Item

Manuela Medeiros

Nome do entrevistador/a

Joana Dias Pereira

Local

Ponta Delgada

Data

Junho de 2022

Nome do entrevistado/a

Manuela Medeiros

Nome do entrevistado/a

Manuela Medeiros

Data de nascimento

2 de abril de 1942

Local de nascimento

Freguesia de Santa Clara, São Miguel

Profissão dos pais

O pai era mergulhador na Junta Autónoma dos Desportos no Porto de Ponta Delgada e a mãe doméstica

Escolaridade

Quarta classe

Local de residência

Arrifes

Situação civil

Solteira

Profissão

Operária tabaqueira

Locais de trabalho

Fábrica de Tabaco Micaelense

Associações em que participou

Juventude Operária Católica
Sindicato das Indústrias Transformadoras

Cargos dirigentes

Dirigente do Sindicato das Indústrias Transformadoras

Religião

Católica

Sinopse da entrevista

Manuela Medeiros testemunha a sua experiência enquanto activista da Juventude Operária Católica antes do 25 de abril, a vivência do período revolucionário e nomeadamente a organização do movimento sindical nos Açores. Oferece uma perspetiva inovadora em que sublinha a importância dos sentimentos envolvidos na participação associativa.

Palavras-chave

Testemunho

Entrevista a Manuela Medeiros

P: Nasceste aqui em São Miguel?

Manuela Medeiros: Eu nasci no dia 2/04/1942, aqui na ilha de São Miguel. A freguesia é que não foi esta, foi na freguesia de Santa Clara. Fica na rua direita, depois nós subimos à direita, antes de chegar à Igreja, a avenida que vai para o aeroporto. Era uma freguesia piscatória, agora já não é tanto. Havia muitos pescadores e encontravam-se também aqueles que iam para a pesca do bacalhau, que levavam seis meses fora, a pescar. Eu lembro-me muito bem dessa parte, porque nós tínhamos vizinhos nossos que também iam. E era muito engraçado. Quando eles chegavam, nós íamos lá para o farol da Santa Clara. Nós íamos para lá e acompanhávamos o barco, eles vinham com as caravelas e nós estávamos com os lenços a dizer adeus. Era tão lindo… E depois íamos à casa deles ver a família, eles sobretudo. Eles traziam-nos umas bolachas, eram mesmo assim grandes, de água e sal. Não era nada doce, era mesmo assim, e traziam as caras de bacalhau, essas coisas assim, que depois davam a algumas vizinhas. Lembro-me perfeitamente, tinha uma tia que fazia. A minha mãe não gostava. Aquilo é muito saboroso.
Ali nasci e estive na escola até aos 10 anos. Fiz só a quarta classe. Esperei dois anos e comecei a trabalhar na fábrica de tabaco micaelense. Naquela altura era pelo menos com doze anos [que se começava a trabalhar]... É uma coisa que agora, felizmente, não se passa.
Quando falo nisto lembro-me sempre que agora uma pessoa já se interessou em defender isso, para as pessoas começarem a trabalhar não com 12 mas com 16, e obrigarem as pessoas primeiro ao estudo, por uma vida melhor, pela qualificação dos empregos, quando nessa altura não se falava. E as pessoas que iam estudar eram aquelas que tinham posses ou tinham madrinhas que ajudavam a família.
Nós éramos quatro irmãs, de maneira que nenhuma foi para cursos superiores. Tenho uma irmã que foi jornalista, agora está na reforma. Jornalista primeiro do “Diário dos Açores”, jornal mais antigo, que tinha quase 160 anos, e depois o responsável do jornal “Açoriano Oriental” foi buscá-la e assim foi desse jornal que ela então foi para a reforma. Eu estive na fábrica 47 anos, não foi brincadeira, e aos 16 anos comecei a tomar conta – eles diziam chefiar, eu não gostava –, a tomar conta de quase 200 mulheres. Porque a fábrica tinha mais mulheres do que homens, por causa da mão-de-obra barata.
Essa fábrica nunca despedia ninguém, mas quem saía para casar, depois de casada mal ficava a trabalhar. Não ficava, nessa altura não ficava ninguém. A primeira pessoa que ficou a trabalhar na fábrica casada foi uma nora de um patrão. É casada com um filho deles. Porque até aí ninguém ficava. Entravam com 12, 14, 16 anos, mas depois casavam e iam para casa e às vezes era pena, pela qualidade que elas que tinham de serviço.
Mas também, às vezes, eu ponho-me a pensar: não se justificava sair de casa a pé daqui dos Arrifes lá para baixo, não se justificava as pessoas caminharem tanto a pé para ganhar isso. Não ganhavam o suficiente para terem uma alimentação muito cuidada. Mas tinham uma vida muito alegre. Eram muitos alegres…
As mulheres juntas têm os seus prós e os seus contras. Por exemplo, a minha irmã sempre gostou muito mais de trabalhar com homens do que com mulheres. Eu tive essa fase. Quando eu saía, que ia conferir serviço para o escritório, eu dizia: “Olha, cada uma está por sua conta, cada uma toma conta de si, eu não posso defender ninguém.” Nunca tive problemas, também a verdade é essa. Eu estive 47 anos, quando saí fui para a reforma.
No meio disso tudo, portanto noutro ciclo, aos 12 anos, quando comecei a trabalhar, aos domingos nós tínhamos já grupinhos que se juntavam noutras paróquias. Não era na minha de Santa Clara, porque a minha ainda não era paróquia. E então o meu pai ia para o futebol, ele não gostava que a gente saísse sozinhas assim para muito longe, e ele ia para a freguesia de São José, a tal do campo de São Francisco, a Igreja de São José, e aí já tinha um grupinho que se chamava pré-JOC. Era a primeira coisa que nós frequentávamos antes da JOC.
E então eu gostava, porque havia aquele convívio, conhecíamos outras pessoas, íamos um grupinho, quatro ou seis, uma coisa assim. E depois fomos crescendo, fomos desenvolvendo, depois criámos um grupinho de jovens em Santa Clara. Depois, mais tarde, apareceram rapazes também. E Santa Clara sempre teve um convívio de gente nova muito bom, assim para o positivo, mesmo com rapazes e raparigas. O padre que estava lá na altura nunca foi daqueles de dividir, de fazer divisões. Felizmente, tivemos isso.
E pronto, tudo começou a partir desses grupos pequenos que depois, portanto, eu com os meus 20, antes de 20 anos, já tinha aqui um grupo pequenino da pré-JOC e depois na paróquia de Santa Clara formaram um grupo de adultos, tinham um grupo de homens e já tinham o grupo de senhoras casadas. Elas gostavam muito de mim porque eu sempre fui muito alegre. Achavam-me muita graça. Um dia o padre disse: “Olha, Manuela, eu tenho coisa para te dizer.” ”Tem uma coisa para me dizer, que coisa é essa que o senhor tem de dizer em particular?” “As tuas amigas, tu gostas muito delas e elas de ti [eu às vezes ia para casa tomar conta das crianças para eles irem para as reuniões], elas dizem que têm confiança em ti para ficares com um grupo de adolescentes, para tomares conta.” Eu disse: “Têm?” Naquela altura nós chamávamos o grupo das novas. “Claro, têm.” Eu disse: “eu não vou dizer nada. Eu vou pensar e depois o senhor vai-lhes dar uma resposta.”
Fui pensar. Eu pensava e, quando estava com elas, via, pensava, e um dia falando com elas, disse: “Vocês sabem que vai haver novas eleições com um grupo e outro e nós também vamos ter eleições para o nosso grupo, de maneira que não se sabe quem é que vai ficar.” Pronto, não lhes disse o que tinham pensado, mas depois a certeza é que eu fui falar com o padre e disse: “Eu pensei e vou aceitar. Não falo mais com elas daquilo que o senhor falou, mas vou aceitar”. E foi uma maravilha. Tomei conta daquele grupinho, o grupinho desenvolveu-se. Lembro-me perfeitamente, assim perto da Páscoa. E pela Páscoa havia aquelas vigílias e eu fui dizer ao senhor padre que as novas queriam preencher uma hora de Adoração ao Santíssimo Sacramento. Eu disse-lhe uma coisa: “elas é que vão orientar a hora, eu só oriento os cânticos. Elas é que têm as coisas feitas, de maneira que quem estiver nessa hora, vai aceitar essa hora feita por elas e mais nada, como nós aceitamos as outras que os outros fazem.”
E foi assim. Mas correu muito bem. Correu tão bem que depois elas disseram: “Manuela, nós queríamos ficar toda a noite, ficar com as outras. Eu disse: “vocês assim obrigam-nos [a maior parte não tinha telefones] a ir à casa de cada uma de vocês [eram umas oito ou dez], para dizer às vossas mães, aos vossos pais, se autorizam que vocês fiquem toda a noite.” E fomos.
As mães, se eu dissesse que ia ficar toda a noite e eu já sabia que ia ficar, “eu vou fazer um chazinho, elas vão fazer umas bolachinhas”. Foi assim e foi maravilhoso. De facto, foi um momento mesmo de grande espiritualidade vivido por esse grupo de adolescentes, só com cânticos por mim preparados. Mas foi mesmo uma surpresa para toda a gente, até para mim, porque havia coisas que eu não sabia, porque eu não queria estar no papel de vigilante, queria ter um papel participativo na outra parte dos cânticos. E foi assim, mas correu muito bem.
(Isso também é muito positivo, porque nós hoje em dia muitas vezes falamos nos jovens, mas eu e outros adultos somos responsáveis, porque esta sociedade não confia nos jovens. Nós sabemos que há uma grande, ultimamente, portanto, estou a falar dos anos 60 para agora, há muitas coisas que nós não tínhamos, sobretudo a televisão, as diversões à noite e essas coisas todas. Mas se houvesse mais confiança, uma vigilância que não fosse persecutória, mas de confiança, penso que a juventude seria outra. Sempre vi os jovens com um grande espírito de solidariedade e de humanização. E é isso que às vezes as pessoas não gostam de confiar sem saberem sempre quem comanda.)
Isto foi desde o início da minha catequese até começar no grupo de jovens como responsável, portanto nos anos 60. Ainda no fim dos anos 50 fui responsável pela Juventude Operária Católica ao nível da diocese, eu fui ao bispo e tudo. As da Terceira é que me guiaram, porque a gente tinha então grupos na Terceira, no Faial, em Santa Maria não. Tinhamos cá e não tínhamos no Pico. Mas pronto, e depois já concordavam que eu fosse e andei um bocado de mala às costas a fazer reuniões, encontros, a juntar todos, a falar nos primeiros objetivos, no que era a JOC e no que é que havia de novidade no movimento católico.

