Item
Francisco Duarte
Nome do entrevistador/a
Joana Dias pereira
Rita Cachado
Local
Associação Cultural e Recreativa da Comeira
Data
16 de novembro de 2021
Duração
70 minutos
Nome do entrevistado/a
Francisco Duarte
Data de nascimento
26 de junho de 1937
Local de nascimento
Marinha Grande
Escolaridade
Estudou na escola industrial. Curso de vidraria. Foi trabalhador estudante na vidraria – 12-14 anos – e estudava à noite. Aos 10 anos já trabalhava numa taberna.
Local de residência
Marinha Grande
Profissão
Foi vidreiro dos 12 aos 14. Trabalhou na indústria dos moldes e tornou-se metalúrgico.
Associações em que participou
SBR1 de Janeiro
Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos
Sindicato da Indústria Metalúrgica,
Cargos dirigentes
Entre 1970/72 foi delegado sindical e no período de 1972/76 foi presidente da A.G. do Sindicato dos Trabalhadores Metalúrgicos.
Entre 1961 e 1996 Secretário ,Tesoureiro, Presidente da Direcção e Presidente da Assembleia Geral Associativo na SBR1 de Janeiro.
Entre 1961 e 1996 Secretário ,Tesoureiro, Presidente da Direcção e Presidente da Assembleia Geral Associativo na SBR1 de Janeiro.
Cargos políticos
Foi membro da Assembleia Municipal. Entre 1980 e 1985 foi Vereador. Entre 1994/2013 foi Presidente da Junta de Freguesia.
Sinopse da entrevista
Testemunha a sua participação associativa e realça o empenho dos dirigentes no desenvolvimento destas instituições e a sua importância no contexto local, nomeadamente no combate ao alcoolismo e na politização das populações. Testemunha a transmissão da memória associativa entre gerações. Relata também as práticas repressivas do regime, nomeadamente na esfera cultural. Descreve as condições de vida e trabalho na Marinha Grande e em que condições se procurou democratizar a atividade sindical antes do 25 de abril, quando foi delegado sindical. Descreve o progresso do movimento associativo e sindical após a Revolução Reflete sobre o futuro do associativismo.
Palavras-chave
Testemunho
P: Senhor Francisco, a ideia destas entrevistas é registarmos as experiências de vida, ou seja, experiências que as pessoas têm ao participar no associativismo e a forma como o associativismo enriquece a vida das pessoas e também para percebermos quais são as pessoas que têm maior propensão para participar e, por isso, começava por lhe fazer algumas perguntas sobre a sua vida. Primeiro, gostava que me dissesse, para ficar registado, o seu nome e a sua data de nascimento.
Francisco Duarte: Francisco Manuel Carvalho Duarte. 26 de junho de 1937.
P: Nasceu aqui, na Marinha Grande?
Francisco Duarte: Na Marinha Grande, sem maternidade, nascimento à antiga.
P: Estudou aqui?
Francisco Duarte: Estudei aqui, na altura na Escola Industrial da Marinha Grande. Ainda não era Escola Industrial e Comercial, era só industrial. Acabei por tirar um curso industrial, o chamado curso de vidraria, que ao início havia um curso de vidraria e um curso de pintor de vidros. Eu como tinha a pretensão de ter de facto a profissão de vidreiro, optei pela vidraria. Pois fui vidreiro dos 12 aos 14 anos e era uma profissão que eu, de facto, sonhava com ela e gostava muito de ser vidreiro. Mas um problema cardíaco, na altura também, um médico daquela altura, neste caso, o Doutor Júlio Vieira, que era uma figura carismática também da Marinha Grande, proibiu-me de ser vidreiro. Então, depois optei, naquela altura, pela chamada Universidade dos Montes. Iniciei uma outra atividade, exatamente como metalúrgico na Aníbal Abrantes, que era uma fábrica de moldes, a mais importante e a primeira que nasceu na Marinha Grande.
P: E ficou lá sempre?
Francisco Duarte: Fiquei lá durante 10 anos, depois trabalhei mais 10 anos na Emídio Maria da Silva, que era outra empresa também de fabricação de moldes para a matéria plástica e mais 18 anos na Molde Matos. Portanto, tive 38 anos de profissão, uma profissão dura, uma profissão de que eu nunca gostei muito. Portanto, eu sou das muitas pessoas que existem certamente com profissões contrárias à sua vontade. O meu sonho era ser vidreiro, porque gostava muito de vidro. Dava-me um certo gozo interior ver o vidro ser manejado e o equilíbrio do vidro em quente fascinava-me. Mas depois fui para a indústria de moldes, enfim…
Na altura, entrar naquela oficina chamava-se ir para a faculdade dos moldes. E então tive uma carreira de metalúrgico de 38 anos, nos quais fui delegado sindical a partir de 1971. Estava naquela lista de um tal senhor da Marinha chamado Beta, um senhor que lhe chamávamos o Beta. Ele era Alberto, acho, mas chamavam-lhe o Beta, que mais tarde viemos a descobrir que era informador da PIDE. Ele tinha por norma, quando eram as assembleias gerais do sindicato, pedir-me para eu redigir, a mim e a um outro senhor chamado Biscaia, para redigirmos sempre, naquela altura, telegramas de protesto para o Governo. E então soube-se depois 25 de Abril, porque ele foi descoberto, que ele era agente, mesmo agente direto. E lá estava o meu nome para a curto prazo ir dentro, entretanto deu-se 1974 e felizmente acabou.
Depois fui dirigente sindical. Durante 2 anos, fui delegado sindical e depois fui mesmo dirigente, presidente da Assembleia Geral do Sindicato da Indústria Metalúrgica, cuja sede principal funcionava em Vieira de Leiria, uma outra freguesia pertencente à Marinha Grande. Estudei de dia alguns anos, mas poucos, porque as dificuldades económicas eram muitas. E então eu tive de começar a trabalhar na escola, de dia, antes de tirar o curso. Acho que ainda fiz o primeiro ano de dia, já não me recordo bem, mas depois era trabalhador-estudante. Portanto, o meu horário de trabalho era das 8 da manhã às 6 da tarde, com uma hora para almoço e trabalhávamos aos sábados das 8 às 11, mas tínhamos duas horas para irmos para a escola. Portanto, eu saía sempre às 4. Uma das pessoas que me acompanhava até é hoje um empresário famoso, o senhor Henrique Neto, talvez já tenha ouvido falar. E acabei então por tirar o curso à noite. Antes disso, aos 10 anos, fui empregado na taberna, que era o refúgio dos vidreiros. Normalmente, começavam às 8 e acabavam às 3 e iam para as tabernas e era ali que se consumia muito vinho, de facto.
Hoje reconheço que na altura não compreendi que seria assim, que começou aí também há uma certa consciência de que a taberna não era o melhor para os homens, nem para o desenvolvimento do país através deles. Quero eu dizer com isto, pensou-se muito também nas tabernas no movimento associativo. E algumas coletividades, pelo menos aquela a que eu estive mais tempo ligado, começou a ser criada numa taberna de um homem já, naquela altura, com uma cultura razoável e que via mais longe, sabia as condições políticas, em que vivia e porque ele foi também algumas vezes incomodado pela polícia, não numa maneira muito acentuada, mas foi avisado. E penso que também aí começou a haver um bocado a consciência de que seria necessário tirar os homens das tabernas e levá-los para locais onde se pudessem encontrar, o que foi o movimento das coletividades inicialmente.
Depois fui dirigente daquela coletividade, e de facto não houve nada que eu não fizesse. Desde a limpeza aos salões antes de abrir a coletividade para os associados entrarem. Nós tínhamos de fazer limpeza, incluindo casas de banho, tínhamos de fazer tudo. Depois fui segundo secretário, lembro-me de que foi o primeiro posto que tive numa direção. Depois fui tesoureiro. Depois fui presidente uns 6 ou 7 anos. Fui 20 anos presidente da Assembleia Geral e 30 anos ligado ao grupo de teatro, onde iniciei essa atividade como ponto, passando depois para o palco, fazendo variadíssimas peças, uma das quais nos deixou uma recordação muito boa, que foi A Promessa. Porque fomos a um concurso num Orfeão em Leiria e tirámos uma menção honrosa. Foi uma coisa maravilhosa para nós, na altura deu-nos bastante gozo. Trabalhávamos muito de facto nas coletividades.
Havia nessa altura uma maior ligação a nível associativo, apesar de tudo, porque não havia tantos atrativos, tantas coisas que despertassem as pessoas para outras atividades. Havia uma maior ligação entre as associações, apesar de haver bairrismos muito doentios. Porque as questões entre coletividades, pelo menos na Marinha Grande, que é um meio associativo muito grande, como sabe, tem dezenas de coletividades… Mas, apesar de tudo, havia realizações em conjunto que eram muito interessantes, nomeadamente torneios de pingue-pongue, torneios de bilhar, torneios de sueca. E depois havia uma coletividade que, enfim, depois enveredou por um certo elitismo, mas fez um trabalho muito importante. Começou a criar também torneios a nível nacional, nomeadamente no que diz respeito ao ténis de mesa, trazendo equipes, não digo como um Benfica ou o Sporting, para esses torneios. E começaram a haver algumas realizações entre as coletividades, quando havia sempre uma festa final, onde, por exemplo, elegíamos sempre a Rainha das coletividades, ou uma madrinha das coletividades.
Mas a partir daí também começou a criar-se uma certa da consciência política, porque também tínhamos um homem nesse movimento, muito importante do ponto de vista político, que era o Doutor José Henriques Vareda. Certamente que já ouviram falar dele, que é um dos grandes fundadores do Sport Operário Marinhense. E então começou a haver encontros, enfim políticos, com inconformismo relativamente às misérias que se viviam, porque de facto vivia-se miseravelmente.
Eu lembro-me, isto um à parte, mas lembro-me de ter os primeiros sapatos aos 13 anos, e mesmo assim meu pai comprou-me os sapatos com 3 ou 4 números a mais, levaram quase um jornal cada um à frente para as biqueiras, os bicos dos sapatos não irem para cima. E depois umas botas cardadas, umas botas que levavam aquelas cardas todas quando pisávamos mais plano ou cimentado, escorregávamos. Portanto era uma miséria muito grande. Lembro-me da minha mãe, quando comíamos bife de vaca com o ovo estrelado, lembro-me da minha mãe não comer, o bife não chegar para ela. Comíamos eu, as minhas irmãs e o meu pai e eu, pelo menos, lembro-me de encarar isso com certa naturalidade. As pessoas eram conformistas, uma grande parte, fora aqueles que se foram revoltando. Mas isto para dizer também que a consciência política de muitos marinhenses nasceu nas coletividades, foi a partir das coletividades. E que muitos tiveram interesse de se ir informando, de ir conhecendo coisas, e ter constantemente o pensamento na coletividade para realizar coisas.
Eu posso dizer que enquanto fui presidente da coletividade, da SBR Primeiro de Janeiro, da Ordem da Marinha Grande, lembro-me de fazer coisas que me deixam hoje recordações. É claro que eu dei parte da minha vida àquela coletividade. Eu devo dizer-lhe, isto num à parte que talvez não tenha interesse, que estive quase à beira do divórcio, porque eu passava mais tempo na coletividade. Naquela altura fazia-se as festas de arraial e havia uma fonte de rendimento importante, que era a quermesse. Nós íamos pedir prémios e depois vendíamos rifas. Mas aquela quermesse tinha de ser muito bem organizada, pôr números em mil prémios e depois vender rifas, aquilo tudo… E então especializei-me na organização de quermesses, fui 29 anos seguidos diretor da quermesse. Um ano, a minha mulher perguntou-me: “Sempre quero ver qual é o ano em que vou contigo à festa?” Porque eu organizava a quermesse e depois tinha de estar lá no dia das festas, como é natural. Bom, isto, a nível da importância que o associativismo teve na minha vida, foi de uma importância, passo a repetição, elevada, muito elevada.
