5. Anti e pós-colonialismo e novas formas de intervenção
O legado colonial continuará a ser questionado pela Ulmeiro. Ao revelar em 1976 os Massacres na Guerra colonial, documentara casos conhecidos de atrocidades cometidas pelo exército português na Guerra colonial, um deles divulgado em primeira mão pelo padre inglês Adrian Hasting enquanto “massacre de Wiriamu”, retomando outra produção afim*. Devido a essa edição, autor e editor foram processados pela justiça militar, caso inédito até hoje. O processo, que se arrastou até 1983, acabou em amnistia, deixando inconformado o editor, por achá-lo merecedor de sentença, de acusação ou de absolvição.
O colonialismo (e o pós-colonialismo) foram ainda cobertos por livros sobre temas como a contra-insurreição e o papel do movimento independentista MPLA em Angola, bem como por uma generosa oferta de narrativa de ficção e de poesia por autores luso-africanos (p.e., Alda Espírito Santo, António Cardoso, David Mestre, Abílio Teixeira Mendes e Ascênsio de Freitas).
Apesar das contrariedades, a Ulmeiro entrou em força nos anos 80, procurando diversificar abordagens e suportes, inovando na ilustração e na divulgação de experiências ‘vanguardistas’ e reinvestindo em novos autores.
Abriu a década com um cancioneiro de José Afonso, um autor de intervenção da casa, e prosseguiu com a edição de várias obras sobre a música de intervenção.
Lançou a revista Três continentes (1980-81), que promoveu a cooperação internacionalista e divulgou noticiário sobre os países em desenvolvimento, privilegiando o novo espaço «lusófono» e colocando na agenda pública o silenciado caso da autodeterminação do povo de Timor-Leste (tirou 20 mil exemplares até ao n.º 12).
No retomar da edição periódica, seguiu-se a Sobreviver (1980-86), que abraçou novas temáticas sociais (ecologia, feminismo, naturismo, antimilitarismo, etc.), e os últimos happenings da poesia experimental. Esta revista sinalizou uma maior expressão ao grafismo e à ilustração de qualidade (destacando-se António Pimentel, João Carlos Albernaz e Lídia Martinez), bem como à caricatura (p.e., com Vasco).
Complementou-os um boletim promocional, o Ulmeiro Jornal (1984-85), contendo textos temáticos, perfis de autores, etc.
Em 1985, com “perto de um milhão de livros” publicados, a Ulmeiro continuava a “remar contra a maré” embora alertando para a “asfixia económica das nossas livrarias e editoras, novos impostos [o IVA]” (Ulmeiro jornal, n.º 4, III/1985).
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*V.g., Terror em Tete: relato documental das atrocidades dos portugueses no distrito de Tete, Moçambique (1971-1972) , Porto, A Regra do Jogo, 1973, trad. António Sousa Ribeiro; e Wiriamu, Porto, Afrontamento, 1974.
Capa do livro Massacres na Guerra colonial: Tete, um exemplo, de José Amaro Dionísio (Ulmeiro, 1976), [Esp. JAR].
Este livro documentou casos de atrocidades cometidas pelo exército português na Guerra colonial, um deles revelado pelo padre inglês Adrian Hasting, enquanto “massacre de Wiriamu”, e esteve em ligação com outra produção afim: v.g., Terror em Tete: relato documental das atrocidades dos portugueses no distrito de Tete, Moçambique (1971-1972), Porto, A Regra do Jogo, 1973, trad. António Sousa Ribeiro; e Wiriamu, Porto, Afrontamento, 1974. Porém, o seu autor e o seu editor foram os únicos a serem processados pela justiça militar quanto a este tema então tabu.
Artigo “Ulmeiro em tribunal militar por violação da lei de imprensa”, s.a., Diário de Lisboa, 10/3/1983, p. 10 [HM/CML].
Comunicado de imprensa da Ulmeiro “Aos órgãos de comunicação social”, ass. JAR, 8/3/1983, 1 fl. [Esp. JAR] e artigo “Amnistiados o editor e o autor de «Massacres da Guerra Colonial»”, s.a., Diário de Lisboa, 17/3/1983, p. 9 [HM/CML].
Página 15 do artigo “Sentar uma guerra no banco dos réus”, de Guilherme de Melo (com cartoon adjunto de Pedro Palma), Diário de Notícias, 1983, p. 15 e 18 [Esp. JAR].
Folha inicial do processo judicial relativo ao livro Massacres na Guerra colonial: Tete, um exemplo, de José Amaro Dionísio (Ulmeiro, 1976), [Esp. JAR].
O processo judicial movido à publicação deste livro da Ulmeiro por alegadamente atentar contra a “segurança nacional” foi o único sob democracia relativo a livros documentando a Guerra colonial. Prolongou-se por oito anos (1976-1983) e demonstrou não só a extrema dificuldade de discutir publicamente este tema (só tolerável pela via ficcional) como o lado obscuro da herança das forças armadas na política portuguesa.
