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Etelvina Lopes Rosa Ribeiro

Nome do entrevistador/a

Joana Dias Pereira

Local

Associação Cultural e Recreativa da Comeira

Data

29-11-2021

Duração

80 minutos

Nome do entrevistado/a

Etelvina Lopes Rosa Ribeiro

Data de nascimento

16-5-1955

Local de nascimento

Marinha Grande

Profissão dos pais

Operários Vidreiros

Escolaridade

Fez a 4ª classe na infância e completou o 9º ano aos 50 anos.

Local de residência

Marinha Grande

Situação civil

Casada. O marido trabalhou nos moldes.

Filhos

Tem uma filha que é engenheira Florestal.

Profissão

Trabalhou desde os 12 anos na costura e aos 18 anos tornou-se Operária Vidreira

Locais de trabalho

Empresa Manuel Pereira Roldão

Associações em que participou

Sindicato dos Trabalhadores da Indústria do Vidro
Movimento Democrático de Mulheres - Núcleo da Marinha Grande.

Cargos dirigentes

Delegada sindical em 1982
Dirigente sindical desde o início da década de 1990
Dirigente a tempo inteiro desde 2005
Dirigente do Movimento Democrático de Mulheres na década de 2000.

Filiação partidária

Filiada no PCP

Cargos políticos

Foi membro do Comité Central do PCP

Sinopse da entrevista

Ingressou na fábrica nas vésperas do 25 de abril, viveu a greve vidreira de março de 1974 e trabalhou na empresa Pereira Roldão em autogestão durante cinco anos. Contou que guiou visitas de pessoas que vinham para conhecer o processo. Sublinha que este processo foi importante para a sua consciencialização política e para enriquecer a sua experiência fabril.
Explica as suas tarefas na "zona fria" da industria vidreira, exclusiva das mulheres e as suas condições de trabalho.
Descreve o esforço necessário para conciliar as funções profissionais e sindicais, as reivindicações e as lutas que ajudou a organizar.
Foca a evolução da empresa onde trabalhou, num contexto cada vez mais competitivo, até ao seu encerramento definitivo em 1997.
Descreve lutas de resistência aos encerramentos das empresas em que participou, destacando a experiência da Pereira Roldão em que os trabalhadores se mobilizaram para assegurar que o forno não encerrasse, trabalhando em autogestão com salários em atraso, produzindo peças como a jarra da solidariedade que se vendeu no país inteiro.
Fala também da sua participação no núcleo da Marinha Grande do Movimento Democrático de Mulheres, destacando o processo de criação da creche após o 25 de abril e a formação nas áreas da saúde e da concepção.
Questionada sobre a tradição de luta local destaca os percursos e as condições de vida da maioria da população, nomeadamente a precocidade do ingresso no trabalho fabril e a homogeneidade social, como factores explicativos de uma ampla consciência de classe e mais uma vez as condições de trabalho das mulheres. Analisa a história do movimento operário em oposição a diferentes formas de enfraquecer essa consciência.

Palavras-chave

Testemunho

P: Qual é o seu nome todo?

Etelvina Rosa: Maria Etelvina Rosa Ribeiro, mas o normal é ser Etelvina Rosa.

P: Em que ano e em que dia nasceu?

Etelvina Rosa: 16 de maio de 1955.

P: E nasceu aqui, na Marinha Grande?

Etelvina Rosa: Sim.

P: Fez aqui a escolaridade?

Etelvina Rosa: Fiz só a quarta classe e, depois, já foi aos 50 anos que tirei o nono nas Novas Oportunidades.

P: Depois da quarta classe foi trabalhar, na altura?

Etelvina Rosa: Fui aprender costura tinha 11 aninhos, costura e bordados. E aos 18 anos, na véspera do 25 de Abril, entrei para a fábrica. Tinha 18 e fiz logo em maio os 19.

P: E os seus pais, também trabalhavam aqui na Marinha Grande?

Etelvina Rosa: Nas empresas vidreiras? Sim.

P: E casou-se aqui?

Etelvina Rosa: Casei-me aqui.

P: Tem filhos?

Etelvina Rosa: Uma filha e uma neta.

P: E o seu marido, trabalhou aqui também na indústria vidreira?

Etelvina Rosa: Não, trabalhou nos moldes primeiro. Quando regressou da chamada tropa, ainda trabalhou uns anos nos moldes. Depois foi trabalhar na secção dos moldes, mas na indústria vidreira, na empresa Crisal.

P: E a sua filha, o que é que faz?

Etelvina Rosa: É engenheira florestal.

P: Tem aqui um Pinhal de Leiria para tratar, não é?

Etelvina Rosa: Por acaso esteve até este ano em São Brás de Alportel, a trabalhar na Proteção Civil, agora é que veio para a Marinha Grande, não sei se ainda vai ficar mesmo. Em princípio ficará…

P: Faz parte de algum partido político, tem filiação partidária?

Etelvina Rosa: Sim, do PCP.

P: E religião?

Etelvina Rosa: Não.

P: Então, vamos tentar fazer assim uma linha do tempo. Quando é que começou a participar ativamente em movimentos sociais? Foi antes ou depois do 25 de abril?

Etelvina Rosa: Foi depois. Eu não tinha noções políticas nenhumas. Eu sou filha única. Os meus pais eram assim de terem a menina protegida ali em casa. E, como eu disse, fui trabalhar em fevereiro de 74, apanhei logo uma greve por aumento de salários em março, que coincidiu com o dia do movimento militar das Caldas, que fez a pré-revolução, o tubo de ensaio.
Tínhamos entrado para a fábrica naquela altura 18 a 20 jovens, com idades entre os 18 e 20 anos, e aí é que nós percebemos o sentido político, porque fazendo greve na indústria vidreira, não foi só na fábrica onde eu estava, foi na indústria vidreira, tínhamos a Marinha toda cercada por polícia a cavalo, um aparato tenebroso de se passar nas ruas da Marinha. Isso despertou-nos a percebermos muito bem o porquê das coisas.
A partir do 25 de Abril... Não comecei a participar por ser dirigente de coisa nenhuma. Comecei a participar na atividade normal das lutas reivindicativas. Para o bem ou para o mal, na fábrica Manuel Pereira Roldão os patrões, logo em novembro de 1974, abandonaram a empresa que esteve cinco anos em autogestão, com os trabalhadores a gerirem a empresa. E isso deu-nos um outro sentido, porque era uma empresa que na altura teria mais de 600 trabalhadores e conseguiu-se gerir, porque foi nomeada uma Comissão em que cada secção elegeu um representante, digamos assim, para fazer parte da gestão da empresa e nós trabalhámos durante cinco anos como se fosse uma cooperativa, o que nos deu bastante consciência política.
Cada uma vinha da sua vida, algumas com o quinto ano, que hoje seria o nono, outras apenas com a 4.ª classe, mas não tínhamos qualquer consciência política. E, realmente, vermo-nos ali a braços com a empresa e ter que gerir e tratar de tudo como se fôssemos a entidade patronal deu-nos uma vivência que, para mim, pelo menos, serviu para a vida. Depois o ser delegada sindical é só em 1982, que é o ano em que nasceu a minha filha. Eu casei em 1977, depois em 1982 nasceu a minha filha e, por coincidência, entrei para delegada sindical, que é o representante do sindicato dentro da empresa.

