa, e eu atei-lhe a porta. Quando ela chegou com os garotos tinha a porta fechada. Onde é que foste? Fui ao café com os meninos. Tu não foste também e tal. E eu depois comecei a pensar, epá, a Gaja tem razão.. Mas eu não a queria deixar entrar. Dizia, Agora dormimos na rua. E eu já me considerava uma pessoa evoluída. Mas ainda estava naquela...e já foi depois do 25 de Abril. Não, não foi antes, foi quando vim da tropa.

P: E o 25 de Abril, foi um foi um momento de rutura nesse aspeto?

Fernando Alves: Sim, sim, sim, claro, as mulheres conquistarem alguma liberdade. Acho que sim. Foi um momento de justiça. Foi quando se conseguiu começar a fazer alguma coisa em relação às diferenças.

Eu estava-lhe a dizer, os homens iam para a taberna jogar as cartas e depois em cada jogo bebiam um copo de vinho, cada um pagava um e não sei quê. E à tarde as mulheres levavam umas arrochadas, eles chegavam já com os copos. E lá na minha aldeia era hábito as mulheres coitadas levavam... E era engraçado porque não eram os filhos, eram as esposas. É que eles embirravam com as esposas, quando chegavam a casa com os copos. Isto é verdade!!!

P: E o movimento associativo tinha algum papel pedagógico nestas situações?

Fernando Alves: Nesta altura que eu estou a falar, o movimento associativo nas aldeias era zero. Por aqui, já havia mas lá nas aldeias, não, nas zonas com menos gente até eram pessoas menos evoluídas. Não havia associativo, havia um clube de futebol, por exemplo. Lá na minha zona era a única coisa, mas era só para os homens.

P: E no período revolucionário, lembra-se das mulheres terem organizado alguma iniciativa especificamente para as mulheres?

Fernando Alves: Mais na parte do desporto, mas havia o Movimento Democrático das Mulheres, que se começou a formar. Havia algumas pessoas já com alguma formação política, até por verem os maridos andarem nisso, por terem sofrido por os maridos irem presos. Houve aqui muita gente, muitos operários que foram até para Cabo Verde, morreram lá alguns. Havia ainda, ainda no 25 de abril, o último preso político que foi aqui da Marinha, dos últimos digamos. Portanto, as mulheres tinham consciência de que alguma coisa não estava bem, que os maridos não faziam mal a ninguém porque é que iam presos?

P: E elas organizavam-se para se entreajudarem?

Fernando Alves: Sim, isso sim. Mas isso já vem do 18 de janeiro de 1934, as mulheres tiveram um papel importante nessa altura também.

P: O que se conta do 18 de janeiro?

Fernando Alves: Lembro-me das mulheres irem para o governo civil pedirem comer [emociona-se]. Isto já não é do meu tempo, mas vem à memória... O meu pai era padeiro nessa altura e teve um homem escondido na chaminé do forno quando foi o 18 de janeiro. As pessoas passaram muito mal. Quem me contou foi o meu pai e várias pessoas com quem eu me dava bem.

P: Quem lhe contou foi o seu pai?

Fernando Alves: Sim, o meu pai e várias pessoas com que eu me dava bem. Antes de eu ir para o Ultramar, eu falava muito com um senhor que era o Chico Caniço, que era um tipo que esteve preso uma série de vezes, um político do Partido Comunista, um ativista, andava sempre metido em coisas politicas, embora soubesse que mais dia menos dia o vinham buscar. Nós eramos um grupo de jovens de 18/19 anos e ele contava-nos o que é que passava na prisão, como é que o vinham buscar, de noite... E depois também tive uma boa relação com o Dr. Vareda, que era uma pessoa emblemática.

