Item

Mário Abrantes da Silva

Nome do entrevistador/a

Joana Dias Pereira

Local

Ponta Delgada

Data

Junho de 2022

Nome do entrevistado/a

Mário Abrantes da Silva

Nome do entrevistado/a

Mário Abrantes da Silva

Data de nascimento

1950

Local de nascimento

Lisboa

Profissão dos pais

O pai era militar

Escolaridade

Licenciatura em Silvicultura no Instituto Superior de Agronomia´

Local de residência

Ponta Delgada

Situação civil

Casado

Profissão

Funcionário do Partido Comunista Português

Filiação partidária

Militante do PCP

Sinopse da entrevista

Relata o seu processo de politização no quadro do movimento estudantil, a sua participação na Ação Revolucionária Armada e a sua prisão antes do 25 de Abril. Testemunha ainda a sua intervenção política enquanto funcionário do Movimento Democrático Português, durante o processo revolucionário, e depois como funcionário do PCP, em diferentes regiões, nomeadamente na Azambuja e em São Miguel, Açores.

Palavras-chave

Testemunho

P: Como estava a dizer, a minha ideia é perceber a história de vida das pessoas e por isso perguntava em primeiro lugar onde e quando é que nasceste?
Mário Abrantes: Nasci no hospital militar principal em Lisboa, mas era residente em Aveiro na altura, em 1950, a meio do século passado. Era filho de militar e o meu pai andou a saltar de um sítio para o outro, portanto eu fui atrás, ao princípio. Fui para Macau com 6 anos de idade, estive 3 anos em Macau, depois de Macau fui para, agora não sei bem a sequência, mas andei por Mafra, Portalegre, Elvas, Évora e Estremoz. Onde estive mais tempo foi em Estremoz. Depois estive em Moçambique, em Angola, nas comissões que ele fazia quando tinha comissões, durante a guerra. Depois, voltei para Lisboa e entretanto estava a estudar em agronomia, no Instituto Superior de Agronomia. Entretanto, antes do fim do curso, envolvi-me em atividades políticas consideradas lesivas dos interesses do Estado e fui preso antes do 25 de Abril, em 1973, antes de acabar o curso. Saí no dia 27 [de abril], que não foi a 25, foi a 27 de madrugada.
P: Estavas onde?
Mário Abrantes: Estava em Caxias e saí a 27 de madrugada. Depois acabei o curso nessa altura, mas entretanto aquela onda logo a sair ao 25 de abril levou-me atrás. Entrei para o MDP e, não sendo filiado, participei politicamente em atividades relacionadas com a atividade do PCP.
P: Diz-me só uma coisa, os teus pais eram de esquerda?
Mário Abrantes: Não, não, os meus pais eram adeptos ferranhos do regime, qualquer um deles.
P: E tinha as irmãos?
Mário Abrantes: Tinha 10 irmãos, neste momento estão 8 vivos. Éramos 11 e agora tenho 8 irmãos vivos, comigo somos nove neste momento.
P: E os teus irmãos também se envolveram em questões políticas?
Mário Abrantes: Sim. Há um que já não é vivo e logo a seguir ao 25 de abril esteve ligado à UDP. Mas esteve envolvido em grandes atividades políticas. De resto, as minhas duas irmãs, logo a seguir a mim na escala hierárquica da minha família, a mais velha, logo a seguir a mim, também esteve a envolvida em movimentos associativos e também esteve presa antes do 25 de Abril. Saiu um bocado antes do 25 de Abril, esteve pouco tempo, ela e o meu cunhado. E depois a minha outra irmã a seguir é essa, é que foi mais ativa e esteve ligada a várias organizações, todas elas ligadas ao Partido. Acabou na Guiné, trabalhou com o Nino Vieira na Guiné. Esteve dois ou trê anos na Guiné, depois veio para cá e trabalhou no movimento sindical também durante muitos anos. Atualmente está reformada e faz a sua vida própria. Envolvidos em política, à esquerda, não tenho mais ninguém. De resto, os outros meus irmãos, tenho o mais velho de todos que vive no Porto, e que é um homem que é militar, traumatizado pela guerra colonial e de direita e depois tenho os outros meus irmãos cuja opção política, há um que eu conheço, que é simpatizante do PSD, os outros não sei bem o que são, nem o que não são. É isto sobre a família, em termos de ligações políticas.
P: E o teu envolvimento foi no movimento estudantil?
Mário Abrantes: Não, o meu envolvimento foi simultaneamente no movimento estudantil e clandestinamente num movimento patrocinado pelo Partido, mas que não era só composto por gente ligada ao partido, que era a Ação Revolucionária Armada, de que eu fazia parte mesmo sem estar ligado ao Partido. Era um dos que não estando ligado ao Partido estava. Foi esse meu envolvimento que me levou à cadeia, porque quanto ao resto era na Associação dos Estudantes de Agronomia. Estive muitos anos ligado à associação, como ativista da associação, recusando-me sempre a ir para cargos diretivos, era responsável da secção sonora do da Associação dos Estudantes do Instituto do Superior de Agronomia.
P: E o que foi primeiro? Foi primeiro o envolvimento Estudantil?
Mário Abrantes: Sim, foi através do envolvimento do movimento estudantil que comecei a minha politização. A minha politização propriamente dita começa numa data concreta, em 1967, quando foram as cheias. O movimento associativo participou ativamente no socorro e no apoio às vítimas das cheias, nos bairros de lata de Lisboa fundamentalmente, e eu participei em algumas ações dessas levadas a cabo porque tinha acabado de entrar para a associação e tinha começado a trabalhar na associação, embora sem intenções políticas de outra ordem. Não tinha intenções políticas nenhumas, estava lá até porque gostava muito de fazer bonecos e desenhar e gostava muito de pôr música e de música. Estava na secção sonora e fazia publicidade e propaganda lá, fazia cartazes. Mas entretanto meti-me na cheias e depois de sair das cheias é que percebi bem onde estava metido. Porque até lá a minha cultura política era a que os meus pais me tinham transmitido praticamente, embora com algumas reservas, mas no fundamental aceitava a situação. Depois é que comecei a perceber a partir dali.
P: Como foi essa experiência tão marcante das cheias?
Mário Abrantes: A experiência das cheias foi ver como é que aquela gente todo vivia, não era preciso dizer mais nada, e as condições de vida que tinham e pelo que passavam antes, antes das próprias cheias, e a falta de apoio público que tiveram. Deixaram-nos morrer praticamente, muitos deles morreram por falta de socorro, por falta de apoio, e a partir daí, juntamente com os meus outros camaradas ou colegas da associação, começamos a participar em ações de contestação estudantil ao governo e à ditadura, a partir daí mais ou menos. Eu comecei a participar, com os meus colegas da associação, que eram mais velhos que eu e já participavam antes das cheias. Mas eu entrei foi nessa altura e a participação começou aí.
P: Isso foi em 1967?
Mário Abrantes: A partir de 67 e nunca mais parou.
P: E depois foi a crise de 1969...
