Item
Luís Pereira Garra
Nome do entrevistador/a
Joana Dias Pereira
Local
União dos Sindicatos da Covilhã
Data
31 de maio de 2021
Nome do entrevistado/a
Luís Pereira Garra
Data de nascimento
Nasceu em 26 de janeiro de 1957.
Local de nascimento
Manteigas
Profissão dos pais
O Pai e a mãe eram eram naturais da Covilhã, operários de lanifícios e tinham a quarta classe.
Escolaridade
Completou 11º ano do ensino técnico-profissional.
Local de residência
Reside na Covilhã.
Situação civil
É casado e a sua mulher também foi operária têxtil.
Filhos
Tem dois filhos. O primeiro é licenciado em Gestão hoteleira e termalismo e atualmente director de operações de hotel. O segundo tem um mestrado em Economia e é doutorando em Economia Política. É atualmente técnico Superior no Grupo CUF .
Profissão
Foi Operário Têxtil.
Associações em que participou
Sindicato Têxtil da Beira Baixa
Carvalhense Futebol Clube
Mutualista Covilhanense
Filarmónica Recreativa Carvalhense
Centro Social Srª da Conceição/Vila do Carvalho
Amigos Vila de Mouros
Sporting Clube da Covilhã
Casa do Benfica/Covilhã
Unidos do Lameirão
Grupo Desportivo da Mata
Associação de Desenvolvimento-Beira Serra
Associação de Trabalhadores-Estudantes da Escola Comercial e Industrial Campos Mello/Covilhã
Movimento da Juventude Trabalhadora
Cargos dirigentes
Delegado sindical eleito com 17 anos (recusado pela direcção porque os estatutos só o autorizavam aos 18 anos), reeleito um ano depois, tendo sido fundador e pertencido à Comissão de Trabalhadores da empresa onde trabalhou.
Em 1977 (20 anos) foi eleito para a direcção do então sindicato dos lanifícios. Em 1979 (22 anos) foi eleito para coordenador da Direcção da União dos Sindicatos de Castelo Branco
Em 1983 (26 anos) foi eleito para o Conselho Nacional da CGTP-IN, cargo que deixou em 2020.
Em 1984 (27 anos) eleito presidente da Direcção do Sindicato Têxtil da Beira Baixo, cargo que deixou em 2018.
Em 1977 (20 anos) foi eleito para a direcção do então sindicato dos lanifícios. Em 1979 (22 anos) foi eleito para coordenador da Direcção da União dos Sindicatos de Castelo Branco
Em 1983 (26 anos) foi eleito para o Conselho Nacional da CGTP-IN, cargo que deixou em 2020.
Em 1984 (27 anos) eleito presidente da Direcção do Sindicato Têxtil da Beira Baixo, cargo que deixou em 2018.
Filiação partidária
Foi membro do Comité Central do PCP durante 20 anos e da direcção regional de Castelo Branco do PCP
Cargos políticos
Foi por quatro vezes candidato a deputado pelo círculo eleitoral de Castelo Branco.
Foi candidato à Presidência da Câmara da Covilhã e da Junta de Freguesia de Vila do Carvalho e exerceu funções de leito na Assembleia Municipal da Covilhã durante 19 anos
Foi presidente da Assembleia de Freguesia de Vila de Carvalho e eleito da assembleia de freguesia por duas vezes com 12 anos de mandato.
Foi candidato à Presidência da Câmara da Covilhã e da Junta de Freguesia de Vila do Carvalho e exerceu funções de leito na Assembleia Municipal da Covilhã durante 19 anos
Foi presidente da Assembleia de Freguesia de Vila de Carvalho e eleito da assembleia de freguesia por duas vezes com 12 anos de mandato.
Religião
É ateu.
Sinopse da entrevista
Refere como primeira experiência associativa a criação da Associação de Trabalhadores Estudantes da Escola Campos Melo, na Covilhã e o ingresso no MJT, no Movimento da Juventude Trabalhadora e depois na União das Juventudes Comunista. Relata a sua experiência no movimento sindical desde que foi eleito para delegado sindical em 1974, do Sindicato dos Lanifícios do Distrito de Castelo Branco. Entre outras memórias, lembra a participação na greve dos 1000 escudos de 1974, a greve dos 29 dias em 1981 e a experiência do controlo operário. Reflete sobre o processo de criação da CGTP e da construção do seu projeto unitário. Reflete também sobre a relação entre o movimento sindical e as outras formas de associativismo.
Palavras-chave
Testemunho
P: A primeira questão que te colocava era se a propensão para a participação associativa é uma coisa de família, ou seja, se os teus pais ou outros familiares próximos, durante a tua infância, eram ativistas ou associados de alguma ou de algumas coletividades?
Luís Garra: Vamos lá ver, há uma tradição de família, quando, principalmente o meu pai, foi sempre envolvido na vida associativa. Ele foi músico, foi dirigente de uma banda filarmónica, foi jogador de futebol, fez parte da direção da equipa de futebol, isto enquanto esteve na terra, na sua terra de origem, Manteigas. Tanto que eu nasci em Manteigas.
E depois, quando veio para a Covilhã, ele continuou a ter essa atividade. Mas a minha ligação foi sempre muito maior ao movimento sindical. Até posso dizer que a minha ligação depois ao movimento associativo é resultado de uma primeira envolvência no movimento sindical, tirando o facto de ter colaborado na criação da Associação de Trabalhadores-Estudantes da Escola Campos Melo, na Covilhã. Mas obviamente, essencialmente nessa altura, quando eu, imediatamente a seguir ao 25 de Abril, tinha 17 anos, quando se dá o impulso às associações de trabalhadores-estudantes e depois ingresso no MJT, no Movimento da Juventude Trabalhadora. Depois, mais tarde, na União das Juventudes Comunistas. E, portanto, depois todo o trajeto de vida política, depois com certeza lá iremos…
Mas voltando à questão inicial, o meu pai, mesmo em termos sindicais, não sendo aquilo que se pode chamar um resistente antifascista, era uma referência para os seus colegas de trabalho, no que concerne à explicação dos direitos. Ele tinha com ele, ainda antes do 25 de Abril, o contrato coletivo de trabalho que já estava negociado em 1970, 1969 revisto em 1970 e depois em 1973, e, portanto, ele era uma pessoa a quem os seus colegas...
P: Só para ser registado, a profissão do teu pai era...
Luís Garra: Era tecelão, operário têxtil, ligado à indústria de lanifícios. E essa vertente, eu retive-a sempre, como uma pessoa informada e que informava, era esta a sua... Portanto, talvez daí venha uma certa ligação, mas eu creio que a referência principal tem a ver com o meu envolvimento imediatamente a seguir ao 25 de Abril, que me apanha com 17 anos.
P: Na infância, não foste associado de nenhuma associação ou não usufruíste da oferta cultural de nenhuma associação?
Luís Garra: Fui sócio de uma coletividade da minha freguesia, nem era freguesia, era um lugar da freguesia da Covilhã onde eu vivia, que era o CPT de São Vicente de Paulo, no bairro chamado São Vicente de Paulo/Borralheira, hoje Cantagalo. Fui sócio dessa coletividade. Fiz lá teatro muito episodicamente, com 16/17 anos. Porque eu comecei a trabalhar com 10 anos, fui aprender para alfaiate, aos 11 anos ingressei numa fábrica de lanifícios e aos 14 era trabalhador-estudante, trabalhava de dia e estudava de noite.
P: Nesse período, ainda antes do 25 de Abril, quando entraste na fábrica, apercebeste-te dessa luta em torno do contrato coletivo de trabalho?
Luís Garra: Sim. Nessa altura dos 10 anos não, claramente que não, porque eu entrei em 1967 na fábrica. Mas em 1970, em 1973, já me apercebi das movimentações pelo contrato coletivo de trabalho. Aliás, eu tenho uma referência desse envolvimento, porque as assembleias nos sindicatos, já nessa altura, o salão, este andar onde nós estamos, era o salão de reuniões.
O salão de reuniões no sindicato era este andar onde estamos, mas era tudo amplo e a Secretaria era ao fundo do salão. E já nessa altura, em 1973, o salão do sindicato se enchia, incluindo as escadas. Havia reuniões que vinham até à rua. Tem piada que quando eu cheguei, quando comecei a frequentar mais os sindicatos, mesmo já depois do 25 de Abril, já o sindicato ou o salão de reuniões tinha uma aparelhagem com colunas distribuídas no salão e na escada. Porquê? Pois, porque as escadas se enchiam. Portanto, em 1973, tenho perfeita noção disso, eu já era trabalhador-estudante na altura e eu lembro-me de ter ido ao comício da oposição democrática, do MDP/CDE, que foi no teatro-cine, uma sala de cinema muito grande, que tinha perto de 1000 lugares, que foi agora renovado.
Muito honestamente, eu fui de uma forma perfeitamente inconsciente. Não tinha perfeita noção, nenhuma noção para onde é que eu ia. Foi um amigo meu, que foi depois quem me inscreveu no MJT, no movimento da Juventude trabalhadora a seguir ao 25 de Abril, que me disse: “Epá, há uma iniciativa no cinema. Vamos lá então.” Pronto, e vi que era uma sessão da oposição democrática e para ser muito mais sincero, a apreensão da importância daquela iniciativa, só depois do 25 de Abril eu a percebi em toda a sua dimensão. Portanto, não tinha uma cultura política nem ideológica que me permitisse perceber. O meu pai falava muito contra o regime, contra o Salazar, contra o Marcelo. A minha mãe, sendo uma mulher de armas, como se costuma dizer, muito consequente, era mais temerosa, protegia. Estava sempre em casa a refilar e tenho a perfeita noção de quando foi o discurso de Marcelo Caetano das vacas, o chamado discurso “acabaram-se as vacas gordas”, eu estar a protestar porque estávamos a ouvir o que ele disse na televisão. As conversas em família... E ela mandou-me calar e eu não me calei e atirou-me com um sapato à cabeça.
Portanto, tenho perfeita noção dessa altura. Digamos que, não sendo uma cultura, em casa, de grande contestação ao regime, não era de compreensão pelo regime. Isto talvez tudo junto, o ter sentido a injustiça de não ter ido estudar e ter que ir trabalhar e depois sim, fui estudar como trabalhador-estudante. Isso ajudou a criar a minha consciência. Porque eu fui, passe a imodéstia, portanto não era eu que o dizia, era a professora, eram os meus colegas, eu, a par de um outro amigo meu, éramos os melhores alunos da nossa classe. Era assim que se chamava na altura, da nossa classe. E uma parte deles foram fazer o exame de admissão ao liceu e eu fui trabalhar, com 10 anos. Isso, confesso, criou-me uma certa revolta. Porque se eu gostava de estudar, tinha apetência para o estudo e sou impedido de ir estudar, tenho de ir trabalhar, isso gerou em mim, não digo revolta, mas alguma dor me deixou.
P: E estavas a dizer que tinhas criado uma associação ainda imediatamente antes do 25 de Abril de estudantes e trabalhadores?
Luís Garra: A seguir ao 25 de abril, imediatamente a seguir ao 25 de Abril… É quando há o boom das associações de estudantes e também se criou a associação de trabalhadores-estudantes da Escola Campos Melo. Eu fiz parte da pró-Comissão. Creio que era assim que se chamava, já não tenho a certeza. E depois, integrei a primeira direção da associação de trabalhadores-estudantes da Escola Campos Melo, que creio que depois... acho que já nem há ensino noturno. Não sei se ainda há, mas, portanto, nessa altura tinha muitos, muitos... A seguir ao 25 de Abril, houve uma procura muito grande de trabalhadores, de jovens trabalhadores, que não tinham podido, lá está, gostavam de estudar, não tiveram condições de ir estudar para o liceu, tiveram de ir trabalhar. E depois, logo que tiveram a oportunidade, a seguir ao 25 de Abril, foram para a escola.
P: Então vamos agora focar especificamente o período da experiência associativa durante o período revolucionário, entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro. Quais foram as associações em que participaste durante este período específico?
Luís Garra: Foi fundamentalmente a Associação de Trabalhadores-Estudantes.
P: Que tipo de atividade desenvolviam?
Luís Garra: A Associação de Trabalhadores-Estudantes visava defender os direitos e os interesses dos trabalhadores-estudantes dessa escola e depois eu frequentava muito, nunca tive funções diretivas, mas frequentava, como disse, fazia, cheguei a fazer teatro na colectividade. Isto foi antes do 25 de Abril e depois também ainda fiz alguma coisa na coletividade do lugar onde eu vivia. Joguei futebol na equipa da empresa Sá Pessoas & Irmãos/Gitêxtil e em grupos informais que criavam torneios. Mas, essencialmente, a seguir ao 25 de Abril a minha intervenção foi mais de carácter partidário, político-partidário do que propriamente do movimento associativo.
P: E no movimento sindical?
Luís Garra: No movimento sindical foi desde logo. Eu fui eleito para delegado sindical em 1974, mas como tinha 17 anos e os estatutos do sindicato diziam que só se podia exercer funções de direção ou diretivas...
P: Qual era o sindicato?
Luís Garra: Dos Lanifícios do Distrito de Castelo Branco. Só quando fiz 18 anos é que pude vir para delegado sindical. Eu quero assinalar que quando fui eleito delegado sindical foi pelo princípio do mais votado. Portanto, os trabalhadores votavam em quem queriam, não havia listas, era votação aberta. E eu, com 17 anos, fui eleito numa empresa que nessa altura tinha 200 e tal trabalhadores. Depois, mais tarde, fez uma junção de empresas que foi até 500, mas foi pela junção de empresas, da qual fiz parte também da Comissão de Trabalhadores desta junção de empresas.
Mas a seguir, imediatamente a seguir ao 25 de Abril, fui eleito delegado sindical. Não foi aceite no sindicato e nas eleições do ano seguinte, com 18 anos, fui eleito. Depois, aos 19 anos, fui convidado pela direção que estava no sindicato para integrar a Comissão Organizadora do 1º de Maio. Nessa altura, criava-se uma comissão organizadora para o primeiro de Maio. Eu fui convidado, integrei em 1977, se a memória não me falha, eu vim para a direção do Sindicato em 1977 ou 1978. Primeiro, fui eleito para a comissão diretiva do sindicato. Houve um vazio na direção do sindicato e depois eu era delegado sindical na minha empresa e fui convidado para integrar a comissão diretiva e, depois da comissão diretiva, integrei a direção do sindicato até há ano e meio. E agora sou presidente da Mesa da Assembleia Geral.
P: Com certeza que com essas responsabilidades, terás participado e organizado ações de luta muito importantes...
Luís Garra: Sim, eu participei logo, embora não sendo nem delegado sindical nem dirigente, mas participei imediatamente na greve dos 1000 escudos. Participei quer nas assembleias, quer nas votações que houve ao nível de empresa, porque essa foi uma greve que foi decidida em Assembleia Geral do Sindicato, mas que depois foi ratificada por votações feitas nas empresas. E, portanto, eu participei ao nível da minha empresa, daí eu ter sido depois imediatamente eleito delegado sindical, não aceite, como já disse, tinha 17 anos. E, portanto, participei logo na greve dos 1000 escudos, como já tinha participado na manifestação do 25 de Abril na Covilhã.
Tinha um certo sentido de justiça, porque nós ganhávamos muito mal, não tínhamos condições de trabalho, não havia condições dignas, era uma vida muito, muito difícil. Eu conto isto muitas vezes. Antes do 25 de Abril, os meus pais não tinham frigorífico, máquina de lavar roupa nem se falava, só muito mais tarde. Tinham o tanquezinho à porta ... não tinham água. Mesmo para lavar a roupa, tínhamos de ir com cântaros buscar água à fonte. E é claro que a nossa vida era muito difícil. Portanto, isto despertou mais a vontade de trabalhar e estudar, já na escola, como trabalhador-estudante.
Isto permitiu-me ter uma perceção das injustiças, sem nenhuma consciência política, mas as injustiças sentem-se, não é? Isso fez com que, imediatamente a seguir ao 25 de Abril, eu me envolvesse a fundo, de cabeça, como se costuma dizer. Participei nessa greve dos 1000 escudos. Essa greve foi muito importante para nós, porque 1000 escudos de aumento nessa altura foi uma coisa.... Olhe, permitiu que os trabalhadores comprassem o frigorífico, comprassem o fogão a gás, alguns compraram carro, a prestações, mas compraram. Houve uma subida no nível de vida, nas condições de vida, que foi uma coisa fantástica.
Mas não foi importante só para nós, foi importante para o país. Porque foi a partir dessa greve, que teve como desfecho um acordo celebrado no Ministério do Trabalho, na Covilhã, com a vinda do Secretário de Estado de Trabalho, que era o Carlos Carvalhas e do Secretário de Estado, não sei do que é que ele era Secretário de Estado, que era o António Guterres. Tanto que foram eles os dois que vieram à Covilhã para se fazer o acordo entre os sindicatos da Federação de Sindicatos dos Lanifícios, que na altura era dirigida pelo falecido Manuel Correia Lopes e também tinha o Kalidás Barreto, mas também tinha dirigentes aqui da Covilhã. Fez-se esse acordo com a presença desses secretários de Estado, com uma manifestação à porta do Ministério do Trabalho.
Ou seja, os trabalhadores concentraram-se. Para além de estarem em greve, concentraram-se na Praça do Município e vieram à manifestação para a porta do Ministério do Trabalho, que era um jardim público. Lembro-me perfeitamente de participar nessa greve, participar na manifestação, e claro, sem qualquer tipo de intervenção sindical. E depois participei em 1975 na luta do contrato coletivo de trabalho, em que a questão principal já não era tanto o salário, embora também fosse. Porque já tínhamos em 1974 conseguido aquele aumento significativo dos salários, mas era a questão do horário. A palavra de ordem da manifestação, da manifestação nacional dos lanifícios que realizámos na Covilhã, era 40 horas Sim 41 Não. Nessa altura conseguimos, conquistamos as 40 horas de trabalho para o setor dos lanifícios, com 2 dias de descanso, sábado e domingo.
