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'A realidade em preto e branco (ou era uma vez no clube Pinheiros...)'
O cartoon de Daniel Kondo ilustra uma mulher racializada a empurrar um carrinho de bebé, sendo que esta pode ser identificada como “babá” através das suas vestes brancas. O seu uniforme confunde-se com a cor da parede, tornando o seu corpo invisível, em contraste com o carrinho e o próprio bebé, que se destacam no meio da imensidão branca da imagem. Este cartoon acompanha a notícia do jornal BBC News Brasil que, em junho de 2015, publicou uma reportagem sobre a opinião das “babás” acerca da utilização de uniforme branco na sua profissão. Apesar de atualmente o debate parecer ter cessado, este é ainda um tema presente na vida de muitas “babás”. No seio das trabalhadoras, várias afirmam que a utilização de uniforme é algo “natural”, que faz parte da sua profissão. Em oposição, outras defendem que este é um elemento de distinção social que perpetua um discurso discriminatório. O próprio branco do uniforme, apesar de associado à ideia de pureza e higiene, evidencia a sujidade na roupa, humilhando quem é obrigado a usá-la, enquanto invisibiliza a sua individualidade. Mais que uma peça de roupa, “o uniforme deixa claro que você é serviçal. Serviçal é serviçal. Patrão é patrão. A roupa nos marca”, tal como afirma Silvana Félix ao BBC News Brasil. (item concebido por Joana Santos Baptista) -
"A criada penteia a sua senhora"
Imagem gentilmente disponibilizada pelo Arquivo Fotográfico de Lisboa. No seu acervo, esta imagem está disponível com o código de referência: PT/AMLSB/CMLSBAH/PCSP/004/JBN/002275 -
"A gente chamava-lhe os burgueses" - Entrevista a Rosa Maria
Rosa Maria: Eu nasci em Marinhais, na freguesia de Marinhais, concelho de Salvaterra de Magos. Vivíamos lá todos e eu nasci a 2 de Abril de 1938. Éramos quatro. Eu era a mais nova deles todos. Quer dizer, era a mais nova porque, quando eu tinha 11 anos, a minha mãe teve outro, mas nasceu morto. Por isso fui sempre a mais nova. Éramos três raparigas e um rapaz. Tinha a mais velha com 20 anos e eu tinha 13. Depois a minha mãe morreu e nós ficámos com o meu pai. P: E em pequena, na sua aldeia, o que é que os seus pais faziam? Rosa Maria: Trabalhavam no campo. Os dois. A minha mãe trabalhava no arroz, nas vinhas e aquilo tudo. O meu pai ia para a madeira que era para cortar madeira. Andava por lá uns 15 dias e depois vinha a casa que era para trazer qualquer coisita, porque apanhavam poucochinho. Apanhavam 10$00 por dia. Às vezes não havia dinheiro para comer e então quem ajudava a gente eram os meus avós, que viviam perto e tinham um bocado de terra. E a minha mãe por vezes também semeava batatas…era uma fazenda. P: E a casa, lembra-se como era? Rosa Maria: Oh filha, a casa era feita de…naquela altura chamava-se adobe, feita com barro. Era feita com barro e depois eram caiadas. Aquilo era tudo caiadinho. O chão era de barro e depois alisava-se. Aí até aos 12 anos, a gente dormia numa esteira que era no chão. Usavam-se aquelas esteiras que agora já não se vêem muito. Punha-se uma manta por cima, outra por baixo, e era assim que a gente dormia. P: Passava-se um bocadinho de frio… Rosa Maria: Dormíamos os quatro juntinhos que era para não termos frio. E depois, para lavar a roupa, a minha mãe, no inverno, lavava a roupa que era para enxugar à lareira. A gente quando ia vestir a roupa cheirava a fumo… (risos) Mas, como éramos miúdos, a gente queria era ter a roupa lavada…cheirasse a fumo ou não cheirasse. Entretanto, as coisas foram-se modernizando e depois a gente já estava melhor. P: Na sua aldeia todos viviam assim? Rosa Maria: Havia muita gente a passar necessidades, mas também havia alguns que viviam bem, que a gente chamava-lhe os burgueses, que eram os ricos, esses viviam bem. Agora a classe pobre era aquela que passava mais miséria. P: Quantos burgueses é que lá havia? Rosa Maria: Ai havia…eram aqueles que tinham aqueles terrenos. Tinham os terrenos de vinha, terrenos de arroz e andávamos a trabalhar para eles. Eu também trabalhei muito no campo. (e foi à escola?) A minha escola foi aos 9 anos ir trabalhar. Aos 7 anos ia para casa das minhas tias tomar conta dos meus primos…depois aos 9 anos comecei a trabalhar no campo. Íamos para o arroz e fazer outros trabalhos. (Nem os seus irmãos foram à escola?) O meu irmão foi. Agora as minhas irmãs, não. Não, porque antigamente eles diziam que as filhas das mulheres não precisavam ir para a escola, porque elas depois queriam era aprender a ler para escrever cartas para os rapazes. Era o que diziam. A nossa escola era o trabalho. P: E o trabalho era longe de casa? Ganhava alguma coisa? Rosa Maria: Ganhava 10$00 por dia. Era longe. Às vezes estávamos 15 dias sem ir a casa. Depois, as pessoas ficavam num barracão grande, a nossa cama era palha. Tínhamos a palha. A gente punha uma manta por baixo e outra por cima que era para termos mais manta e a gente não ter frio. Para a gente se tapar. A gente cada um tinha a sua, a gente chamava-lhe “camaradas” (camaratas) e depois para fazer o comer era assim em conjunto. Juntávamo-nos assim uns 3 ou 4, juntávamos todo o farnel que levávamos e depois assim é que a gente fazia as refeições. Comi muita couvinha com batatas sem nunca ferver. Chovia, a lenha estava molhada. A gente só tinha uma hora para almoço, de maneira que a gente às vezes começava a chover e tínhamos que comer umas coisinhas no barro…era quase sempre a mesma coisa…até se comia mais vezes do que a gente come agora…eh,…a gente começava a trabalhar ao nascer do sol, mas já tínhamos bebido o café, que era um bocado de café e um bocado de pão…e era até as sopas do café que a gente comia. Depois íamos trabalhar até às dez e meia… Às dez e meia íamos almoçar as tais couves com batatas, com pão, um bocadinho de toucinho, aquele toucinho já amarelo…e era o que a gente comia. Depois era o jantar, que agora chamam-lhe a merenda, o lanche, vá lá. E então era ao jantar que a gente comia batatas cozidas com sardinhas daquelas amarelas sem cabeça, porque era uma sardinha para dois. Era uma sardinha partida para dois e depois era à noite que a gente chamava-lhe a ceia. A ceia que era outra vez a sopa. E era assim que a gente aguentava. Levávamos o pão de milho ao princípio da semana e íamos comendo. P: E chegavam de carroça ou como é que era? Rosa Maria: De carroça? A pé!... Não sei se conhece a minha terra, que é no Ribatejo…Em Salvaterra de Magos. A gente vinha para Samora Correia…a pé…à segunda-feira. A pé para Samora Correia. E depois voltávamos e vínhamos também a pé para casa. Depois mais tarde é que começou a haver esses cavalos… P: Tinham roupa, calçado? Rosa Maria: Nada! A minha mãe que Deus tem morreu quando eu tinha 13 anos. Morreu cá em Lisboa. Eu para vir ao funeral da minha mãe tive que trazer uns sapatos de uma tia minha, que eu até nunca tinha tido sapatos. Pronto, às vezes a sola dos nossos pés parecia cortiça, a gente andava sempre descalços, no frio, no gelo… P: E como eram os tempos de descanso, lembra-se? Rosa Maria: A gente chegava ao sábado a casa, depois comíamos qualquer coisa e íamos trabalhar para a fazenda. E depois ao domingo levantávamo-nos de manhã e íamos para a fazenda até ao meio-dia. Ao meio-dia almoçávamos. E depois é que íamos lavar a roupa e pronto para depois vestirmos novamente e termos roupa para segunda-feira…que a gente em geral só tinha uma lavagem de roupa. P: E não havia bailaricos? Rosa Maria: Não, havia. Isso aos bailaricos a gente ia sempre aos bailaricos (risos)…eu cheguei a ir para o baile, lavar a roupa e depois ir trabalhar. (onde era?) Era lá… aquilo não tinha um sítio certo. Por exemplo, havia lá um senhor que tocava acordeão e ele tinha assim uma casa de comércio e depois ele fazia lá o baile. As raparigas, ao domingo, iam lavar a roupa, mas depois íamos à Praça, à nossa Praça que era onde se juntavam as raparigas e os rapazes…e homens, e mulheres, que queria arranjar trabalho. Ia um capataz e uma capataza. O capataz dava ordem à capataza para ir buscar tantas mulheres. E ele ia falar aos homens. Depois íamos trabalhar. A gente depois sabia onde era o baile e combinávamos umas com as outras. A gente ia e quando chegava a casa o meu pai já estava assim…. coiso (faz o gesto com o polegar simbolizando alguém que já estava alcoolizado) e depois a gente pedia se o meu pai deixava ir a gente ao baile e ele dizia: “Não, hoje não vai ninguém ao baile…” “Oh pai, deixe lá ir…” -“Então vocês vão mas vai o Toino (o irmão) com vocês.” Mas à meia-noite quero-vos aqui em casa, que o baile começava assim às nove e meia. “Tá bem”. Mas a gente chegava assim às 5, 6 horas da manhã. P: Então era até tarde… Rosa Maria: E de outras vezes, era ele que vinha com a gente. Mas ele começava e os outros a puxarem por ele “Vai mais uma pinguita?” E via o meu pai assim borracho e a gente já sabia que podia ficar até à hora que quisesse. Mas era tudo com respeito. Eu acho, a meu ver, que era tudo com respeito, os rapazes e as raparigas. Depois abriram um cinema. No cinema davam o filme e depois no fim era o baile. A gente pagava 5$00, depois íamos ver o cinema e depois era o baile. O cinema desarmava, a gente ajudava a desarmar a plateia, tirávamos as cadeiras e depois era baile até às quinhentas. (e lembra-se dos filmes que ia lá ver?) Olhe, eu não me lembro…Um que eu achei muita piada chamava-se “Em casa manda ela”. Depois vi foi uns filmes portugueses, que levavam lá os filmes portugueses para a gente ver. Da época, era “Sol e Toiros”; “O sol no Ribatejo”, “O Costa do Castelo”. Todos esses passavam lá no cinema. E antes de haver o cinema, iam lá aquelas barracas como o circo, e passavam lá os filmes também. Eu, a primeira vez que fui ao cinema ainda a minha mãe que Deus tem era viva, ia descalça. E então, para eu entrar no cinema, a minha mãe tinha um xaile. E então ela tapou-me com o xaile e entrei assim com ela no xaile para ver o cinema porque eu não tinha idade para ver o filme. Foi as “Capas Negras”. Nunca mais me esqueceu. Das capas negras…Iam todos, naquela altura parece que pagavam 25 tostões por pessoa, parece que era, mas os miúdos não pagavam. P: E era difícil com o seu pai quando bebia? Rosa Maria: Sim, era, porque ela (a mãe) se calava e ele batia-lhe porque ela o dava ao desprezo. Se ele falava e ela dizia alguma coisa ele batia-lhe porque ela não o dava ao respeito. Faltava-lhe ao respeito