Ganhei consciência de que tinha de participar na construção de uma sociedade diferente e de alguma maneira ativa, através da minha atividade política. Desde 1974, e até antes, tive atividade política. Aos 15 anos, quando trabalhava na Aníbal Abrantes, já tinha uma missão política. Mas para dizer que, de facto, o associativismo teve uma importância fundamental na formação de muitos homens e também na melhoria da própria sociedade, especialmente a nível desse problema das tabernas, que era uma coisa terrível.
P: E o que é que o trouxe para associativismo, o seu pai já era?
Francisco Duarte: Não, o meu pai nunca foi dirigente de nenhuma associação. O meu pai foi apenas músico de uma banda filarmónica de uma fábrica que existiu. Eu fui influenciado por esse tal senhor que morava lá na Ordem. Porque eu nasci e fui criado até aos 20 anos num lugar chamado Cruzes e depois comecei a namorar uma rapariga da Ordem e, aos 22 anos, casei-me.
Quando eu ia ao barbeiro, o senhor Ilídio Guerra estava sempre presente ali na barbearia, que se chamava barbearia do Arnaldo Martins. E ele discutia muito estes problemas das coletividades e nessa altura já tinha uma casinha pequena, que até era uma casa de habitação, onde começou a Sociedade de Beneficência Primeiro de Janeiro. Eu penso que isto por altura da Guerra Civil de Espanha – 1936, 37. Mas depois veio a ser a coletividade fundada e inaugurada em 1939. Portanto, a data legal do início da Coletividade SBR Primeiro de Janeiro foi em 1939. E esse senhor, até tem hoje o nome de uma rua da Ordem, é que me influenciou de certo modo.
Porque ele tinha algumas conversas já acima do normal. Eu apreendia muito as palavras dele e talvez de uma maneira involuntária ou inconsciente foi-me modificando muita coisa, foi ficando muita coisa do ponto de vista cerebral, passo o inconveniente da palavra, se calhar. Depois convidaram-me, ia lá aos bailaricos com a minha namorada e tal e em 1961 fizeram-me o convite para eu ser pertencer aos corpos gerentes da coletividade. E a partir daí comecei, nunca mais de lá saí, praticamente, até 1996, quando eu já era presidente da Junta de Freguesia.
E numa altura em que a coletividade teve fechada três meses, numa atitude de salvação da própria coletividade, porque aquilo já estavam a pensar ir entregar as chaves à Câmara, eu ainda fui tomar conta daquilo mais uma vez. Na altura não me deu jeito nenhum, que era presidente da Junta e o trabalho chegava bem. Mas fui presidente várias vezes, fui tesoureiro, fui secretário e não me conformava nunca que a coletividade não tivesse uma atividade qualquer. Ou fazia bailes da Primavera ou fazia bailes de aniversário, de eleição da madrinha da coletividade, bailes das chitas, depois fiz, fez a minha direção, mas devo confessar, não estou a envaidecer-me, mas eram coisas da minha autoria. Fiz um MusicOrdem, que era um espetáculo de 15 em 15 dias, onde entrevistávamos sempre uma figura com importância no governo da Marinha Grande. Foi desde o chefe da polícia até ao diretor da Segurança Social, pessoas ligadas ao teatro, como o Norberto Barroca. Fazíamos entrevistas de poesia. Havia sempre um sketch de teatro da minha autoria, com artistas que eu escolhia do próprio grupo. Havia um sketch, depois havia concursos, concursos de assobios, concursos de anedotas. Era uma coisa interessantíssima.
A coletividade da Ordem tem um salão muito grande e tem outro salão idêntico ao lado, são dois salões paralelos. Fazíamos no salão pequeno. E então aquilo de 15 em 15 dias era uma alegria fantástica, pessoas a tentarem cantar, havia um concurso de canto também, interessantíssimo. Depois fizemos também um concurso de fados, que tinha pernas para hoje, se não o tivessem morto... Aqueles bairrismos doentios de que eu falava há pouco, muitas vezes também funcionavam pela negativa. Há pessoas que não podem com o êxito os outros, e os concursos de fado morreram exatamente por os diretores seguintes a mim, nessa época, não estarem muito de acordo com a maneira como funcionavam, porque aquilo era um concurso de fado, tinha eliminatórias ao fim de semana e teve dezenas de concorrentes distritais. E eu penso hoje que aquela realização tinha condições para hoje ser um concurso a nível nacional, porque de facto veio gente de muito lado, até nós ficámos surpresos.
Houve várias semanas em que fazíamos um espetáculo e os concorrentes cantavam e faziam um espetáculo com um júri que escolhia em cada sessão um concorrente para apurar para a final. A final desse espetáculo, desse concurso, foi uma coisa inolvidável naquele salão. É um salão muito grande, tem 100m por 18m de largo. Tinha 90 mesas completamente esgotadas e com gente de pé, com um palco magnificamente ornamentado. Os fadistas de muito nível já, com muita categoria, uma delas que ganhou o prémio, nessa altura já havia prémios, fizemos um prémio pecuniário, mas porque se pensou também que só seria possível algum êxito se houvesse os prémios pecuniários, porque se não houvesse também era difícil. E eu lembro-me que nessa altura o primeiro prémio foi 100 contos, que era uma quantia significativa para aquela altura. Estou a falar de oitenta e poucos.
P: Vamos recuar um bocadinho. Antes do 25 de Abril, no período do fascismo, como é que era a vida das coletividades? Quais eram os constrangimentos?
Francisco Duarte: No teatro, por exemplo, eu cheguei a fazer teatro com dois PIDES na primeira fila, quando fizemos O perdão dos filhos, uma peça chamada perdão dos filhos e aquilo foi à censura e eles puseram lá o lápis azul nalgumas passagens da peça. Nomeadamente a nível cultural, e na área do teatro, tínhamos de ter um cuidado muito grande e de facto aí havia restrições de um grau elevado, que certas peças não podíamos... Mesmo a própria Promessa também teve que ir à censura. E tivemos algumas, porque era o Bernardo Santareno, um escritor, enfim, todos sabemos como é. Lembro-me dessas restrições, nomeadamente a esse respeito.
Também tínhamos na Presidência da Câmara sempre alguém que estava ligado aos problemas políticos e que os comunicava. E então, de vez em quando, experimentavam-nos, pelo menos ao nível da coletividade que eu mais frequentei, e as outras eram idênticas. Aliás, o Sport Operário Marinhense foi das coletividades mais perseguidas antes do 25 de Abril. Tinha visitas da PIDE, baldeavam-lhe a biblioteca toda, porque aquela biblioteca tinha a fama de educar os trabalhadores e de dar uma perspetiva política diferente. E então, também ainda nas bibliotecas, porque nós tínhamos muito interesse também em organizar a biblioteca e muitas vezes fazíamos convites aos próprios associados para sessões de leitura e havia essas sessões de leitura que eram, de facto, vigiadas. O próprio presidente da Câmara tinha alguém no lugar que se inscrevia até para essas sessões. Nós viemos a saber isto tudo depois, passado algum tempo, porque as pessoas também, especialmente depois de 25 de Abril, viemos a saber quem eram. Algumas, nem todas.
E então nós tínhamos constrangimentos quase em tudo, à exceção dos bailes, que me parece que deixavam passar assim mais ao lado. Mas eu falava há pouco no movimento associativo e quando falei na figura do Doutor José Vareda, que começou também a organizar, a politizar muitos dirigentes das coletividades, com encontros na mata, fazíamos festas apropriadas na mata, trazíamos sempre um cantor da revolução, os cantores de intervenção, essencialmente isso, mas os cantores de vanguarda, também se dizia na altura.
E começou a haver uma adesão muito grande também de homens que não tinham nada a ver com o associativismo e depois se foram incorporando. E começou a haver uma consciência política diferente e também, devo dizer que neste percurso todo, muitas tabernas foram perdendo a sua força. Porque havia tabernas por todos os cantos e estavam sempre cheias. O movimento associativo contribui muito também para que esse flagelo, entre aspas, perdesse um bocadinho de força. De maneira que, enfim, penso que o associativismo ajudou muito a ter consciência daquilo que andava a fazer por cá ao de cimo da Terra.
E foi também o associativismo que me levou para as autarquias. Como deve saber, fui presidente da Junta durante quatro mandatos, 20 anos, e fui membro do executivo mais quatro. Fui vereador da Câmara Municipal também durante 6 anos, 2 mandatos, quando os mandatos eram de 3 anos ainda. E fui membro da Assembleia Municipal. Portanto, tenho a vida nesse aspeto bem preenchida e com realizações no associativismo. Hoje, tenho a minha opinião sobre o associativismo. Sou da opinião de que a maioria das coletividades perderam o comboio da evolução da sociedade. Faltou gente pensante, não quer dizer que alterar esta situação seja algo de muito fácil porque, como todos nós sabemos, o povo português, uma grande parte do povo português ainda está numa bitola de cultura um bocado abaixo da média, um bocadinho.
Porque a gente via bem, especialmente quando íamos a algumas povoações com o teatro, víamos bem o atraso cultural de muita gente, o que começou a dificultar também a vida das próprias coletividades. Porque não havia muita gente disponível para ir e começaram também muitos a ter medo, os que frequentavam a Igreja, por exemplo, começaram a ter medo das coletividades e a não frequentar tanto. Havia assim estas contradições. Não sei especificar muito bem isto, este pensamento devia ser mais bem ordenado. Mas, apesar de tudo, hoje penso que há um conformismo muito grande dos próprios dirigentes das coletividades. E tenho de dizer abertamente, gente eleita também para as coletividades com muito poucas competências culturais. Isso, se de facto o poder local, eu na altura em que fui vereador, fui vereador da Cultura, e a primeira, uma das primeiras iniciativas que tive foi a Câmara contratar um animador cultural para trabalhar fora de horas.
Qual seria o funcionamento dele nas próprias coletividades? Cada dia da semana ia a uma coletividade para tentar organizar grupos de teatro, grupos corais, porque a pessoa que foi contratada tinha estas valências todas e estava disponível para ter um horário diferente do normal. Isto para dizer o quê? Se o poder local, de facto, não tomar algumas medidas no sentido de ter técnicos que possam dar uma ajuda às próprias coletividades, não é ajuda material, essa ajuda cultural, vamos chamar-lhe assim…
Tirando uma ou duas coletividades, mas eu apenas classifico o Sport Operário Marinhense, que apesar de ser no outro tempo uma coletividade que mais fez pela cultura e que mais fez para desenvolvimento político das próprias pessoas e que mais fez pelo movimento associativo, depois teve uma mudança muito grande. Hoje, eu considero que é uma coletividade um pouco elitista. Tem muitas atividades, claro, mas nem todos têm acesso a elas porque têm de ser muito bem pagas.
O Operário tem hoje alguns associados (outros já morreram, conheci-os todos) que no tempo antes do 25 de Abril nem à rua onde ficava situada a sede do Operário iam. Após o 25 de Abril, eram sócios do Sport Operário Marinhense. Portanto, há aqui uma contradição. Há aqui uma mudança de atitude própria das pessoas e também uma mudança de carisma da própria coletividade. Começou a ser uma coletividade onde uma grande parte dos empresários e dos novos empresários começaram a ter placas douradas nos placares. Mas, retomando, o discurso anterior, eu penso que nas coletividades de hoje os seus responsáveis são conformistas. Eu, se estivesse hoje numa coletividade, mesmo na minha coletividade, eu tinha de inventar coisas para conseguir que a minha coletividade… Nem que copiasse pela televisão, copiasse programas de televisão para a coletividade ter vida. Agora, ter magníficas instalações, com áreas enormes, meses e meses sem nenhuma atividade, dói-me, a mim dói-me e eu não me conformava.
Eu voltava às coisas antigas, não tinha problema nenhum. Eu não tinha problema nenhum hoje em pôr em realização um grande baile de vestidos de papel, de trajes estapafúrdios, digamos assim. Depois, com um concurso onde estivesse um artista final, um cantor ou um declamador, fosse o que fosse. E eu hoje realizava novamente um rally paper. Fomos dos primeiros a realizar um rally paper. Claro que hoje é complicado, porque a gasolina está muito cara, fazia-se de bicicleta. Também se pode fazer de bicicleta, a um domingo, faz-se um rally paper ciclista. Portanto, isto para dizer o quê?
