2. A palavra é uma arma. Cumplicidades literárias e solidariedade internacionalista

Com livraria situada no populoso bairro de Benfica, na movimentada Av.ª do Uruguai, a Ulmeiro começou por importar e vender muitas obras de congéneres espanholas, algumas conhecidas pela resistência ao franquismo (Aguillar, Ayuso, EDICUSA, Librería Miguel Ibañez, Ruedo Ibérico, Seix Barral, Siglo XXI e Xyz). Em contrapartida, deixou obras de Pessoa na Alianza Editorial, incentivando a sua descoberta e tradução junto de conhecidos. Para importar ensaio político contactou ainda as editoras Maspero (Paris) e Feltrinelli (Roma) e as brasileiras Martins Fontes e Civilização Brasileira (estas por via de intermediários).

Aproveitando a grande sintonia existente nas juventudes contestatárias ibéricas dos anos 1960/70, a divulgação de obras e autores passou ainda pela participação em actividades alheias (como um encontro-festa dos democristãos da Cuadernos para el Diálogo, em Madrid, 197-) e a organização de tertúlias na livraria. Nestas tertúlias, participaram amantes das literaturas em língua espanhola como José Bento e Fernando Assis Pacheco. Declamaram-se, debateram-se e venderam-se obras de romancistas espanhóis e do boom latino-americano (José Maria Castellet, Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa, etc.), em castelhano e a preços acessíveis (por serem livros de bolso), mas também as traduções integradas na Cadernos Peninsulares e noutras colecções portuguesas. Desses serões de poesia e música cabe destacar o que teve a participação do poeta espanhol Manuel María, este último tendo estado na Ulmeiro em Janeiro de 1972, para apresentar e declamar em galego poesia sua que então antologiara, reveladora da realidade social local. Os seus poemas estiveram presentes na voz de Benedicto García Villar, guru do Voces Ceibes (grupo ligado à cancion de protesta e que usou o galego como arma) e amigo de José Afonso, tendo participado nesse mesmo ano numa digressão com ele e no seu disco «Eu vou ser como a toupeira» (Orfeu).

A Ulmeiro deu assim um especial contributo à divulgação de obras associadas ao pensamento progressista e à criação mais inovadora, sobretudo oriundas de Espanha, França e Brasil, e ajudou a revelar autores como os do boom latino-americano e teóricos revolucionários (marxistas e terceiro-mundistas) de várias correntes.

2.1-2.4

Foto-montagem com capas de 4 livros importados da Ibero-América e de Espanha e distribuídos pela Ulmeiro [Esp. JAR]:
Conversación en la catedral, de Mario Vargas Llosa (Barcelona, Seix Barral, 1969); ►Nueve novíssimos poetas españoles, org. e pref. José María Castelet (Barcelona, Barral Editores, 1970); ►La vuelta al día en ochenta mundos, de Julio Cortázar (México, Siglo XXI, 197-, v.o.1967); ►Historia personal del «boom», de José Donoso (Barcelona, Anagrama, 1972).
Livros de autores representativos da nova literatura oriunda da América Latina e de Espanha foram um dos alvos da Ulmeiro, nomeadamente os romances de Cortázar, Vargas Llosa ou García Marquez, a nova poesia e os ensaios literários, como o de Donoso sobre a geração do boom literário latino-americano.

 

2.5-2.7

Foto-montagem com capas de 3 livros importados da Ibero-América e de Espanha e distribuídos pela Ulmeiro [Esp. JAR]:
Paradiso, de José Lezama Lima (Havana, Unión Ediciones, 1966); ►Tres tristes tigres, de Guillermo Cabrera Infante (2.ª ed., Barcelona, Seix Barral, 1971, v.o. 1965);
Historia secreta de una novela, de Mario Vargas Llosa (Barcelona, Tusquets, 1971).
Paradiso, do cubano Lezama Lima, foi o expoente da literatura latino-americana para JAR e um seu projecto malogrado de edição. Acabou por ser publicado na col.º Provisórios & definitivos, em 1991, numa edição conjunta da Vega e da Afrontamento.
Tres tristes tigres, do também cubano Cabrera Infante foi uma obra crítica do castrismo que ainda assim circulou nos círculos culturais da esquerda militante. Mas a 1.ª ed. em Portugal só saiu em 1997, pela Publicações D. Quixote, com texto integral incorporando os cortes da censura.
Historia secreta de una novela, de Vargas Llosa, foi originalmente publicado numa col.º com o sintomático título de Cuadernos Marginales. Em 1973, José Ribeiro e amigos inauguram a Colecção Mínima da novel Assírio & Alvim com uma tradução deste ensaio, que contém reflexões pessoais relativas à construção do 2.º romance de Vargas Llosa, A casa verde (v.o.1965), sobre a opressão na América Latina.

