Item
Casimiro dos Santos
Nome do entrevistador/a
Joana Dias Pereira
Local
União dos Sindicatos da Covilhã
Data
2 de junho de 2021
Nome do entrevistado/a
Casimiro dos Santos
Data de nascimento
1952
Local de nascimento
Concelho da Pampilhosa da Serra, distrito de Coimbra
Profissão dos pais
O pai era mineiro na Panasqueira e minha mãe era camponesa e doméstica.
Escolaridade
Licenciado em História
Local de residência
Casegas
Situação civil
Casado
Filhos
Tem um filho e uma filha
Profissão
Professor de história
Associações em que participou
Casa do Concelho de Pampilhosa da Serra
Associação de Estudantes da Faculdade de Lisboa
Sindicato da Função Pública
Sindicato dos Professores da Região Centro
Casa do Povo de Casegas
Cargos dirigentes
Foi dirigente sindical do Sindicato dos Professores da Região Centro. Presidente da Assembleia Geral da Comissão de Melhoramentos da Pampilhosa da Serra
Filiação partidária
Membro da Direcção Regional do PCP
Cargos políticos
Foi eleito na Assembleia de Freguesia de Casegas e Presidente da Assembleia de Freguesia do Tortosendo
Religião
Agnóstico
Sinopse da entrevista
Começa por descrever as condições de vida e trabalho na Pampilhosa da Serra e nas Minas Panasqueira, onde o seu pai trabalhou. Testemunha a sua participação no movimento associativo que resulta do êxodo rural para as cidade e ligado às comunidades origem, as Casas do Concelho e as Comissões de Melhoramentos. Também relata a sua atividade enquanto delegado sindical e as principais lutas em que esteve envolvido. Discorre sobre a divisão sexual do trabalho, nomeadamente nas minas e a participação das mulheres na atividade sindical. Conta ainda da sua atual participação na Casa do Povo de Casegas e discorre sobre a evolução destas instituições.
Palavras-chave
Testemunho
P: Onde é que nasceu?
Casimiro dos Santos: Nasci no Concelho da Pampilhosa da Serra, distrito de Coimbra.
P: Em que ano?
Casimiro dos Santos: 1952.
P: E estudou lá?
Casimiro dos Santos: Estudei lá até acabar a chamada escola primária. Depois fui estudar para Figueira da Foz e Coimbra, que era onde tínhamos o secundário. E depois de Coimbra ainda estive em Lisboa, na universidade, acabei a universidade em Lisboa, em 1980. Foi quando terminei e já tinha trabalhado, tinha acabado o curso como estudante trabalhador. Mas, entretanto, antes de acabar o curso, meteu-se o serviço militar. Portanto, como nota biográfica assim mais pormenorizada, estive na tropa dois anos, 1974 e 1975. Apanhei precisamente o 25 de Abril.
P: E trabalhou no quê antes?
Casimiro dos Santos: Antes de ser professor, trabalhei na Segurança Social como funcionário administrativo.
P: E depois foi toda a vida professor?
Casimiro dos Santos: Depois fui toda a vida, professor, de 1981 até há dois anos atrás.
P: Qual era a área?
Casimiro dos Santos: História, fiz na faculdade de Letras de Lisboa
P: E trabalhou, deu aulas sempre aqui nesta região?
Casimiro dos Santos: Na margem sul do Tejo também. Almada, Seixal, Setúbal, Moita. Estive aí uns 10 anos e depois voltei aqui para a região da Serra e acabei aqui. Depois estive sempre aqui, no distrito de Castelo Branco.
P: E os seus pais, eram também eram daqui desta região?
Casimiro dos Santos: Sim, o meu pai era mineiro na Panasqueira, na Pampilhosa da Serra. Faz ali uma fronteira e está na órbita das Minas da Panasqueira, pelo menos aquelas duas freguesias do norte da Pampilhosa da Serra, de maneira que grande parte da população daquelas freguesias trabalhava nas Minas, daí a pertença àquele universo operário. Operário e camponês ao mesmo tempo.
P: E a sua mãe também?
Casimiro dos Santos: A minha mãe era camponesa e doméstica. Tínhamos propriedades, tínhamos aquela dupla pertença à terra, enquanto pequenos proprietários rurais, mas ao mesmo tempo também ao mundo do trabalho das Minas, enquanto que o meu pai era operário das Minas. Portanto, tínhamos ali uma dupla pertença, digamos assim, não em termos de classe social, pequenos proprietários e operários ao mesmo tempo, aquela duplicidade de ser proprietário de terrenos, mas pequenos proprietários. E, ao mesmo tempo, assalariado, o meu pai.
P: E tem filhos?
Casimiro dos Santos: Tenho dois filhos, um filho e uma filha.
P: E a sua mulher?
Casimiro dos Santos: A minha mulher esteve no ensino. Ela é engenheira técnica agrária, portanto faz tempo no ensino e faz trabalhos por conta própria.
P: Os seus filhos também seguiram para o ensino superior?
Casimiro dos Santos: A minha filha é enfermeira. Está a acabar a especialidade. E o meu filho e técnico de ambiente, está a trabalhar na Câmara de Pampilhosa da Serra, precisamente.
P: Professa alguma religião? É católico?
Casimiro dos Santos: Só agnóstico.
P: E o quanto à filiação partidária?
Casimiro dos Santos: Sou militante do PCP
P: Em relação à filiação associativa?
Casimiro dos Santos: Fui sempre sindicalizado, fui delegado sindical, quase sempre, toda a minha vida profissional. E quando estive em Lisboa, havia um movimento associativo ligado aos concelhos da Beira, Serra, Arganil, Pampilhosa até o Sabugal e a Covilhã também. As casas do concelho agregavam as pessoas que tinham ido para Lisboa desde meados do século, quando se dá aquele grande êxodo rural. Na Pampilhosa da Serra, há aldeias que quase se despovoaram nos anos 40/50 e então associaram-se em estruturas que estavam, mantinham a ligação à aldeia de origem, e em Lisboa tinham a casa do Concelho. Mas mesmo assim, além da casa do Concelho, ainda tinham as chamadas comissões de melhoramentos, ou seja, eram aldeias muito pobres, normalmente, por exemplo, na minha aldeia, nós tínhamos a eletricidade que era produzida a poucos quilómetros, numa barragem de Santa Luzia que abastecia as Minas da Panasqueira e a indústria da Covilhã e a aldeia não tinha eletricidade, até 1970. Está a ver, portanto, isso fez com que os moradores de Lisboa, das aldeias que estavam em Lisboa a trabalhar, ao verem a distância, a falta de vias de comunicação, o fraco desenvolvimento, o atraso no tempo do Salazar, organizaram-se nas Casas do Concelho. Claro que o regime procurou mais ou menos meter a mão e de alguma maneira, condicionar. Havia alguns que até eram da União Nacional. Alguns dirigentes dessas casas do Concelho. Portanto, o regime aproveitava isso, introduzia-se lá dentro. Mas mesmo assim, serviu perfeitamente para criar um algum… a partir do sentimento de pertença às aldeias e da consciência de que havia um atraso muito grande nesta interioridade destes concelhos, fez com que este associativismo criasse de alguma maneira um espírito comunitário. E conseguiram-se alguns melhoramentos, muitas vezes junto das câmaras municipais, junto dos ministérios. Tinham alguma influência.
P: E o Casimiro desenvolveu atividades nesse movimento?
Casimiro dos Santos: Eu, quando estive em Lisboa, a partir dos 18 anos, pertencia a uma das comissões de melhoramentos da minha aldeia, precisamente. E, portanto, fazíamos festas, tanto na aldeia como na cidade, em Lisboa. E essa era uma maneira de conseguir agregar a população para festas, convívios, etc. E, ao mesmo tempo, procurávamos junto da autarquia, isto já depois do 25 de Abril, já estávamos numa fase posterior, conseguíamos ter alguma influência como movimento associativo, como comissões, algumas até são instituições de utilidade pública. Conseguíamos ter alguma influência junto das autarquias, como comissões de moradores. Entretanto, normalmente funcionavam com sede em Lisboa e uma delegação nas aldeias. Outras vezes era o contrário. A partir de 25 de Abril transformou-se a coisa, a sede já era nas aldeias, porque já havia alguma iniciativa nas próprias localidades e Lisboa era uma delegação. Ainda hoje se faz esse convívio, entre a população que está lá e a população que mora ainda nas aldeias, muito poucos, só os idosos. Mas esse sentimento de pertença ainda está lá. Por isso é que muitos originários dessas aldeias mantêm a casita na aldeia, mantêm aquilo arranjadinho e tal, e continuam a vir passar as férias nas aldeias. Isso é muito interessante, porque esse sentimento de pertença não se apagou.
P: Acha que essa propensão para a participação associativa é uma coisa de família? Ou seja, os seus pais já tinham alguma participação nestes movimentos?
Casimiro dos Santos: Sim, não é só uma coisa de família, é uma tendência de ver necessidade e as populações se associarem de alguma maneira. Mas o meu pai já era sócio da Comissão, participava nas atividades, etecetera.
P: E em greves, lutas no âmbito das Minas da Panasqueira, também participava?
Casimiro dos Santos: O meu pai trabalhou lá até precisamente ao 25 de Abril. O meu pai tem uma longa história, porque ele foi trabalhar ainda no início dos anos 40. Ele foi trabalhar para as minas apenas um jovem ainda, quase uma criança. Estava a sair da adolescência quando foi trabalhar para lá para a empresa. Entretanto, a empresa teve... Em 1939 houve uma greve terrível, a greve do carbureto, em que os mineiros tiveram que fazer uma greve porque eram obrigados a providenciar eles próprios, às suas expensas, a iluminação lá dentro, através do carbureto. Tinham uma lâmpada que era o gasômetro, que funcionava a gás acetileno. É água, o gás acetileno e eles tinham aquela chama, ainda não havia as lâmpadas elétricas. É, e então eles tinham que comprar o carbureto, tal como levavam o farnel lá para dentro. Em 1939, muitos mineiros da Panasqueira tinham vindo de Espanha. Alguns estavam lá imigrantes, eram mineiros portugueses, por exemplo, nas Astúrias, nas Minas de carvão, etecetera. Portanto, há ali um grupo de, eu diria, pessoas já com uma consciência social e consciência de classe mais elevada, e em 39 fizeram uma greve que os levou a conseguirem uma vitória. A greve do carbureto. Depois disso, muitos foram identificados, muitos foram presos. E foram despedidos e as lutas lá ficaram muito esmorecidas.
Até 1945, mesmo no final da guerra. Entretanto, a empresa teve imensos lucros e aquele mundo do Volfrâmio desenvolveu muito, houve fortunas que se fizeram. Houve pessoas, camponeses, mineiros, que fizeram fortunas ou com o contrabando do volfrâmio, a vender volfrâmio aos alemães que estavam aí. E, portanto, aquela era uma pequena cidade, quase, as Minas da Panasqueira. Despovoou-se no fim da guerra, quando a empresa fechou, uma vez que as vendas foram abaixo, mas elas tinham estado estado em alta. E o meu pai nessa altura foi trabalhar para Lisboa, onde tínhamos lá parentes e tal, e foi trabalhar para Almada, para uma fábrica de cortiça, daquelas fábricas da Cova da Piedade. Uma vez, estive lá com ele, no sítio, já a fábrica estava abandonada, aquelas fábricas da cortiça. Quando a mina reabre em 1947, ele regressa cá e continuou o trabalho ali, até se reformar em 1970.
Portanto, aquele tempo das lutas ele não apanhou, ou antes, tenho impressão de que ainda apanhou ali qualquer coisita em jovem, em 39, e quando foi o 25 de Abril e as lutas se acendem lá, portanto, ele já não está na empresa. Portanto, ele não apanhou esse tempo, mas foi extremamente explorado. Foi uma exploração terrível, 40 anos.
P: E na sua infância, vivia nesse universo?
Casimiro dos Santos: Sim, sim.
P: Havia alguma associação, alguma instituição, em que tenha participado?
Casimiro dos Santos: Tudo o que era o mundo operário estava reprimido, portanto só em setenta é que houve alguma liberdade sindical, era uma repressão muito grande, as coletividades que existiam nas aldeias ou eram as casas do povo, ou as tais comissões de melhoramentos das aldeias da Pampilhosa da Serra, e nas aldeias do concelho da Covilhã e no Fundão havia já algumas associações, os ranchos folclóricos, os grupos etnográficos, que tinham alguma expressão e normalmente eram as juntas de freguesia que promoviam essas coisas. Primeiro ligados ao regime. Aquele movimento do António Ferro, dos ranchos folclóricos e tal, toda aquela história do folclore. E os concursos das aldeias mais portuguesas, etc. Portanto, era nesse sentido tudo controlado pelo regime. Normalmente, as outras, da Pampilhosa da Serra, o tal sentimento da ligação a Lisboa. Curiosamente, a emigração era muito para Lisboa e pouco para Coimbra e quase nada para o Porto. Era mais para a zona de Lisboa, para as fábricas de cortiça. Muitos, muitos vão trabalhar para as fábricas de cortiça. Eu tive imensos familiares que foram para lá, tanto do lado da minha mãe como do meu pai. Muita gente da Beira, e depois alguns vão para a indústria hoteleira, ainda hoje têm restaurantes, tabernas, etc., na Cova da Piedade, que é gente daqui desta Serra, da Pampilhosa, de Arganil, Tábua, desta área aqui.