e ela coitadinha…e depois com a minha irmã mais velha também era a mesma coisa… (vai baixando a voz até ficar inaudível). P: E falou, há pouco, numa capataza e num capataz… Rosa Maria: Era, portanto, era os que mandavam. Os patrões arranjavam aqueles homens e aquela mulher. O capataz era para falar aos homens. A capataza era para falar às mulheres. A gente ia trabalhar e a capataza dizia: “Amanhã de manhã, quando chegarem ao trabalho, vocês vão para aqui e vocês vão para acolá. Depois ela é que ia mandar na gente.” P: E mandava todo o dia? Rosa Maria: Todo o dia. Toda a semana. P: E ralhava? Rosa Maria: Ai pois não! Ai não que não ralhava!...Eu uma vez andava a cavar terra para arroz e estava dentro d’água e por mandar a enxada e a água salpicar para cima de uma colega minha, ela andava à minha frente e quase me queriam mandar embora. (e não lhe queria pagar?) Não, não era questão de pagar. Naquela altura era assim. As pessoas, por tudo e por nada, falavam e diziam que nós não prestávamos para trabalhar. (e não podiam responder?) Não, a gente não podia dizer nadinha. Se a gente dissesse alguma coisa, naquela semana ainda chegávamos ao fim, mas depois para aquele patrão a gente nunca mais trabalhava. P: Então andou nessa vida de trabalhar no campo… Rosa Maria: Desde os 9 até aos 18. Ainda não tinha bem 18 anos. (então dava para sustentar a família…) Não dava muito bem, filha…Porque quando o meu pai me pôs fora de casa, porque o meu pai pôs-me fora de casa…eh…eu tinha andado a trabalhar sozinha porque nessa altura o meu pai não tinha trabalho…e eu andei a trabalhar toda a semana a apanhar vides, sabe, nas vinhas, e então naquela altura cai o gelo, era inverno, e o frio era tanto que eu já não sentia as mãos…o capataz fazia uma fogueira para a gente se vir aquecer e eu nunca fui à fogueira…e eu fazia assim nas costas para as mãos aquecerem (faz o gesto de esfregar no corpo)…e então cheguei a casa ao sábado…10$00 por dia…60$00. E o meu pai foi para a taberna, uma taberna lá perto de minha casa, e o vizinho pediu-lhe se ele não tinha 50$00 para lhe emprestar. O meu pai dá-lhe os 50$00 a ele…e…ficou com 10$00 e gastou na taberna. Depois, a minha irmã pediu-me dinheiro para ir à mercearia, a gente lá não era a mercearia, era a loja…as lojas vendiam tudo, vendiam roupas, vendiam tudo. E eu disse, “Oh pai, dê-me lá dinheiro para a gente ir buscar…. o bacalhau e aquelas coisas que é para levar segunda-feira para o trabalho”. E ele disse “Ah, não tenho dinheiro…. Compra fiado.” Depois eu disse: “Então o que é que o pai fez ao dinheiro?” Ele tinha lá o dinheirinho todo! Aquilo ali a gente não podia mexer nada onde ele estava. Ele não me dava nenhum. Aquilo quando chegava ao fim-de-semana eu tinha que lho entregar. Ele a mim dava-me 2 tostões que era para eu comprar tremoços. Era o dinheiro que eu tinha por trabalhar. Era esse. “E então o que é que você fez ao dinheiro?”, perguntei ao meu pai. - “Ah, emprestei ali 50$00 ao rapaz. Emprestei ali ao C.”. - “Então pai, eu andei a trabalhar, vocês estiveram em casa e você foi dar o meu dinheiro, que eu ganhei, ao C.? Ele nunca mais lhe paga esse dinheiro. E agora o que é que eu compro? Então não vou trabalhar.” Ele deu-me uma tareia muito grande, mas eu refilei sempre. E depois eu disse: “Se você não me quer em casa diga-me que eu vou-me embora. Porque eu andar a trabalhar para você andar a beber copos, não. Está frio, e muitas vezes não há comida, chegar aqui com o dinheiro e você dá-lo a outro?...” Depois ele disse à minha irmã, “Pega nessa enxada e nesse xaile que está aí e vai levá-la à tua irmã.” A minha irmã já estava casada. Fui para casa da minha irmã. Inda demorava meia-horita a pé. Depois fiquei a viver com ela. Fiquei lá pouco tempo. Eu tinha que ganhar para comer e para me vestir e para me calçar. Só que depois a outra minha irmã casou e foi uma senhora que foi ao casamento da minha irmã, que era aqui perto (no Bairro Alto) e era prima do noivo. E estavam assim a falar: “Olha, se quiseres para ir para servir eu levo-te.” P: Antes de me contar como foi quando chegou a Lisboa, diga-me só como era para saber o que se passava no mundo…tinham rádio? Falavam sobre alguma coisa? Rosa Maria: A gente não sabia de nada…A gente não sabia nada! Só quem tinha rádio eram os ricos, a gente não tinha nada…nada de nada…agente ouvia falar de Lisboa porque havia pessoas que estavam cá e iam lá à terra e a gente depois é que ouvia alguma coisa, mas de governos eu nunca ouvi falar em nada. Só ouvi uma vez falar…o meu pai até foi preso, em Salvaterra, na GNR… que era não sei quê do Norton de Matos e depois o meu pai estava assim mais um grupo a falar e a gente chamava-lhe a camioneta preta. E veio a camioneta preta e levou-os …porque eles não queriam…estavam a fazer uma reunião, não sei quê, porque a gente não ouvia falar de nada. (mas tinham algum medo? Sabiam que não podiam falar de algumas coisas?) A gente não sabia de nada, filha! A gente não sabia se podia falar, a gente não ouvia dizer nada!...os outros é que sabiam, quem era os ricos é que sabia! O meu pai, naquele dia, estavam a falar…por causa de…devia ser por causa do Norton de Matos e qualquer coisa…e depois levaram-nos presos, porque a gente não sabia de nada. Eu só quando vim para Lisboa é que comecei a ouvir falar! Porque a gente ouvia falar no Salazar, não sei quê, mas a gente não sabia quem era o Salazar… P: Havia comboio por ali? Rosa Maria: Havia…havia uma estação perto. Agora já não há, mas havia comboios de…3 vezes por dia, ou 4… P: E quando havia doenças, iam ao Posto Médico? Rosa Maria: Havia posto médico aonde? Não havia posto médico em lado nenhum. Havia um médico que estava lá…quando havia qualquer coisa a gente ia lá. Pagava-se 15$00 por tudo. A primeira vez que fui ao médico tinha 18 anos (risos)… Havia farmácia, não é? havia essas coisas, mas o médico que era o Sr. G. era assim parecido, deixa lá ver… com o filho do Vítor Mendes, o Fernando Mendes…era muito gordo. Assim era aquele médico. E esse era o único que lá havia. Quando havia alguma coisa íamos chamá-lo a casa e ele lá ia no burro. P: E à missa? Não era costume? Rosa Maria: O meu pai não deixava a gente ir à missa. Só deixava ir ao dia de Natal e ao dia de Páscoa…de resto…não havia missa para ninguém. A missa era trabalhar na fazenda. O tempo que a gente tinha para ir à missa andávamos a trabalhar na fazenda. Não havia nada dessas coisas…. embora tivesse casado pela igreja e embora tivesse sido baptizado não era pessoa para… P: Então agora vamos falar da sua vinda para Lisboa… Rosa Maria: Havia uma senhora que morava aqui perto e que era de lá e a gente estava assim a falar e ela perguntou se eu queria vir para Lisboa servir. E eu perguntei à minha irmã mais velha, e disse “A ti Custódia disse que há lá uma senhora que queria uma criada…estás a ver, eu aqui não ganho nada de jeito…e eu vou, sempre ao fim do mês tenho aquele dinheirinho. São sempre 150$00…, mas como eu só ainda tinha 18 anos, o meu pai não me queria deixar…não me queria dar autorização. Porque eu só era maior aos 21. E ele disse, “Agora vais para Lisboa!… vais, mas é para casa porque agora a tua irmã casou-se e vais para casa para tomares conta do teu irmão.” E eu disse: “Eu para casa não vou. Nem que você me mate. Nem que você me mate eu vou para casa. E é agora mesmo. Vou para Lisboa.” E ele disse: “Eu vou buscar a Guarda (GNR).” “Vai buscar a Guarda e eu digo que o pai me pôs fora de casa.” E então o meu pai correu atrás de mim com uma enxada para me matar…e depois como eu refilei sempre foi quando ele me mandou para casa da mana. Por isso eu disse, “Eu não vou para casa” (em tom afirmativo) “Eu vou para Lisboa.” E depois vim. P: Veio sozinha? Rosa Maria: Vim com aquela senhora porque a irmã dela morava lá ao pé de mim. Era só quem eu conhecia, não conhecia mais ninguém. Não conhecia uma letra. Não conhecia ninguém, só conhecia aquela mulher. E daqui fui para o Bairro do Restelo. P: Chegou a Lisboa de comboio? Rosa Maria: Sim, vim de comboio até ao Rossio. Vim com aquela senhora. Dormi em casa dela e depois, no outro dia, ela foi-me levar à senhora onde eu ia servir que era professora primária. Era aqui na Calçada do Combro que a senhora era empregada doméstica. Depois ela levou-me e eu fui para a casa do Restelo. Cheguei lá, vinda da cidade, vinda da província, sempre trabalhei no campo, não sabia uma letra do tamanho de mim, não conhecia ninguém, não conhecia nada, entrar numa casa estranha, com 3 miúdos, ela professora, mas neurótica…os miúdos terríveis que eu tinha as minhas canelas todas pretas dos pontapés que eles me davam…chorei uma semana inteira, de dia e de noite. O meu quarto era numa arrecadação. Era um quarto de tamanho normal, não era muito grande, mas tinha o meu divã, tinha o sítio onde eu pus a minha malita da roupa, que eu trazia duas ordens de roupa (risos), não tinha mais nada… Tinha uma casita de banho para mim que era a sanita e o lavatório. P: O seu quarto ficava dentro da casa? Rosa Maria: Ficava, daquelas casinhas do Bairro do Restelo que era rés-do-chão e 1º andar. P: E não havia mais ninguém a servir? Rosa Maria: Não, era só eu. Eu tinha que limpar a casa, tinha que tomar conta dos miúdos e fazer o comer. Levantava-me às 6 da manhã…ainda não havia máquinas de lavar a roupa nem nada, e o tanque estava no quintal… P: E quando chegou a Lisboa, do que é que gostou? Andou a passear? Rosa Maria: Oh, não, naquela altura não. Porque eu já cá tinha vindo ao funeral da minha mãe. A minha mãe morreu aqui em São José e eu vim cá ao Alto de São João. Quer dizer, eu quando fui para o Bairro do Restelo, aquilo não era como está agora, aquilo ainda era muito campo. Agora é que está tudo cheio de casas. Ainda havia ali muitos campos, por isso eu ali ainda estava…mais ou menos…a casa tinha um quintal grande, eles tinham lá uma enxada e obrigavam-me a ir lá cavar o quintal, plantar couves, plantar alfaces, quer dizer, fazer a horta! Eu fazia horta. (Isso sabia bem, não era?) Pois, não me sabia bem era levantar-me às 6 da manhã no inverno para estar ali ao frio! P: E quando começou, ensinaram-lhe algumas regras? Rosa Maria: Sim, a senhora disse-me o que eu tinha para fazer, a que horas é que tinha que me levantar, e depois só me deitava quando acabava o serviço. À noite é que passava a ferro…às vezes era uma hora da manhã e eu ainda estava a pé. Depois de manhã dava-lhe o pequeno-almoço e ele ia