P: Mas conte-me mais detalhadamente essa experiência da autogestão. Fala sempre no feminino, era uma empresa com muitas mulheres?

Etelvina Rosa: Falo no feminino porque a indústria vidreira até há pouco tempo estava dividida, o que nós chamamos a zona quente era só homens, o que nós chamamos zona fria era só mulheres. Por isso é que eu falo no feminino, porque era onde eu estava integrada.

P: O que se faz na zona fria?

Etelvina Rosa: Enquanto na parte do forno é trabalhado o vidro a quente, o fabrico é manual, a cana, o soprar do vidro e o manusear o vidro à mão. A zona fria é a parte dos acabamentos, ou seja, todas as peças têm que ser cortadas, roçadas, têm que ser polidas, lapidadas, pintadas, há uma série de transformações, o fosco também, tudo o que é acabamentos, depois também a embalagem e a expedição, é já a parte final, faz parte da chamada zona fria, com trabalho de mulheres.
De referir uma componente, que ainda perdura nos dias de hoje, que é o salário. Não é que não recebessem pelas tabelas… Olha, nessa altura eram melhor aplicadas que agora, existia o contrato coletivo de trabalho e as empresas eram obrigadas a cumprir as tabelas publicadas, mas como era considerado o trabalho feminino menos qualificado, digamos assim, nestes anos que estamos a falar, não digo que fosse metade o salário de uma mulher, mas era pouco mais que metade do salário de um homem do forno.
Claro que o ser artista vidreiro não é para qualquer um e o trabalho na zona quente é um trabalho que exige especialidade. Mas a roça também é um trabalho específico, porque se a peça não fosse roçada a direito e não fosse polida como deve ser não poderia ir para o cliente, é um trabalho bastante duro, porque em plenas madrugadas de geada, sem qualquer aquecimento é difícil trabalhar. Se os trabalhadores do forno trabalhavam com muito calor, ali trabalhava-se em secções extremamente frias, porque eram muito amplas, e com água gelada, em que as peças tinham que ser manuseadas sempre com água, para não rebentarem, e portanto, este trabalho era duro e não valorizado convenientemente para o tipo de trabalho que estas mulheres exerciam. E aí era mesmo feito por mulheres, o que aconteceu durante décadas é que o chefe era homem [ri-se].
Essa também era questão muito interessante. Se formos ver a história, eram 30 mulheres numa secção, o chefe era homem. Depois isto só se inverteu já no final dos anos 80.

P: Então e o que é que a Etelvina fazia quando entrou na fábrica? Qual é que era a função que desempenhava?

Etelvina Rosa: Eu entrei para a parte da embalagem, a secção de exportação. Portanto, desde escolher as peças, empalhá-las, porque quando eu cheguei ainda muitas das peças não eram embaladas em caixas de cartão, eram empilhadas em palha e depois encaixotadas para seguirem para embarque. Depois passou-se para a caixa de cartão, que já era um trabalho melhorzinho, não era tão difícil e agressivo para as nossas mãos. Devo ter estado ali até aos anos 90.

P: E foi nesse período, nessas funções, que viveu a experiência de autogestão?

Etelvina Rosa: A autogestão só foi cinco anos, de 1974 a 1979. Estava nessa parte da embalagem. Depois, em 1979, entrou o Mário Soares e acabou com a autogestão, assim como com a Reforma Agrária.

P: Como é que esta alteração das relações laborais se refletiu no seu trabalho enquanto delegada sindical?