P: Então vamos detalhar a sua experiência própria enquanto ativista antes do 25 de Abril. Para além dessa comissão de melhoramentos, ainda não teve participação sindical. Ainda estava a estudar? Ou seja, a sua participação associativa foi mais no pós 25 de Abril…
Casimiro dos Santos: Sim, mas pronto, tínhamos as associações de estudantes, andava ali a UEC (União dos Estudantes Comunistas), isto na faculdade de Letras de Lisboa, quando já havia alguma coisita, semiclandestina. Já havia uma coisa no primeiro de Maio, por exemplo. Recordo-me bem que antes do 25 de Abril, eu estava lá em Lisboa, e festejava-se o primeiro de Maio. Havia aqueles movimentos estudantis contra a guerra colonial, etc. Manifestações que, na Praça do Chile, acabavam dispersas à bastonada e com cães. Assim como o primeiro de maio, normalmente participávamos aí e cheguei a ser uma vez levado para ir para ser identificado no governo civil. Fui apanhado lá no Martim Moniz, não consegui fugir e pirar-me, porque eu morava no Castelo de São Jorge, na casa de uma tia minha. E, portanto, fui apanhado a fugir numa das ruas, eu e outro. Lá fomos levados para o governo civil e identificados. E pronto, foi ali assim uma tarde/noite.
P: Nesse período em que estava a estudar, fazia parte de alguma daquelas associações, tipo os cineclubes, que naquela altura surgiram, as cooperativas editorais?
Casimiro dos Santos: Não cheguei a fazer parte, mas ia assistir a muitas coisas. Na faculdade havia Associação de Estudantes e era só através da Associação de Estudantes. Ainda cheguei a ser convidado para o orfeão, porque eu já tinha participado. Ainda fui lá e tal, mas depois não tinha tempo para essas coisas, porque eu o tempo livre aproveitava para fazer uns biscates, trabalhar e tal. E por isso a minha dupla pertença também como estudante trabalhador, quase sempre. No tempo anterior, eu aproveitava para trabalhar e trabalhei na Feira Popular. Havia sempre… para nos dar uns trocos, uns trabalhinhos extra que eu fazia, na Feira Popular .... Trabalhei numa fábrica de engarrafamento de vinhos, e de gins, etc. onde é hoje o Parque das Nações. Havia ali umas fábricas de vinhos, que eram comercializados, engarrafados e tal. Esses armazéns já não existem, que era o Caldeira Lds, e o outro grande rival, logo a seguir. Portanto, eu trabalhava nas férias, quase sempre ali, portanto, não tinha muito tempo para participar, mas ia assistir sempre que podia a coisas do cineclube, etc. A educação política passava muito por ver filmes e participar em debates sobre os próprios filmes, e participava sempre que podia.
P: Para as associações de estudantes, não teve tempo?
Casimiro dos Santos: Não, não tinha tempo. Eu não tinha tempo para estar na Associação de Estudantes.
P: E no contexto de trabalho participou em alguma?
Casimiro dos Santos: No contexto trabalhando também não, não, aí não estava. Estava mais na parte cultural das aldeias, etecetera, aí estava mais. No mundo estudantil, eu estava, trabalhando, apoiava, assistia, mas não me envolvia muito, mas estava ali assim, numa situação. Eu só estive dois anos antes do 25 de Abril, antes de ser mobilizado para a tropa, no início de 74. Portanto, fiz ali dois anos do curso de Filosofia e mudei para História depois. Quando vim da tropa.
P: E essa participação nesse âmbito das comissões de melhoramentos começou quando?
Casimiro dos Santos: Isso só com os meus 18 anos, um bocadinho antes do 25 de Abril, logo que eu fui para lá. Através dos conterrâneos, quando chego. Eu era dirigente da Casa do Concelho e, pronto, isso foi por influência familiar e por querer de alguma maneira participar naquela ideia da pertença à aldeia, ao mundo rural, ao mundo da Pampilhosa da Serra.
P: Sentiu algum em algum momento algum episódio de repressão ou censura dessa atividade associativa?
Casimiro dos Santos: Não, porque muitos deles eram da União Nacional. Eles eram da União Nacional, quase todos os dirigentes da casa do Concelho da Pampilhosa. O Marcelo Caetano chegou a ir lá fazer uma visita. Mas havia um trabalho subterrâneo, que os mais novos de nós fazíamos lá, de denúncia daquele mundo opressivo, que era a barragem de Santa Luzia produzir eletricidade e as aldeias não terem, etecetera. O Marcelo Caetano pertencia. Os pais dele eram do concelho da Pampilhosa da Serra e, portanto, ele chegava a vir lá fazer visitas oficiais, uma vez ou duas durante o tempo em que ele esteve como primeiro-ministro e ia fazendo promessas. Também lhe devia doer um bocado ver o concelho dele tão atrás em relação aos outros vizinhos e ver as aldeias com os fios da eletricidade que vinham para as fábricas da Covilhã e as aldeias viverem com a candeia de azeite ou petróleo. E, portanto, as aldeias começaram a ser eletrificadas precisamente no consulado de Marcelo Caetano. Ele fez as promessas e tal e com aquelas influências todas. Porque a coisa era quase feudal. A ditadura tinha o seu quê de feudalismo e aí a personalidade do Marcelo Caetano em relação a isso era, portanto, de ligação e de influência através das pessoas. Claro que muitos eram da União Nacional, mas elas estavam interessadas em ter algum progresso na terra, não só pelos lindos olhos dos camponeses, mas porque facilitava a comunicação, o comércio e, se calhar, a criação de mais valias. Até porque havia as resinas, havia as madeiras, começava o eucalipto e, portanto, as vias de comunicação eram essenciais, assim como a energia, portanto, não era pelos lindos olhos ou porque queriam desenvolver a terra. Queriam era fazer negócios com base nos produtos endógenos que lá tinham. As barragens, a energia elétrica, etc., era importante para eles.
P: No período revolucionário houve vários movimentos de auto-organização, justamente para garantir saneamento básico. Isso aconteceu lá?
Casimiro dos Santos: Ai já são as autarquias eleitas democraticamente.
P: E essa Comissão de Melhoramentos ?
Casimiro dos Santos: Essa comissão continuou, continua a existir, ainda existe, eu fui presidente da Assembleia Geral até ao último mandato lá.
P: E a Comissão envolveu-se nalguns...
Casimiro dos Santos: A Comissão envolveu-se e ainda hoje trabalha, vamos lá, quase como comissão de moradores. Trabalha com a autarquia, com a freguesia, com a Junta de Freguesia.
P: Que é que se fez assim de importante nessa altura?
Casimiro dos Santos: Isso foi muito importante. O poder autárquico fez com que as coisas básicas fossem construídas. O saneamento básico, a eletrificação, as estradinhas, todas alcatroadas e em bom estado. Portanto, as infraestruturas básicas estão lá: água, saneamento, etc.
Embora a água não seja de grande qualidade, agora venderam aquilo uma empresa intermunicipal que é AP [Águas de Portugal]. Portanto, as câmaras desligaram-se, mas não foi só a Pampilhosa, foram muitas outras. Portanto, o negócio da água está agora a chegar lá.
E muitas vezes foram as populações que, organizadas, elas próprias, fizeram a captação da água. Isto antes do 25 de Abril. Foi o caso de algumas aldeias que eu conheço, fizeram uma mina, fizeram uma vala, por iniciativa deles próprios, porque havia doenças endémicas como, por exemplo, tifo, por causa de não haver saneamento. Isso é que levou a que as próprias populações se organizassem. A população não era salazarista, nem nada, portanto, muito religiosos e tal. O Salazar é um Santo. Toda aquela propaganda baseada na religião católica. isso foi no país todo. Na zona de influência do operário e das Minas, a Igreja Católica não tinha, não tinha tanta audiência. Até que um dia chega lá um padre que vai beber uns copos para a taberna dos operários das minas e consegue levá-los até à Igreja. Faziam assim, tudo dependia da estratégia dos priores lá das aldeias, mas a igreja católica tinha uma influência extraordinária, enorme. Até porque era através da Igreja Católica que muitos jovens conseguiam ir estudar. Foi o meu caso. Eu fui estudar para o seminário de Coimbra, andei lá alguns anos e aquilo ao mesmo tempo também serviu pela negativa. Quer dizer, aquilo que se apanha de um lado, mas que depois também se reagem, não é, também nos forma. Não é só o que é bom que nos forma, aquilo que é mau também nos forma. No aspeto da rejeição, e ao ver as desigualdades com que a Igreja estava complacente, com a guerra colonial, etecetera. Portanto, a igreja era um apoio grande do regime, era um esteio muito forte do regime e isso ao mesmo tempo, fazia com que tanto o mundo operário como o mundo estudantil fizesse a nega ao regime e, portanto, o apoio ia diminuindo cada vez mais. Já naquela última fase do Marcelo Caetano, quando a guerra colonial se tornou um beco sem saída. Foi isso que acabou por levar ao 25 de abril.
P: E movimentos como a JOC ou a LOC?
Casimiro dos Santos: Não tinham expressão, nem havia Mocidade Portuguesa nem nada disso. Só na sede do concelho, aí é que havia qualquer coisa. Isso não tinha lá, não tinha expressão nenhuma, porque a população estava-se borrifando para essas coisas. Lá iam cumprindo o essencial: ir à missa ao sábado, mas os padres não eram bem vistos pelos operários.
P: Quando é que começa efetivamente a sua participação sindical? Foi durante o período revolucionário?
Casimiro dos Santos: Antes, quando trabalhava na segurança social, no sindicato da função pública.
P: Isso foi quando?
Casimiro dos Santos: Depois do 25 de Abril, ali na década de 70. E eu fiz a tropa em 74-75 e quando saí da tropa comecei a trabalhar e a estudar ao mesmo tempo. Eu trabalhava na Avenida dos Estados Unidos, em Lisboa, e ia à tarde para as aulas, à tardinha. Depois de sair do trabalho. Era delegado sindical na própria função pública.
P: Mas foi já foi posteriormente àquele período mais exuberante do pós-revolução?
Casimiro dos Santos: Estávamos já depois do 25 de Novembro. Eu saí da tropa sete dias depois do 25 de Novembro. Portanto, estive no 25 de Abril, fui para lá em Janeiro de 74, e aqui apanhei estes dois anos do PREC até ao 25 Novembro. Uma semana depois do 25 de Novembro, eles resolveram mandar-me embora, uma leva enorme de gente que estava lá, se calhar a estragar o ambiente que eles queriam ali. E foi aí que eu saí e disse: vou ter que ir trabalhar, não é? E fui trabalhar para a segurança social na altura, depois daquela parte da segurança social, transforma-se na naquilo que é a ARS. E eu fiz ali ainda uns quatro anos. Até acabar o curso, depois concorri e vim para o ensino, até agora.
P: Nesse período de quatro anos em que esteve como delegado sindical na função pública, houve algum movimento importante?
Casimiro dos Santos: Houve greves, algumas, por aumento de salários. Estávamos ali em 78, 79, 80… Houve uma ou duas greves com alguma expressão...
P: Tem alguma memória marcante?
Casimiro dos Santos: Recordo-me de uma greve por causa da integração da segurança social na função pública. Havia ali uma perda de regalias e, portanto, lutou-se pela manutenção de algumas das conquistas que os trabalhadores tinham feito. Mas depois a coisa lá se resolveu através do diálogo na altura do governo do PS, o Mário Soares, o primeiro e o segundo. Portanto, naquela fase transitória, 76, 77, 78.Por aí assim. Mas eu estava ainda a estudar e, portanto, às vezes desdobrava-me entre a faculdade e o trabalho.
P: Depois começou a dar aulas, quando acabou o curso?
Casimiro dos Santos: Sim
P: Primeiro na margem sul do Tejo?
Casimiro dos Santos: Sim, os primeiros 10 anos.
P: E nessa altura foi delegado sindical do Sindicato de Professores?
Casimiro dos Santos: Já estava lá, também, sim.
P: Como é que foi? Quais foram as principais lutas e reivindicações desse período em que participou?
Casimiro dos Santos: Aqueles movimentos dos professores, o estatuto da carreira do centro, principalmente aí. Mas recordo-me de que a principal foi o estatuto da carreira docente. Foi uma luta muito, muito comprida e muito dura. E continua, isso ainda não está resolvido. Resolveu-se, mas depois o estatuto foi sendo alterado. Foi sendo adulterado e ainda hoje, como se sabe.
P: E para além de ser delegado sindical, teve outras funções, outras responsabilidades na estrutura sindical?
Casimiro dos Santos: Não, sempre delegado sindical.
P: Quando veio para cá também?
Casimiro dos Santos: Aqui também. Eu não dava tanta importância ao sindicalismo na altura. Dava uma importância bastante grande, mas estava mais virado para a escola propriamente dita. Portanto, nunca quis ser dirigente sindical. Várias vezes fui convidado para listas para as direções sindicais, mas fiquei sempre como delegado sindical. Nunca quis participar num nível mais elevado.