Apesar de reconhecer que é bastante complicado e difícil as coletividades apanharem o comboio, têm que trabalhar muito. E hoje não há aquela dedicação que havia também naquela altura. Porque naquela altura, como eu lhe disse, nós limpávamos a coletividade e abríamos e estávamos de serviço ao bar, uma equipa por semana, dois dirigentes faziam a semana inteira. Hoje isso é difícil. Eu vejo, por exemplo, na coletividade do meu lugar, já chegou a ter três empregadas, agora tem duas. Eu tenho dúvidas que se ganhe para empregadas, é um bocado complicado. Portanto, esta dedicação às próprias coletividades, que a própria evolução da sociedade também trouxe.
Porque hoje podemos estar num sofá requintado, numa sala quente a ver televisão, e a televisão tem programas para todos os gostos. Temos os computadores e, enfim, centenas de milhares de pessoas que passam serões aos computadores. Há, de facto, muitas atrações e não é fácil levar as pessoas para as coletividades. Agora, realizando alguma coisa de diferente e depois é urgente que alguém tenha a capacidade e a força de unir mais as coletividades, porque as coletividades em conjunto têm muita força. Nem que tenham uma realização por ano de uma grandeza palpável, nem que sejam os tais concertos ou uma danceteria modernizada, bem equipada, para levar lá as pessoas. Pode ser só num sítio, mas explorado por todas. Porque não estou a ver todas as coletividades, por exemplo, a adaptarem as suas instalações a uma pequena danceteria, equipada convenientemente com os psicadélicos e tudo isso, mas é possível pelo menos fazer uma que funcione por todos, com o conjunto de todos.
Mas, aliás, quase todas as coletividades teriam condições para fazer um pequeno espaço, porque hoje as danceterias levam muita gente.
P: Mas não acha que, e voltando um bocadinho ao que tem estado a sublinhar ao longo da sua história, da ligação que havia entre a participação das coletividades e a intervenção política, que essa dimensão, essa ligação também faz parte da identidade das coletividades e que também é muito essa dedicação dos dirigentes também é muito por vocação política, ou seja, também é uma motivação política?
Francisco Duarte: Sem dúvida. Agora nem tanto, mas houve uma época em que os partidos políticos disputavam acerrimamente as direções das coletividades. Havia e continua a haver ligações das coletividades à política, sem dúvida nenhuma, e à atividade política. Agora, vamos lá ver, as coletividades hoje são frequentadas por muito poucas pessoas, por pouca gente. E nalguns casos, gente já de uma certa idade também, com um nível cultural muito abaixo do que era desejável. E que o interesse deles é estarem ali a beber uns copos e a coletividade passa muito tempo despercebida, completamente despercebida.
Posso estar completamente enganado, mas eu penso que para levantar tem de haver alguém, como eu dizia, com a força capaz de organizar, de coletividades terem a mesma vontade no sentido de algumas organizações, organizações com o vulto, que marquem e que possam durar vários anos, desejadas pelo próprio público.
P: Mas diga-nos lá, das suas realizações, daquilo que realizou, há bocado estava a dizer que tem realizações que o marcaram. Quais é que foram aquelas que foram mais marcantes?
Francisco Duarte: E eu devo dizer-lhe que a mais marcante foi esse concurso de fado e foram os vários bailes que nós fazíamos alusivos a qualquer coisa. Fazíamos o Baile da Primavera, por exemplo, e o salão era decorado, tanto o chão como as paredes, com flores da mata. Com mulheres que, voluntárias, que depois também conseguiu-se criar-se um grupo de mulheres que trabalharam imenso. Ainda hoje trabalham em muitas coletividades. Na minha, digamos assim, também acontece ainda isso.
P: Quando é que elas começaram a participar mais?
Francisco Duarte: A partir da década de 80, no caso da minha coletividade. Nas outras, na grande maioria, foi um bocadinho mais tarde. Mas aquela coletividade que também tinha umas instalações mais amplas, digamos assim, e onde se podiam realizar mais coisas e havia mais gente também, porque é o lugar do concelho com mais gente. Tem 7000 habitantes, 7000 habitantes é muita coisa.
P: Como é que elas entraram? O que é que elas vieram fazer? Quais foram as atividades que começaram a desenvolver?
Francisco Duarte: Começaram primeiro nos lavores, nas costuras e nessas coisas. Depois compraram, no caso da coletividade da Honra, compraram uma televisão só para a sala delas. Depois começaram também, quando fazíamos os MusicOrdens, por exemplo, eram elas que faziam a cozinha toda e nas festas faziam a cozinha toda. Depois faziam alguns sorteios para passeios delas. Tinha uma atividade ali que ajudava muita a coletividade. Ajudavam muito o grupo de teatro, era de lá que vinham as costureiras, era de lá que vinham as ajudantes das costureiras, tudo isso. Não tiveram assim realizações de grande vulto, tinham aquela presença delas, que era importante. Eu acho que iam à coletividade quase todos os dias, juntavam-se ali nas suas conversas, enfim, algumas a costurar e outras não.
P: Faziam parte dos órgãos dirigentes?
Francisco Duarte: Muitas fizeram, mas isso já a partir da década de 90. Houve quase sempre mulheres na direção. Ainda hoje há, mas numa percentagem – salvo raras exceções –diminuta. Só houve aqui há uns dez anos, talvez, que era uma direção só praticamente de mulheres. Mulheres não, de raparigas, digamos assim, raparigas muito jovens, ainda muito jovens. É a direção de que eu me lembro que teve mais mulheres, creio que foi essa, creio que na década de 80, já não posso precisar, ou de 90.
P: Fale-me também um bocadinho da sua participação sindical. Disse-me que ainda antes do 25 de Abril foi para o sindicato, ainda o sindicato corporativo, o sindicato nacional. Como é que entrou?
Francisco Duarte: Entrei em 1971, mas aí era delegado sindical. Então íamos às empresas ver o que é que se passava. Na maioria dos casos éramos escorraçados, especialmente quando íamos ali ao Bombarral tentar ver quem eram os aprendizes que trabalhavam nas oficinas sem terem idade. Os próprios operários chegaram a escorraçar-nos, como nos fizerem em Pombal uma vez, por exemplo. Era mais nessa área que trabalhávamos, a de levarmos os problemas à própria direção do sindicato, com reivindicações já salariais, com reivindicações de férias. Porque eu comecei a trabalhar, para ter direito a férias tinha que trabalhar, já não me lembro, mas era uma série de anos para ter 8 dias de férias. Pronto eram essas reivindicações todas, foi-se massacrando, massacrando... Era o sindicato metalúrgico.
P: E a direção do Sindicato Metalúrgico, ainda era uma direção próxima do regime?
Francisco Duarte: Na altura era muito próxima do regime, o presidente era agente da PIDE, agente oficial mesmo…
P: E foi assim até ao 25 de Abril?
Francisco Duarte: E foi assim até ao 25 de Abril. E portanto, como delegado sindical, foi essa atividade que tínhamos nas empresas. E depois fui presidente da Assembleia Geral, mas nessa altura, o presidente da Assembleia Geral trabalhava com a direção do próprio sindicato.
P: Ainda antes do 25 de Abril ou já depois?
Francisco Duarte: Depois do 25 de Abril, já depois do 25 de Abril é que eu fui presidente da Assembleia Geral. Mas na altura o presidente da Assembleia Geral trabalhava também com a direção, ia às reuniões e depois, enfim, tinha um dia por semana que era para ir ao sindicato. E aí também desenvolvia atividade sindical nessas reivindicações, marcando algumas manifestações, também visitando novamente as empresas após o 25 de Abril, ainda com muitas dificuldades de conseguirmos entrar nas empresas, especialmente ali na zona das Meirinhas, Pombal e Bombarral. É onde me lembro de termos maiores dificuldades de lidarmos com os problemas.
Depois também houve um período em que os metalúrgicos marinhenses tentaram que a direção e as instalações do sindicato que fizeram na Vieira de Leiria viessem para a Marinha Grande. Foi uma Assembleia Geral a que até as peixeiras todas foram, porque não queriam de maneira nenhuma o sindicato fora da freguesia da Vieira. Eu também nunca defendi isso e ganharam, eles ganharam e o sindicato continua lá. De maneira que foi uma atividade sindical muito contrariada, muitas vezes, pelo patronato. Fui de facto sempre muito prejudicado, especialmente a nível salarial, ganhava sempre menos do que os outros. E tive uma vez um patrão que me fez uma proposta de eu abandonar a vida política e sindical, que poderia ser chefe da fábrica. Tivemos uma discussão que ainda hoje está na mente dos dois, certamente.
Portanto, ser dirigente sindical, mesmo após 25 de Abril, não era tarefa fácil. Nem eram todos que queriam. Porque éramos discriminados, altamente discriminados, e ganhávamos menos do que os outros. Quando éramos aumentados, era menos do que os outros e tínhamos anos que nem aumentos tínhamos, porque éramos dirigentes sindicais. Eu fui 6 anos, não fui muito tempo, mas foi suficiente para ficar marcado para sempre. Mas, enfim, quem corre por gosto não cansa e sujeita-se a tudo.
P: Como é que foi o 25 de Abril aqui na Marinha Grande?
Francisco Duarte: O 25 de Abril foi um acontecimento inesquecível para toda a gente. Foi de uma alegria transbordante. Eu estava na fábrica, já eram 7 horas e 15 minutos quando soubemos. É evidente que a fábrica parou imediatamente, viemos todos para a rua, nem sabíamos bem o que é que tinha acontecido, uma coisa brilhante. Depois, no 1.º de Maio seguinte então, na Praça Stephens, foi uma coisa inesquecível, eu nunca vi na minha vida tanta gente junta. Eu sei lá, aquilo era gente a perder de vista. Era nas ruas todas que davam para a praça e na praça, no 1.º de Maio ainda mais que no 25 de Abril. Mas foi de facto um acontecimento que nos marcou a todos da maneira indelével. Ainda hoje, quando falamos disso, sentimos a emoção do que foi. Porque eu ainda vivi 37 anos no salazarismo. É, enfim, as dificuldades por que passámos, aquela esperança que nasceu com o 25 de Abril, aquela perspetiva de uma sociedade mais justa… No meu ponto de vista, infelizmente, não tão justa como gostaria. Mas, enfim, cá estamos.
P: Como é que isso se viveu nas coletividades, mesmo aqueles meses do PREC? Como é que isso foi dentro das coletividades?
Francisco Duarte: Não se sentiu muito nas coletividades. Não me recordo bem, mas passou um bocado ao lado das coletividades. Não houve assim grandes movimentações, a não ser algumas reuniões em que pediram as instalações para o efeito, de grupos políticos.
P: Mas não se abriram oportunidades para novos tipos de realizações? Não se participou naquelas organizações populares para o saneamento básico? As coletividades não estiveram envolvidas nesse processo?
P: Tiveram, de certo modo. As coletividades estiveram envolvidas em quase todo o processo político que se desenvolveu, porque as coletidades foram sempre espaços onde qualquer coisa que se organizava tinha de funcionar. Agora, em muitos casos, as próprias direções das coletividades alheavam-se um bocado dos problemas. Eram mais movimentos de associados e não associados, que se reuniam naquelas instalações para algumas realizações. Mas numa grande parte dos casos, as coletividades estavam um bocadinho ao lado.
Agora, as próprias coletividades depois tiveram a sua atividade após o 25 de Abril, que já era de facto uma atividade mais, com uma perspetiva de sociedade diferente. O movimento teatral foi de uma importância muito grande depois do 25 de Abril. Fizeram-se imensos espetáculos com uma perspetiva política muito diferente.
P: Como por exemplo?