Nós, na tropa, éramos um bocado injetados, que íamos defender o país, que aquilo era Portugal, que eram portugueses. E quando fui mesmo para o mato, para Mueda, comecei a ver as pessoas miseráveis, todos rotos, todos esfarrapados, não sabiam escrever, algumas não falavam português e comecei a pensar: “então isto é que é Portugal? Isto não é Portugal.” Eu e alguns colegas meus falávamos sobre a maneira como eram tratados. Por exemplo, os africanos se não pagavam alguma coisa que iam buscar às cantinas, o administrador ia busca-los e batia-lhes como se faz às crianças, com uma régua no rabo. Coitados, eram bichos quase. E comecei a pensar que aquilo não era bem o que dizem, e a revoltar-me de ser obrigado a ir para lá defender uma coisa que não era Portugal e de ver pessoas tão mal tratadas. Não havia empregos, é evidente que não, lá nas aldeias do Mato não havia emprego. As pessoas eram selvagens. E comecei também a mudar de pensamento. Ainda quando quando fomos, ainda íamos com aquele orgulho de defender o país mas depois eu já levava daqui algumas ideias e quando cheguei lá vi que o senhor, o Chico Caniço, estava a dizer a verdade, que aquilo que era um crime que andávamos a cometer, mas enfim pronto isso já são outras coisas.

P: Mas conte-nos mais sobre essa experiência do Ultramar?

Fernando Alves: Foi traumatizante porque para mim era impensável que houvesse pessoas ainda a viver como eles viviam, embora soubesse que para Trás-os-Montes não era muito melhor, que havia pessoas que andavam descalças lá no meio da neve, também viviam muito mal. Mas aquilo era o cúmulo, era o máximo, eram tratados como bichos. E eu até dizia a alguns soldados lá do meu pelotão, que que tratavam mal os pretos, Epá, o que é que vocês são mais do que esta gente? Vocês já viram que vocês também são miseráveis lá onde estão? Chamava-lhes muitas vezes a atenção. Porque as pessoas se sentiam superiores aos africanos, só porque eles eram pretos. Eles eram inteligentes. Quando nós íamos ao aldeamento e os víamos, faziam uma fogueira e estavam ali assim, com o olhar perdido, muito distante... Alguns deles eram guerrilheiros que depois, à noite, nos iam atacar. Eram pensadores, diziam umas frases engraçadas. Eles, por exemplo, tinham uma frase, quando andavam a trabalhar e quando chegava a hora de acabarem, quando tinha hora de acabar, deixavam tudo e depois os patrões, as pessoas diziam: Embora a trabalhar, vamos acabar o serviço. Patrão, serviço, nunca acaba, serviço nunca acaba, acaba este e começa outro, queriam eles dizer. O serviço nunca acaba, portanto, não interessava lá estarem a trabalhar mais depressa, porque depois vinha logo outro serviço e a compensação era pouca. Por exemplo, eu tinha colegas, eu nunca fui, vim de férias a Portugal que tinha-me nascido um filho quando eu lá estava ainda e eu tive que vir ver o garoto, E iam para o algodão, para as plantações de algodão, e faziam batota no peso do algodão. Eram incitados a pesar mal o algodão. E o algodão era pago mais barato às pessoas que plantavam que eram africanas. Era mais barato, pago a pior preço do que aos brancos. E era assim pronto, aquilo foi um bocado esquisito. É um bocado traumatizante.
Nós às vezes tínhamos, porque tínhamos que nos defender, não é? Eu, felizmente não matei ninguém, tive a sorte de estar num serviço que não ia para o mato. Mas sei de um rapaz aqui da Marinha, que é cego, que ficou cego lá, que foi comigo. Lembro-me perfeitamente dele dizer a primeira vez que ele alvejou um homem, ficou com desgosto louco. Estava numa emboscada e depois passou um grupo de apoiantes dos “terroristas”, com a comida para eles, porque eles tinham ajudas de outros africanos, e ele apontou. “Epá, eu custou-me tanto, eu nem sei se matei um homem, nem se não”. Passado dois dias, ele ficou cego com uma mina. Portanto, é claro, ele se não matasse, quem não matasse, morria. Eu vi que as pessoas da Marinha Grande que eram do contra, que tinham razões para ser contra a guerra.

P: Tomou conhecimento da forma como os africanos se organizavam?