P: Era o quê? Estamos a falar nos anos 60? Nessa altura, o que é que essa novidade?

Manuela Medeiros: A novidade era a Juventude Operária Católica, uma juventude operária que tinha os problemas do trabalho, da vida do dia-a-dia e, além disso, tinha também a parte espiritual, que é o Evangelho. O Evangelho não era só aquela doutrina de que nós líamos aquele bocadinho, mas que pegávamos nele para a vida do dia-a-dia. Qual é a palavra de ordem que nós vamos levar agora para o nosso trabalho? Porque aquele grupo já estava todo a trabalhar, embora houvesse algumas que estudavam, que não queriam ir para o grupo daquelas estudantes, queriam ficar no meu grupo. Era alegre, como eu dizia, era muito alegre.
A gente juntava-se em várias ocasiões, festejávamos as amigas, coisas que vocês lá não têm. Porque no Carnaval as quintas-feiras têm todas um sentido, tem a quinta-feira de amigos, quinta-feira de amigas, quinta-feira de compadres, quinta-feira de comadres. E então pelas amigas nós juntávamo-nos, juntava-se as paróquias todas onde havia. Era São José, a Matriz, era Santa Clara, São Sebastião, que é matriz, e São Pedro. Juntávamo-nos todas e era uma alegria... Não havia os discos, mas havia música gravada, havia alguém que sabia tocar o acordeão ou coisa assim. Elas gostavam muito e eu também. A gente gostava muito disso e a partir daí as pessoas tinham isso.
O que é ligado à vida é isso, não havia várias gavetas, ou por outra, havia várias gavetas, como vários conhecimentos, mas todos unidos numa função. A JOC foi uma escola de formação grande para mim, que me preparou para a vida e que me ensinou a ligar o Evangelho à vida. A gente está sempre a pensar naquilo, mas como é que eu vou fazer isso? Tal e qual como a gente vê, ligado às leis do trabalho, o que é que é certo e o que é que é errado? Se eu estivesse aqui, o que é que eu fazia? Se eu tivesse aqui, o que é que pensava? Era sempre com esse princípio…
Ainda no outro dia, não há muito tempo, tivemos um encontro, de vez em quando eles fazem, mas para toda a gente, para todos os leigos, encontros pastorais, e eu fui. E depois eu disse: “Olha, o que falta hoje na Igreja é a ação católica”. E estava o bispo presente e disse-me: “A ação católica já está desatualizada.” E eu disse: “Está desatualizada para quem não quer trabalhar. Porque a ação católica leva-nos a uma ação. E a ação é essa, não é falar de Deus a ninguém, é o nosso testemunho de encontro com aquilo que nós aprendemos daquilo que está escrito no evangelho. Isso obriga-nos a mudar e a dar um testemunho em que as pessoas acreditam e não é preciso estar falando.”
Ainda ontem lembrei-me disso, porque era assim: “Não julgueis para não seres julgados.” Porque a gente às vezes tem uma tendência: Porque é que ela disse? Porque é que ela fez? Porque é que ela e assim? A gente tem isso, são nessas coisas que nós aplicamos. Não julgueis para não ser julgados. Porque tu tens uma trave na tua vista, não vês, mas vês na vista do outro, que é a crítica. São essas pequenas coisas que nós vivemos e por isso é que digo que a Juventude Operária Católica, para mim, foi uma lição e uma formação para a vida por uns belos anos, e foi isso até ao 25 de Abril. Mas no meio disso, na fábrica, as minhas colegas todas confiavam muito em mim.
Depois veio o 25 de Abril e os patrões juntam-se, querem formar uma Junta Administrativa. Eu estava de férias, ligaram para mim. Eu vim das furnas de autocarro para o plenário. Ficou toda a gente admirada. Eu estava de férias, mas não fui proibida de entrar (nessa altura já trabalhava na fábrica há quase 20 anos). Depois eles levavam um papel e perguntaram se eu já tinha assinado aquilo e depois iam a outra fábrica de tabaco e eu disse às minhas colegas no plenário: “Vou dizer uma coisa, eu tenho orgulho de trabalhar na fábrica Micaelense, estou contente que as outras pessoas tenham assinado, mas aqui aos meus colegas eu digo, não estou a falar mal das pessoas que nem conhecemos, mas se assinarem uma proposta dessas, eu amanhã venho para o jornal e digo que tenho um grande desgosto de trabalhar para a Fábrica Micaelense.”
(Já havia as máquinas, mas nunca despediram ninguém. As primeiras máquinas da terra, foi engraçadíssimo, foram feitas por um colega nosso, também de lá, era de cigarros. Era um trabalho muito, muito engraçado, e que envolvia muita gente).
E ninguém assinou, nem os do escritório assinaram. E não era contra as pessoas, mas a gente não tinha uma explicação para que é que era aquilo. Pronto, era para criar uma junta governativa, era assim. Mas então era uma divisão, queriam separar-se do continente. Eram assim umas movimentações, mas felizmente, pronto, essa parte passou, depois houve outras, e depois entrei para os sindicatos. Um dia estava lendo, porque a gente já descontava para os sindicatos antes do 25 de Abril, e estava lendo o meu cartão do sindicato, que diziam tem dever disso, tem dever disso, tem dever disso... e eu disse: “Vocês leiam o que está aqui para ver se eu estou lendo bem. As pessoas: Isso é tudo deveres, a gente não tem um direito que seja.”

P: Isso antes do 25 de Abril?

Manuela Medeiros: Era o sindicato das indústrias transformadoras. Disse às pessoas: “O que é que vocês acham?” A gente discutiu e não tinha um direito que fosse. A gente tem de ir à Inspeção do Trabalho, mas nós próprias não confiamos na Inspeção do Trabalho. Então, e foi nessa data que pedi licença ao sindicato dos empregados de escritório, porque das indústrias transformadoras, que era para onde a gente descontava, era uma sala pequenina e havia um pormenor, eu não cabia ali. E então eles emprestaram-nos. Lembro-me perfeitamente. Tive de subir à mesa, porque aquilo estava cheio e as pessoas não viam. E pronto, a partir daí começou a movimentação, o interesse.

P: Isso foi em que ano?

Manuela Medeiros: Isso já foi em 1975, logo ao princípio, quando a gente começou a estar mais consciente daqueles movimentos. Essa já foi mesmo logo a princípio do 25 de Abril, depois começou-se então os sindicatos.

P: Podemos recuar um bocadinho?

Manuela Medeiros: Podes fazer as perguntas que quiseres.

P: Se calhar, antes de irmos para o 25 de Abril, tinha algumas perguntas sobre o período anterior, se calhar até antes disso. Os seus pais trabalhavam na pesca, o seu pai trabalhava aqui na pesca?

Manuela Medeiros: O meu pai era mergulhador… e não sabia nadar. É uma anedota, mas era verdade, todas as pessoas têm essa reação. O meu pai trabalhava ali na Junta Autónoma dos Desportos no Porto de Ponta Delgada. E uma vez eu disse-lhe que queríamos a ver o trabalho dele, como é que ele fazia. E eu fui. Aquilo tinha uns fatos muito pesados, umas botas muito pesadas. Os fatos era eu que remendava. E quando ele fazia serviço, nós íamos às vezes ao fim de semana, estávamos lá com ele na sua oficina, nós sentávamo-nos ali a ver.
Mas um dia ele ia para um sítio pertinho, mais à frente, ali junto do estabelecimento prisional, não sei se já passaste lá, na Calheta, e ele disse que ia: “Então vamos.” E eu fui. Ele estava lá para baixo, nós estávamos cá em cima, porque tinha assim mesmo um portozinho, estava muita gente a ver. Ele ia tirar já não sei o que foi, alguma coisa que tinha encalhado de algum barco que valia a pena, mas deu-me uma aflição e eu não quis ver. Porque eu julguei, ele estava aqui, depois aparecia ali, depois aparecia acolá. Eu julguei que ele fazia isso porque estava agoniado. Olha, tomei um medo, eu também era novinha nessa altura, devia ter uns 14 anos. Estava a trabalhar, já, mas com os meus 14 anos não tinha a perceção daquilo. Então eu fui-me embora. Disse à minha mãe que não queria ver mais e pronto.
P: E a tua mãe estava em casa?