P: Mas dessa sua participação, qual é a perspetiva que tem sobre, por exemplo, o processo de construção da CGTP e o papel da CGTP na construção da democracia portuguesa?
Casimiro dos Santos: Foi extremamente importante. A fundação da CGTP, em 1970, foi um momento importante no sindicalismo português, na liberdade sindical, que não existia até aí, mas que teve uma importância extraordinária com a fundação da CGTP. Recordo-me perfeitamente e acompanhei bem. Aquele início, já depois do 25 de Abril, a unidade, a unicidade, todo aquele debate que houve em torno, depois acabou por dar mau resultado, porque se criou a UGT dentro daquilo que foi um divisionismo. Na minha opinião, não é? Eu acompanhei isso sempre, esse processo. A adesão do sindicato dos professores. Portanto, depois criou-se, criaram-se muito sindicatos de professores, como sabem. Só aqui na região e nas escolas estão presentes uns quatro ou cinco, portanto. Esta divisão da classe não é benéfica e acaba por dividir os professores, às vezes em situações que não são fundamentais, outras vezes lutam por questiúnculas. Quando é mais importante, às vezes alguns não aderem às lutas mais importantes. Mas, portanto, aquilo que eu acho é que esta divisão sindical só favorece o patronato, digamos assim, neste caso o Ministério da Educação, que acaba por impor a sua política educativa sempre, seja qual for o poder. Daqueles dois partidos que lideram o poder, o bloco central, digamos assim.
P: Outra questão mais transversal, acha que o movimento sindical foi importante para a dignificação das mulheres?
Casimiro dos Santos: Houve demasiados constrangimentos à participação das mulheres. A questão das mulheres no mundo do trabalho, eu creio que ainda há uma mudança muito grande a fazer nas mentalidades. As mentalidades evoluem mais lentamente. E essa mudança das mentalidades, e se calhar fazer-se a nível tanto dos dirigentes sindicais como das próprias mulheres, que às vezes se retraem e não participam tanto como deviam participar. É um caminho muito grande para percorrer. Está no papel e o Estado cumpre. Mas no mundo do trabalho, muitas vezes as mulheres têm receio de participar. Eu li coisas incríveis sobre… aqui assim não, no mundo operário, das fábricas, a questão do assédio, etc., e o retraimento das próprias mulheres na participação na luta. Apesar de que quando as mulheres lutam, lutam, se calhar com mais força do que os homens. Elas iam para aqui, para o Pelourinho, com as crianças às vezes antes dos homens. Aqui elas são terríveis. Nas Minas da Panasqueira, por exemplo - e eu também conheço mais ou menos bem esse universo -, as mulheres, pela questão da maternidade, não podem trabalhar dentro das minas, isso foi uma conquista que muitas encaram com uma certa duplicidade: então a gente não pode lá trabalhar? Mas tínhamos direito ao trabalho...
Mas isto passou-se na Inglaterra, quando os primeiros sindicatos lutaram para que as mulheres não trabalhassem. Não era por causa de uma questão do salário, o trabalho das mulheres nas minas era dos trabalhos mais perigosos e a radiação, isso provocava, por vezes... E conseguiu-se que os patrões não contratassem mulheres. No entanto, nas minas elas trabalhavam no exterior, estavam até em trabalhos mais perigosos, até onde apanhavam mais a silicose, que é a doença dos mineiros aqui na Panasqueira. Na lavaria, na correia, o trabalho da correia é dos meios mais doentios. A correia é um tapete rolante de borracha, correia, chamava a correia o nome comum. E tanto havia mulheres como crianças a trabalhar, umas das outras. Era mais um trabalho para miúdos e miúdas e mulheres do que para os adultos. Como elas estavam proibidas de ir lá dentro por causa das condições de trabalho, que não estava proibido mesmo durante o regime, durante a ditadura, trabalhavam fora. E em que consiste esse trabalho? Vai o minério em bruto de dentro da mina para fora, naquele tapete rolante, e as crianças e as mulheres estavam ali a escolher. Mas a poeira estava a entrar nos pulmões e portanto muitas mulheres chegavam aos 30 anos e já tinham silicose.
Aquele trabalho era um suplemento. Assim, como aqui nas fábricas, elas também não faziam trabalhos em casa, que eram trabalhos de… eram as pegadoras de fios e certos trabalhos que se podia fazer em casa, é para aperfeiçoar o pano, que é também um trabalho muito perigoso porque elas acabavam levando com a poeira lá. Também apanhavam doenças respiratórias. A partir do momento em que há liberdade sindical, os sindicatos começam a falar disso e as mulheres começam a entrar nas direções e só aí é que começam a ganhar uma certa consciência. E havia coisas incríveis... as mulheres não descontavam aquele trabalho que elas faziam para as fábricas, não se descontava para a segurança social, portanto, elas acabavam por não ter reforma nenhuma depois de trabalharem dezenas de anos. Era o domestic system em pleno século XX ainda a funcionar, tal como hoje o teletrabalho.
Eu comparo o domestic system do século XVIII ao teletrabalho atual, é a mesma coisa. Nós estamos a regredir em certos aspetos. E aqui as mulheres eram extremamente exploradas. Mas elas tinham consciência da exploração. E muitas vezes é que as condições subjetivas das próprias mulheres e dos homens dirigentes dos sindicatos, essas condições não permitiam que elas... e que ainda hoje isso acontece, que elas participem em pé de igualdade com os homens. No papel sim, mas na prática não.
P: E, por exemplo, na associação de melhoramento, elas participavam?
Casimiro dos Santos: Participavam naqueles trabalhos femininos, eram elas que estavam lá na cozinha a fazer a comidinha. Hoje já não se verifica, algumas já são dirigentes, mas geralmente, era sempre lá nos trabalhos mais tipicamente “femininos”. Acabavam por ser as cuidadoras, ainda isso se verifica em muitas associações, mas já há mulheres dirigentes.
P: Na sua especificamente?
Casimiro dos Santos: É mesmo nessa em que eu estive na Assembleia Geral. Há uma ou outra situação onde eu, onde eu também estou, que é a Casa do Povo de Casegas, que é aqui no Concelho da Covilhã, em que às vezes há mais mulheres a participar e a organizar coisas do que homens. E até em atividades culturais, num grupo de teatro onde há várias mulheres e expõem ali a sua criatividade, maior que a dos homens, muitas vezes, na arte… fantástico. Temos trabalhado ali muito com mulheres e homens, lado a lado.
Sim, mas aí já é o que hoje se passa. Portanto, se formos lá mais para trás, vemo-las a fazer aqueles trabalhos tipicamente “femininos”, a irem fazer a comida e quando se trata de fazer o almoço, o convívio, etc. e lá estão elas a cozinhar. Mas hoje também há homens lá a participar e passamos às vezes a descascar batatas, a fazer os temperos, enfim, tudo... naquelas coisas que é convívio, cultura e que ao mesmo tempo participação conjunta da comunidade, na Casa do Povo de Casegas, que é onde eu hoje eu passo mais tempo.
P: Quando é que começou a participar nessa associação?
Casimiro dos Santos: Isso foi já nos anos 90 e aí foi a mulher que me levou para lá, e ela também lá está num grupo de teatro, etc. Fazemos lá umas coisitas, em termos culturais, agora estamos a ver se conseguimos arranjar termos lá uma biblioteca. Eu agora estou na parte mais ligada a isto, dos livros. Temos lá muitos livros, que precisam de ser catalogados, muitos livros antigos. Houve algumas doações de pessoas que deram a sua biblioteca quando morreram. Temos lá uma... aquilo já está bem atualizado. Agora andamos a arranjar a infraestrutura que foi a própria casa em si, já tinha 70 e tal anos, portas, janelas, telhado, estas coisas são importantes. E eu agora peguei lá na bibliotecazita, a ver se pomos aquilo como deve ser. Precisamos de umas estantes novas, porque aquelas que lá estão, estão a desconjuntar-se. Aquilo está terrível. Isto agora é o meu hobby.
P: Era a casa do povo ainda criada pelo Estado Novo?
Casimiro dos Santos: Sim, é de 1934. Funcionou como Instituição.
P: Como é que foi a conversão dessas instituições, tipicamente corporativas, em instituições democráticas?
Casimiro dos Santos: Mas isso já houve legislação que que tirou às Casas do Povo aquelas competências de segurança social que elas tinham antes. Portanto, foram integradas na segurança social. Algumas morreram ali. Outras, que tinham já alguma validade, algumas outras funções, valências sociais e associativas, recreativas, continuaram. Foi o que aconteceu com esta.
Deixou de ser financiada pela segurança social, pronto, mas manteve-se como associação. E com o mesmo nome, Casa do Povo. E, entretanto, conseguiu o estatuto de instituição de utilidade pública e mantém-se agora, como qualquer associação. Aqui a Covilhã tem um movimento associativo incrível. E porquê? Por uma questão educativa e de formação, os dirigentes associativos sabiam muito bem que os operários só podiam ganhar consciência social e alguma autonomia se tivessem leitura. Esta leitura é fundamental. Algumas das associações aqui têm ótimas bibliotecas, mesmo com livros que a ditadura, o regime não...
Mas estavam lá e eram lidos: autores como o Aquilino, o Fernando Namora, os neorrealistas... E isto era muito importante porque não havia outra forma, portanto os operários quando acabavam a quarta classe iam para a fábrica trabalhar, havia logo ali trabalho e a maioria não ia estudar, como sabemos. E o associativismo aqui foi uma escola importantíssima. Foi a segunda escola que eles tinham e a leitura era extremamente importante e formou muita gente. Os dirigentes sabiam isso muito bem. Alguns desses dirigentes, uma das preocupações fundamentais era logo uma biblioteca, para lá do teatro, dos saraus, da música, da dança, das filarmónicas...A Casa do Povo tinha uma filarmónica, essa lá de Casegas, como quase todas as associações por aí, isso foi extremamente importante.
P: E tem ideia se antes, não sei como é a transmissão da Memória agora para os novos ativistas,
mas tem ideia se, antes, a Casa do Povo, antes do 25 de Abril, estava ideologicamente completamente controlada pelo regime, ou se também era aproveitada para a consciencialização?
Casimiro dos Santos: Já ia sendo aproveitada por muitos estudantes, gente mais nova que ali a partir dos anos 50/60 começou a fazer atividades. E houve um grupo teatro que se forma, leitura, debates, visitas, excursões, etc. E tudo isso acaba por, a partir dos anos 60 com mais força, 70 e mesmo depois do 25 de Abril, continuaram...
P: Há uma certa continuidade?
Casimiro dos Santos: Há uma certa continuidade, mas atenção, eu recordo-me de que muitas destas bibliotecas no início tinham livros do regime, os discursos do Salazar e aqueles livrinhos que o regime aconselhava. Estava lá isso tudo, as obras do regime, mas começam a vir outras e as direções que se vão sucedendo. Muitos antigos dirigentes sindicais dos anos 20 e 30, alguns que vieram do anarco-sindicalismo, eram dirigentes associativos aqui mais tarde, nos anos 40. Eu por acaso encontrei numa pesquisa que fiz aqui, um dos dirigentes associativos mais importantes aqui, o José Caetano, tinha sido dirigente anarcosindicalista. E, portanto, era uma pessoa com muito prestígio que acabou nas associações.
E ainda, numa das greves dos anos 40, a pedido do regime, a pedido do Sindicato Nacional, conseguem convencer o José Caetano a assinar um manifesto para que a greve acabe. A greve também estava quase num beco sem saída, portanto, não se sabia bem o que é que ia ali surgir, mais repressão ainda... Eles chegaram à conclusão de que o melhor era parar e acreditar nas promessas do regime, do Sindicato Nacional. Por sua vez, o dirigente do Sindicato Nacional também tinha sido dirigente anarcosindicalista, portanto, está a ver o percurso dos anarco-sindicalista… Seria interessante estudar aquilo bem, quase todos acabam nos sindicatos nacionais. O José Caetano não, foi para o movimento associativo e ali continua. Digamos assim, aquela vertente educativa que também vem do anarquismo e vai continuar no associativismo.
Isso foi uma escola importantíssima aqui na terra e no Concelho em geral, se calhar no país todo, mas eu conheci melhor esta região. Em Almada, também, atenção, também tem muito associativismo, que eu também conheci um bocadito, dei aulas na Cova da Piedade, na Caparica, no Seixal.
P: Para além desta participação associativa, de que já falámos, também assumiu cargos políticos nas autarquias? Há alguma relação entre esta propensão para o movimento associativo e para assumir cargos públicos?
Casimiro dos Santos: Quer queiramos quer não, se nós estamos, se queremos participar de alguma maneira, cumprir alguns objetivos que temos, não só pessoais, mas também ideológicos, temos que participar em associações ou mesmo na questão política. Transformar o mundo e não é só ficar em casa a ler um livro, também tem que se ter alguma prática. E isso, seja na política, seja no associativismo, quase sem darmos por ela, estamos lá, quase como genética.
P: Mas a ligação tem a ver tem a ver com....