Mário Abrantes: A crise de 69 e as eleições. Andei a fazer Campanha pela CDE. Participei em tudo o que era movimentos estudantis, eu participava em manifestações estudantistas, participava... Era isto. Até que, por via disso tive um contacto. Eu tinha cá as minhas ideias, esquerdistas na altura. Portanto, em Agronomia defrontavam-se duas correntes ideológicas, a ligada ao Partido Comunista e uma ligada ao esquerdismo e ao maoísmo.
P: MRPP?
Mário Abrantes: Não, maoísmo, mas sem ligações partidárias. Portanto, todos aqueles que passaram por ali, naquelas listas daquela associação, e que eu apoiava embora não fosse da direção. Havia um casal... E esses é que eram mesmo maoista, mas não eram MRPP. Eu acho que eles estavam, embora nunca tivessem dito, mas eu acho que eles estavam ligados ao Partido Comunista Reconstruído, ou um movimento qualquer de reconstrução do Partido Comunista maoísta. Aqueles com quem eu me dava mais, era pessoal, que: Sim senhor o Mao Tsé Tung, o maoísmo e não sei o quê, a Rússia é social imperialista e não sei que mais, mas não eram filiados em nenhum partido maoísta. E até, se queres que te diga, a ideia que eu tenho, é que nem sequer maoístas eram, devido à evolução futura deles. Um deles era Guineense, foi para a Guiné e era um homem do PAIGC. O outros eram também gente ligada aos movimentos de libertação.
P: Havia muitos estudantes das ex-colónias?
Mário Abrantes: Sim, em agronomia havia bastante e eu também, porque tinha estado em Angola e o primeiro ano foi em Angola. Foi quando se abriram os estudos universitários de agronomia e silvicultura, porque eu sou silivicultor. Foi em Angola que fiz o primeiro ano e depois vim para cá com uma série deles e estive até num lar chamado Lar Ultramarino, que era perto de agronomia, com uma série deles que vieram de lá. Em geral era a malta de direita. Era tudo gente ligada aos colonos. Eram brancos. Havia um negro, mas eram um negro branco. Eram os meus colegas, com quem eu vim de lá. Também aí as minhas ligações, como vez, eram para o outro lado completamente
P: E depois, estavas a dizer que tiveste um contacto nessa altura...
Mário Abrantes: Eu tive um contato, porque eu procurava esses contactos, com descrição, mas procurava. Porque nós iamo-nos desenvolvendo ideologicamente. E, portanto, aquela ideia da necessidade da luta armada, de ser contra o regime, que chegou a altura, isto era objeto de debate, objeto de discussão, de conversas entre nós na associação. Isto tudo ao nível da associação, embora de forma mais reservada. Até que há uma altura em que alguém que estava ligado também à associação me faz o convite para participar e eu aceitei.
P: E o que é que fizeste para ser preso?
Mário Abrantes: Participei em algumas ações da ARA - duas. Não tive tempo para mais porque aquilo foi rápido. Fomos presos em 1973, eu tinha entrado em 1972 talvez, então não tive tempo para fazer muita coisa.
P: Estiveste preso em Caxias? E foi duro, foste torturado?
Mário Abrantes: Se calhar não foi tão duro como outros, porque o meu pai era coronel nessa altura, já era coronel de cavalaria. E o regime já não estava com aquela força, nessa altura. Portanto, o problema das forças armadas, estás a ver? Tinham alguma reserva. Então, eu cheguei a ser torturado, estive sem dormir quatro noites, estive um dia e meio, quase dois dias, sem me sentar, mas não me deram porrada, não levei porrada. Acabei por confirmar as acusações que me eram feitas. As acusações que me eram feitas foi ter participado nisto, nisto e nisto. Portanto, eu tive ao todo duas semanas de interrogatórios, com interrupções, e passei ao todo talvez quatro noites sem dormir, depois mais uma. Depois fizeram-me vários convites para denunciar: Que me ofereciam uma passagem de avião não sei para onde, que eu passava a ter uma vida nova, enfim, uma identidade nova. Essas coisas todas que eles faziam com o pessoal, mas isso aí não….Nem tinha grandes condições para denunciar ninguém, a não ser mais duas pessoas que eu tinha convidado formalmente em agronomia, meus colegas, mas nunca referi nada a isso.
P: E depois, foste liberto em 1974.
Mário Abrantes: Fui liberto em 1974, na madrugada de 27 [de Abril].
P: Como é que foi o 25 de Abril dentro de Caxias?
Mário Abrantes: O 25 de Abril dentro de Caxias foi uma coisa… Não tínhamos datas, mas de alguma forma já tínhamos noção de que poderia acontecer qualquer coisa do género, não tínhamos era a Certeza. Porque sabíamos que nas forças armadas se passavam coisas que podíam desencadiar uma ação armada para derrubar o regime. Não sabíamos, era, porque havia duas correntes, qual dessas correntes era dominante na altura, se era a do Kaulza de Arriaga, se era a corrente progressista que depois se veio a afirmar como movimento dos capitães. Sabíamos que havia uma corrente progressista, não sabíamos como é que estava organizada. Portanto, íamos comunicando, íamos informando, até que um dia a gente teve conhecimento por fora, porque a gente tinha contactos externos nas visitas, que tinha havido de facto um levantamento. Tinha havido um levantamento, mas não sabíamos ainda bem que tipo o levantamento era, porque entretanto, entraram pela cadeia dentro, os paraquedistas, os paraquedistas ocuparam os postos todos da GNR. Ora os paraquedistas, a gente tinha a ideia de que era uma tropa muito ligada à direita, portanto ficámos à rasca. Barricamo-nos nas celas para não deixar entrar ninguém, mas depois vieram os fusileiros também e chamaram-nos lá para fora e confraternizámos com eles. Estava lá um colega meu também, que estava na tropa nessa altura, e depois é que percebemos que aquilo afinal era tudo boa gente.
P: Foi uma grande alegria?
Mário Abrantes: Pois, mas depois foram aquelas chatices todas até ao dia 27, porque isto passou-se no dia 25, e depois as chatices todas até o 27, que era a pressão do Spinola para não libertar toda a gente. E a gente decidiu, mas isso acho que deves conhecer, conheces a história.
P: E depois, em que te envolveste durante o processo revolucionário?
Logo a seguir decidi acabar o curso, mas entretanto a onda era muito grande e eu não resisti nada e acabei por filiar-me no MDP-CDE. Estive dois anos, quase dois anos filiado no MDP-CDE. Trabalhei em várias frentes, uma delas foi na formação da Associação das Coletividade de Cultura e Recreio na zona de Lisboa. E trabalhei na alfabetização com a Helena Cidade Moura, não sei se tu conheceste, que era uma mulher muito ligada a isso. O que é que fazíamos? Era andar atrás daquelas coletividades todas, explicar a necessidade de um entendimento comum, de se formar uma coisa para ganhar força e lá conseguimos ir formando, ir estruturando um núcleozinho, com outra gente, que envolvia já umas cinco ou seis coletividades. Mas depois entretanto eu larguei isso porque filie-me no Partido e a minha vida mudou completamente a partir daí. Continuei na zona de Lisboa, mas mudei completamente. E portanto desliguei-me. Nunca mais tive ligações nenhumas com as coletividades.

