1. Génesis. Resistência cultural e política

A Ulmeiro – Livraria e Distribuidora, Lda. surgiu em 1969 para reforçar a resistência frentista à ditadura, juntando-se ao movimento das cooperativas culturais e a outras redes oposicionistas, como a Comissão Democrática Eleitoral (CDE). Foi idealizada pelo jovem mas já experiente José Antunes Ribeiro, antes editor na ITAU, livreiro da Obelisco (Amadora) e colaborador da influente revista O Tempo e o Modo, e que ainda nesse ano cofundara a cooperativa VIS, também na Amadora. A Ulmeiro seria fiadora da Devir e teve estreitas ligações a cooperativas como a Livrelco, a Sextante, a Esteiros e a Pragma, sendo a distribuidora dalgumas delas durante o marcelismo.

A Ulmeiro estendeu-se à edição logo em Janeiro de 1970, com Isto anda tudo ligado, de Eduardo Guerra Carneiro, que inaugurou a icónica colecção Cadernos Peninsulares. Seguiu-se A poesia deve ser feita por todos, de Carlos Loures, e Causas da decadência dos povos peninsulares, de Antero de Quental, promovendo uma perspectiva interventiva e incómoda. Ao 4.º título a polícia política retaliou com mão pesada, apreendendo quase todos os 2 mil exemplares de Histórias do cárcere: contos, por Juan Gómez Casas. Nessa rusga foram também apreendidos c.200 exemplares da edição clandestina de Duas peças em um acto, publicada pela Paisagem em solidariedade com o autor Luís de Sttau Monteiro e a editora Edições Minotauro, ambos perseguidos pela polícia política devido à edição original desse livro anti-Guerra colonial. Em 1971 publicou o ensaio O teatro, a crítica e a sociedade, do argentino Adolfo Gutkin, sem a peça que este autor tentara encenar em Portugal, «Melim 4», pois fora proibida pela censura política.

Outra conexão então nevrálgica para a Ulmeiro foi a luta estudantil e das guerrilhas revolucionárias. A distribuição privilegiou obras desse teor e os estudantes independentistas africanos duma república estudantil de Benfica passaram a ter conta aberta na Ulmeiro. Tratava-se de espalhar o ideário internacionalista o mais possível, pois dava sentido à intervenção política e cultural. A libertação do colonialismo era indispensável para derrubar a ditadura.

Dessa actividade inicial constam ainda a apresentação na Galeria Ulmeiro (e a edição) duma série de gravuras e desenhos, de Rogério Petinga, António Ferra e Aurélia Rosa da Silva, em 1970-71.

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*Na Ulmeiro inicial esteve também Maria Aurélia e Victor Nicolau (os outros sócios cofundadores, substituídos por António Antunes Ribeiro, irmão de José Ribeiro), a quem se juntou Carlos Garcia e Natércia Oliveira nos anos 1980, além de Maria Helena Ribeiro e Lúcia Ribeiro (irmã e esposa de José Ribeiro, respectivamente) na livraria, renomeada Livrarte.

1.1

Abertura e conclusão do manuscrito "Vietnam: eles ou os filhos deles”, de José Antunes Ribeiro, c.1966, fls. 1 e 13 de 13 fls. dact. [FMS/ Fundo DBE - Documentos João Bénard da Costa, pt. 06772.005]. Texto crítico sobre a guerra do Vietname que se destinava à revista O Tempo e o Modo, ligada aos católicos progressistas, mas que não chegou a ser publicado, provavelmente por intervenção da censura.

 

1.2

Comunicado “Marcelo Caetano discursa… A D.G.S. vela pela segurança do Estado. Livros apreendidos na Livrelco em 2/12/70”, da Livrelco, c.12/1970, 2 fls. dacts. [FMS/ Fundo AMS - Arquivo Mário Soares, pt. 02269.005.007]. Foi por este meio que a Livrelco, cooperativa apoiada pela Ulmeiro, divulgou uma lista de livros seus apreendidos pela polícia política, denunciando ainda o prejuízo decorrente de 4367$40, uma soma avultada para a época.