Casimiro dos Santos: A ligação tem a ver com a ligação ao povo, tem a ver com isso. Quer queiramos quer não, há objetivos comuns. Normalmente , quer dizer, a parte cultural, tem a ver com a minha participação. No meu caso concreto, o aspeto da cultura é o que me interessa mais. E ao fim ao cabo, a questão da qualidade de vida das pessoas, que também passa pela participação em associações, em atividades culturais, etc. Portanto, tudo isso se conflui para essa melhoria da qualidade de vida da população.
P: Existem muitos casos, não é? Até se costuma dizer que muitos dos dirigentes autárquicos do pós 25 de Abril tinham feito a escola da democracia nas coletividades, que há uma relação muito próxima entre a vida associativa e a participação, sobretudo nas autarquias. Há bocado falávamos da Comissão de Melhoramentos e que o poder autárquico também foi muito importante para as questões das infraestruturas. Como é que essa relação se concretizou, entre as comissões de melhoramentos e as novas autarquias do poder local democrático?
Casimiro dos Santos: Essas comissões de melhoramentos acabaram por assumir o papel de associações e muitas vezes associações de moradores, que estão viradas para as condições concretas, infraestruturas, os esgotos, o muro, a ponte que falta ali, as vias de comunicação, o abastecimento de água, etc. Mas também estão viradas para essa qualidade de vida, essas atividades culturais, daí as filarmónicas, etc. E as autarquias aí podem de alguma maneira colaborar com essas instituições, porque, digamos assim, são também uma representação da vida social. Portanto, o poder autárquico hoje também não pode ignorar que as associações estão ali. Porque as associações são também uma representação popular. E o poder autárquico, como estrutura política, com outras capacidades, financiamento, etc., tem que ter essa ligação às associações. Muitas vezes as associações estão mais viradas para o aspeto cultural e recreativo. Porquê? Porque as questões do saneamento básico, as questões das infraestruturas já estão mais ou menos resolvidas, por vezes, outras vezes tem que haver um trabalho contínuo de manutenção. Mas as associações são fundamentais para manter alguma vida, que vida não é só o pão, digamos assim, é também a cultura. E essa parte cultural e recreativa são as associações a todos os níveis, as associações culturais, os reformados, os grupos de teatro, o grupo coral, a Filarmónica, etc.
E algumas das associações têm essas valências todas, como é o caso das aldeias. Nas freguesias rurais, normalmente, algumas que conseguem ter uma banda e um grupo de teatro. Outras ainda têm um grupo de caminheiros. E outras defendem o ambiente também, associações de defesa do ambiente e aqui nós temos várias dessas, os Caminheiros da Rosa Negra, por exemplo. É a natureza, o desporto...os caminheiros da Gardunha, os caminheiros de Casegas, que lá fundámos. Eu também estive na origem dos Caminheiros de Casegas.
Organizamos caminhadas por aquela Serra, a travessia da Serra do Açor, enfim, uma série de atividades. E fazemos caminhadas, já temos ido até aos Pirenéus, por exemplo, ou até às Astúrias, ou até… Ainda não fomos mais Longe, ainda não fizemos nenhuma aos Andes, mas gostávamos de lá ir.
P: Já percebi que a sua participação associativa é variada. Já esteve em vários tipos de instituição ao longo do tempo. De que forma é que acha que essa participação associativa modelou a sua vida a nível pessoal?
Casimiro dos Santos: Eu acho que sou o resultado dessas experiências todas, de alguma maneira. Os meus gostos levaram-me a participar nas coisas, e as coisas também me influenciam a mim. As atividades em que participo de alguma maneira também me formam. Não sou só eu que, de alguma maneira, ao tomar a iniciativa de fazermos uma atividade, posso influenciar. Mas a própria atividade também me influencia e o convívio, a descoberta, tudo isso acaba por ter influência na nossa vida. Quer queiramos quer não, há também um retorno. Para nós, é de satisfação, mas não só de satisfação, também aprendemos, estamos sempre a aprender e com toda a gente.
P: Tenho aqui um conjunto de questões em torno da identidade e da Memória. Penso que, como historiador, também deve ter estas preocupações. A minha primeira pergunta era: costuma-se dizer que esta é uma região muito marcada pela indústria, que a Covilhã tem uma forte tradição operária. De que forma considera que este contexto marcou e marca o associativismo em geral?
Casimiro dos Santos: É como disse, os operários, não tendo outra alternativa para se cultivarem do ponto de vista da leitura, etc., e das atividades recreativas, que não existiam se eles não se associassem. E, portanto, este mundo gregário que aqui se desenvolve, a fábrica, leva-os ao longo do tempo a criarem associações, não só laborais mas também sindicais, de profissão, etc. Mas levam-nos também, na pertença ao bairro, à fábrica, a criar associações recreativas e de lazer e essa parte é extremamente importante. Eu acho que a própria cidade, ao ter toda esta multidão dos operários... quer dizer, a tradição gregária e de associação e associativismo, ela também já viria lá muito atrás. Já viria da Idade Média, com certeza, aqui na Covilhã acho que já vem da Idade Média, quando tínhamos algumas profissões por ruas, como sabemos, como se organizava a coisa, o mundo do trabalho medieval, há aí algumas ruas com nomes ligados mais à indústria de lanifícios, que ao longo das ribeiras... Isso já existe desde a Idade Média. No fundo há um crescimento quantitativo e qualitativo, depois, até chegarmos ao associativismo moderno, já com a revolução industrial. Estas associações, algumas nascem no início do século XX, quando a indústria daqui dá um pulo muito grande, não é? Muitas destas associações que estão aí começam no início do século, anos 20 e 30, por aí. Nos anos 30, muitas delas já existiam, mas elas continuam a ter uma vida.... Também era o único sítio onde os operários, enfim, se podiam libertar um pouco desta opressão da fábrica. Do mundo opressor que é o trabalho, com horários e regras rígidas. E as muitas horas passadas ali, no fim de semana, o domingo não era para ir à missa. No mundo operário não é isso, o mundo operário precisa de outras coisas menos, menos... estar a ouvir ainda a alienação da Igreja Católica, que só é capaz de dizer: sofrei, porque depois temos uma outra vida...
Com o tempo da taberna, e para os tirar do álcool da taberna. Porque a vida dos pobres era muito dura e por vezes não lhes dava futuro de dignidade. E alguma da dignidade é encontrada nestas associações, que tinham outros objetivos e onde não se cultivava o álcool.
O alcoolismo é uma pecha enorme no operariado, que não tinha uma... Isso era terrível. E isto, de alguma maneira, conseguiu retirá-los da taberna.
P: E acha que hoje em dia, já com todo o processo de desindustrialização, encerramento de várias empresas e também alguma transformação do tecido social, acha que essa memória ainda marca o movimento associativo? Essa memória, essa tradição operária?
Casimiro dos Santos: Ainda há algo. Ainda alguma dessa memória está viva. As associações de reformados e tal cultivam muito isso. Mas depois há outras associações que já estão mais viradas para o desporto e para a parte recreativa, etc. Mas continuam na mesma, desporto, jogos, etc. Continuam ainda a cumprir o seu papel. Embora a ligação tão direta ao operariado, à fábrica, já não é tão grande. Até porque as fábricas estão a desaparecer. A sociedade está-se a transformar, portanto, nós temos uma cidade de serviços. Já não é tão gregária, portanto, os trabalhadores estão muito mais… O mundo do trabalho está muito mais fragmentado e, portanto, esse gregarismo operário que existia aqui até à desindustrialização já não é tão grande. As associações vivem com muitas dificuldades, atenção. De alguma maneira, o declínio do gregarismo do mundo operário está-se a refletir no associativismo. O associativismo está a atravessar momentos maus. E, portanto, cultivando a Memória ainda se vai conseguindo alguma coisa, mas muito pouco. Há associações em crise.
P: Mas acha que as associações são um espaço privilegiado para a transmissão da Memória? Ou seja, os ativistas mais velhos passam este legado de anos de resistência?
Casimiro dos Santos: Eu não sei como é que vai ser o futuro, nem sei se a juventude estará muito recetiva, com o individualismo dominante. Há, entre a Juventude... hoje, os mais jovens não são tão gregários. A vida e leva-os a serem mais gregários na escola, mas depois, a partir de uma certa altura, com a fragmentação individualista, vá lá, eu vou dizer isto, do mundo do trabalho, da vida, eles acabam por não ser tão participativos e há direções que não se conseguem renovar com jovens. Isso é um dos problemas que está a encontrar-se aqui no momento associativo.
E isso é uma crise que se está a passar. Não sei qual será o futuro, mas não vejo muitos jovens nas direções atuais. Portanto, passar o testemunho dos maiores para os mais novos está a ser difícil em muitas associações.
P: Como é que vê, então, o futuro do movimento associativo?
Casimiro dos Santos: Não sei como é que vai ser, mas não o vejo muito risonho. Eu acho que estamos a passar uma crise, uma crise muito grande. Não sei como é que se vai ultrapassar essa crise. Mas nós somos seres sociais e eu estou convencido que se vão encontrar outras formas de fazer isso. Vou-lhe dar um exemplo: nós, lá na Casa do Povo, tínhamos uma banda, uma banda grande, tinha uns 30 ou 40 membros. E havia uma escola de música. A banda tinha fundado uma escola de música. A banda tem cento e tal anos. Esteve parada durante uns tempos, durante a ditadura, depois recomeçou nos anos sessenta. E há poucos anos, pela crise demográfica, porque naquela aldeia - já não nasce uma criança há vários anos, é uma freguesia que só tem gente idosa - muitos dos jovens, dos últimos jovens que lá estavam e que aprenderam música e a tocar um instrumento naquela escola, resolveram, uma vez que já não havia gente suficiente para manter uma banda de 30 elementos, eles formaram uma Street Band, 7 ou 8, muito interessados, pegaram em si próprios, discutiram o assunto e formaram uma street band. E hoje andam por aí, nas Festas, fazem animação de rua. Já não é a banda clássica, mas eles encontram uma forma de ultrapassar isso. Portanto, através da imaginação deles, eu assisti a algumas das reuniões que eles fizeram e vi como eles tiveram a imaginação suficiente para sobreviver e fazer sobreviver a ideia de música de outra forma. Portanto, mantêm-se. Muitas vezes à de encontrar-se, mas no meio disto tudo algumas vão acabar. Eu não sei, mas espero que haja imaginação para conseguir ultrapassar estas crises.
P: E o movimento sindical, especificamente nas questões da memória, por exemplo, aqui houve greves muito marcantes, a greve dos mil escudos, a greve de 1981, essa Memória permanece, ou seja, aqui no meio sindical continua-se a falar nisso, continua-se a contra essa história?
Casimiro dos Santos: Sim, sim, sim, sim, sim. Eu, para as minhas salas, tinha sempre um convidado, que era o Luís garra. Muitas vezes ia às minhas aulas contar a história da greve dos 1000 escudos. E isso, este testemunho, não é só no movimento sindical, mas na comunidade, e neste caso os sindicatos têm alguma coisa a contar também nas escolas, também depende dos professores, dos professores estarem mais ou menos sensibilizados para convidar gente do mundo do trabalho para ir lá falar do trabalho. Ou, até, os alunos irem à fábrica ou ao sindicato conversar com os dirigentes sindicais. Eu acho que isso é muito importante, até para dar um substrato, não só de Memória, mas afetivo e ideológico, ao movimento sindical. O movimento sindical não é só a luta de hoje, é também a luta de amanhã, a luta que é necessário travar amanhã e também tem a ver com as lutas do passado, não é? E é este encadear do tempo que nos projeta para frente. Eu acho que isso, os jovens, os trabalhadores mais novos, muitas vezes não conhecem, por exemplo, essa greve dos mil escudos. Ficam admirados. O quê? vocês fizeram uma greve e tiveram parados tanto tempo para atingir mil escudos? Conseguiram isso, o aumento dos mil escudos? E que é que isso deu como resultado? Ficam muito admirados porque não sabem que os avós deles não tinham frigorífico. E aqueles 1000 escudos permitiram comprar um frigorífico, dar uma dignidade básica à vida das pessoas, dos operários que tinham uma vida muito difícil, estavam sempre no limiar, no fio da navalha da sobrevivência. Aqui foi uma exploração terrível.
P: E para além dessa questão da Memória, a questão do internacionalismo. Acha que o
movimento sindical e iniciativas, por exemplo, como o primeiro de Maio, que são comemoradas à escala Internacional, os congressos nacionais e internacionais, acha que criam de facto assim, ao nível das bases, uma sensação de identidade entre os trabalhadores do país e à escala Internacional?