E lembro-me perfeitamente dessa greve e lembro-me depois de outras greves em que participei pelo contrato, sempre pelo contrato coletivo, principalmente pelo contrato coletivo de trabalho. E, que depois já lá irei, à greve de 81, que merece uma referência muito particular. Mas depois também as greves na minha empresa, porque as greves na minha empresa foram imediatamente a seguir ao 25 de Abril. Foram intensas, porque havia um dos sócios, um dos patrões, que era um homem do regime fascista, muito ressabiado com o poder perdido. Ele era vereador da Câmara da Covilhã antes do 25 de Abril. Pertencia à União Nacional. Vivia muito da revanche e começámos a ter salários em atraso e a lutar pelo pagamento de salários.
Só para ter uma ideia: em 1979, eu casei, com 22 anos, e imediatamente fiquei com salários em atraso. Cheguei a estar cinco meses sem salário. E depois eu recebi os salários, resolveu-se a situação e ficou a minha mulher a seguir. Portanto foi assim sempre uma vida, um bocadinho atribulada a esse nível. Ela trabalhava noutra empresa. Depois também tive um processo por causa dessas lutas de salários em atraso, para o pagamento de salários. Eu e mais 19 camaradas de trabalho tivemos um processo disciplinar, suspensão do contrato e suspensão do trabalho durante seis meses. Só que aí houve uma grande solidariedade dos trabalhadores e nós, apesar de estarmos suspensos, nunca houve dia nenhum que não fossemos para a empresa. Não nos deixavam trabalhar, mas nós estávamos lá e, portanto, eram os trabalhadores que se punham ao portão da fábrica, a fazer alas de um lado e do outro para nós entrarmos e, portanto, o patrão nem se atrevia a impedir a nossa entrada.
Foram manifestações de solidariedade, e, quer queiramos quer não, em termos de dirigente sindical, porque nessa altura já era da direção do sindicato, marca-nos de uma forma muito, muito profunda. Porque sentimos na pele, com atos concretos, o que é a importância da solidariedade e, portanto, quando nós falamos da solidariedade nessa situação, já não estamos a falar de uma questão abstrata, de um princípio teórico. Nós estamos a falar de uma experiência. E, portanto, lembro-me perfeitamente de outras lutas na minha empresa, em que eu estive contra a luta. Recordo-me, não posso precisar o ano, mas eu já estava a tempo inteiro no sindicato, já era dirigente sindical a tempo inteiro, em que eu estava em Gouveia, porque nós, entretanto evoluímos de Sindicato dos Lanifícios para Sindicatos Têxteis da Beira Baixa, que passou a representar também os trabalhadores das confeções. Portanto, a dinâmica sindical acompanhou a dinâmica económica. Criámos o sindicato têxtil, que era mais do que os lanifícios, e fazíamos uma parceria com os sindicatos da Beira Alta. E tínhamos um jornal. Eu era o responsável por este jornal. Eu estava em Gouveia a reunir com os...
P: Era o Laneiro?
Luís Garra: Nessa altura, já era O Têxtil. Eu ainda fui responsável pelo Laneiro durante algum tempo, enquanto fui do sindicato dos lanifícios. Eu entrei para a direção em 1977/78. É uma questão de precisarmos melhor... Eu tenho aqui uma confusão de data, mas eu quando entrei para a direção do sindicato, fiquei logo com a responsabilidade do Laneiro e ainda fui o responsável pela sua edição e redação. A redação, quer dizer, não era eu que redigia tudo, mas de acompanhar a redação. E depois, quando criámos o sindicato têxtil, O Têxtil passou a ser o jornal da Beira Interior, Guarda e Castelo Branco. Portanto, eu estava na Guarda, em Gouveia, a reunir com os outros dirigentes do sindicato de Gouveia para prepararmos o jornal seguinte. Telefonam-me a dizer que ia haver um plenário na minha empresa, por causa de uma greve, porque o patrão não queria pagar nem o salário de Dezembro nem o subsídio de Natal. Enfim, só queria pagar 50% do salário de Dezembro e 50% do subsídio de Natal.
Eu vim para o plenário e já estava tudo em polvorosa, queriam greve. E eu estive contra aquela greve, porque eu defendia que primeiro devia-se receber o dinheiro que a empresa queria dar e depois é que se ia lutar pelo resto. Porque se assim não fosse a consequência ia ser o patrão já não pagar nem uma coisa nem outra, e nós, em vez de estarmos a lutar por 50%, estávamos a lutar por 100%. E procurei chamá-los à razão, àquilo que eu considerava a razão. Os trabalhadores foram a votação e eu perdi. E depois foi decidido fazer piquetes na empresa, para guardar, para não deixar sair o produto, ou o produto fabricado e eu, que estive contra a greve, lutei contra ela, mas a primeira pessoa a fazer o primeiro turno do piquete da greve fui eu.
Porquê? Achei que o facto de eu ter sido derrotado nas minhas posições não significava que eu não tivesse de cumprir com as decisões tomadas. Portanto, foi isto que eu passei a fazer. Mas estávamos a falar das lutas mais intensas.
Eu considero que a greve de 1981 ainda entra neste processo. Porquê? Nesta altura já era sindicato têxtil, portanto já não era sindicato dos lanifícios. Eu já era ao mesmo tempo coordenador da União dos Sindicatos e ainda não era presidente do sindicato têxtil. Era membro da direção em 1981. Se não estou em erro, já era vice, já era vice-presidente da direção do sindicato. É porque depois, em 1983, passei a presidente, mas em 1981 eu era vice-presidente e era coordenador da União de Sindicatos de Castelo Branco, desde 1979. Tinha 22 anos quando fui para coordenador da União dos Sindicatos de Castelo Branco.
A greve de 1981 foi provocada porque a associação Patronal ANIL, em Julho, toma a decisão de deixar descontar as quotas dos trabalhadores. E as quotas de Julho eram pagas em Agosto. Em Agosto, as fábricas estavam fechadas para férias, a maioria delas. Portanto, nós, na altura em que eles tomaram essa decisão, percebemos logo que ia haver qualquer coisa, porque aquilo foi conjugado em Agosto.
Em plenas férias aparece um acordo das associações patronais, assinado com o Sindetex, que era o sindicato paralelo e amarelo da UGT, e que nós classificámos que retirava cem direitos do contrato negociado em 1975. Cem direitos, claro que uns mais importantes que outros, portanto, mas retirava direitos. Em Setembro nós decidimos iniciar um processo de luta, que era uma greve de três dias por semana – terça, quarta e quinta. Trabalhávamos, porque, nessa altura, havia o perigo do desconto do fim de semana. Então nós, para não descontarem a semana toda, a decisão que tomamos foi, à segunda e sexta trabalhamos, já não mexem com o fim de semana e fazemos greve à terça, quarta e quinta. Isto desarticulava completamente a produção, porque à segunda-feira não se fazia nada. E à sexta também não, porque estava tudo desarticulado e nós só perdíamos três dias. Isto foi durante 29 dias.
Foi uma luta de 29 dias que suscitou a solidariedade de trabalhadores de todo o país, da siderurgia, dos pescadores, dos trabalhadores agrícolas do Alentejo, dali de Montargil, que vieram apoiar-nos. Porque nós estávamos numa greve muito dolorosa do ponto de vista financeiro, que se prolongou até Novembro e parou assim de uma forma um bocadinho abrupta. Por isso é que aí no guião fala em 28 dias, porque ainda houve um dia, para além dos 28, ainda houve um dia que foi feito, já em desespero de causa, por razões que não vale a pena estar neste momento a esmiuçar, já lá vai o tempo... Quem fazia os avisos era a Federação dos Sindicatos Têxteis, e, estranhamente, nós tomávamos a decisão de greve todas as semanas, ou seja, de uma semana decidíamos para a seguinte, em função do ambiente de greve que havia e não sei por que razões, eu calculo qual foi a razão, a Federação dos Têxteis, na última greve, em vez de marcar três dias, só marcou um. A partir daí, os trabalhadores que queriam três, só foi marcado um...
De qualquer das formas, o que é que nós conseguimos com essa greve? Foi que as empresas, individualmente, viessem assinar documentos com os delegados sindicais de cada uma das empresas e dizer que mantinham intactos os direitos do contrato de 1975. Ou seja, não conseguimos mais aumento, mas durante décadas evitámos a aplicação do contrato da UGT com os cortes de direitos. Portanto, só tem a ver com o processo revolucionário, porque foi uma greve que foi motivada, porque veio pôr em causa o contrato que conquistámos no ano imediatamente a seguir ao 25 de Abril.
P: Já me falou destas lutas grandes em torno do contrato coletivo de trabalho, especificamente a nível local. E no que diz respeito à estruturação nacional do movimento sindical, participou em congressos setoriais nacionais e internacionais?
Luís Garra: Eu participei, lembrou-me. Participei no terceiro Congresso da Federação do Sindicato dos Têxteis e em todos até ao último. Portanto, participei em todos os congressos da Federação dos Sindicatos Têxteis e nunca fui dirigente da Federação, embora tivesse envolvimento direto nos trabalhos da Federação. Portanto, como presidente do Sindicato dos Têxteis, eu participava regularmente em plenários e reuniões, em encontros, em conferências, mas nunca fui da direção. Por opção, porque entendi sempre, que eu era desde 1983 um membro do Conselho Nacional da CGTP e era coordenador da União de Sindicatos de Castelo Branco e sempre entendi que não fazia sentido estar a acumular tantas responsabilidades, que me iriam transformar num dirigente que eu sempre condenei, este tipo de prática sindical que é andar de reunião em reunião a passear conclusões, só a dirigir por cima…
Portanto, eu tive sempre uma conceção do exercício da ação sindical que é a de trabalho concreto no terreno. Ora, quem tem muitas, quem exerce muitas funções ao nível supra, falta-lhe tempo depois para o trabalho na base. E, portanto, entendi sempre que, apesar de muitas vezes solicitado para a direção da Federação, não foi por nenhum desprimor em relação à Federação, mas que havia outros dirigentes do sindicato que poderiam fazer melhor do que eu e foi isso que foi sempre acontecendo, até eu deixar de ser presidente do sindicato. Deixei de ser em 2017.
E, portanto, envolvi-me sempre muito no trabalho da Federação, no trabalho da CGTP. Por duas ou três vezes, pelo menos, me foi colocada a questão de eu ir a tempo inteiro para Lisboa, para a sede central e por razões várias não me senti em condições de ir e fiquei por cá. E não me arrependo. E nessa qualidade de dirigente sindical participei em múltiplas conferências, não estão todas, mas no guião que mandei estão algumas delas…
¬P: Eu gostava de aprofundar em relação a esta iniciativa específica, que é o Congresso, sobretudo neste período revolucionário. Depois de 48 anos em que não havia essa participação democrática, essa experiência de discussão coletiva, queria que me falasses de como foram estes primeiros congressos em que pessoas, dirigentes sindicais de todo o país, se juntavam para discutir questões sobre a economia do país...
Luís Garra: Ora, há um em que eu não participei, mas foi um encontro muito importante que, não tendo sido um Congresso, foi um encontro importante que marcou de uma forma muito clara aquilo que era a política dos sindicatos têxteis a nível nacional para o setor. Havia correntes de opinião muito fortes, que na altura eram muito ativas. Não digo fortes, mas ativas, muito ligadas àquilo que se chamava na altura o esquerdismo, que defendiam a nacionalização de tudo e mais alguma coisa. Estou a falar do encontro de Ofir, no qual eu não participei, mas li as conclusões. Porque foi imediatamente antes de eu vir para a direção do sindicato, não posso precisar o ano em que foi, mas deve ter sido por 1976/77. Esse encontro marca claramente que a Federação Têxtil não quer a nacionalização do setor têxtil e aponta claramente o caminho da reestruturação do setor e da valorização, já nessa altura, da valorização dos trabalhadores, dos salários, etc.
Eu depois, estava-me a esquecer, que participei não no terceiro, mas no segundo Congresso. Porquê? Porque quando eu venho para a direção do sindicato, para a Comissão Diretiva do sindicato, o Congresso da Federação Têxtil é realizado na Covilhã. E eu confesso que foi uma grande atrapalhação, porque nós estávamos na altura numa crise diretiva. Eu e mais cinco camaradas, ou mais quatro (acho que eram mais quatro), fomos para a Comissão diretiva e apanhamos com a preparação e a realização do Congresso em cima. Para mim aquilo era chinês, muito honestamente, era peixinho fora da água. Participei já nesse Congresso, que foi realizado num antigo teatro-cine da Covilhã e que culminou com uma grande iniciativa pública no chamado pavilhão da FAEC, da Feira das Atividades Económicas, que já não existe.
Participei nesse, deve ter sido o segundo, porque o terceiro foi em Guimarães. Não participei no primeiro, que foi o da fusão, porque havia duas federações: já havia a Federação dos Lanifícios e havia a Federação dos Têxteis e, portanto, depois as duas federações fundem-se numa e é nesse Congresso, neste segundo Congresso aqui realizado e que culminou com o comício nas FAEC, que é eleito o coordenador, aquele que foi durante muitos anos coordenador da Federação, o Manuel Freitas, que ainda hoje é da direção da Federação, embora já não sendo coordenador.
Portanto, os congressos foram sempre momentos muito importantes de afirmação da unidade do movimento sindical. Porque o movimento sindical têxtil é um movimento sindical com características muito próprias. Nós falamos do projeto unitário da CGTP, mas se nós queremos uma tradução mais real do que é o caráter unitário da CGTP, é olharmos para a Federação do Sindicatos Têxteis, onde coexistem todas as correntes.
P: Muito bem, estavas a dizer que os congressos eram muito importantes?
Luís Garra: É, porque afirmavam o caráter unitário, principalmente a questão da unidade dos trabalhadores e a unidade orgânica do movimento sindical. Estava a dizer que a CGTP tem a sua marca, é o caso do seu carácter unitário, mas na Federação dos Têxteis esse caráter unitário é muito expressivo. Porquê? Porque estão lá, têm expressão, todas as correntes de opinião que existem no movimento sindical, com equilíbrios muito, muito, complexos. E, portanto, os congressos eram momentos muito fortes, até do ponto de vista emocional.
Eu costumava dizer, mas não é caricatura, é verdade, ultimamente costumava dizer que os nossos congressos já não têm aquele sal que tinham os antigos, já nem se chora. Porque havia, de facto, momentos de grande tensão e muito emotivos, mas também uma afirmação da unidade muito forte. Quando chegávamos ao fim havia um trabalho para o consenso, para procurar linhas de consenso muito, muito fortes. E não havia aquela ideia de: “bom, vamos contar espingardas, temos a maioria, votamos, vota-se a favor, está resolvido”. Não, isso é fácil demais. Eu costumo dizer “fazer isso é fácil demais”, o que é difícil é trabalhar para o consenso, fazer aproximações. E, portanto, os congressos da Federação dos têxteis tinham essa característica.
Depois eram congressos muito difíceis, porque o setor têxtil é muito diversificado do ponto de vista das correntes ideológicas, mas é muito diversificado também de subsetor para subsetor. Falar de lanifícios não é a mesma coisa de falar do têxtil algodoeiro, como não é a mesma coisa de falar de calçado, como não é a mesma coisa falar de confeções ou de cordoaria. Portanto, são subsetores que têm muitas especificidades, muito próprias, e, portanto, que obrigam a que a Federação tenha de ter uma linha de intervenção adequada às especificidades de cada subsetor. Portanto, construir uma linha unificadora da ação, com situações tão diferentes, não era fácil e a Federação dos Têxteis foi conseguindo isso ao longo dos anos.
Os congressos eram momentos muito importantes para afirmar reivindicações e também afirmar modelos de reestruturação para o setor têxtil. Ainda andava muita gente a falar... ainda não se falava de reestruturação do setor e do que se falava era da liquidação do setor e já os Sindicato dos Têxteis, e agora falo também em particular do sindicato a que eu pertencia, aqui Têxtil da Beira Baixa, já nós tínhamos uma linha de intervenção no sentido de que o setor não estava condenado à liquidação, que o setor tinha futuro, que era preciso ser modernizado, que era preciso inovar o produto, os modelos de organização e os métodos. E que era preciso, acima de tudo, dar maior valor aos trabalhadores, à sua qualificação, mas também à sua remuneração.
Portanto, estas foram linhas de intervenção que foram sempre muito claras no nosso horizonte. Nós passámos aqui por vários momentos, muito conturbados em termos de trabalho, que era conciliar a aposta na ação reivindicativa para melhorar salários e combater a chaga do encerramento de empresas. Não é fácil trabalhar assim, porque o exemplo que passa para os trabalhadores que estão nas empresas que estão bem é: “Olha, vê lá o que é que está a passar naquela, também queres cair no desemprego?” Portanto, o contraponto não é um contraponto positivo, é um contraponto negativo. É nós nunca perdemos o Norte. Eu vou usar um palavrão, passo a expressão, mas adotamos aqui um lema do Marquês de Pombal, “tratar dos vivos, enterrar os mortos”, sem deixarmos de ter respeito pelos mortos.
Foi por isso que aqui nós, na Beira Baixa, ao mesmo tempo que nunca abandonámos a luta pela contratação coletiva, pela melhoria dos salários, nunca deixámos de acompanhar os processos de luta dos trabalhadores que estavam com salários em atraso, os que estavam noutras empresas, que estavam ameaçadas de encerramento, a luta pelo emprego, a luta pela laboração das empresas. E nunca deixámos de acompanhar os trabalhadores, mesmo já depois das empresas fechadas, de acompanhar os trabalhadores até ao momento em que tinham de receber os créditos laborais.
