4. O PREC, seus descendentes e o pós-revolução

Com o derrube da ditadura, deu-se uma revolução na edição. As montras das livrarias passaram a ostentar Marx e Sade, e abriram-se para muitos outros autores, temáticas e géneros. A fórmula da Ulmeiro de combinar literatura e ensaio de qualidade foi retomada por novas editoras, como a Vega, a Fenda, a Relógio D'Água e a Hiena, e pelas revitalizadas A Regra do Jogo, Centelha, etc. Outras editoras focaram-se no ensaio e/ou livro político, ou em nichos. Parecia haver espaço para todas as experimentações.

A Ulmeiro acompanhou algumas dessas dinâmicas, apostando no teatro contemporâneo estrangeiro e no teatro infantil. Em 1976, editou um ensaio sobre Brecht e 3 peças na efémera col.º Teatro Ulmeiro, promovida por Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo. Em 1978 é a vez de divulgar Para um conhecimento do teatro africano, de Carlos Vaz. Revelou peças socialmente comprometidas de António Ferra, em 1978-79, um autor ligado à dinamização do teatro infantil e juvenil no país, com João Brites, José Gil, José Caldas, Carlos Fragateiro e Delfim Miranda. Realizou ainda sessões de teatro infantil no Clube Juvenil Ulmeiro.

Prosseguiu no apoio aos movimentos populares, agora através da revista de reflexão e intervenção Cidade Campo (1978-79). Nela um grupo alargado de peritos procurou intervir nas políticas públicas para a habitação e o urbanismo.

No final do período revolucionário, a gestão inepta das distribuidoras entretanto nacionalizadas, em especial da do grupo O Século e da Bloco Expresso, causará um prejuízo incalculável para muitas editoras independentes, da Afrodite à Vega e atingindo também a Ulmeiro. Os consideráveis stocks de livros que estas tinham deixado naquelas distribuidoras não lhes foram restituídos, nem foram indemnizadas. Ademais, realizaram-se leilões destes livros onde parte deles foi vendido por valores diminutos, inundando o mercado, desvalorizando estes títulos e comprometendo reedições no curto e médio prazo. A situação crítica dos meios de comunicação social, em especial da imprensa escrita, e o aceso conflito político-partidário então existente levou os decisores políticos a secundarizar e maltratar aquele ruinoso caso, que se arrastou durantes anos sem que nenhuma das editoras lesadas tivesse sido recompensada.

4.1 a 4.6

Foto-montagem de 6 capas de livros da Ulmeiro e da Centelha distribuídos e vendidos na Ulmeiro [Esp. JAR e Inst.º Helena Greco]:
A questão judaica, de Karl Marx (Ulmeiro, col. Cadernos Ulmeiro, n.º 10, d.l.1977, trad. João Fagundes, ed. e coord. José Fortunato); ►Sobre a democracia operária e outros textos, de António Gramsci (Ulmeiro, col. Biblioteca Ulmeiro, n.º 4, 1976); ►Conselhos operários – tarefas, de Anton Pannekoek (Coimbra, Centelha, col. Criar poder popular, n.º 8, 1976, trad. Leonor Marinho Dias e Carlos Lemos); ►Colonialismo e alienação: contribuição para a teoria política de Frantz Fanon, de Renate Zahar (Ulmeiro, col. Terceiro mundo e revolução, n.º 2, 1976, trad. Amadeu Graça do Espírito Santo); ►O imperialismo e o desenvolvimento desigual, de Samir Amin (Ulmeiro, col. Biblioteca Ulmeiro, n.º 8, 1977); ►Problemas actuais do marxismo, de Henri Lefébvre (Ulmeiro, col. Biblioteca Ulmeiro, n.º 10, 1977).

 

4.7 a 4.12

Foto-montagem de 6 capas de livros de editoras independentes e da Ulmeiro distribuídos e vendidos na Ulmeiro [Esp. CC, Esp. JAR, CML-BLX e ArqOperaria]:
MFA dinamização cultural acção cívica, de Ramiro Correia, Pedro Soldado e João Marujo (Ulmeiro, [1976]); Os moradores à conquista da cidade: comissões de moradores e lutas urbanas em Setúbal, 1974-1976, de Chips Dows [Charles Downs], Fernando Nunes da Silva, Helena Gonçalves e Isabel Seabra (Lisboa, O Armazém das Letras, 1977, capa de Zé D’Almeida); Os bancos antes da nacionalização, de António Aragão (Funchal, ed. a., 1975, colab. fot. de Helmut M. Winkelmayer); Escravatura, de José Capela (Porto, Afrontamento, 1974); Criar poder popular: reflexões e documentos dum ex-militante da LUAR sobre um partido e uma prática, de Fernando Pereira Marques (Ulmeiro, 1976); MFA luta de classes: subsídios para a compreensão do processo histórico português, de Ramiro Correia, Pedro Soldado e João Marujo (Ulmeiro, [1976], il. Lima de Freitas).