para o escritório, e ela depois saía para a escola e eu ficava com os miúdos. Mas os miúdos eram muita’ maus. Eu fechava-lhes a porta à chave, aquilo era rés-do-chão e primeiro andar, e eles saltavam-me pela janela…eu ia a correr atrás deles até à praia de Algés… P: E eles eram de que idade? Rosa Maria: Quando eu lá cheguei tinha o mais velho que tinha 6, depois o outro tinha 4, e depois o outro tinha 3. Eram assim todos seguidinhos. Entretanto, a miúda foi para a escola e eu queria vir-me embora, ficava lá sozinha. Um dia a patroa chegou lá a casa e eu disse: “Eu quero ir-me embora.” – “Ah, não te vais embora nada, não te vais embora nada…eu vou dizer à D. Custódia. Tu não te vais embora.” E eu disse: “Quero-me ir embora.” Porque lá ao pé estavam uns vizinhos que eram da minha terra e eu, entretanto, puxei conversa com a criada dele. Porque esse senhor conhecia o meu avô. P: Porque tinha muito serviço? Rosa Maria: Pois…era a cozinheira da casa, era a empregada de limpeza…Chamava-se naquela altura “criada para todo o serviço”. Pois…(risos) P: E disse que a patroa era um bocadinho “neurótica”… Não lhe ensinou a fazer as coisas, ou ainda tentou ensinar? Rosa Maria: Ela não sabia fazer nada!...Ela, a primeira vez, quando se casou, que foi fazer o comer, pôs um quilo de arroz dentro de um tacho pequenino, e então ela disse-me “Olha, quando fores fazer arroz não ponhas num tacho pequeno que eu uma vez fui fazer arroz e o arroz não coube lá dentro”. Claro, aquilo não cabia lá… P: E servia à mesa? Rosa Maria: Ah, para servir à mesa tinha de ser de bata preta, aventalinho branco e a touca para a cabeça também era branca e o punho branco. (Em que dias vestia a farda?) Era só quando eles recebiam …e era tão ricos ou tão pobres que me pagavam ao fim do mês, recebiam e pagavam-me, e quando estávamos a chegar ali ao fim do mês, já me estavam a pedir o ordenado (silêncio prolongado). (Pagavam-me 150$00, mas quando era ali para o dia 20 e pouco já me estavam a pedir o ordenado. Depois, ao fim do mês pagavam-me o que me deviam e pagavam-me o ordenado e depois no mês seguinte já me estavam outra vez a pedir o dinheiro. Depois um dia eu disse: Já não quero estar mais nesta casa que eu não estou para aturar malucos. Quer dizer, eu vim da terra que era para não aturar o meu pai que era bêbado e agora vim para aqui aturar uma maluca, por isso vou-me embora. E eles: “Não vais e não vais e não vais”, que ela não queria que eu me fosse dali embora. Eu, entretanto, telefonei para esta senhora e disse: “Oh Custódia, eu quero ir-me embora porque se passou isto assim e assim.” (Tinha-se passado alguma coisa?) “a patroa atirou-me com uma faca e eu não quero cá ficar. Eu quero ir-me embora.” - “E agora como é que a gente vai fazer para tu te ires embora?”- “Eu arranjo, não te preocupes que eu arranjo uma maneira de eu me ir embora.” Quando ela chegou eu estava a chorar: “Que é que tens?” “Eu tenho que ir para a terra.” “Tens que ir para a terra porquê?” “Tenho a minha avó muito mal e eu tenho que ir para a terra para tomar conta dela, que as minhas irmãs não podem ir nestes dias.” Então, e quanto tempo é que lá vais estar? “Vou lá estar até a minha avó estar melhor. Se quiser telefonar para a Custódia, pode telefonar-lhe para saber.” Claro que eu já tinha combinado com a Custódia. E eu então vim. Vim, mas não trouxe outra coisa para além da roupa que tinha e mais uma ordenha de roupa que ela não me deixou trazer mais nada de meu. Eu cheguei aqui e já esta senhora tinha outra casa para eu ir servir. Depois fui servir para casa de outra professora. P: Então nessa primeira casa tratavam-na mal? Não tinha ligação aos miúdos? Rosa Maria: Não, eu dos miúdos gostava muito. A miúda era muito minha amiga. (ficava com eles a maior parte do tempo ….). Era o dia inteiro. (E eles consigo não tinham essa ligação?) Os rapazes não, mas a miúda era mais velha e era muito minha amiga. Ela às vezes dizia: não ralhes com a Maria que ela chora. P: E contava-lhes coisas? Rosa Maria: Pois, começava-lhes a contar histórias. Inventava-as, e depois cantava aquelas cantigas que havia lá na terra. A lagarto pintado/quem te pintou/Foi uma velha/que aqui passou/depois no tempo da eira/fazia poeira/e depois eu puxava-lhes uma orelha e depois dizia: Puxa lagarto/Por essa orelha!... Sentavam-se ali ao pé de mim e depois estava ali um bocadito, depois fartavam-se… P: E sem ser essa vez violenta com a faca, que contou, o patrão também ralhava? Rosa Maria: O Patrão não. O patrão só ralhou comigo uma vez porque eu bati no filho. E ele não gostou. Ele chamou e perguntou: “Então Maria, tu bateste ao Pedrinho?” “Bati, sim senhor” “Então porquê?” “Olhe, está a ver como eu tenho as minhas canelas?” “Então o que é isso?” “Então pergunte lá aos meninos”. “Então é por causa disso?” “Pois é, eles dão-me pontapés e eu dei-lhe um estalo. Mas por causa disso eu vou-me embora”. E ele disse: Pronto, pronto, pronto…caso contado está meio perdoado.” (começa-se a rir…) Mas depois aconteceram aquelas coisas todas e eu resolvi ir-me embora. P: Quanto tempo é que ainda esteve nessa primeira casa? Rosa Maria: Seis meses. (E tinha folgas?) Tinha de 15 em 15 dias. Ao domingo, depois de fazer e dar o almoço, a gente tinha que deixar tudo arrumado e depois vinha aqui (Bairro Alto) a casa desta senhora. Eu, lá no Bairro do Restelo, tinha que apanhar o eléctrico. Podia apanhar para o Cais do Sodré. No princípio não sabia e apanhei o eléctrico até Santos. Vim de Santos a pé até à Igreja de Santa Catarina… Conhece? Fica aqui ao pé da Calçada do Combro. Ao pé da Igreja de Santa Catarina apanhei um táxi até à travessa…(começa a rir-se…) Quer dizer, estava a 5 minutos da casa da senhora, apanhei um táxi (ri a gargalhada solta) e o homem diz-me assim: “Onde é que você quer ir?” “Para a travessa…(?)” “E você sabe onde é que fica?” “Eu não! Se soubesse não me estava a meter de dentro do táxi.” “Olhe, não sei que voltas é que o homem andou a dar que eu paguei 7$50…(ri-se em silêncio)….Uma vez já tinha ido até ali porque ela trabalhava ali na Escola 22. Eu sabia ir até à Igreja de Santa Catarina, mas para aqui é que eu não era capaz de vir!... P: E lá no Restelo? Saía de vez em quando, por exemplo, para ir às compras? Rosa Maria: Ah, para ir às compras saía muitas vezes. Às 7 horas da manhã ia buscar o pão e o leite. E depois quando era assim outras coisas era eu que ia comprar. Ia à Praça de Algés… Onde ela me mandava ir comprar é que eu lhe comprava. Aos domingos, juntávamo-nos ali 4 raparigas, porque éramos ali todas da minha terra; éramos todas vizinhas, ali pertinho umas das outras. E então juntávamos ali todas na casa daquela senhora. Naquela altura foi quando apareceu a televisão. Ninguém tinha televisão. Mas ela tinha porque o…cunhado dela era da Pide (diz em tom de sussurro). E então ele tinha televisão. E então a gente ia para ali. Naquela altura davam aquelas músicas, aquele folclore, e a gente fazia um baile em casa da senhora.(ri-se) Ela gostava porque a casa ficava com muita gente e ela também tinha uma menina pequenina, a gente trazia-lhe um pacotinho de bolachas de baunilha que naquela altura custava 15 tostões…e ficávamos ali a dançar toda a tarde. Chegava a hora de a gente se ir embora, porque a gente tinha hora certa para entrar em casa…Às 7 horas tínhamos que estar em casa, fosse Verão, fosse Inverno, às 7 tinha que estar em casa para dar o jantar… P: As suas amizades eram essas raparigas com quem se encontrava… Rosa Maria: Era, era…(Não foi conhecendo outras pessoas?) Quer dizer, havia aquelas pessoas a quem eu dizia sempre “bom dia”, “boa tarde”… a padeira, eu conhecia a padeira. Conhecia o leiteiro, conhecia a peixeira onde ia buscar o peixe, essas coisas sim…, mas assim outras, ou outras criadas, mesmo assim nunca falei muito com elas! (Não? Nunca se encontravam para dizer mal dos patrões?) (ri-se): “Só dizia mal dos patrões aqui! (Bairro Alto) Aqui é que a gente contava, porque ela perguntava: “Então? Estás contente?” e eu dizia: “Eu não estou contente, eu quero vir-me embora.” Depois vim-me embora daquela porque ela arranjou-me para uma outra professora que vivia aqui na Calçada do Combro. Trabalhavam as duas pessoas na mesma Escola. Ora eu dizia assim para a D. Custódia: “Olhe lá, então se a D. Luísa está lá a trabalhar na mesma escola que a minha patroa, como é que a gente faz?” E depois se eu me encontro com ela? E ela assim: “Não te incomodes que não te vais encontrar com ela.” Então para lá fui, para aquela professora…já de idade. Também era má! O raio que a parta! Mas tinha um marido que era reformado. Era tenente, mas era reformado. Ali gostava de estar. Era um prédio que era de um professor… como é que se diz, aqueles professores mais altos..(universitário?) naquele tempo não lhe chamavam assim…(catedrático?) Isso mesmo, que era o Dr. A.... A casa era dele. Ele morava no 1º andar, e a gente morava no rés-do-chão. Como ele tinha muitas criadas, e havia também uma senhora que também tinha uma criada, depois a gente começou-se a dar bem ali umas com as outras. O Srº Dr. tinha a governanta, tinha a criada de quarto, a de mesa e tinha a cozinheira. Foi para aí que fui servir, para uma professora que morava no rés-do-chão. Estive lá dois anos e tal. Um dia, era na altura das sementeiras, fui para lá semear a terra…. e um dia chateou-se comigo e bateu-me! E eu não gostava. P: E porque é que ela se chateou consigo? Rosa Maria: Olhe já não me lembro bem o que é que foi. Sei que foi qualquer coisa que ela me disse e eu respondi-lhe. Isto as patroas não gostavam que a gente respondesse. Eles diziam aquilo que queriam e a gente tinha que ficar muito caladinhas. A gente tinha cá poucochinho, não podia falar… Eu sei que estava a lavar roupa, mas já não sei porque foi. E ela dá-me um estalo. E eu não gostei. “Que é isso?... A Senhora bateu-me?...” (silêncio prolongado). “Posso-lhe dizer uma coisa: a Senhora não leva também, não é que eu tenha medo de si. É por respeito. Porque a senhora tem idade de ser minha avó. Porque a minha avó nunca me bateu. E a senhora bateu-me. Então agora vou-me embora.” Agarrou-se a mim a chorar, a pedir-me desculpa, para eu não me ir embora…o sr. Tenente não estava lá. Mas o Sr. Tenente era uma pessoa que gostava muito de mim e eu gostava muito dele. Depois quando ele veio, lá me pediu, pediu…e fiquei ainda lá mais uns tempos. P: Mas para lhe bater…para chegar a esse ponto…era costume? Rosa