Portanto, isto pressupõe uma visão estrutural do que é a intervenção sindical alargada e em que uma questão não pode condicionar a outra e, portanto, o nosso discurso não é fácil. É difícil, por vezes, fazer passar a mensagem, quando o que nós temos à nossa volta é encerramentos, é desemprego, é dramas sociais.
Dizer aos trabalhadores das empresas, “mas isto não é convosco, é com os outros, vocês têm de continuar a lutar”, nem sempre é fácil, mas foi isso que nós fizemos. Não contou com total êxito, porque por isso é que nós somos setores muito assentes no salário mínimo nacional.
Não contou com total êxito, mas a avaliação não tem de ser tanto por aquilo que conquistámos, tem que ser mais por aquilo que evitámos. E o balanço que nós fazemos, e que eu faço, é um balanço, tendo em consideração a conjuntura em que nós trabalhávamos, consideramos que, apesar de tudo, resistimos e resistimos bem. Aliás, eu costumo dizer que este sindicato é um caso de estudo. Em condições normais, o sindicato têxtil da Beira Baixa não tinha razão para existir. Porque éramos 10000 trabalhadores em 1975, só nos lanifícios, agora são 3000-4000, já com as confeções, porque associamos as confeções.
No entanto, o sindicato têxtil hoje continua a ter direção e delegados sindicais. Não tem uma boa situação financeira, mas também não vive com a corda na garganta. Portanto, isto tem a ver com as opções que fomos fazendo ao longo dos anos. Isto não se consegue de ânimo leve. Nem sempre, ao nível nacional, na Federação dos Têxteis, isto foi suficientemente compreendido e houve regiões do país, onde tiveram igualmente problemas graves ao nível do encerramento das empresas, em que a prioridade foi toda dada para acompanhar estas empresas e desguarneceu-se as empresas que continuaram a trabalhar. E nós, por exemplo, hoje podemos dizer que as nossas posições sobre a reestruturação dos lanifícios deram resultado. Porque hoje os lanifícios não são um setor de mão-de-obra intensiva. Ainda não são totalmente de capital intensivo, mas já se aproximam muito. Ou seja, já têm níveis de rentabilidade e de produtividade muito elevados, mais elevados, por exemplo, que na confeção, porque a confeção ainda é um setor de mão-de-obra intensiva.
Portanto, nós não tivemos qualquer tipo de problema quando foi a questão da Integração dos têxteis nas regras da Organização Mundial do Comércio, que nós vimos que aquilo era uma machadada para o setor têxtil em geral e para os lanifícios em particular. Nós fizemos um memorando conjunto, subscrito conjuntamente com a associação patronal, a exigir à União Europeia, a exigir ao Governo português, medidas de apoio ao setor têxtil. Como foi o processo de reestruturação da indústria de lanifícios nos governos de Cavaco Silva? Houve três opções em cima da mesa: uma era salvar tudo indiscriminadamente; outra era salvar as empresas que estavam com dificuldades, que ainda tivessem viabilidade económica e financeira; e a terceira, salvar apenas as que já estavam bem. E nós sabíamos que não era possível salvar tudo. Tínhamos a plena consciência de que não era possível salvar tudo. Mas também sabíamos que aquilo que estava a ser trabalhado era canalizar os apoios financeiros apenas e só para as empresas que já estavam bem. Que ainda por cima eram as empresas que estavam na direção da associação patronal e que tinham ligação direta aos ministérios e que estavam em condições de apresentar as candidaturas aos apoios antes de todos os outros. E foi esta a opção que prevaleceu do Governo de Cavaco Silva. Era o Mira Amaral o ministro da Indústria e da Economia.
P: Podemos voltar um bocadinho atrás, não queria interromper o teu raciocínio, mas gostava só de perceber mais uma ou duas questões em relação ao período revolucionário, uma delas é que eu vi que houve algumas formações sobre o controlo operário...
Luís Garra: Sim, eu era da comissão de trabalhadores da empresa, que foi a impulsionadora deste processo. Eu era delegado sindical e quem era o nosso delegado sindical, que depois ainda passou pela comissão diretiva do sindicato que eu referi, mas nunca chegou a ser membro da direção do sindicato, era o Joaquim Pinto. Esse homem tinha muito jeito, muita aptidão para as contas.
E, portanto, os delegados sindicais e a comissão de trabalhadores da empresa onde eu trabalhava iniciaram o processo de controlo operário daquela empresa. Sabiam exatamente tudo o que se produzia, quando, quanto, para onde se vendia, como se vendia, quanto se vendia e, portanto, nós tínhamos uma informação rigorosa de qual era… Claro que isto deu lugar a experiências e, portanto, depois houve este tipo de iniciativas de formação operária, mas que foram muito influenciadas por essa empresa.
Aliás, a empresa, a Sá Pessoa, era muito referenciada por causa do controlo operário, mas houve outros que não tiveram o mesmo rigor do controlo operário, mas que também tinham uma intervenção que se aproximava. Por exemplo, na maior empresa na altura, que era a Nova Penteação, os delegados sindicais também exerciam uma função e depois houve aqui formação para o controlo operário, sim.
P: Em que consistia, quais eram os conteúdos?
Luís Garra: Eram muitos, eram os elementos elementares de economia, do processo produtivo, do processo de venda, a leitura dos mercados… Portanto, era muito assente em coisas muito rudimentares. Porque estávamos a falar com pessoas que tinham a quarta classe, não podiam ser cursos de profundidade. Mas dava-nos os elementos da análise económica e financeira mínima. Chegámos a ter dentro também do sindicato, havia capacidade financeira para isso, uma avença com uma pessoa ligada à área da economia, que também nos ajudava a ler os relatórios das empresas, os balanços. Tanto que nos permitia depois ter conhecimento sobre as empresas.
Bem, é aí, já não tanto de controlo em cima, porque, como sabes, do que estamos a falar é de controlo em cima no momento....
P: Detalha lá mais... Como é que aconteceu?
Luís Garra: Nós tínhamos força. Portanto, vamos lá ver, para haver o controlo operário é preciso haver força, porque nenhum patrão dá dados se não for obrigado e, portanto, como nós tínhamos muita força na empresa, os delegados sindicais exigiam que a própria empresa fornecesse os dados. Claro que alguns deles podiam estar até viciados, mas como depois este nosso delegado sindical, o [...], fazia um acompanhamento permanente do número de metros que eram tecidos, ele sabia dia a dia qual era o número de metros que eram tecidos. Portanto, depois conseguia ver se a bota batia com a perdigota e tínhamos esse controlo.
Não foi uma coisa que durasse muito tempo. E agora devo dizer que foi muito importante, falou-se muito, mas infelizmente, conforme a correlação de forças se foi alterando, as empresas passaram a resistir mais a dar os dados. A própria legislação, por exemplo, ao nível da segurança social, a legislação dizia que os quadros, as folhas de salários para a segurança social, tinham de ter o visto, a concordância, da comissão dos delegados sindicais. E, portanto, isto também nos permitia, por exemplo, ver o que é que é cada um ganhava, vermos também se o salário que cada um ganhava lá estava todo refletido na folha para a segurança social. A legislação, com Mário Soares, foi toda alterada. Deixou de ser obrigatória a assinatura e daí começaram a aparecer as dívidas à segurança social. Porque nessa altura nós só assinávamos quando víamos o cheque para segurança social. Nessa altura ainda era caixa dos lanifícios, a caixa de previdência do pessoal da indústria dos lanifícios. Nós, só quando víamos o cheque, é que assinávamos a ordem das folhas a seguir com o cheque. Portanto, isto evitava dívidas à segurança social.
A partir do momento em que Mário Soares, e outros que fizeram alterações, que os dados da segurança social passaram a ser sigilosos, etc., etc., tudo isso... Portanto, a alteração da correlação de forças levou também ao abrandamento e, também temos de dizer a verdade, isto não foi em todas as empresas, porque nem em todas as empresas nós tínhamos a mesma força que tínhamos naquela. E nem em todas as empresas tínhamos delegados com a mesma apetência que tínhamos naquela.
Portanto, isto dependia muito da aptidão, da vontade, da persistência. Esse homem era um homem muito vivo, ensinou-me muito.
P: E em relação à participação das mulheres? Estamos a falar de um setor com uma grande percentagem de mão-de-obra feminina, como é que foi a participação das mulheres neste processo, durante o período revolucionário, na vida sindical?
Luís Garra: As mulheres foram fundamentais na luta. Porque as mulheres tinham e começaram a ganhar força em termos de presença no setor dos lanifícios. Nas confeções não se discute, porque 90 e tal por cento são mulheres. Mas nos lanifícios houve todo um processo de entrada das mulheres no mercado de trabalho e teve muito a ver com a falta de mão de obra masculina, mas elas sempre entraram. Desde os anos 40, já havia mulheres nas empresas, mas depois a guerra colonial também trouxe, embora as mulheres estivessem geralmente em funções menos qualificadas. Portanto, é o que ainda hoje de alguma maneira acontece, e acontece uma coisa que hoje ainda existe e já existia nessa altura: é que podemos ter uma secção de 100 pessoas com 99 mulheres e um homem. O chefe é um homem. Portanto, foi sempre uma “guerra”.
Mas porquê? Mas porque é que tem de ser o chefe o homem? As mulheres tinham uma participação na vida económica, na vida da empresa, na atividade produtiva muito forte. Essa força traduziu-se na participação na luta, sempre, portanto, as greves atingiram quase 100%, sempre praticamente, porque as mulheres também aderiam. Ou seja, havia ali uma comunhão entre homens e mulheres na participação, na luta, que não tinha tradução na vida do sindicato.
Quando eu vim para o sindicato, em 15 dirigentes, havia duas mulheres. Esta situação foi-se alterando e hoje, eu não quero dizer que a situação seja de 50/50, mas se não é… E não houve nenhuma preocupação de cotas, foi uma questão perfeitamente natural, claro, pela entrada de mulheres. O facto de o sindicato deixar de ser só de lanifícios para ser também ser de confeções ajudou nessa transformação, não foi apenas os lanifícios, mas mesmo ao nível dos lanifícios, a partir de 1978 começaram a entrar mais mulheres nas direções. Progressivamente e, portanto, com uma inserção muito forte. Agora, nas lutas estiveram sempre.
Não seria correto da minha parte dizer que as mulheres eram um entrave ao desenvolvimento da luta. Pelo contrário, até tinha um problema, se havia era o contrário: é que às vezes custavam a entrar e depois quando entravam já era difícil sair. Eu confesso a minha experiência, para mim era muito mais difícil conduzir uma luta numa empresa só de mulheres, do que mista, de homens e mulheres, ou só de homens. É porque as injustiças que elas sentiam eram tão fortes, tão fortes, que quando decidiam aderir, e se depois, o resultado não era exatamente o que estavam à espera, era muito difícil convencê-las e dizer: “Pá, já temos aqui ganhos e tal, não sei quê”. Porque às vezes estávamos a entrar em becos sem saída, portanto, às vezes, os processos de luta estavam tão radicalizados que, se fossem prolongados por mais algum tempo, não havia saída. E, portanto, às vezes, é preciso saber capitalizar o que já se conseguiu para reagrupar forças para se conseguir o resto. Mas nem sempre se conseguiu, mas eu percebo esta atitude. é que: “bolas, nós demos tanto a isto e agora vamos sair sem conseguir tudo”. Era mais esta postura, mas no resto foi com muita facilidade.
Eu, para mim, foi extremamente fácil. Eu estou a falar dos têxteis, mas posso falar da União de Sindicatos. Quando entrei para a União de Sindicatos não havia uma mulher na direção e hoje são 40 e tal por cento e já chegaram a ser 51 ou já estiveram em maioria. Portanto, mas isto, volto a dizer, não foi uma questão de pôr jarrões a enfeitar uma mesa, foi um processo natural de envolvimento, participação, de responsabilidade.
P: E nos locais de trabalho? Ou seja, não assumiam posições na direção do sindicato, mas na organização das lutas, como delegadas sindicais?
Luís Garra: Havia algumas como delegadas sindicais, mas é como digo, a seguir ao 25 de Abril, elas eram mais de estar na luta do que ser delegadas sindicais. Isto depois foi um processo. Até porque a conciliação entre a vida pessoal e familiar, a própria compreensão dos homens em relação às tarefas da mulher… Uma mulher que viesse para o sindicato era olhada de esguelha, como se costuma dizer. Era apelidada de muita coisa: “Olha, lá anda ela no meio dos homens.” Estas coisas existiam. Portanto, foi preciso uma alteração muito forte de mentalidades, de culturas e, portanto, a participação delas na luta foi sempre superior ao envolvimento delas na direção da luta. Não porque elas não soubessem, mas porque havia todo um ambiente cultural que lhe era adverso. Portanto, e conforme fomos evoluindo, e ainda bem, isto foi-se alterando. Portanto, isto foi um processo.
O 25 de Abril, claro, foi fantástico também para esta abertura, este sentido de abertura. Repare que também referem aí no guião que havia uma comissão feminina. Sim, é verdade. Mas a comissão feminina, do meu ponto de vista, tinha um lado perverso. Que era a forma de as ter ali compartimentadas, mas que não faziam parte da direção do sindicato. Estavam ali compartimentadas para quê? Para organizar os lavores, os cursos de costura e de bordados. Quando cá cheguei ao sindicato, nós tínhamos a secção feminina com duas senhoras, uma que ensinava as mulheres a costurar e a outra a bordar. Foi uma guerra que vocês não imaginam para acabar com aquilo. Aquilo era profundamente sexista, do meu ponto de vista. Eu não pude fazer a abordagem na altura desta forma tão direta como estou aqui a fazer e tivemos de invocar dificuldades financeiras para manter aquela situação e tal, mas aquilo não era nada. Portanto, nós ganhámos mais mulheres a participar quando passaram a ser delegadas sindicais e passaram à direção do que quando era os lavores.
P: Já temos aqui umas incursões no período pós 25 de Abril, mas só para terminar aqui esta secção, quais são as memórias mais marcantes que tu guardas desse período?
Luís Garra: É a liberdade estar na rua, a gente sentir que tinha condições para conquistar direitos, para conquistar melhores salários, para conquistar dignidade, no fundo. É a gente poder sonhar. Sonhar que podíamos ter uma vida melhor, portanto, acho que no fundo foi isto, porque nós vínhamos de uma penumbra de uma vida sem perspetivas.
Eu tirei o curso de técnico têxtil, como trabalhador-estudante. E a seguir ao 25 de Abril envolvo-me diretamente na vida sindical e adeus à carreira profissional. Mas o que me estava reservado era ser um técnico têxtil, mas depois sujeito à subserviência perante o patrão. Era mais um lacaiozito. E o 25 de Abril abre-nos outro horizonte que, mesmo os técnicos passavam a ser eles próprios criativos, responsáveis, mas livres, e não terem de estar sempre sujeitos ali à tutela. Há sempre aqueles que gostam de andar curvados, mas isso é um problema já de cada um.
Agora a vida foi completamente distinta e é evidente que o processo de conquista é muito realizador do ponto de vista da satisfação das nossas necessidades, mas é que o processo de resistência também tem os seus encantos, os seus atrativos. Porque de cada vez que evitamos a perda de um direito é uma alegria incontida, sendo que quando a gente conquista todos sentem. Portanto, se conquistamos um aumento de salários, todos ficam satisfeitos, porque no final do mês sentiram um aumento de salário, não é? E quando nós evitamos a perda de um direito, ninguém sente. Portanto, é mais fácil para um dirigente sindical… é mais fácil o processo de conquista do que o processo de resistência. Mas também dá uma alegria imensa quando nós dizemos, “querias isto, mas não conseguiste”...
P: Então, passando para o período de resistência, nestes 47 anos de democracia houve outras lutas, se calhar agora lutas de resistência, quais é que foram aquelas mais relevantes já no pós 25 de novembro?
Luís Garra: Eu já referi a greve de 1981, essa é a marca. Depois, a ver se me lembro de oferecer um livro do Gabriel Raimundo que escreveu sobre essa greve. É um bocadinho ficcionada, mas tem alguns elementos de realismo sobre aquilo que se passou. Mas depois, essa greve tem uma característica, dado o processo repressivo que se abateu sobre ela. Porque as forças policiais carregaram sobre os grevistas. Houve tiros, houve pessoas feridas com tiros, houve perseguições de patrões a trabalhadores que culminaram com ferimentos de trabalhadores com tiros. E, portanto, foi um processo muito, muito complexo.
Eu, por exemplo, era o porta-voz da greve, não era o presidente do sindicato, mas era o porta-voz da greve e a partir de uma altura iam-me por a casa e iam-me buscar a casa, porque as ameaças sobre mim eram muitas, porque eu era a face visível da greve, embora houvesse dirigentes que tiveram um papel tão destacado ou mais do que o meu. A vantagem dos porta-vozes é que falam, mas depois estão os outros todos ali a dar a cara e o corpo à luta. Você vai entrevistar um homem que teve um papel destacadíssimo, que é o Ramiro Reis, um papel destacadíssimo nessa greve. Se calhar até um papel mais destacado na organização de piquetes, da resistência, do que eu, porque aquilo foi intenso. Eram três dias com piquetes de manhã à noite. Não se dormia. Ia-se à cama 2/3 horas. E era responder a comunicados uns em cima dos outros, contra informação, etc. Portanto, foi um processo muito, muito complexo e exigente, mas também muito formativo.