Etelvina Rosa: É muito difícil falar de nós, mas é mesmo assim, teve de ser com muita persistência, muita teimosia e com o retirar muito à minha vida pessoal. Porque quando as chefias me chamaram e disseram: “A gente precisa de ti agora, aqui, neste posto de trabalho”, a primeira coisa que eu respondi foi “vocês sabem a responsabilidade que eu tenho a nível sindical nesta empresa. Eu não abdico. Portanto, o que eu tiver de fazer, terá que ser feito da mesma forma como sempre o fiz”. “Isso não é impedimento, fará como entender”.
Sabemos que, infelizmente, numa grande parte dos casos, não é fácil ser responsável sindical e chefiar isto ou aquilo, porque no fundo acabava por ter de fazer cumprir ordens superiores.
Eu não era uma chefia superior, mas tinha que fazer esta gestão até mesmo internamente para conseguir ter as peças para levar para fora. E isso implicou eu ter de fazer, no fundo, à minha conta, muitas horas. Porque o normal seria: tenho de sair para uma reunião e saio, ponto. Mas como eu tinha esta responsabilidade, era a última coisa que eu queria que me acontecesse na vida é que alguém me dissesse “esta carga não saiu porque tu não tiveste atenta à situação, não a resolveste atempadamente”.
E então, todas as reuniões sindicais que eram na Marinha, eu não saía diretamente de casa para a reunião, ia sempre à hora que fosse à fábrica deixar as coisas previamente preparadas, porque normalmente eu fazia as cargas e descargas, depois alguém fazia o trabalho de distribuição, mas eu tinha que saber que o que estava nas caixas, por exemplo, eram 100 peças para irem para o fornecedor José, Manuel ou Francisco, eu tinha a certeza, com a guia passada, para alguém as entregar, para amanhã ou passado um dia ou dois serem levantadas. Também o normal era os trabalhadores saírem às cinco da tarde, se eu tivesse que voltar à fábrica, voltava. E estou a dizer isto, que foi sempre da minha responsabilidade, porque ninguém me dizia isto tem de estar feito ou não, se eu estivesse na fábrica, das cinco às seis ou das cinco às sete, eu não apontava uma hora extraordinária. Por isso é que eu digo que fui muito teimosa, no assumir as funções.
Isto para mim também me ajudava na parte sindical, porque numa fábrica de grande dimensão, com setores muito variados, com profissões diferentes, dava para perceber os problemas dos trabalhadores em cada secção. Porque, por exemplo, quando eu entrei para embalagem, eu entrava e saía dentro da secção. Se via alguém era à hora de almoço. Como tinha estas funções, em que tinha de ir às secções todas, tinha a liberdade de passar por diversos setores, conhecer e tentar perceber o tipo de trabalho. Às vezes digo, isto pode parecer que não é bem assim, mas é, eu tive colegas minhas que entraram na mesma altura do que eu e saíram na mesma altura do que eu, e que, como trabalhavam na zona fria, estavam tão compartimentadas que não chegaram a estar perto de um vidreiro a vê-lo trabalhar ao vivo e a cores, não tinham noção da temperatura do forno, da composição de que as peças eram feitas.
E agora, a falar nisto, estou a lembrar-me de uma parte, que também me ensinou muito relativamente ao vidro, quando estávamos na fase de autogestão, isto foi a seguir ao 25 de Abril, que só quem o viveu, acho que a minha geração nisso foi muito privilegiada, porque conheceu o antes, conheceu o 25 de Abril e conhece agora. O ano de 1974 era de uma efervescência e de uma novidade para todo o cidadão português. E era muito comum haver excursões do Porto, de Gaia, de aldeias da Serra da Estrela e dos mais diversos pontos do país, vir visitar a empresa ver trabalhar o vidro e até do estrangeiro vinham excursões, em passeios culturais, chamemos-lhe assim. Vinham aqui, mas também à Reforma Agrária, aproveitavam para vir a Portugal, os que vinham de fora, e um dia iam a um local e outro dia a outro. Eu tinha pouquíssimo tempo de empresa, enfiada lá na tal secção que era só de embalagem, quando na altura os colegas responsáveis falaram comigo para acompanhar os visitantes, porque chegavam às vezes duas camionetes, que eram 100 pessoas, para ir visitar o forno. Tinha de ser limitado, no máximo dos máximos eram 20 pessoas para aquela situação, às vezes já era um grande aglomerado na zona chamada quente. E então tinham que arranjar duas ou três pessoas que fossem os cicerones, digamos assim, a passar pelas secções para tentar perceber o trabalho do fabrico manual.
E quando me chamaram pela primeira vez, eu só sabia que havia copos para meter em caixas e eu era muito envergonhadita à data. “Mas eu não percebo nada disto, o que é que eu vou fazer?” “Tens de ir, tens que acompanhar.” Portanto, isto levou-me a ter de parar ao pé de um vidreiro e dizer: “está a fazer isso, como se faz?” O vidreiro explicava: “é assim, tira-se o vidro do forno, está a fundir a 1000 e tal graus. Eu estou a trabalhá-lo a mais de 700 graus e aqui põe-se a asa e ali corta-se o bico do jarro e ali coloca-se o pé do cálice.” Depois passava por de trás do forno para ver a composição e saber quais eram os ingredientes da composição. Assim toda a minha vida fabril deu-me uma experiência, que eu não quis ter, mas fui tendo.
E, realmente, essa parte foi nos anos da autogestão, que eu tive essa experiência que me foi ajudando ao longo da vida. Depois, quando já estou nas outras funções, também já tinha algum à vontade para ir, até porque tinha que escolher as peças, tinham defeito, estavam tortas ou tinham bolha, ou outo defeito. Portanto, também já tinha à vontade para ir junto do colega trabalhador e dizer como é que isto se resolve sem estarmos a estragar alguma peça. E também lhe dava a ele o à vontade para me colocar os problemas que depois tínhamos de levar a reuniões com a entidade patronal.

P: Quais eram os principais problemas? Quais foram, ao longo dessa experiência de delegada sindical na fábrica, os principais problemas com que se deparou?

Etelvina Rosa: Eu aí tive esse espacinho de tempo que não foi muito, mas que foi gratificante, quando entrou o novo patrão. Já não houve salários em atraso até 1992. Mas há sempre a nota de culpa, porque o trabalhador fez um erro qualquer, ou faltou ao trabalho, ou teve algum problema, porque existem muitas categorias profissionais, de oficial e primeiro ajudante e segundo ajudante, que tem determinados tempos para subir de categoria e até podia não ser por mal, mas o trabalhador já estava a exercer determinada categoria acima do que recebia e não estar a ser pago corretamente. É este tipo de situações que a delegada sindical tem de resolver.
Naquela altura, nem se passou nada de tão grave assim, mas era dentro desta base de situações que íamos tratando. Por exemplo, estávamos a falar das mulheres da roça e do frio, tínhamos de reportar essa situação: “tem de resolver a questão, como pôr ali uns aquecedores a gás ou qualquer coisa que seja, porque é impossível trabalhar naquelas condições. Arranjem condições para que o fio de água que está a correr, não seja só um fio de água gelado.” Eram estas algumas questões. Podem parecer até de somenos importância, mas que para o trabalho são fundamentais, até para ter a rentabilidade produtiva que é precisa nas empresas.
Depois, deve ter sido nos anos 90, que fiz parte já da direção do sindicato, mas a minha postura foi sempre a mesma. Nunca descurei nada do trabalho que tinha de fazer profissionalmente e sempre fiz o que me foi possível em termos sindicais, mais gerais, porque já não era só na empresa Manuel Pereira Roldão, também havia problemas, e muitos, noutras empresas. Também tinha de ir. Claro que não estava a tempo inteiro no sindicato, nada disso, portanto tirava dias, dois ou três por mês, não tirava mais do que isso, mas sempre muito às minhas custas, digamos assim. Depois, com uma filha pequena, também foi preciso gerir muito bem os meus dias, tirando algumas horitas de sono para conseguir que tudo encaixasse e que se levasse à prática.

P: E nesse período da direção do sindicato? Ainda faz parte da direção do sindicato hoje em dia?