Francisco Duarte: As peças de teatro que escolhíamos eram sempre de autores que tinham um cariz político muito. No início de qualquer espetáculo de teatro, íamos apresentar a razão pela qual aquela peça ia ser apresentada, o seu cariz e, enfim, o que podia influenciar na vida das pessoas. Porque as pessoas também não tinham muita capacidade de absorver o conteúdo da própria peça. E havia então esse procedimento: alguém apresentava a peça antes de se iniciar os espetáculos e havia alguns ensaiadores, eu conheci alguns, que quase contavam a peça toda, e era bom para alguns porque, tem de se reconhecer que muita gente que ia ver peças de teatro que saía de lá quase na mesma. Não percebiam muito bem a mensagem. Nesse aspeto foi muito importante.
Depois nós não tínhamos também a possibilidade, do ponto de vista político, de recrutar muita gente, porque as pessoas também não aderiam muito, queriam espetáculos populares. Qualquer espetáculo que nós realizámos na coletividade, não há comparação com os espetáculos de revista à portuguesa que nós fizemos. Nós fizemos quatro revistas à portuguesa, revista popular portuguesa, e, aí sim, do ponto de vista político isso era saliente. O conteúdo dos próprios sketches era marcante.
Nós fazíamos uma peça de teatro e marcávamos logo dois espetáculos, numa casa que levava entre 450 e 500 espetadores. Mas quando era uma revista à portuguesa tínhamos de marcar quatro, porque tínhamos a garantia de quatro espetáculos certos de casa cheia. Portanto, as pessoas, também do ponto de vista político, viveram aquela euforia, aquilo tudo, mas não foi muita gente a aderir a movimentos e realizações. Isso ficou ainda com as pessoas politizadas que já vinham de trás e foram depois ganhando ou conseguindo ganhar alguns para alguma realização.
P: A Marinha Grande é uma zona com uma grande percentagem da população a trabalhar na indústria, ou seja, com uma tradição do movimento operário muito forte. É quase mítica a história do 18 de janeiro. De que forma é que isso marca as características do movimento associativo?
Francisco Duarte: Marca porque os inconformados do ponto de vista político frequentavam todas as coletividades e expressavam a sua vontade de mudar, de as coisas melhorarem. E o povo da Marinha Grande é um povo lutador, não é por acaso que temos dos melhores níveis de vida do distrito, segundo a última averiguação. Mas, estava eu a dizer, esse espírito de luta e de melhorar a vida nunca desapareceu dos habitantes da Marinha Grande e depois aconteceu um fenómeno importantíssimo.
Dois terços da população da Marinha Grande já não são marinhenses. E esses dois terços vieram para cá como os portugueses iam, por exemplo, para a Alemanha, para ganharem dinheiro. Especialmente do Alentejo, muitos alentejanos, muitos ali na zona da Figueira da Foz, e desses lados. Muitos do Tramagal, que vieram para a indústria dos moldes, muita gente de Maceira do Liz, aqui perto, mas enfim, ainda hoje há muitos empresários da indústria dos moldes que são maceirenses. Esse espírito de luta nunca desapareceu da Marinha Grande e ainda hoje se luta.
P: Estava a falar dessas correntes migratórias, qual foi o papel que as coletividades tiveram na integração dessas pessoas que chegavam fora?
Francisco Duarte: Era uma integração natural, porque era um dos pontos que eles procuravam também para conhecer gente e para terem outro conhecimento do sítio em que viviam. O lugar em que eu vivo, por exemplo, é dos que tem mais forasteiros, há muita gente que não tem nada a ver com a Ordem. Das famílias tradicionais do lugar da Ordem praticamente já não existe quase ninguém.
E, então, onde é que era o melhor paradeiro deles? Era a coletividade. Frequentavam a coletividade e aquilo para eles também era novidade, na terra deles não tinham e não tinham tido a possibilidade também de ganharem dinheiro. Eu lembro-me de umas famílias de Lamego que vieram lá para a Ordem e eles diziam: “Oh, senhor Duarte, nós estamos a viver num paraíso” – e eu lembro-me que eles tinham um ordenado miserável na altura, um ordenado muito abaixo da média. Vieram para ajudantes, quando as fábricas ainda trabalhavam a lenha, preparavam a lenha para meter nos gasómetros e tinham um ordenado baixíssimo. Ainda não havia o salário mínimo nacional.
Eles diziam-me que a Marinha Grande era a melhor terra do mundo. Eles viam as chaminés e vinham por aí fora e de facto temos uma grande parte das famílias que estão na Marinha Grande – hoje, claro que já têm agora muitos marinhenses, filhos e netos, já marinhenses – são oriundas de muitos lugares do país.
P: Parece que há um período de clímax do movimento associativo. Como é que essa memória é passada dos dirigentes mais velhos para os mais novos? Vamos voltar mais atrás, para quando entrou. Como é que os dirigentes mais velhos lhe contavam que era que era o associativismo e como é que deveria de ser o associativismo?
Francisco Duarte: A maioria deles não contava nada. Eu, quando entrei numa direção, comecei a ver como é que eles funcionavam. Porque não havia muitos dirigentes associativos com uma perceção da importância que podia ter o movimento associativo na mudança da sociedade. Não se falava, não havia muitos que falassem nesses termos e nessa condição. Havia o tal senhor que eu lhe relatei, o senhor Ilídio Guerra e mais uma meia dúzia, mas esses desapareceram, foram desaparecendo. Depois era mais um espírito de missão de manter a coletividade. Aliás, muitos dirigentes até tinham muito receio da política. Quando se dispensava a coletividade para uma sessão política, mesmo após 25 de Abril, muitos ainda tinham muitas dúvidas em relação àquilo, se devíamos dispensar ou não a coletividade.
Do ponto de vista pessoal, eu fui apreendendo o que é que era o movimento associativo, onde é que se podia chegar e o que é que se podia fazer. E como é que eu, da minha parte, transmiti aos mais novos, que eu tive gente muito nova também nas minhas direções? Fui dando essa perspetiva. Mas muitos não assimilaram. Não quiseram saber, tirando raras exceções. Muitos não quiseram saber disso para nada.
Portanto, o associativismo é passado naturalmente se as pessoas estiverem disponíveis mentalmente para isso. Porque nós não conseguimos convencer ninguém: “Tu vens para o movimento associativo porque o movimento associativo pode contribuir muito para alterar a própria sociedade.” Não se fala muito nesses termos, fala-se mais do progresso da própria coletividade. Independentemente de, atualmente, eu no meu ponto de vista as coletividades fazerem muito pouca coisa.
Eu também sou um bocado contra as coletividades que estão a tornar-se instituições de solidariedade social. Primeiro, não têm condições para isso, não têm a tendência, e depois perdem aquele significado de uma coletividade de cultura, desporto e recreio. Não quer dizer que as coletividades que estão a enveredar nesse sentido que estejam a fazer um mau trabalho à sociedade. Mas deixam de ter aquele carisma de coletividade que havia e que caminhava mais para a mudança da própria sociedade. Acham que estão a desenvolver um bom papel, que estão a prestar um bom serviço à sociedade, nalguns casos nem é de tanta qualidade como isso, deixa muito a desejar. Mas ficaram por ali. E também por isso muita atividade das próprias coletividades vai decaindo.
Isto independentemente de eu continuar a considerar que o movimento associativo atravessa um momento difícil. E é preciso cabeças pensantes para alterar este tipo de situação, mas tem que ser em conjunto, eu não vejo do outro modo. Não podemos individualizar e fazer coisinhas a nível de escola. Independentemente das próprias coletividades terem a sua atividade, é importante começar a haver realizações em conjunto, de grandeza, que deem que falar. E se as coletividades em conjunto conseguirem três ou quatro realizações anuais com essa grandeza, o movimento associativo passa a ter mais aderentes, passa a ter mais gente interessada. E pode não vir interessada, pode não vir com o pensamento no avanço do associativismo em todas as vertentes, mas vai-o ganhando.
O associativismo é, para mim, de uma importância fundamental. Não é por acaso que o país teve mais de 20 mil coletividades e mais de 200 mil dirigentes associativos. Por isso, o associativismo é de uma importância fundamental. Agora eu diria, num derradeiro apelo: temos de salvar o associativismo e temos de ser suficientemente inteligentes para o salvar, porque se o associativismo vai cada vez tendo menos esforço. Eu acho que nesta coletividade, por exemplo, está-se a fazer um trabalho razoável. Mas ainda não é o que devia. Porque deviam ser desenvolvidas mais atividades que fossem da própria coletividade. Porque alugar espaços para Costura e Bordados e trazer umas companhias de teatro que, por sua própria conta, vão fazendo alguns espetáculos…
O que eu gostava de ver aqui era um grupo de teatro da Cumeeira, um grupo de teatro com força, que se impusesse com peças, com coisas boas. O que falta aqui é um cérebro na própria direção, que avance com essas coisas, porque eu digo-lhe com toda franqueza e sem nenhuma atitude de sobranceria: na coletividade da Ordem houve homens que souberam fazer as coisas, mas foram desaparecendo. Mas não houve ninguém que aprendesse aquilo…
Eu escrevi, fui autor e encenador de uma revista à portuguesa, de um Bate Bate, Coração, o grupo tinha 30 pessoas. Se eu não morri naquele período, não morro mais, porque era um trabalho extenuante. Porque também não tinha gente preparada para me ajudar, porque se tivesse... Eu tinha era muita gente no grupo que fazia teatro, porque fazer teatro era bonito e as pessoas batiam palmas e ficavam todos inchados. Mas tinha uma grande parte dos atores amadores que todos os dias de ensaio me faziam a mesma pergunta: “Como é que eu vou daqui para ali? Como é que ponho o braço para cima quando estiver a fazer o discurso de Presidente da Câmara?”
Então, para quem tem a responsabilidade de ensaiar uma revista, de ver as marcações, de ver isso tudo… Era um grupo de 30 pessoas, todos os dias a fazer as mesmas perguntas, e eu não tinha ninguém em quem delegar alguma responsabilidade. Portanto, estas coisas são difíceis. É aqui que eu penso que as câmaras deviam ser ganhas para nos poderem fornecer alguém do ponto de vista intelectual, do ponto de vista cultural, que nos desse uma ajuda quando estes espetáculos aparecem. Agora eu quero dizer o seguinte, não aparece muita gente nas coletividades para fazer isso. E, aliás, esta coletividade tem esta vida toda e tem este esplendor, que para mim tem de facto aqui umas instalações magníficas, graças ao sacrifício de um homem que está aí há tem não sei quantos anos. Quando ele for embora, como é que isto vai ser? Como é que as coisas vão ser? Pronto já se enveredou por outras coisas, alugar os espaços e fazer uns pequenos-almoços, fornecer uns pequenos-almoços. Ter praticamente uma taberna a funcionar também, que há umas sociedades em que as pessoas se juntam para beber do seu copo, mas às vezes são grupos de 15, cada um paga a sua rodada, portanto, fazendo as contas, cada um bebe 15 copos de vinho. São gente que não tem condições para pensar o que quer que seja a não ser ir à coletividade beber um copo.
É uma situação muito difícil. Nós temos de reconhecer, independentemente de sermos o mais positivos possível em relação ao associativismo, temos de reconhecer que o associativismo nestes últimos anos tem vivido anos muito difíceis, muito complicados e, no meu ponto de vista, por falta de capital humano. Temos de alterar o panorama. Isto tem de ser alterado, senão morre. Eu já um outro dia disse, se eu hoje fosse novo e se pudesse ter a possibilidade de vender esta coletividade, vendia. E fazia-a de outra maneira. E hoje ia adaptá-la à juventude e ia haver discotecas e ia haver tudo. Não tenho dúvidas nenhumas. Eu, hoje, se tivesse condições de fazer uma coletividade de novo, eu não fazia nada disto que está aqui, estes salões, estas coisas. Isto já passou, acabou. Os grandes bailes, em que era preciso um salão enorme, isso acabou. Portanto, há que adaptar as instalações, há que pensar o movimento associativo, mas pensar com o sentido que dá muito trabalho e custa muito e tem de se perder muita noite e tem que ser inteligente à força para alterar o panorama, porque senão...