Manuela Medeiros: Era, na altura era quase tudo em casa. A minha mãe, antes de casar, trabalhava com outras senhoras na costura, eram chamadas aprendizes de costura. O que elas ganhavam era o que elas aprendiam, era assim, e faziam serões e tudo. Mas a minha mãe aprendeu, não sabia fazer, também a senhora não fazia, mas a minha mãe fazia muito bem roupa de menina e chegou a criar vestidos pequeninos para crianças de um aninho e tal. Ela criava e fazia, e para a gente chegou-nos a fazer muitos.
Então para nós, há muito tempo, a gente adolescentes, chegou-nos a fazer vestidos muito lindos, para mim e para minha irmã, a mais velha já não foi. Foi três, uns vestidos beijes com a fazenda lisa e criou por si. Daqui aqui levava umas tiras, mas umas tiras dobradas que lhe deu muito trabalho. Mas era assim, o entrepano era mais abaixo.
Eu vou-te dizer, toda a gente gostava, era muito giro. E ela sabia então fazer isso, entretinha-se e fazia para outra gente. Eu tenho uma sobrinha neta, aquela que está ali, eu disse: “a tua bisa, se fosse viva, ela fazia-te o vestido”. Não queria. Eu disse: “Ela fazia vestidos bem lindos. Tu não sabias, ela não te ia fazer um vestido feio”, assim na brincadeira. Mas ela aí criava. Ela criava e sabia.

P: E tu, não chegaste a casar?

Manuela Medeiros: Não, não. Nunca namorei nem nunca casei.

P: Porque lá na fábrica de tabaco era essa a regra?

Manuela Medeiros: Não, não. Antes pelo contrário, havia alguns que brincavam e alguns que diziam coisas. Havia um que dizia assim: “Não sei como é, gostas tanto de crianças e não pensas num casamento ou coisa assim?” E eu disse: “Também se eu quiser ter um filho não é preciso casar.” Portanto, essas coisas assim. E à medida que elas iam saindo, a fábrica nunca ficou com maior percentagem de homens do que de mulheres. Só mais tarde, se calhar quando eu saí, à medida que iam saindo ou coisa assim.
Sempre tivemos mais mulheres e do que homens, os homens eram mais na mestrança, à frente das máquinas, os técnicos de máquinas, assim. Havia mulheres que depois também já estavam, algumas raparigas à frente de máquinas e que sabiam tal como eles. E às vezes acontecia se havia alguma pessoa grávida, os patrões não podiam saber porque se não eram mesmo despedidas, aquilo era um segredo. E não havia os seis meses nessa altura, era a questão da produção que não podiam dar igual ou coisa assim, iam faltar mais ao serviço. É ganância, digamos assim, tanto de despedir como de lucro que havia as duas coisas.

P: E as mulheres ganhavam muito menos que os homens não era?

Manuela Medeiros: Ganhavam. Não havia assim grande diferença para aqueles que não estavam ligados a coisas qualificadas, mas já havia diferença. Aquilo era, em escudos, 6,30 e depois lembro-me de chegar a 9, não sei.
Até fizemos uma festa com o primeiro salário mínimo que tivemos. Veio o 25 de abril e eu não conhecia uma nota de 1000 escudos. Quando eles ganharam os 3600, nós recebemos 3300, porque a maior parte que estava lá, era de facto uma maior parte, não recebia mil escudos, mesmo os homens não recebiam. Mas depois foi-se aproximando, mas não vou dizer que nunca se igualou, portanto houve essa diferença e depois veio esse aumento.

P: Isso foi já depois do 25 de abril....

Manuela Medeiros: Sim, sim, sim. Primeiro o salário mínimo de 3300 entrou em vigou. Foi uma boa mão cheia, mas aí ninguém se desculpou, ninguém foi dizer que não queria, oh, que não queria. A gente só disse assim: “se fosse dividido por coisas, agora não sentiam tanto e nós tínhamos lucrado muito mais.” A verdade é essa. A gente sabe que os preços e o custo de vida eram elevados, mas dava perfeitamente.
O primeiro trabalho que nós tivemos nos sindicatos (eu não era da direção nem nada, mas falei com a direção), fomos para lá por causa do custo de vida, do aumento do custo de vida. Depois para pagarem os salários, aumentavam noutras coisas e o poder de compra diminuiu. Pusemos uma mesa no salão do sindicato, tipo exposição, para sensibilizarmos as pessoas para essa coisa dos aumentos. Porque de nada servia um aumento salarial com o preço de vida a aumentar.

P: Isso foi em que ano?

Manuela Medeiros: Foi logo a seguir ao 25 de Abril.

P: E antes do 25 de Abril, houve alguma reivindicação na sua fábrica?

Manuela Medeiros: Sim, a primeira que houve já era por salários e houve noutra, que era também de tabaco. E aí conseguimos mas um aumento pequenino, mas que se conseguiu igualar, digamos, ao subsídio de natal. Porque enquanto umas lá na fábrica recebiam subsídio de Natal de um mês, as do escritório, nós recebíamos à quinzena, era menos 15 dias. E depois nós começámos a ver que não era certo. As do escritório ligavam para mim: “Oh Manuela, já vieste agradecer ao patrão?” “Agradecer ao patrão o quê? Não tenho nada a agradecer.” Vocês têm, mas eu recebi 15 dias, não tenho nada que agradecer.
Então, lá fui ao escritório e o patrão: “Oh Manuela, alguma coisa?” E eu disse: “Eu não venho agradecer, ao contrário das minhas amigas, eu venho pedir. Venho pedir, mas não venho pedir um favor ao senhor. Venho pedir é para a fábrica, porque a fábrica somos nós todos. E o senhor, se der, é da Soares Pereira e o que venho pedir não é para mim. Venho pedir é um colchão para um casal que não tem condições nenhumas de viver e são idosos.” “Pronto Manuela, mas então queres que seja em nome da fábrica?” “Porque a fábrica somos nós, trabalhadores, que estamos a dar. E se for o senhor a dar é o seu nome. Portanto, há uma grande diferença, sim.” E depois ele assim: “Queres colchão e a cama?” Eu disse: “Isso também.” “Então vai escolher e a fábrica depois manda um carro buscar e vai entregar onde tu mandares.” E depois ele também disse: “E roupa para a cama?”
Quem teve essa iniciativa foi um grupo que se juntava para questões sociais de ajuda. Mas nós não queríamos que as pessoas sentissem que aquilo era esmola. Há uma diferença. E então eu disse: “não senhor, nós também temos que sentir uma coisa do grupo, esse grupo que teve essa iniciativa, essa iniciativa não é só minha. Então nós, o grupo, é que vamos dar os lençóis, os cobertores, nós é que vamos dar.” E correu bem e depois foi feito tudo como eu dizia e ainda ficou uma ou duas a limpar a casa, aquilo não era uma casa, era uma garagem. Fomos limpar, era a tia Maria e o senhor António. E o senhor António chegou-se ao pé de mim e disse (chamava-me menina Maria): “Oh menina Maria, quando viu tudo feito [tinha muitos gatos, os gatos sujavam aquilo tudo], como é que me vou deitar naquela cama?” “Oh senhor, como se deitava na outra, é sua, mas agora já não é nada nosso. A gente vai continuar a vir fazer visitas, mas isso é tudo seu, é tudo vosso”.
E foi assim, essa ação também foi bonita. Mas então é a tal parte para eles não sentirem que é esmola. Eu vou-lhe dizer uma coisa que eu gostava também de contribuir para essa despesa. Eu disse: “O senhor, nós ainda estamos devendo, mentira, estamos devendo o resto do colchão. O tio António vai-nos dar todas as semanas dois escudos e meio.” “Sim, senhora, a menina vem aqui buscar?” “Venho sim senhor.” Pronto, quando eu ia lá ele dava os dois escudos e meio e eu nunca disse que o colchão estava pago.
Não é que um dia eu estava constipada e depois eles mandaram um recado e eu fui ver alguém doente que estava no hospital. E andava um enfermeiro: “menina Maria, menina Maria”, não sabia quem era. As enfermeiras não sabiam quem era menina Maria. “Senhora, é consigo?” “É comigo.” “É que está lá um senhor, que já está com biombo, que quer falar consigo e diz que tem que falar com a menina, ele já estava com um biombo para morrer.” Eu fui lá e ele disse-me assim: “menina Maria, é só para lhe perguntar quem é que vai pagar o resto do colchão.” E eu não tive coragem de dizer que o colchão estava pago. Eu só disse: “Tio António, o grupo, que gosta tanto de si, não o vai deixar mal. Nós pagamos o resto, só falta um bocadinho.” E pronto, morreu uns minutos depois. Foi das coisas mais maravilhosas também.
Isto para dizer que na ajuda que damos aos outros, temos de ter o cuidado de não ferir a sensibilidade das pessoas e de lhes pôr, com aquilo que eles podem (até que seja limpar ou lavar) a colaborarem para aquilo que vai ser bom para eles, para eles sentirem a coisa sua. E muitas coisas em que há estragos, que há, é aquilo a que eles não dão valor porque não sentem as coisas como suas. E tudo o que fazemos é sempre nesse intuito: dá de graça para receberes de graça.

P: Esse grupo era ligado também à JOC?