P: Mas uma das frentes dos do MDP/CDE era promover essa ligação? Foi no âmbito do MDPCDE?
Mário Abrantes: Sim, sim, sim. Um dos objetivos que o MDP/CDE tinha era fazer a ligação entre as associações e coletividade de cultura e recreio.
P: Mas já existia a estrutura, não é?
Mário Abrantes: Eu não me lembro que estruturas é que existiam.
P: Existia a federação em Lisboa, em 1974.
Mário Abrantes: Então a gente é que se calhar, na altura em que eu trabalhei nisso, ainda estávamos a trabalhar em paralelo, eventualmente, não sei.
P: Lembraste quais eram as coletividades?
Mário Abrantes: Não me lembro. Sei que era uma da terra do vinho verde, Colares. Outra, acho que era Torres Vedras e uma era de Sobral de Montagraço...
P: Qual é que era o objetivo político que era traçado para essa união? O que é que se esperava com isso?
Mário Abrantes: O que se esperava com isso era recrutar muito mais gente e equipar e dotar as coletividades do ponto de vista financeiro, material, de equipamentos, capacidade de intervenção, aumentar muito a capacidade de intervenção. Era isto no fundo. Não era para entrar por um caminho novo, era para respeitar exatamente a vocação. É uma banda, é uma banda. Não havia nenhuma intenção de alterar o que quer que fosse em termos da opção das atividades e das ações que estavam por trás da existência de cada uma daquelas coletividades.
P: Era mesmo porque se achava que era importante?
Mário Abrantes: Importante tal e qual como existiam. Só que para ganhar força, tinham que se entender, criar estruturas de entendimento, não era entenderem-se em si mas criar estruturas de entendimento, que lhes permitissem fazer pressão junto do Poder Político.
P: Estava agora a pensar, por teres estado naquilo das cheias, nas comissões de moradores em Lisboa. Naquela altura também foi um movimento muito forte....
Mário Abrantes: Tens toda a razão. Aí também, ainda no âmbito do MDPCDE, na zona da Algés, que era a minha zona (porque eu vivia ali, na altura os meus pais estavam ali), naqueles bairros, nos bairros da lata – Pedreira dos Húngaros, etc. – a gente formou comissões de moradores neles todos. Estruturámos comissões de moradores neles todos. Eu me lembro-me, eram uns cinco ou seis bairros que exitiam ali.