Fernando Alves: Eu não sei se tinham associações, porque era tudo clandestino. Eles tinham era, isso eu sei, que eles tinham quarteis, tal qual como nós, organização militar, tal e qual como nós. Diziam-nos que eram grupos de bandoleiros, grupos de terroristas, mas eles tinham quartéis como nós no mato, lá da maneira deles, com palhotas, tinham bases militares com organização. Mais tarde, ainda há pouco tempo vi uma entrevista. Porque depois houve colegas meus que iam lá, no fim da Independência daquilo, iam lá ver as terras onde estiveram e encontraram um grupo, aquilo devia ter sido combinado antes, encontraram um grupo que nos fez uma emboscada onde este rapaz ficou cego. E e eles diziam, nós éramos 200 e não sei quantos militares.... E depois estava lá um senhor que era o senhor do armazém de munições, que fornecia as coisas também, Eu não vos fiz mal, eu era do armazém, só dava as coisas que me pediam e tal e havia um, Eu estava com vocês lá em Moeda durante o dia e vinha dar informações depois de noite, lá pelo mato fora, ia dizer quando as colunas estavam para sair, eu é que avisei quando essa coluna saiu.
Nós estranhávamos às vezes porque nos batuques, porque ao sábado à tarde havia sempre, o entretenimento deles eram os batuques, andavam a dançar ali à volta e com os tambores, e nós víamos caras que não víamos durante a semana, ao sábado andavam ali tantos homens, mas eles eram para nós todos iguais. Podiam ser pessoas de lá, mas estranhávamos porque nos parecia que aparecia mais gente, mais caras diferentes. Epá, parece que não vimos esta cara durante a semana.
Depois havia uma vantagem dos guerrilheiros, porque eles eram nossos empregados, tínhamos empregados africanos, maiatos, para nos levarem a roupa. Eles faziam aqueles serviços, encher os depósitos da água, varrer e limpar o aquartelamento, eles conheciam todos os locais. Houve casos em que faziam desenhos do quartel e mandavam para os guerrilheiros, segundo ouvi dizer.
Em Mueda, mesmo no Norte Moçambique, era uma base. Nós éramos atacados de vez em quando porque era uma base onde estava a engenharia, os comandos era ali que faziam estadia antes de saírem para operações. Chamavam-lhe a capital da guerra.

P: Foi lá que ganhou consciência política?

Fernando Alves: Sim, foi lá para mim, foi uma escola também. Porque realmente aquilo era uma injustiça.

(...)

Eu estive 22 anos na APU e na CDU, como deputado municipal, e tinham-me muito respeito porque eu nas assembleias, na parte política não intervinha muito, intervinha mais nas coisas aqui da terra que estavam mal, as ruas que estavam estragadas e tal e todos os partidos me respeitavam. Mas um dia tive um azar, há coisas engraçadas, enervei-me, passei-me, por causa de um regulamento que fizeram. E eu que era muito calmo. Era muito bem considerado. Rasguei um documento porque nós estávamos contra um regulamento que era o REMEU, de que fazia parte uma norma, uma nova lista de preços, por exemplo de fotocópias tiradas na Câmara. Aquilo era uma Loucura. Enquanto uma fotocópia de um projeto que numa papelaria, custava 50 cêntimos ou coisa assim lá eram 5 euros, passaram aquilo para muito caro e nós éramos contra, o Partido Comunista e depois, “Epá, não pode ser, isso não pode ser. Depois aquilo foi para uma revisão e eu ia convencido que era para conversarmos sobre os preços e tal e afinal era só para emendar uma frase que estava no regulamento. Epá, eu fiquei danado. Eu não estou de acordo com isto e nem vou falar disto, com licença, e rasguei o documento. Caí logo pronto, deixaram logo de me ter respeito e com razão.
Mas pronto aguentei esses 22 anos, não sendo filiado no partido. Isto fica-me mal estar a dizer, mas eu era justo. Eu cheguei a votar ao contrário do meu grupo. Pedia desculpa, porque aqui na Marinha havia uma grande clivagem entre o Partido Comunista e o Partido Socialista. Eram muito rivais, era como o Benfica e o Sporting. E depois, às vezes, nas reuniões de preparação das assembleias, mas isto é para votar contra e eu, Epá, mas isto é bom para a Marinha, Epá, mas se fossem eles faziam assim também. Mas eu estou com vocês, porque vocês são melhores do que eles. Epá lá estás tu com a mania do perfeccionismo, mas aceitavam e pronto. E pronto e eu depois nas assembleias, olhem, o mais que eu posso é abster-me, mas eu não voto contra isto. E nunca me penalizaram, por isso eu tenho muita consideração pelas pessoas do partido, que ainda agora me nomearam mandatário da lista para a Câmara. Eu avisei logo quando me convidaram, olhem que eu não vou dizer mal dos outros.