Manuela Medeiros: Esse grupo sim, tinha ligações à JOC, mas não era todo. Nós chamámos aqueles que quiseram colaborar nessa parte social, digamos assim. E nem todos queriam. Quando foi da tia Maria e do senhor António, foram mais pessoas de fora para levar a cama, para armar a cama, para levar o que não prestava. Não foi brincadeira, foi muita coisa. E, cá está, nós também não queríamos, só queríamos aquelas que tivessem mais intimidade, para não os deixar vexados com aquilo. Nem toda a gente conhecia o ambiente.
Essa foi das ações muito concretas. Reivindicávamos as férias, que só tínhamos uma semana e os outros tinham 15 dias. Nós queríamos as férias iguais, porque trabalhávamos os 365 dias como aos outros. Conseguimos assim alguma coisa antes do 25 de Abril, conseguimos as férias e já não me lembro se conseguimos o subsídio. Também não quero dizer coisas sem ter a certeza…

P: E como é que se organizavam essas reivindicações? Era através da JOC?

Manuela Medeiros: Não, tínhamos essas que já tinham essa parte social, a JOC também tinha uma parte social. A Juventude Operária Católica mete o Evangelho em tudo aquilo que é justiça, que é verdade. Muita gente, muitas daquelas e daqueles que estavam na JOC gostavam do ambiente, digamos assim. Era um ambiente leve, era um ambiente alegre, era um ambiente em que nada era exigido. As pessoas iam se queriam, as pessoas faziam se queriam. E depois havia sempre os mais responsáveis, que tinham de dar conta e dinamizar, mas não eram obrigados.
Por exemplo, aquele grupo de novas ia à vigília e a mais coisas que nós fazíamos, era assim. Ninguém era obrigado, mas sempre nos juntávamos. Essas coisas faziam muito bem, faziam muito bem a todos.
E depois, quando havia uma festa, o padre anunciava. A missa era toda cantada. Nós, em Santa Clara, é que começámos, porque eu fui escolhida para representar os jovens à Suíça. Isso em 1968. Aquilo era tudo em francês, eu passei fome, porque não gostava daquelas comidas e um dia eles dão-nos assim umas coisas nuns copos. Eu fiquei tão contente que aquilo era um sumo, era sopa. Eu não gostei nada da sopa, mas pronto. Mas tinha uma que se chamava Manuela Varela e ela, então, guardava para mim o pequeno-almoço, aquelas coisinhas de doce, porque sabia que eu não gostava da comida. Ela guardava e era o que eu comia durante o dia.
Uma vez tínhamos a tarde livre e os franceses perguntaram se eu queria ir com eles num passeio. Claro que eu fui, a chefe do grupo, nós tínhamos uma chefe de grupo que era do continente, nessa viagem fomos 14, e cá dos Açores fui só eu. A Lurdes, ainda é viva, disse assim: “Mulher, vai, tu vais gostar tanto”. Era para conhecer, mas também queria comer alguma coisa.
Como eles sabiam que eu cantava, enquanto eles comiam, eu cantava. Mas foi tão bom, cantei coisas da minha terra, cantei coisas também do continente, alguma coisa que eu sabia. Não era muito assim, mas cantei e depois à noite houve um serão, eles puseram-me uma capa preta de estudante, os nossos de Lisboa, e cantei um fado de Coimbra. Isso é terrível porque eu sei a música, mas não sei a letra. Mas então cantei: “Coimbra tem mais encanto [canta a primeira frase]”. Olha, apagaram-se as luzes, só acenderam os isqueiros. Eu comecei a inventar letras: “Quando nós não temos dinheiro, temos a solidariedade dos amigos, como abrir os frigoríficos e ver aquilo que pode servir para mais”, essas coisas assim, olha, fomos sempre safando, mas foi lindo.
Lembro-me que a minha mãe me fez um fatinho verde, desse verde assim, e uma blusinha amarela. Os rapazes chegaram lá, portanto, homens despiram antes de almoçar, despiram, ficaram em tronco nu, foram-se lavar daqui para cima, vestiram uma blusa, uma camisinha lavada. As mulheres que iam mais finas, cheias de esterco e essas coisas assim, da transpiração, do comboio e da terra. Mas fomos embora assim, porque não tínhamos onde nos mudar.

P: Esse encontro era da JOC Europeia?

Manuela Medeiros : Era JOC internacional…

P: O que é que discutiam nesses encontros?

Manuela Medeiros: Nesses encontros da JOC internacional já discutíamos coisas relacionadas com o meio ambiente. Não essa coisa «climática», mas o meio ambiente: respeitamos o meio ambiente, não fazemos fogueiras nem queimas, na altura do Verão. Discutíamos como ocupar os tempos livres.
Os franceses é que foram responsáveis por aquela parte da Liturgia naquele dia de como ocupar os tempos livres. Foi engraçadíssima a ideia deles. Eles levaram bolas, eles levaram rádios às costas, eles levaram coisas de jogar póquer e isso tudo, tudo o que eles gostavam de fazer. Levaram livros, levaram cartazes para chamar a atenção das pessoas que estivessem e que não pertencessem ao nosso grupo, como ocupar os tempos livres, como eram necessários os tempos livres, como era urgente a gente ter férias, os trabalhadores todos terem férias. Também foi muito bonito, em 1968. Lembro-me que foi a primeira viagem que eu fiz assim.
Parei primeiro em Lisboa e depois fui de comboio, não fui de avião. Por isso ficámos todos cheios de esterco, claro. Mas aquilo tudo era alegria, tudo era folia.

P: E como é que era a relação da JOC com a ditadura, havia problemas?

Manuela Medeiros: Sim, não havia liberdade. O 25 de Abril, o que me deu de novo foi liberdade de expressão, sobretudo, e de escrita. Não me deu mais nada, a maneira de eu ser, a maneira de sentir, já sentia da formação da JOC, da minha escola de vida. O 25 de abril deu-me foi liberdade de expressão. E depois veio o 1.º de Maio, já depois do 25 de abril.
Uma vez, lembro-me perfeitamente, no primeiro ano em que o Mário Soares nos queria descontar 2,8 % de subsídio de natal. A gente juntou-se numa campanha contra. Fomos para a Igreja Matriz. Nós tivemos que ter uma licença da câmara. Fomos à Câmara, claro que ela nos deu a cópia assinada e tudo. Estava eu a dizer: “Não nos roubam 2,8! Queremos o subsídio por inteiro, não é dividido, não é roubado!”. E veio um polícia: “Vamos acompanhá-la a casa.” “A minha casa? O senhor não está bom, eu sei onde é a minha casa. Eu tenho de estar aqui até às 7h00, às 19h00. Os trabalhadores saem às 18h30 e eu tenho que estar aqui até às 19h00, que é para eles nos apanharem, porque a gente também estão contra isso. Eles não querem ser roubados 2,8. O senhor gostava que descontassem o seu subsídio? O senhor também não quer.” “Oh, senhora, mas eu fui mandado.” “Mas diga ao seu patrão que eu não vou porque eu tenho isso aqui, olhe, a Câmara assinou. O senhor presidente da Câmara está cheio de dores cabeça. Olhe, o senhor presidente da Câmara pode ir para a sua casa quando quiser, quem não pode ir para sua casa são os funcionários. Ele pode ir para a sua casa, passe no hospital, trate de si e vá-se embora, não sou eu.”
E foi assim. Depois ele veio outra vez e não me lembro. E a polícia quando falava comigo tocava-me no ombro e eu estava com mais homens. Não era uma multidão muito grande, mas estava aquele quadrado assim. E eles mais assim perto de mim, a polícia: “Oh, senhora, a senhora aceite, a gente vai... “ “Já disse que não vou, os senhores para onde me podem levar é para a Boa Nova – a Boa Nova era a cadeia, era a prisão –, porque aí eu não vou sozinha. Para a minha casa eu vou à hora que eu quiser, sei onde é, não preciso de companhias, desculpe lá”. E pronto, nunca vim embora, mas aí um senhor que estava ao pé de mim, era um trabalhador, disse: “Eu vou dizer uma coisa, você não toca mais nela. Eu não me responsabilizo, o senhor, por favor, não toque mais nela.” Olha, quando a gente dá por nós, já não havia só um polícia. Aquilo à volta eram uns 30 ou 40, eles estavam juntinhos, rodeando aquilo tudo e a gente lá no meio. E eu disse: “Olhem meus amigos, a polícia também não quer que lhe roubem o subsídio, estão todos aqui porque não querem que lhes roubem o seu 13.º mês.”
Fazíamos isto com muita convicção e também com muita confiança naqueles que me rodeavam. Eu nunca estive sozinha em nada, eram poucos, mas eram bons. Porque às vezes o que tem valor não são as maiorias, mas quando as minorias são boas. E eu tive sempre isso, também havia muitos que eram contra, claro. Mas havia também aquelas que eram minhas amigas na JOC que quando me veem no sindicalismo começam a acusar-me de comunista.
Eu era voluntária e ela diz assim: “Ai Manuela, que bom, desde que tu és voluntária que és muito mais católica”. E eu disse: “Eu não conheço a senhora de lado nenhum, como é que a senhora me pode ajuizar, de um valor daquilo que eu sou, de uma coisa que não conhece. Eu não sei se sou mais católica ou não”. “Ai não, a gente nota.” “Nota o quê? Eu vou-lhe dizer: eu não a conheço de lado nenhum.” “Ai, mas a gente no nosso grupo, a gente reza pela Manuela.” Eu disse: “Olha que bom, enquanto vocês rezem, dão-me mais força.” Disse: “eu estou contente, mas diga ao seu grupo que também lá há um dizer que a senhora está usando e que está lá escrito, ‘não julgueis para não seres julgados’. Não se esqueça, marque isso na sua cabeça.”
Pronto isso é, são métodos muito ricos.