Casimiro dos Santos: Sim, sim, isso é fundamental. Se não houver esse apelo à Memória de há 100 anos atrás, essa identidade do primeiro de Maio, festejar o primeiro de Maio, isso é fundamental para manter essa identidade e ao mesmo tempo também projetá-la no futuro. Portanto, nós não somos só presente, nós somos o fruto de um movimento também. A sociedade que hoje existe, e eu penso que isso é muito importante, que se mantenha sempre, os congressos e nos Congressos apelar-se a esse culto da Memória, que é muito importante. Porque, muitas vezes, os trabalhadores mais jovens… Nós sabemos que a nossa disciplina de história leva muito pontapé nos programas, nos currículos, muitas vezes é chutada para ter cada vez menos tempo e tal. Portanto, isso não é feito por acaso e às vezes os jovens não saem da escola com as ideias mais ou menos esquematizadas do ponto de vista da evolução histórica humana. No fundo, que lhes permita compreender o mundo em que vivem. Eu acho que os sindicatos e toda esta festa que é o primeiro Maio, as comemorações do 25 de Abril, tudo isto fará, de alguma maneira, parte de uma formação geral, que é construção da Memória identitária de uma comunidade e de uma classe social, os trabalhadores. No fundo, eles acabam de alguma maneira por ir bebendo estas… a comemorar também se aprende e as comemorações têm esse objetivo. Países onde há pouca história, por exemplo, países novos como os Estados Unidos, eles vão buscar tudo, todos os bocadinhos da Memória, ainda que para nós não sejam assim muito significativos, para eles são, porque a identidade constrói-se com estes pedacinhos todos da memória coletiva. Isso é muito importante. Não se pode, não se pode deixar de comemorar essas datas importantes.
Casimiro dos Santos: Nasci no Concelho da Pampilhosa da Serra, distrito de Coimbra.
P: Em que ano?
Casimiro dos Santos: 1952.
P: E estudou lá?
Casimiro dos Santos: Estudei lá até acabar a chamada escola primária. Depois fui estudar para Figueira da Foz e Coimbra, que era onde tínhamos o secundário. E depois de Coimbra ainda estive em Lisboa, na universidade, acabei a universidade em Lisboa, em 1980. Foi quando terminei e já tinha trabalhado, tinha acabado o curso como estudante trabalhador. Mas, entretanto, antes de acabar o curso, meteu-se o serviço militar. Portanto, como nota biográfica assim mais pormenorizada, estive na tropa dois anos, 1974 e 1975. Apanhei precisamente o 25 de Abril.
P: E trabalhou no quê antes?
Casimiro dos Santos: Antes de ser professor, trabalhei na Segurança Social como funcionário administrativo.
P: E depois foi toda a vida professor?
Casimiro dos Santos: Depois fui toda a vida, professor, de 1981 até há dois anos atrás.
P: Qual era a área?
Casimiro dos Santos: História, fiz na faculdade de Letras de Lisboa
P: E trabalhou, deu aulas sempre aqui nesta região?
Casimiro dos Santos: Na margem sul do Tejo também. Almada, Seixal, Setúbal, Moita. Estive aí uns 10 anos e depois voltei aqui para a região da Serra e acabei aqui. Depois estive sempre aqui, no distrito de Castelo Branco.
P: E os seus pais, eram também eram daqui desta região?
Casimiro dos Santos: Sim, o meu pai era mineiro na Panasqueira, na Pampilhosa da Serra. Faz ali uma fronteira e está na órbita das Minas da Panasqueira, pelo menos aquelas duas freguesias do norte da Pampilhosa da Serra, de maneira que grande parte da população daquelas freguesias trabalhava nas Minas, daí a pertença àquele universo operário. Operário e camponês ao mesmo tempo.
P: E a sua mãe também?
Casimiro dos Santos: A minha mãe era camponesa e doméstica. Tínhamos propriedades, tínhamos aquela dupla pertença à terra, enquanto pequenos proprietários rurais, mas ao mesmo tempo também ao mundo do trabalho das Minas, enquanto que o meu pai era operário das Minas. Portanto, tínhamos ali uma dupla pertença, digamos assim, não em termos de classe social, pequenos proprietários e operários ao mesmo tempo, aquela duplicidade de ser proprietário de terrenos, mas pequenos proprietários. E, ao mesmo tempo, assalariado, o meu pai.
P: E tem filhos?
Casimiro dos Santos: Tenho dois filhos, um filho e uma filha.
P: E a sua mulher?
Casimiro dos Santos: A minha mulher esteve no ensino. Ela é engenheira técnica agrária, portanto faz tempo no ensino e faz trabalhos por conta própria.
P: Os seus filhos também seguiram para o ensino superior?
Casimiro dos Santos: A minha filha é enfermeira. Está a acabar a especialidade. E o meu filho e técnico de ambiente, está a trabalhar na Câmara de Pampilhosa da Serra, precisamente.
P: Professa alguma religião? É católico?
Casimiro dos Santos: Só agnóstico.
P: E o quanto à filiação partidária?
Casimiro dos Santos: Sou militante do PCP
P: Em relação à filiação associativa?
Casimiro dos Santos: Fui sempre sindicalizado, fui delegado sindical, quase sempre, toda a minha vida profissional. E quando estive em Lisboa, havia um movimento associativo ligado aos concelhos da Beira, Serra, Arganil, Pampilhosa até o Sabugal e a Covilhã também. As casas do concelho agregavam as pessoas que tinham ido para Lisboa desde meados do século, quando se dá aquele grande êxodo rural. Na Pampilhosa da Serra, há aldeias que quase se despovoaram nos anos 40/50 e então associaram-se em estruturas que estavam, mantinham a ligação à aldeia de origem, e em Lisboa tinham a casa do Concelho. Mas mesmo assim, além da casa do Concelho, ainda tinham as chamadas comissões de melhoramentos, ou seja, eram aldeias muito pobres, normalmente, por exemplo, na minha aldeia, nós tínhamos a eletricidade que era produzida a poucos quilómetros, numa barragem de Santa Luzia que abastecia as Minas da Panasqueira e a indústria da Covilhã e a aldeia não tinha eletricidade, até 1970. Está a ver, portanto, isso fez com que os moradores de Lisboa, das aldeias que estavam em Lisboa a trabalhar, ao verem a distância, a falta de vias de comunicação, o fraco desenvolvimento, o atraso no tempo do Salazar, organizaram-se nas Casas do Concelho. Claro que o regime procurou mais ou menos meter a mão e de alguma maneira, condicionar. Havia alguns que até eram da União Nacional. Alguns dirigentes dessas casas do Concelho. Portanto, o regime aproveitava isso, introduzia-se lá dentro. Mas mesmo assim, serviu perfeitamente para criar um algum… a partir do sentimento de pertença às aldeias e da consciência de que havia um atraso muito grande nesta interioridade destes concelhos, fez com que este associativismo criasse de alguma maneira um espírito comunitário. E conseguiram-se alguns melhoramentos, muitas vezes junto das câmaras municipais, junto dos ministérios. Tinham alguma influência.
P: E o Casimiro desenvolveu atividades nesse movimento?
Casimiro dos Santos: Eu, quando estive em Lisboa, a partir dos 18 anos, pertencia a uma das comissões de melhoramentos da minha aldeia, precisamente. E, portanto, fazíamos festas, tanto na aldeia como na cidade, em Lisboa. E essa era uma maneira de conseguir agregar a população para festas, convívios, etc. E, ao mesmo tempo, procurávamos junto da autarquia, isto já depois do 25 de Abril, já estávamos numa fase posterior, conseguíamos ter alguma influência como movimento associativo, como comissões, algumas até são instituições de utilidade pública. Conseguíamos ter alguma influência junto das autarquias, como comissões de moradores. Entretanto, normalmente funcionavam com sede em Lisboa e uma delegação nas aldeias. Outras vezes era o contrário. A partir de 25 de Abril transformou-se a coisa, a sede já era nas aldeias, porque já havia alguma iniciativa nas próprias localidades e Lisboa era uma delegação. Ainda hoje se faz esse convívio, entre a população que está lá e a população que mora ainda nas aldeias, muito poucos, só os idosos. Mas esse sentimento de pertença ainda está lá. Por isso é que muitos originários dessas aldeias mantêm a casita na aldeia, mantêm aquilo arranjadinho e tal, e continuam a vir passar as férias nas aldeias. Isso é muito interessante, porque esse sentimento de pertença não se apagou.
P: Acha que essa propensão para a participação associativa é uma coisa de família? Ou seja, os seus pais já tinham alguma participação nestes movimentos?
Casimiro dos Santos: Sim, não é só uma coisa de família, é uma tendência de ver necessidade e as populações se associarem de alguma maneira. Mas o meu pai já era sócio da Comissão, participava nas atividades, etecetera.
P: E em greves, lutas no âmbito das Minas da Panasqueira, também participava?
Casimiro dos Santos: O meu pai trabalhou lá até precisamente ao 25 de Abril. O meu pai tem uma longa história, porque ele foi trabalhar ainda no início dos anos 40. Ele foi trabalhar para as minas apenas um jovem ainda, quase uma criança. Estava a sair da adolescência quando foi trabalhar para lá para a empresa. Entretanto, a empresa teve... Em 1939 houve uma greve terrível, a greve do carbureto, em que os mineiros tiveram que fazer uma greve porque eram obrigados a providenciar eles próprios, às suas expensas, a iluminação lá dentro, através do carbureto. Tinham uma lâmpada que era o gasômetro, que funcionava a gás acetileno. É água, o gás acetileno e eles tinham aquela chama, ainda não havia as lâmpadas elétricas. É, e então eles tinham que comprar o carbureto, tal como levavam o farnel lá para dentro. Em 1939, muitos mineiros da Panasqueira tinham vindo de Espanha. Alguns estavam lá imigrantes, eram mineiros portugueses, por exemplo, nas Astúrias, nas Minas de carvão, etecetera. Portanto, há ali um grupo de, eu diria, pessoas já com uma consciência social e consciência de classe mais elevada, e em 39 fizeram uma greve que os levou a conseguirem uma vitória. A greve do carbureto. Depois disso, muitos foram identificados, muitos foram presos. E foram despedidos e as lutas lá ficaram muito esmorecidas.
Até 1945, mesmo no final da guerra. Entretanto, a empresa teve imensos lucros e aquele mundo do Volfrâmio desenvolveu muito, houve fortunas que se fizeram. Houve pessoas, camponeses, mineiros, que fizeram fortunas ou com o contrabando do volfrâmio, a vender volfrâmio aos alemães que estavam aí. E, portanto, aquela era uma pequena cidade, quase, as Minas da Panasqueira. Despovoou-se no fim da guerra, quando a empresa fechou, uma vez que as vendas foram abaixo, mas elas tinham estado estado em alta. E o meu pai nessa altura foi trabalhar para Lisboa, onde tínhamos lá parentes e tal, e foi trabalhar para Almada, para uma fábrica de cortiça, daquelas fábricas da Cova da Piedade. Uma vez, estive lá com ele, no sítio, já a fábrica estava abandonada, aquelas fábricas da cortiça. Quando a mina reabre em 1947, ele regressa cá e continuou o trabalho ali, até se reformar em 1970.
Portanto, aquele tempo das lutas ele não apanhou, ou antes, tenho impressão de que ainda apanhou ali qualquer coisita em jovem, em 39, e quando foi o 25 de Abril e as lutas se acendem lá, portanto, ele já não está na empresa. Portanto, ele não apanhou esse tempo, mas foi extremamente explorado. Foi uma exploração terrível, 40 anos.
P: E na sua infância, vivia nesse universo?
Casimiro dos Santos: Sim, sim.
P: Havia alguma associação, alguma instituição, em que tenha participado?
Casimiro dos Santos: Tudo o que era o mundo operário estava reprimido, portanto só em setenta é que houve alguma liberdade sindical, era uma repressão muito grande, as coletividades que existiam nas aldeias ou eram as casas do povo, ou as tais comissões de melhoramentos das aldeias da Pampilhosa da Serra, e nas aldeias do concelho da Covilhã e no Fundão havia já algumas associações, os ranchos folclóricos, os grupos etnográficos, que tinham alguma expressão e normalmente eram as juntas de freguesia que promoviam essas coisas. Primeiro ligados ao regime. Aquele movimento do António Ferro, dos ranchos folclóricos e tal, toda aquela história do folclore. E os concursos das aldeias mais portuguesas, etc. Portanto, era nesse sentido tudo controlado pelo regime. Normalmente, as outras, da Pampilhosa da Serra, o tal sentimento da ligação a Lisboa. Curiosamente, a emigração era muito para Lisboa e pouco para Coimbra e quase nada para o Porto. Era mais para a zona de Lisboa, para as fábricas de cortiça. Muitos, muitos vão trabalhar para as fábricas de cortiça. Eu tive imensos familiares que foram para lá, tanto do lado da minha mãe como do meu pai. Muita gente da Beira, e depois alguns vão para a indústria hoteleira, ainda hoje têm restaurantes, tabernas, etc., na Cova da Piedade, que é gente daqui desta Serra, da Pampilhosa, de Arganil, Tábua, desta área aqui.
P: Então vamos detalhar a sua experiência própria enquanto ativista antes do 25 de Abril. Para além dessa comissão de melhoramentos, ainda não teve participação sindical. Ainda estava a estudar? Ou seja, a sua participação associativa foi mais no pós 25 de Abril…
Casimiro dos Santos: Sim, mas pronto, tínhamos as associações de estudantes, andava ali a UEC (União dos Estudantes Comunistas), isto na faculdade de Letras de Lisboa, quando já havia alguma coisita, semiclandestina. Já havia uma coisa no primeiro de Maio, por exemplo. Recordo-me bem que antes do 25 de Abril, eu estava lá em Lisboa, e festejava-se o primeiro de Maio. Havia aqueles movimentos estudantis contra a guerra colonial, etc. Manifestações que, na Praça do Chile, acabavam dispersas à bastonada e com cães. Assim como o primeiro de maio, normalmente participávamos aí e cheguei a ser uma vez levado para ir para ser identificado no governo civil. Fui apanhado lá no Martim Moniz, não consegui fugir e pirar-me, porque eu morava no Castelo de São Jorge, na casa de uma tia minha. E, portanto, fui apanhado a fugir numa das ruas, eu e outro. Lá fomos levados para o governo civil e identificados. E pronto, foi ali assim uma tarde/noite.