 

4.13 a 4.18

Foto-montagem de 6 capas de livros de editoras independentes, distribuídos e vendidos na Ulmeiro (Diabril, Forja, Afrodite, Arcádia, Vega e Escorpião), [BNP, Esp. PPM]:
O jardim das delícias ou «o jardim perfumado para a recreação do espírito», de Xeique Nefzavi (Lisboa, Diabril, col. Grandes Clássicos do Erotismo, n.º 1, 1975); ►Mário e Isabel, de Mário Henrique Leiria (tx.) e Isabel Lobinho, desenhos (Lisboa, Forja, col. Erótica, n.º 1, 1975); ►A filosofia na alcova, de Sade (2.ª ed., Lisboa, Afrodite, 1975, trad. Manuel Joäo Gomes, il. Martim Avillez); ►Os 120 dias de Sodoma ou a escola da libertinagem, de Sade (Lisboa, Arcádia, 1975, vol. 1, trad. Manuel Joäo Gomes); ►A experiência demoníaca, de Ernest de Gengenbach (Lisboa, Vega, 1976); ►Homossexualidade, opressão e liberdade sexual, de Guy Hocquenghem (Porto, Escorpião, col. Eros e política, n.º 14, trad. Rosa Matos).
No período revolucionário (ou PREC) reforçou-se a edição de ensaio sobre temáticas políticas, sociais, etc. Foi um peculiar tempo de libertação, a vários níveis, oscilando muito entre Marx e Sade. Nos frisos ao lado, uma amostra dalguns destes livros, incluindo obras sobre o novo poder político-militar (o MFA, ou Movimento das Forças Armadas), activismo político popular, anticolonial ou de exilados (como a LUAR), textos teóricos de diversas tendências marxistas e enfoques, erotismo, e que foram editados, vendidos e/ou distribuídos pela Ulmeiro. A questão judaica e MFA dinamização cultural apresentam como editor José Fortunato, pseud. de JAR.
O livro de Aragão, distribuído pela Ulmeiro, é uma obra singular que recorreu à poesia visual para fazer uma sátira política à banca privada e à ganância desmedida, um tema que ressurge ciclicamente.

 

4.19 a 4.24

Foto-montagem de 6 capas de livros de editoras independentes distribuídos e vendidos na Ulmeiro (Vega, Fenda, Relógio D'Água, A Regra do Jogo, Centelha e Hiena), [BNP; Esp. PPM]:
A borboleta na gaiola, de Luis Filipe Costa (Lisboa, Vega, 1984, il. Vítor Paiva); ►Fenda. Magazine Frenética, n.º 1 (1979); ►A rebelião das massas, de Ortega y Gasset (Lisboa, Relógio D'Água, 1986); ►A outra guerra: narrativa, de Fernando Pereira Marques (Lisboa, A Regra do Jogo, col. Ficções, n.º 11, 1982); ►O cú através dos tempos, de Léo Campion (Coimbra, Centelha, 1982; trad. Eurico Tiago); ►7 manifestos Dada, de Tristan Tzara (Lisboa, Hiena, 1987, des. Francis Picabia, trad. José Miranda Justo).
Sob o PREC e até início dos anos 1980, a fórmula da Ulmeiro de literatura e ensaio de qualidade foi aprofundada por novas ou revitalizadas editoras, como a Vega (de 1976), a Fenda (1979), a Relógio D'Água (1983), a Hiena (1986), a Centelha e A Regra do Jogo, entre outras.

 

4.25-4.26

Artigo “Editores compram seus próprios títulos no leilão do Século”, s.a., Diário de Lisboa, 18/6/1985, p. IV-supl.º 7.7 [Esp. DM] e editorial “carta aos leitores: escândalo do século”, por JAR, Sobreviver, II s., n.º 4, 3/1986, p. 2 [BNP].
A má gestão da nacionalização das distribuidoras Bloco Expresso e Sociedade Nacional de Tipografia (esta ligada ao grupo do jornal O Século) atingiu muitas editoras e livrarias independentes e foi noticiado em artigos da imprensa, como este do DL, cujo antetítulo é bem explícito: “Uma feira do livro paralela e «escandalosa»”. A Ulmeiro foi uma das livrarias-editoras mais lesadas, o que JAR denunciou em editorial da sua revista.