Mas dizia que essa greve, dado o caráter repressivo que teve, o movimento de solidariedade nacional que estabeleceu, deu confiança para que o movimento sindical tivesse as condições para que em Fevereiro se fizesse a primeira greve geral, em 12 de Fevereiro, de 1982. Foi a partir desta greve aqui, repare nesta questão, não é puxar pelos galões, nem sequer são galões pessoais, são galões coletivos: a greve dos mil escudos em 1974 abre caminho à fixação do salário mínimo, 3300 escudos. Foi essa greve. Eu acabei por não dizer, mas eu escrevi no documento que enviei, abre o caminho à fixação do salário mínimo, porque aqueles 1000 escudos davam exatamente, deram a força necessária às forças progressistas que estavam no governo, à esquerda, que estava no governo para criar e faixar o SMN. A greve de 1981, de resistência, já abre o caminho para que se convocasse a greve geral, com um objetivo muito claro, a demissão do Governo da AD. E é partir deste processo da greve de 1981 que se despertou e se criou as condições de confiança.
Mas a greve de 1982 coloca na ordem do dia a necessidade do desgaste do governo da AD. E cai o governo depois, mais tarde vem a cair. Portanto, isto enche-nos um bocadinho, e desculpem lá, enche-nos um bocadinho o ego. Principalmente porque estivemos no processo e tínhamos consciência do que é que estávamos a fazer, de que esta greve de 1981 tinha um simbolismo muito forte de resistir contra a retirada de direitos conquistados no 25 de Abril. O contrato de 1975 tinha esse simbolismo, mas também tinha esta dimensão mais política.
A estrutura da CGTP foi importante porque a partir do momento que criou o Conselho Nacional, com praticamente todos os coordenadores das uniões, das federações e dos sindicatos nacionais e outros dirigentes, passou a ter uma informação muito mais próxima daquilo que era a realidade do todo nacional. E, portanto, eu sinalizo estas alterações também como muito importantes no trajeto, na afirmação do projeto unitário e na natureza de classe e de massas do movimento sindical. Acho que isto foi muito importante.
Eu lembro-me que nós, no início deste processo, nos primeiros anos em que eu fui membro do Conselho Nacional, dos anteriores eu não posso falar, mas nos primeiros em que eu fui membro do Conselho Nacional, a ideia que eu tenho era de debates muito fortes, muito intensos, discutia-se à vírgula. Porque nós estávamos a construir os enunciados teóricos e programáticos da CGTP.
Porque aquele processo revolucionário permitiu fazer um caminho e aquilo que está escrito hoje também é o resultado da resistência ao fascismo, do processo revolucionário e depois aquilo vai traduzido para o acervo de orientações que hoje a CGTP tem. Mas lembro-me perfeitamente que eram reuniões quase intermináveis, muito desgastantes. Às vezes duravam dois ou três dias, pela noite dentro. Porquê? Porque nós estávamos a construir, sem aquela preocupação de uns imporem aos outros uma orientação, estávamos a construir, preocupados em encontrar as melhores soluções que nos unissem. Eu já não passei por aquela fase, daquela guerra da unicidade. Passei aqui, mas não na CGTP. Passei por esta fase, mais de construção do acervo teórico e de orientações programáticas que nós hoje temos e os momentos em que foi preciso definir linhas de confrontação com o poder político e com o capital.
Aliás, o poder político interpretou sempre os interesses do capital. Nós às vezes dizemos, o poder político e o capital, quando eles no fundo atuaram sempre, às vezes com nuances, dependendo de quem estava no governo, mas no fundamental era uma grande articulação entre o poder económico e o poder político. Ainda hoje essa promiscuidade é uma coisa horrível. Eu hoje sei muito mais dessa promiscuidade do que sabia nessa altura e o que eu hoje vejo, essa promiscuidade, é uma coisa que ofende. Mas esta questão do confronto com o poder político e com o poder económico foi sempre uma questão e, aí, tenho que dizer a verdade: foi sempre possível, mesmo quando era o Partido Socialista sozinho, acompanhado, geralmente mal-acompanhado, que estava no governo, os dirigentes sindicais que tinham como filiação partidária, e ainda têm, o Partido Socialista foram importantes no sentido em que entre o partido e os trabalhadores puseram os trabalhadores à frente. Claro que procurando mitigar sempre o confronto com o partido que estava no governo, mas fazendo uma opção de classe muito forte.
Eu retenho com uma grande saudade aqueles dirigentes sindicais que eram militantes do Partido Socialista e que foram fundadores, criadores da CGTP, e que são construtores deste projeto. Porque foram muito importantes no combate ao divisionismo sindical. Muito importantes. É claro que todos, todos os que lá estivemos, fossem comunistas, fossem socialistas, fossem católicos, fossem de outras correntes, todos eles, foram todos importantes. Mas estes, até pela própria natureza da criação do divisionismo em Portugal, da UGT, dos aliciamentos e até dos impulsos e das pressões que sofreram para irem para a UGT, e eles, ao fazerem a opção pela CGTP, também ajudaram a construir o projeto unitário.
E eu creio que isto é muito importante e eu acho que este projeto, poderei até ser injusto na apreciação que vou fazer, mas se há projeto útil, belo, que foi construído em Portugal é a CGTP. É um projeto de uma criatividade que é distintiva no plano europeu. Eu conheço alguma coisa da construção do movimento sindical europeu. Estive no congresso que decidiu a adesão da CGTP à CES (Confederação Europeia de Sindicatos), o Congresso em Bruxelas. E, portanto, conheço alguma coisa do movimento sindical europeu. Não há um movimento sindical com estas características na Europa, porque nasceu da base. Não é um prolongamento dos partidos, deste ou daquele. É um projeto que é essencialmente unitário, em que os seus dirigentes têm todo o direito a ter partidos, como é óbvio, e ainda bem que fazem opções, eu tenho a minha também, mas isso não dilui esta importância do projeto unitário da CGTP.
P: Queria voltar mais uma vez à questão de género, agora, já pensando nesta evolução. Na pesquisa que fiz, verifiquei que no setor têxtil especificamente foram desenvolvidas algumas iniciativas: houve um encontro da mulher na indústria têxtil. Gostava de perceber como é que foi vivida essa evolução? A luta das mulheres pela igualdade salarial, por exemplo?
Luís Garra: Quando há pouco falava neste processo, entram estas iniciativas todas, que não foram todas apenas no distrito de Castelo Branco. Houve iniciativas de encontros unitários de mulheres que não eram propriamente organizadas pelo movimento sindical, mas onde o movimento sindical também estava. Houve esse encontro que refere, e, portanto, tudo isto faz parte do processo de alteração de mentalidades que foi sendo construído. Embora eu continue a dizer que o maior contributo que foi dado para esta alteração de mentalidades foi o da prática. Porque os encontros são importantes, porque sinalizam orientações, sinalizam objetivos, mas só por si não resolvem, pois é preciso no terreno trabalhar para isso. Eu valorizo muito o trabalho feito no terreno, quando se elegem mulheres para delegadas sindicais, quando se convidam mulheres para as direções sindicais, quando se dão responsabilidades às mulheres. Não apenas serem membros da direção, mas depois deixa lá, está lá, está lá, não sei quê e tal, mas não se dão responsabilidades. Por exemplo, hoje a presidente do sindicato têxtil é uma mulher. Fui substituído por uma mulher, portanto, este é que é o processo.
Os encontros são muito importantes. Eu não estou a desvalorizar, até porque ajudei a organizar alguns, mas depois é preciso que haja trabalho no terreno e que isso passe a ser uma opção e não uma obrigação. Quando a gente faz as coisas por obrigação é uma chatice, parece que estamos a fazer um favor. Não é uma opção. Se as mulheres têm uma presença forte nas empresas, no trabalho, isso tem de ter tradução nas responsabilidades ao nível sindical. Isto é que tem de ser feito. E não foi preciso andar a dizer “sai um homem para entrar uma mulher”. Não foi preciso.
As coisas apareceram, foram evoluindo naturalmente, mas lá está, a opção força. Quando se toma uma opção, naturalmente está-se a forçar as decisões.
P: A outra questão que eu também gostava de perceber melhor é como é que se desenvolveu a articulação entre o movimento sindical e os outros movimentos associativos?
Luís Garra: A cooperativa era a da Nova Penteação, era de uma empresa. Houve uma cooperativa de consumo, mas estava ligada a uma empresa que era a Nova Penteação. Houve até duas, houve uma outra, também na Lanofabril. Eu não tive uma vivência muito forte a esse nível.
P: Mas considerando a tua vivência no movimento associativo em geral, a relação entre o movimento sindical e os outros movimentos associativos?
Luís Garra: Nós tivemos sempre uma relação estreita com o movimento associativo. Porquê? Porque a origem do movimento associativo na Covilhã tem uma componente operária muito forte derivada da própria morfologia da Covilhã. Repara: GER Campos Mello, no cimo da Covilhã, GER quer dizer Grupo Educação e Recreio; GIR do Rodrigo, Grupo de Instrução e Recreio, na parte baixa da cidade. E depois tínhamos as coletividades no centro da cidade, a Banda, o Oriental de São Martinho e depois aquelas já no tempo do fascismo, através daquelas coisas da FNAT, multiplicaram-se em uma série de bairros e freguesias. Mas mesmo essas eram espaços do convívio dos trabalhadores, que não tinham televisão, que não tinham casa de banho, era lá que tomavam banho. Era lá que jogavam às cartas, era lá que também conversavam sobre a vida, sobre a vida dura que tinham.
E, portanto, dado que o sindicato é uma instituição (isto pode ferir os ouvidos dos mais puristas ideológicos), mas eu não tenho problemas que os sindicatos sejam uma instituição da Covilhã. Como, por exemplo, tínhamos uma delegação no Tortosendo, que era uma instituição no Tortosendo. Tínhamos mais a delegação de Unhais da Serra, que era uma instituição em Unhais da Serra. Tínhamos uma delegação em Cebolais de Cima, que era uma instituição em Cebolais de Cima. E eu quero dizer que sou daqueles que defendo que o movimento sindical deve estar implantado nas empresas, os seus espaços prioritários de ação são as empresas, mas é importante que esteja também implantado nos meios em que se insere.
Isto é o tal caráter de instituição, e instituição não significa aculturação, nem significa submissão ao poder. Mas respeito do poder por esta instituição. Portanto, foi assim que eu sempre concebi. Isto vem de antes e manteve-se: o sindicato é reconhecido institucionalmente, está ali a medalha de mérito municipal dado pela Covilhã, pela Câmara da Covilhã. E, portanto, esta ligação, este conceito de instituição, implica ter uma ligação estreita com as coletividades. Por isso somos sócios do INATEL, o sindicato é sócio do INATEL e faz iniciativas com as coletividades e tem relações de cooperação com as coletividades. E, portanto, nós achamos que esta ligação é muito importante, até pelo cordão umbilical que nós temos com elas e elas connosco.
P: E também pela própria multiposicionalidade dos dirigentes, não é?
Luís Garra: É o meu caso, então.
P: O que é que essa realidade de seres dirigente quer sindical quer da coletividade influi na articulação dos movimentos? Ou seja, o facto de haver muitos dirigentes que são simultaneamente de uma coisa e de outra, isso determina um caráter quase conexo aos movimentos?
Luís Garra: As vantagens, o que vem daí, é que nós aprendemos com um movimento associativo de base. Com as coletividades aprendemos muito, no relacionamento, nas relações interpessoais, nas dinâmicas locais e trazes para os sindicatos esta experiência e nós levamos para as coletividades uma conceção de organização de trabalho, de conceito de trabalho coletivo que eles não têm muitas vezes. Eu noto, quando entrei naquele mundo, que todos falavam ao mesmo tempo, não havia ali uma linha de condutora. Eu sabia o que queriam, mas era tudo um bocadinho anárquico e, portanto, a nossa forma de trabalhar mais programada, mais organizada, ajuda também as coletividades. E, portanto, eu acho que há aqui uma reciprocidade, um levar e trazer no bom sentido, que é muito importante. E por vezes nós conseguimos introduzir nas coletividades, não sei se se passa assim a nível nacional, aqui há muito esta ideia de “política não entra” e nós temos formas, até pela nossa experiência de trabalho unitário com os trabalhadores todos, tenham eles a filiação partidária que tiverem, nós depois temos uma capacidade de levar a política não no sentido partidário, mas no sentido dos princípios, para dentro das coletividades, sem rupturas, sem conflitos.
E, claro, nós aprendemos muito nas coletividades. Nas coletividades nós temos uma sensibilidade para as fragilidades, os dramas sociais, que nas empresas por vezes não se manifesta. Nas empresas o que se manifesta é a compra e venda da força de trabalho, das injustiças que ali se geram, mas depois a tradução para o meio onde vivem só se consegue apreender quando estamos junto daquela malta toda. Portanto, às vezes apercebemo-nos de dramas de que não temos noção.
P: Para além dessa dupla participação associativa, também vieste a assumir cargos políticos, depois do 25 de Abril, nomeadamente na autarquia. E como é que é essa relação entre a atividade associativa e a atividade política?
Luís Garra: Do ponto de vista da compreensão pública não é fácil. Porque a ideia de que os sindicatos são dos comunistas, que é a voz corrente, acentua-se de cada vez que os seus dirigentes mais destacados, como era o meu caso, assumia responsabilidades de cariz partidário. Portanto, do ponto de vista prático essa ligação teve alguns problemas. Agora o que nós, o que eu tinha de resolver sempre, era como é que eu falava com os trabalhadores. Qual era a minha posição perante os trabalhadores. E, portanto, aquilo que procurei gerir foi: primeiro, o ter partido é um direito constitucional, que não pode ser negado, senão está-se a violar a Constituição da República. Porque a Constituição diz que os cidadãos podem, as pessoas podem estar filiadas em partidos. Se me estão a dizer que porque sou sindicalista não posso ter partido estão-me a retirar direitos. Implica essa explicação mais pedagógica do ponto de vista político.
Depois, provando que quando eu estava na atividade política não estava a fazer mais do que levar para o plano político os problemas que eles me colocavam no plano social, no plano laboral e no plano sindical. Foi difícil ao princípio, depois as coisas foram sendo percebidas. Mesmo quando deixei de ter este tipo de responsabilidades políticas, porque hoje sou militante de base, não há essa figura, mas não tenho cargos de direção no partido, mas sou militante do partido, como é óbvio. Mesmo nessa altura, quando deixei de ser dirigente do partido, também ninguém me veio perguntar porquê. Ou melhor, quando deixei de ser, não foi por razões sindicais, foi por outras questões que não têm a ver com o movimento sindical. Portanto, essa questão está perfeitamente resolvida.
Do ponto de vista pessoal e do ponto de vista sindical, eu costumo dizer aos dirigentes que um dirigente sindical, pela sua própria função, só consegue ter uma visão transformadora da sociedade se tiver uma boa base de formação ideológica. Porque senão está um misto entre o revoltado e o revolucionário. E os revoltados não fazem revoluções, os revoltados não transformam coisa nenhuma. Quem transforma são os revolucionários e para ser revolucionário tem de ter incorporado em si uma base ideológica.
E quem é que pode dar este suporte ideológico? Quem pode dar este suporte ideológico são os partidos e, no caso concreto, dada a natureza de classe do movimento sindical, o único partido que está em condições de dar uma base ideológica de classe é o PCP. Pela sua própria natureza e pela própria origem do PCP, que nasceu do movimento sindical. Estou a falar do PCP português, não estou a falar dos outros, eu comparo-me é com o partido. Eu costumo dizer, eu usava uma expressão quando foi aquilo a Leste: “Eu estou a Leste do Leste pá. Desculpem lá: eu não fui para o PCP por causa da Rússia nem da União Soviética. Eu fui para o PCP, por aquilo que o PCP era, mais nada”.
Claro que isto é uma forma de dizer, que eu estive lá e sofri a bom sofrer. Eu acho que o sindicalismo me deu uma base para ter intervenção, ação, o partido deu-me a base ideológica para fazer essa ação com sentido transformador. Depois eu fui candidato a deputado como cabeça de lista três vezes, fiz parte da lista uma vez sem ser cabeça de lista, fui candidato à Câmara Municipal, fui presidente da Assembleia de Freguesia e estive mais, para além destes quatro anos como presidente da Assembleia de Freguesia, estive mais de oito anos como membro da Assembleia de Freguesia, na freguesia onde eu vivo. Estive 19 anos na Assembleia Municipal da Covilhã.
Tudo isto foi feito em simultâneo com a vida sindical, com responsabilidades sindicais. Portanto, tive de ter a capacidade de saber fazer muito bem a separação de quando estava a falar o Luís Garra em nome do partido e o Luís Garra em nome do sindicato. Nem sempre é fácil, confesso. Houve ali uns momentos em que às duas por três se gerava a confusão, mas a gente tem que ter o equilíbrio. Se me perguntarem, se eu estivesse noutra região, com maior influência, mais quadros, provavelmente não teria sido necessário fazer este trabalho, desta forma, porque com mais quadros, mais diversidade de tarefas, eu poder-me-ia manter concentrado apenas naquela que mais gostava, que era a tarefa sindical. Estava-me a esquecer, fui também, durante não sei quantos anos, eu tenho escrito, membro do Comité Central do PCP, portanto, estive ainda bastantes anos, saí em 2012.
P: Só para terminar esta secção sobre a tua experiência pessoal, diz-me só de que forma é que achas que esta participação associativa mudou a tua vida?
Luís Garra: Vamos lá ver. Eu não sei. É difícil responder, porque a gente não sabe se não tivesse sido, o que é que eu teria sido. É a vantagem dos historiadores. Portanto, como é que eu vou responder a isso? Eu provavelmente, dado o meio em eu fui criado, um meio pobre, mesmo o lugar onde fui criado era de muitos excluídos, de marginalidade. Provavelmente, se não tem sido esta minha, senão tem sido o 25 de Abril, a minha vontade no fundo de estudar, de estudar também. Porque eu esqueci-me de dizer que tinha tanta vontade de estudar que a minha primeira vocação foi ir para padre, mas depois não fui. Depois disse que não queria ir.