P: Como é que foi o 25 de Abril, o dia 25 de abril?

Manuela Medeiros: Ai, o 25 de Abril, eu vou-te dizer, querida. Quando foi o 25 de abril, claro que eu ainda estava a trabalhar, tinha um amigo que era distribuidor de tabaco (a minha secção era de onde saía o tabaco). Eu trabalhava com um guarda, que era fiel da alfândega e eu era fiel da fábrica. E então, eu estou a fazer o pedido, a requisição deste senhor que chegou lá (este senhor já faleceu há muito tempo e eu gostava tanto dele, era uma pessoa tão séria), eles foram distribuir o tabaco, e ele cheio de medo: “Manuela, anda aqui, anda aqui.” E eu disse: “sr. Flávio, porque é que me estás a chamar logo de manhã? O que é que te aconteceu?” ”Houve uma revolução em Lisboa.” “Ah, sr. Flávio, eu ainda não ouvi dizer isso.”
Já eram umas 8h30 da manhã ou 9h00 e eu disse assim: “não ouvi.” “Ah, vai-te sentar no meu carro.” Porque ele tinha rádio e estava ouvindo. “Epá é verdade, como é que eu vou fazer isto? O que é que eu ia fazer?” Eu fiquei... uma revolução. Liguei para alguém de mais confiança, mas nesse dia não fizemos nada. Foi tudo para os seus…, tudo queria era ouvir notícias. Eu vim para casa, lembro-me perfeitamente, comprei rebuçados. Nós tínhamos um rádio antigo, muito grande, não havia televisão, havia um rádio. Tomei banho, vesti o pijama, fui para ali, a minha cozinha não era assim, portanto não tinha aquelas obras, era mais simples ainda, fechei tudo e levei toda a noite a comer rebuçados e a ouvir notícias. No outro dia fiquei tão mal-disposta.
Cheguei à fábrica, depois fui falar com um, falámos com outro: “Hei, isto tudo vai mudar, agora e que vai ser ela, agora e que não sei quê... o fascismo nunca mais? É!” Então a gente vai é para a rua e pronto. E a primeira manifestação que houve eu não pude ir, porque estava num serviço de responsabilidade na fábrica, que era quando fazíamos a exportação para América. Aquilo era mais difícil. E eu não queria dar a responsabilidade a outra pessoa.
Ia para a manifestação e depois, se houvesse um erro? Então a outra foi para a manifestação, mas teve um papel determinante, no Governo Civil. Há fotografias dela. Ela entrou e foi para a varanda gritar: “Fascismo nunca mais!” Ela com mais duas ou três, foi engraçadíssimo, foi engraçadíssimo. Foi uma grande força. Ela já faleceu, foi na América, porque ela depois ainda embarcou. Chamava-se Fátima. Eu não queria acreditar quando ela me disse: “tu vais ver, vais ver fotografias, eu vou comprar.” Eu disse: “tu vais comprar e eu vou-te que dar dinheiro e também quero.” E pronto, foi assim, houve coisas muito interessantes.
E depois as pessoas começaram a juntar-se, aqueles que tinham mais confiança, analisando o que é que era. Porque a gente antes vivia, eu vou-te dizer… A gente, na fábrica, no tempo em que eu estive lá, mesmo antes do 25 de abril, uns 20 anos à vontade, eu nunca sofri lá dentro represálias do fascismo. A fábrica sempre teve uma parte socialmente positiva. Dava-nos a alimentação. Tinha salários baixos, tinha a divisão das férias, essas coisas assim. Quer dizer, um patrão copia aquilo que o outro faz, porque eles não querem descer os seus lucros. Era assim, mas nunca tive...
Sempre falei com eles: “a gente vai festejar as amigas. Está tudo avisado. Telefonei para o comercio todo que nos fazia pedidos para aquele dia, naquela época, que quinta-feira é tarde de amigas, para não nos telefonarem.” E mesmo no dia antes, a gente trabalhava de maneiras a mandar tudo, para as ilhas, tudo, para ninguém nos pedir nada, para não faltar nada a ninguém, era assim. Portanto, eu sempre tive uma coisa a meu favor, que me ajudou nesse sentido. O que queria dizer de um patrão ia-lhe dizer, nunca mandei dizer por ninguém. Porque a gente nunca sabe como é que vão dizer. E desde que apanhei um amigo meu em falsidade… Pronto, são coisas que às vezes acontecem e a gente quando apanha, apanha. E depois a gente orienta-se de outra maneira e foi o que fiz.
Ainda hoje em dia ele aqui vem. Já não nos juntamos tanto, mas não há nada como a gente dizer na cara das pessoas aquilo que a gente sabe. Porque guardando para nós destrói-nos. A gente assim liberta-se do veneno que tem cá dentro. É uma maravilha.
Uma vez, lembro-me, uma segunda-feira, três irmãs, que eram tão amigas, foram fazer queixa de mim, depois de um fim-de-semana em que eu nem estive com elas. A gente foi-se embora todas bem, porque é que elas…? Não sei. Foram falar com o patrão e eu fui atrás delas. Cheguei à porta, estava o meu patrão e elas, e eu bati. O patrão disse: “Abre, abre” – porque ela sabia quem era. Então disse: “Podes entrar, Manuela.” Ele disse: “Manuela, é alguma coisa?” Eu disse: “Não senhor, não é nada, eu só venho saber de que é que essas minhas colegas vêm fazer queixa de mim. Porque se elas vierem sozinhas eu não me posso defender. Eu tenho de estar aqui.” Aí elas ficaram.... O patrão disse assim: “A tua secção é um confessionário, vocês que se vão embora todas.” Depois eu disse: “Então o senhor não chegou a saber o que é que elas vinham dizer?” “Eu não tenho gosto de saber.” Então eu nunca soube o que é que elas iam dizer.
Portanto, é assim, ou a gente tem que ter coragem e enfrenta ou a gente desanima. Claro, há coisas que às vezes não correm como a gente quer.
Depois tivemos a primeira manifestação, no Dia dos Trabalhadores, no 1.º de Maio, logo a seguir ao 25 de Abril, e eu não gostei nada.

P: Porquê?

Manuela Medeiros: A gente começava sempre com pinturas no campo com as crianças. Aí, às mil maravilhas, cantando, brincando, tudo. E depois tivemos um encontro no Coliseu, digamos assim, um plenário para informar os trabalhadores e tal. Eu também fui. Nós corríamos por todos para não serem sempre os mesmos, a verdade é essa. E como eu ia à televisão, disse “não, eu vou à televisão, é melhor a gente variar.” Eles tornam-se também mais responsáveis. E eu depois disse: “Fico então num Avé Maria em Latim, na Igreja de São José, um casamento de uns amigos meus, um casal.” E o que é que acontece na igreja? O Padre, que que Deus o tenha num bom lugar, disse assim: “Agora, antes de eu vir para aqui para essa cerimónia, para essa missa, vinha um grupo....

P: Estavas a contar-me do casamento no 1.º de Maio?

Manuela Medeiros: Fomos cantar, eu cantei a Avé Maria e voltei para o campo, que tinha um quiosque, onde tínhamos a parte do encerramento. E depois alguém veio ter comigo e disse: “Manuela, tu já viste que começaste o teu dia de hoje e o que é que já se passou?” Eu disse: “Ai lembro” e a gente tem isso tudo escrito, porque eu também fazia parte da organização e disse: “Olha, eu comecei com as crianças a pintar no campo, cantando coisas para as crianças, elas dançando, os que pintavam, pintavam-se uns aos outros, isso tudo.” Depois fomos comer qualquer coisa porque íamos para o Coliseu. No Coliseu, já não me lembro quem foi que tinha a apresentação da sensibilização para o 1.º de Maio, a importância que era de comemorar o Dia dos Trabalhadores, os motivos que levaram para isso, realçando a liberdade, porque antes do 1.º de Maio nós tínhamos feito uma manifestação oito dias depois do 25 de Abril, a primeira manifestação, oito dias depois, que foi grande, linda. Mas eu não fui, havia uns outros, uma meia dúzia, gente que trabalhava já contra o fascismo, mas às escondidas claro, e esses depois saíram e fizeram uma grande manifestação, alguns deles já morreram. Tirando aqueles que estavam à frente, nós não tínhamos cravos, uns levaram azálias, que é uma flor que é parecida com o cravo, quando está fechadinha, e há vermelhas. Outros iam sem nada, com faixas do 25 de Abril, e pronto.
Nessa primeira manifestação, acho que o Lourenço ainda não estava cá. Depois começou a ir para as outras e a organizar as outras, mas não estava cá. Essa foi mesmo a associação, que depois teve o nome de associação, que não era, era um grupo de antifascistas, digamos assim, que se reuniam. Portanto, era um grupo de que eu não fazia parte, porque não sabia sequer que existia. E depois, quando dessas manifestações, então disseram-nos, mandaram-nos cartas para os trabalhadores, para as fábricas, para os plenários. A gente ainda não tinha aquela postura de fazer os plenários, tinha sido oito dias depois. Não dava para isso.
Mas fizemos e tivemos ainda um bom grupo nessa manifestação, uma manifestação muito boa, dessa associação. Portanto juntaram-se todos na Matriz, e viemos por lá, todos cantando, avisando, e houve um carro com micro a avisar todos os que queiram contra o fascismo e aqueles que tinham as palavras de ordem. Aí já havia a partidos clandestinos, como o PCP, e então também se juntaram e foi uma grande manifestação.