A decisão de amnistiar os responsáveis do livro Massacres na Guerra colonial, da autoria de um experiente jornalista, deixou o editor José Ribeiro inconformado, pois assim não houve um veredicto judicial de absolvição ou condenação. Este caso teve ampla cobertura da imprensa, do início ao fim, por jornais como o Diário de Lisboa, Diário de Notícias, A Capital e Página Um.
Foto-montagem de 3 capas de livros de autores luso-africanos da Ulmeiro [Esp. JAR]:
►É nosso o solo sagrado da terra, de Alda Espírito Santo (1978); ►A lição de coisas, de António Cardoso (1980); ►Os famintos, de Luís Romano (capa de João Carlos Albernaz, 1983).
Em É nosso o solo sagrado da terra a são-tomense Alda Espírito Santo (1926-2010) recolhe a sua “poesia de protesto e luta” com raízes anticoloniais.
A lição de coisas, de António Cardoso (1933-2006), é um livro marcante de um dos poetas independentistas de referência para Angola, e foi analisado numa tese de doutoramento homónima de Tércio de Abreu Paparoto (USP, 2010).
Os famintos, de Luís Romano (1922-2010), livro proibido nos anos 1940, editado no seu exílio brasileiro em 1962 (via Editôra Leitura) e relançado pela Ulmeiro em 1984, denuncia a situação de miséria em que viveu a população cabo-verdiana sob o jugo colonial, conforme se pode ler na promoção editorial enviada pela editora a críticos literários e agentes do sector do livro, como Natália Correia, então ligada à Arcádia.
Ofício da Ulmeiro de 1984 de promoção editorial do livro Os famintos, de Luís Romano [AHBPPD/ Arq. Natália Correia].
Capa do livro Henda Xala, de Abílio Teixeira Mendes (Ulmeiro, 1984), [Esp. JAR] e artigo “O romance-testemunho de um médico sobre a Guerra colonial em Angola”, de C. B., Diário Popular, 17/4/1984 [Esp. JAR].
Henda Xala é um romance sobre a passagem do seu autor pela Guerra colonial em Angola, após o seu activismo na luta estudantil de 1962 em Portugal.
Capa, contracapa e página 19 (poema “Portugal colonial”) do livro Nas barbas do bando, de David Mestre (Ulmeiro, col. Biblioteca literária Ulmeiro, n.º 4, 1985), [Esp. JAR].
David Mestre foi um poeta angolano de filiação modernista, também ele independentista (desertor militar em 1971, preso até 1974) e da família Mota Veiga, cujo prémio literário homónimo impulsionaria Luandino Vieira e o seu Luuanda. O seu livro Nas barbas do bando, que integra o poema de denúncia “Portugal colonial”, tem capa de António Ole, prefácio de Ana Mafalda Leite e na contracapa reproduz um poema manuscrito de José Craveirinha dedicado ao autor. Esta foi uma ed. conjunta da Ulmeiro e da União dos Escritores Angolanos.
Foto-montagem de 3 capas de livros da Ulmeiro sobre África e a China [Esp. JAR]:
►Angola: documentos do MPLA (ed. lit. José Fortunato (1977); ►Prostitutas de guerra - mercenários de hoje, de Wilfred Burchett e Derek Roebuck (1977); ►História da China: 1840-1949 (1977, trad. Madalena Gonçalves).
Prostitutas de guerra - mercenários de hoje é um livro que aborda o papel dos mercenários na guerra que o regime sul-africano do apartheid moveu contra a Angola independente, com o apoio do Zaire, e traça o historial mais recente desta máquina de guerra. Um dos primeiros estudos sobre a contra-insurreição pós-colonial, recomendado em prefácio por um influente historiador africanista, Basil Davidson.
Angola: documentos do MPLA foi concebido por José Fortunato (i.e., JAR) para a nova col. 3.º Mundo e revolução e incluiu documentos de referência sobre o papel deste movimento independentista angolano no combate anticolonial.
História da China: 1840-1949 é um dos vários livros dedicados pela editora às temáticas da emancipação dos povos da Ásia que estiveram sob o jugo colonial, dentro do espírito anti-imperialista.
“Editorial”, por JAR, Três continentes, n.º 1, 6/1980, p. 1, e texto publicitário “Livros dos três continentes”, s.a., Três continentes, n.º 1, 6/1980, p. 2 [Esp. JAR].
O editorial supra apresenta a revista que a Ulmeiro dedicou à cooperação com as ex-colónias portuguesas e à valorização dos países em vias de desenvolvimento, propondo noticiário não paroquial e um engajamento internacionalista particular (lusófono), ambos já em erosão. Teve concorrência de peso: a Cadernos do Terceiro Mundo, editada no Brasil desde 1974, e depois em Portugal, com edições em espanhol e inglês e distribuição mundial.