P: Nesse período em que estava a estudar, fazia parte de alguma daquelas associações, tipo os cineclubes, que naquela altura surgiram, as cooperativas editorais?
Casimiro dos Santos: Não cheguei a fazer parte, mas ia assistir a muitas coisas. Na faculdade havia Associação de Estudantes e era só através da Associação de Estudantes. Ainda cheguei a ser convidado para o orfeão, porque eu já tinha participado. Ainda fui lá e tal, mas depois não tinha tempo para essas coisas, porque eu o tempo livre aproveitava para fazer uns biscates, trabalhar e tal. E por isso a minha dupla pertença também como estudante trabalhador, quase sempre. No tempo anterior, eu aproveitava para trabalhar e trabalhei na Feira Popular. Havia sempre… para nos dar uns trocos, uns trabalhinhos extra que eu fazia, na Feira Popular .... Trabalhei numa fábrica de engarrafamento de vinhos, e de gins, etc. onde é hoje o Parque das Nações. Havia ali umas fábricas de vinhos, que eram comercializados, engarrafados e tal. Esses armazéns já não existem, que era o Caldeira Lds, e o outro grande rival, logo a seguir. Portanto, eu trabalhava nas férias, quase sempre ali, portanto, não tinha muito tempo para participar, mas ia assistir sempre que podia a coisas do cineclube, etc. A educação política passava muito por ver filmes e participar em debates sobre os próprios filmes, e participava sempre que podia.
P: Para as associações de estudantes, não teve tempo?
Casimiro dos Santos: Não, não tinha tempo. Eu não tinha tempo para estar na Associação de Estudantes.
P: E no contexto de trabalho participou em alguma?
Casimiro dos Santos: No contexto trabalhando também não, não, aí não estava. Estava mais na parte cultural das aldeias, etecetera, aí estava mais. No mundo estudantil, eu estava, trabalhando, apoiava, assistia, mas não me envolvia muito, mas estava ali assim, numa situação. Eu só estive dois anos antes do 25 de Abril, antes de ser mobilizado para a tropa, no início de 74. Portanto, fiz ali dois anos do curso de Filosofia e mudei para História depois. Quando vim da tropa.
P: E essa participação nesse âmbito das comissões de melhoramentos começou quando?
Casimiro dos Santos: Isso só com os meus 18 anos, um bocadinho antes do 25 de Abril, logo que eu fui para lá. Através dos conterrâneos, quando chego. Eu era dirigente da Casa do Concelho e, pronto, isso foi por influência familiar e por querer de alguma maneira participar naquela ideia da pertença à aldeia, ao mundo rural, ao mundo da Pampilhosa da Serra.
P: Sentiu algum em algum momento algum episódio de repressão ou censura dessa atividade associativa?
Casimiro dos Santos: Não, porque muitos deles eram da União Nacional. Eles eram da União Nacional, quase todos os dirigentes da casa do Concelho da Pampilhosa. O Marcelo Caetano chegou a ir lá fazer uma visita. Mas havia um trabalho subterrâneo, que os mais novos de nós fazíamos lá, de denúncia daquele mundo opressivo, que era a barragem de Santa Luzia produzir eletricidade e as aldeias não terem, etecetera. O Marcelo Caetano pertencia. Os pais dele eram do concelho da Pampilhosa da Serra e, portanto, ele chegava a vir lá fazer visitas oficiais, uma vez ou duas durante o tempo em que ele esteve como primeiro-ministro e ia fazendo promessas. Também lhe devia doer um bocado ver o concelho dele tão atrás em relação aos outros vizinhos e ver as aldeias com os fios da eletricidade que vinham para as fábricas da Covilhã e as aldeias viverem com a candeia de azeite ou petróleo. E, portanto, as aldeias começaram a ser eletrificadas precisamente no consulado de Marcelo Caetano. Ele fez as promessas e tal e com aquelas influências todas. Porque a coisa era quase feudal. A ditadura tinha o seu quê de feudalismo e aí a personalidade do Marcelo Caetano em relação a isso era, portanto, de ligação e de influência através das pessoas. Claro que muitos eram da União Nacional, mas elas estavam interessadas em ter algum progresso na terra, não só pelos lindos olhos dos camponeses, mas porque facilitava a comunicação, o comércio e, se calhar, a criação de mais valias. Até porque havia as resinas, havia as madeiras, começava o eucalipto e, portanto, as vias de comunicação eram essenciais, assim como a energia, portanto, não era pelos lindos olhos ou porque queriam desenvolver a terra. Queriam era fazer negócios com base nos produtos endógenos que lá tinham. As barragens, a energia elétrica, etc., era importante para eles.
P: No período revolucionário houve vários movimentos de auto-organização, justamente para garantir saneamento básico. Isso aconteceu lá?
Casimiro dos Santos: Ai já são as autarquias eleitas democraticamente.
P: E essa Comissão de Melhoramentos ?
Casimiro dos Santos: Essa comissão continuou, continua a existir, ainda existe, eu fui presidente da Assembleia Geral até ao último mandato lá.
P: E a Comissão envolveu-se nalguns...
Casimiro dos Santos: A Comissão envolveu-se e ainda hoje trabalha, vamos lá, quase como comissão de moradores. Trabalha com a autarquia, com a freguesia, com a Junta de Freguesia.
P: Que é que se fez assim de importante nessa altura?
Casimiro dos Santos: Isso foi muito importante. O poder autárquico fez com que as coisas básicas fossem construídas. O saneamento básico, a eletrificação, as estradinhas, todas alcatroadas e em bom estado. Portanto, as infraestruturas básicas estão lá: água, saneamento, etc.
Embora a água não seja de grande qualidade, agora venderam aquilo uma empresa intermunicipal que é AP [Águas de Portugal]. Portanto, as câmaras desligaram-se, mas não foi só a Pampilhosa, foram muitas outras. Portanto, o negócio da água está agora a chegar lá.
E muitas vezes foram as populações que, organizadas, elas próprias, fizeram a captação da água. Isto antes do 25 de Abril. Foi o caso de algumas aldeias que eu conheço, fizeram uma mina, fizeram uma vala, por iniciativa deles próprios, porque havia doenças endémicas como, por exemplo, tifo, por causa de não haver saneamento. Isso é que levou a que as próprias populações se organizassem. A população não era salazarista, nem nada, portanto, muito religiosos e tal. O Salazar é um Santo. Toda aquela propaganda baseada na religião católica. isso foi no país todo. Na zona de influência do operário e das Minas, a Igreja Católica não tinha, não tinha tanta audiência. Até que um dia chega lá um padre que vai beber uns copos para a taberna dos operários das minas e consegue levá-los até à Igreja. Faziam assim, tudo dependia da estratégia dos priores lá das aldeias, mas a igreja católica tinha uma influência extraordinária, enorme. Até porque era através da Igreja Católica que muitos jovens conseguiam ir estudar. Foi o meu caso. Eu fui estudar para o seminário de Coimbra, andei lá alguns anos e aquilo ao mesmo tempo também serviu pela negativa. Quer dizer, aquilo que se apanha de um lado, mas que depois também se reagem, não é, também nos forma. Não é só o que é bom que nos forma, aquilo que é mau também nos forma. No aspeto da rejeição, e ao ver as desigualdades com que a Igreja estava complacente, com a guerra colonial, etecetera. Portanto, a igreja era um apoio grande do regime, era um esteio muito forte do regime e isso ao mesmo tempo, fazia com que tanto o mundo operário como o mundo estudantil fizesse a nega ao regime e, portanto, o apoio ia diminuindo cada vez mais. Já naquela última fase do Marcelo Caetano, quando a guerra colonial se tornou um beco sem saída. Foi isso que acabou por levar ao 25 de abril.
P: E movimentos como a JOC ou a LOC?
Casimiro dos Santos: Não tinham expressão, nem havia Mocidade Portuguesa nem nada disso. Só na sede do concelho, aí é que havia qualquer coisa. Isso não tinha lá, não tinha expressão nenhuma, porque a população estava-se borrifando para essas coisas. Lá iam cumprindo o essencial: ir à missa ao sábado, mas os padres não eram bem vistos pelos operários.
P: Quando é que começa efetivamente a sua participação sindical? Foi durante o período revolucionário?
Casimiro dos Santos: Antes, quando trabalhava na segurança social, no sindicato da função pública.
P: Isso foi quando?
Casimiro dos Santos: Depois do 25 de Abril, ali na década de 70. E eu fiz a tropa em 74-75 e quando saí da tropa comecei a trabalhar e a estudar ao mesmo tempo. Eu trabalhava na Avenida dos Estados Unidos, em Lisboa, e ia à tarde para as aulas, à tardinha. Depois de sair do trabalho. Era delegado sindical na própria função pública.
P: Mas foi já foi posteriormente àquele período mais exuberante do pós-revolução?
Casimiro dos Santos: Estávamos já depois do 25 de Novembro. Eu saí da tropa sete dias depois do 25 de Novembro. Portanto, estive no 25 de Abril, fui para lá em Janeiro de 74, e aqui apanhei estes dois anos do PREC até ao 25 Novembro. Uma semana depois do 25 de Novembro, eles resolveram mandar-me embora, uma leva enorme de gente que estava lá, se calhar a estragar o ambiente que eles queriam ali. E foi aí que eu saí e disse: vou ter que ir trabalhar, não é? E fui trabalhar para a segurança social na altura, depois daquela parte da segurança social, transforma-se na naquilo que é a ARS. E eu fiz ali ainda uns quatro anos. Até acabar o curso, depois concorri e vim para o ensino, até agora.
P: Nesse período de quatro anos em que esteve como delegado sindical na função pública, houve algum movimento importante?
Casimiro dos Santos: Houve greves, algumas, por aumento de salários. Estávamos ali em 78, 79, 80… Houve uma ou duas greves com alguma expressão...
P: Tem alguma memória marcante?
Casimiro dos Santos: Recordo-me de uma greve por causa da integração da segurança social na função pública. Havia ali uma perda de regalias e, portanto, lutou-se pela manutenção de algumas das conquistas que os trabalhadores tinham feito. Mas depois a coisa lá se resolveu através do diálogo na altura do governo do PS, o Mário Soares, o primeiro e o segundo. Portanto, naquela fase transitória, 76, 77, 78.Por aí assim. Mas eu estava ainda a estudar e, portanto, às vezes desdobrava-me entre a faculdade e o trabalho.
P: Depois começou a dar aulas, quando acabou o curso?
Casimiro dos Santos: Sim
P: Primeiro na margem sul do Tejo?
Casimiro dos Santos: Sim, os primeiros 10 anos.
P: E nessa altura foi delegado sindical do Sindicato de Professores?
Casimiro dos Santos: Já estava lá, também, sim.
P: Como é que foi? Quais foram as principais lutas e reivindicações desse período em que participou?
Casimiro dos Santos: Aqueles movimentos dos professores, o estatuto da carreira do centro, principalmente aí. Mas recordo-me de que a principal foi o estatuto da carreira docente. Foi uma luta muito, muito comprida e muito dura. E continua, isso ainda não está resolvido. Resolveu-se, mas depois o estatuto foi sendo alterado. Foi sendo adulterado e ainda hoje, como se sabe.
P: E para além de ser delegado sindical, teve outras funções, outras responsabilidades na estrutura sindical?
Casimiro dos Santos: Não, sempre delegado sindical.
P: Quando veio para cá também?
Casimiro dos Santos: Aqui também. Eu não dava tanta importância ao sindicalismo na altura. Dava uma importância bastante grande, mas estava mais virado para a escola propriamente dita. Portanto, nunca quis ser dirigente sindical. Várias vezes fui convidado para listas para as direções sindicais, mas fiquei sempre como delegado sindical. Nunca quis participar num nível mais elevado.
P: Mas dessa sua participação, qual é a perspetiva que tem sobre, por exemplo, o processo de construção da CGTP e o papel da CGTP na construção da democracia portuguesa?
Casimiro dos Santos: Foi extremamente importante. A fundação da CGTP, em 1970, foi um momento importante no sindicalismo português, na liberdade sindical, que não existia até aí, mas que teve uma importância extraordinária com a fundação da CGTP. Recordo-me perfeitamente e acompanhei bem. Aquele início, já depois do 25 de Abril, a unidade, a unicidade, todo aquele debate que houve em torno, depois acabou por dar mau resultado, porque se criou a UGT dentro daquilo que foi um divisionismo. Na minha opinião, não é? Eu acompanhei isso sempre, esse processo. A adesão do sindicato dos professores. Portanto, depois criou-se, criaram-se muito sindicatos de professores, como sabem. Só aqui na região e nas escolas estão presentes uns quatro ou cinco, portanto. Esta divisão da classe não é benéfica e acaba por dividir os professores, às vezes em situações que não são fundamentais, outras vezes lutam por questiúnculas. Quando é mais importante, às vezes alguns não aderem às lutas mais importantes. Mas, portanto, aquilo que eu acho é que esta divisão sindical só favorece o patronato, digamos assim, neste caso o Ministério da Educação, que acaba por impor a sua política educativa sempre, seja qual for o poder. Daqueles dois partidos que lideram o poder, o bloco central, digamos assim.