Etelvina Rosa: Sim, já agora vou contar um bocadinho da história, depois corta o que entender. Quando entrou o patrão, estes patrões, pronto um é que era o mentor da empresa, em 1986, ele mudou radicalmente o circuito da empresa e lidava com os trabalhadores de igual para igual e foi uma pessoa muito empenhada e, especialmente nos dois primeiros anos de fábrica, ele entrava às 7h00 da manhã e saía à meia-noite. Portanto, ele era uma pessoa com muitas capacidades, na altura tinha 33 anos, salvo erro.
Como já tinha o conhecimento do internacional, ele manteve sempre a parte das encomendas, criou um design novo para as peças de vidro, porque a M.P. Roldão, anteriormente trabalhava numa linha, que era até ali muito competitiva, não só com outras empresas da cristalaria, mas até já com algumas do semiautomático e era incomportável o custo que ficava um copo manual para um semiautomático. E ele alterou muito o trabalho para a cor, com um design para o decorativo, que não tínhamos em mais nenhuma empresa na Marinha Grande, nem noutro sítio do país. Como já não existia ninguém a trabalhar naquele tipo de peças, tínhamos encomendas a perder de vista.
O patrão, sempre muito empenhado em gerir tudo, em passar por todas as secções, a ver ao vivo e a cores os problemas, a estar ali para perceber o que os trabalhadores dizem, porque por vezes não é só o que dizem, é também ver no concreto, reunia com todas as chefias e havia uma coordenação e uma interligação espetacular. Quando a empresa, com a nova gestão, começou a dar frutos, a estar estabilizada e a dar lucros, porque diga-se em abono da verdade que as empresas de cristalaria manual têm de ser mesmo bem geridas, porque não são empresas que deem lucros fabulosos. Têm um custo energético muito grande. A composição do vidro tem um grande custo e então quando é de cor, é muito cara. E para ser competitiva tem que efetivamente ser muito bem gerida, foi o que o patrão fez nos primeiros dois, três anos.
Depois, achou que que já estava noutro patamar da vida e em vez de ser ele a gerir no dia a dia, começou a arranjar o primo, o amigo, um conhecido que mandou de Lisboa, os quais não estavam para se preocupar com a gestão. E então a empresa, que chegou a um patamar excelente, começou outra vez a decair.
E também estou a dizer isto porque tinha conhecimento, porque estava nas funções de andar dentro e fora, que para além das peças de vidro também tinha de ir às cartonagens, carregar caixas, outros materiais e diversas compras, andava com a camionete na rua e tinha essa ligação aos fornecedores, que eram essenciais para a empresa e que durante x tempo eles até iam oferecer os materiais. Depois, já se começou a sentir “só levas o material se pagares primeiro”, é sempre o que acontece antes de faltar o salário, começam a cortar o pagamento aos fornecedores, à Segurança Social.
Ao deixar de gerir por diretamente e achar que podia ser por interposta pessoa, as coisas começaram a correr mal e a empresa quase encerra em 1994. Lá se arranja um outro empresário que ficou com a M. P. Roldão, também não foi nada de especial, encerra em 1997 nas instalações e passa a ser outra empresa, filha daquela e construída na zona industrial, mas que já não tinha, nem de perto nem de Longe, a mesma dinâmica e apostando na produção de cristal, o qual não tinha mercado.

P: Entretanto, foi para a direção do sindicato...

Etelvina Rosa: Deve ter sido também no início dos anos 90. Aí estava na direção, mas a direção normalmente só tem uma pessoa a tempo inteiro, que está mesmo no sindicato a tempo inteiro. Os outros dirigentes têm os quatro créditos sindicais que são do Código do Trabalho há muitos anos e conforme as necessidades utilizamos ou não. Eu estava na mesa da Assembleia Geral e depois estive na direção, nesse formato. Também fui das que passei da Manuel Pereira Roldão para a outra empresa, a Mandata, que encerrou em final de 2002.