Mas se não tem sido isso, eu provavelmente seria mais um daqueles cidadãos que trabalham, vão para o café, jogam às cartas, têm vícios, outro tipo de vícios. Portanto, a inserção na vida política partidária, a inserção do movimento sindical, a inserção no movimento associativo, deu-me uma dimensão… não me deu riqueza financeira, não permitiu que eu trabalhasse na profissão para que estudei, que era bem remunerada na altura, como técnico têxtil era muito bem remunerado, mas deu-me uma riqueza que de outra maneira não teria, que é a riqueza, primeiro das relações humanas, da perceção do outro e desta possibilidade de estudo permanente, de estudo nalguns casos empírico, noutros casos, porque as responsabilidades obrigavam a ler, a estudar, a interpretar.
Permitiu-me um contato com pessoas de outra cultura, de outros graus académicos, que de outra forma, não teria. Isso é impagável. Isso não tem preço. Portanto, são os tais bens imateriais, não é assim que se diz? São os tais bens imateriais que a gente tem e que não são contabilizáveis. Eu acho que isto foi o melhor que me aconteceu. Do ponto de vista pessoal, alguns dizem: “Olha, foi o pior que te aconteceu, porque perdeste uma carreira profissional muito forte”. E eu, que sou desprendido dos bens materiais, digo que este foi o maior bem que eu tive.
Não estou absolutamente nada arrependido, para desgosto de alguns familiares, nomeadamente a minha companheira, que gostaria e tem direito, teria direito naturalmente a ter outro tipo de vida. Foi uma vida intensa, multifacetada, cheia de grandes experiências, de grandes momentos, de solidariedade. Também de algumas facadinhas, mas isso faz parte da vida, algumas traições. É isto tudo que nos constrói como seres humanos.
Neste momento já estou numa fase mais liberta, ainda tenho responsabilidades nos sindicatos e na União dos Sindicatos, embora já não sendo nem presidente nem coordenador, mas continuo a dar a minha colaboração, contínuo a ser dirigente associativo e estou sempre com projetos para o futuro. Portanto, precisamente porque adquiri esta formação. Isto foi fruto de quem? De todos aqueles com quem trabalhei, todos mesmo, mesmo alguns que disseram mal de mim, porque também esses me ensinaram. Portanto, todos, isso é fruto disso.
Luís Garra: Vamos lá ver, há uma tradição de família, quando, principalmente o meu pai, foi sempre envolvido na vida associativa. Ele foi músico, foi dirigente de uma banda filarmónica, foi jogador de futebol, fez parte da direção da equipa de futebol, isto enquanto esteve na terra, na sua terra de origem, Manteigas. Tanto que eu nasci em Manteigas.
E depois, quando veio para a Covilhã, ele continuou a ter essa atividade. Mas a minha ligação foi sempre muito maior ao movimento sindical. Até posso dizer que a minha ligação depois ao movimento associativo é resultado de uma primeira envolvência no movimento sindical, tirando o facto de ter colaborado na criação da Associação de Trabalhadores-Estudantes da Escola Campos Melo, na Covilhã. Mas obviamente, essencialmente nessa altura, quando eu, imediatamente a seguir ao 25 de Abril, tinha 17 anos, quando se dá o impulso às associações de trabalhadores-estudantes e depois ingresso no MJT, no Movimento da Juventude Trabalhadora. Depois, mais tarde, na União das Juventudes Comunistas. E, portanto, depois todo o trajeto de vida política, depois com certeza lá iremos…
Mas voltando à questão inicial, o meu pai, mesmo em termos sindicais, não sendo aquilo que se pode chamar um resistente antifascista, era uma referência para os seus colegas de trabalho, no que concerne à explicação dos direitos. Ele tinha com ele, ainda antes do 25 de Abril, o contrato coletivo de trabalho que já estava negociado em 1970, 1969 revisto em 1970 e depois em 1973, e, portanto, ele era uma pessoa a quem os seus colegas...
P: Só para ser registado, a profissão do teu pai era...
Luís Garra: Era tecelão, operário têxtil, ligado à indústria de lanifícios. E essa vertente, eu retive-a sempre, como uma pessoa informada e que informava, era esta a sua... Portanto, talvez daí venha uma certa ligação, mas eu creio que a referência principal tem a ver com o meu envolvimento imediatamente a seguir ao 25 de Abril, que me apanha com 17 anos.
P: Na infância, não foste associado de nenhuma associação ou não usufruíste da oferta cultural de nenhuma associação?
Luís Garra: Fui sócio de uma coletividade da minha freguesia, nem era freguesia, era um lugar da freguesia da Covilhã onde eu vivia, que era o CPT de São Vicente de Paulo, no bairro chamado São Vicente de Paulo/Borralheira, hoje Cantagalo. Fui sócio dessa coletividade. Fiz lá teatro muito episodicamente, com 16/17 anos. Porque eu comecei a trabalhar com 10 anos, fui aprender para alfaiate, aos 11 anos ingressei numa fábrica de lanifícios e aos 14 era trabalhador-estudante, trabalhava de dia e estudava de noite.
P: Nesse período, ainda antes do 25 de Abril, quando entraste na fábrica, apercebeste-te dessa luta em torno do contrato coletivo de trabalho?
Luís Garra: Sim. Nessa altura dos 10 anos não, claramente que não, porque eu entrei em 1967 na fábrica. Mas em 1970, em 1973, já me apercebi das movimentações pelo contrato coletivo de trabalho. Aliás, eu tenho uma referência desse envolvimento, porque as assembleias nos sindicatos, já nessa altura, o salão, este andar onde nós estamos, era o salão de reuniões.
O salão de reuniões no sindicato era este andar onde estamos, mas era tudo amplo e a Secretaria era ao fundo do salão. E já nessa altura, em 1973, o salão do sindicato se enchia, incluindo as escadas. Havia reuniões que vinham até à rua. Tem piada que quando eu cheguei, quando comecei a frequentar mais os sindicatos, mesmo já depois do 25 de Abril, já o sindicato ou o salão de reuniões tinha uma aparelhagem com colunas distribuídas no salão e na escada. Porquê? Pois, porque as escadas se enchiam. Portanto, em 1973, tenho perfeita noção disso, eu já era trabalhador-estudante na altura e eu lembro-me de ter ido ao comício da oposição democrática, do MDP/CDE, que foi no teatro-cine, uma sala de cinema muito grande, que tinha perto de 1000 lugares, que foi agora renovado.
Muito honestamente, eu fui de uma forma perfeitamente inconsciente. Não tinha perfeita noção, nenhuma noção para onde é que eu ia. Foi um amigo meu, que foi depois quem me inscreveu no MJT, no movimento da Juventude trabalhadora a seguir ao 25 de Abril, que me disse: “Epá, há uma iniciativa no cinema. Vamos lá então.” Pronto, e vi que era uma sessão da oposição democrática e para ser muito mais sincero, a apreensão da importância daquela iniciativa, só depois do 25 de Abril eu a percebi em toda a sua dimensão. Portanto, não tinha uma cultura política nem ideológica que me permitisse perceber. O meu pai falava muito contra o regime, contra o Salazar, contra o Marcelo. A minha mãe, sendo uma mulher de armas, como se costuma dizer, muito consequente, era mais temerosa, protegia. Estava sempre em casa a refilar e tenho a perfeita noção de quando foi o discurso de Marcelo Caetano das vacas, o chamado discurso “acabaram-se as vacas gordas”, eu estar a protestar porque estávamos a ouvir o que ele disse na televisão. As conversas em família... E ela mandou-me calar e eu não me calei e atirou-me com um sapato à cabeça.
Portanto, tenho perfeita noção dessa altura. Digamos que, não sendo uma cultura, em casa, de grande contestação ao regime, não era de compreensão pelo regime. Isto talvez tudo junto, o ter sentido a injustiça de não ter ido estudar e ter que ir trabalhar e depois sim, fui estudar como trabalhador-estudante. Isso ajudou a criar a minha consciência. Porque eu fui, passe a imodéstia, portanto não era eu que o dizia, era a professora, eram os meus colegas, eu, a par de um outro amigo meu, éramos os melhores alunos da nossa classe. Era assim que se chamava na altura, da nossa classe. E uma parte deles foram fazer o exame de admissão ao liceu e eu fui trabalhar, com 10 anos. Isso, confesso, criou-me uma certa revolta. Porque se eu gostava de estudar, tinha apetência para o estudo e sou impedido de ir estudar, tenho de ir trabalhar, isso gerou em mim, não digo revolta, mas alguma dor me deixou.
P: E estavas a dizer que tinhas criado uma associação ainda imediatamente antes do 25 de Abril de estudantes e trabalhadores?
Luís Garra: A seguir ao 25 de abril, imediatamente a seguir ao 25 de Abril… É quando há o boom das associações de estudantes e também se criou a associação de trabalhadores-estudantes da Escola Campos Melo. Eu fiz parte da pró-Comissão. Creio que era assim que se chamava, já não tenho a certeza. E depois, integrei a primeira direção da associação de trabalhadores-estudantes da Escola Campos Melo, que creio que depois... acho que já nem há ensino noturno. Não sei se ainda há, mas, portanto, nessa altura tinha muitos, muitos... A seguir ao 25 de Abril, houve uma procura muito grande de trabalhadores, de jovens trabalhadores, que não tinham podido, lá está, gostavam de estudar, não tiveram condições de ir estudar para o liceu, tiveram de ir trabalhar. E depois, logo que tiveram a oportunidade, a seguir ao 25 de Abril, foram para a escola.
P: Então vamos agora focar especificamente o período da experiência associativa durante o período revolucionário, entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro. Quais foram as associações em que participaste durante este período específico?
Luís Garra: Foi fundamentalmente a Associação de Trabalhadores-Estudantes.
P: Que tipo de atividade desenvolviam?
Luís Garra: A Associação de Trabalhadores-Estudantes visava defender os direitos e os interesses dos trabalhadores-estudantes dessa escola e depois eu frequentava muito, nunca tive funções diretivas, mas frequentava, como disse, fazia, cheguei a fazer teatro na colectividade. Isto foi antes do 25 de Abril e depois também ainda fiz alguma coisa na coletividade do lugar onde eu vivia. Joguei futebol na equipa da empresa Sá Pessoas & Irmãos/Gitêxtil e em grupos informais que criavam torneios. Mas, essencialmente, a seguir ao 25 de Abril a minha intervenção foi mais de carácter partidário, político-partidário do que propriamente do movimento associativo.
P: E no movimento sindical?
Luís Garra: No movimento sindical foi desde logo. Eu fui eleito para delegado sindical em 1974, mas como tinha 17 anos e os estatutos do sindicato diziam que só se podia exercer funções de direção ou diretivas...
P: Qual era o sindicato?
Luís Garra: Dos Lanifícios do Distrito de Castelo Branco. Só quando fiz 18 anos é que pude vir para delegado sindical. Eu quero assinalar que quando fui eleito delegado sindical foi pelo princípio do mais votado. Portanto, os trabalhadores votavam em quem queriam, não havia listas, era votação aberta. E eu, com 17 anos, fui eleito numa empresa que nessa altura tinha 200 e tal trabalhadores. Depois, mais tarde, fez uma junção de empresas que foi até 500, mas foi pela junção de empresas, da qual fiz parte também da Comissão de Trabalhadores desta junção de empresas.
Mas a seguir, imediatamente a seguir ao 25 de Abril, fui eleito delegado sindical. Não foi aceite no sindicato e nas eleições do ano seguinte, com 18 anos, fui eleito. Depois, aos 19 anos, fui convidado pela direção que estava no sindicato para integrar a Comissão Organizadora do 1º de Maio. Nessa altura, criava-se uma comissão organizadora para o primeiro de Maio. Eu fui convidado, integrei em 1977, se a memória não me falha, eu vim para a direção do Sindicato em 1977 ou 1978. Primeiro, fui eleito para a comissão diretiva do sindicato. Houve um vazio na direção do sindicato e depois eu era delegado sindical na minha empresa e fui convidado para integrar a comissão diretiva e, depois da comissão diretiva, integrei a direção do sindicato até há ano e meio. E agora sou presidente da Mesa da Assembleia Geral.
P: Com certeza que com essas responsabilidades, terás participado e organizado ações de luta muito importantes...
Luís Garra: Sim, eu participei logo, embora não sendo nem delegado sindical nem dirigente, mas participei imediatamente na greve dos 1000 escudos. Participei quer nas assembleias, quer nas votações que houve ao nível de empresa, porque essa foi uma greve que foi decidida em Assembleia Geral do Sindicato, mas que depois foi ratificada por votações feitas nas empresas. E, portanto, eu participei ao nível da minha empresa, daí eu ter sido depois imediatamente eleito delegado sindical, não aceite, como já disse, tinha 17 anos. E, portanto, participei logo na greve dos 1000 escudos, como já tinha participado na manifestação do 25 de Abril na Covilhã.
Tinha um certo sentido de justiça, porque nós ganhávamos muito mal, não tínhamos condições de trabalho, não havia condições dignas, era uma vida muito, muito difícil. Eu conto isto muitas vezes. Antes do 25 de Abril, os meus pais não tinham frigorífico, máquina de lavar roupa nem se falava, só muito mais tarde. Tinham o tanquezinho à porta ... não tinham água. Mesmo para lavar a roupa, tínhamos de ir com cântaros buscar água à fonte. E é claro que a nossa vida era muito difícil. Portanto, isto despertou mais a vontade de trabalhar e estudar, já na escola, como trabalhador-estudante.
Isto permitiu-me ter uma perceção das injustiças, sem nenhuma consciência política, mas as injustiças sentem-se, não é? Isso fez com que, imediatamente a seguir ao 25 de Abril, eu me envolvesse a fundo, de cabeça, como se costuma dizer. Participei nessa greve dos 1000 escudos. Essa greve foi muito importante para nós, porque 1000 escudos de aumento nessa altura foi uma coisa.... Olhe, permitiu que os trabalhadores comprassem o frigorífico, comprassem o fogão a gás, alguns compraram carro, a prestações, mas compraram. Houve uma subida no nível de vida, nas condições de vida, que foi uma coisa fantástica.
Mas não foi importante só para nós, foi importante para o país. Porque foi a partir dessa greve, que teve como desfecho um acordo celebrado no Ministério do Trabalho, na Covilhã, com a vinda do Secretário de Estado de Trabalho, que era o Carlos Carvalhas e do Secretário de Estado, não sei do que é que ele era Secretário de Estado, que era o António Guterres. Tanto que foram eles os dois que vieram à Covilhã para se fazer o acordo entre os sindicatos da Federação de Sindicatos dos Lanifícios, que na altura era dirigida pelo falecido Manuel Correia Lopes e também tinha o Kalidás Barreto, mas também tinha dirigentes aqui da Covilhã. Fez-se esse acordo com a presença desses secretários de Estado, com uma manifestação à porta do Ministério do Trabalho.
Ou seja, os trabalhadores concentraram-se. Para além de estarem em greve, concentraram-se na Praça do Município e vieram à manifestação para a porta do Ministério do Trabalho, que era um jardim público. Lembro-me perfeitamente de participar nessa greve, participar na manifestação, e claro, sem qualquer tipo de intervenção sindical. E depois participei em 1975 na luta do contrato coletivo de trabalho, em que a questão principal já não era tanto o salário, embora também fosse. Porque já tínhamos em 1974 conseguido aquele aumento significativo dos salários, mas era a questão do horário. A palavra de ordem da manifestação, da manifestação nacional dos lanifícios que realizámos na Covilhã, era 40 horas Sim 41 Não. Nessa altura conseguimos, conquistamos as 40 horas de trabalho para o setor dos lanifícios, com 2 dias de descanso, sábado e domingo.
E lembro-me perfeitamente dessa greve e lembro-me depois de outras greves em que participei pelo contrato, sempre pelo contrato coletivo, principalmente pelo contrato coletivo de trabalho. E, que depois já lá irei, à greve de 81, que merece uma referência muito particular. Mas depois também as greves na minha empresa, porque as greves na minha empresa foram imediatamente a seguir ao 25 de Abril. Foram intensas, porque havia um dos sócios, um dos patrões, que era um homem do regime fascista, muito ressabiado com o poder perdido. Ele era vereador da Câmara da Covilhã antes do 25 de Abril. Pertencia à União Nacional. Vivia muito da revanche e começámos a ter salários em atraso e a lutar pelo pagamento de salários.
Só para ter uma ideia: em 1979, eu casei, com 22 anos, e imediatamente fiquei com salários em atraso. Cheguei a estar cinco meses sem salário. E depois eu recebi os salários, resolveu-se a situação e ficou a minha mulher a seguir. Portanto foi assim sempre uma vida, um bocadinho atribulada a esse nível. Ela trabalhava noutra empresa. Depois também tive um processo por causa dessas lutas de salários em atraso, para o pagamento de salários. Eu e mais 19 camaradas de trabalho tivemos um processo disciplinar, suspensão do contrato e suspensão do trabalho durante seis meses. Só que aí houve uma grande solidariedade dos trabalhadores e nós, apesar de estarmos suspensos, nunca houve dia nenhum que não fossemos para a empresa. Não nos deixavam trabalhar, mas nós estávamos lá e, portanto, eram os trabalhadores que se punham ao portão da fábrica, a fazer alas de um lado e do outro para nós entrarmos e, portanto, o patrão nem se atrevia a impedir a nossa entrada.