P: Outra questão mais transversal, acha que o movimento sindical foi importante para a dignificação das mulheres?
Casimiro dos Santos: Houve demasiados constrangimentos à participação das mulheres. A questão das mulheres no mundo do trabalho, eu creio que ainda há uma mudança muito grande a fazer nas mentalidades. As mentalidades evoluem mais lentamente. E essa mudança das mentalidades, e se calhar fazer-se a nível tanto dos dirigentes sindicais como das próprias mulheres, que às vezes se retraem e não participam tanto como deviam participar. É um caminho muito grande para percorrer. Está no papel e o Estado cumpre. Mas no mundo do trabalho, muitas vezes as mulheres têm receio de participar. Eu li coisas incríveis sobre… aqui assim não, no mundo operário, das fábricas, a questão do assédio, etc., e o retraimento das próprias mulheres na participação na luta. Apesar de que quando as mulheres lutam, lutam, se calhar com mais força do que os homens. Elas iam para aqui, para o Pelourinho, com as crianças às vezes antes dos homens. Aqui elas são terríveis. Nas Minas da Panasqueira, por exemplo - e eu também conheço mais ou menos bem esse universo -, as mulheres, pela questão da maternidade, não podem trabalhar dentro das minas, isso foi uma conquista que muitas encaram com uma certa duplicidade: então a gente não pode lá trabalhar? Mas tínhamos direito ao trabalho...
Mas isto passou-se na Inglaterra, quando os primeiros sindicatos lutaram para que as mulheres não trabalhassem. Não era por causa de uma questão do salário, o trabalho das mulheres nas minas era dos trabalhos mais perigosos e a radiação, isso provocava, por vezes... E conseguiu-se que os patrões não contratassem mulheres. No entanto, nas minas elas trabalhavam no exterior, estavam até em trabalhos mais perigosos, até onde apanhavam mais a silicose, que é a doença dos mineiros aqui na Panasqueira. Na lavaria, na correia, o trabalho da correia é dos meios mais doentios. A correia é um tapete rolante de borracha, correia, chamava a correia o nome comum. E tanto havia mulheres como crianças a trabalhar, umas das outras. Era mais um trabalho para miúdos e miúdas e mulheres do que para os adultos. Como elas estavam proibidas de ir lá dentro por causa das condições de trabalho, que não estava proibido mesmo durante o regime, durante a ditadura, trabalhavam fora. E em que consiste esse trabalho? Vai o minério em bruto de dentro da mina para fora, naquele tapete rolante, e as crianças e as mulheres estavam ali a escolher. Mas a poeira estava a entrar nos pulmões e portanto muitas mulheres chegavam aos 30 anos e já tinham silicose.
Aquele trabalho era um suplemento. Assim, como aqui nas fábricas, elas também não faziam trabalhos em casa, que eram trabalhos de… eram as pegadoras de fios e certos trabalhos que se podia fazer em casa, é para aperfeiçoar o pano, que é também um trabalho muito perigoso porque elas acabavam levando com a poeira lá. Também apanhavam doenças respiratórias. A partir do momento em que há liberdade sindical, os sindicatos começam a falar disso e as mulheres começam a entrar nas direções e só aí é que começam a ganhar uma certa consciência. E havia coisas incríveis... as mulheres não descontavam aquele trabalho que elas faziam para as fábricas, não se descontava para a segurança social, portanto, elas acabavam por não ter reforma nenhuma depois de trabalharem dezenas de anos. Era o domestic system em pleno século XX ainda a funcionar, tal como hoje o teletrabalho.
Eu comparo o domestic system do século XVIII ao teletrabalho atual, é a mesma coisa. Nós estamos a regredir em certos aspetos. E aqui as mulheres eram extremamente exploradas. Mas elas tinham consciência da exploração. E muitas vezes é que as condições subjetivas das próprias mulheres e dos homens dirigentes dos sindicatos, essas condições não permitiam que elas... e que ainda hoje isso acontece, que elas participem em pé de igualdade com os homens. No papel sim, mas na prática não.
P: E, por exemplo, na associação de melhoramento, elas participavam?
Casimiro dos Santos: Participavam naqueles trabalhos femininos, eram elas que estavam lá na cozinha a fazer a comidinha. Hoje já não se verifica, algumas já são dirigentes, mas geralmente, era sempre lá nos trabalhos mais tipicamente “femininos”. Acabavam por ser as cuidadoras, ainda isso se verifica em muitas associações, mas já há mulheres dirigentes.
P: Na sua especificamente?
Casimiro dos Santos: É mesmo nessa em que eu estive na Assembleia Geral. Há uma ou outra situação onde eu, onde eu também estou, que é a Casa do Povo de Casegas, que é aqui no Concelho da Covilhã, em que às vezes há mais mulheres a participar e a organizar coisas do que homens. E até em atividades culturais, num grupo de teatro onde há várias mulheres e expõem ali a sua criatividade, maior que a dos homens, muitas vezes, na arte… fantástico. Temos trabalhado ali muito com mulheres e homens, lado a lado.
Sim, mas aí já é o que hoje se passa. Portanto, se formos lá mais para trás, vemo-las a fazer aqueles trabalhos tipicamente “femininos”, a irem fazer a comida e quando se trata de fazer o almoço, o convívio, etc. e lá estão elas a cozinhar. Mas hoje também há homens lá a participar e passamos às vezes a descascar batatas, a fazer os temperos, enfim, tudo... naquelas coisas que é convívio, cultura e que ao mesmo tempo participação conjunta da comunidade, na Casa do Povo de Casegas, que é onde eu hoje eu passo mais tempo.
P: Quando é que começou a participar nessa associação?
Casimiro dos Santos: Isso foi já nos anos 90 e aí foi a mulher que me levou para lá, e ela também lá está num grupo de teatro, etc. Fazemos lá umas coisitas, em termos culturais, agora estamos a ver se conseguimos arranjar termos lá uma biblioteca. Eu agora estou na parte mais ligada a isto, dos livros. Temos lá muitos livros, que precisam de ser catalogados, muitos livros antigos. Houve algumas doações de pessoas que deram a sua biblioteca quando morreram. Temos lá uma... aquilo já está bem atualizado. Agora andamos a arranjar a infraestrutura que foi a própria casa em si, já tinha 70 e tal anos, portas, janelas, telhado, estas coisas são importantes. E eu agora peguei lá na bibliotecazita, a ver se pomos aquilo como deve ser. Precisamos de umas estantes novas, porque aquelas que lá estão, estão a desconjuntar-se. Aquilo está terrível. Isto agora é o meu hobby.
P: Era a casa do povo ainda criada pelo Estado Novo?
Casimiro dos Santos: Sim, é de 1934. Funcionou como Instituição.
P: Como é que foi a conversão dessas instituições, tipicamente corporativas, em instituições democráticas?
Casimiro dos Santos: Mas isso já houve legislação que que tirou às Casas do Povo aquelas competências de segurança social que elas tinham antes. Portanto, foram integradas na segurança social. Algumas morreram ali. Outras, que tinham já alguma validade, algumas outras funções, valências sociais e associativas, recreativas, continuaram. Foi o que aconteceu com esta.
Deixou de ser financiada pela segurança social, pronto, mas manteve-se como associação. E com o mesmo nome, Casa do Povo. E, entretanto, conseguiu o estatuto de instituição de utilidade pública e mantém-se agora, como qualquer associação. Aqui a Covilhã tem um movimento associativo incrível. E porquê? Por uma questão educativa e de formação, os dirigentes associativos sabiam muito bem que os operários só podiam ganhar consciência social e alguma autonomia se tivessem leitura. Esta leitura é fundamental. Algumas das associações aqui têm ótimas bibliotecas, mesmo com livros que a ditadura, o regime não...
Mas estavam lá e eram lidos: autores como o Aquilino, o Fernando Namora, os neorrealistas... E isto era muito importante porque não havia outra forma, portanto os operários quando acabavam a quarta classe iam para a fábrica trabalhar, havia logo ali trabalho e a maioria não ia estudar, como sabemos. E o associativismo aqui foi uma escola importantíssima. Foi a segunda escola que eles tinham e a leitura era extremamente importante e formou muita gente. Os dirigentes sabiam isso muito bem. Alguns desses dirigentes, uma das preocupações fundamentais era logo uma biblioteca, para lá do teatro, dos saraus, da música, da dança, das filarmónicas...A Casa do Povo tinha uma filarmónica, essa lá de Casegas, como quase todas as associações por aí, isso foi extremamente importante.
P: E tem ideia se antes, não sei como é a transmissão da Memória agora para os novos ativistas,
mas tem ideia se, antes, a Casa do Povo, antes do 25 de Abril, estava ideologicamente completamente controlada pelo regime, ou se também era aproveitada para a consciencialização?
Casimiro dos Santos: Já ia sendo aproveitada por muitos estudantes, gente mais nova que ali a partir dos anos 50/60 começou a fazer atividades. E houve um grupo teatro que se forma, leitura, debates, visitas, excursões, etc. E tudo isso acaba por, a partir dos anos 60 com mais força, 70 e mesmo depois do 25 de Abril, continuaram...
P: Há uma certa continuidade?
Casimiro dos Santos: Há uma certa continuidade, mas atenção, eu recordo-me de que muitas destas bibliotecas no início tinham livros do regime, os discursos do Salazar e aqueles livrinhos que o regime aconselhava. Estava lá isso tudo, as obras do regime, mas começam a vir outras e as direções que se vão sucedendo. Muitos antigos dirigentes sindicais dos anos 20 e 30, alguns que vieram do anarco-sindicalismo, eram dirigentes associativos aqui mais tarde, nos anos 40. Eu por acaso encontrei numa pesquisa que fiz aqui, um dos dirigentes associativos mais importantes aqui, o José Caetano, tinha sido dirigente anarcosindicalista. E, portanto, era uma pessoa com muito prestígio que acabou nas associações.
E ainda, numa das greves dos anos 40, a pedido do regime, a pedido do Sindicato Nacional, conseguem convencer o José Caetano a assinar um manifesto para que a greve acabe. A greve também estava quase num beco sem saída, portanto, não se sabia bem o que é que ia ali surgir, mais repressão ainda... Eles chegaram à conclusão de que o melhor era parar e acreditar nas promessas do regime, do Sindicato Nacional. Por sua vez, o dirigente do Sindicato Nacional também tinha sido dirigente anarcosindicalista, portanto, está a ver o percurso dos anarco-sindicalista… Seria interessante estudar aquilo bem, quase todos acabam nos sindicatos nacionais. O José Caetano não, foi para o movimento associativo e ali continua. Digamos assim, aquela vertente educativa que também vem do anarquismo e vai continuar no associativismo.
Isso foi uma escola importantíssima aqui na terra e no Concelho em geral, se calhar no país todo, mas eu conheci melhor esta região. Em Almada, também, atenção, também tem muito associativismo, que eu também conheci um bocadito, dei aulas na Cova da Piedade, na Caparica, no Seixal.
P: Para além desta participação associativa, de que já falámos, também assumiu cargos políticos nas autarquias? Há alguma relação entre esta propensão para o movimento associativo e para assumir cargos públicos?
Casimiro dos Santos: Quer queiramos quer não, se nós estamos, se queremos participar de alguma maneira, cumprir alguns objetivos que temos, não só pessoais, mas também ideológicos, temos que participar em associações ou mesmo na questão política. Transformar o mundo e não é só ficar em casa a ler um livro, também tem que se ter alguma prática. E isso, seja na política, seja no associativismo, quase sem darmos por ela, estamos lá, quase como genética.
P: Mas a ligação tem a ver tem a ver com....
Casimiro dos Santos: A ligação tem a ver com a ligação ao povo, tem a ver com isso. Quer queiramos quer não, há objetivos comuns. Normalmente , quer dizer, a parte cultural, tem a ver com a minha participação. No meu caso concreto, o aspeto da cultura é o que me interessa mais. E ao fim ao cabo, a questão da qualidade de vida das pessoas, que também passa pela participação em associações, em atividades culturais, etc. Portanto, tudo isso se conflui para essa melhoria da qualidade de vida da população.
P: Existem muitos casos, não é? Até se costuma dizer que muitos dos dirigentes autárquicos do pós 25 de Abril tinham feito a escola da democracia nas coletividades, que há uma relação muito próxima entre a vida associativa e a participação, sobretudo nas autarquias. Há bocado falávamos da Comissão de Melhoramentos e que o poder autárquico também foi muito importante para as questões das infraestruturas. Como é que essa relação se concretizou, entre as comissões de melhoramentos e as novas autarquias do poder local democrático?