P: Esta propensão para ir trabalhar nas autarquias, depois do 25 de abril é uma coisa que aconteceu com várias pessoas que participaram nas associações, acha que há um há uma ligação direta?

Fernando Alves: Há. Eu penso que os melhores políticos são pessoas que começaram no associativismo. Porque também no associativismo há o interesse de ajudar as pessoas. Por exemplo, agora eu e mais colegas meus somos treinadores de miúdos e o nosso interesse é que os miúdos sejam felizes, que ganhem provas, que se sintam bem. Nós não trabalhamos para nós. Também gostamos de ser reconhecidos, porque também é modéstia fingida se eu disser que não gosto de ser reconhecido, porque trabalho, porque me sacrifico para isso, mas é uma alegria quando vejo os miúdos terem êxito. E serem felizes. É emotivo e é isso que nos motiva. [emociona-se].

O jovens, é muito engraçado, quando ganham, quando vão pódio. Às vezes nem é preciso, às vezes até nos treinos, quando atingem aquilo para que estão a trabalhar ou que têm um resultado engraçado, eu noto logo no sorriso. De maneira que penso que também nos partidos políticos, também na política, as pessoas que levam a política a sério, que não andam lá só para ganharem dinheiro ou para serem famosos, penso que querem é fazer as pessoas felizes. Haver condições para viverem bem, terem a rua à porta deles bonita, terem o saneamento, para viverem como deve ser. Penso que é para isso que deve ser a política e os políticos devem estar lá para isso. E eu tento, também enquanto estive na política, tentei ser assim.


P: Quando é que começou a participar na no trabalho autárquico?


Fernando Alves: Eu sempre, a partir de 1974, ajudei a Câmara no aspeto desportivo, quando precisavam diziam, Fernando dá aqui uma ajuda nisto ou naquilo. Mas não pertencia a nenhum partido. Em 1991, as pessoas que estavam na Câmara, convidaram-me, disseram: Fernando, tens que vir, tens que fazer parte aqui da lista para a Assembleia Municipal. Pediram para eu fazer parte da lista e eu fiz. Aliás, eu em 1987 fui funcionário da autarquia, pedi licença na empresa onde trabalhava, porque começou-se a desenvolver aí na Marinha Grande, um projeto que era um projeto desportivo para os jovens das escolas às “Jornadas Desportivas da Marinha Grande”. Eu tinha ouvido dizer que no Seixal havia as Olimpíadas do Seixal (ou as Seixalíadas) e comecei a ler coisas sobre aquilo e achei aquilo muito engraçado, o desenvolvimento que aquilo teve. E falei com um vereador da câmara, muito antes disto, falei com vereador da Câmara, disse, Epá, devíamos de fazer aqui umas Olimpíadas como fazem no Seixal e ele, que era professor primário, uma pessoa muito ligada a estas coisas também, Epá, vamos pensar nisso. Depois passado um ou dois anos, ele e um senhor que é o Francisco Duarte, parece-me que também vem aqui, que é um homem também muito ligado ao desporto e à política, e à cultura, esse está mais a parte cultural, começou a implementar isso.
Depois, mais tarde, em 1987, pediram-me para eu ir trabalhar para lá, para o gabinete de desporto da Câmara. Mas eu ganhava na altura 66 contos na fábrica e ali só dava até 42 contos de ordenado, mas eu mesmo assim, como gostava muito daquilo, pedi uma licença de três meses na fábrica e fui para lá. O filho do meu patrão até dizia “esse gajo vai de certeza para a União Soviética tirar algum curso”. Mas depois a minha mulher também me começou a chamar a atenção, porque para eu lá ficar eles começaram a pagar-me horas extraordinárias. Eu levava aquilo muito a sério e depois tínhamos reuniões nos clubes, durante a semana, às nove e meia da noite, para organizar coisas. Mas eu só podia ganhar aquilo enquanto estava a trabalhar. Se eu ficasse doente, se fosse para a baixa, ficava a ganhar menos, o subsídio de férias também. Tive que me ir embora. Fiquei a colaborar à mesma, mas saí. Mas fui funcionário público durante três meses.