No auge do Movimento dos Não-Alinhados, que então desafiava o dualismo das superpotências EUA e URSS, a Ulmeiro publicitou uma biblioteca internacionalista composta por livros que, entretanto, editara. Destinou-se ao estudo dos países que podiam integrar esse novo espaço político-ideológico.
Artigo “A Ulmeiro na Semana de Solidariedade com o povo de Moçambique”, s.a., Ulmeiro Jornal, n.º 1, 2/1984, p. 3 [Esp. JAR].
Nos anos 1980, a cooperação da Ulmeiro com a África lusófona envolveu não só a produção livreira como artesanal e actividades culturais e sociais.
Capa com título “Sessão do Tribunal dos Povos sobre Timor-Leste”, por João Carlos Albernaz, Três continentes, n.º 12, 6/1981 [Esp. JAR].
Este n.º da revista internacionalista da Ulmeiro contém um dossiê único sobre a autodeterminação do povo maubere numa época em que a ocupação e opressão indonésias em Timor-Leste tinham caído no olvido a nível internacional, inclusive em Portugal.
Capa e quadras das páginas 20-21 e 24-25 do livro Quadras populares, de José Afonso (Ulmeiro, 1980), [Esp. JAR].
As quadras “Haja ganas com fartura”, “Tenho debaixo da língua”, “A velhice não se enjeita”, “Tudo vai dar ao mesmo” e “São da América Latina” sinalizam algumas das ideias de José Afonso com que o editor da Ulmeiro mais se identificou na sua actividade: o voluntarismo patriótico (ou o imperativo da iniciativa pessoal para ajudar a debelar o mal social), a atenção à ligação cultural com as novas gerações, o idealismo social e a solidariedade internacionalista.
Foto-montagem de 3 capas de livros da Ulmeiro sobre música de resistência [Esp. JAR]:
►Zeca Afonso: as voltas de um andarilho, de Viriato Teles (2.ª ed. aumentada, 1999, 3.ª ed., 2000, v.o. 1994 da Relógio d’Água); ►José Afonso, poeta, de Elfriede Engelmayer (1999); ►Cancioneiro de Abril, de José Viale Moutinho (2.ª ed., 1999).
Quadras populares (1980) foi um tributo ao mais famoso cantautor português, contendo alguns poemas de crítica política actual bem como quadras do seu álbum “Com as minhas tamanquinhas” e a letra da canção “Índios da Meia Praia”. Este livro teve já 7 edições, a última sendo de 1999. Nesta senda, a Ulmeiro publicou ainda vários livros sobre a canção de intervenção portuguesa, incluindo trabalhos de referência de Viriato Teles (prefaciado por Sérgio Godinho) e de Elfriede Engelmayer. Por ocasião dos 25 anos da «revolução dos cravos» publicou ainda uma antologia de Viale Moutinho que integra as letras de cantautores da geração de José Afonso num novo tipo de cancioneiro.
Foto-montagem das capas dos ns. 1, 4, 5 e 6 de Sobreviver. A Revista Mensal dos (Im)pacientes, I série, 1980-81 [HM/CML].
Nos anos 1980 a Ulmeiro apostou forte na ‘agitação’ cultural, envolvendo-se com novas correntes culturais e sociais, de que as capas chamativas da sua revista Sobreviver são um reflexo.
Capa e página 18 do n.º 4 da revista Sobreviver, s.1, 3/1981, esta última reproduzindo a 1.ª de duas pranchas de banda-desenhada de Carlos Dias [Esp. JAR].
Artigos “O movimento de ecologia política”, por António Elói, Sobreviver, s.1, n.º 4, 3/1981, p. 27; "Embalagens sim, mas não abuse" e “Hoje é a tua vez”, s.a., Sobreviver, s.1, n.º 5, 4/1981, p. 28/9; e “As fitas que elas fazem”, por Luísa Costa Gomes, Sobreviver, s.1, n.º 6, 5/1981, p. 27 [Esp. JAR].
Entre os novos temas cobertos pela revista da Ulmeiro, destacam-se o ambientalismo (exemplificado em bd anti-nuclear de Carlos Dias e em artigo do activista António Elói), a igualdade de género (em “Hoje é a tua vez”, s.a.), e o feminismo, em texto de Luísa Costa Gomes. O combate contra a energia nuclear levou a Ulmeiro a editar um manifesto sobre política energética, il. por João Abel Manta. Esse manifesto, publicitado em 6/1977, subscrito por 110 cientistas e dinamizado por activistas como Afonso Cautela, Delgado Domingos e José Carlos Marques, ligou-se ao movimento cívico contra a instalação duma central nuclear em Ferrel (próximo de Peniche), em 1976, e pretendia bloquear a introdução desta opção no país, o que acabou por conseguir (apud testemunho de José Carlos Marques ao jornal Mapa, 18/1/2018, https://www.jornalmapa.pt/2018/01/18/viver-e-preciso/).
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