P: E tu foste com quem? Foi com essa associação?

Manuela Medeiros: Fui nessa manifestação, misturada ali com eles.

P: Como é que conheceste as pessoas dessa associação?

Manuela Medeiros: Eu conhecia-os de cá, não sabia é que eles pertenciam a nada. Não, eu não sabia. Pronto, tinha um que eu sabia que era de esquerda, dizia que era de esquerda, nem sequer sabia distinguir muito os de esquerda dos de direita e essas coisas assim, não tínhamos esse palavreado. Só havia um que era mesmo de esquerda. E ele dizia, numa reunião que nós tivemos, que ele também foi da JOC: “Sabes, Manuela, eu agora sou ateu.” E eu disse: “Olha que bom, cada um é aquilo que é, que bom tu seres ateu, eles já não estão sozinhos, já têm mais uma pessoa.” Mas uma vez estávamos numa reunião e não estavam a dar as coisas certas e ele disse assim: “Ai, meu Deus...” e eu disse assim: “Como é? Então tu és ateu, como é que estás chamando por Deus?” Eu disse: “Mas tu tens razão, porque de facto Deus também gosta dos ateus, para não fazer exceção de pessoas, deixa-te estar onde estás.”
É uma questão de a gente estar atentas, mas pronto, nunca criei inimizades com ninguém por causa disso.
Na fábrica, nesse tal plenário, alguns diziam: “Desconfiaste dos nossos patrões?” “Não desconfiei.” Ninguém desconfiou daqueles senhores que não conhecia, nem do meu patrão. Como é que eu desconfiei dos meus patrões? Não estava ali nenhum deles.

P: Essas comissões administrativas, eram...

Manuela Medeiros: Governativa, era uma que era para formar um novo governo já depois do 25 de Abril, sem a gente conhecer quem era...

P: Eram os separatistas?

Manuela Medeiros: Não eram ainda… Bom, não quer dizer que não tivessem ali algum separatista, porque se calhar estavam à mistura, mas eu agora também não quero afirmar. Porque depois é que foi a FLA (Frente de Libertação dos Açores), que era os separatistas. Pronto, eram os separatistas que inclusivamente... aqueles que não eram do grupo deles não podiam vestir azul, que eram as cores da nossa bandeira. Eles não gostavam. Portanto, se eu vestia azul, era a bandeira deles, e eu não me devia identificar com uma coisa que não concordava. Mas eu queria era a cor, não estava a pensar naquilo que eles eram.

P: Mas essa comissão governativa era contra o 25 de Abril? Essa da fábrica que queriam que assinasse…

Manuela Medeiros: Eu não sei o que é que eles queriam, o que é que eles eram, porque eram os tais que eu não conhecia. Eu estava nas Furnas, vim para saber o que é que era, mas não que tivesse conhecimento, não conhecia as pessoas. Eram pessoas, como é que eu hei de te dizer, mais ligadas ao capital. Nem sei se alguns eram patrões, eu já não me lembro. Mas pronto, eles foram-se embora, a gente não assinou, e ficou por isso mesmo, acabou. Nem os meus patrões, nunca disseram nada sobre isto, nunca, tenho que dizer a verdade. Só aquele que eu disse, mas pronto, eu não liguei e depois não sei se foi longe demais, mas pronto.
E continuaram sempre, quando a gente tinha os plenários. Tivemos de ir para os regulamentos para saber quando podíamos convocar os plenários, essas coisas todas, os estatutos, os estatutos da empresa, que foram criados. O meu sindicato não tinha estatutos, tivemos de fazer os estatutos e cada um depois foi-se organizando nas suas direções, eleições, essas coisas assim, levou o seu tempo.

P: Foi logo a seguir ao 25 de Abril que começou essa dinâmica de criar sindicatos?

Manuela Medeiros: Sim, sim, havia os sindicatos, não estavam era organizados, não defendiam nada.

P: Os sindicatos corporativos, não é? Os sindicatos nacionais?

Manuela Medeiros: Eles não tinham o nome de corporativos, havia era o sindicato das indústrias transformadoras e serviços. Depois havia o dos escritórios e venda. Depois havia o dos transportes e turismo. E havia alimentação e bebidas. Mesmo assim, o da alimentação e bebidas era mais difícil para nós. Era um setor fácil de cativar, mas era o mais.... Com o dos escritórios, a gente dava-se às maravilhas, mas o de alimentos e bebidas... Tem a ver com os dirigentes, com aqueles que se querem impor, com aqueles que são melhores... Mas quando era para juntar para o 25 de Abril, a gente colaborava com a associação e conforme as despesas cada sindicato dava tanto.

P: Como é que chamava associação?

Manuela Medeiros: Era mesmo Associação 25 de Abril e ainda continua.

P: E começaram a começaram a criar os sindicatos...

Manuela Medeiros: Começámos a criar os sindicatos a partir do 25 de Abril. Portanto, num sinal de liberdade, mas também de responsabilidade e de defesa daqueles que também confiaram e nós e nos elegeram. Começámos a criar primeiro os estatutos, depois as eleições, para as pessoas irem tomando conhecimento. Eles e eu, que também não sabia.

P: E tu ficaste dirigente do sindicato...

Manuela Medeiros: Das indústrias transformadoras. Primeiro, não fui eu, foi um senhor que existia antes, que era da Fábrica do Açúcar. Depois dele é que fui eu e depois de mim já estiveram outros.

P: E coisa que foram assim as primeiras atividades que desenvolveram?

Manuela Medeiros: As primeiras atividades foram para dar conhecimento às pessoas, aos trabalhadores, acerca do que era o 25 de abril, quais eram as vantagens que nos dava. Começámos a fazer debates individuais em plenário, para juntar mais, para verem que havia gente diferente também, foi mais nesse sentido. Mas tínhamos atividades conjuntas, essa do 25 de abril foi sempre. Cada sindicato tinha a sua festa própria e depois, então, quando era o Dia do Trabalhador nós fazíamos assembleias com os dirigentes, para que cada um desse a sua opinião, e depois íamos para os sindicatos e para as fábricas também fazer plenários. Era assim.
Os sindicatos dos escritórios sempre colaboraram connosco, sempre. Depois os da alimentação e bebidas também iam, mas era com mais cerimónia, digamos. São feitios das pessoas que a gente não pode mudar, é assim.

P: Conseguiram uma boa adesão dos trabalhadores e das trabalhadoras nessa altura?

Manuela Medeiros: Nos sindicatos? Sim, sim. Porque as pessoas já descontavam, eu já não me lembro quanto é que eu descontava para o sindicato. Depois também tivemos de ver o problema das quotas, porque tivemos que organizar os sindicatos com funcionários. E depois disso, antes do aumento de quotas, tivemos de saber como é que a gente ia pagar. É todo um trabalho que se faz e que demora o seu tempo.
E defendíamos mesmo os que não eram sindicalizados. Nós tivemos um problema de um setor da Ribeirinha, que era uma fábrica que fazia fitas para máquinas e elas faziam isso em linho, na Ribeirinha. E um dia foram despedidas e foram ter connosco e nós fomos defendê-las e ganhámos. Nessa altura tínhamos o primeiro presidente [do Governo Regional], João Bosco Mota Amaral, e já não sei a propósito do quê, nós tivemos uma coisa conjunta, em que ele estava também, assim qualquer coisa do governo que ele convidou os sindicatos. Eu fui e essas já não iam receber o décimo terceiro mês, estavam despedidas. Mas ele tinha ido à fábrica, quando os americanos vieram abrir essa fábrica, com televisão e tudo, e ele deu um grande elogio, não sei quê mais.
Quando a fábrica fecha, de repente elas aparecem. E ele começa a falar, a desejar as boas festas, era Natal, qualquer coisa do governo que ele convidou os sindicatos, e a falar, e disse: “Os sindicatos o que é que esperam do Natal? Toda a gente quer as suas famílias…” Eu disse: “eu queria que o senhor, com uma palavra vossa, ligue para a Segurança Social – que não pagava porque não queria fazer horas extraordinárias na semana do Natal para pagar aos trabalhadores – para fazerem o favor de pagar aos trabalhadores da Ribeirinha antes do Natal e basta só essa palavra, senhor presidente. Mas eles não querem, eles dizem que não vão fazer horas para pagar aqueles trabalhadores. Mas eles já têm o seu, senhor, isso não está certo. Como é que aquela gente que ganha salários mínimos vão passar o Natal?”
Ele telefonou e eles receberam. Também reconheço que em sítios pequenos as coisas são mais fáceis, mas não esperava que eles dissessem uma coisa dessas. E o meu nome não apareceu nisso.

P: E quais é que eram os principais problemas que tinham os trabalhadores aqui em são Miguel, quando foi o 25 de Abril?

Manuela Medeiros: Quando foi o 25 de Abril, os principais problemas que tinham eram esses mesmos: de férias, de não ganharem igual, de não haver revisão de carreira. Não havia formação. Depois fomos sentindo a necessidade, fomos chamando pessoas. E depois, mesmo entre os sindicalistas havia alguém com mais sabedoria, aqueles que trabalhavam nos computadores e que faziam os quadros e essas coisas assim ajudavam-se uns aos outros nesse sentido e davam essa formação.
E sobretudo a coragem e o perder o medo. Não havia razões para ter medo. Com casos concretos, não havia, se havia queixas, eles vinham e diziam mesmo, se for descontado horas ou isso, vocês vêm que a gente trata. Quem diz o medo, não era só meu, os outros tinham também, às vezes as horas extraordinárias que não eram bem remuneradas... E não estão a ser agora. Estamos a voltar atrás neste sentido.