P: Quando assumiu funções políticas, quais foram as funções que assumiu?

Fernando Alves: Era deputado da assembleia municipal e depois fui secretário da junta de 2013 a 2017.

P: E enquanto assumiu cargos políticos desenvolveu projetos relacionados com o associativismo?

Fernando Alves: Não era assim para isso que eu lá estava, mas também ajudei. Na altura que estive na Câmara, no 25 de Abril havia sempre uma atividade desportiva e um dia eu falei com o Presidente da Câmara, Epá, se nós fizemos aqui uma prova à noite, uma milha? Em termos de atletismo, havia só provas assim 10000 m, 7200 m. E tínhamos aqui um atleta na marinha grande, que tinha sido eu que que eu tinha treinado. Ele depois foi para os clubes grandes para o Sporting. Epá, e se houvesse uma prova mais curta? E então inventei a milha, que depois passou a ser a noite e isso foi um êxito. O atleta era o Raimundo Santos, um rapaz que agora é funcionário da câmara também. Mas projetos desportivos participei mas não fiz assim um projeto camarário. Tínhamos as jornadas desportivas e depois o resto era o apoio da câmara, dava muito apoio ao desporto. Ainda hoje dá.

P: Eu gostava de voltar outra vez às memórias, por exemplo do 18 de Janeiro e outros movimentos que houve antes até de ter nascido. Isso foi-lhe transmitido só pelo seu pai?

Fernando Alves: Não, por pessoas aqui da Marinha Grande, como já lhe disse. Pessoas que tinham participado ou que tinham participado noutras coisas, em várias, que eram de esquerda, daquelas pessoas com quem só falávamos em segredo.
Por exemplo, durante muitos anos, o 18 de Janeiro que agora é festejado à vontade, a maneira de festejar era diferente, algumas pessoas iam para o para o Pinhal, aí para uma zona da mata nacional e à meia-noite deitavam foguetes e tal. Depois a polícia vinha procurá-los, mas eles já tinham saído do local.... Era tudo feito em segredo. E eram essas pessoas que nos contavam, aos mais jovens, que nos iam dizendo, como é que as coisas se passaram. Isso porque, já não é do meu tempo (felizmente que assim ainda cá estou agora).

P: E o que é que contavam? Qual é que eram os pontos mais importantes?

Fernando Alves: Contavam a miséria em que viviam, o trabalho que era mal pago. Não eram compensados devidamente em relação ao trabalho que faziam. E que não havia liberdade. Eu vou-lhe contar uma coisa, nas aldeias não podia haver política, não se falava de política. Eu lembro-me de vez em quando, lá na minha zona, apareciam uns papéis quando era assim o primeiro de Maio, etc. Mas lembro-me uma vez, pelo menos, ou 2, eu apanhar uns papelinhos que falavam do primeiro de Maio. Levei para casa e a minha mãe, Deita já isso tudo fora, não quero nada disso aqui em casa. E o meu pai, como todos os homens ou pelo menos a grande parte, era um salazaristas, admiravam o Doutor Oliveira Salazar. E o meu pai, era padeiro e havia lá um outro padeiro na zona, o meu pai começou a tirar-lhe alguns clientes, pronto, começou a fazer-lhe concorrência e ele foi dizer, que o meu pai era comunista. O meu pai nem sabia o que era isso, nem fazia ideia nenhuma, nem nunca o vi metido em nada dessas coisas. E o meu pai para se safar, para se livrar, teve que pedir um abaixo assinado das pessoas mais importantes lá daquela região, porque estava para ser preso pela PIDE como comunista. O meu pai não sabia nada, nem estava ligado a nada disso. Portanto, já vê a situação que era, bastava uma pessoa dizer, aquele tipo disse isto ou aquilo para ir preso, não é? Portanto, e contavam essas coisas, e eu já tinha isso também de experiência própria. Eu era pequenino, muito pequenino, mas o meu irmão, o meu irmão e a minha irmã também me contavam e a minha mãe, que passaram uns tempos um bocado.. com medo, porque o meu pai estava mesmo destinado a ir para a prisão, só porque o outro senhor foi dizer que meu pai tinha ligações, ou que tinha dito qualquer coisa. Era assim. Havia os chamados bufos, que chamavam os informadores, que ganhavam 600 escudos por mês ou coisa assim nessa altura.