P: E durante esse período esteve sempre na direção do sindicato…

Etelvina Rosa: Sim, mas de forma parcial, digamos assim, só com créditos. Depois fiquei no desemprego e assim com mais tempo livre para o trabalho sindical. A minha filha também já estava grande, porque na altura existiam muitas empresas vidreiras do ramo manual com muitos problemas e acabei por dar o meu tempo, recebia o subsídio de desemprego, não recebia mais nada, não estava todos os dias no sindicato, mas sempre que tinha disponibilidade passava alguns dias da semana a ir às empresas, a dar a ajuda necessária aos trabalhadores, até pela experiência boa e má que tive na Manuel Pereira Roldão.
Ajudava a transmitir confiança aos trabalhadores, mas sempre em ligação aos coordenadores do sindicato. Em 2005, reformou-se o coordenador e a direção que ficou entendeu que seria necessário fazer uma proposta para eu ficar na direção, mas então paga pelo sindicato. Fiquei a tempo inteiro a partir de 2005, assumi a coordenação em 2013. Entretanto reformei-me, mas vou ficar até final do mandato que termina em maio de 2022. Portanto, será posto o fim como dirigente do STIV (Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Vidreira).
Nestes anos todos não tive só atividade sindical. Embora acumule trabalho que por vezes nem se consegue dar resposta. Alguns dos meus traumas existenciais têm um bocado a ver com isso, é que até se sabe o que temos para fazer mas depois o tempo útil não dá para tudo.
Eu também comecei a participar, logo a seguir ao 25 de abril, no Movimento Democrático de Mulheres, núcleo da Marinha Grande, que teve uma dinâmica espetacular, não sei se ainda em 1974, mas em 1975 garantidamente. Onde é a Junta de Freguesia da Marinha Grande hoje, era uma casa, não sei quem seriam os donos, estava desabitada à data, e cederam a casa para fazer uma creche. Porque não existiam. As fábricas maiores até tinham para lá uns cubículos e punham para lá uma mulher ou duas a tomar conta das crianças.
As mulheres, para irem de bicicleta para a fábrica, tinham que deixar os miúdos nalgum lado. Havia algumas fábricas que tinham creche, mas as mais pequenas não tinham. Os filhos ficavam com os avós, lá nos terrenos, porque estes tinham agricultura, os miúdos andavam pelos terrenos. E então, uma das primeiras coisas que o núcleo da Marinha Grande do Movimento democrático de Mulheres fez foi implementar uma creche. Não tenho noção se foi até aos anos 80, deve ter sido, quando fizeram uns jardins de infância públicos que existem perto do centro de saúde. Como já existiam alternativas, terminou a creche que o MDM criou. Mas foi assim, ninguém tinha formação de coisa nenhuma, foram as mulheres com algum tempo que se disponibilizaram para tomar conta das crianças e os homens que tinham jeito para carpintaria fizeram as caminhas para as crianças e foi assim durante muitos anos.
O núcleo do MDM envolvia muitas mulheres, fossem elas trabalhadoras das fábricas ou as chamadas trabalhadoras domésticas. E tinham muitas atividades, não se compara aos dias de hoje. Por vezes até nos esquecemos do que foi feito, só quando olhamos para álbuns antigos é que se dá conta. Desde os primeiros de maio com desfile de carros alegóricos e decorados pelas mulheres. As coletividades também participavam com os seus carros. Não havia dia 1 de junho nenhum em que o núcleo não realizasse iniciativas de rua para pôr os jovens e as crianças a pintar, a fazer jogos, entre diversas iniciativas. Também tomavam posição sobre o que acontecia no concelho. Na defesa do Serviço Nacional de Saúde criaram-se parcerias muito engraçadas na altura, porque não existia nada de nada. Até a exigência de ginecologistas para os centros de saúde, que se foram conseguindo, e entretanto se perderam.
Em 1974 ainda estávamos naquela fase em que as mulheres não usavam nada para prevenir a gravidez. Portanto, o que acontecesse, acontecia, se engravidava ou não engravidava. Se engravidava N vezes, as que já não queriam ter mais filhos faziam o aborto clandestino, que depois corria mal, pondo em risco de vida as mulheres. O MDM teve um papel fundamental até se conseguir o direito ao aborto sem penalização. Eu não conhecia o trabalho desenvolvido a nível nacional pelo Movimento Democrático de Mulheres, não sei se foi feito em muitos núcleos. Mas na Marinha tenho ideia de realmente se ter um empenhamento muito forte, em que se conseguia parcerias com médicas, com enfermeiras e depois ir junto das instituições exigir que as necessidades de determinados serviços se concretizassem e as mulheres fossem tratadas convenientemente. E não pertencendo à direção do Movimento Democrático de Mulheres, também participava nas iniciativas que levavam à prática.
Já nos anos 2000, as amigas que pertenciam ao núcleo da Marinha ficaram mais envelhecidas, porque também são eleitas no Congresso Nacional do MDM representantes do distrito – não é por concelho, é por distrito –, também sou eleita para a direção do Movimento Democrático de Mulheres. Isto para dizer que também passei a ter mais responsabilidades e, sendo um acumular de tarefas que nos tira muito do nosso tempo, depois olhamos para trás e fica assim um sentimento “mas eu poderia ter ido passear acolá, podia ter ido à festa não sei de onde e não fui”, porque para participar numa atividade, não faremos outra. Mas isso não me aflige nem penso assim “devia ter feito e não fiz”. Não. Acho que o que fiz, fiz, e enriqueceu-me, porque falando de forma ampla, ter atividades politicas faz-nos perceber a vida de forma diferente e com uma perspetiva mais alargada. Também acho que dei o meu contributo, dentro do que me foi possível, não o desejável, nem o que seria necessário, mas contribuí para que o coletivo no seu todo também melhorasse um bocadinho a vida.
Infelizmente, temos uma situação política que não é de agora, já há uns anos a esta parte não é o que nós pretendíamos, e perdemos alguns direitos conquistados com o 25 de abril. Mas se não fosse a luta, esta força, a teimosia e persistência dos trabalhadores, teríamos perdido muito mais. Acho, mesmo assim, que é um esforço que tem sido feito com bons resultados.

P: Então e neste período desde 2005, em que tem estado a tempo inteiro no sindicato, quais foram as principais lutas que teve que organizar?

Etelvina Rosa: Isso só desfolhando o rol, que as lutas são tantas... Desde 2005, para já não falar nas anteriores, até 2008 ainda existiam aí algumas empresas: a Marividros, a Canividro, a Dâmaso, que era uma empresa em Vieira de Leiria, que produzia as peças mais utilitárias, era na altura o polo de subsistência dos trabalhadores da freguesia da Vieira de Leiria e que de um momento para o outro se viram confrontados com o seu encerramento. Na Dâmaso, assim como outras na Marinha Grande.
Quando hoje, nalgumas empresas, se declara a insolvência, apesar do desânimo dos trabalhadores, estes não lutam, encerrou e fica assim. No nosso concelho realmente houve sempre uma forte resistência ao encerramento das firmas. Por exemplo, estou-me a lembrar que a Dâmaso encerra em 2006 ou 2007 e são outra vez N idas ao Governo Civil, que existia na época, N idas à Assembleia da República, ao Presidente da República. Tentar-se, por tudo e mais alguma coisa, denunciar e procurar alternativas ao encerramento, até o sindicato contactar com alguns empresários: “tens essa fábrica, não queres ficar com aquela também, para que os trabalhadores não fiquem desempregados?”
São lutas que duram meses, têm um desgaste muito grande, depois consegue-se melhor ou pior, por vezes não se consegue ficar com os trabalhadores todos, mas consegue-se ficar com alguns. A Dâmaso acabou por ir mesmo para a insolvência e encerrar. A Marividros, salvo erro em 2008, entra em processo de insolvência, durante meses a fio. Isso é uma outra questão. As insolvências não só não são só porque a empresa já não dá lucro e fecha, as entidades patronais programam que se fecharem e ficarem com as maquinarias, depois abrem ali ao lado, até arranjam uma maneira e abrem no mesmo sítio com outra designação, mas com o mesmo tipo de produção. O fundo de garantia salarial, que existe desde há uns anitos a esta parte, nem sempre existiu e nem sempre teve a mesma dimensão e os trabalhadores, numa insolvência, por norma só vêm a receber uma parte dos créditos que lhe são devidos, por o que resta da massa insolvente ser um montante pequeno.
E então a experiência também nos foi dizendo que é decretada a insolvência, mas ficam os bens. Se os trabalhadores forem cada um para a sua casa à espera que se resolva, quando for para ser vendida a massa insolvente, ela não existe. Porque já foram não sei quantos camiões, carregaram durante a noite ou durante o fim de semana as máquinas e os materiais, apenas existem paredes. E, por exemplo, na Marividros tivemos cinco ou seis meses em que os trabalhadores se revezavam por turnos e estavam dia e noite na empresa, um sítio um bocado ermo, mas guardaram os bens, 24 sobre 24 horas. Claro que tem de ser coordenado com os dirigentes sindicais. Obriga a que os dirigentes sindicais não digam: “Vocês têm que ficar aí” – e os próprios não aparecem. Portanto, tínhamos de nos revezar também, pelo menos um da direção por turno, para estar com os trabalhadores, dando a coragem e a esperança necessária.
Era preciso levar umas sandes, uns sumos, umas águas, até o tribunal decidir sobre o processo. A fábrica manteve o seu recheio e foi vendida totalmente equipada (neste caso, os trabalhadores recebem o total dos valores em divida).