P: Foi necessário organizar alguma greve ou movimento?

Manuela Medeiros: Sim, tivemos uma greve geral, tivemos uma greve geral cá. Credo, eu trabalhei para aquela greve geral.

P: A de 1982?

Manuela Medeiros: Foi, foi a nível do país.

P: Como é que foi aqui?

Manuela Medeiros: Adesão total, total, credo. Andámos de noite, no carro de um, no carro de outro, vigiando a fábrica de um, a fábrica de outro. Andamos nisso, a telefonar, não era telemóvel, percebe? Não foi brincadeira. O meu sindicato estava de serviço ao telefone. Havia uma parte central, o meu e o dos escritórios. Eles é que iam comunicando com os outros. Foi total.
Depois fizemos ma manifestação de alegria, todos, como foram capazes, como a gente... a união faz a força, essas coisas assim. Pronto, e houve também muitas greves de setores, sim, sim. Houve várias greves de setores.

P: Dessas de setores, consegue lembrar-se as que foram mais importantes?

Manuela Medeiros: Parece-me que em cada setor era importante quando se convocava uma greve. Pronto, umas tinham mais adesão do que outras, a verdade é essa.
Eu lembro-me que tive um colega na fábrica que estava lá há pouco tempo e não aderiu à greve geral. Eu disse: “O que é que vais fazer? O que é que vais fazer, está tudo fechado.” Abriu o portão e eu disse: “isso é contigo, ninguém te vai pôr na rua, porque é toda a gente.” Pronto, mas é normal, às vezes os medos das coisas e pronto. Mas houve várias greves setoriais, sim, mas aquela greve geral foi inesquecível, credo.
P: Não houve repressão?

Manuela Medeiros: Não, não. A gente estava à vontade. Pronto, talvez a força também venha disso. Portanto, assim como o mal se reproduz, aquilo que é bom também se reproduz. Mas essas coisas foram inesquecíveis.
E depois nós tínhamos encontros de Natal. Nós convidávamos as mulheres dos sindicalistas para elas verem o ambiente. Para elas se aperceberem de como era valioso o trabalho que os maridos faziam. E sobretudo para que elas lhes dessem coragem, porque a gente estava num meio pequeno e as coisas podiam mudar num instante. Também houve essas incertezas na altura dos separatistas, de onde estava a força de maior capital. Não foi brincadeira. E aí houve muita gente, muitos trabalhadores, que aderiram sem saberem o perigo que corriam.
E aí não era fácil pensar nisso, por mais que a gente fizesse, por mais que escrevêssemos, por mais... Mas pronto, havia a maior parte, que eram aqueles que davam emprego, que tinham mais facilidade em criar emprego, mas também conseguiu-se e isso foi muito positivo. Foram muitas noites sem dormir e a minha mãe dizia: “Credo, eu gostava muito mais...” A minha mãe fazia a comparação com o tempo em que eu estava só dedicada à JOC e chegava-se a uma certa hora e as pessoas todas iam para as suas casas e ali a gente tinha vezes, conforme as ações reivindicativas, conforme os setores, em que eram noites perdidas. Eram, eram...
Houve uma vez que o Sá Carneiro veio cá. Nós estávamos no meu sindicato a trabalhar e os carros do aeroporto a passar com uns sapadores todos contentes a levar o Sá Carneiro. Não me lembro se houve alguma coisa, lembro-me dos carros a passar e de uns apitos. Nós abrimos até as varandas para ver, a gente não sabia o que era, depois é que nos lembrámos quando vimos as bandeiras do PSD. E o sindicato de escritórios ficava assim ao lado, de frente.
Mas a gente tinha a preocupação de juntar. Havia a festa de Natal, a gente às vezes juntávamos as crianças, fazíamos uma festa de crianças, cada grupo levava... A gente alargava muito às famílias também.

P: Estavas a dizer que convidavam as mulheres dos sindicalistas.

Manuela Medeiros: Sim, sim, elas iam.

P: Quer dizer que os sindicalistas eram quase todos os homens. Havia poucas mulheres?

Manuela Medeiros: Havia mulheres, mas a maioria era homens no sindicato. Depois, mais tarde, já com o 25 de abril avançado, é que começaram, graças a Deus, a aparecer muitas, da fábrica do açúcar, da fábrica do papel, da fábrica de tabaco, também mais, da outra fábrica de cima, dos escritórios, começarem a aparecer mais. Não sei a quantidade em percentagens, porque é assim, eu deixei de trabalhar e depois eles ainda me queriam num serviço que era criar, digamos assim, um setor dos reformados. E eu disse: “vocês desculpem-me, mas eu não estou trabalhando, já não tenho cabeça para mais, eu estou deveras muito cansada e não pego em mais nada. Sou capaz de aparecer aqui, ali e acolá mas sem compromisso.”
Quando a gente não pode, não deve aceitar. A gente não aceita só por nome, a gente aceita para trabalhar. Aí deixei de trabalhar e deixei de ter qualquer atividade com responsabilidade, a verdade é essa. Continuei ligada às ações sociais e ingressei como voluntária no hospital e já estou lá há 20 anos. De maneira que é assim e que é um trabalho que nos leva tudo. Nos leva ao contato com trabalhadores, nos leva a discutir problemas que eles têm e que às vezes não têm confiança para discutir com outras pessoas. Pronto, um bom ambiente social e sobre a saúde também. Leva-nos ao contacto com médicos. Isso eu tenho pouco, a minha irmã tem mais com médicos e com enfermeiros, com os auxiliares...

P: Então a Manuela, nessa altura, no período após 25 de Abril, era uma mulher entre homens no meio sindical? Era uma das poucas mulheres que estava nos sindicatos?
Manuela Medeiros: Não era a única. Era, talvez, a mais atrevida ou ativa, como lhe queiram chamar, mas havia mais algumas. Nos escritórios tinha uma. Depois do 25 de Abril, também tinha uma naqueles que era dos serviços, onde depois chegou o meu afilhado, também tinha. Tinha uma do SITAVA, mas a maioria eram homens.

Manuela Medeiros: E era mais difícil para as mulheres serem dirigentes sindicais?

Manuela Medeiros: Era mais difícil e não era pelos serviços em si. Eu achava também difícil, mas era porque não havia divisão de tarefas comuns. As mulheres eram aquelas que chegavam a casa e tinham outra tarefa, outro dia de trabalho como tiverem durante o dia na empresa. Talvez ainda com mais responsabilidades e que tinham de sorrir para os filhos e que tinham de apoiar os filhos. Eu sempre valorizei muito a mulher sindicalista, porque tinha duas funções, duas grandes funções de grande responsabilidade, e que tinham de encarar com a mesma disponibilidade e a boa disposição, tanto uma como a outra. E não era nada fácil, depois do cansaço, ter crianças, ter de dar um ambiente aos filhos e ao próprio marido depois de um dia de trabalho. Às vezes não era fácil.
Eu sempre valorizei muito isso. De maneira que era mais difícil, sempre foi mais difícil nesse sentido. E não havia a divisão que agora há, embora se note ainda. Eu, no outro dia, estive com alguém que me disse: “Eu admirei-me porque o marido não é capaz de levantar o seu prato da mesa, um prato”.

P: E acha que o sindicalismo concorreu para mudar essas diferenças de tratamento das mulheres e dos homens?

Manuela Medeiros: Eu vou-lhe dizer, no início não. Nós estávamos virados era para as lutas nas empresas, mas havia uma preocupação com a família, mas não com essa ideia. Agora, às vezes íamos à casa uns dos outros, fazíamos muito isso. Por exemplo a [?]. Ela e o marido também foram sindicalistas. Ela era da função pública foi daquelas poucas que não sentia isso, porque em casa, quando chegavam, os dois trabalhavam. E com toda a abertura ela falava disso. Eram um grande casal, tanto ela como o marido, eu gostava muito deles. No outro dia vi-a, mas foi assim ao longe. Eu gosto muito dela.
Era uma pessoa bem disposta e se nós acabávamos uma reunião e se estava ela e o marido, ela dizia: “Vamos a nossa casa, a gente não tem nada, mas ou assa-se um chouriço ou assim”. Eles na altura ainda não tinham filhos, mas depois tiveram dois. Agora já são casados, já têm netos...

P: E nessas lutas nas empresas, por exemplo, não se tentava que as mulheres começassem a ganhar o mesmo que os homens? Não havia essa preocupação?

Manuela Medeiros: Havia essa preocupação por parte dos sindicalistas, defenderem isso sobretudo para a contratação. Havia já isso de “trabalho igual, salário igual” e de não haver diferenças entre sexos.
Mas era um problema, mesmo entre trabalhadores. Diziam que tinham um esforço que nós não tínhamos, que tinham mais força, faziam coisas que nós não éramos capazes de fazer. Procuravam defender-se, mesmo entre trabalhadores, não era só com os patrões. Quando há essas duas coisas é mais difícil, mas pronto, foi um trabalho lento, não podemos dizer que não foi um trabalho lento e que, infelizmente, isso ainda perdura.

P: Então diga-me uma coisa, de que forma é que acha que esse envolvimento no movimento sindical marcou a sua vida?