P: Enquanto funcionário do MDP/CDE?
Mário Abrantes: Sim, sim.
P: E o que é que se reivindicava?
Casa, habitação, fundamentalmente a guerra era pela habitação. Sair dali, acabar com aquilo e habitação.
P: Queria-se que houvesse construção de habitação social? Queriam fazer ocupações?
Mário Abrantes: Não, na altura não se punha nenhuma questão relacionada com ocupações. Até porque a gente não conhecia, nem sabia de coisas devolutas, nem de coisas potencialmente ocupáveis. Portanto, não. Era construir toda uma estrutura habitacional que pudesse substituir aquela. O trabalho era esse. E era para eles ganharem força no sentido de reivindicar exatamente isso. E de participarem, se fosse possível, na construção, no próprio erguer das casas novas.
P: E depois acompanhaste?
Mário Abrantes: Não, quando saí do MDP, tudo isso abandonei. Porque depois fui parar, ainda estive ligado às coletividades até meados de 1977, portanto de finais de 75 até meados de 77, quando estive na Câmara de Loures, ainda como MDP. Na altura o presidente da Câmara era um homem do MDP e convidou-me para ir para lá para assessorar a presidência na parte cultural. Eu estive durante esses meses nesse trabalho.Trabalhei para o Boletim Municipal e mantive a ligação com algumas coletividades de cultura e recreio que já trazia do MDP, mas já era em estrutura, não era a coletividade x ou y. A Câmara participava nas reuniões da estrutura intercoletividades que entretanto já existia.
P: Mas era uma estrutura municipal?
Mário Abrantes: Agora é que não te sei dizer, já não me lembro se era municipal ou se era mais... Se calhar era de Lisboa e a Câmara de Loures é que participava nas reuniões da intercolectividade.
P: Como é que era essa relação entre as autarquias e as coletividades?
Mário Abrantes: A gente participava no sentido de ouvir o que é que eles, nessa altura já eram nesse sentido, já não tinha a ver com o trabalho inicial, agora já era a própria estrutura a funcionar por si e nós a recebermos as propostas deles sobre o que competia ao município. E nós tentávamos acompanhar aquilo que fosse das nossas competências.

P: E quais eram as reivindicações deles?
Mário Abrantes: Não sei, acho que aquilo era muito diverso. Eu não estou a ver nenhuma específica. Acho que era muito diverso, eram coisas práticas. Umas precisavam de um automóvel, outras precisavam de... Eram necessidades desse tipo. E nós procurávamos satisfazer todas.
P: E não havia nenhum programa de articulação para dar resposta a determinadas necessidades sociais entre a autarquia e as coletividades?
Mário Abrantes: Não, que eu conhecesse não, mas eu estava na parte cultural, portanto não sei dizer se havia alguma coisa. Para além disso, na parte cultural, fiquei responsável durante esses dois anos, ou ano e meio que trabalhei lá, pelas festas do Concelho, pelo Feriado do Concelho que também envolvia muitas associações. Sim, envolvia coletividades e muita coisa.
P: Segundo a tua memória, qual é quer era o espírito que se vivia nas associações naquele período ainda efervescente?
Mário Abrantes: Eu acho que era uma expectativa extraordinária em relação ao futuro. A ideia com que eu fiquei é que toda aquela gente estava a dar o melhor de si porque julgavam que tinham condições e que estavam criadas as condições, e de alguma forma até que estiveram criadas durante algum tempo, para conseguirem atingir os objetivos por que sempre ansiaram. Chegarem a um outro patamar em termos de realização própria, coletiva. E portanto, uma disposição para ajudar, para colaborar, para trabalhar fora de horas. Aquilo não havia horários, não havia nada. Era um voluntarismo de facto muito forte. Havia um voluntarismo muito forte e a gente acompanhava aquilo tudo, claro, nem podia fugir dessa onda. Nem queria.
P: E nas comissões de moradores?
Mário Abrantes: Nas comissões de moradores era a mesma coisa, mas aí com mais calma. Porque a partir dessa altura acontecia que, como era um partido político, já não era tanto a câmara, era um partido político, na altura o MDP/CDE que estava a trabalhar naquilo, começavam a aparecer dentro dos próprios bairros, quando havia aqueles contatos com a Comissão, pessoal a contrariar e a pretender criar listas, enquanto a gente ainda estava muito nos unitários: Não, não há cá listas, vamos todos. Não estávamos naquela coisa das listas, de votos, nada disso. Eram portanto comissões de moradores o mais representativas possível. Mas também tínhamos que ter uma reserva muito maior no acompanhamento. Passávamos a ter que contactar lateralmente alguns dos membros dessas comissões com alguma regularidade, aqueles em que a gente tinha alguma confiança, politicamente, para não interferir lá, digamos, no conjunto.

P: E depois? Deixa-me perceber. Estiveste no MDP e depois foste para a Câmara de Loures?
Mário Abrantes: Portanto, enquanto eu estive na Câmara de Loures, inscrevi-me no PCP e participei na Concelhia de Loures. Na Comissão de Freguesia de Loures e depois na Concelhia até 1977, quando me propuseram a funcionalização no Partido. Portanto, eu ainda entrei em Loures em finais de 1975/1976, foi isso. E em 1977 inscrevi-me no Partido e depois passo para a funcionalização. Fiquei responsável pelo Concelho da Azambuja. Estava incluído numa organização que era os Concelhos do Norte do PCP, que são os Concelhos do Norte do Distrito de Lisboa. Tínhamos reuniões mensais de coordenação, em Torres Vedras, e depois tinha o Concelho por minha conta, em termos de responsabilidade política, partidária.
P: E o que que estava acontecer na Azambuja, nesse período?
Mário Abrantes: O que estava a acontecer é que era necessário estruturar o Partido, organizar, participar em lutas da FORD, por exemplo, das fábricas do Sul, na zona da Azambuja propriamente, porque o concelho vai muito para Norte, vai até a cadeia do Alcoentre, lá para cima. Cá em baixo, era necessário organizar o pessoal das fábricas, etc., etc., e lá mais para cima mexer com a agricultura, porque era o que havia, mexer o máximo com a agricultura e manter a organização do Partido e alargá-la o mais possível. Concorrer às eleições autárquicas, o trabalho autárquico era muito importante naquela altura também.
P: Na agricultura, que tipo de organizações é que criaram?
Mário Abrantes: Na altura havia uma cooperativa, que hoje é conhecida por aquela experiência horrorosa de matarem aqueles animais todos que era... como é que se chamava a cooperativa? O que a gente fazia era reuniões com os agricultores, era mais a parte de agricultores, não tanto em termos de cooperativa mas em termos reivindicativos diretos.
P: Eram pequenos proprietários?
Mário Abrantes: Eram. Ali já era tudo pequenos proprietários, era a maioria e muitos eram trabalhadores das fábricas e tinham uma pequena propriedade. Portanto a gente ou pegava por baixo e ia para cima, ou pegava em cima e ia para baixo, que era para fazer este intercambio de organização.