Maria: Ela era um bocado fera. Ela tinha tido lá uma criada que tinha vindo de Viseu e veio para ali e sujeitou-se a muito. Batia-lhe muitas vezes. P: Havia muitas regras? Rosa Maria: À sexta e ao sábado eu já sabia que tinha que fazer limpeza à casa. Sexta tinha os quartos e a sala e ao sábado era a cozinha. Depois ao Domingo tinha a roupa e tinha de a pôr a serenar, a lavar…terça era para lavar a roupa e à quarta e à quinta era para passar a ferro. E era ir às compras e fazer o comer… P: E gostava? Rosa Maria: (risos) Então, havia certas coisas que eu gostava. Mas havia outras que não. Por exemplo, levantava-me às seis e meia da manhã, ou às seis, e ia lavar a roupa para o quintal. Isso custava-me muito, que eu lá na minha terra, embora a gente também lavasse a roupa ao pé do poço, tínhamos uma barraquinha para estar resguardada do frio. Ali não tínhamos nada disso. P: E para se levantar às seis e meia tinha um relógio seu? Rosa Maria: Era, tinha um despertador ao pé de mim. (na sua casa havia campainhas para chamar?) Não, não, não… Quem tinha as campainhas eram aquelas pessoas mais sofisticadas, mais ricas. Essas é que tinham as campainhas. Aquela não. Estavam na sala, na mesa e gritavam “Oh Maria!...Vê lá isto…” “Oh Maria!...traz aquilo!” P: E tinha direito à sua privacidade? Rosa Maria: Naquela já tinha o meu quarto. A casa de banho é não tinha banheira. Era tudo num alguidar e a gente tomava banho na casa-de-banho dos senhores. Agora na outra, não me deixavam tomar banho na banheira. Tinha que me lavar na tal casa-de-banho que eu tinha, pequena, só o lavatório e a sanita. Ali é que eu me lavava. P: E podia, de vez em quando, ir descansar um bocadinho para o seu quarto? Rosa Maria: (Faz um riso de incredulidade com a pergunta que lhe coloquei) (Continua a rir)…Havia sempre que fazer, nunca tinha tempo para descansar, não…Depois a seguir àquela que me bateu, aí já tinha mais um bocadinho. E, aí, à noite, já ía para o pé… ela não tinha televisão, mas tinha um rádio. No fim do jantar, ela e o marido iam jogar às cartas, e eu podia-me sentar ao pé deles a fazer croché. Foi na segunda casa onde eu estive. Era ao serão. Aí já podia estar enquanto eles estavam a jogar às cartas. Ouvia rádio e fazia croché… P: Como era para cozinhar? Rosa Maria: A gente é que tinha que o buscar todo. O petróleo tinha que se comprar ao litro…aquilo era avulso, não é como agora…havia as carvoarias que vendiam o carvão, o petróleo e aquela coisa toda. Naquela altura não se fazia grandes compras. Tinha que se comprar ao dia-a-dia conforme o dinheiro chegava. Se chegava para comprar um litro, comprava-se um litro, se não chegava comprava-se só meio litro. Era como o carvão. Se chegava para comprar 2 quilos, comprava-se 2 quilos. Se não chegava, comprava-se só 1 quilo. P: E a cozinha? Comiam coisas mais modernas ou mais tradicionais? Rosa Maria: Houve coisas que eu tive que aprender que não se faziam lá na terra. Lá fazíamos uns feijões com um bocado de toucinho e umas batatas, com couve, ou assim… Aqui, já não. Era mais a carne guisada, os bifes, o peixe…lá a gente só comia sardinhas e chicharro, aqui já havia mais peixe… Mas elas não eram assim de comer coisas muito “coisas”, muito puxadas. Eu até comecei a fazer peixe assado no forno, um dia comprei um parguinho e fiz, e olhe, o homem adorou aquilo!... (começa a rir) e outra vez, dantes havia daqueles talhos das miudezas, a cabeça da vaca, a cabeça da vitela, a dobrada…e era tudo vendido assim nesses talhos…E eu uma vez fui ao talho e comprei cabeça de vitela, e fiz jardineira…o homem gostou daquilo!... Da outra vez fiz com grão…Então ele dizia: “Esta mulher cozinha como eu gosto! Assim é que eu gosto!” Ele era assim do Norte… Fui aprendendo…fui aprendendo à minha custa. P: Também costumavam ter convidados? Rosa Maria: Era muito raro… Aquela senhora só teve um filho, e só quando o filho lá ia é que fazíamos…o que a mulher não fazia em casa era o que ele me pedia fazer… P: Nunca foi repreendida em público que não tivesse gostado? Rosa Maria: Ali naquela casa, não. Mas quando saí de lá fui para outra e aí já sofri um bocadinho… (fala em tom muito baixo) P: Deram-lhe alguma vez prendas, ou recompensas? Rosa Maria: Quando era no Natal, aquela professora dava-me um lencinho de mão, uma coisa pequenina…(E disse que, às vezes, o patrão era brincalhão, porquê?) Era assim coisas de galhofa…do género “Oh Maria, hoje estás na boa?” E eu naquela altura dizia-lhe: “Estou na broa, estou.” Depois ele começava a contar-me aquelas histórias lá de África…E eu dizia-lhe, porque ele trouxe uma cambada de filhos de lá: “Então se você trouxe os filhos porque é que não trouxe também a preta?”, - “Porque ela não quis vir!” – dizia assim (começa a rir-se). P: Ele não se ofendia? Rosa Maria: Não!...Às vezes, chegava ao pé deles e dizia “Eu agora vou-me deitar, estou cansada.” E ele respondia, “Não, anda aqui um bocadinho para ao pé da gente, anda lá…” Não, ele era muito boa pessoa. P: Então esses patrões já eram mais próximos? Rosa Maria: Aqueles eram. Ela é que era assim professora primária e já se sabe como é que é, não é? Por isso eu ainda outro dia disse: Os pais agora vão às escolas porque os professores batem nos filhos. Quem me dera a mim que me tivessem dado porrada na escola. (os seus patrões nunca quiseram ensiná-la a ler?) Não, eu estive em casa de duas professoras primárias, não é? Nunca puxaram para me ensinar! Depois, quando eu saí lá dessa professora é que fui para uma casa de onde me casei. Essa professora, depois…havia as escolas nocturnas, e ela disse: “Olha Maria, abriu a escola à noite, para as pessoas que quiserem ir aprender. Eu dou-te aquelas duas horas que é para tu ires aprender a ler.” Não sei se tinha 21, se era 22…ainda andei ali…fiz a primeira classe, depois passei para a 2ª, depois andei na 2ª até ao meio, só cheguei ao meio da 2ª classe…Depois comecei a namorar o meu marido, depois entretanto eles quiseram que eu me casasse e eu desisti da escola… P: Eles, quem? Rosa Maria: A minha patroa. Eu estava a servir à minha cunhada, que era afilhada da minha patroa. Aí é que eu sofri, aí é que eu sofri (num tom muito baixo) Ela tratou-me muito mal.. P: Os patrões naquela altura substituíam um pouco os pais…lembra-se de pensar isso? Rosa Maria: Não, não…nunca foi assim. Esta patroa para onde eu fui quando me casei…quando eu fui para lá o marido tinha-lhe dado uma trombose, ali ainda fui bem tratada que ela era daquelas pessoas que se levantava às seis e depois ia para a missa. Chegava a casa já era uma e tal da manhã…A essa hora eu já tinha dado de comer ao homenzinho…que ele coitadinho também não segurava as fezes…E eu um dia estava deitada, também aí tinha o meu quartinho, tinha a casa de banho em ordem e ele coitadinho aparece-me no meu quarto despido da cintura para baixo e…todo sujo….E ele começa assim: “Oh menina!...! – “O que é que foi?...” – “Oh menina, anda-me acudir!” – Fui dar com ele… meti-o dentro da banheira…despi o homem e era o homem a chorar e eu…nunca tinha feito aquilo…eu era uma miúda, devia ter 22…eu nunca tinha visto nenhum homem nu…e era ele a chorar e eu…depois quando ela chegou ele já estava tratado. E ele “Esta mulher!...Anda sempre na missa!...Não me liga nenhuma…se não fosse a rapariga…coitadinha da menina, teve que me estar aqui a lavar. Olha, ficas avisada, quando ela se casar fazes-lhe o casamento. Até um certo ponto ela também foi minha amiga…No princípio, não queria que eu me casasse. Mas depois, enquanto eu não casei, não descansou.. P: E porque é que saiu daquela segunda vez? Rosa Maria: Porque ela me bateu. Ela bateu-me, mas depois bateu-me uma segunda vez. A primeira eu fiquei. Depois à segunda eu quis vir-me embora…. P: Porque é que lhe bateu? Rosa Maria: Há certas coisas que eu também já não me recordo muito bem, mas ela embirrava com tudo…Vinha da escola, e quando via que com os miúdos havia alguma coisa que não estava bem, eu é que pagava…porque ela também era professora primária. Ela dava aulas à 3ª e à 4ª. Ela tinha as 2 classes…depois, às vezes, chegava a casa e coitada…chorava, e depois começava a ralhar comigo por qualquer coisa, e depois eu refilava… quando saí dessa, fui servir para casa de uma enfermeira, fui para casa de uma enfermeira aonde tinha um bebé pequenino. Tinha…parece que era um mês e meio. Agora tem-se quatro meses de licença de parto. Naquela altura era só 1 mês. E ela passou aquele mês e eu fui para lá para tomar conta do menino. Era enfermeira no Hospital da Cuf. Eu tinha que tomar conta da casa, fazer tudo e tomar conta do menino. Mas, em primeiro lugar, era para tratar do menino…. Quando a patroa estava em casa, dava o peito ao menino. Quando calhava dar a mama ao menino na hora do turno, ela tirava o leite com a bomba e ele ia buscar o leite e depois eu dava ao menino…. uma vez ele não me aparecia…o menino a chorar e eu não conseguia adormecê-lo…e ele não chegava. E que é que eu faço? Pus-me…tinha deixado o menino em casa e ia buscar o leite ao hospital da Cuf. E o eléctrico não vinha…e o que é que eu faço? Pus-me a correr! Pus-me a correr até ao hospital da Cuf. Cheguei lá e ela deu-me o leite e disse: “Agora meta-se no eléctrico! Eu vim a correr até chegar a casa e dar o leite ao miúdo, já o patrão estava em casa… “Onde é que você foi que deixou o menino sozinho?” – “Ai eu fui buscar o leite ao menino…” Porque a gente andava sempre à guerra um com o outro. Ela é que gostava muito de mim. Andávamos sempre à birra um com o outro. Quando a senhora ia trabalhar, por exemplo, das quatro às meia-noite, se eu me despachava antes de ela chegar, levava o menino para o meu quarto…Se ele ainda estava a pé…outras vezes ele chegava e levava o menino para o quarto dele….Uma vez ele chega a casa e o menino estava no meu quarto, e ele costumava bater à porta a perguntar por mim…Naquele dia ele vinha bêbado e abriu a porta do meu quarto e entrou por ali a dentro…E eu disse: “O que é que o senhor quer daqui?” – “Quero o meu filho.” – “O seu filho não sai daqui. Está a dormir. Vá para o seu quarto e deixe estar a criança que você não está em condições de tomar conta dela.” – “Quem é que manda aqui? Sou eu ou é você?” – “O senhor manda no seu quarto. Eu mando no meu.” – “Aqui a casa é minha.” – “A casa é sua, mas o quarto é meu…Eu estou aqui. O quarto é meu. Quando eu cá estou dentro. Por isso, ou você se vai embora ou eu mando-lhe um cesto em