3. O combate final à ditadura
A Ulmeiro foi uma das principais escoadoras de novas editoras alternativas e de resistência como a Afrontamento, a Centelha/ Fora do Texto, a Escorpião, etc. Por esse motivo, a livraria-distribuidora foi uma das principais visadas pelas apreensões da polícia política, tendo sido vítima de mais de 40 rusgas, à média de mais de uma por mês.
Distribuiu o jornal de intervenção cultural-cívica Crítica (1971/2, 9 ns.), criado por jovens universitários como Eduarda Dionísio, Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo (este dois estarão na génese da col. Teatro Ulmeiro).
Em 1972, José Ribeiro juntou-se a João Carlos Alvim e a Assírio Bacelar para criarem a Assírio & Alvim, que no início conseguiu iludir a perseguição política que já fustigava a Ulmeiro e afins. É por isso que para esta transferem a colecção Cadernos Peninsulares (renomeada de Peninsulares), junto com todas as distribuições da Ulmeiro. Foram acompanhados por Dorindo de Carvalho e Manuel Rosa no arranjo gráfico e capas, por Mário Reis na administração e por Carlos Caeiro enquanto “sócio-capitalista invisível”. Aí lançam obras como a banda-desenhada insurgente Wanya e a Antologia da poesia concreta em Portugal, ambas em 1973, e muitos livros políticos, de cunho marxista e da esquerda radical. Um deles, Portugal sem Salazar, dará brado e azo a nova retaliação política.
É nesta fase que surgem as tertúlias cívicas, animadas por compositores como Carlos Paredes, cantautores como José Afonso e Francisco Fanhais, e por intelectuais como Luiz Pacheco e Natália Correia.
Foto-montagem com capas de 3 livros de editoras lusas independentes distribuídos pela Ulmeiro [Esp. JAR]:
►O canto e as armas, de Manuel Alegre (2.ª ed., Coimbra, Centelha, 1970); ►Portugal uma perspectiva da sua história, de Flausino Torres (Porto, Afrontamento, il. Manuela Bacelar, 1970); ►As histórias dramáticas da emigração, de Waldemar Monteiro (Lisboa, Prelo Editora, pref. Maria Lamas, 1969).
Foto-montagem com capas de 3 livros de editoras lusas independentes distribuídos pela Ulmeiro [Esp. JAR]:
►O combate sexual da juventude, de Wilhelm Reich (Porto, col.º Textos marginais, 1971, il. Jaime Azinheira); ►O problema político da universidade, de Adérito Sedas Nunes (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1970); ►Começo de quê viragem para onde? (Lisboa, Prelo, il. Manuel Augusto, col. Caderno PEEP, 2, 1970).
Auto de apreensão pela PIDE do livro O canto e as armas, de Manuel Alegre, na livraria Ulmeiro, a 2/12/1970 [DGLAB/ Arq.º PIDE/DGS – “Documento cedido pelo ANTT. Cota: Pide, SC, CI(1) 2224, NT 1242, pt. 2”].
A edição e distribuição de livros de editoras portuguesas alternativas foi um passo relevante para a consciencialização e radicalização de muitos cidadãos e grupos, e nelas a Ulmeiro foi pivot. Entre as obras que circularam mais ou menos clandestinamente constaram títulos da Afrontamento, da D. Quixote, da Prelo e da col.º Textos marginais, entre outras. Para tentar escapar à censura publicavam-se livros com base em reportagens saídas na imprensa, amiúde sem êxito, como no caso de As histórias dramáticas da emigração, proibido de circular em 25/4/1970. Um dos mais icónicos livros desse tempo foi O canto e as armas, de cuja 2.ª ed. (pela Centelha) foram apreendidos 20 exemplares na livraria Ulmeiro no final de 1970.