P: E conseguiram mobilizar essas pequenos proprietários?.
Mário Abrantes: Com muita dificuldade, com muita dificuldade. Estou a ver se me lembro de alguma ação assim mais forte. Eles eram mobilizáveis, mas começávamos com a agricultura e acabávamos nos problemas da terra, da freguesia, das ruas, dos caminhos, íamos parar para o âmbito autárquico.
P: E nas fábricas?
Mário Abrantes: Não, nas fábricas era de facto o salário, fundamentalmente o salário. Emprego efetivo e algumas greves. Trabalhamos para realizar algumas greves ali, com a própria célula do partido de cada uma das fábricas, que havia três ou quatro ligadas ao sector automóvel e depois ainda mais. Havia ali umas cinco ou seis fábricas e em todas elas tínhamos uma célula.
P: Quais eram os sindicatos?
Mário Abrantes: Havia vários, mas a gente no sindicato não mexia muito, a gente no sindicato não mexia muito. A gente quanto muito ajudava o sindicato quando nos pediam para mobilizar para greves ou para alguma coisa, para mobilizar os nossos. Eles diziam-nos, davam-nos um toque, e nós íamos ter com eles. Ainda foram algumas lutas ali.
P: Sobretudo salários?
Mário Abrantes: Sim, sim, fundamentalmente salários, que eu me lembre era fundamentalmente salários.
P: E depois era o trabalho autárquico?
Mário Abrantes: Muito, esse era o principal. Acabou por ser, por se revelar para mim o trabalho principal naquelas freguesias todas. Chegámos a ter dois vereadores na Câmara e tínhamos eleitos em praticamente todas as freguesias. E chegámos a ter três juntas de freguesia da Aliança Povo Unido.
P: E ainda estavam num período de saneamento básico?
Mário Abrantes: Era tudo coisas básicas – o lixo, o saneamento, os caminhos, as ruas...
P: Então, depois da Azambuja, foste para onde?
Mário Abrantes: Ora, depois da Azambuja, passado um ano e meio mais ou menos, começamos a ter a informação de que era preciso gente para vir para os Açores, porque se tinha passado aqui uma história negativa, o 6 de junho, como já te contaram, que foi o pré 25 de novembro na prática, foi o grande ensaio para o 25 de novembro, e nessa sequência e dos assaltos às sedes do partido, não sei quantos, os quadros do partido foram postos na rua, como tu sabes. Foram 7 ou 8 postos no avião daqui para fora. Aliás, quem me foi substituir na Azambuja foram dois dos que foram embora daqui - uma Micaelense, uma enfermeira, que foi a enfermeira que é muito conhecida, agora já não, mas na altura toda a gente a conhecia, que foi despida. Despiram a camarada ali na rua, à frente de toda a gente, sem vergonha nenhuma. Ela depois passou a funcionária. E portanto, o [anonimizado], que era o responsável por São Miguel, também foi para a rua depois de lhe deitaram o carro ao mar. Depois acabou, está hoje no Faial, anda por lá. E portanto isto ficou vazio, sem quadros, ficou sem quadros. Conseguiram recrutar um faialense para vir trabalhar na nova organização do PCP, porque o PCP estava todo desarticulado, ficou todo desmantelado praticamente. Aquilo foi perseguição objetiva aos comunistas, mas era perseguição mesmo, com bombas e tudo atrás, não era brincadeira. Portanto, conseguiram recrutar o Zé Deck Mota, que estava a trabalhar no partido em Coimbra. Conseguiram recruta-lo para aqui para os Açores. E ainda bem. Ele veio para os Açores, e então, nesse âmbito, começaram a recrutar mais gente nos organismos do partido, em vários sítios: Quem é que está disponível? E eu acabei por dizer: Epá, se não há mais ninguém, ninguém dizia nada....
P: Ainda não tinhas casado?
Mário Abrantes: Se não há mais ninguém... E vim para aqui para São Miguel, comecei com o Nordeste e com a Povoação, os dois concelhos periféricos. Já cá estava um camarada responsável antes de mim há um ano, que também tinha estado na organização dos mesmos concelhos do Norte do Distrito de Lisboa, responsável do Cadaval e da Lourinhã (que foi corrido de lá quando houve os incêndios dos assaltos e veio para cá) e eu vi-me juntar a ele aqui em São Miguel. Começou a minha vida aqui.
P: Em 1979?
Mário Abrantes: Em princípios de 79, fevereiro ou março, já não me lembro.
P: E vocês tinham funcionários para ter nas várias zonas da ilha? Tu tinhas só o Nordeste?
Mário Abrantes: Sim, o [anonimizado], que era o outro camarada que já cá estava há um ano veio em 1978, também recrutado da mesma maneira que eu, e ela, a [anonimizado], que era a companheira dele, estávamos divididos os três por vários...
P: E tu estavas com o Nordeste e Povoação?