Aliás, a senhora vai entrar hoje em qualquer coletividade a esta hora, tirando o Sport Operário Marinhense, que tem um bar alugado, um bar de alto luxo alugado, em que o associado da coletividade vai lá, cá fora paga por uma cerveja 1 euro e lá paga 2. Mas é a única coletividade que certamente a senhora vai visitar a esta hora e tem lá muita gente e muitos jovens também, porque é o tal elitismo, se assim se pode chamar.
Mas vai às outras coletividades e estão meia-dúzia de gatos sentados a ver a televisão, outros a jogar às cartas E pouco mais. E da parte das direções, conformismo total. Eu também antes dizia, quando era presidente da Junta: “As direções, só para manter espaços abertos, já merecem um subsídio.” Eu era da opinião que o poder local devia pagar, e já aconteceu, pelo menos a água e a luz às coletividades, porque de facto, abrir a coletividade e estar lá já é importante, mesmo que não vão 10, vão lá 5, umas vezes vão mais, outras vezes vão menos, mas é um espaço importante e tem muito a ver com a vida do próprio lugar.
Porque ali fizeram-se grandes amizades, fizeram-se casamentos, fizeram-se batizados, aconteceu muita coisa nas coletividades, que diz respeito às pessoas do próprio lugar das coletividades. E as próprias coletividades ajudaram muito a desenvolver as famílias. É por isso que também existe ainda hoje aquele bairrismo antigo, que muitas vezes não deixa levar a que haja união para realizações mais ousadas.
P: Muito bem.
Francisco Duarte: Francisco Manuel Carvalho Duarte. 26 de junho de 1937.
P: Nasceu aqui, na Marinha Grande?
Francisco Duarte: Na Marinha Grande, sem maternidade, nascimento à antiga.
P: Estudou aqui?
Francisco Duarte: Estudei aqui, na altura na Escola Industrial da Marinha Grande. Ainda não era Escola Industrial e Comercial, era só industrial. Acabei por tirar um curso industrial, o chamado curso de vidraria, que ao início havia um curso de vidraria e um curso de pintor de vidros. Eu como tinha a pretensão de ter de facto a profissão de vidreiro, optei pela vidraria. Pois fui vidreiro dos 12 aos 14 anos e era uma profissão que eu, de facto, sonhava com ela e gostava muito de ser vidreiro. Mas um problema cardíaco, na altura também, um médico daquela altura, neste caso, o Doutor Júlio Vieira, que era uma figura carismática também da Marinha Grande, proibiu-me de ser vidreiro. Então, depois optei, naquela altura, pela chamada Universidade dos Montes. Iniciei uma outra atividade, exatamente como metalúrgico na Aníbal Abrantes, que era uma fábrica de moldes, a mais importante e a primeira que nasceu na Marinha Grande.
P: E ficou lá sempre?
Francisco Duarte: Fiquei lá durante 10 anos, depois trabalhei mais 10 anos na Emídio Maria da Silva, que era outra empresa também de fabricação de moldes para a matéria plástica e mais 18 anos na Molde Matos. Portanto, tive 38 anos de profissão, uma profissão dura, uma profissão de que eu nunca gostei muito. Portanto, eu sou das muitas pessoas que existem certamente com profissões contrárias à sua vontade. O meu sonho era ser vidreiro, porque gostava muito de vidro. Dava-me um certo gozo interior ver o vidro ser manejado e o equilíbrio do vidro em quente fascinava-me. Mas depois fui para a indústria de moldes, enfim…
Na altura, entrar naquela oficina chamava-se ir para a faculdade dos moldes. E então tive uma carreira de metalúrgico de 38 anos, nos quais fui delegado sindical a partir de 1971. Estava naquela lista de um tal senhor da Marinha chamado Beta, um senhor que lhe chamávamos o Beta. Ele era Alberto, acho, mas chamavam-lhe o Beta, que mais tarde viemos a descobrir que era informador da PIDE. Ele tinha por norma, quando eram as assembleias gerais do sindicato, pedir-me para eu redigir, a mim e a um outro senhor chamado Biscaia, para redigirmos sempre, naquela altura, telegramas de protesto para o Governo. E então soube-se depois 25 de Abril, porque ele foi descoberto, que ele era agente, mesmo agente direto. E lá estava o meu nome para a curto prazo ir dentro, entretanto deu-se 1974 e felizmente acabou.
Depois fui dirigente sindical. Durante 2 anos, fui delegado sindical e depois fui mesmo dirigente, presidente da Assembleia Geral do Sindicato da Indústria Metalúrgica, cuja sede principal funcionava em Vieira de Leiria, uma outra freguesia pertencente à Marinha Grande. Estudei de dia alguns anos, mas poucos, porque as dificuldades económicas eram muitas. E então eu tive de começar a trabalhar na escola, de dia, antes de tirar o curso. Acho que ainda fiz o primeiro ano de dia, já não me recordo bem, mas depois era trabalhador-estudante. Portanto, o meu horário de trabalho era das 8 da manhã às 6 da tarde, com uma hora para almoço e trabalhávamos aos sábados das 8 às 11, mas tínhamos duas horas para irmos para a escola. Portanto, eu saía sempre às 4. Uma das pessoas que me acompanhava até é hoje um empresário famoso, o senhor Henrique Neto, talvez já tenha ouvido falar. E acabei então por tirar o curso à noite. Antes disso, aos 10 anos, fui empregado na taberna, que era o refúgio dos vidreiros. Normalmente, começavam às 8 e acabavam às 3 e iam para as tabernas e era ali que se consumia muito vinho, de facto.
Hoje reconheço que na altura não compreendi que seria assim, que começou aí também há uma certa consciência de que a taberna não era o melhor para os homens, nem para o desenvolvimento do país através deles. Quero eu dizer com isto, pensou-se muito também nas tabernas no movimento associativo. E algumas coletividades, pelo menos aquela a que eu estive mais tempo ligado, começou a ser criada numa taberna de um homem já, naquela altura, com uma cultura razoável e que via mais longe, sabia as condições políticas, em que vivia e porque ele foi também algumas vezes incomodado pela polícia, não numa maneira muito acentuada, mas foi avisado. E penso que também aí começou a haver um bocado a consciência de que seria necessário tirar os homens das tabernas e levá-los para locais onde se pudessem encontrar, o que foi o movimento das coletividades inicialmente.
Depois fui dirigente daquela coletividade, e de facto não houve nada que eu não fizesse. Desde a limpeza aos salões antes de abrir a coletividade para os associados entrarem. Nós tínhamos de fazer limpeza, incluindo casas de banho, tínhamos de fazer tudo. Depois fui segundo secretário, lembro-me de que foi o primeiro posto que tive numa direção. Depois fui tesoureiro. Depois fui presidente uns 6 ou 7 anos. Fui 20 anos presidente da Assembleia Geral e 30 anos ligado ao grupo de teatro, onde iniciei essa atividade como ponto, passando depois para o palco, fazendo variadíssimas peças, uma das quais nos deixou uma recordação muito boa, que foi A Promessa. Porque fomos a um concurso num Orfeão em Leiria e tirámos uma menção honrosa. Foi uma coisa maravilhosa para nós, na altura deu-nos bastante gozo. Trabalhávamos muito de facto nas coletividades.
Havia nessa altura uma maior ligação a nível associativo, apesar de tudo, porque não havia tantos atrativos, tantas coisas que despertassem as pessoas para outras atividades. Havia uma maior ligação entre as associações, apesar de haver bairrismos muito doentios. Porque as questões entre coletividades, pelo menos na Marinha Grande, que é um meio associativo muito grande, como sabe, tem dezenas de coletividades… Mas, apesar de tudo, havia realizações em conjunto que eram muito interessantes, nomeadamente torneios de pingue-pongue, torneios de bilhar, torneios de sueca. E depois havia uma coletividade que, enfim, depois enveredou por um certo elitismo, mas fez um trabalho muito importante. Começou a criar também torneios a nível nacional, nomeadamente no que diz respeito ao ténis de mesa, trazendo equipes, não digo como um Benfica ou o Sporting, para esses torneios. E começaram a haver algumas realizações entre as coletividades, quando havia sempre uma festa final, onde, por exemplo, elegíamos sempre a Rainha das coletividades, ou uma madrinha das coletividades.
Mas a partir daí também começou a criar-se uma certa da consciência política, porque também tínhamos um homem nesse movimento, muito importante do ponto de vista político, que era o Doutor José Henriques Vareda. Certamente que já ouviram falar dele, que é um dos grandes fundadores do Sport Operário Marinhense. E então começou a haver encontros, enfim políticos, com inconformismo relativamente às misérias que se viviam, porque de facto vivia-se miseravelmente.
Eu lembro-me, isto um à parte, mas lembro-me de ter os primeiros sapatos aos 13 anos, e mesmo assim meu pai comprou-me os sapatos com 3 ou 4 números a mais, levaram quase um jornal cada um à frente para as biqueiras, os bicos dos sapatos não irem para cima. E depois umas botas cardadas, umas botas que levavam aquelas cardas todas quando pisávamos mais plano ou cimentado, escorregávamos. Portanto era uma miséria muito grande. Lembro-me da minha mãe, quando comíamos bife de vaca com o ovo estrelado, lembro-me da minha mãe não comer, o bife não chegar para ela. Comíamos eu, as minhas irmãs e o meu pai e eu, pelo menos, lembro-me de encarar isso com certa naturalidade. As pessoas eram conformistas, uma grande parte, fora aqueles que se foram revoltando. Mas isto para dizer também que a consciência política de muitos marinhenses nasceu nas coletividades, foi a partir das coletividades. E que muitos tiveram interesse de se ir informando, de ir conhecendo coisas, e ter constantemente o pensamento na coletividade para realizar coisas.
Eu posso dizer que enquanto fui presidente da coletividade, da SBR Primeiro de Janeiro, da Ordem da Marinha Grande, lembro-me de fazer coisas que me deixam hoje recordações. É claro que eu dei parte da minha vida àquela coletividade. Eu devo dizer-lhe, isto num à parte que talvez não tenha interesse, que estive quase à beira do divórcio, porque eu passava mais tempo na coletividade. Naquela altura fazia-se as festas de arraial e havia uma fonte de rendimento importante, que era a quermesse. Nós íamos pedir prémios e depois vendíamos rifas. Mas aquela quermesse tinha de ser muito bem organizada, pôr números em mil prémios e depois vender rifas, aquilo tudo… E então especializei-me na organização de quermesses, fui 29 anos seguidos diretor da quermesse. Um ano, a minha mulher perguntou-me: “Sempre quero ver qual é o ano em que vou contigo à festa?” Porque eu organizava a quermesse e depois tinha de estar lá no dia das festas, como é natural. Bom, isto, a nível da importância que o associativismo teve na minha vida, foi de uma importância, passo a repetição, elevada, muito elevada.
Ganhei consciência de que tinha de participar na construção de uma sociedade diferente e de alguma maneira ativa, através da minha atividade política. Desde 1974, e até antes, tive atividade política. Aos 15 anos, quando trabalhava na Aníbal Abrantes, já tinha uma missão política. Mas para dizer que, de facto, o associativismo teve uma importância fundamental na formação de muitos homens e também na melhoria da própria sociedade, especialmente a nível desse problema das tabernas, que era uma coisa terrível.
P: E o que é que o trouxe para associativismo, o seu pai já era?
Francisco Duarte: Não, o meu pai nunca foi dirigente de nenhuma associação. O meu pai foi apenas músico de uma banda filarmónica de uma fábrica que existiu. Eu fui influenciado por esse tal senhor que morava lá na Ordem. Porque eu nasci e fui criado até aos 20 anos num lugar chamado Cruzes e depois comecei a namorar uma rapariga da Ordem e, aos 22 anos, casei-me.
Quando eu ia ao barbeiro, o senhor Ilídio Guerra estava sempre presente ali na barbearia, que se chamava barbearia do Arnaldo Martins. E ele discutia muito estes problemas das coletividades e nessa altura já tinha uma casinha pequena, que até era uma casa de habitação, onde começou a Sociedade de Beneficência Primeiro de Janeiro. Eu penso que isto por altura da Guerra Civil de Espanha – 1936, 37. Mas depois veio a ser a coletividade fundada e inaugurada em 1939. Portanto, a data legal do início da Coletividade SBR Primeiro de Janeiro foi em 1939. E esse senhor, até tem hoje o nome de uma rua da Ordem, é que me influenciou de certo modo.