 

2.8-2.9

Capas dos livros La raya de Portugal. La frontera del subdesarrollo, por Antonio Pintado e Eduardo Barrenechea (Madrid, Edicusa/ Cuadernos para el Diálogo, 1972), [Esp. JAR], e A raia de Portugal, por António Pintado e Eduardo Barrenechea (Porto, Afrontamento, 1974; trad. Cidália Queirós), [BNP].
A madrilena Cuadernos para el Diálogo fez a edição original deste livro revelador das duras condições de vida e dos efeitos do êxodo rural, da emigração clandestina e do subdesenvovlimento no território fronteiriço de Portugal (também abarcando a raia espanhola). A novel editora portuense Afrontamento traduziu para português logo que pôde e a Ulmeiro distribuiu ambas as edições. A censura marcelista deixou passar pois dizia “verdades”: o censor de turno seria mais sensível aos infortúnios do campesinato nortenho, afinal uma parte senão da base social de apoio da ditadura pelo menos do seu imaginário político-cultural.

 

2.10-2.11

Capa de revista Cuadernos para el Diálogo, n.º XXXII extraordinário, 12/1972, e fotografia de José Cardoso Pires com trecho adjunto do autor alusivo à circulação do seu texto sobre a censura em várias publicações europeias [Esp. PPM].
Este n.º ousado da revista espanhola com cujos responsáveis o mentor da Ulmeiro conviveu incluiu um artigo de Alfonso Comín com citações do ensaio “Técnica do golpe de censura”, de José Cardoso Pires. Nesse mesmo mês saíra uma tradução parcial no jornal alemão Die Zeit. Em Portugal só foi publicado em 1977, na 1.ª ed. de E agora, José?, da Moraes Editora. A importância da sua divulgação, que funcionou como instrumento de denúncia e de catarse, foi confessada pelo próprio em entrevista a Artur Portela publicada em Cardoso Pires por Cardoso Pires (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1991, p. 124).

 

2.12-2.18

Auto de apreensão pela PIDE do livro Marxismo y anti-marxismo, de Julián Besteiro (Murcia, ZYX, 1967), de 6/5/1970, e foto-montagem com capas de 6 livros importados da Ibero-América e França e distribuídos pela Ulmeiro [Esp. JAR]:
Le pillage du tiers monde, de Pierre Jalée (Paris, François Maspero, 1965); ►Œuvres VI: textes inédits, de Che Guevara (Paris, François Maspero, 1972); ►A explosão demográfica e a fome no mundo, de Josué de Castro (Lisboa, ltaú, 1968); ►Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire (Porto, Afrontamento, produção de João Barrote, 1972); ►Cartas do cárcere, de Antonio Gramsci (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 197-); ►Marxismo y anti-marxismo, de Julián Besteiro (Murcia, ZYX, 1967, v.o.1935).
Entre as obras marcantes no diálogo internacionalista que então ligou gerações contestatárias em todo o mundo cabe destacar as de líderes revolucionários inspiradores como Gramsci e Che e as de pensadores coevos como os brasileiros Josué de Castro e Paulo Freire, cujo livro Pedagogia do oprimido foi produzido em Portugal pelo editor portuense João Barrote em 1972 para a Afrontamento e logo apreendido pela PIDE, ano em que também saiu a 1.ª ed. brasileira. Mesmo os livros importados eram proibidos pela ditadura marcelista, como se pode constatar pela apreensão do livro Marxismo y anti-marxismo pela polícia política. A solidariedade terceiro-mundista esteve bem patente no questionamento do colonialismo e do neocolonialismo ocidentais, propagada em livros como os de Pierre Jalée, dados à estampa por editores engagés como Maspero.

 

2.19

Fotografia do poeta galego Manuel María [Arq.º AELG].

 

2.20-2.21

Capas dos livros Noventa e nove poemas de Manuel María (1950-1970) e Odes num tempo de paz e de alegria, ambos de Manuel María (Porto, Editorial Razão Actual, col. Poesía, respectivamente n.ºs 3 e 4, 1972), [Arq.º AELG; Casa-Museu Manuel María].
O poeta galego Manuel María (1929-2004) fez uma digressão de 20 dias por Portugal em 1972, com Pintor Pousa e Arsénio Mota (este, editor da portuense Razão Actual), tendo palestrado na Sociedade da Língua Portuguesa e feito um recital na Ulmeiro, em 11 ou 12 de Janeiro, onde autografou a sua antologia de 99 poemas, a qual contém o poema “Portugal” e poesia de pendor social. No n.º anterior desta colecção, Autoescolha poética (de Celso Emilio), publicara-se uma antologia doutro conterrâneo conhecido, anunciando-se, na respectiva contracapa, que servia para “dar a conhecer a riquíssima cultura galega de hoje”.

 

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