 

4.27 a 4.30

Foto-montagem de 4 capas de livros de teatro da Ulmeiro [Esp. JAR]:
Ah Q: tragédia chinesa baseada em Lu Sun, de Bernard Chartreux e Jean Jourdheuil (Ulmeiro, col. Teatro Ulmeiro, n.º 1, 1976, il. Cristina Reis, trad. Luísa Neto Jorge); ►Fanshen, adapt. David Hare (Ulmeiro, col. Teatro Ulmeiro, n.º 2, 1976, il. Cristina Reis, trad. Jorge Silva Melo); ►Sobre Brecht, de Mário Sério (col. Biblioteca Ulmeiro, n.º 5, 1976); ►Para um conhecimento do teatro africano, de Carlos Vaz (1978, 2.ª ed. 1999).
Ligada ao teatro actual, e após o ensaio O teatro, a crítica e a sociedade, de Adolfo Gutkin (col. Cadernos Peninsulares, n.º 5, 1971), a Ulmeiro lançou em 1976 a colecção Teatro Ulmeiro, promovida por Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo. Nela divulgou duas peças de dramaturgos estrangeiros. Ainda nesse ano editou um ensaio sobre Brecht e pouco depois abarcou o teatro africano.

 

4.31 a 4.35

Foto-montagem de 5 capas de livros de teatro e literatura para crianças da Ulmeiro [Esp. JAR]:
Zé Pimpão, João Mandão e os sapatos feitos à mão, de António Ferra (col. Teatro Ulmeiro. Nova Série, n.º 1, 1978); ►A canção de começar, de António Ferra (col. Teatro Ulmeiro. Nova Série, n.º 2, 1979); ►A tartaruga Pacholas e os direitos da criança: banda desenhada para ler e pintar, de Albertina Apolónia, Ana João e Filomena Semedo (Ulmeiro, 1979); ►Como se fazem os bébés, de Marcella Bacigalupi et al. (il. Emanuele Luzzati, trad. António José Massano, 1975); ►Era uma vez uma ilha... onde as crianças construiram a escola nova, de Marcella Bacigalupi et al. (col. Para ler para fazer n.º 2, 12/1975, il. Roberto Ravazzi, trad. António José Massano).
No âmbito do seu cuidado à infância, a Ulmeiro editou novas peças de teatro infantil (encenadas pelo Teatro de Animação de Setúbal), de António Ferra, livros didácticos e livros de educação para a cidadania. Realizou ainda secções de teatro infantil, no Clube Juvenil Ulmeiro, onde também mostrou filmes do Charlot aos sábados de manhã.

 

4.36 a 4.39

Capas dos 2 únicos números da revista Cidade Campo e páginas 101 e 115 do n.º 2 (editor JAR, distr. Ulmeiro, ns. 1 e 2, respectivamente 2/1978 e 1979), [Esp. JAR].
Os subtítulos resumem bem o projecto desta revista, já então a contracorrente da prática oficial prevalecente: Cadernos da habitação ao território e Movimento Popular e Prática Urbanística em Portugal. Receberam contributos de boa parte dos principais nomes da nova arquitectura e urbanismo pós-ditatorial, como Alexandre Alves Costa, Álvaro Siza Vieira, Nuno Portas, Carlos Guimarães, Eduardo Souto Moura e Manuel Correia Fernandes. Foi continuada por Sociedade e Território: revista de estudos regionais e urbanos, com edição pela Afrontamento, editora portuense distribuída pela Ulmeiro.

 

4.40 a 4.43

Páginas 44-45 e 50-51 do n.º 2 da revista Cidade Campo (editor JAR, distr. Ulmeiro, 1979), [Esp. JAR].
Texto de análise (profusamente ilustrado com reproduções fotográficas) de iniciativas dos movimentos sociais que intervieram nas principais cidades portuguesas no PREC, em prol do direito à habitação, do direito ao lugar e do direito à cidade, entre outros direitos humanos então reivindicados.

 

4.44

Capa do livro Mundo rural, que desenvolvimento?, do Movimento Solidariedade Rural (Ulmeiro, col. Biblioteca Ulmeiro, n.º 17, 1984), [Esp. JAR].
Livro de actas do encontro homónimo realizado em Coimbra em 6/1983 e que de deu então origem ao Movimento de Solidariedade Rural, de matriz cristã e ligado ao desenvolvimento integrado.

 

4.45

Capa do livro Peste malina, de Ivone Chinita (Ulmeiro, 1983), [Esp. JAR].
Livro póstumo de Ivone Chinita com 14 depoimentos de mulheres de distintos estratos sociais e regiões (incluindo o seu), nos quais predominam os temas da infância e adolescência, a sexualidade e as transformações trazidas pela revolução de 1974 na vida das mulheres em Portugal. Resultou dum trabalho de mais de três anos de entrevistas a dezenas de mulheres em torno da sua condição feminina, então herdeira duma educação castradora e patriarcal. A autora, que foi activista da Base FUT e companheira do poeta açoriano J. H. Barros Santos, publicou ainda Digo fome (Angra do Heroísmo, Gávea-Glacial, 1970), Relatório fragmentado (Angra do Heroísmo, Degrau, 1974), Mulher em horas de ponta (Lisboa, Eds. Maria da Fonte, 1979), Outra versão da casa (Lisboa, Eds. Base, 1980) e A espera (que integrou «Tudo bem?», publicado no jornal Açores, 1983, e encenado pelo grupo A Barraca).

 

 

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