Mário Abrantes: Isto foi um ano mais ou menos. Ao fim de um ano o [anonimizado] é mobilizado para o Pico, mais a [anonimizada], foram os dois, porque ficámos sem pessoal no Pico, foram por Pico e eu ainda durante algum tempo fiquei aqui sozinho só com este monstro. Depois é que com uma insistência permanente junto do Partido, é que se lá foi conseguindo, mas sempre aos bochechos. Agora vinha um camarada, estava cá um ano, dois anos e ia-se embora. Aliás era esse o compromisso, o meu também foi assim: Epa, é para ires por dois anos.
P: E por que ficaste?
Mário Abrantes: Fiquei porque entretanto não havia ninguém para me substituir, começa por aí. E segundo, porque comecei a ter ligações e relações com o pessoal daqui. Eu não tinha vida feita em lado nenhum, estás a perceber? Portanto, podia fazer vida em qualquer lado e foi isso, comecei a fazer vida aqui. As vizinhas metiam-se connosco e a gente brincava à noite, às vezes de uma casa para outra, e com o tempo a gente juntou-se, isto para ser breve.
P: Então constituíste aqui família?
Mário Abrantes: Fiz família aqui, portanto, a partir dessa altura, não tinha razões nenhumas para sair de cá. A não ser que me propusessem qualquer alternativa.
P; E quando vieste, tinhas-me dito que vieste como professor?
Mário Abrantes: Formalmente e oficialmente vim, concorri, e vim para dar aulas. Dei aulas no liceu e dei aulas na preparatória, na Roberto Ivens, durante dois anos.
E depois parou. Agora isto aqui já está mais calmo, mas durante esse período ainda houve muitos problemas, ainda assaltaram a sede, essa sede. Ainda boicotaram a campanha de 1979, no fim do ano, porque eram autárquicas esse ano. Assaltaram uma sessão pública que fizemos, mas isso foi bom para nós.
Assaltaram-nos uma sessão pública que fizemos aqui na Freguesia de São Pedro, no Cine São Pedro, (agora é daqueles gajos religiosos). Partiram aquilo de tudo, acabou tudo à porrada. Era um movimento separatista juvenil, o MSE - Movimento Separatista Estudantil.
E depois foram para o centro de trabalho, mas com gente que levava armas e tudo. Partiram-nos a porta, mas a vizinhança portou-se muito bem. Depois fizemos um trabalho de psicólogo junto da vizinhança, porque eles ficaram à rasca. O nosso problema era que eles ficassem todos com medo que a sede estivesse aqui e quisessem que a gente se fosse embora daqui. Mas não, correu bem. Com o tempo, aquilo acalmou tudo e conseguimos voltar outra vez a estar ali bem. Correu bem, pronto, com o tempo.
E, portanto, com esse tempo começou também a correr bem noutros lados. Entretanto subimos muito a nossa votação nessas autárquicas. Em 1979 houve um salto qualitativo grande, e começámos até a ser pessoas respeitadas, de certa maneira. Começámos a ser pessoas politicamente respeitadas aqui neste meio, que tinha sido o meio mais agressivo contra os comunistas, foi aqui mesmo, em Ponta Delgada. Começámos novamente a ser respeitados e a ter capacidade de mexer um bocadinho, foi isto.
E fomos mexendo, fomos mexendo, mexendo, mexendo, pronto.
P: Junto do operariado?
Mário Abrantes: Não sei o que tu chamas operariado...
P: Tenho estado a entrevistar aqui algumas pessoas das fábricas de tabaco...
Mário Abrantes: Sim, sim, tínhamos influência junto do operariado, mas não era de maneira nenhuma o vetor principal da nossa atividade, porque não tinha, do ponto de vista social e económico, o peso que têm outros setores. Tínhamos de facto, chegamos a ter células nos laticínios, na Loreto, aqui na fábrica do açúcar, a que aguentou mais tempo, na Melo Abreu, que era das cervejas. Mas o problema era: ideologicamente o pessoal não tinha ninguém. Portanto, era um trabalho a começar muito, muito, muito de baixo. Mesmo em termos coletivos, nas fábricas, esse pessoal não tinha mentalidade de conjunto, não tinha ainda. Eram herdeiros diretos do pequeno proprietário agrícola e, portanto, muito caracterizado pelo egoísmo, pelo individualismo. Era muito difícil trabalhar. Para já, reunir era uma vitória de um raio. Quando se conseguia juntar três ou quatro... E depois os temas, os assuntos, o conseguir-se chegar até aos problemas laborais... Tinham medo, um bocado como na Azambuja, mas a um nível muito mais.... Enquanto na Azambuja já havia uma consciência, aqui não havia consciência de classe nenhuma, zero, consciência de classe zero. O que poderia haver antes, não sei se morreu, se o que é que foi, mas também nunca foi nada de especial, nada de grande. O Partido Comunista, antes do 25 de abril, nos Açores, a história que tem é muito curta, é muito pequena. Há umas coisas na Terceira, há uns Avantes que os marinheiros traziam para aí e eram distribuídos. Havia o pessoal que depois veio a ser do MDP/CDE, o Governador Civil, o [anonimizado], ouviam a Rádio Moscovo. Havia uma cooperativa, é verdade, uma cooperativa nas Capelas que diziam que o dirigente principal era comunista, nunca cheguei a conhece-lo porque entretanto morreu, quando eu fui ter com ele.
P: Era uma cooperativa de quê
Mário Abrantes: Uma cooperativa agrícola. Mas olha consegui falar com um, e recrutar para o partido, um camarada que também tinha sido dessa direção, que por sua vez foi um super ativista nas Capelas, como autarca. Chegou a ser eleito não sei quantas vezes e era um homem que ia buscar não sei quantos votos, tinha uma capacidade! Um agricultor sem formação nenhuma.