Foram manifestações de solidariedade, e, quer queiramos quer não, em termos de dirigente sindical, porque nessa altura já era da direção do sindicato, marca-nos de uma forma muito, muito profunda. Porque sentimos na pele, com atos concretos, o que é a importância da solidariedade e, portanto, quando nós falamos da solidariedade nessa situação, já não estamos a falar de uma questão abstrata, de um princípio teórico. Nós estamos a falar de uma experiência. E, portanto, lembro-me perfeitamente de outras lutas na minha empresa, em que eu estive contra a luta. Recordo-me, não posso precisar o ano, mas eu já estava a tempo inteiro no sindicato, já era dirigente sindical a tempo inteiro, em que eu estava em Gouveia, porque nós, entretanto evoluímos de Sindicato dos Lanifícios para Sindicatos Têxteis da Beira Baixa, que passou a representar também os trabalhadores das confeções. Portanto, a dinâmica sindical acompanhou a dinâmica económica. Criámos o sindicato têxtil, que era mais do que os lanifícios, e fazíamos uma parceria com os sindicatos da Beira Alta. E tínhamos um jornal. Eu era o responsável por este jornal. Eu estava em Gouveia a reunir com os...
P: Era o Laneiro?
Luís Garra: Nessa altura, já era O Têxtil. Eu ainda fui responsável pelo Laneiro durante algum tempo, enquanto fui do sindicato dos lanifícios. Eu entrei para a direção em 1977/78. É uma questão de precisarmos melhor... Eu tenho aqui uma confusão de data, mas eu quando entrei para a direção do sindicato, fiquei logo com a responsabilidade do Laneiro e ainda fui o responsável pela sua edição e redação. A redação, quer dizer, não era eu que redigia tudo, mas de acompanhar a redação. E depois, quando criámos o sindicato têxtil, O Têxtil passou a ser o jornal da Beira Interior, Guarda e Castelo Branco. Portanto, eu estava na Guarda, em Gouveia, a reunir com os outros dirigentes do sindicato de Gouveia para prepararmos o jornal seguinte. Telefonam-me a dizer que ia haver um plenário na minha empresa, por causa de uma greve, porque o patrão não queria pagar nem o salário de Dezembro nem o subsídio de Natal. Enfim, só queria pagar 50% do salário de Dezembro e 50% do subsídio de Natal.
Eu vim para o plenário e já estava tudo em polvorosa, queriam greve. E eu estive contra aquela greve, porque eu defendia que primeiro devia-se receber o dinheiro que a empresa queria dar e depois é que se ia lutar pelo resto. Porque se assim não fosse a consequência ia ser o patrão já não pagar nem uma coisa nem outra, e nós, em vez de estarmos a lutar por 50%, estávamos a lutar por 100%. E procurei chamá-los à razão, àquilo que eu considerava a razão. Os trabalhadores foram a votação e eu perdi. E depois foi decidido fazer piquetes na empresa, para guardar, para não deixar sair o produto, ou o produto fabricado e eu, que estive contra a greve, lutei contra ela, mas a primeira pessoa a fazer o primeiro turno do piquete da greve fui eu.
Porquê? Achei que o facto de eu ter sido derrotado nas minhas posições não significava que eu não tivesse de cumprir com as decisões tomadas. Portanto, foi isto que eu passei a fazer. Mas estávamos a falar das lutas mais intensas.
Eu considero que a greve de 1981 ainda entra neste processo. Porquê? Nesta altura já era sindicato têxtil, portanto já não era sindicato dos lanifícios. Eu já era ao mesmo tempo coordenador da União dos Sindicatos e ainda não era presidente do sindicato têxtil. Era membro da direção em 1981. Se não estou em erro, já era vice, já era vice-presidente da direção do sindicato. É porque depois, em 1983, passei a presidente, mas em 1981 eu era vice-presidente e era coordenador da União de Sindicatos de Castelo Branco, desde 1979. Tinha 22 anos quando fui para coordenador da União dos Sindicatos de Castelo Branco.
A greve de 1981 foi provocada porque a associação Patronal ANIL, em Julho, toma a decisão de deixar descontar as quotas dos trabalhadores. E as quotas de Julho eram pagas em Agosto. Em Agosto, as fábricas estavam fechadas para férias, a maioria delas. Portanto, nós, na altura em que eles tomaram essa decisão, percebemos logo que ia haver qualquer coisa, porque aquilo foi conjugado em Agosto.
Em plenas férias aparece um acordo das associações patronais, assinado com o Sindetex, que era o sindicato paralelo e amarelo da UGT, e que nós classificámos que retirava cem direitos do contrato negociado em 1975. Cem direitos, claro que uns mais importantes que outros, portanto, mas retirava direitos. Em Setembro nós decidimos iniciar um processo de luta, que era uma greve de três dias por semana – terça, quarta e quinta. Trabalhávamos, porque, nessa altura, havia o perigo do desconto do fim de semana. Então nós, para não descontarem a semana toda, a decisão que tomamos foi, à segunda e sexta trabalhamos, já não mexem com o fim de semana e fazemos greve à terça, quarta e quinta. Isto desarticulava completamente a produção, porque à segunda-feira não se fazia nada. E à sexta também não, porque estava tudo desarticulado e nós só perdíamos três dias. Isto foi durante 29 dias.
Foi uma luta de 29 dias que suscitou a solidariedade de trabalhadores de todo o país, da siderurgia, dos pescadores, dos trabalhadores agrícolas do Alentejo, dali de Montargil, que vieram apoiar-nos. Porque nós estávamos numa greve muito dolorosa do ponto de vista financeiro, que se prolongou até Novembro e parou assim de uma forma um bocadinho abrupta. Por isso é que aí no guião fala em 28 dias, porque ainda houve um dia, para além dos 28, ainda houve um dia que foi feito, já em desespero de causa, por razões que não vale a pena estar neste momento a esmiuçar, já lá vai o tempo... Quem fazia os avisos era a Federação dos Sindicatos Têxteis, e, estranhamente, nós tomávamos a decisão de greve todas as semanas, ou seja, de uma semana decidíamos para a seguinte, em função do ambiente de greve que havia e não sei por que razões, eu calculo qual foi a razão, a Federação dos Têxteis, na última greve, em vez de marcar três dias, só marcou um. A partir daí, os trabalhadores que queriam três, só foi marcado um...
De qualquer das formas, o que é que nós conseguimos com essa greve? Foi que as empresas, individualmente, viessem assinar documentos com os delegados sindicais de cada uma das empresas e dizer que mantinham intactos os direitos do contrato de 1975. Ou seja, não conseguimos mais aumento, mas durante décadas evitámos a aplicação do contrato da UGT com os cortes de direitos. Portanto, só tem a ver com o processo revolucionário, porque foi uma greve que foi motivada, porque veio pôr em causa o contrato que conquistámos no ano imediatamente a seguir ao 25 de Abril.
P: Já me falou destas lutas grandes em torno do contrato coletivo de trabalho, especificamente a nível local. E no que diz respeito à estruturação nacional do movimento sindical, participou em congressos setoriais nacionais e internacionais?
Luís Garra: Eu participei, lembrou-me. Participei no terceiro Congresso da Federação do Sindicato dos Têxteis e em todos até ao último. Portanto, participei em todos os congressos da Federação dos Sindicatos Têxteis e nunca fui dirigente da Federação, embora tivesse envolvimento direto nos trabalhos da Federação. Portanto, como presidente do Sindicato dos Têxteis, eu participava regularmente em plenários e reuniões, em encontros, em conferências, mas nunca fui da direção. Por opção, porque entendi sempre, que eu era desde 1983 um membro do Conselho Nacional da CGTP e era coordenador da União de Sindicatos de Castelo Branco e sempre entendi que não fazia sentido estar a acumular tantas responsabilidades, que me iriam transformar num dirigente que eu sempre condenei, este tipo de prática sindical que é andar de reunião em reunião a passear conclusões, só a dirigir por cima…
Portanto, eu tive sempre uma conceção do exercício da ação sindical que é a de trabalho concreto no terreno. Ora, quem tem muitas, quem exerce muitas funções ao nível supra, falta-lhe tempo depois para o trabalho na base. E, portanto, entendi sempre que, apesar de muitas vezes solicitado para a direção da Federação, não foi por nenhum desprimor em relação à Federação, mas que havia outros dirigentes do sindicato que poderiam fazer melhor do que eu e foi isso que foi sempre acontecendo, até eu deixar de ser presidente do sindicato. Deixei de ser em 2017.
E, portanto, envolvi-me sempre muito no trabalho da Federação, no trabalho da CGTP. Por duas ou três vezes, pelo menos, me foi colocada a questão de eu ir a tempo inteiro para Lisboa, para a sede central e por razões várias não me senti em condições de ir e fiquei por cá. E não me arrependo. E nessa qualidade de dirigente sindical participei em múltiplas conferências, não estão todas, mas no guião que mandei estão algumas delas…
¬P: Eu gostava de aprofundar em relação a esta iniciativa específica, que é o Congresso, sobretudo neste período revolucionário. Depois de 48 anos em que não havia essa participação democrática, essa experiência de discussão coletiva, queria que me falasses de como foram estes primeiros congressos em que pessoas, dirigentes sindicais de todo o país, se juntavam para discutir questões sobre a economia do país...
Luís Garra: Ora, há um em que eu não participei, mas foi um encontro muito importante que, não tendo sido um Congresso, foi um encontro importante que marcou de uma forma muito clara aquilo que era a política dos sindicatos têxteis a nível nacional para o setor. Havia correntes de opinião muito fortes, que na altura eram muito ativas. Não digo fortes, mas ativas, muito ligadas àquilo que se chamava na altura o esquerdismo, que defendiam a nacionalização de tudo e mais alguma coisa. Estou a falar do encontro de Ofir, no qual eu não participei, mas li as conclusões. Porque foi imediatamente antes de eu vir para a direção do sindicato, não posso precisar o ano em que foi, mas deve ter sido por 1976/77. Esse encontro marca claramente que a Federação Têxtil não quer a nacionalização do setor têxtil e aponta claramente o caminho da reestruturação do setor e da valorização, já nessa altura, da valorização dos trabalhadores, dos salários, etc.
Eu depois, estava-me a esquecer, que participei não no terceiro, mas no segundo Congresso. Porquê? Porque quando eu venho para a direção do sindicato, para a Comissão Diretiva do sindicato, o Congresso da Federação Têxtil é realizado na Covilhã. E eu confesso que foi uma grande atrapalhação, porque nós estávamos na altura numa crise diretiva. Eu e mais cinco camaradas, ou mais quatro (acho que eram mais quatro), fomos para a Comissão diretiva e apanhamos com a preparação e a realização do Congresso em cima. Para mim aquilo era chinês, muito honestamente, era peixinho fora da água. Participei já nesse Congresso, que foi realizado num antigo teatro-cine da Covilhã e que culminou com uma grande iniciativa pública no chamado pavilhão da FAEC, da Feira das Atividades Económicas, que já não existe.
Participei nesse, deve ter sido o segundo, porque o terceiro foi em Guimarães. Não participei no primeiro, que foi o da fusão, porque havia duas federações: já havia a Federação dos Lanifícios e havia a Federação dos Têxteis e, portanto, depois as duas federações fundem-se numa e é nesse Congresso, neste segundo Congresso aqui realizado e que culminou com o comício nas FAEC, que é eleito o coordenador, aquele que foi durante muitos anos coordenador da Federação, o Manuel Freitas, que ainda hoje é da direção da Federação, embora já não sendo coordenador.
Portanto, os congressos foram sempre momentos muito importantes de afirmação da unidade do movimento sindical. Porque o movimento sindical têxtil é um movimento sindical com características muito próprias. Nós falamos do projeto unitário da CGTP, mas se nós queremos uma tradução mais real do que é o caráter unitário da CGTP, é olharmos para a Federação do Sindicatos Têxteis, onde coexistem todas as correntes.
P: Muito bem, estavas a dizer que os congressos eram muito importantes?
Luís Garra: É, porque afirmavam o caráter unitário, principalmente a questão da unidade dos trabalhadores e a unidade orgânica do movimento sindical. Estava a dizer que a CGTP tem a sua marca, é o caso do seu carácter unitário, mas na Federação dos Têxteis esse caráter unitário é muito expressivo. Porquê? Porque estão lá, têm expressão, todas as correntes de opinião que existem no movimento sindical, com equilíbrios muito, muito, complexos. E, portanto, os congressos eram momentos muito fortes, até do ponto de vista emocional.
Eu costumava dizer, mas não é caricatura, é verdade, ultimamente costumava dizer que os nossos congressos já não têm aquele sal que tinham os antigos, já nem se chora. Porque havia, de facto, momentos de grande tensão e muito emotivos, mas também uma afirmação da unidade muito forte. Quando chegávamos ao fim havia um trabalho para o consenso, para procurar linhas de consenso muito, muito fortes. E não havia aquela ideia de: “bom, vamos contar espingardas, temos a maioria, votamos, vota-se a favor, está resolvido”. Não, isso é fácil demais. Eu costumo dizer “fazer isso é fácil demais”, o que é difícil é trabalhar para o consenso, fazer aproximações. E, portanto, os congressos da Federação dos têxteis tinham essa característica.
Depois eram congressos muito difíceis, porque o setor têxtil é muito diversificado do ponto de vista das correntes ideológicas, mas é muito diversificado também de subsetor para subsetor. Falar de lanifícios não é a mesma coisa de falar do têxtil algodoeiro, como não é a mesma coisa de falar de calçado, como não é a mesma coisa falar de confeções ou de cordoaria. Portanto, são subsetores que têm muitas especificidades, muito próprias, e, portanto, que obrigam a que a Federação tenha de ter uma linha de intervenção adequada às especificidades de cada subsetor. Portanto, construir uma linha unificadora da ação, com situações tão diferentes, não era fácil e a Federação dos Têxteis foi conseguindo isso ao longo dos anos.
Os congressos eram momentos muito importantes para afirmar reivindicações e também afirmar modelos de reestruturação para o setor têxtil. Ainda andava muita gente a falar... ainda não se falava de reestruturação do setor e do que se falava era da liquidação do setor e já os Sindicato dos Têxteis, e agora falo também em particular do sindicato a que eu pertencia, aqui Têxtil da Beira Baixa, já nós tínhamos uma linha de intervenção no sentido de que o setor não estava condenado à liquidação, que o setor tinha futuro, que era preciso ser modernizado, que era preciso inovar o produto, os modelos de organização e os métodos. E que era preciso, acima de tudo, dar maior valor aos trabalhadores, à sua qualificação, mas também à sua remuneração.
Portanto, estas foram linhas de intervenção que foram sempre muito claras no nosso horizonte. Nós passámos aqui por vários momentos, muito conturbados em termos de trabalho, que era conciliar a aposta na ação reivindicativa para melhorar salários e combater a chaga do encerramento de empresas. Não é fácil trabalhar assim, porque o exemplo que passa para os trabalhadores que estão nas empresas que estão bem é: “Olha, vê lá o que é que está a passar naquela, também queres cair no desemprego?” Portanto, o contraponto não é um contraponto positivo, é um contraponto negativo. É nós nunca perdemos o Norte. Eu vou usar um palavrão, passo a expressão, mas adotamos aqui um lema do Marquês de Pombal, “tratar dos vivos, enterrar os mortos”, sem deixarmos de ter respeito pelos mortos.
Foi por isso que aqui nós, na Beira Baixa, ao mesmo tempo que nunca abandonámos a luta pela contratação coletiva, pela melhoria dos salários, nunca deixámos de acompanhar os processos de luta dos trabalhadores que estavam com salários em atraso, os que estavam noutras empresas, que estavam ameaçadas de encerramento, a luta pelo emprego, a luta pela laboração das empresas. E nunca deixámos de acompanhar os trabalhadores, mesmo já depois das empresas fechadas, de acompanhar os trabalhadores até ao momento em que tinham de receber os créditos laborais.
Portanto, isto pressupõe uma visão estrutural do que é a intervenção sindical alargada e em que uma questão não pode condicionar a outra e, portanto, o nosso discurso não é fácil. É difícil, por vezes, fazer passar a mensagem, quando o que nós temos à nossa volta é encerramentos, é desemprego, é dramas sociais.
Dizer aos trabalhadores das empresas, “mas isto não é convosco, é com os outros, vocês têm de continuar a lutar”, nem sempre é fácil, mas foi isso que nós fizemos. Não contou com total êxito, porque por isso é que nós somos setores muito assentes no salário mínimo nacional.
Não contou com total êxito, mas a avaliação não tem de ser tanto por aquilo que conquistámos, tem que ser mais por aquilo que evitámos. E o balanço que nós fazemos, e que eu faço, é um balanço, tendo em consideração a conjuntura em que nós trabalhávamos, consideramos que, apesar de tudo, resistimos e resistimos bem. Aliás, eu costumo dizer que este sindicato é um caso de estudo. Em condições normais, o sindicato têxtil da Beira Baixa não tinha razão para existir. Porque éramos 10000 trabalhadores em 1975, só nos lanifícios, agora são 3000-4000, já com as confeções, porque associamos as confeções.
No entanto, o sindicato têxtil hoje continua a ter direção e delegados sindicais. Não tem uma boa situação financeira, mas também não vive com a corda na garganta. Portanto, isto tem a ver com as opções que fomos fazendo ao longo dos anos. Isto não se consegue de ânimo leve. Nem sempre, ao nível nacional, na Federação dos Têxteis, isto foi suficientemente compreendido e houve regiões do país, onde tiveram igualmente problemas graves ao nível do encerramento das empresas, em que a prioridade foi toda dada para acompanhar estas empresas e desguarneceu-se as empresas que continuaram a trabalhar. E nós, por exemplo, hoje podemos dizer que as nossas posições sobre a reestruturação dos lanifícios deram resultado. Porque hoje os lanifícios não são um setor de mão-de-obra intensiva. Ainda não são totalmente de capital intensivo, mas já se aproximam muito. Ou seja, já têm níveis de rentabilidade e de produtividade muito elevados, mais elevados, por exemplo, que na confeção, porque a confeção ainda é um setor de mão-de-obra intensiva.