Porque ele tinha algumas conversas já acima do normal. Eu apreendia muito as palavras dele e talvez de uma maneira involuntária ou inconsciente foi-me modificando muita coisa, foi ficando muita coisa do ponto de vista cerebral, passo o inconveniente da palavra, se calhar. Depois convidaram-me, ia lá aos bailaricos com a minha namorada e tal e em 1961 fizeram-me o convite para eu ser pertencer aos corpos gerentes da coletividade. E a partir daí comecei, nunca mais de lá saí, praticamente, até 1996, quando eu já era presidente da Junta de Freguesia.
E numa altura em que a coletividade teve fechada três meses, numa atitude de salvação da própria coletividade, porque aquilo já estavam a pensar ir entregar as chaves à Câmara, eu ainda fui tomar conta daquilo mais uma vez. Na altura não me deu jeito nenhum, que era presidente da Junta e o trabalho chegava bem. Mas fui presidente várias vezes, fui tesoureiro, fui secretário e não me conformava nunca que a coletividade não tivesse uma atividade qualquer. Ou fazia bailes da Primavera ou fazia bailes de aniversário, de eleição da madrinha da coletividade, bailes das chitas, depois fiz, fez a minha direção, mas devo confessar, não estou a envaidecer-me, mas eram coisas da minha autoria. Fiz um MusicOrdem, que era um espetáculo de 15 em 15 dias, onde entrevistávamos sempre uma figura com importância no governo da Marinha Grande. Foi desde o chefe da polícia até ao diretor da Segurança Social, pessoas ligadas ao teatro, como o Norberto Barroca. Fazíamos entrevistas de poesia. Havia sempre um sketch de teatro da minha autoria, com artistas que eu escolhia do próprio grupo. Havia um sketch, depois havia concursos, concursos de assobios, concursos de anedotas. Era uma coisa interessantíssima.
A coletividade da Ordem tem um salão muito grande e tem outro salão idêntico ao lado, são dois salões paralelos. Fazíamos no salão pequeno. E então aquilo de 15 em 15 dias era uma alegria fantástica, pessoas a tentarem cantar, havia um concurso de canto também, interessantíssimo. Depois fizemos também um concurso de fados, que tinha pernas para hoje, se não o tivessem morto... Aqueles bairrismos doentios de que eu falava há pouco, muitas vezes também funcionavam pela negativa. Há pessoas que não podem com o êxito os outros, e os concursos de fado morreram exatamente por os diretores seguintes a mim, nessa época, não estarem muito de acordo com a maneira como funcionavam, porque aquilo era um concurso de fado, tinha eliminatórias ao fim de semana e teve dezenas de concorrentes distritais. E eu penso hoje que aquela realização tinha condições para hoje ser um concurso a nível nacional, porque de facto veio gente de muito lado, até nós ficámos surpresos.
Houve várias semanas em que fazíamos um espetáculo e os concorrentes cantavam e faziam um espetáculo com um júri que escolhia em cada sessão um concorrente para apurar para a final. A final desse espetáculo, desse concurso, foi uma coisa inolvidável naquele salão. É um salão muito grande, tem 100m por 18m de largo. Tinha 90 mesas completamente esgotadas e com gente de pé, com um palco magnificamente ornamentado. Os fadistas de muito nível já, com muita categoria, uma delas que ganhou o prémio, nessa altura já havia prémios, fizemos um prémio pecuniário, mas porque se pensou também que só seria possível algum êxito se houvesse os prémios pecuniários, porque se não houvesse também era difícil. E eu lembro-me que nessa altura o primeiro prémio foi 100 contos, que era uma quantia significativa para aquela altura. Estou a falar de oitenta e poucos.
P: Vamos recuar um bocadinho. Antes do 25 de Abril, no período do fascismo, como é que era a vida das coletividades? Quais eram os constrangimentos?
Francisco Duarte: No teatro, por exemplo, eu cheguei a fazer teatro com dois PIDES na primeira fila, quando fizemos O perdão dos filhos, uma peça chamada perdão dos filhos e aquilo foi à censura e eles puseram lá o lápis azul nalgumas passagens da peça. Nomeadamente a nível cultural, e na área do teatro, tínhamos de ter um cuidado muito grande e de facto aí havia restrições de um grau elevado, que certas peças não podíamos... Mesmo a própria Promessa também teve que ir à censura. E tivemos algumas, porque era o Bernardo Santareno, um escritor, enfim, todos sabemos como é. Lembro-me dessas restrições, nomeadamente a esse respeito.
Também tínhamos na Presidência da Câmara sempre alguém que estava ligado aos problemas políticos e que os comunicava. E então, de vez em quando, experimentavam-nos, pelo menos ao nível da coletividade que eu mais frequentei, e as outras eram idênticas. Aliás, o Sport Operário Marinhense foi das coletividades mais perseguidas antes do 25 de Abril. Tinha visitas da PIDE, baldeavam-lhe a biblioteca toda, porque aquela biblioteca tinha a fama de educar os trabalhadores e de dar uma perspetiva política diferente. E então, também ainda nas bibliotecas, porque nós tínhamos muito interesse também em organizar a biblioteca e muitas vezes fazíamos convites aos próprios associados para sessões de leitura e havia essas sessões de leitura que eram, de facto, vigiadas. O próprio presidente da Câmara tinha alguém no lugar que se inscrevia até para essas sessões. Nós viemos a saber isto tudo depois, passado algum tempo, porque as pessoas também, especialmente depois de 25 de Abril, viemos a saber quem eram. Algumas, nem todas.
E então nós tínhamos constrangimentos quase em tudo, à exceção dos bailes, que me parece que deixavam passar assim mais ao lado. Mas eu falava há pouco no movimento associativo e quando falei na figura do Doutor José Vareda, que começou também a organizar, a politizar muitos dirigentes das coletividades, com encontros na mata, fazíamos festas apropriadas na mata, trazíamos sempre um cantor da revolução, os cantores de intervenção, essencialmente isso, mas os cantores de vanguarda, também se dizia na altura.
E começou a haver uma adesão muito grande também de homens que não tinham nada a ver com o associativismo e depois se foram incorporando. E começou a haver uma consciência política diferente e também, devo dizer que neste percurso todo, muitas tabernas foram perdendo a sua força. Porque havia tabernas por todos os cantos e estavam sempre cheias. O movimento associativo contribui muito também para que esse flagelo, entre aspas, perdesse um bocadinho de força. De maneira que, enfim, penso que o associativismo ajudou muito a ter consciência daquilo que andava a fazer por cá ao de cimo da Terra.
E foi também o associativismo que me levou para as autarquias. Como deve saber, fui presidente da Junta durante quatro mandatos, 20 anos, e fui membro do executivo mais quatro. Fui vereador da Câmara Municipal também durante 6 anos, 2 mandatos, quando os mandatos eram de 3 anos ainda. E fui membro da Assembleia Municipal. Portanto, tenho a vida nesse aspeto bem preenchida e com realizações no associativismo. Hoje, tenho a minha opinião sobre o associativismo. Sou da opinião de que a maioria das coletividades perderam o comboio da evolução da sociedade. Faltou gente pensante, não quer dizer que alterar esta situação seja algo de muito fácil porque, como todos nós sabemos, o povo português, uma grande parte do povo português ainda está numa bitola de cultura um bocado abaixo da média, um bocadinho.
Porque a gente via bem, especialmente quando íamos a algumas povoações com o teatro, víamos bem o atraso cultural de muita gente, o que começou a dificultar também a vida das próprias coletividades. Porque não havia muita gente disponível para ir e começaram também muitos a ter medo, os que frequentavam a Igreja, por exemplo, começaram a ter medo das coletividades e a não frequentar tanto. Havia assim estas contradições. Não sei especificar muito bem isto, este pensamento devia ser mais bem ordenado. Mas, apesar de tudo, hoje penso que há um conformismo muito grande dos próprios dirigentes das coletividades. E tenho de dizer abertamente, gente eleita também para as coletividades com muito poucas competências culturais. Isso, se de facto o poder local, eu na altura em que fui vereador, fui vereador da Cultura, e a primeira, uma das primeiras iniciativas que tive foi a Câmara contratar um animador cultural para trabalhar fora de horas.
Qual seria o funcionamento dele nas próprias coletividades? Cada dia da semana ia a uma coletividade para tentar organizar grupos de teatro, grupos corais, porque a pessoa que foi contratada tinha estas valências todas e estava disponível para ter um horário diferente do normal. Isto para dizer o quê? Se o poder local, de facto, não tomar algumas medidas no sentido de ter técnicos que possam dar uma ajuda às próprias coletividades, não é ajuda material, essa ajuda cultural, vamos chamar-lhe assim…
Tirando uma ou duas coletividades, mas eu apenas classifico o Sport Operário Marinhense, que apesar de ser no outro tempo uma coletividade que mais fez pela cultura e que mais fez para desenvolvimento político das próprias pessoas e que mais fez pelo movimento associativo, depois teve uma mudança muito grande. Hoje, eu considero que é uma coletividade um pouco elitista. Tem muitas atividades, claro, mas nem todos têm acesso a elas porque têm de ser muito bem pagas.
O Operário tem hoje alguns associados (outros já morreram, conheci-os todos) que no tempo antes do 25 de Abril nem à rua onde ficava situada a sede do Operário iam. Após o 25 de Abril, eram sócios do Sport Operário Marinhense. Portanto, há aqui uma contradição. Há aqui uma mudança de atitude própria das pessoas e também uma mudança de carisma da própria coletividade. Começou a ser uma coletividade onde uma grande parte dos empresários e dos novos empresários começaram a ter placas douradas nos placares. Mas, retomando, o discurso anterior, eu penso que nas coletividades de hoje os seus responsáveis são conformistas. Eu, se estivesse hoje numa coletividade, mesmo na minha coletividade, eu tinha de inventar coisas para conseguir que a minha coletividade… Nem que copiasse pela televisão, copiasse programas de televisão para a coletividade ter vida. Agora, ter magníficas instalações, com áreas enormes, meses e meses sem nenhuma atividade, dói-me, a mim dói-me e eu não me conformava.
Eu voltava às coisas antigas, não tinha problema nenhum. Eu não tinha problema nenhum hoje em pôr em realização um grande baile de vestidos de papel, de trajes estapafúrdios, digamos assim. Depois, com um concurso onde estivesse um artista final, um cantor ou um declamador, fosse o que fosse. E eu hoje realizava novamente um rally paper. Fomos dos primeiros a realizar um rally paper. Claro que hoje é complicado, porque a gasolina está muito cara, fazia-se de bicicleta. Também se pode fazer de bicicleta, a um domingo, faz-se um rally paper ciclista. Portanto, isto para dizer o quê?
Apesar de reconhecer que é bastante complicado e difícil as coletividades apanharem o comboio, têm que trabalhar muito. E hoje não há aquela dedicação que havia também naquela altura. Porque naquela altura, como eu lhe disse, nós limpávamos a coletividade e abríamos e estávamos de serviço ao bar, uma equipa por semana, dois dirigentes faziam a semana inteira. Hoje isso é difícil. Eu vejo, por exemplo, na coletividade do meu lugar, já chegou a ter três empregadas, agora tem duas. Eu tenho dúvidas que se ganhe para empregadas, é um bocado complicado. Portanto, esta dedicação às próprias coletividades, que a própria evolução da sociedade também trouxe.
Porque hoje podemos estar num sofá requintado, numa sala quente a ver televisão, e a televisão tem programas para todos os gostos. Temos os computadores e, enfim, centenas de milhares de pessoas que passam serões aos computadores. Há, de facto, muitas atrações e não é fácil levar as pessoas para as coletividades. Agora, realizando alguma coisa de diferente e depois é urgente que alguém tenha a capacidade e a força de unir mais as coletividades, porque as coletividades em conjunto têm muita força. Nem que tenham uma realização por ano de uma grandeza palpável, nem que sejam os tais concertos ou uma danceteria modernizada, bem equipada, para levar lá as pessoas. Pode ser só num sítio, mas explorado por todas. Porque não estou a ver todas as coletividades, por exemplo, a adaptarem as suas instalações a uma pequena danceteria, equipada convenientemente com os psicadélicos e tudo isso, mas é possível pelo menos fazer uma que funcione por todos, com o conjunto de todos.