Manuela Medeiros: Sim, marcou a minha vida. Mas, como eu disse, eu tinha uma formação anterior, que foi a JOC, que me levava a pensar nos outros, naquilo que os outros se sacrificavam, que não eram correspondidos, que não eram reconhecidos. Portanto, teve uma grande repercussão na minha vida. Por isso é que eu digo que o 25 de Abril, o que me deu, foi liberdade de expressão e mais nada, a formação eu já tinha. A sensibilidade para os outros já tinha. A preocupação pela caminhada dos outros eu já tinha. Digamos assim, para que todos vivamos um momento feliz, era essa a meta, e para atingir a meta temos que passar por coisas muito difíceis.
Nós conseguimos passar, mas não conseguimos alcançar tudo, porque depois há outros que vêm e às vezes não vêm com a mesma dinâmica, nem têm a mesma dinâmica, porque quem se mete numa coisa dessas nunca vê os seus próprios interesses. É isso.
Eu, uma vez – não sei se já disse isto – tive um convite para ir para uma outra fábrica ganhar mais, para telefonista, e eu não aceitei. E o meu patrão soube e, para me aguentar, queria-me fazer um aumento sem ninguém saber. E eu disse que o que eu ganhasse era para ser público e na contratação, como os outros todos. Porque se eu merecia, todos tinham de conhecer. Portanto, eu sou pobre, mas não aceito. De maneira que é assim.
O que ficou na contratação é o que eu recebo, mais nada. De maneira que, muitas vezes, eles precisam é de ver como tem valor a palavra. A palavra de honra, que já se deixou de falar nela. A palavra tem muito valor e muito sentido. Porque ele queria dar-me mais sete escudos e meio, ou seis e meio ou sete e meio, não era brincadeira, estás a perceber? No fim-da-semana era um dinheirinho. Mas eu não, no fim não aceitei. As minhas colegas iam saber, e depois? E depois, eu perdia toda a confiança. Ninguém é perfeito, eu posso ter muitas deformações, mas a de enganar os outros, essa não tenho. Posso ter outras coisas, mais banais ou mais difíceis ou mais prejudiciais, mas logo que seja para mim, que não se reflita nos outros, eu não me importo.
Era mais 6 e meio ou 7 e meio eu já não me lembro. Era assim: toda a gente está a telefonar a dar-me os parabéns. Mas como, se eu não vou? Eu agora digo que não vou e eles não vão ver isso na minha folha de ordenado, porque eu de facto não aceito. Nem na folha individual, nem na coletiva, essa quantidade, porque não foi tratada em plenário quando foram apresentados os outros elementos. Se eu mereço, não preciso de ganhar às escondidas. É isso.
E quando eles, por exemplo, uma coisa logo no início também, que foi uma edição do 25 de abril que eles queriam, mas depois lá à frente eram os representantes dos trabalhadores na administração. E houve um senhor, que pertencia ao Governo, e que me disse: “Olha, Manuela, daqui a dias tu vais e alguém daqui vai apresentar-te ao Conselho de Administração como reconhecimento.” E eu disse: “O quê, ele vai-me dar posse? O senhor está tão enganado, o senhor não nos conhece.”
Eu, como trabalhador, nunca chegaria ali. Pronto, mas depois eu telefonei para si e, de facto, não fui, foi uma do escritório. E depois eu disse, quando fui lá acima dar os parabéns à nova direção: “Tinham-me dito que era eu que vinha para aqui e eu sempre disse que não. Não é que eu não merecesse ou não soubesse, mas eu onde estou, estou melhor. Não é nem o dinheiro, nem os nomes, e vocês sabem, os senhores sabem bem que eu não sou assim. Não tenho a mania de gradezas, eu sou pequenina. Não, essas coisas têm valor na simplicidade e, como eu já disse, na verdade, na palavra de honra.”
Eu tenho mesmo pena dessa frase da palavra de honra, ela é dita com tanta convicção e agora já não existe. Agora dá-se por tudo e por nada. Agora veio uma corrida do salve-se quem puder, e quem puder por os pés no pescoço de outro põe, mesmo para saltar para cima. É terrível isso, uma doença. Eu nunca tive. Eu tenho no sindicato, estou no voluntariado, que é outra coisa que muito me orgulho muito, muito, muito. É uma coisa que eu gosto muito de fazer e que estou a sofrer com a paragem nestes dois anos da pandemia. Estou a sofrer com isso.
Não só eu, todos os voluntários, que isso faz uma falta na nossa vida... Cada um tinha o seu horário, cada um tinha o seu dia e aquilo era para cumprir, não era para faltar, era para cumprir. Deste o nome, deste a formação, tiveste a formação, tu vais cumprir! E quando faltares, dizes a alguém para te vir substituir. O voluntariado é um serviço de amor, gratuito, mas por ser gratuito, não tem menos valor do que aquele que é remunerado. Não tem. Tem um valor que não se vê.
P: Manuela, diz-me uma coisa, eu estou a fazer a história destes movimentos, tanto dos movimentos de ação católica como do movimento sindicalista. O que é que tu achas que é importante destacar e investigar na história destes movimentos? O que é que achas que falta conhecer? Se tu fosses historiadora, o que é que tu ias investigar?

Manuela Medeiros: Se eu fosse investigadora ia investigar aquilo que me estás a fazer a mim. Ia saber: o que sentiste quando estiveste lá; se valeu a pena; e, agora, se tens esperança.
Porque a esperança é uma coisa que não morre, mas que precisa ser alimentada. E ela só é alimentada se nós formos à procura, porque as coisas não nos vêm bater à porta. E depois dessa esperança alimentada, cria-se a tal confiança entre todos.

P: Então responde-me lá às três perguntas? O que é que sentiste quando estiveste lá?

Manuela Medeiros: Olha, senti dificuldades, não posso dizer que não, mas depois da confiança, da boa vontade de todos, que era de todos, do compromisso. Alguns – não há duas pessoas iguais – cumprem mais do que outros. Mas, quando assumem a responsabilidade e depois justificam, até é desculpado. Não é desculpado, é mesmo, porque ninguém é obrigado a fazer nada, tem de ser sempre de livre vontade. E depois, nós temos que ter muito em conta, quando nós estamos à frente de um sindicato ou coisa assim, que aquele dinheiro que nós gastamos não é nosso. É dos trabalhadores. Por isso, tudo tem de ser contabilizado. Há muita coisa que eu não ganhei, perdi algum, não estou arrependida. Se eu perdi um bilhete de camioneta, eu perdi, e às vezes tinha vergonha de pedir a segunda via de um táxi, de ele pensar, se quer a segunda via então perdeu. Eu tinha esse escrúpulo. E não sou rica, é sempre do meu trabalho, mas pronto. Mas preferia perder do que as pessoas pensarem mal de mim.
Às vezes há escrúpulos que nos levam a perder, como eu estou dizer, mas a gente fica de consciência tranquila. E é preciso também muito cuidado e cada vez mais nos tempos que correm, porque há mais dinheiro a circular e o dinheiro se não for bem aplicado, bem gerido e a pensar sempre que – seja no Governo, sejam patrões, sejam sindicalistas – o dinheiro que nós gastamos, mesmo em serviço sindical, não é nosso, é dos trabalhadores. E por isso tem de ser tudo muito bem gerido.
Quando era para aumentar os funcionários do meu sindicato, na direção a gente combinava, a gente não sabe como é, eles é que têm as contas, só resta isso. Se só resta isso, eles é que vão dizer o que é que querem de aumento para ficarem com coisas para as despesas mensais. E era assim. As coisas têm de ser feitas assim.

P: Agora a segunda pergunta: valeu a pena?

Manuela Medeiros: Valeu a pena! Costuma-se dizer que “tudo vale a pena se a alma não é pequena!” E é isso, tudo vale a pena. Porque no meio disso tudo há amor, há pura gratuidade, há entrega. E valeu a pena porque tive o gosto de fazer muitas coisas que deram frutos, que deram sementes. E é bom saborear quando as pessoas dizem: “Manuela, foi tão bom aquele tempo.” Ainda na semana passada falávamos nisso com pessoas que não via há anos e que tinham passado por isso. “Ai, Manuela foi tão bom aquilo”. Foi saboroso. Porque a gente trabalhava, a gente sofria, mas também tínhamos muitos momentos de alegria. Muitos, muitos. É isso.

P: E ainda tem esperança?

Manuela Medeiros: A esperança que resta é isso, naqueles bocadinhos e, às vezes, em conversas que temos, ou quando vemos na televisão. Há esperança de uma continuidade, que não seja igual, mas à maneira de agora, porque os tempos de agora não são como os meus tempos, são totalmente diferentes. Até quase que digo que são mais difíceis. São momentos de muito mais tentação. De paragem, porque têm as coisas mais organizadas, têm uns bons sofás para descansar. Têm uns grandes televisores para ver. Têm outras coisas. Há mais tentação para parar.
Mas têm de continuar, para gozarem aquilo que fizeram – não em tempos, mas agora, se querem ver frutos dessa esperança. A esperança é alimentada com amores, com total gratuidade. Embora o sindicalista que tem horas e que tem de ganhar pelo sindicato, tem que ser remunerado, tem que ter sempre em conta que essas horas no sindicato têm de ser feitas com tanto amor e com a mesma disponibilidade, como seja um bom profissional no seu campo de trabalho. E a esperança nasce.
Porque não se pode chegar a um momento saboroso, digamos assim, ao momento de partir um bolo, sem termos todos os preparos para aquele bolo e, sobretudo, não pode faltar o fermento, que é aquilo que falta.

P: Muito obrigado.

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