P: E nas associações, tem ideia de que havia muitos informadores?

Fernando Alves: Muitos não haveria, mas havia alguns, havia alguns. Às vezes pessoas muito ignorantes, coitados, que também faziam aquilo porque eram ionfluenciados. Se calhar inconscientemente até, mas era uma forma de ganharem qualquer coisinha E, como sabe, o Salazar, no início da carreira dele, modificou isto e fez algumas coisas em termos de economia e as pessoas tinham algum apreço por ele e diziam que ele tinha sido um bom organizador e deixavam-se levar naquela história.

P: Mas aqui na Marinha Grande devia haver duas tendências?

Fernando Alves: Havia aqueles mais de esquerda, que tinham mais consciência política, e havia aqueles senhores mais importantes.

P: E essa clivagem vivia-se nas associações?

Fernando Alves: Havia o clube dos industriais, por exemplo, mas na periferia era o povo. Era o povo que reinava, porque essas pessoas até nem iam a essas associações. Embora, por exemplo, no operário, havia pessoas já com muita formação, pessoas que lideravam aquilo. Por isso é que o Operário foi uma universidade para muita gente.

P: Lembra de assim de alguma iniciativa que o operário tenha organizado no período 25 de Abril?

Fernando Alves: Vieram, vieram figuras importantes para aí fazer, vinham fazer colóquios, vinha muita gente no tempo do senhor Doutor Vareda. Ele convidava escritores, músicos, pessoas assim que vinham falar. Havia sessões muito importantes lá, depois também aquilo deixou de ser assim, desde que esse senhor morreu. Mas tinham iniciativas, muitas iniciativas.

P: Vocês agora têm a sensação de que é difícil passar o testemunho, mas quando vocês eram jovens, não sentiam que os mais velhos também tinham esse receio?

Fernando Alves: Não sentíamos porque éramos jovens. Mas nós também estávamos mais motivados. Era mais fácil motivar-nos porque nós não tínhamos Internet, não tínhamos discotecas, assim como há agora. Não tínhamos estas chamadas de atenção para o divertimento. O que é que nós tínhamos? Tínhamos as coletividades, os bailes. Tínhamos as festas das coletividades, tínhamos bailaricos ao sábado, e pouco mais. Tínhamos cinema aqui na Marinha, sempre tivemos cinema, mas isso era durante a semana. Não havia tanto entretenimento como há agora e não havia a Internet. A Internet foi realmente uma coisa que apareceu, que se multiplicou e que chamou muito a atenção dos jovens. Portanto nós, onde é que eu me entretinha? Era e realmente nas coletividades, à noite, um bocadinho ver televisão. A televisão também foi um factor a chamar as pessoas às coletividades, porque as pessoas em casa no início não tinham, não tinham televisão, mas isso já vem do antes do 25 de Abril. Não tinham televisão e tinham que ir à coletividade e começaram a habituar-se a ir ali. E assim começou a haver possibilidade de arranjar dirigentes, porque depois as pessoas iam lá e eram influenciadas. Os jovens têm outras formas, outras coisas para se divertirem agora.

P: Mas nem toda a gente estava nas coletividades?