Mas, aliás, quase todas as coletividades teriam condições para fazer um pequeno espaço, porque hoje as danceterias levam muita gente.
P: Mas não acha que, e voltando um bocadinho ao que tem estado a sublinhar ao longo da sua história, da ligação que havia entre a participação das coletividades e a intervenção política, que essa dimensão, essa ligação também faz parte da identidade das coletividades e que também é muito essa dedicação dos dirigentes também é muito por vocação política, ou seja, também é uma motivação política?
Francisco Duarte: Sem dúvida. Agora nem tanto, mas houve uma época em que os partidos políticos disputavam acerrimamente as direções das coletividades. Havia e continua a haver ligações das coletividades à política, sem dúvida nenhuma, e à atividade política. Agora, vamos lá ver, as coletividades hoje são frequentadas por muito poucas pessoas, por pouca gente. E nalguns casos, gente já de uma certa idade também, com um nível cultural muito abaixo do que era desejável. E que o interesse deles é estarem ali a beber uns copos e a coletividade passa muito tempo despercebida, completamente despercebida.
Posso estar completamente enganado, mas eu penso que para levantar tem de haver alguém, como eu dizia, com a força capaz de organizar, de coletividades terem a mesma vontade no sentido de algumas organizações, organizações com o vulto, que marquem e que possam durar vários anos, desejadas pelo próprio público.
P: Mas diga-nos lá, das suas realizações, daquilo que realizou, há bocado estava a dizer que tem realizações que o marcaram. Quais é que foram aquelas que foram mais marcantes?
Francisco Duarte: E eu devo dizer-lhe que a mais marcante foi esse concurso de fado e foram os vários bailes que nós fazíamos alusivos a qualquer coisa. Fazíamos o Baile da Primavera, por exemplo, e o salão era decorado, tanto o chão como as paredes, com flores da mata. Com mulheres que, voluntárias, que depois também conseguiu-se criar-se um grupo de mulheres que trabalharam imenso. Ainda hoje trabalham em muitas coletividades. Na minha, digamos assim, também acontece ainda isso.
P: Quando é que elas começaram a participar mais?
Francisco Duarte: A partir da década de 80, no caso da minha coletividade. Nas outras, na grande maioria, foi um bocadinho mais tarde. Mas aquela coletividade que também tinha umas instalações mais amplas, digamos assim, e onde se podiam realizar mais coisas e havia mais gente também, porque é o lugar do concelho com mais gente. Tem 7000 habitantes, 7000 habitantes é muita coisa.
P: Como é que elas entraram? O que é que elas vieram fazer? Quais foram as atividades que começaram a desenvolver?
Francisco Duarte: Começaram primeiro nos lavores, nas costuras e nessas coisas. Depois compraram, no caso da coletividade da Honra, compraram uma televisão só para a sala delas. Depois começaram também, quando fazíamos os MusicOrdens, por exemplo, eram elas que faziam a cozinha toda e nas festas faziam a cozinha toda. Depois faziam alguns sorteios para passeios delas. Tinha uma atividade ali que ajudava muita a coletividade. Ajudavam muito o grupo de teatro, era de lá que vinham as costureiras, era de lá que vinham as ajudantes das costureiras, tudo isso. Não tiveram assim realizações de grande vulto, tinham aquela presença delas, que era importante. Eu acho que iam à coletividade quase todos os dias, juntavam-se ali nas suas conversas, enfim, algumas a costurar e outras não.
P: Faziam parte dos órgãos dirigentes?
Francisco Duarte: Muitas fizeram, mas isso já a partir da década de 90. Houve quase sempre mulheres na direção. Ainda hoje há, mas numa percentagem – salvo raras exceções –diminuta. Só houve aqui há uns dez anos, talvez, que era uma direção só praticamente de mulheres. Mulheres não, de raparigas, digamos assim, raparigas muito jovens, ainda muito jovens. É a direção de que eu me lembro que teve mais mulheres, creio que foi essa, creio que na década de 80, já não posso precisar, ou de 90.
P: Fale-me também um bocadinho da sua participação sindical. Disse-me que ainda antes do 25 de Abril foi para o sindicato, ainda o sindicato corporativo, o sindicato nacional. Como é que entrou?
Francisco Duarte: Entrei em 1971, mas aí era delegado sindical. Então íamos às empresas ver o que é que se passava. Na maioria dos casos éramos escorraçados, especialmente quando íamos ali ao Bombarral tentar ver quem eram os aprendizes que trabalhavam nas oficinas sem terem idade. Os próprios operários chegaram a escorraçar-nos, como nos fizerem em Pombal uma vez, por exemplo. Era mais nessa área que trabalhávamos, a de levarmos os problemas à própria direção do sindicato, com reivindicações já salariais, com reivindicações de férias. Porque eu comecei a trabalhar, para ter direito a férias tinha que trabalhar, já não me lembro, mas era uma série de anos para ter 8 dias de férias. Pronto eram essas reivindicações todas, foi-se massacrando, massacrando... Era o sindicato metalúrgico.
P: E a direção do Sindicato Metalúrgico, ainda era uma direção próxima do regime?
Francisco Duarte: Na altura era muito próxima do regime, o presidente era agente da PIDE, agente oficial mesmo…
P: E foi assim até ao 25 de Abril?
Francisco Duarte: E foi assim até ao 25 de Abril. E portanto, como delegado sindical, foi essa atividade que tínhamos nas empresas. E depois fui presidente da Assembleia Geral, mas nessa altura, o presidente da Assembleia Geral trabalhava com a direção do próprio sindicato.
P: Ainda antes do 25 de Abril ou já depois?
Francisco Duarte: Depois do 25 de Abril, já depois do 25 de Abril é que eu fui presidente da Assembleia Geral. Mas na altura o presidente da Assembleia Geral trabalhava também com a direção, ia às reuniões e depois, enfim, tinha um dia por semana que era para ir ao sindicato. E aí também desenvolvia atividade sindical nessas reivindicações, marcando algumas manifestações, também visitando novamente as empresas após o 25 de Abril, ainda com muitas dificuldades de conseguirmos entrar nas empresas, especialmente ali na zona das Meirinhas, Pombal e Bombarral. É onde me lembro de termos maiores dificuldades de lidarmos com os problemas.
Depois também houve um período em que os metalúrgicos marinhenses tentaram que a direção e as instalações do sindicato que fizeram na Vieira de Leiria viessem para a Marinha Grande. Foi uma Assembleia Geral a que até as peixeiras todas foram, porque não queriam de maneira nenhuma o sindicato fora da freguesia da Vieira. Eu também nunca defendi isso e ganharam, eles ganharam e o sindicato continua lá. De maneira que foi uma atividade sindical muito contrariada, muitas vezes, pelo patronato. Fui de facto sempre muito prejudicado, especialmente a nível salarial, ganhava sempre menos do que os outros. E tive uma vez um patrão que me fez uma proposta de eu abandonar a vida política e sindical, que poderia ser chefe da fábrica. Tivemos uma discussão que ainda hoje está na mente dos dois, certamente.
Portanto, ser dirigente sindical, mesmo após 25 de Abril, não era tarefa fácil. Nem eram todos que queriam. Porque éramos discriminados, altamente discriminados, e ganhávamos menos do que os outros. Quando éramos aumentados, era menos do que os outros e tínhamos anos que nem aumentos tínhamos, porque éramos dirigentes sindicais. Eu fui 6 anos, não fui muito tempo, mas foi suficiente para ficar marcado para sempre. Mas, enfim, quem corre por gosto não cansa e sujeita-se a tudo.
P: Como é que foi o 25 de Abril aqui na Marinha Grande?
Francisco Duarte: O 25 de Abril foi um acontecimento inesquecível para toda a gente. Foi de uma alegria transbordante. Eu estava na fábrica, já eram 7 horas e 15 minutos quando soubemos. É evidente que a fábrica parou imediatamente, viemos todos para a rua, nem sabíamos bem o que é que tinha acontecido, uma coisa brilhante. Depois, no 1.º de Maio seguinte então, na Praça Stephens, foi uma coisa inesquecível, eu nunca vi na minha vida tanta gente junta. Eu sei lá, aquilo era gente a perder de vista. Era nas ruas todas que davam para a praça e na praça, no 1.º de Maio ainda mais que no 25 de Abril. Mas foi de facto um acontecimento que nos marcou a todos da maneira indelével. Ainda hoje, quando falamos disso, sentimos a emoção do que foi. Porque eu ainda vivi 37 anos no salazarismo. É, enfim, as dificuldades por que passámos, aquela esperança que nasceu com o 25 de Abril, aquela perspetiva de uma sociedade mais justa… No meu ponto de vista, infelizmente, não tão justa como gostaria. Mas, enfim, cá estamos.
P: Como é que isso se viveu nas coletividades, mesmo aqueles meses do PREC? Como é que isso foi dentro das coletividades?
Francisco Duarte: Não se sentiu muito nas coletividades. Não me recordo bem, mas passou um bocado ao lado das coletividades. Não houve assim grandes movimentações, a não ser algumas reuniões em que pediram as instalações para o efeito, de grupos políticos.
P: Mas não se abriram oportunidades para novos tipos de realizações? Não se participou naquelas organizações populares para o saneamento básico? As coletividades não estiveram envolvidas nesse processo?
P: Tiveram, de certo modo. As coletividades estiveram envolvidas em quase todo o processo político que se desenvolveu, porque as coletidades foram sempre espaços onde qualquer coisa que se organizava tinha de funcionar. Agora, em muitos casos, as próprias direções das coletividades alheavam-se um bocado dos problemas. Eram mais movimentos de associados e não associados, que se reuniam naquelas instalações para algumas realizações. Mas numa grande parte dos casos, as coletividades estavam um bocadinho ao lado.
Agora, as próprias coletividades depois tiveram a sua atividade após o 25 de Abril, que já era de facto uma atividade mais, com uma perspetiva de sociedade diferente. O movimento teatral foi de uma importância muito grande depois do 25 de Abril. Fizeram-se imensos espetáculos com uma perspetiva política muito diferente.
P: Como por exemplo?
Francisco Duarte: As peças de teatro que escolhíamos eram sempre de autores que tinham um cariz político muito. No início de qualquer espetáculo de teatro, íamos apresentar a razão pela qual aquela peça ia ser apresentada, o seu cariz e, enfim, o que podia influenciar na vida das pessoas. Porque as pessoas também não tinham muita capacidade de absorver o conteúdo da própria peça. E havia então esse procedimento: alguém apresentava a peça antes de se iniciar os espetáculos e havia alguns ensaiadores, eu conheci alguns, que quase contavam a peça toda, e era bom para alguns porque, tem de se reconhecer que muita gente que ia ver peças de teatro que saía de lá quase na mesma. Não percebiam muito bem a mensagem. Nesse aspeto foi muito importante.
Depois nós não tínhamos também a possibilidade, do ponto de vista político, de recrutar muita gente, porque as pessoas também não aderiam muito, queriam espetáculos populares. Qualquer espetáculo que nós realizámos na coletividade, não há comparação com os espetáculos de revista à portuguesa que nós fizemos. Nós fizemos quatro revistas à portuguesa, revista popular portuguesa, e, aí sim, do ponto de vista político isso era saliente. O conteúdo dos próprios sketches era marcante.
Nós fazíamos uma peça de teatro e marcávamos logo dois espetáculos, numa casa que levava entre 450 e 500 espetadores. Mas quando era uma revista à portuguesa tínhamos de marcar quatro, porque tínhamos a garantia de quatro espetáculos certos de casa cheia. Portanto, as pessoas, também do ponto de vista político, viveram aquela euforia, aquilo tudo, mas não foi muita gente a aderir a movimentos e realizações. Isso ficou ainda com as pessoas politizadas que já vinham de trás e foram depois ganhando ou conseguindo ganhar alguns para alguma realização.