Portanto, nós não tivemos qualquer tipo de problema quando foi a questão da Integração dos têxteis nas regras da Organização Mundial do Comércio, que nós vimos que aquilo era uma machadada para o setor têxtil em geral e para os lanifícios em particular. Nós fizemos um memorando conjunto, subscrito conjuntamente com a associação patronal, a exigir à União Europeia, a exigir ao Governo português, medidas de apoio ao setor têxtil. Como foi o processo de reestruturação da indústria de lanifícios nos governos de Cavaco Silva? Houve três opções em cima da mesa: uma era salvar tudo indiscriminadamente; outra era salvar as empresas que estavam com dificuldades, que ainda tivessem viabilidade económica e financeira; e a terceira, salvar apenas as que já estavam bem. E nós sabíamos que não era possível salvar tudo. Tínhamos a plena consciência de que não era possível salvar tudo. Mas também sabíamos que aquilo que estava a ser trabalhado era canalizar os apoios financeiros apenas e só para as empresas que já estavam bem. Que ainda por cima eram as empresas que estavam na direção da associação patronal e que tinham ligação direta aos ministérios e que estavam em condições de apresentar as candidaturas aos apoios antes de todos os outros. E foi esta a opção que prevaleceu do Governo de Cavaco Silva. Era o Mira Amaral o ministro da Indústria e da Economia.
P: Podemos voltar um bocadinho atrás, não queria interromper o teu raciocínio, mas gostava só de perceber mais uma ou duas questões em relação ao período revolucionário, uma delas é que eu vi que houve algumas formações sobre o controlo operário...
Luís Garra: Sim, eu era da comissão de trabalhadores da empresa, que foi a impulsionadora deste processo. Eu era delegado sindical e quem era o nosso delegado sindical, que depois ainda passou pela comissão diretiva do sindicato que eu referi, mas nunca chegou a ser membro da direção do sindicato, era o Joaquim Pinto. Esse homem tinha muito jeito, muita aptidão para as contas.
E, portanto, os delegados sindicais e a comissão de trabalhadores da empresa onde eu trabalhava iniciaram o processo de controlo operário daquela empresa. Sabiam exatamente tudo o que se produzia, quando, quanto, para onde se vendia, como se vendia, quanto se vendia e, portanto, nós tínhamos uma informação rigorosa de qual era… Claro que isto deu lugar a experiências e, portanto, depois houve este tipo de iniciativas de formação operária, mas que foram muito influenciadas por essa empresa.
Aliás, a empresa, a Sá Pessoa, era muito referenciada por causa do controlo operário, mas houve outros que não tiveram o mesmo rigor do controlo operário, mas que também tinham uma intervenção que se aproximava. Por exemplo, na maior empresa na altura, que era a Nova Penteação, os delegados sindicais também exerciam uma função e depois houve aqui formação para o controlo operário, sim.
P: Em que consistia, quais eram os conteúdos?
Luís Garra: Eram muitos, eram os elementos elementares de economia, do processo produtivo, do processo de venda, a leitura dos mercados… Portanto, era muito assente em coisas muito rudimentares. Porque estávamos a falar com pessoas que tinham a quarta classe, não podiam ser cursos de profundidade. Mas dava-nos os elementos da análise económica e financeira mínima. Chegámos a ter dentro também do sindicato, havia capacidade financeira para isso, uma avença com uma pessoa ligada à área da economia, que também nos ajudava a ler os relatórios das empresas, os balanços. Tanto que nos permitia depois ter conhecimento sobre as empresas.
Bem, é aí, já não tanto de controlo em cima, porque, como sabes, do que estamos a falar é de controlo em cima no momento....
P: Detalha lá mais... Como é que aconteceu?
Luís Garra: Nós tínhamos força. Portanto, vamos lá ver, para haver o controlo operário é preciso haver força, porque nenhum patrão dá dados se não for obrigado e, portanto, como nós tínhamos muita força na empresa, os delegados sindicais exigiam que a própria empresa fornecesse os dados. Claro que alguns deles podiam estar até viciados, mas como depois este nosso delegado sindical, o [...], fazia um acompanhamento permanente do número de metros que eram tecidos, ele sabia dia a dia qual era o número de metros que eram tecidos. Portanto, depois conseguia ver se a bota batia com a perdigota e tínhamos esse controlo.
Não foi uma coisa que durasse muito tempo. E agora devo dizer que foi muito importante, falou-se muito, mas infelizmente, conforme a correlação de forças se foi alterando, as empresas passaram a resistir mais a dar os dados. A própria legislação, por exemplo, ao nível da segurança social, a legislação dizia que os quadros, as folhas de salários para a segurança social, tinham de ter o visto, a concordância, da comissão dos delegados sindicais. E, portanto, isto também nos permitia, por exemplo, ver o que é que é cada um ganhava, vermos também se o salário que cada um ganhava lá estava todo refletido na folha para a segurança social. A legislação, com Mário Soares, foi toda alterada. Deixou de ser obrigatória a assinatura e daí começaram a aparecer as dívidas à segurança social. Porque nessa altura nós só assinávamos quando víamos o cheque para segurança social. Nessa altura ainda era caixa dos lanifícios, a caixa de previdência do pessoal da indústria dos lanifícios. Nós, só quando víamos o cheque, é que assinávamos a ordem das folhas a seguir com o cheque. Portanto, isto evitava dívidas à segurança social.
A partir do momento em que Mário Soares, e outros que fizeram alterações, que os dados da segurança social passaram a ser sigilosos, etc., etc., tudo isso... Portanto, a alteração da correlação de forças levou também ao abrandamento e, também temos de dizer a verdade, isto não foi em todas as empresas, porque nem em todas as empresas nós tínhamos a mesma força que tínhamos naquela. E nem em todas as empresas tínhamos delegados com a mesma apetência que tínhamos naquela.
Portanto, isto dependia muito da aptidão, da vontade, da persistência. Esse homem era um homem muito vivo, ensinou-me muito.
P: E em relação à participação das mulheres? Estamos a falar de um setor com uma grande percentagem de mão-de-obra feminina, como é que foi a participação das mulheres neste processo, durante o período revolucionário, na vida sindical?
Luís Garra: As mulheres foram fundamentais na luta. Porque as mulheres tinham e começaram a ganhar força em termos de presença no setor dos lanifícios. Nas confeções não se discute, porque 90 e tal por cento são mulheres. Mas nos lanifícios houve todo um processo de entrada das mulheres no mercado de trabalho e teve muito a ver com a falta de mão de obra masculina, mas elas sempre entraram. Desde os anos 40, já havia mulheres nas empresas, mas depois a guerra colonial também trouxe, embora as mulheres estivessem geralmente em funções menos qualificadas. Portanto, é o que ainda hoje de alguma maneira acontece, e acontece uma coisa que hoje ainda existe e já existia nessa altura: é que podemos ter uma secção de 100 pessoas com 99 mulheres e um homem. O chefe é um homem. Portanto, foi sempre uma “guerra”.
Mas porquê? Mas porque é que tem de ser o chefe o homem? As mulheres tinham uma participação na vida económica, na vida da empresa, na atividade produtiva muito forte. Essa força traduziu-se na participação na luta, sempre, portanto, as greves atingiram quase 100%, sempre praticamente, porque as mulheres também aderiam. Ou seja, havia ali uma comunhão entre homens e mulheres na participação, na luta, que não tinha tradução na vida do sindicato.
Quando eu vim para o sindicato, em 15 dirigentes, havia duas mulheres. Esta situação foi-se alterando e hoje, eu não quero dizer que a situação seja de 50/50, mas se não é… E não houve nenhuma preocupação de cotas, foi uma questão perfeitamente natural, claro, pela entrada de mulheres. O facto de o sindicato deixar de ser só de lanifícios para ser também ser de confeções ajudou nessa transformação, não foi apenas os lanifícios, mas mesmo ao nível dos lanifícios, a partir de 1978 começaram a entrar mais mulheres nas direções. Progressivamente e, portanto, com uma inserção muito forte. Agora, nas lutas estiveram sempre.
Não seria correto da minha parte dizer que as mulheres eram um entrave ao desenvolvimento da luta. Pelo contrário, até tinha um problema, se havia era o contrário: é que às vezes custavam a entrar e depois quando entravam já era difícil sair. Eu confesso a minha experiência, para mim era muito mais difícil conduzir uma luta numa empresa só de mulheres, do que mista, de homens e mulheres, ou só de homens. É porque as injustiças que elas sentiam eram tão fortes, tão fortes, que quando decidiam aderir, e se depois, o resultado não era exatamente o que estavam à espera, era muito difícil convencê-las e dizer: “Pá, já temos aqui ganhos e tal, não sei quê”. Porque às vezes estávamos a entrar em becos sem saída, portanto, às vezes, os processos de luta estavam tão radicalizados que, se fossem prolongados por mais algum tempo, não havia saída. E, portanto, às vezes, é preciso saber capitalizar o que já se conseguiu para reagrupar forças para se conseguir o resto. Mas nem sempre se conseguiu, mas eu percebo esta atitude. é que: “bolas, nós demos tanto a isto e agora vamos sair sem conseguir tudo”. Era mais esta postura, mas no resto foi com muita facilidade.
Eu, para mim, foi extremamente fácil. Eu estou a falar dos têxteis, mas posso falar da União de Sindicatos. Quando entrei para a União de Sindicatos não havia uma mulher na direção e hoje são 40 e tal por cento e já chegaram a ser 51 ou já estiveram em maioria. Portanto, mas isto, volto a dizer, não foi uma questão de pôr jarrões a enfeitar uma mesa, foi um processo natural de envolvimento, participação, de responsabilidade.
P: E nos locais de trabalho? Ou seja, não assumiam posições na direção do sindicato, mas na organização das lutas, como delegadas sindicais?
Luís Garra: Havia algumas como delegadas sindicais, mas é como digo, a seguir ao 25 de Abril, elas eram mais de estar na luta do que ser delegadas sindicais. Isto depois foi um processo. Até porque a conciliação entre a vida pessoal e familiar, a própria compreensão dos homens em relação às tarefas da mulher… Uma mulher que viesse para o sindicato era olhada de esguelha, como se costuma dizer. Era apelidada de muita coisa: “Olha, lá anda ela no meio dos homens.” Estas coisas existiam. Portanto, foi preciso uma alteração muito forte de mentalidades, de culturas e, portanto, a participação delas na luta foi sempre superior ao envolvimento delas na direção da luta. Não porque elas não soubessem, mas porque havia todo um ambiente cultural que lhe era adverso. Portanto, e conforme fomos evoluindo, e ainda bem, isto foi-se alterando. Portanto, isto foi um processo.
O 25 de Abril, claro, foi fantástico também para esta abertura, este sentido de abertura. Repare que também referem aí no guião que havia uma comissão feminina. Sim, é verdade. Mas a comissão feminina, do meu ponto de vista, tinha um lado perverso. Que era a forma de as ter ali compartimentadas, mas que não faziam parte da direção do sindicato. Estavam ali compartimentadas para quê? Para organizar os lavores, os cursos de costura e de bordados. Quando cá cheguei ao sindicato, nós tínhamos a secção feminina com duas senhoras, uma que ensinava as mulheres a costurar e a outra a bordar. Foi uma guerra que vocês não imaginam para acabar com aquilo. Aquilo era profundamente sexista, do meu ponto de vista. Eu não pude fazer a abordagem na altura desta forma tão direta como estou aqui a fazer e tivemos de invocar dificuldades financeiras para manter aquela situação e tal, mas aquilo não era nada. Portanto, nós ganhámos mais mulheres a participar quando passaram a ser delegadas sindicais e passaram à direção do que quando era os lavores.
P: Já temos aqui umas incursões no período pós 25 de Abril, mas só para terminar aqui esta secção, quais são as memórias mais marcantes que tu guardas desse período?
Luís Garra: É a liberdade estar na rua, a gente sentir que tinha condições para conquistar direitos, para conquistar melhores salários, para conquistar dignidade, no fundo. É a gente poder sonhar. Sonhar que podíamos ter uma vida melhor, portanto, acho que no fundo foi isto, porque nós vínhamos de uma penumbra de uma vida sem perspetivas.
Eu tirei o curso de técnico têxtil, como trabalhador-estudante. E a seguir ao 25 de Abril envolvo-me diretamente na vida sindical e adeus à carreira profissional. Mas o que me estava reservado era ser um técnico têxtil, mas depois sujeito à subserviência perante o patrão. Era mais um lacaiozito. E o 25 de Abril abre-nos outro horizonte que, mesmo os técnicos passavam a ser eles próprios criativos, responsáveis, mas livres, e não terem de estar sempre sujeitos ali à tutela. Há sempre aqueles que gostam de andar curvados, mas isso é um problema já de cada um.
Agora a vida foi completamente distinta e é evidente que o processo de conquista é muito realizador do ponto de vista da satisfação das nossas necessidades, mas é que o processo de resistência também tem os seus encantos, os seus atrativos. Porque de cada vez que evitamos a perda de um direito é uma alegria incontida, sendo que quando a gente conquista todos sentem. Portanto, se conquistamos um aumento de salários, todos ficam satisfeitos, porque no final do mês sentiram um aumento de salário, não é? E quando nós evitamos a perda de um direito, ninguém sente. Portanto, é mais fácil para um dirigente sindical… é mais fácil o processo de conquista do que o processo de resistência. Mas também dá uma alegria imensa quando nós dizemos, “querias isto, mas não conseguiste”...
P: Então, passando para o período de resistência, nestes 47 anos de democracia houve outras lutas, se calhar agora lutas de resistência, quais é que foram aquelas mais relevantes já no pós 25 de novembro?
Luís Garra: Eu já referi a greve de 1981, essa é a marca. Depois, a ver se me lembro de oferecer um livro do Gabriel Raimundo que escreveu sobre essa greve. É um bocadinho ficcionada, mas tem alguns elementos de realismo sobre aquilo que se passou. Mas depois, essa greve tem uma característica, dado o processo repressivo que se abateu sobre ela. Porque as forças policiais carregaram sobre os grevistas. Houve tiros, houve pessoas feridas com tiros, houve perseguições de patrões a trabalhadores que culminaram com ferimentos de trabalhadores com tiros. E, portanto, foi um processo muito, muito complexo.
Eu, por exemplo, era o porta-voz da greve, não era o presidente do sindicato, mas era o porta-voz da greve e a partir de uma altura iam-me por a casa e iam-me buscar a casa, porque as ameaças sobre mim eram muitas, porque eu era a face visível da greve, embora houvesse dirigentes que tiveram um papel tão destacado ou mais do que o meu. A vantagem dos porta-vozes é que falam, mas depois estão os outros todos ali a dar a cara e o corpo à luta. Você vai entrevistar um homem que teve um papel destacadíssimo, que é o Ramiro Reis, um papel destacadíssimo nessa greve. Se calhar até um papel mais destacado na organização de piquetes, da resistência, do que eu, porque aquilo foi intenso. Eram três dias com piquetes de manhã à noite. Não se dormia. Ia-se à cama 2/3 horas. E era responder a comunicados uns em cima dos outros, contra informação, etc. Portanto, foi um processo muito, muito complexo e exigente, mas também muito formativo.
Mas dizia que essa greve, dado o caráter repressivo que teve, o movimento de solidariedade nacional que estabeleceu, deu confiança para que o movimento sindical tivesse as condições para que em Fevereiro se fizesse a primeira greve geral, em 12 de Fevereiro, de 1982. Foi a partir desta greve aqui, repare nesta questão, não é puxar pelos galões, nem sequer são galões pessoais, são galões coletivos: a greve dos mil escudos em 1974 abre caminho à fixação do salário mínimo, 3300 escudos. Foi essa greve. Eu acabei por não dizer, mas eu escrevi no documento que enviei, abre o caminho à fixação do salário mínimo, porque aqueles 1000 escudos davam exatamente, deram a força necessária às forças progressistas que estavam no governo, à esquerda, que estava no governo para criar e faixar o SMN. A greve de 1981, de resistência, já abre o caminho para que se convocasse a greve geral, com um objetivo muito claro, a demissão do Governo da AD. E é partir deste processo da greve de 1981 que se despertou e se criou as condições de confiança.
Mas a greve de 1982 coloca na ordem do dia a necessidade do desgaste do governo da AD. E cai o governo depois, mais tarde vem a cair. Portanto, isto enche-nos um bocadinho, e desculpem lá, enche-nos um bocadinho o ego. Principalmente porque estivemos no processo e tínhamos consciência do que é que estávamos a fazer, de que esta greve de 1981 tinha um simbolismo muito forte de resistir contra a retirada de direitos conquistados no 25 de Abril. O contrato de 1975 tinha esse simbolismo, mas também tinha esta dimensão mais política.
A estrutura da CGTP foi importante porque a partir do momento que criou o Conselho Nacional, com praticamente todos os coordenadores das uniões, das federações e dos sindicatos nacionais e outros dirigentes, passou a ter uma informação muito mais próxima daquilo que era a realidade do todo nacional. E, portanto, eu sinalizo estas alterações também como muito importantes no trajeto, na afirmação do projeto unitário e na natureza de classe e de massas do movimento sindical. Acho que isto foi muito importante.
Eu lembro-me que nós, no início deste processo, nos primeiros anos em que eu fui membro do Conselho Nacional, dos anteriores eu não posso falar, mas nos primeiros em que eu fui membro do Conselho Nacional, a ideia que eu tenho era de debates muito fortes, muito intensos, discutia-se à vírgula. Porque nós estávamos a construir os enunciados teóricos e programáticos da CGTP.