Fernando Alves: Uma grande parte das pessoas ia, a classe operária, era lá que se entretinha. Os homens no fim do trabalho, à noite, iam até lá. A coletividade fazia o papel do café, digamos assim. Era onde as pessoas se juntavam também para conversar. E depois para irem ao bar. Havia os bailes de Carnaval. Na Marinha Grande, era uma coisa muito frequentada, as pessoas viviam aquilo. Pronto era mais fácil. Agora nós temos receio, até porque, pode ser que isto mude, mas nós vemos que neste momento, por exemplo, há coletividades com muitas dificuldades de arranjarem pessoas, há coletividades que estão fechadas. Que eram coletividades com movimento e que estão fechadas. Porque as pessoas também estão 10 e 15 anos e depois também começam a querer descansar ou querer ter alguém que os substitua. E está a ser difícil, está a ser difícil, em algumas colectividades, quase em todas. É difícil. Quando nós vamos a ver, então quem é a direção deste ano? São quase os mesmos que já estiveram aqui há uns anos. Os jovens não são maus por isso, eles têm outra maneira de se juntarem, outra maneira de comunicarem. Tem outras formas de comunicação. Nós antes não tínhamos essas formas de comunicação, não havia telemóveis para mandar mensagens. Tínhamos que falar mesmo uns com os outros, falar pessoalmente.

P: Então o Senhor Fernando como é que acha que será o futuro das coletividades?

Fernando Alves: Olhe, se quer que lhe diga, eu não faço futurologia. Penso que há algumas que vai ser difícil continuarem. Há outras que enfim vão procurando formas, como é este caso aqui. Sabe que aqui o Carlos arranjou forma de combinar, de arranjar uns amigos e fundou aqui um grupo de poesia, que temos de 15 em 15 dias. Pois é é uma coisa erudita demais para a paciência de muita gente, e ele conseguiu trazer aqui pessoas para serões poéticos de 15 em 15 dias. Isto também não vai crescer muito, mas pronto. Mas vai tentando fazer assim e há outras coletividades, com certeza que o farão. Eu não tenho conhecimento agora. O Operário tem o teatro, ainda agora estreou uma peça este sábado, uma peça engraçada. E pronto, vai havendo algumas pessoas que ainda vão conseguindo fazer alguma coisa. Mas para isso, é preciso ter uma pessoa com ideias. Tem de haver na direção pelo menos uma pessoa que consiga transmitir aos outros e puxá-los. Mas eu vejo futuro um bocado difícil. No desporto, não tanto. No desporto, os clubes que há têm sempre gente. É diferente nestas coletividades de cultura e recreio, aqui é que eu vejo mais difícil de continuarem, de progredirem.

P: E não há coletividades que têm as duas componentes, cultura, recreio e desporto?

Fernando Alves: O Operário tem. O Império, por exemplo, era uma coletividade aí da Marinha Grande, muito famosa como muito movimento que agora está aflita para arranjar gente. Também tinha ténis de mesa e tinha o teatro, mas lá está, faleceu o senhor, que era o principal dinamizador do teatro, um dos principais aí da Marinha, e aquilo começou a ficar um bocado mais morto. Depois tiveram também um acidente lá, o telhado da sede voou com um Vendaval e a Câmara Municipal da altura também não ajudou e eles estão com dificuldades, porque têm dívidas e enfim. Eu penso que as autarquias têm muita importância nisto. As autarquias têm muita importância no apoio, se derem bastante apoio as coisas ainda vão melhorando.

P: Que tipo de apoio é que acha que as autarquias devem dar ao associativismo?

Fernando Alves: Sei lá, pelo menos apoio monetário que é essencial para elas poderem trabalhar, agora as que estão com dívidas, para poderem arrancar. Agora com a pandemia sofreram muito a nível monetário, a nível económico. Eu pertencia agora a um grupo que foi incumbido pela Câmara de fazer um novo regulamento de apoio às coletividades e aos clubes. E tentámos que as coisas mudassem, que houvesse mais apoio a nível de verbas, mas também apoio com técnicos, para o teatro, para formação, etc.

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