 

1.3

Abaixo-assinado «Ao país», da Comissão Nacional de Defesa da Liberdade de Expressão, 5/1971, 1 fl. fr.+reverso [Arquivo Municipal de Loures - Fundo António Carlos Costa Cerqueira]. Este foi um dos vários manifestos da oposição frentista clamando por liberdade de expressão no país. A sua oportunidade deveu-se à elaboração duma nova lei de imprensa sob o marcelismo, a qual manteve a censura férrea ao impresso, ao invés do que então se quis fazer crer. Em nome da Ulmeiro, José Ribeiro surge como o único representante dos livreiros, ao lado de vários editores da resistência e de muitos escritores e jornalistas.

 

 

1.4

Página 11 do jornal República de 15/1/1972, contendo os artigos “A Cooperativa de Estudos e Documentação propõe que a Assembleia Nacional não ratifique o Decreto 502/71” e “O regime saído da Constituição de 1933 olhou sempre com desconfiança para o cooperativismo – declarou à «República», o arq.º Nuno Teotónio Pereira” [BNP].
No marcelismo, as cooperativas culturais foram perseguidas politicamente (incluindo aquela de que José Antunes Ribeiro foi vice-presidente, a VIS) e a maioria foi coagida a fechar portas, em 1972. Nuno Teotónio Pereira, um conhecido activista da cooperativa Pragma (na imagem), denunciou a atitude antidemocrática por detrás dessa arbitrariedade em entrevista ao jornal porta-voz dos republicanos oposicionistas. O processo acabou na Procuradoria-Geral da República que, algum tempo depois, veio dar razão às vítimas desta perseguição, uma decisão que já não conseguiu reverter os danos causados.

 

1.5

Página 2 do artigo “Os livros da resistência: livrarias no regime fascista”, Público, 11/6/1994, p. 1-4 (supl. Leituras), [Esp. JAR]. Esta extensa reportagem temática de Clara Barata e Luís Miguel Queirós contém depoimentos de 9 livreiros resistentes, incluindo o de José Ribeiro.

 

 

1.6

Foto-montagem com os independentistas Luís Bernardo Honwana (Moçambique), Manuel Faustino (Cabo-Verde), Helena Lopes da Silva (idem) e Manuel dos Santos (Guiné-Bissau), [Esp. JAR e internet]. Vários estudantes africanos que se envolveram na luta independentista tiveram conta aberta na Ulmeiro para poderem aceder aos livros que incendiavam os novos tempos de revolta, à imagem dos que figuram neste exemplo.

 

1.7-1.9

Capas dos livros Isto anda tudo ligado, de Eduardo Guerra Carneiro, A poesia deve ser feita por todos, de Carlos Loures, e Causas da decadência dos povos peninsulares, de Antero de Quental (Ulmeiro, col. Cadernos Peninsulares, respectivamente n.ºs 1-3, 1970), [Esp. JAR].
Poesia da nova geração e crítica de censuras pretéritas sinalizam a estreia da Ulmeiro na edição, com uma colecção que se tornaria icónica e que logo em 1972 foi transferida para a novel Assírio & Alvim. O livro A poesia deve ser feita por todos, de Carlos Loures, foi então apreendido pela polícia política, o seu autor estava já referenciado por haver escrito e publicado A voz e o sangue (na Novo Rumo), tendo por isso ficado encarcerado meio ano em 1968.