São dois exemplos do que eu estava a referir, das lutas que se fazem deste tipo, porque também nós, quando estamos na direção, o sindicato não é estanque, só o STIV e os seus sócios. Pertencemos ao Movimento Sindical Unitário, à CGTP, temos de ter as ligações às uniões dos Sindicatos, à federação e à própria central sindical, porque tem de existir coordenação. Portanto, há uma série de envolventes que se complementam pelo mesmo bem, mas que nos consome algum tempo, porque as reuniões não são na sede do nosso sindicato, temos de nos dividir.
Mas, já agora, quando estava aqui a falar nesta questão das empresas, estava-me a lembrar de uma parte, que foi fundamental, para o bem e para o mal, e me enriqueceu pessoalmente, embora seja mau o que aconteceu no concreto, que é esta passagem de quando o patrão Carlos Antero, até ao fecho parcial. Porque, como a M. P. Roldão ficou com outro patrão, passou a ser Mandata, uma filha enteada. É que o vidro tem esta condição específica: enquanto se tiver uma empresa de moldes, seja num dia de greve, seja num encerramento, desligou-se a máquina, a máquina ficou parada, está tudo em segurança, fica tudo normal.
As fábricas de vidro têm um forno ou mais. No forno a tanque, se houver uma falha de luz ou uma falha de gás, o vidro solidifica, é como se fosse esta casa cheia de vidro até aqui de composição que, estando quente, está sempre líquida. Mas se houver uma falha de gás ou de energia sem ter um gerador que atue logo, solidifica e já não se pode fazer mais nada. Em finais de 1993, inícios de 1994, ficámos outra vez sem patrão, porque não tinha condições para pagar aos trabalhadores e acabou por abandonar a M.P.R. em dezembro, mais um Natal. Foram uns natais e passagem de ano muito jeitosos.
O que é que os trabalhadores decidiram, sempre em coordenação com os dirigentes do sindicato vidreiro, claro, não poderia ser de outra forma (era impossível levar a luta a bom porto se não fosse assim)? Como não queríamos que o forno encerrasse, porque se o forno fosse desligado então é que aí já não teríamos ninguém interessado em ficar com a empresa, fizemos uma autogestão meia manhosa, mas foi uma autogestão. Porquê? Porque os patrões abandonaram, mas todas as transações de forma legal estavam em nome deles e dependentes da sua assinatura. E então o que é que os trabalhadores decidiram? Não é dizer eles inventaram estar doentes, não é verdade, porque quem fica com salários em atraso não fica bem psicologicamente, nem de saúde. E então, essencialmente, quem era casal, o que estava pior fisicamente ia para a baixa e o outro ficava a trabalhar. Surgiu a ideia, que os trabalhadores aprovaram e decidiram concretizar.
Iam produzindo peças para alguns clientes e até a chamada jarra da solidariedade, que correu o país inteiro, e criámos uma gestão paralela, digamos assim, ou seja, fabricávamos peças que vendíamos. Tínhamos de receber em dinheiro para não passar nada pelos bancos, porque ainda por cima havia dívidas, o dinheiro se entrasse na conta bancária ficava retido. Quando ficámos sem os gestores, a empresa tinha uma carteira de encomendas que ainda hoje me dói, para o estrangeiro, porque os clientes ficaram sem as peças e normalmente até adiantavam o pagamento de meia encomenda e alguns clientes ficaram sem elas.
Os trabalhadores a produzir para o estrangeiro deixaram de ter condições de realizar. Passámos a produzir para empresas pequenas, peças para os candeeiros e outras que tínhamos condições de fabricar, acabavam-se, vendiam-se, recebiam-se, para termos dinheiro para manter o forno a laborar e para a composição. Não era para nós, foi para conseguirmos este circuito, sempre naquela esperança que aparecesse uma entidade que, entretanto, ficasse com a fábrica.
E tinha de ser com a empresa a laborar, porque se o forno estivesse encerrado não era possível, porque depois de estar um vidro solidificado, só à picareta se retira os blocos de vidro. E ainda durou seis meses, em que nós de manhã trabalhávamos, à tarde fazíamos manifestações de rua, que foi quando a polícia também veio dar porrada em todos, fossem manifestantes ou não. Quando sabíamos que havia uma feira numa localidade do distrito, lá íamos nós com uma banquinha e com as pecinhas para venda, para conseguir manter o forno ligado. Toda esta vivência obriga-nos a ter um espírito solidário diferente do comum dos trabalhadores.

P: E conte-me lá melhor como é que foi essa questão da jarra da solidariedade. Foi nesse período que produziram essa peça?

Etelvina Rosa: Sim, porque quando há situações em que os trabalhadores desenvolvem lutas mais visíveis, ao nível dos sindicatos cria-se também um elo solidário. E na altura pensámos: se nós conseguíssemos fazer uma peça que diversos núcleos comprassem, era mais uma ajuda que seria certa. Então os trabalhadores produziam, mas existia a dúvida se teria venda ou não. E realmente funcionou. Eu agora não faço ideia de quantos milhares de peças se fizeram, mas ainda foram uns milhares largos, de uma jarra simples no fabrico, como se fosse um copo grande, com uma gravação dum trabalhador vidreiro. A jarra foi para muitas localidades do país.
Era despachada pelos Correios, aqui mais perto entregávamos diretamente, claro, mas se pediam do Porto 100 ou 200 jarras eram despachadas ou pela empresa ou pelos Correios, para realizarmos receita. Mas o dinheiro era fundamentalmente para manter o forno e comprar a composição que é necessária. Foi uma experiência única no país, a de se trabalhar sem receber salário para manter os postos de trabalho. Pelo menos não tenho conhecimento desta forma de luta noutras empresas.
Sei que há muitas, ainda agora nos têxteis e muitas outras, para o Norte, em que se conseguiu frutos. Mas esta de trabalhar de forma gratuita e conciliar o fabrico das peças e a luta para ir a bom porto realmente creio que é única. E realmente conseguiu-se os objetivos. Quando se foi para esta situação, tínhamos cerca de 300 trabalhadores. E alguns não aguentaram, porque nem todos se aguentam, sem ter uma subsistência diária. Alguns trabalhadores foram arranjando um emprego aqui ou acolá. Mas quando conseguimos a tal nova pessoa que ficasse com a empresa, só ficou com 144 ou 146. Mesmo assim, foi melhor manter aqueles postos de trabalho do que encerrar. Infelizmente, a empresa – à data Mandata – também não durou muito e o senhor que ficou com ela passado uns anitos faleceu prematuramente. Mas acho que é uma luta marcante que deve ficar para a história.