Porque aquele processo revolucionário permitiu fazer um caminho e aquilo que está escrito hoje também é o resultado da resistência ao fascismo, do processo revolucionário e depois aquilo vai traduzido para o acervo de orientações que hoje a CGTP tem. Mas lembro-me perfeitamente que eram reuniões quase intermináveis, muito desgastantes. Às vezes duravam dois ou três dias, pela noite dentro. Porquê? Porque nós estávamos a construir, sem aquela preocupação de uns imporem aos outros uma orientação, estávamos a construir, preocupados em encontrar as melhores soluções que nos unissem. Eu já não passei por aquela fase, daquela guerra da unicidade. Passei aqui, mas não na CGTP. Passei por esta fase, mais de construção do acervo teórico e de orientações programáticas que nós hoje temos e os momentos em que foi preciso definir linhas de confrontação com o poder político e com o capital.
Aliás, o poder político interpretou sempre os interesses do capital. Nós às vezes dizemos, o poder político e o capital, quando eles no fundo atuaram sempre, às vezes com nuances, dependendo de quem estava no governo, mas no fundamental era uma grande articulação entre o poder económico e o poder político. Ainda hoje essa promiscuidade é uma coisa horrível. Eu hoje sei muito mais dessa promiscuidade do que sabia nessa altura e o que eu hoje vejo, essa promiscuidade, é uma coisa que ofende. Mas esta questão do confronto com o poder político e com o poder económico foi sempre uma questão e, aí, tenho que dizer a verdade: foi sempre possível, mesmo quando era o Partido Socialista sozinho, acompanhado, geralmente mal-acompanhado, que estava no governo, os dirigentes sindicais que tinham como filiação partidária, e ainda têm, o Partido Socialista foram importantes no sentido em que entre o partido e os trabalhadores puseram os trabalhadores à frente. Claro que procurando mitigar sempre o confronto com o partido que estava no governo, mas fazendo uma opção de classe muito forte.
Eu retenho com uma grande saudade aqueles dirigentes sindicais que eram militantes do Partido Socialista e que foram fundadores, criadores da CGTP, e que são construtores deste projeto. Porque foram muito importantes no combate ao divisionismo sindical. Muito importantes. É claro que todos, todos os que lá estivemos, fossem comunistas, fossem socialistas, fossem católicos, fossem de outras correntes, todos eles, foram todos importantes. Mas estes, até pela própria natureza da criação do divisionismo em Portugal, da UGT, dos aliciamentos e até dos impulsos e das pressões que sofreram para irem para a UGT, e eles, ao fazerem a opção pela CGTP, também ajudaram a construir o projeto unitário.
E eu creio que isto é muito importante e eu acho que este projeto, poderei até ser injusto na apreciação que vou fazer, mas se há projeto útil, belo, que foi construído em Portugal é a CGTP. É um projeto de uma criatividade que é distintiva no plano europeu. Eu conheço alguma coisa da construção do movimento sindical europeu. Estive no congresso que decidiu a adesão da CGTP à CES (Confederação Europeia de Sindicatos), o Congresso em Bruxelas. E, portanto, conheço alguma coisa do movimento sindical europeu. Não há um movimento sindical com estas características na Europa, porque nasceu da base. Não é um prolongamento dos partidos, deste ou daquele. É um projeto que é essencialmente unitário, em que os seus dirigentes têm todo o direito a ter partidos, como é óbvio, e ainda bem que fazem opções, eu tenho a minha também, mas isso não dilui esta importância do projeto unitário da CGTP.
P: Queria voltar mais uma vez à questão de género, agora, já pensando nesta evolução. Na pesquisa que fiz, verifiquei que no setor têxtil especificamente foram desenvolvidas algumas iniciativas: houve um encontro da mulher na indústria têxtil. Gostava de perceber como é que foi vivida essa evolução? A luta das mulheres pela igualdade salarial, por exemplo?
Luís Garra: Quando há pouco falava neste processo, entram estas iniciativas todas, que não foram todas apenas no distrito de Castelo Branco. Houve iniciativas de encontros unitários de mulheres que não eram propriamente organizadas pelo movimento sindical, mas onde o movimento sindical também estava. Houve esse encontro que refere, e, portanto, tudo isto faz parte do processo de alteração de mentalidades que foi sendo construído. Embora eu continue a dizer que o maior contributo que foi dado para esta alteração de mentalidades foi o da prática. Porque os encontros são importantes, porque sinalizam orientações, sinalizam objetivos, mas só por si não resolvem, pois é preciso no terreno trabalhar para isso. Eu valorizo muito o trabalho feito no terreno, quando se elegem mulheres para delegadas sindicais, quando se convidam mulheres para as direções sindicais, quando se dão responsabilidades às mulheres. Não apenas serem membros da direção, mas depois deixa lá, está lá, está lá, não sei quê e tal, mas não se dão responsabilidades. Por exemplo, hoje a presidente do sindicato têxtil é uma mulher. Fui substituído por uma mulher, portanto, este é que é o processo.
Os encontros são muito importantes. Eu não estou a desvalorizar, até porque ajudei a organizar alguns, mas depois é preciso que haja trabalho no terreno e que isso passe a ser uma opção e não uma obrigação. Quando a gente faz as coisas por obrigação é uma chatice, parece que estamos a fazer um favor. Não é uma opção. Se as mulheres têm uma presença forte nas empresas, no trabalho, isso tem de ter tradução nas responsabilidades ao nível sindical. Isto é que tem de ser feito. E não foi preciso andar a dizer “sai um homem para entrar uma mulher”. Não foi preciso.
As coisas apareceram, foram evoluindo naturalmente, mas lá está, a opção força. Quando se toma uma opção, naturalmente está-se a forçar as decisões.
P: A outra questão que eu também gostava de perceber melhor é como é que se desenvolveu a articulação entre o movimento sindical e os outros movimentos associativos?
Luís Garra: A cooperativa era a da Nova Penteação, era de uma empresa. Houve uma cooperativa de consumo, mas estava ligada a uma empresa que era a Nova Penteação. Houve até duas, houve uma outra, também na Lanofabril. Eu não tive uma vivência muito forte a esse nível.
P: Mas considerando a tua vivência no movimento associativo em geral, a relação entre o movimento sindical e os outros movimentos associativos?
Luís Garra: Nós tivemos sempre uma relação estreita com o movimento associativo. Porquê? Porque a origem do movimento associativo na Covilhã tem uma componente operária muito forte derivada da própria morfologia da Covilhã. Repara: GER Campos Mello, no cimo da Covilhã, GER quer dizer Grupo Educação e Recreio; GIR do Rodrigo, Grupo de Instrução e Recreio, na parte baixa da cidade. E depois tínhamos as coletividades no centro da cidade, a Banda, o Oriental de São Martinho e depois aquelas já no tempo do fascismo, através daquelas coisas da FNAT, multiplicaram-se em uma série de bairros e freguesias. Mas mesmo essas eram espaços do convívio dos trabalhadores, que não tinham televisão, que não tinham casa de banho, era lá que tomavam banho. Era lá que jogavam às cartas, era lá que também conversavam sobre a vida, sobre a vida dura que tinham.
E, portanto, dado que o sindicato é uma instituição (isto pode ferir os ouvidos dos mais puristas ideológicos), mas eu não tenho problemas que os sindicatos sejam uma instituição da Covilhã. Como, por exemplo, tínhamos uma delegação no Tortosendo, que era uma instituição no Tortosendo. Tínhamos mais a delegação de Unhais da Serra, que era uma instituição em Unhais da Serra. Tínhamos uma delegação em Cebolais de Cima, que era uma instituição em Cebolais de Cima. E eu quero dizer que sou daqueles que defendo que o movimento sindical deve estar implantado nas empresas, os seus espaços prioritários de ação são as empresas, mas é importante que esteja também implantado nos meios em que se insere.
Isto é o tal caráter de instituição, e instituição não significa aculturação, nem significa submissão ao poder. Mas respeito do poder por esta instituição. Portanto, foi assim que eu sempre concebi. Isto vem de antes e manteve-se: o sindicato é reconhecido institucionalmente, está ali a medalha de mérito municipal dado pela Covilhã, pela Câmara da Covilhã. E, portanto, esta ligação, este conceito de instituição, implica ter uma ligação estreita com as coletividades. Por isso somos sócios do INATEL, o sindicato é sócio do INATEL e faz iniciativas com as coletividades e tem relações de cooperação com as coletividades. E, portanto, nós achamos que esta ligação é muito importante, até pelo cordão umbilical que nós temos com elas e elas connosco.
P: E também pela própria multiposicionalidade dos dirigentes, não é?
Luís Garra: É o meu caso, então.
P: O que é que essa realidade de seres dirigente quer sindical quer da coletividade influi na articulação dos movimentos? Ou seja, o facto de haver muitos dirigentes que são simultaneamente de uma coisa e de outra, isso determina um caráter quase conexo aos movimentos?
Luís Garra: As vantagens, o que vem daí, é que nós aprendemos com um movimento associativo de base. Com as coletividades aprendemos muito, no relacionamento, nas relações interpessoais, nas dinâmicas locais e trazes para os sindicatos esta experiência e nós levamos para as coletividades uma conceção de organização de trabalho, de conceito de trabalho coletivo que eles não têm muitas vezes. Eu noto, quando entrei naquele mundo, que todos falavam ao mesmo tempo, não havia ali uma linha de condutora. Eu sabia o que queriam, mas era tudo um bocadinho anárquico e, portanto, a nossa forma de trabalhar mais programada, mais organizada, ajuda também as coletividades. E, portanto, eu acho que há aqui uma reciprocidade, um levar e trazer no bom sentido, que é muito importante. E por vezes nós conseguimos introduzir nas coletividades, não sei se se passa assim a nível nacional, aqui há muito esta ideia de “política não entra” e nós temos formas, até pela nossa experiência de trabalho unitário com os trabalhadores todos, tenham eles a filiação partidária que tiverem, nós depois temos uma capacidade de levar a política não no sentido partidário, mas no sentido dos princípios, para dentro das coletividades, sem rupturas, sem conflitos.
E, claro, nós aprendemos muito nas coletividades. Nas coletividades nós temos uma sensibilidade para as fragilidades, os dramas sociais, que nas empresas por vezes não se manifesta. Nas empresas o que se manifesta é a compra e venda da força de trabalho, das injustiças que ali se geram, mas depois a tradução para o meio onde vivem só se consegue apreender quando estamos junto daquela malta toda. Portanto, às vezes apercebemo-nos de dramas de que não temos noção.
P: Para além dessa dupla participação associativa, também vieste a assumir cargos políticos, depois do 25 de Abril, nomeadamente na autarquia. E como é que é essa relação entre a atividade associativa e a atividade política?
Luís Garra: Do ponto de vista da compreensão pública não é fácil. Porque a ideia de que os sindicatos são dos comunistas, que é a voz corrente, acentua-se de cada vez que os seus dirigentes mais destacados, como era o meu caso, assumia responsabilidades de cariz partidário. Portanto, do ponto de vista prático essa ligação teve alguns problemas. Agora o que nós, o que eu tinha de resolver sempre, era como é que eu falava com os trabalhadores. Qual era a minha posição perante os trabalhadores. E, portanto, aquilo que procurei gerir foi: primeiro, o ter partido é um direito constitucional, que não pode ser negado, senão está-se a violar a Constituição da República. Porque a Constituição diz que os cidadãos podem, as pessoas podem estar filiadas em partidos. Se me estão a dizer que porque sou sindicalista não posso ter partido estão-me a retirar direitos. Implica essa explicação mais pedagógica do ponto de vista político.
Depois, provando que quando eu estava na atividade política não estava a fazer mais do que levar para o plano político os problemas que eles me colocavam no plano social, no plano laboral e no plano sindical. Foi difícil ao princípio, depois as coisas foram sendo percebidas. Mesmo quando deixei de ter este tipo de responsabilidades políticas, porque hoje sou militante de base, não há essa figura, mas não tenho cargos de direção no partido, mas sou militante do partido, como é óbvio. Mesmo nessa altura, quando deixei de ser dirigente do partido, também ninguém me veio perguntar porquê. Ou melhor, quando deixei de ser, não foi por razões sindicais, foi por outras questões que não têm a ver com o movimento sindical. Portanto, essa questão está perfeitamente resolvida.
Do ponto de vista pessoal e do ponto de vista sindical, eu costumo dizer aos dirigentes que um dirigente sindical, pela sua própria função, só consegue ter uma visão transformadora da sociedade se tiver uma boa base de formação ideológica. Porque senão está um misto entre o revoltado e o revolucionário. E os revoltados não fazem revoluções, os revoltados não transformam coisa nenhuma. Quem transforma são os revolucionários e para ser revolucionário tem de ter incorporado em si uma base ideológica.
E quem é que pode dar este suporte ideológico? Quem pode dar este suporte ideológico são os partidos e, no caso concreto, dada a natureza de classe do movimento sindical, o único partido que está em condições de dar uma base ideológica de classe é o PCP. Pela sua própria natureza e pela própria origem do PCP, que nasceu do movimento sindical. Estou a falar do PCP português, não estou a falar dos outros, eu comparo-me é com o partido. Eu costumo dizer, eu usava uma expressão quando foi aquilo a Leste: “Eu estou a Leste do Leste pá. Desculpem lá: eu não fui para o PCP por causa da Rússia nem da União Soviética. Eu fui para o PCP, por aquilo que o PCP era, mais nada”.
Claro que isto é uma forma de dizer, que eu estive lá e sofri a bom sofrer. Eu acho que o sindicalismo me deu uma base para ter intervenção, ação, o partido deu-me a base ideológica para fazer essa ação com sentido transformador. Depois eu fui candidato a deputado como cabeça de lista três vezes, fiz parte da lista uma vez sem ser cabeça de lista, fui candidato à Câmara Municipal, fui presidente da Assembleia de Freguesia e estive mais, para além destes quatro anos como presidente da Assembleia de Freguesia, estive mais de oito anos como membro da Assembleia de Freguesia, na freguesia onde eu vivo. Estive 19 anos na Assembleia Municipal da Covilhã.
Tudo isto foi feito em simultâneo com a vida sindical, com responsabilidades sindicais. Portanto, tive de ter a capacidade de saber fazer muito bem a separação de quando estava a falar o Luís Garra em nome do partido e o Luís Garra em nome do sindicato. Nem sempre é fácil, confesso. Houve ali uns momentos em que às duas por três se gerava a confusão, mas a gente tem que ter o equilíbrio. Se me perguntarem, se eu estivesse noutra região, com maior influência, mais quadros, provavelmente não teria sido necessário fazer este trabalho, desta forma, porque com mais quadros, mais diversidade de tarefas, eu poder-me-ia manter concentrado apenas naquela que mais gostava, que era a tarefa sindical. Estava-me a esquecer, fui também, durante não sei quantos anos, eu tenho escrito, membro do Comité Central do PCP, portanto, estive ainda bastantes anos, saí em 2012.
P: Só para terminar esta secção sobre a tua experiência pessoal, diz-me só de que forma é que achas que esta participação associativa mudou a tua vida?
Luís Garra: Vamos lá ver. Eu não sei. É difícil responder, porque a gente não sabe se não tivesse sido, o que é que eu teria sido. É a vantagem dos historiadores. Portanto, como é que eu vou responder a isso? Eu provavelmente, dado o meio em eu fui criado, um meio pobre, mesmo o lugar onde fui criado era de muitos excluídos, de marginalidade. Provavelmente, se não tem sido esta minha, senão tem sido o 25 de Abril, a minha vontade no fundo de estudar, de estudar também. Porque eu esqueci-me de dizer que tinha tanta vontade de estudar que a minha primeira vocação foi ir para padre, mas depois não fui. Depois disse que não queria ir.
Mas se não tem sido isso, eu provavelmente seria mais um daqueles cidadãos que trabalham, vão para o café, jogam às cartas, têm vícios, outro tipo de vícios. Portanto, a inserção na vida política partidária, a inserção do movimento sindical, a inserção no movimento associativo, deu-me uma dimensão… não me deu riqueza financeira, não permitiu que eu trabalhasse na profissão para que estudei, que era bem remunerada na altura, como técnico têxtil era muito bem remunerado, mas deu-me uma riqueza que de outra maneira não teria, que é a riqueza, primeiro das relações humanas, da perceção do outro e desta possibilidade de estudo permanente, de estudo nalguns casos empírico, noutros casos, porque as responsabilidades obrigavam a ler, a estudar, a interpretar.
Permitiu-me um contato com pessoas de outra cultura, de outros graus académicos, que de outra forma, não teria. Isso é impagável. Isso não tem preço. Portanto, são os tais bens imateriais, não é assim que se diz? São os tais bens imateriais que a gente tem e que não são contabilizáveis. Eu acho que isto foi o melhor que me aconteceu. Do ponto de vista pessoal, alguns dizem: “Olha, foi o pior que te aconteceu, porque perdeste uma carreira profissional muito forte”. E eu, que sou desprendido dos bens materiais, digo que este foi o maior bem que eu tive.
Não estou absolutamente nada arrependido, para desgosto de alguns familiares, nomeadamente a minha companheira, que gostaria e tem direito, teria direito naturalmente a ter outro tipo de vida. Foi uma vida intensa, multifacetada, cheia de grandes experiências, de grandes momentos, de solidariedade. Também de algumas facadinhas, mas isso faz parte da vida, algumas traições. É isto tudo que nos constrói como seres humanos.
Neste momento já estou numa fase mais liberta, ainda tenho responsabilidades nos sindicatos e na União dos Sindicatos, embora já não sendo nem presidente nem coordenador, mas continuo a dar a minha colaboração, contínuo a ser dirigente associativo e estou sempre com projetos para o futuro. Portanto, precisamente porque adquiri esta formação. Isto foi fruto de quem? De todos aqueles com quem trabalhei, todos mesmo, mesmo alguns que disseram mal de mim, porque também esses me ensinaram. Portanto, todos, isso é fruto disso.