Já morreu, já morreu. Coitadito, já morreu. Era uma história gira. Era uma história de vida. Era um homem muito, muito interessante. Porque tu ficavas revoltada: Como é que este gajo, é que revoltava-te. Se este gajo consegue isto tudo, porque é que o gajo ainda tem...Porque depois vinha com as reservas todas em relação ao comunismo. E depois dizia-te coisas que não tinham nada a ver. E tu: eiii! E depois a atividade dele era uma coisa espetacular. Metia-se em todas. A gente hoje tem 16 votos nas Capelas, o gajo ia buscar 150 e 200 votos às Capelas. Chegámos a eleger dois para a assembleia de freguesia. Os filhos, um deles era nosso simpatizante e continua eventualmente a ser, mas não se meteu com nada, e o outro é PS, é todo ativista do PS. Já foi candidato à Câmara pelo PS.
P: E com os agricultores, como é que era a mobilização?
Mário Abrantes: Com os agricultores houve duas experiências: a experiência de crescimento, que eu não me acompanhei. Foi logo a seguir ao 25 de abril. O Partido aqui fez um trabalho meritório na formação de cooperativas agrícolas. Conseguiu formar umas cinco ou seis cooperativas agrícolas, as principais eram a Achada, Maia, Capelas, e havia mais umas duas diretamente da responsabilidade do Partido, quer dizer que foi o Partido que pôs de pé. E depois havia mais algumas que entretanto se formaram. E portanto isto foi uma ascensão do movimento cooperativista muito interessante, se assim que se pode dizer. Depois morreu tudo, tudo o que era associativismo, tudo o que era experiências coletivas, de desenvolvimento, de abertura e não sei que mais, com o 6 de junho e depois o 25 de novembro a acumular, aqui em São Miguel isto foi tudo ao fundo. Mas é que foi mesmo tudo ao fundo. Porque mesmo aqueles que ainda tinham alguma consciência, tinham medo, porque perseguiam o pessoal. E o que eu apanhei já foi a fase degenerescente das cooperativas agrícolas. O que é que eu apanhei? Apanhei a Maia, ia fazer reuniões com a direção. Podia, eles aceitavam-me como membro do Partido, como dirigente do Partido, mas não me davam muita confiança, como quem diz: Mas tu aqui não mandas nada, atenção, não vens para aqui como... Eu também não queria mandar, mas eles é que interpretavam assim: Tu aqui não mandas nada. E depois ainda por cima eram gajos ligados ao PS, pois tinham-se acabado por ligar ao PS. Na Achada de facto mantínhamos lá um camarada, na direção. Tínhamos um camarada, mas incompatibiliza-se facilmente com os outros. Não era uma pessoa de lidar fácil. Conclusão, por ele a gente não chegava a lado nenhum. Ele estava lá, eles respeitavam-no e ele estava lá, mas quer dizer, à direção daquilo a gente não chegava, não conseguíamos mexer naquilo. Ainda hoje a cooperativa existe. E existem mais, elas existem todas formalmente, com estatutos, com tudo. Só que (tirando aqui uma grande, que já é uma cooperativa do ponto de vista económico sem espírito cooperativo nenhum, digamos assim, que é aqui a dos Arrifes, que é a maior, a Bom Pastor, e a União das Cooperativas, que tem a fábrica da união de leite, que é a maior fábrica de transformação de leite que temos nos Açores) está tudo na mão do PSD neste momento. Portanto elas existem porque interessa que existam do ponto de vista de estruturas e servem para o PSD influenciar os agricultores para votar. Sobretudo eles querem é os votos e querem é estar no poder e portanto tudo isto serve para eles, digamos assim, terem o pessoal na mão do ponto de vista político, que é o que lhes interessa. E depois vão dando uns bombons de vez em quando. É isto. E nós passamos a ter cada vez mais dificuldade em organizarmos, em influenciar a parte agrícola. Dessa cooperativa do Nordeste, desse nosso camarada, da Achada, que fica no concelho de Nordeste, um dos filhos acabou por se formar em cooperativismo É do Partido e participa nas reuniões. É um homem da agricultura biológica.
P: A gente volta outra vez à tua história, mas já agora, tinhas-me falado também, acho que foi sobre os estufeiros, que havia uma caixa económica. Também havia esse tipo de associações aqui, mutualidades?
Mário Abrantes: Sim, mutualista sim. Havia uma ligada à agricultura que tinha gente de esquerda, a Caixa Económica de Ponta Delgada, mas era ligada à agricultura e é, ainda existe, fundamentalmente ligada à agricultura. Mas está feita num banco quase praticamente normal. Tem é muita gente ligada a ela de esquerda, mas da área do PS. Aliás, depois do 25 de Abril, depois do 25 de Novembro, ser do PS em São Miguel já era muito à esquerda, sabes? Temos camaradas hoje aqui no Partido que já eram, já se consideravam comunistas, já eram adeptos, digamos assim, não se pode dizer militantes porque não eram, nem simpatizantes, eram adeptos do Partido Comunista (porque isto é tudo à moda no futebol) mas estavam no PS porque era menos perigoso. Mas hoje estão no Partido, felizmente, alguns, não sei de outros, mas estão porque acabaram por se chatear, porque afinal de contas...
P: E estas pessoas da Juventude Operária Católica, como a Manuela?