P: E houve outros movimentos de solidariedade semelhantes com casos de empresas que estivessem para fechar assim à escala nacional? Ou seja, pelo que eu tenho estado a perceber, a Etelvina acompanhou outros encerramentos. Houve outros movimentos assim parecidos?

Etelvina Rosa: Sim, terá havido e participei em diversas, agora não me lembro de quais, em que terei participado.

P: Esse tipo de lutas foram lutas marcantes, as lutas para salvar as empresas, fecharam muitas fábricas aqui nestes últimos 40 anos?

Etelvina Rosa: Sim, nos últimos 30 anos fecharam mesmo muitas e depois, se quiser que lhe mande as que fecharam de 2000 para cá – mesmo assim, ainda foram muitas, ainda foi a Ivima, a Manuel Pereira Roldão, a Dâmaso, a Marividros, a Canividro, só no Concelho da Marinha, N empresas, praticamente todas de fabrico manual que encerraram. No concelho, nós podemos dizer que existem vidreiros, porque temos as fábricas de fabrico automático, a que chamamos garrafeiras, mas nem todas fabricam só garrafas, algumas até fizeram um bom dinheiro no ano de 2020, com a pandemia, porque estavam mais vocacionadas para o fabrico de garrafas de azeite, ou boiões dos iogurtes, frascos para o feijão, grão, como aumentou a compra do enlatado, do feijão, do grão, entre outros. As empresas que estavam nesse mercado tiveram encomendas que não conseguiram satisfazer, como se estava em casa, não existiam restaurantes a funcionar, tínhamos de comprar os produtos para fazer o comer em casa. Ou seja, estas empresas não tiveram problemas, mas é na área do fabrico automático que existem no concelho da Marinha Grande algumas empresas.
O sindicato abrange as empresas de vidro a nível nacional, existem a que chamamos transformadores de chapa de vidro, que são as empresas que fazem janelas e portas. Ou seja, é tudo o que abrange o vidro nacional. Agora temos aquela desgraça da Sekurit em Santa Iria da Azóia. Em 2009 fecharam o único forno que que fazia a chapa de vidro e ficaram só com a transformação, não só desta chapa de vidro, mas do vidro automóvel, que também era a única empresa no país que transformava o vidro para qualquer carro, carrinha, ou autocarro.
A direção da empresa resolveu encerrá-la, é mesmo um crime nacional que foi cometido e a forma como foi tratado. Deixaram os trabalhadores ir de férias e no dia que regressam de férias dizem: “têm aqui uma carta em como vão terminar os postos de trabalhos.” Portugal fica assim sem empresa de transformação de chapa de vidro. O sindicato tem dirigentes que trabalham nas empresas de colocação de vidros e não têm matéria-prima agora para satisfazer os clientes. Um dizia: “eu estou a ficar sem trabalho porque o meu patrão tem casas para colocar os vidros, mas não tem o vidro e o que consegue tem o dobro do preço.” Ele até dizia o que era a 12 euros o metro quadrado já está a 20.

P: O que é que o sindicato fez em relação a essa questão?

Etelvina Rosa: O sindicato foi com os trabalhadores reunir com o Governo para evitar que fosse assim, para que o Governo tomasse medidas imediatas. Estivemos em N reuniões com o Secretário de Estado, que até me pareceu bastante empenhado, só que, entendo eu, não foi por acaso que o Grupo Saint Gobain agiu assim de um momento para o outro. Porque entre o dia 25 de agosto – foi quando os trabalhadores receberam a notícia – e, por exemplo, 25 de setembro, foi um mês com os fins de semana que dá poucos dias úteis. Para os trabalhadores é um drama: como é que vão resolver a vida? Mas para um governo tomar posição, mesmo que esteja empenhado – e muitas vezes não está, é a minha opinião –, os dias úteis são curtíssimos. Até nos davam dicas de que se conseguiria manter a empresa com outra produção que não a de vidro, diziam ter alguns contactos que iriam realizar.
Entretanto, também se criou a situação política que está, estamos a insistir com reuniões. Ainda agora, antes de vir, estava a nossa federação a insistir com mais um pedido de reunião ao ministério, mas os secretários de Estado também estão naquela fase em que não sabem se ficam se vão, estão a deixar andar. Os trabalhadores continuam com a luta de rua, com denúncias públicas, do crime que está a ser cometido. Terá uma decisão em concreto que se consegue resolver a bem dos trabalhadores ou não.

P: Diga-me uma coisa, é que a Marinha Grande é uma terra com uma tradição de luta quase mítica, desde o 18 de janeiro de 1934, uma aura. Como é que isso se vive no meio sindical? Esta questão da memória, da tradição de luta, é algo que marca de uma forma específica o movimento sindical, aqui no contexto da Marinha Grande?