 

 

1.10-1.12

Capa do livro Histórias do cárcere: contos, de Juan Gómez Casas (Ulmeiro, col. Cadernos Peninsulares, n.º 4, 1970), auto de apreensão pela PIDE do referido livro, 18/10/1970 [Esp. JAR] e página de abertura da relação da Ulmeiro “Distribuição do livro «Histórias do cárcere»”, de 12/10/1970, 4 fls. dacts. nums. ass. pelo “gerente” JAR e com nota man. dos serviços da DGS [DGLAB/ Arq.º PIDE/DGS – “Documento cedido pelo ANTT. Cota: Pide, SC, CI(1) 2224, NT 1242, pt. 2”].
A 1.ª tiragem desta tradução do testemunho de resistente anarquista espanhol foi então quase toda apreendida pela polícia política (c. 2 mil exemplares), embora o auto só refira 2 exemplares e 10 dias depois a censura tenha autorizado a sua circulação. A devolução posterior, quando se fazia, era só de uns quantos exemplares e obrigava a deslocação da vítima à sede da polícia política: a ditadura simulava uma face de legalidade enquanto na sombra persistia com práticas ilegais, cínicas e danosas. No caso em apreço, obrigara ainda à entrega pelo editor duma relação dos pontos de venda para os quais havia distribuído esta obra, em cuja folha inicial figura uma espécie de logótipo da editora, sobre a forma de timbre visual, no topo superior esquerdo.

 

1.13

Artigo breve “Os 10 livros mais vendidos na Sextante (1971)”, República, 20/1/1972, p. 9 [BNP]. Enquanto não foram extintas, as cooperativas culturais formaram uma rede de produção, circulação e divulgação dos livros e ideias da resistência política e cultural. A açoriana Sextante foi uma parceira do editor José Ribeiro na acção cívica e na circulação de obras por si editadas, primeiro na Itaú (com A criança e a vida, de Maria Rosa Colaço) e depois na Ulmeiro (com a reedição do célebre livro de Antero de Quental), como atesta este top ten.

 

1.14

Artigo “Die Herrschaft der Zensur. Portugais Tradition der Unterdrückung” [A regra da censura. Tradição portuguesa de opressão], Die Zeit (Hamburgo, n.º 48, 1/12/1972), [Hemeroteca Digital/ Dossier Digital JCP].
Este artigo dum jornal alemão de referência reproduz uma fotografia que mostrava um mural intitulado «Pela cultura contra a censura» e que ilustrou um excerto do texto “Técnica do golpe de censura”, de José Cardoso Pires, em peça adjunta (“caixa”). Divulgou-se por este meio no exterior uma iniciativa em prol da abolição da censura, pela frente oposicionista Comissão Democrática Eleitoral (CDE), à qual estavam ligados os fundadores da Ulmeiro e doutras editoras independentes da época.

 

 

1.15-1.18

Quadro policromático s/título, de António Ferra, c.1970 [Esp. António Ferra]; gravura-serigrafia “Composição com justaposição de elementos e número 3”, de Rogério Petinga, Lisboa, Ulmeiro, imp. 1970, 70x24 cm [BNP]; desenho “Quem muito se baixa”, de Aurélia Rosa da Silva, Lisboa, Ulmeiro, 1971, p&b, 17x12 cm [BNP]; e capa protectora de livros, por Aurélia Rosa da Silva, Lisboa, Ulmeiro, 197- [Esp. JAR].
Conjugando edição e arte, a editora abriu uma galeria homónima em 1970, para divulgar a arte das novas gerações, que depois reproduziu em séries limitadas. Se o retrato de Ferra não pretendia afrontar, já o mesmo não se podia dizer das obras de Rogério Petinga, uma charge forte (ainda que bem ‘disfarçada’) contra os efeitos desastrosos da guerra (alusão implícita à Guerra colonial, tema omnipresente para as novas gerações) e de Aurélia Rosa da Silva, o seu desenho tendo implícito uma crítica política. A esta artista que expôs na galeria da Ulmeiro foram-lhe encomendadas pela Ulmeiro-livraria uma série de capas protectoras, em folhas verde ou laranja, que serviam para embrulhar os livros vendidos e protegê-los de olhares delatores.

 

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