P: A Marinha Grande é uma zona com uma grande percentagem da população a trabalhar na indústria, ou seja, com uma tradição do movimento operário muito forte. É quase mítica a história do 18 de janeiro. De que forma é que isso marca as características do movimento associativo?
Francisco Duarte: Marca porque os inconformados do ponto de vista político frequentavam todas as coletividades e expressavam a sua vontade de mudar, de as coisas melhorarem. E o povo da Marinha Grande é um povo lutador, não é por acaso que temos dos melhores níveis de vida do distrito, segundo a última averiguação. Mas, estava eu a dizer, esse espírito de luta e de melhorar a vida nunca desapareceu dos habitantes da Marinha Grande e depois aconteceu um fenómeno importantíssimo.
Dois terços da população da Marinha Grande já não são marinhenses. E esses dois terços vieram para cá como os portugueses iam, por exemplo, para a Alemanha, para ganharem dinheiro. Especialmente do Alentejo, muitos alentejanos, muitos ali na zona da Figueira da Foz, e desses lados. Muitos do Tramagal, que vieram para a indústria dos moldes, muita gente de Maceira do Liz, aqui perto, mas enfim, ainda hoje há muitos empresários da indústria dos moldes que são maceirenses. Esse espírito de luta nunca desapareceu da Marinha Grande e ainda hoje se luta.
P: Estava a falar dessas correntes migratórias, qual foi o papel que as coletividades tiveram na integração dessas pessoas que chegavam fora?
Francisco Duarte: Era uma integração natural, porque era um dos pontos que eles procuravam também para conhecer gente e para terem outro conhecimento do sítio em que viviam. O lugar em que eu vivo, por exemplo, é dos que tem mais forasteiros, há muita gente que não tem nada a ver com a Ordem. Das famílias tradicionais do lugar da Ordem praticamente já não existe quase ninguém.
E, então, onde é que era o melhor paradeiro deles? Era a coletividade. Frequentavam a coletividade e aquilo para eles também era novidade, na terra deles não tinham e não tinham tido a possibilidade também de ganharem dinheiro. Eu lembro-me de umas famílias de Lamego que vieram lá para a Ordem e eles diziam: “Oh, senhor Duarte, nós estamos a viver num paraíso” – e eu lembro-me que eles tinham um ordenado miserável na altura, um ordenado muito abaixo da média. Vieram para ajudantes, quando as fábricas ainda trabalhavam a lenha, preparavam a lenha para meter nos gasómetros e tinham um ordenado baixíssimo. Ainda não havia o salário mínimo nacional.
Eles diziam-me que a Marinha Grande era a melhor terra do mundo. Eles viam as chaminés e vinham por aí fora e de facto temos uma grande parte das famílias que estão na Marinha Grande – hoje, claro que já têm agora muitos marinhenses, filhos e netos, já marinhenses – são oriundas de muitos lugares do país.
P: Parece que há um período de clímax do movimento associativo. Como é que essa memória é passada dos dirigentes mais velhos para os mais novos? Vamos voltar mais atrás, para quando entrou. Como é que os dirigentes mais velhos lhe contavam que era que era o associativismo e como é que deveria de ser o associativismo?
Francisco Duarte: A maioria deles não contava nada. Eu, quando entrei numa direção, comecei a ver como é que eles funcionavam. Porque não havia muitos dirigentes associativos com uma perceção da importância que podia ter o movimento associativo na mudança da sociedade. Não se falava, não havia muitos que falassem nesses termos e nessa condição. Havia o tal senhor que eu lhe relatei, o senhor Ilídio Guerra e mais uma meia dúzia, mas esses desapareceram, foram desaparecendo. Depois era mais um espírito de missão de manter a coletividade. Aliás, muitos dirigentes até tinham muito receio da política. Quando se dispensava a coletividade para uma sessão política, mesmo após 25 de Abril, muitos ainda tinham muitas dúvidas em relação àquilo, se devíamos dispensar ou não a coletividade.
Do ponto de vista pessoal, eu fui apreendendo o que é que era o movimento associativo, onde é que se podia chegar e o que é que se podia fazer. E como é que eu, da minha parte, transmiti aos mais novos, que eu tive gente muito nova também nas minhas direções? Fui dando essa perspetiva. Mas muitos não assimilaram. Não quiseram saber, tirando raras exceções. Muitos não quiseram saber disso para nada.
Portanto, o associativismo é passado naturalmente se as pessoas estiverem disponíveis mentalmente para isso. Porque nós não conseguimos convencer ninguém: “Tu vens para o movimento associativo porque o movimento associativo pode contribuir muito para alterar a própria sociedade.” Não se fala muito nesses termos, fala-se mais do progresso da própria coletividade. Independentemente de, atualmente, eu no meu ponto de vista as coletividades fazerem muito pouca coisa.
Eu também sou um bocado contra as coletividades que estão a tornar-se instituições de solidariedade social. Primeiro, não têm condições para isso, não têm a tendência, e depois perdem aquele significado de uma coletividade de cultura, desporto e recreio. Não quer dizer que as coletividades que estão a enveredar nesse sentido que estejam a fazer um mau trabalho à sociedade. Mas deixam de ter aquele carisma de coletividade que havia e que caminhava mais para a mudança da própria sociedade. Acham que estão a desenvolver um bom papel, que estão a prestar um bom serviço à sociedade, nalguns casos nem é de tanta qualidade como isso, deixa muito a desejar. Mas ficaram por ali. E também por isso muita atividade das próprias coletividades vai decaindo.
Isto independentemente de eu continuar a considerar que o movimento associativo atravessa um momento difícil. E é preciso cabeças pensantes para alterar este tipo de situação, mas tem que ser em conjunto, eu não vejo do outro modo. Não podemos individualizar e fazer coisinhas a nível de escola. Independentemente das próprias coletividades terem a sua atividade, é importante começar a haver realizações em conjunto, de grandeza, que deem que falar. E se as coletividades em conjunto conseguirem três ou quatro realizações anuais com essa grandeza, o movimento associativo passa a ter mais aderentes, passa a ter mais gente interessada. E pode não vir interessada, pode não vir com o pensamento no avanço do associativismo em todas as vertentes, mas vai-o ganhando.
O associativismo é, para mim, de uma importância fundamental. Não é por acaso que o país teve mais de 20 mil coletividades e mais de 200 mil dirigentes associativos. Por isso, o associativismo é de uma importância fundamental. Agora eu diria, num derradeiro apelo: temos de salvar o associativismo e temos de ser suficientemente inteligentes para o salvar, porque se o associativismo vai cada vez tendo menos esforço. Eu acho que nesta coletividade, por exemplo, está-se a fazer um trabalho razoável. Mas ainda não é o que devia. Porque deviam ser desenvolvidas mais atividades que fossem da própria coletividade. Porque alugar espaços para Costura e Bordados e trazer umas companhias de teatro que, por sua própria conta, vão fazendo alguns espetáculos…
O que eu gostava de ver aqui era um grupo de teatro da Cumeeira, um grupo de teatro com força, que se impusesse com peças, com coisas boas. O que falta aqui é um cérebro na própria direção, que avance com essas coisas, porque eu digo-lhe com toda franqueza e sem nenhuma atitude de sobranceria: na coletividade da Ordem houve homens que souberam fazer as coisas, mas foram desaparecendo. Mas não houve ninguém que aprendesse aquilo…
Eu escrevi, fui autor e encenador de uma revista à portuguesa, de um Bate Bate, Coração, o grupo tinha 30 pessoas. Se eu não morri naquele período, não morro mais, porque era um trabalho extenuante. Porque também não tinha gente preparada para me ajudar, porque se tivesse... Eu tinha era muita gente no grupo que fazia teatro, porque fazer teatro era bonito e as pessoas batiam palmas e ficavam todos inchados. Mas tinha uma grande parte dos atores amadores que todos os dias de ensaio me faziam a mesma pergunta: “Como é que eu vou daqui para ali? Como é que ponho o braço para cima quando estiver a fazer o discurso de Presidente da Câmara?”
Então, para quem tem a responsabilidade de ensaiar uma revista, de ver as marcações, de ver isso tudo… Era um grupo de 30 pessoas, todos os dias a fazer as mesmas perguntas, e eu não tinha ninguém em quem delegar alguma responsabilidade. Portanto, estas coisas são difíceis. É aqui que eu penso que as câmaras deviam ser ganhas para nos poderem fornecer alguém do ponto de vista intelectual, do ponto de vista cultural, que nos desse uma ajuda quando estes espetáculos aparecem. Agora eu quero dizer o seguinte, não aparece muita gente nas coletividades para fazer isso. E, aliás, esta coletividade tem esta vida toda e tem este esplendor, que para mim tem de facto aqui umas instalações magníficas, graças ao sacrifício de um homem que está aí há tem não sei quantos anos. Quando ele for embora, como é que isto vai ser? Como é que as coisas vão ser? Pronto já se enveredou por outras coisas, alugar os espaços e fazer uns pequenos-almoços, fornecer uns pequenos-almoços. Ter praticamente uma taberna a funcionar também, que há umas sociedades em que as pessoas se juntam para beber do seu copo, mas às vezes são grupos de 15, cada um paga a sua rodada, portanto, fazendo as contas, cada um bebe 15 copos de vinho. São gente que não tem condições para pensar o que quer que seja a não ser ir à coletividade beber um copo.
É uma situação muito difícil. Nós temos de reconhecer, independentemente de sermos o mais positivos possível em relação ao associativismo, temos de reconhecer que o associativismo nestes últimos anos tem vivido anos muito difíceis, muito complicados e, no meu ponto de vista, por falta de capital humano. Temos de alterar o panorama. Isto tem de ser alterado, senão morre. Eu já um outro dia disse, se eu hoje fosse novo e se pudesse ter a possibilidade de vender esta coletividade, vendia. E fazia-a de outra maneira. E hoje ia adaptá-la à juventude e ia haver discotecas e ia haver tudo. Não tenho dúvidas nenhumas. Eu, hoje, se tivesse condições de fazer uma coletividade de novo, eu não fazia nada disto que está aqui, estes salões, estas coisas. Isto já passou, acabou. Os grandes bailes, em que era preciso um salão enorme, isso acabou. Portanto, há que adaptar as instalações, há que pensar o movimento associativo, mas pensar com o sentido que dá muito trabalho e custa muito e tem de se perder muita noite e tem que ser inteligente à força para alterar o panorama, porque senão...
Aliás, a senhora vai entrar hoje em qualquer coletividade a esta hora, tirando o Sport Operário Marinhense, que tem um bar alugado, um bar de alto luxo alugado, em que o associado da coletividade vai lá, cá fora paga por uma cerveja 1 euro e lá paga 2. Mas é a única coletividade que certamente a senhora vai visitar a esta hora e tem lá muita gente e muitos jovens também, porque é o tal elitismo, se assim se pode chamar.
Mas vai às outras coletividades e estão meia-dúzia de gatos sentados a ver a televisão, outros a jogar às cartas E pouco mais. E da parte das direções, conformismo total. Eu também antes dizia, quando era presidente da Junta: “As direções, só para manter espaços abertos, já merecem um subsídio.” Eu era da opinião que o poder local devia pagar, e já aconteceu, pelo menos a água e a luz às coletividades, porque de facto, abrir a coletividade e estar lá já é importante, mesmo que não vão 10, vão lá 5, umas vezes vão mais, outras vezes vão menos, mas é um espaço importante e tem muito a ver com a vida do próprio lugar.
Porque ali fizeram-se grandes amizades, fizeram-se casamentos, fizeram-se batizados, aconteceu muita coisa nas coletividades, que diz respeito às pessoas do próprio lugar das coletividades. E as próprias coletividades ajudaram muito a desenvolver as famílias. É por isso que também existe ainda hoje aquele bairrismo antigo, que muitas vezes não deixa levar a que haja união para realizações mais ousadas.
P: Muito bem.