Etelvina Rosa: O 18 de Janeiro não vem por acaso. É que os miúdos iam trabalhar aos sete, oito anos. Tanto quanto eu conheço, as raparigas antes dos 12 anos não foram trabalhar, isto é mesmo assim, eu ainda conheci pessoas que contavam a história de levarem os miúdos ao colo até à fábrica. As mães que eram rurais trabalhavam no campo, mas como tinham muitos filhos e precisavam de sobreviver, com sete, oito anos levavam os miúdos para o trabalho. Muitos não aprenderam a ler no tempo dos meus pais. A Marinha, mesmo assim, era onde se aprendia a ler e a escrever, mas se calhar 80% eram rapazes. É que para as raparigas achava-se que não havia necessidade. Os pais dos rapazes ainda os punham a aprender a fazer o nome, mas iam para a fábrica muito novos. Ou seja, quando se chegava aos 16 anos a maturidade da pessoa – atrevo-me a dizer – que era maior que hoje, quando se tem quase 30.
Porque eu nem consigo pôr-me no lugar dos pais em 1934. Hoje, com uma criança de oito anos, andamos com ela ao colo e “coitadinho do menino”. Eu não consigo bem pôr-me na pele do que era uma criança de oito anos a fazer um trabalho tão duro. Porque não ia fazer um trabalhito qualquer, ia fazer o trabalho a que chamamos de fechar o molde, um trabalho extremamente duro, com moldes de madeira maiores que a criança. E, pela vida rude que todos levavam, o adulto que estava ali também não poupava. “Estás aqui, tens que fazer e se não fizeres levas uma lambadazinha que é para ver se amanhã já fazes.” Eu estou a ser muito dura e crua, mas era mesmo assim. Então havia aqui toda uma vivência em que eram muito adultos e tanto é que se casavam logo aos 18 anos e começavam a ter filhos.
Era uma vivência muito diferente da dos dias de hoje, pode-se dizer assim, e existia uma organização política – temos que dar o nome às coisas –, houve uma organização partidária que conseguiu dar alguns nós em termos organizativos para concretizar o 18 de janeiro. Porque até foi considerado um polo na Marinha Grande, mas foi um movimento a nível nacional, que dizem chamado de anarco-sindicalismo. Mas teve tudo a ver, no meu entender, que não tenho nada a ver com o historiador, com a vivência de trabalho duro e mal pago desde muito novos.
Como naquele tempo não havia na mesma empresa dois fornos, em que se um parar para arranjo fica outro a funcionar, só existia um e quando parava para arranjo estavam meses sem forno, porque têm duração curta. E os trabalhadores, qual subsídio de desemprego? Não trabalhas, não há dinheiro. Quando houver forno voltas outra vez. É por isso que algumas estradas da mata foram feitas por vidreiros, mas outros nem isso tinham para sobreviver.
Eu acho que foi assim que se criou, na Marinha, uma raiz de classe operária e o sentimento de que tinham que ser unidos e lutarem pelos seus direitos, pela sua liberdade e dar um pontapé ao sistema fascista. O Salazar, a repressão, o decreto do governo para controlar os sindicatos, retirar o direito à greve, foi todo um despoletar de situações. E ficaram as raízes para o futuro, porque existia muito este sentimento de classe.
E não é inocente que, no pós-25 de Abril, a parte mais à direita da sociedade tenha tentado sempre dividir esse elo operário. Tanto que não é inocente, não serão todas as empresas, mas agora quase todas, não é o patrão e o trabalhador, é o patrão e o “colaborador”. Não é inocente. Até parece muito bonito. Porque colaborar, por exemplo colaborei com MDM sim, mas não estou a colaborar com o meu patrão, estou a vender a minha força de trabalho. É isso e o criar prémios de tudo mais sei lá o quê, há empresas que têm alguns 10 prémios, de produtividade, de performance e muitos outros, em que fazemos a mesma coisa, mas cada um tem um prémio diferente, porque ele é mais bonito ou pinta o cabelo da cor azul.
É tudo um sistema muito complicado e não se perdeu mesmo assim ainda as raízes operárias e o sentido de classe, mas hoje já não é a mesma coisa que era há 40 anos, já não digo há 50. Porque foi fomentado o individualismo. Agora acho que os trabalhadores neste momento também já estão a ter uma postura diferente e a média etária entre os 30 e os 40, até há uns anos achava que se estava bem e ia-se andando, mas agora estão a perceber que não têm futuro na vida se não se puserem à vida pela luta, pela sua própria vida, não é só pelo emprego. Porque há hoje empresas que o que fazem é contratar uma prestadora de serviço para fazer um trabalho qualificado. Nem é para o trabalhador, que não tem futuro, não sabe se está ali um dia, um mês ou um ano, e as próprias empresas têm de começar a perceber que não vão ter trabalhadores qualificados no futuro se continuarem com esta linha.
Se me disserem que se for para varrer esta casa, tanto varro eu ou senhor engenheiro, é a mesma coisa. Mas se tiver de trabalhar o vidro manual, esse então tem que ter muitos anos para se lá chegar, mas mesmo para tomar conta de uma máquina que produz vidro tem que ter uns anitos para saber os chamados truques da máquina e se o vidro está mais grosso ou mais fino ou se sai com bolha ou sai com cordas. Isto tem muito que se lhe diga, e acho que ou os empresários mudam mentalidades ou também eles não vão ficar bem.

P: E outra questão em relação à identidade da Marinha Grande, este papel das mulheres e até a importância que o MDM aqui teve. Acha que também tem a ver com essa consciência de classe? Ou seja, o facto de as mulheres também estarem juntas nas fábricas e terem uma participação nas lutas sindicais, por exemplo, acha que isso também faz que haja uma maior mobilização das mulheres aqui na Marinha Grande?

Etelvina Rosa: Sim, isso é daquelas coisas que, por acaso agora, há dois ou três anos para cá, se tem falado mais no feminino e das lutas das mulheres, mas elas ficaram durante muitos anos esquecidas e era quase como se não existissem, o que não é verdade. E falando só do concelho da Marinha Grande, é o que mais conheço, ainda sobrevivem algumas que até pelas prisões passaram.
Mas eu ainda agora falava do difícil trabalho que era o das mulheres da roça, já da minha geração. Mas indo 10 anitos atrás, ou seja, se for aos anos 60 e já vinha de mais tarde, mas pronto reportando-nos agora a estas épocas dos anos 60 ao final dos anos 70, havia aqui uma outra profissão que era só para mulheres, extremamente difícil, é daquelas que eu também tenho dificuldade em perceber como é que as mulheres aguentavam aquele trabalho um ano inteiro: as fábricas que, à data, produziam garrafões em vidro. Agora eu creio que já não se produzem no nosso país garrafões em vidro. Eram empalhados em palha de vime, não era o plástico que veio nos anos 80. E então, e existem fotos da altura em que as trabalhadoras estão com os vimes, com o garrafão e têm uma caixa de madeira atrás perto delas, com o filhote. O vime tem de ser demolhado para ficar com possibilidade de dobrar e de encaixar. Estamos a imaginar um garrafão que depois vai estreitecendo. O trabalho era pago à peça, ou seja, ainda há pouco tempo algumas mulheres diziam que eram 12 tostões por cada garrafão, referir que em maio de 1958 as empalhadeiras fizeram greve pelo aumento de mais dois tostões por cada garrafão e saíram vitoriosas.

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