Capa do n.º 1 do jornal Crítica (Lisboa, 11/1971, distr. Ulmeiro) e fotografia de Jorge Silva Melo, com transcrição adjunta de trecho do seu artigo “Vida a andar por aí - Autobiografia de Jorge Silva Melo”, JL, 10/2/2016 [BNP].
Porta-voz da nova geração universitária de 70, Crítica foi um periódico efémero (9 ns. em 1971-72) mas que debateu criticamente questões relevantes da cultura. Foi distribuído pela Ulmeiro e amigos, muitas vezes noite fora, como revela o seu director Jorge Silva Melo em depoimento recente ao JL.
Capa do livro Wanya, tx. de Augusto Mota e il. de Nelson Dias (Lisboa, Assírio & Alvim, 1973), [Esp. JAR].
Foto-montagem com capas de 4 livros da Assírio & Alvim editados em 1973 [Esp. JAR]:
►É assim que se faz a História, de Eduardo Guerra Carneiro (col. Cadernos peninsulares Nova série, 2); ►O poeta faz-se aos 10 anos, de Maria Alberta Meneres (capa e orientação gráf.ª de Dorindo Carvalho); ►Sade/Masoch, de Giles Deleuze (col. Cadernos peninsulares Nova série. Ensaio, 4); ►Antologia da poesia concreta em Portugal, org. José Alberto Marques e E. M. de Melo e Castro (col. Documenta poética, 2).
Em finais de 1972, José Ribeiro juntou-se a Assírio Bacelar, João Carlos Alvim, Mário Reis e Carlos Alberto Caeiro para fundar a Assírio & Alvim, um expediente para prosseguir na edição e distribuição alternativas e iludir a perseguição feita à Ulmeiro. Entre os primeiros livros, de 1973, consta uma banda-desenhada alegórica anti-ditatorial (Wanya), o regresso de Eduardo Guerra Carneiro, livros sobre sexualidade (p.e. Sade/Masoch), além de poesia (concreta/visual, de Ruy Belo e por crianças, em O poeta faz-se aos 10 anos, no que foi uma iniciativa pioneira) e ensaio, sobretudo político.
Capa do livro Portugal sem Salazar: entrevistas, compil. Mário Mesquita e il. Dorindo Carvalho (Lisboa, Assírio & Alvim, col. Mínima, n.º 2, 10/1973), [Esp. JAR], e Informação da DGS sobre processo de apreensão do livro Portugal sem Salazar, na Assírio & Alvim, a 6/11/1973 [[DGLAB/ Arq.º PIDE/DGS – “Documento cedido pelo ANTT. Cota: Pide, SC, E/GT 3175, NT1486”].
Portugal sem Salazar foi um dos livros da nova Assírio & Alvim que mais brado deu no marcelismo. Constituído por depoimentos de exilados do grupo de Genebra (Manuel de Lucena, António Barreto, Eurico de Figueiredo, Medeiros Ferreira, Valentim Alexandre) recolhidos pelo jornalista Mário Mesquita, levou à detenção para interrogatório de compilador, editor e capista (Dorindo de Carvalho), por o livro fazer “abertamente a apologia do socialismo” e de “formas de instigação à violência, encarada no aspecto político e mesmo revolucionário” (cit. de interrogatório da PIDE/DGS). Dos c.5 mil exemplares, a polícia política apreendeu 1322 exs. em incursões na editora e no circuito de livrarias, quiosques e afins, e na livraria Ulmeiro apenas conseguiu confiscar um exemplar. O resto já se esfumara pelos canais clandestinos. Como defesa, tanto editor como compilador pediram para serem apensos textos do semanário Expresso que continham comentários elogiosos a algumas dessas entrevistas, inclusive do ex-deputado da Ala Liberal Francisco Sá Carneiro, o que denotaria uma contradição incompreensível. Por esta altura já a polícia política registara José Antunes Ribeiro como “mentor” desta “firma” e esta como “editora e distribuidora de vários livros de natureza muito duvidosa”.
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