cima.” – Nisto, entra a patroa…, mas ela era muito boa…porque eu tive sempre medo de casais novos, ou que tivessem filhos, porque tinha conhecimento de raparigas que já tinham engravidado dos patrões ou dos filhos e eles obrigavam-nas a fazer o aborto, ou então as patroas já sabiam do que se estava passar e punham-nas na rua. Agora eu, se me acontecesse isso, o que é que fazia? Naquela altura…não sei se ainda hoje, mas naquela altura havia as Casas de Santa Zita, que era para onde as raparigas, as que ficavam grávidas dos patrões e eles punham-nas na rua, que era para onde elas iam. Naquela altura havia duas raparigas que eram minhas conhecidas. Ficaram grávidas e tiveram que fazer aborto. Os patrões não lhe pagavam…elas também não tinham dinheiro…porque naquela altura para se fazer um aborto tinha que se ter certos conhecimentos…depois elas iam para lá. Depois criavam lá os filhos e arranjavam emprego… e então eu tive sempre muito medo, eu tive sempre muito medo de ir para alguma casa dessas pessoas para me fazerem mal e depois eu ficava…naquela altura dizia-se que era uma “desgraçada”!... P: Em Lisboa falavam muito nesses perigos, não era? Rosa Maria: Pois, pois… (conheceu pessoas nessa situação?) Eram criadas de servir… então eu tinha muito medo. Quando eu me vim embora da casa da enfermeira, fomos ver uma casa ali no Rossio. E então essa senhora estava a dizer como é que eram as regras da casa…e depois estava a dizer: “Olhe, fica com os meninos…está ali o quarto dos meninos…depois estava a dizer o lugar onde ficavam os sapatos…” Você quando se levantar engraxa os sapatos e vem pô-los aqui, e depois vai fazer os pequenos-almoços”. – “Está bem.” – Cheguei cá fora e disse à Lucinda que tinha ido comigo: - “Oh Lucinda, eu não quero ir para aqui.” – “Então porquê?” – “Não quero. Ela tem filhos. Eu não quero ir para aqui.” E então fui lá para aquela casa em que eu lhe dava banho e essas coisas todas. P: Alguma vez os filhos se puseram a seu lado contra os pais? Rosa Maria: Nunca servi em casas com filhos. Ou eram velhos, ou tinham já os filhos casados. Ou eram aqueles bebés de quem eu ia tomar conta. Mas casais com filhos já homens nunca estive. Se eu fosse à procura de casa e me dissessem que tinham filhos já homens, eu não queria. P: Tinha férias? Rosa Maria: Férias? (Desata a rir sem som) Havia férias naquela altura? (estou a perguntar-lhe….) Não havia férias…Eu nunca tive férias…(No verão, não ia para lado nenhum?)...Ia com os patrões…Quer dizer, com aqueles velhotes que eu tive, íamos para as férias deles. Esses íamos sempre para lá dois meses. Agora com os outros, não. Nunca tive férias. (e no verão o serviço era o mesmo?) Era a mesma coisa. P: Nunca ia à sua terra? Rosa Maria: Não…só ia à terra pela Páscoa. Pela Páscoa é que eu ia no Sábado de Aleluia e depois vinha na segunda-feira. Passava lá o Domingo. P: E era bem recebida pelas pessoas da terra? Rosa Maria: Era, porque éramos muitas. Naquela altura muitas raparigas vinham servir por que a vida do campo não era…A gente saía com o cabelinho curtinho e quando lá ia já ia com o cabelinho cortado, já íamos assim com uns sapatinhos novos para a gente mostrar que a gente lá na cidade vivia-se melhor do que lá na província. (havia inveja?) (risos) Uma vez, quando fui lá passar a Páscoa, eu tinha comprado um fio de ouro, com uma medalha…as raparigas começaram a dizer que aquilo tinha sido um amante que eu cá tinha que me tinha dado o fio…Naquela altura, se a gente aparecesse com certas coisas era logo porque tínhamos aqui alguém que nos dava prendas….”Sabe-se lá o que andam a fazer!...” – Mas eu, graças a Deus… P: Conseguiu poupar? Já ganhava um pouco melhor? Rosa Maria: Já ganhava, parece-me que era 200$00. (E isso em relação às outras profissões?) Sim, já era melhorzinho. Eu, sem saber ler nem escrever, ter assim um ordenadinho de 200$00 ao fim do mês já não era nada mau…Naquela altura já me considerava uma criada bem paga. (e poupava?) Eu não gastava…não ia ao cinema, não ia a lado nenhum, era só as saídas de vir para aqui assim (Bairro Alto). Eu não gastava dinheiro nenhum. A gente poupava assim um dinheirito… P: Mas passeava… Rosa Maria: Às vezes, eu e as minhas colegas íamos até ao Castelo de São Jorge ou íamos até ao cimo do Parque Eduardo Sétimo, eh…havia lá um bailarico todos os domingos à tarde, e então a gente ia para lá…(risos) Havia lá um acordeãozito e a gente também dançava… (mas não eram músicas modernas…) Não, eram músicas daquela altura! Por isso é que eu digo: hoje, se fosse a um baile, não sabia nada porque é só bandas, não é? Naquela altura era só acordeão. Era aquelas músicas que agora não há. Quer dizer, agora há, mas é o rancho folclórico… -
"A gente era os caddies"
António Almada: Eu nasci na Maceira, no bairro da Portela, onde era o único rapaz em 10 ou 12 crianças que nasceram. O resto era tudo raparigas e pronto, fomos crescendo…A minha mãe sempre foi doméstica e o meu pai trabalhou em Mafra, depois trabalhou nas águas do Vimeiro, e em mecânica, o que acabou por ser a vida dele toda. E a vida não foi nada fácil, nada fácil na altura. Nessa altura a vida não era fácil para a gente nem para ninguém. Andei na escola e brinquei muito, que era a coisa que mais gostava de fazer. Se pudesse hoje ainda brincava! P: Qual era a profissão que gostava de ter “quando fosse grande”? António Almada: Ah eu acho que na altura nunca tive essas ideias, eu gostava era de brincar e não pensava nisso. P: Então e quando chegou ao hotel tinha mais ou menos que idade? António Almada: Quando comecei a trabalhar tinha, mais ou menos, 15 anos. P: Para ajudar a família? António Almada: Não, porque não queria ir para a escola, então como não estudava tive de ir trabalhar. Quando eu comecei a trabalhar na carpintaria, na Empresa A, e depois é que fui para o hotel, que também pertencia às águas. Estava lá um carpinteiro, no hotel já havia um carpinteiro, um senhor já de idade com quem eu me dei muito bem lá. O nosso trabalho lá era reparar tudo, desde carpintaria, estores, fechaduras, era tudo o que fosse manutenção. Sim, tudo no hotel. Fora a eletricidade e canalizadores que isso existia lá. Havia lá canalizadores e eletricistas. Agora tudo o que era carpintaria, fechaduras, e estores era tudo na parte da carpintaria. P: E já fazia isso tudo com apenas 15 anos? António Almada: Não, eu aí já devia ter os meus 16 anos, porque primeiro andei na carpintaria, cá nas águas. Geralmente a gente não tinha contacto com o cliente porque a receção mandava para a gente o que é que tínhamos de fazer, quais eram as avarias que havia e a que horas é que nós lá podíamos ir não é, quando não estivessem lá clientes. P: E a receção do hotel ou até mesmo a gerência funcionava bem? António Almada: Sim, eu acho que sim! Na receção era tudo certinho, aquilo ali era tudo certinho. P: E mesmo em termos de condições, davam-lhe alimentação ou era só mesmo ir trabalhar? António Almada: Sim nesse sentido tinha-se lá tudo, almoçava-se, tínhamos tudo. P: E os outros empregados, tinha uma boa relação com eles? António Almada: Eu só lidava com aquele senhor, só encontrava outros empregados na hora de almoço que era quando a gente se falava e pronto. Mas lá era tudo pessoal da terra, praticamente, a gente ali falava porque a malta conhecia-se toda, não é? Aquilo era uma empresa onde a maior parte dos empregados eram todos ali da M.. Era quase tudo ali da terra. P: Agora também é assim? António Almada: Não agora já não, aquilo antes era tudo malta da M., B., havia umas pessoas de R., porque de resto aquilo era só ali mesmo, naquele círculo de pessoas que estavam ali e assim. P: E as pessoas eram formadas? António Almada: Não, não. Cada um tinha de se desenrascar. As pessoas que iam para lá servir à mesa aprendiam lá, com os outros, com os mais velhos que lá estavam. Não havia formações, não havia nada. Naquela altura não havia nada de formações, a gente não tinha formações. P: Então o tipo de cliente lá também não era muito exigente? António Almada: Isso também não sei, isso lá dentro com os clientes eu não sei, não tinha esse contacto. Porque eu era só mesmo a parte das avarias que a gente tratava. Quem lidava lá com os clientes eram sempre as pessoas do restaurante, do bar, pronto, essas pessoas. A gente tinha uma entrada de serviço, era uma porta de serviço, ia-se lá para cima, entrava-se nos quartos, batia-se à porta, duas vezes ou três e se ninguém respondesse a gente tinha uma chave mestra que abria tudo e era assim que a gente trabalhava. P: E o seu primeiro dia? Como é que foi a experiência, a expectativa? Alguma coisa que correu bem ou menos bem? António Almada: Não, eu…correu sempre bem porque já eram pessoas que eu já conhecia cá debaixo também, não é? As pessoas que lá estavam também vinham cá abaixo, quando precisava mesmo de ir à oficina da carpintaria, elas vinham cá, porque era tudo pessoal que a gente conhecia, passei pouco para o outro lado. P: E em termos de tarefas, também não era muito difícil? António Almada: Não, não aquilo não era muito difícil, reparava uma mesa, reparava uma cadeira, reparava estores, uma fechadura… aquilo era avarias, praticamente aquilo era avarias. Só houve uma altura em que a gente esteve lá a arranjar as mesas todas do 4º andar, onde era uma sala, era um salão mesmo grande, onde eles fazem jogos, fazem essas coisas todas, e nós andámos a tirar os tampos das mesas, para meter uns tampos novos. E isso foram meses a fazer esse trabalho. Esse trabalho era feito quando a gente saía lá de uma avaria e vinha-se para baixo, porque era quando não havia avarias que a gente ia mudando os tampos das mesas. Foi um critério que eles tiveram para mudar os tampos todos e a gente fazia, pronto. P: E sente que, por exemplo, estando num hotel onde os clientes eram servidos e havia essa importância, o seu trabalho era respeitado, pelas outras áreas? António Almada: Sim, sim. P: Ali toda a gente se respeitava? Não havia diferenças no tratamento? António Almada: Não, nunca vi assim nada. Nem comigo, nem com as outras secções. Não, normalmente não. Não, porque aquilo também era tudo pessoal que já se conhecia há muito tempo. P: E há alguma situação de maior constrangimento no hotel? António Almada: Não, comigo não. P: Quando saiu, saiu de lá bem? António Almada: Sim, quando eu saí de lá, fui para um curso de mecânica, daí ter saído. Eu gostava muito de carpintaria, mas como aquilo começou sempre a ser