Casimiro dos Santos: Essas comissões de melhoramentos acabaram por assumir o papel de associações e muitas vezes associações de moradores, que estão viradas para as condições concretas, infraestruturas, os esgotos, o muro, a ponte que falta ali, as vias de comunicação, o abastecimento de água, etc. Mas também estão viradas para essa qualidade de vida, essas atividades culturais, daí as filarmónicas, etc. E as autarquias aí podem de alguma maneira colaborar com essas instituições, porque, digamos assim, são também uma representação da vida social. Portanto, o poder autárquico hoje também não pode ignorar que as associações estão ali. Porque as associações são também uma representação popular. E o poder autárquico, como estrutura política, com outras capacidades, financiamento, etc., tem que ter essa ligação às associações. Muitas vezes as associações estão mais viradas para o aspeto cultural e recreativo. Porquê? Porque as questões do saneamento básico, as questões das infraestruturas já estão mais ou menos resolvidas, por vezes, outras vezes tem que haver um trabalho contínuo de manutenção. Mas as associações são fundamentais para manter alguma vida, que vida não é só o pão, digamos assim, é também a cultura. E essa parte cultural e recreativa são as associações a todos os níveis, as associações culturais, os reformados, os grupos de teatro, o grupo coral, a Filarmónica, etc.
E algumas das associações têm essas valências todas, como é o caso das aldeias. Nas freguesias rurais, normalmente, algumas que conseguem ter uma banda e um grupo de teatro. Outras ainda têm um grupo de caminheiros. E outras defendem o ambiente também, associações de defesa do ambiente e aqui nós temos várias dessas, os Caminheiros da Rosa Negra, por exemplo. É a natureza, o desporto...os caminheiros da Gardunha, os caminheiros de Casegas, que lá fundámos. Eu também estive na origem dos Caminheiros de Casegas.
Organizamos caminhadas por aquela Serra, a travessia da Serra do Açor, enfim, uma série de atividades. E fazemos caminhadas, já temos ido até aos Pirenéus, por exemplo, ou até às Astúrias, ou até… Ainda não fomos mais Longe, ainda não fizemos nenhuma aos Andes, mas gostávamos de lá ir.
P: Já percebi que a sua participação associativa é variada. Já esteve em vários tipos de instituição ao longo do tempo. De que forma é que acha que essa participação associativa modelou a sua vida a nível pessoal?
Casimiro dos Santos: Eu acho que sou o resultado dessas experiências todas, de alguma maneira. Os meus gostos levaram-me a participar nas coisas, e as coisas também me influenciam a mim. As atividades em que participo de alguma maneira também me formam. Não sou só eu que, de alguma maneira, ao tomar a iniciativa de fazermos uma atividade, posso influenciar. Mas a própria atividade também me influencia e o convívio, a descoberta, tudo isso acaba por ter influência na nossa vida. Quer queiramos quer não, há também um retorno. Para nós, é de satisfação, mas não só de satisfação, também aprendemos, estamos sempre a aprender e com toda a gente.
P: Tenho aqui um conjunto de questões em torno da identidade e da Memória. Penso que, como historiador, também deve ter estas preocupações. A minha primeira pergunta era: costuma-se dizer que esta é uma região muito marcada pela indústria, que a Covilhã tem uma forte tradição operária. De que forma considera que este contexto marcou e marca o associativismo em geral?
Casimiro dos Santos: É como disse, os operários, não tendo outra alternativa para se cultivarem do ponto de vista da leitura, etc., e das atividades recreativas, que não existiam se eles não se associassem. E, portanto, este mundo gregário que aqui se desenvolve, a fábrica, leva-os ao longo do tempo a criarem associações, não só laborais mas também sindicais, de profissão, etc. Mas levam-nos também, na pertença ao bairro, à fábrica, a criar associações recreativas e de lazer e essa parte é extremamente importante. Eu acho que a própria cidade, ao ter toda esta multidão dos operários... quer dizer, a tradição gregária e de associação e associativismo, ela também já viria lá muito atrás. Já viria da Idade Média, com certeza, aqui na Covilhã acho que já vem da Idade Média, quando tínhamos algumas profissões por ruas, como sabemos, como se organizava a coisa, o mundo do trabalho medieval, há aí algumas ruas com nomes ligados mais à indústria de lanifícios, que ao longo das ribeiras... Isso já existe desde a Idade Média. No fundo há um crescimento quantitativo e qualitativo, depois, até chegarmos ao associativismo moderno, já com a revolução industrial. Estas associações, algumas nascem no início do século XX, quando a indústria daqui dá um pulo muito grande, não é? Muitas destas associações que estão aí começam no início do século, anos 20 e 30, por aí. Nos anos 30, muitas delas já existiam, mas elas continuam a ter uma vida.... Também era o único sítio onde os operários, enfim, se podiam libertar um pouco desta opressão da fábrica. Do mundo opressor que é o trabalho, com horários e regras rígidas. E as muitas horas passadas ali, no fim de semana, o domingo não era para ir à missa. No mundo operário não é isso, o mundo operário precisa de outras coisas menos, menos... estar a ouvir ainda a alienação da Igreja Católica, que só é capaz de dizer: sofrei, porque depois temos uma outra vida...
Com o tempo da taberna, e para os tirar do álcool da taberna. Porque a vida dos pobres era muito dura e por vezes não lhes dava futuro de dignidade. E alguma da dignidade é encontrada nestas associações, que tinham outros objetivos e onde não se cultivava o álcool.
O alcoolismo é uma pecha enorme no operariado, que não tinha uma... Isso era terrível. E isto, de alguma maneira, conseguiu retirá-los da taberna.
P: E acha que hoje em dia, já com todo o processo de desindustrialização, encerramento de várias empresas e também alguma transformação do tecido social, acha que essa memória ainda marca o movimento associativo? Essa memória, essa tradição operária?
Casimiro dos Santos: Ainda há algo. Ainda alguma dessa memória está viva. As associações de reformados e tal cultivam muito isso. Mas depois há outras associações que já estão mais viradas para o desporto e para a parte recreativa, etc. Mas continuam na mesma, desporto, jogos, etc. Continuam ainda a cumprir o seu papel. Embora a ligação tão direta ao operariado, à fábrica, já não é tão grande. Até porque as fábricas estão a desaparecer. A sociedade está-se a transformar, portanto, nós temos uma cidade de serviços. Já não é tão gregária, portanto, os trabalhadores estão muito mais… O mundo do trabalho está muito mais fragmentado e, portanto, esse gregarismo operário que existia aqui até à desindustrialização já não é tão grande. As associações vivem com muitas dificuldades, atenção. De alguma maneira, o declínio do gregarismo do mundo operário está-se a refletir no associativismo. O associativismo está a atravessar momentos maus. E, portanto, cultivando a Memória ainda se vai conseguindo alguma coisa, mas muito pouco. Há associações em crise.
P: Mas acha que as associações são um espaço privilegiado para a transmissão da Memória? Ou seja, os ativistas mais velhos passam este legado de anos de resistência?
Casimiro dos Santos: Eu não sei como é que vai ser o futuro, nem sei se a juventude estará muito recetiva, com o individualismo dominante. Há, entre a Juventude... hoje, os mais jovens não são tão gregários. A vida e leva-os a serem mais gregários na escola, mas depois, a partir de uma certa altura, com a fragmentação individualista, vá lá, eu vou dizer isto, do mundo do trabalho, da vida, eles acabam por não ser tão participativos e há direções que não se conseguem renovar com jovens. Isso é um dos problemas que está a encontrar-se aqui no momento associativo.
E isso é uma crise que se está a passar. Não sei qual será o futuro, mas não vejo muitos jovens nas direções atuais. Portanto, passar o testemunho dos maiores para os mais novos está a ser difícil em muitas associações.
P: Como é que vê, então, o futuro do movimento associativo?
Casimiro dos Santos: Não sei como é que vai ser, mas não o vejo muito risonho. Eu acho que estamos a passar uma crise, uma crise muito grande. Não sei como é que se vai ultrapassar essa crise. Mas nós somos seres sociais e eu estou convencido que se vão encontrar outras formas de fazer isso. Vou-lhe dar um exemplo: nós, lá na Casa do Povo, tínhamos uma banda, uma banda grande, tinha uns 30 ou 40 membros. E havia uma escola de música. A banda tinha fundado uma escola de música. A banda tem cento e tal anos. Esteve parada durante uns tempos, durante a ditadura, depois recomeçou nos anos sessenta. E há poucos anos, pela crise demográfica, porque naquela aldeia - já não nasce uma criança há vários anos, é uma freguesia que só tem gente idosa - muitos dos jovens, dos últimos jovens que lá estavam e que aprenderam música e a tocar um instrumento naquela escola, resolveram, uma vez que já não havia gente suficiente para manter uma banda de 30 elementos, eles formaram uma Street Band, 7 ou 8, muito interessados, pegaram em si próprios, discutiram o assunto e formaram uma street band. E hoje andam por aí, nas Festas, fazem animação de rua. Já não é a banda clássica, mas eles encontram uma forma de ultrapassar isso. Portanto, através da imaginação deles, eu assisti a algumas das reuniões que eles fizeram e vi como eles tiveram a imaginação suficiente para sobreviver e fazer sobreviver a ideia de música de outra forma. Portanto, mantêm-se. Muitas vezes à de encontrar-se, mas no meio disto tudo algumas vão acabar. Eu não sei, mas espero que haja imaginação para conseguir ultrapassar estas crises.
P: E o movimento sindical, especificamente nas questões da memória, por exemplo, aqui houve greves muito marcantes, a greve dos mil escudos, a greve de 1981, essa Memória permanece, ou seja, aqui no meio sindical continua-se a falar nisso, continua-se a contra essa história?
Casimiro dos Santos: Sim, sim, sim, sim, sim. Eu, para as minhas salas, tinha sempre um convidado, que era o Luís garra. Muitas vezes ia às minhas aulas contar a história da greve dos 1000 escudos. E isso, este testemunho, não é só no movimento sindical, mas na comunidade, e neste caso os sindicatos têm alguma coisa a contar também nas escolas, também depende dos professores, dos professores estarem mais ou menos sensibilizados para convidar gente do mundo do trabalho para ir lá falar do trabalho. Ou, até, os alunos irem à fábrica ou ao sindicato conversar com os dirigentes sindicais. Eu acho que isso é muito importante, até para dar um substrato, não só de Memória, mas afetivo e ideológico, ao movimento sindical. O movimento sindical não é só a luta de hoje, é também a luta de amanhã, a luta que é necessário travar amanhã e também tem a ver com as lutas do passado, não é? E é este encadear do tempo que nos projeta para frente. Eu acho que isso, os jovens, os trabalhadores mais novos, muitas vezes não conhecem, por exemplo, essa greve dos mil escudos. Ficam admirados. O quê? vocês fizeram uma greve e tiveram parados tanto tempo para atingir mil escudos? Conseguiram isso, o aumento dos mil escudos? E que é que isso deu como resultado? Ficam muito admirados porque não sabem que os avós deles não tinham frigorífico. E aqueles 1000 escudos permitiram comprar um frigorífico, dar uma dignidade básica à vida das pessoas, dos operários que tinham uma vida muito difícil, estavam sempre no limiar, no fio da navalha da sobrevivência. Aqui foi uma exploração terrível.
P: E para além dessa questão da Memória, a questão do internacionalismo. Acha que o
movimento sindical e iniciativas, por exemplo, como o primeiro de Maio, que são comemoradas à escala Internacional, os congressos nacionais e internacionais, acha que criam de facto assim, ao nível das bases, uma sensação de identidade entre os trabalhadores do país e à escala Internacional?
Casimiro dos Santos: Sim, sim, isso é fundamental. Se não houver esse apelo à Memória de há 100 anos atrás, essa identidade do primeiro de Maio, festejar o primeiro de Maio, isso é fundamental para manter essa identidade e ao mesmo tempo também projetá-la no futuro. Portanto, nós não somos só presente, nós somos o fruto de um movimento também. A sociedade que hoje existe, e eu penso que isso é muito importante, que se mantenha sempre, os congressos e nos Congressos apelar-se a esse culto da Memória, que é muito importante. Porque, muitas vezes, os trabalhadores mais jovens… Nós sabemos que a nossa disciplina de história leva muito pontapé nos programas, nos currículos, muitas vezes é chutada para ter cada vez menos tempo e tal. Portanto, isso não é feito por acaso e às vezes os jovens não saem da escola com as ideias mais ou menos esquematizadas do ponto de vista da evolução histórica humana. No fundo, que lhes permita compreender o mundo em que vivem. Eu acho que os sindicatos e toda esta festa que é o primeiro Maio, as comemorações do 25 de Abril, tudo isto fará, de alguma maneira, parte de uma formação geral, que é construção da Memória identitária de uma comunidade e de uma classe social, os trabalhadores. No fundo, eles acabam de alguma maneira por ir bebendo estas… a comemorar também se aprende e as comemorações têm esse objetivo. Países onde há pouca história, por exemplo, países novos como os Estados Unidos, eles vão buscar tudo, todos os bocadinhos da Memória, ainda que para nós não sejam assim muito significativos, para eles são, porque a identidade constrói-se com estes pedacinhos todos da memória coletiva. Isso é muito importante. Não se pode, não se pode deixar de comemorar essas datas importantes.