Mário Abrantes: Sim, isso é uma relação puramente sindical. Isto foi muito bem trabalhado, julgo eu, por dirigentes da CGTP que acompanhavam o trabalho sindical aqui. E os Açores, nomeadamente São Miguel, sempre tiveram um papel importante no equilíbrio da composição política das listas da CGTP a nível nacional. A Manuela era uma peça fundamental e ela sabia que era e estava consciente disso. Aliás a união dos sindicatos de São Miguel e Santa Maria, que ela depois deixou, a seguir quem foi para lá foi uma socialista. Fui até eu propus que fosse ela. Porque de facto também sindicalistas comunistas, com bagagem mínima para ir liderar o movimento sindical, o movimento intersindical que é a união dos sindicatos, não temos, não tínhamos. Os nossos quadros, com o 25 de novembro morreram todos aqui, foram-se embora. E essa gente [JOC] foi por aí que entrou, puxados indiretamente por nós através dos dirigentes comunistas da própria CGTP.
Porque o [anonimizado], que acompanhava a região em termos de CGTP, era ele que fazia esses contatos com as JOCs e com os católicos, com os PS e acompanhava. Portanto, e nessa altura a gente já não se metia em termos partidários, respeitávamos e não nos metíamos muito. Porque ao princípio a nossa intenção foi, nós tentámos interferir mais no movimento sindical, inclusive na estruturação do movimento sindical. Quando eu cheguei cá, o camarada que estava aí na frente sindical, trazido pela CGTP, era um reformador de um raio e queria restruturar o movimento sindical. E quem aqui é que o ajudava a fazer isso? Ele não podia, porque ele não era do partido.
Eu quis mexer com isso tudo, mas isso não resultou, não deu nada. Conseguiu-se fazer uma restruturaçãozita, melhorar a estrutura sindical, mas a grande reforma estrutural do movimento sindical, aqui em São Miguel, que eles queriam fazer inicialmente, com o Partido a influenciar decisivamente, morreu. E ainda bem, porque não ia dar em nada. Ia só criar estruturas sem funcionarem, com figura jurídica e pouco mais. E portanto, a partir daí, a gente acompanhou o que já existia da melhor forma possível. Até, inclusivamente, chegámos a acompanhar direções sindicais através de alguns dos membros e a estabelecer ligações com alguns dos membros da direção de sindicados da UGT, da alimentação e bebidas e das associações de agricultores. Atualmente, a direção da Associação de Agricultores de São Miguel e Santa Maria está nas mãos do PSD, o atual dirigente é do PSD. Não é PSD, mas está nas mãos do PSD. Mas nós chegámos a ter influência decisiva e a própria associação a aconselhar ao voto na CDU, aqui para umas autárquicas em São Miguel, em Porta Delgada. Convidaram a lista da CDU para um almoço com os agricultores, vejamos até onde é que isto chegou, o respeito que tinham já pela gente e pelo nosso trabalho, o trabalho ligado à agricultura.
Nós tomávamos posições políticas, os nossos deputados sempre foram deputados que intervieram muito no âmbito da agricultura - o Decq Mota e o Paulo Valadão, especialmente esses dois. E portanto eles reconheciam isso e numas autárquicas, por acaso eu é que era o candidato, o cabeça de Lista à Câmara, apercebi-me de que de facto esse respeito existia. Porque entretanto convidaram a lista da CDU para um almoço com os agricultores, aqui na sede da Associação (aquilo é uma super associação, faz parte da CAP, todas as associações agrícolas aqui são da CAP, para tua informação) e os dirigentes dessa associação, que está filiada da CAP, fizeram o apelo público ao voto na lista da CDU aqui em Ponta Delgada. Mas pronto, aconteceu uma vez, foi uma exceção. Depois veio este gajo que lá está e este gajo de facto tem aquilo na mão há muitos anos e o PSD é que controla aquilo. Fez a oposição até às maioria absolutas do PS durante este tempo todo. Ele e a Câmara de Comércio e Indústria e os sindicatos da UGT. Faziam reuniões os três, conferências de imprensa conjuntas, para deitar abaixo o governo do PS. Neste caso, contra o governo do OS, estes anos todos. Conseguiram alguma coisa com isso, conseguiram mobilizar. Mas isso só exprime a nossa perda de influência a esses níveis todos.
P: Mas essa perda foi no rescaldo do 6 de junho?
Mário Abrantes: Sim, sim. Depois recuperámos alguma coisa, mas já nunca mais chegámos ao nível que tinha sido possível chegar antes. Não, nem nada que se pareça. Não, hoje o nível de influência política e social que temos em São Miguel (eu falo só de São Miguel porque é o que tenho mais conhecimento, embora seja capaz de ter opinião sobre os Açores, e tenho, mas não vale a pena estar dá-la) é muito reduzido, é mesmo muito reduzido. Ou seja, nós, já mesmo depois do 25 de novembro, chegámos a patamares com algum interesse, digamos assim, alguma importância do ponto de vista político, como por exemplo este sinal desta associação, a comunidade é um sinal disso. Chegámos a algum nível, mas perdeu-se bastante. E neste momento eu acho que nós estamos ao nível praticamente do início, quando isto tudo começou, pelo menos ao nível da influência eleitoral. Mas agora, mesmo a influência social, com a perda do nosso deputado, (tínhamos um) a nossa imagem ainda se esbate mais. E portanto isso está a ajudar um bocado a missa. É um trabalho muito difícil, estamos com um trabalho muito difícil neste momento, mas as convicções são fortes e os problemas socioeconómicos agravam-se e por isso a luta continua.

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