a mesma coisa, fazer as mesmas coisas, e então tive a oportunidade. Surgiu um curso e eu acabei por ir para lá para o curso. P: Pois, e depois aí definiu logo a área de mecânica para o seu futuro? António Almada: Pois! Do outro lado, no curso, ainda não tinha acabado o curso, quem me estava a dar o curso tinha uma oficina e disse logo: “Tens de passar para Torres, lá para a oficina” e foi a partir dai que vim cá para Torres, e cheguei aqui, a aturar estas pestes todas. P: Desde que foi para Torres Vedras que ficou pelo P.? António Almada: Já vão uns anitos, 30 e tal anos. P: E depois nunca mais se interessou pela parte hoteleira? António Almada: Não, não. Até porque é assim: na parte hoteleira, o servir à mesa, o hotel, são coisas que eu também não gostava. Eu da carpintaria gostava porque era aqueles serviços de arranjar nas coisas, mexer nas coisas. Agora estar a lidar diretamente com os clientes e, se me convidassem para ir trabalhar para lá para servir à mesa eu negava logo que eu não ia, que eu não gostava. Isso eu não gostava. P: Sim, até porque na altura, aquilo se calhar não estava tão desenvolvido… António Almada: Sim, eram as condições que davam e depois havia lá um ou dois que mandava naquilo e aquele pessoal exigia muito com aquela gente e eu como sou um bocadinho lixado de vergar, era aquela coisa. Mas não, era daquelas coisas que eu também não quero. Nunca gostei mesmo de servir à mesa ou estar atrás de um balcão. Mesmo que me convidassem, eu não ia porque não gostava disso. Depois, quando vim para Torres, para a oficina, foi uma coisa que eu me adaptei bem e gostei e sempre tive bons clientes. P: As influências do seu pai acabaram por ajudar um bocadinho, não? António Almada: Sim, sim! Na família, o meu pai é mecânico, o meu irmão é mecânico, o marido da minha irmã é mecânico, eu sou mecânico, e o irmão da minha mulher é mecânico! E nunca houve ninguém que tivesse montado uma oficina para todos trabalharem. P: Ainda não surgiu a oportunidade. António Almada: Pois, agora também é difícil, só se for a minha filha que queira montar uma oficina para mim. P: E o tempo em que trabalhou na parte do golf? António Almada: Ah isso não era um trabalho, isso era um hobbie antes de começar a trabalhar. P: Mas isso nas férias de verão? António Almada: Nas férias de verão a gente ia para lá andar com os senhores, eles andavam lá a jogar golf e a gente ia para lá com eles, a gente era os caddie, para andar com os sacos de Golf, qQue era para a gente ganhar mais uns trocos. Foi aí que eu comecei a ganhar os primeiros trocos, não é? Porque de resto… P: Tinha que idade? António Almada: Ah sei lá, se calhar 12 anos, talvez. A partir dos 12 até aos 15 andei lá, quando era de verão, quando eram as férias, quando era aos fins de semana, de sábado a domingos. P: E eles chamavam? Ou ia para lá todos os dias? António Almada: A gente aos sábados e domingos ia para lá. Havia uns senhores que eram de A. e esses senhores vinham cá quase todos os fins de semana e eu andava sempre com o mesmo senhor. Depois havia mais 3 ou 4 colegas que também, cada um tinha aquela pessoa certa para a gente andar, estás a perceber? P: Então ainda começou a trabalhar muito mais cedo. António Almada: Isso era para a gente arranjar uns trocos, era. P: E como é que funcionavam as folgas e férias na altura em que começou a trabalhar? António Almada: Quando eu comecei a trabalhar, isso estava tudo certinho, as férias eram marcadas, era naquela altura em que a gente pedia, e eles ou aceitavam ou tinham de ser remarcadas para outra altura, mas isso, pela Empresa A, sempre foi certinho. O ordenado nunca foi um ordenado grande, mas aquilo era sempre certinho. Nessa altura, era o Sr. Bernardo Vilas (nome fictício), que foi o senhor que montou a empresa. P: E como está o hotel agora? António Almada: Hoje em dia estão lá meia dúzia de mulheres a fazer limpezas àquilo, enquanto dantes, esta meia dúzia, que lá está, era meia dúzia por cada andar do hotel, está a perceber? Agora é meia dúzia para limpar aquilo tudo! P: E, por exemplo, como é que descreve os postos de emprego? Havia postos diferentes para homens e mulheres? Por exemplo, rececionistas serem apenas mulheres? António Almada: Na receção, na altura, até havia mais homens do que mulheres! Na restauração também era misto, na parte da restauração era misto sim, havia homens, havia mulheres. E nessa altura ainda havia só uns para servir o comer, e havia outros para os vinhos, para as águas. Agora, agora não… Agora chegas lá e tens um tipo de serves-te. P: Ah então agora é tipo Buffet? António Almada: Exatamente tipo Buffet! P: E antes tinha os copeiros? António Almada: Tinha-se tudo, tinha copeiros, tinha chefe de mesa. O chefe de mesa ia lá e tirava o pedido, e depois havia o que levava o comer, o que levava os vinhos, as águas e essas coisas todas. Agora, não há isso… era porque o que leva as bebidas sabe onde é que estavam as bebidas e ele é que ia buscar, agora não! Agora tem de ser a mesma pessoa a fazer tudo. Hoje chegas lá com o comer e ainda não trouxeste o vinho. Enquanto na altura o pedido era feito, o chefe de mesa dava ordem de: “isto é o comer, isto é o vinho” e a pessoa das bebidas podia logo ir lá pôr as bebidas, pôr tudo. Quando viesse o comer, o outro já lá estava. Já as pessoas estavam servidas. Era bom para os clientes! Os clientes na altura ficavam melhor, agora já lá fui, duas ou três vezes com a malta da idade, já lá fomos comer, mas, lá está, aquilo é tudo Buffet! A gente é que vai, só a parte das bebidas é que anda lá uma pessoa e é que vai lá. Ou seja, as bebidas estão atrás da gente e vai lá uma pessoa, agarra na garrafa e serve a gente, mas isso também não interessa, se me metessem a garrafa em cima da mesa eu também me servia. Mas isso é assim, agora. Notas em tudo. Ou seja, dantes tinhas as camareiras, as pessoas que arrumam os quartos, que arrumam aquilo tudo, que se calhar tinham muito mais relação com os clientes do que agora. Dantes tinham melhor relação do que agora. Porque agora elas são tão poucas, que só falam com os clientes se chegar lá para arrumar o quarto e se tiver lá o cliente. E dantes não. Dantes havia, por exemplo, durante a noite, só num piso, se calhar havia cinco ou seis pessoas a trabalhar. E agora não. Agora se calhar essas 5 ou 6 pessoas estão a trabalhar por 3 ou 4 pisos. Desde fazer as limpezas às piscinas, às casas de banho, a tudo, são sempre as mesmas pessoas. Enquanto dantes havia, por exemplo, as pessoas que iam só fazer as camas, as que iam só arrumar os quartos e isso tudo, e aquelas que iam lá fazer a limpeza às casas de banho. Agora elas têm de fazer tudo. Quer dizer, são menos pessoas, mas têm de fazer tudo! António Almada: O patrão era português. Foi ele que montou as. O Hotel A começou onde é as piscinas. Ali havia sempre uma senhora que andava a dar copos de água, aí é que eram as termas. Começaram a encher os garrafões naquelas bicazinhas pequeninas que lá estavam. Carregavam as camionetas para ir para L. O ponto forte daquilo crescer foi por ter levado água para L. Ele era de L., veio aqui, comprou aquilo, montou 3 ou 4 camionetas, começou a acartar para Lisboa e depois seguiu forte. Foi aí que fizeram o primeiro hotel. E aquele tinha muitos clientes e tinha muita malta de Lisboa que vinha para cá, mesmo para tratamentos e aquilo tudo. E depois, como aquilo estava a dar, pensou fazer o hotel A, lá em cima. Mas fez primeiro um mais pequeno. A malta chama-o “O hotel velho”, e depois é que foi feito então aquele grande. Lembro-me daquele hotel a ser feito, devia de ter os meus 6/7 anitos quando aquilo começou a ser feito. E pronto, e enquanto ele geriu aquilo, aquilo deu muita dinheiro. António Almada: Quando o meu pai começou na Empresa A foi para encher águas à mão, os garrafões de água à mão. P: Portanto, ele foi um dos primeiros empregados? António Almada: Ah, isso não sei, dos primeiros empregados não sei. Agora mecânico deve ter sido o primeiro, que ele já veio de M.. O meu pai trabalhou no capote, que era o dono da M.. E depois, quando eles montaram ali a empresa, ele foi convidado para vir para cá, o meu pai, e como já namorava com a minha mãe não é, e para estar aqui mais perto, ele veio para cá. Veio para cá e fez a casa, casou-se e nunca mais saiu de lá. P: Trabalhou a vida toda para a empresa? António Almada: Trabalhou. Menos aqueles anos em que esteve nas águas. Mas reformou-se aos 71 anos. Não, ele reformou-se aos 66 anos, mas trabalhou na empresa até aos 71 anos. Ficou a trabalhar com o ordenado dele e descontava à mesma, mas como estava reformado, tinha a reforma dele e tinha mais o ordenado. Porque ele reformou-se por idade. Se te reformares por doença ou outra coisa qualquer, ou por invalidez, não podes continuar a trabalhar. Agora ele podia continuar a trabalhar no mesmo trabalho e pronto e foi o que ele fez. P: Aquela história do senhor, de quando trabalhava no Golf. Havia um senhor que ia lá muitas vezes e o Rui ia sempre com ele. Lá no golf, pode falar um pouco sobre isso? António Almada: Ah, isso foi um jogador, o C. (importante jogador do Sport Lisboa e Benfica) P: Ele era cliente no Hotel A? António Almada: Ele era cliente e ia lá quase todos os fins de semana, ou seja, quando era as férias grandes, ia lá jogar golf. Ele ia lá de manhã e depois vinha embora à tarde. Mas, almoçava lá, fazia tudo lá. Ele era jogador do Benfica. E eu era rapazito, e ele nessa altura já me pagava bem. Foi, era o gajo que mais me pagava, por cada volta que a gente dava, por cada jogo que ele fazia lá. Eu não jogava, eu levava o carrito, ele jogava Golf e eu levava o carrinho dos tacos. P: E ele era simpático? António Almada: Era! Nunca apanhei lá cliente nenhum que fosse, que as pessoas fossem malcriadas. E mesmo se fosse um gajo que fosse malcriado nem ninguém queria ir com ele, sempre assim foi. A gente só precisava de estar atentos a ver a bola, onde é que ela ia cair, que era se ele não soubesse daquela dava para a gente mais ou menos saber e ir lá ver onde é que ela estava. P: E ele dava-lhe gorjetas? Vocês tinham um ordenado base ou era gorjetas? António Almada: Cada cliente estipulava aquilo que queria pagar por cada volta, está a perceber? Depois era sempre muito coiso, eles não pagavam sempre o mesmo preço. P: Então vocês recebiam de forma diferente? Conforme o cliente? António Almada: Exatamente! Por isso é que havia muitos que… P: Tinham de dar alguma comissão ao hotel? António Almada: Não, não! P: Era tudo para vocês? António Almada: Era tudo para a gente. Porque aquilo não tinha nada a ver com o Hotel A, ou seja, aquilo era ao pé do hotel, o cliente era de lá, a gente estava ali assim, onde eles iam buscar os carrinhos e tudo, e depois eles se precisassem nós íamos lá com eles. P: Alugavam o carrinho e o “funcionário”? António Almada: Não, nós já tínhamos os carrinhos deles. Havia lá um rapaz que tomava conta dessa casa, onde estava os carrinhos e onde estava isso tudo. Esse era lá empregado! P: E vocês transportavam o carrinho? António Almada: Sim, levava-se o carrinho, ia-se com o carrinho com os sacos e depois quando chegavam ao pé da bola, conforme o sítio onde a bola caísse, ele pedia o número do taco que queria? Porque os tacos têm números. Depois ele pedia. P: Têm pesos diferentes é isso? António Almada: Não, têm ângulos diferentes que é outra coisa, que é para a bola seguir uma direção especifica? Tem um taco que é de saída, que entras para mandar a bola com força, depois tem outro em que a bola está aqui e só tem de fazer o movimento. P: E vocês não podiam fazer e experimentar enquanto lá estavam à espera? António Almada: Sim, então quando eles não estavam lá, a gente às vezes experimentava e mandava-se bolas cá para baixo. Porque a gente quando não tinha nada para fazer vinha cá para baixo para os campos de golf à procura de bolas, que eles perdiam muitas bolas, ou enfiadas naquelas árvores e ali tudo. Depois a gente também tinha muitas bolas e então vendia-se. Eles perguntavam à gente se a gente não tinha bolas, porque havia certos indivíduos que não eram bons, ou tinham azar. Também perdiam muitas bolas, e depois quando eles iam para lá perguntavam-nos se tínhamos bolas, a gente vendia. P: E tinham tempo parado? António Almada: Havia sempre aqueles que se encostavam um bocadinho quando podiam. Não, mas por exemplo no Hotel A, havia lá uma equipa muito boa, um senhor conhecido é que era o chefe de manutenção lá do Hotel A. E ele era exigente! Para a parte do campo, onde tem o buraco, aquilo não pode ter ali uma erva grande, não pode ter nada que é para a bola rolar ali. E quase todos os dias havia 2/3 mulheres lá ajoelhadas a puxar aquelas ervazinhas mais, que não era aquele tipo de relva que não era precisa. Tudo o que não fosse, elas estavam ali a arrancar as coisinhas todas! P: E trabalhavam à chapa do sol? Assim? António Almada: Era. Com o chapéu na cabeça e lá andavam. P: Pois e era como vocês quando estavam lá no golf? António Almada: Pois! P: Eram as condições que tinham… E nos dias assim mais de chuva ficavam dentro do hotel? António Almada: Ficava-se cá em baixo, ou seja, onde é o hotel velho, que era onde estavam os carrinhos e a gente ficava ali na brincadeira, na galhofa ali. P: Também eram todos crianças? António Almada: Pois. Era tudo malta nova, era tudo malta até aí aos 15 anos está a ver? A partir dos 15 a malta já arranjava sempre trabalho ou no hotel. Assim que se fazia 14/15 anos, já a malta do hotel dizia: “como é que é, não queres ir servir à mesa? Não queres fazer isto ou fazer aquilo?”. P: Pois aproveitavam que já tinham ali aquela base para o hotel, não é? António Almada: Pois, pois! Depois a malta ia lá para dentro, não é? Mesmo muita gente. A maior parte da malta da minha idade aprendeu a trabalhar no hotel, a servir à mesa. P: E eles aprendiam, vendo não era? António Almada: Quando eles chegavam lá, os outros diziam: “olha vais ali e levas isto ou fazes aquilo” “vais entregar já ali naquela mesa”. E a malta mais velha estava, iam controlando. Mas aquilo ao fim de duas/três vezes que iam à mesa, aquilo já estava aprendido. E se eles tivessem dúvidas, perguntavam. P: E o patrão chegava a passar por vocês e cumprimentava? António Almada: Falava! O patrão era uma pessoa que falava com os empregados, sim. P: E sabia o vosso nome? António Almada: É assim, ele passava e até podia saber o nome da malta mais velha, da idade do meu pai. A malta da geração dele, não é? Mas a malta que lá começou, tinha de saber o nome de mesmo muita gente! P: Mas, por exemplo, sabia as ligações familiares? Sabia que era filho de X ou Y? António Almada: Ah isso não sei. Eu já apanhei o patrão velho, o patrão vi-o três ou quatro vezes e depois ele, coitado, já não vinha muita vez para cá, que coitado já tinha uma idade. Ele já era mais velho que o meu pai um bocado, ele já era uma pessoa de idade. O meu pai é que o conhecia muito bem! Ele chegou a andar com ele numa avioneta, que ele tinha uma avioneta. O centro de Aviação que foi feito, foi ele que o fez para aterrar lá com a avioneta. Aquele terreno não é dele, aquilo estava na altura a fazer de pista, antes de ser alcatroado. Ele alugou aquele terreno, mas o terreno não era dele, ele fez um contrato. P: E ele era assim tão amigo do seu pai ao ponto de o deixar andar com ele? António Almada: Sim, eles eram muito amigos! Do meu pai e de muitos que lá estavam. Tudo o que era dos primeiros empregados e daquela gente toda que andou ali assim, ele conhecia aquelas pessoas todas. No fundo foram eles que lhe fizeram a empresa. A empresa foi feita, não foi sozinho por ele, foi pelos empregados todos. Se não houvesse aquela gente toda ali à volta dele, ninguém cresce sozinho! Nem ele nem ninguém. O patrão era uma pessoa humilde. Ele também era uma pessoa que veio do nada, não é? …………………………………………………………. António Almada: No hotel, quando o rio começava a encher muito, a empresa tinha uma máquina que, ou ia lá o meu pai, ou ia o L., que era um senhor que trabalhava com o meu pai, agarravam na máquina e iam abrir a foz. Para os campos de golf não serem inundados com água. P: Mesmo no inverno? António Almada: Se o tempo tivesse bem…tudo o que fosse tempo bom dava! P: O grosso dos clientes dormia no hotel ou não? António Almada: Não. A maioria deles que vinha jogar golf, a maioria vinha de fora, iam e vinham, juntavam-se aos grupos e vinham. Eu andei muito tempo com uns senhores de A., que eles aos fins de semana vinham cá de propósito só para jogar golf. P: Era ao fim de semana? António Almada: Era! P: E vocês aí também criavam relações? António Almada: Sim, porque eles também tinham o trabalho deles, não é? Depois juntavam-se àqueles grupos, aqueles que gostavam de jogar. P: E eram pessoas endinheiradas? António Almada: Era. Eram pessoas com mais dinheiro, claro! Pessoas que deviam ter empresas lá para aqueles lados. P: Por exemplo, pessoas lá da terra usufruíam do hotel? António Almada: Não! Havia 3 ou 4 empregados que iam para lá jogar, mas iam para lá jogar e tinham ordens, eles pediam e podiam ir para lá jogar, mas de resto, ali dentro da M. na havia ninguém que tivesse dinheiro para fazer uma vida assim. P: E vinham muitos estrangeiros? António Almada: Vinham, ainda vinham muitos estrangeiros. Na altura em que eu era novo, ainda vinham aquelas coisas da escola, de Espanha. P: As excursões? António Almada: Isso era o nosso chá, ir para lá à noite! E arranjar maneiras de dar a volta àqueles, não sei se eram professores que iam com elas para lá. Arranjar maneira de dar a volta para que elas e eles não é, conseguissem vir para a rua para estarem ao pé do pessoal dali que vinha para P., e então eles tentavam que a malta tentasse dar a volta para ajudá-los para eles saírem de lá e para eles virem também para a galhofa. A malta até dizia: “Olha, vamos às espanholas!”. Então isto era tudo rapazecos da mesma idade, só que claro enquanto em Espanha havia disso, na minha altura nunca ouvi falar que Portugal fosse para algum lado. Agora já vai, mas na altura não me lembro dessas coisas. Eles vinham para cá. P: As diferenças culturais eram grandes. António Almada: Claro. P: Então e como é que vocês comunicavam? António Almada: Oh o espanhol, um gajo consegue perceber melhor o espanhol do que eles à gente, se calhar. Mais ou menos também se percebia bem! P: Então e se fosse um inglês? Vocês sabiam desenrascar? António Almada: Não, eu inglês nunca soube, mesmo hoje também não. P: Mas apareciam algumas pessoas assim, que vocês não entendiam? António Almada: Inglês, por exemplo, não percebia, mas havia lá sempre um ou dois que conseguiam estar ali e entender. Mas assim malta nova, também ingleses e assim, não havia. Quem vinha para cá mesmo só de escola eram os espanhóis! Os espanhóis é que vinham, que eu me lembre, eram só os espanhóis! P: Por causa da praia, ali em Porto Novo? Eles iam por causa do Turismo de Sol e Mar? António Almada: Pois isso não sei como é que era, sei que era viagem de finalistas ou o que era, eles vinham para cá e até muitas excursões. O hotel tinha sempre preços bons que o gajo fazia para esses grupos. Conseguia manter muitos clientes, porque também ao nível dos empregados, eram muitos empregados! Agora não está lá nenhum desses todos, quanto mais metade! Eles agora querem faturar sem gastar, mas isso também não tem, depois falta a outra coisa, não é. Agora qual é? Se é qualidade…, mas mesmo assim eles têm muitos grupos, agora nesta altura, como tinham antes. P: E voltando um pouco atrás, quando era mais novo no golf, tem alguma lembrança das coisas que fazia para além das que disse? António Almada: Não. Aquilo como não era bem emprego, ou seja, era um serviço para a gente ganhar uns trocos, como se dizia antes: “pás Gasosas!”. Mas sim, foi das primeiras coisas que eu fiz, foi isso. Naquela altura, os jovens não iam para a apanha da fruta. Porque naquela altura, ou trabalhavas num hotel, ou nas águas, ou então eras agricultor. P: E acha que, por exemplo, acabou por ir para o hotel por influência do seu pai em conhecer as pessoas? António Almada: Não, não. Para o golf a gente erámos miúdos e aquilo era o entreter de todos os miúdos. A gente estava ali assim: “olha vamos para a praia”, e depois da praia, começava-se a ir lá para cima, e depois andava-se assim. Um gajo para ir jogar golf, um gajo chegava-se ao pé dele e tínhamos a iniciativa. P: E apercebiam-se daqueles que pagavam mais e os que pagavam menos? António Almada: A gente depois acabava por saber porque, por exemplo, hoje ia com um e dava-me x, amanhã ia com outro e dava-me mais, e eu então se eu visse aqueles dois, eu escolhia aquele que me dava mais. E avisava logo os outros: “olha que este gajo é forreta e paga menos!”. Tinha que ser. P: E para a carpintaria foi, saiu da escola e foi logo? António Almada: Não, eu para a carpintaria fui quando saí da escola. O senhor, que era o senhor S., que era chefe das obras, tudo o que tinha obras dentro da empresa, ele é que fazia. Ele viu-me, já conhecia o meu pai e disse: “-Então, não estás na escola? -Não eu já saí da escola! -Então e não queres ir trabalhar? -Ah querer queria! -Então vê lá para onde é que queres ir e diz-me!”. P: Ah então foi o senhor que escolheu a área para onde queria ir? António Almada: Foi! Eu é que escolhi a área! E depois fui para lá para a carpintaria. E depois a mecânica surgiu por causa do curso, mais nada. P: Senão, tinha continuado lá? António Almada: Pois, senão tinha de continuar lá ou então tinha de ir para outra carpintaria ou para outra coisa qualquer. Só que, para aprender mais do que aquilo que eu já sabia? Já tinha de ir para outro lado! P: Ali já não acrescentava? António Almada: Pois não. Porque fazer móveis e essas coisas a gente não fazia, ali era mais fazer portas, fazer janelas, tudo obras que fosse preciso, fazer fechaduras, essas coisas. A partir dali a gente móveis lá não se fazia nada dessas coisas. E então aquilo era mais tipo manutenções, uma porta partia-se ou algo do género e tinha que se fazer uma porta. P: E sente que era um trabalho pesado para a idade que tinha? António Almada: Não, não! P: Tendo em comparação o seu trabalho atual de mecânico? António Almada: Este é muito mais pesado! A mecânica dá mais cabo da cabeça não é. E é puxado, agora a mecânica atual, já é computadores, o computador diz uma coisa, mas não diz tudo! O computador pode dizer que isto está avariado, mas metes a peça e aquilo está a dar-te a mesma avaria. Pode não vir desta, pode vir da outra, mas como o computador está ligado e está a dizer que é esta peça, mas o problema pode não ser desta e pode ser de outra. P: Então e os estudos que tinha, por exemplo, para saber fazer uma porta, há que saber alguma matemática básica para saber tirar medidas e ângulos. António Almada: Sim, era tudo com uma fita e depois esquadrias. P: Eram precisos pequenos cálculos e esse tipo de coisas, acha que conseguia fazer esse tipo de coisas para a sua escolaridade que tinha? António Almada: Sim, para a escolaridade que eu tinha. Fiz muita porta, quando foi para a F., só lá dentro tinha 80 e tal portas, fora as janelas. E foi tudo lá feito, lá na carpintaria. E quando foi a assentar aquilo tudo, também fui eu que estive a assentar aquelas coisas todas. Eu aprendi a fazer aquilo tudo, agora se calhar se agarrasse na madeira estava ali um bocadinho a pensar como é que se fazia uma porta outra vez. Já lá vão 40 anos. P: E sentiu-se feliz enquanto lá esteve? António Almada: Sim! Só estava lá um da carpintaria que uma vez se chateou comigo, não me falava e eu não falava com ele, era primo do meu pai. Mas pronto, o tempo que eu lá estive nunca falei com ele e ele nunca falou comigo. Nunca mais falámos. Depois passei lá para o Hotel A, fui para ao pé do outro senhor e aí pronto. P: E sentiu-se realizado? António Almada: Senti-me. Gostei muito enquanto lá estive e daquilo que eu fiz, que ainda hoje sinto saudades de certas coisas de lá. De andar lá a arranjar as coisas, e a correr no hotel e isso tudo! Um gajo andava com a chave mestra, era só bater à porta. P: E encontrou alguma coisa engraçada nos quartos? António Almada: Não, não. Nunca entrei em quarto nenhum que tivesse gente lá dentro. P: Mas, por exemplo, objetos ou assim? António Almada: Ah não. P: Os quartos estavam arrumados? António Almada: Aquilo era assim, geralmente quando eu ia fazer a minha manutenção ao quarto já lá tinham passado os empregados de quarto e isso tudo. Já lá tinha passada tudo, então assim que saíam os clientes, estavam logo lá as empregadas para começar a limpar aquilo. Agora, se calhar, já demoram mais tempo porque são menos. P: E o hotel estava muito cheio, sempre? António Almada: Quando era verão estava sempre cheio! P: E quanto tempo trabalhou lá? António Almada: No hotel? Sei lá, talvez quase 2 anos. Mas isso no hotel, cá em baixo devia ter estado mais perto de dois anos, mais coisa menos coisa. Já andava a tirar a carta quando passei para o curso, devia ter aí os meus 19. P: E acha que a nível de salários era justo para a altura que era? António Almada: Para aquela altura, comparado com agora, se era justo ou não, não sei. P: Sentiu aquela sensação de: dão-me pouco para aquilo que eu faço? Antónia Almada: Isso aí é difícil de responder, a gente não tinha como comparar, não sabia o ordenado do meu pai, não sabia nem das outras pessoas, mas comparado com a malta da minha idade, naquela altura os ordenados eram todos equiparados uns com os outros. E a gente, assim que entrava para lá começava a fazer logo descontos e tudo. P: E a farda? Como é que era? Vocês tinham de usar algum macacão? António Almada: Não, não! Eu, farda, nunca usei. Quem chegou a usar lá farda, que eram macacos, eram os canalizadores, eletricistas, lá dentro esses é que estavam mais ou menos fardados. E as fardas pronto, dentro do hotel isso já havia, lá da malta da receção e tudo. Isso era tudo fardado já. P: E eram como? As mulheres com saia e os homens de calças? António Almada: Os homens de calças e as mulheres de saia, ainda deve ser agora também, não sei como é que é. Mas as mulheres agora também já devem usar calças. -
"Alforria de um Escravo no testamento de Pedro Alves Barradas"
No âmbito da Estratégia Nacional para a Igualdade e a Não Discriminação 2018-2030 “Portugal +Igual”, o Arquivo Distrital de Portalegre disponibilizou o testamento cerrado de Pedro de Alva Barradas onde menciona a alforria de um escravo, na condição de casar com Lucrécia, escrava negra, também alforriada. Esse documento, na versão integral, pode ser consultado aqui: https://adptg.dglab.gov.pt/2022/10/03/alforria-de-um-escravo-com-condicao-de-casar-com-lucrecia/ Documento parcialmente transcrito por Ana Luísa R. Moreira (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, UNL): "Em nome de Deos amen e da Santissima Trindade padre, e filho e spiritto tres pessoas e hum so Deos uerdadeiro, eu Pedro de Alua Barradas estando são? e con todo o meu juizo e entendimento mas temendo a morte e por não saber quando nosso senhor sera seruido de me leuar por esta ser a todos inserta fasso e ordeno este meu testamento ou codecilho qual qual [sic], em direito melhor lugar haja pella maneira seguinte Primeiramente encomendo minha alma a Christo senhor nosso que a crio e remio com seu precioso sangue e pesso a sua deuina mai e senhora nossa seja pera com elle minha aduogada e a uos? santos Apostolos S Pedro e S Paulo e todos os Santos e Santas da Corte do Ceo entrecedao por mi . Mando que tendo Deos seruido de me leuar da uida prezente meu corpo seia amortalhado no habito de S Francisco e enterrado no conyento desta Villa na sepultura a onde estão enterrados meus pais e sendo horas? nesse dia, ou no seguinte me dirão hum oficcio no mesmo conuento offertado com des alqueires de trigo sinco almudas de uinho e meia duzia de queiios e hum carneiro e na minha freguezia outro officcio offertado na mesma forma e todos os padres que nos tres dias primeiros de meu falesimento quizerem dizer missa pella minha alma se lhe dara de esmola a oitenta reis . Manda acompanhem? meu corpo todas as confrarias desta Villa pella esmola? / [f. ??] Costumada ainda que seia irmão dellas e assi mais mando que meu corpo seia leuado na tumba noua da misericordia e sendo horas? esteia?? nella as uesperas, e não o sendo ao officio e se lhe dara a escolla cotumada Mando se de aos pobres des alqueres de trigo amassado e dous mil reis em dinheiro e uinte me acompanhem com uinte uelas a sepultura a onde estarão as esporas ou/ao? officio darão meio tostam a cada hum. Mando que uistão doas/dous? pobres dous machos e duas femeas dando lhe a cada hum casaquuo? caluez?? meias e chapeo e as femeas saia e iubão ___ atilhos. Mando me acompanhem os padres da senhora da Estrella e lhe darão sua uella e de esmola quinhentos reis a cada hum e uindo a tempo que digão missa se lha dara a escola de oitenta reis e para a comoridade? des alqueires de trigo e deixo mais outros des alqueires a santa casa da misericordia pera os pobres deixo mais me cantem athe a sepultura sete respo ____ e me lembrarão os cinos? das tres freguezias Deixo Deixo [sic] me digão pella minha alma as tres missas da Rainha D. Catarina e mais sincoenta missas Deixo pella alma de meu pai e minha mai quarenta missas e dous trintarios?? e pella alma de meu irmão Francisco de Alua quarenta missas e pella alma de minha molher Antonia Mendes sincoenta e mais dous trintarios serrados de S Amador? e pella minha seis tambem de S Amador ., (paragrafo?) e por encargos de que não sou / [f. ??] (coisa em cima) sabedor trinta missas e pellas almas do fogo do purgatorio trinta . Mando se de a meu sobrinho Pedro os bois que tiuer e as bestas? com a metade da lauaria?? assim do alqueue?? como de o pão que ouuer sameado e hum moio de pão não cesando com minha uida porque se casar a minha uontade e eu lhe der a per que// porque se cossar?? a minha uontade e eu lhe der algua couza? não tera lugar este Legado , e Declaro que tendo affeitto o ditto lefado e morrendo o ditto Pedro estando ainda enteros i?? bois bestas e alqueue e o mais podera testar delle pella sua alma ou filhos legitimos e não testando ina? o meu erdeiro Deixo mais ao ditto Pedro huma cama dous colchois quatro lensois huma c___ hum cobertor e dous trauiseiros com hum catre uermelho e os cordeiros de caza e hum bufete grande mais tres toalhas de maos duas de meza meia duzia de guardanapos e a sua cama em que dorme e hum arcão com fichadura . Deixo o meu negro liure e lhe darão sua cama e seis mil reis e o uestirão de baetta com condisão que casara com minha escraua Lucresia porque não querendo casar com ella nam ficara liure . Deixo a minha negra Lucresia com sua filha Michaela liures e lhe deixo os seus fatos e cama e hum meio de senteio e des mil reis e deixo a Michaela vinte mil reis em dinheiro os quais tera o Doutor Pedro Viuos? em seu poder para lhos entregar a todo tempo que casar e não casando the idade de dezoitto annos lhos entregara o ditto Pedro Viuos para a ditta Michaela agenciar sua uida com elles e enquanto lhos não Der e tiuer em seu poder lhe dara des tostois a Rezão de iuro pera seu sustento em cada hum anno Deixo a ditta Michaela huma carcha?? da terra noua? que esta en caza dous trauiseiros e dous lensois e hum colcham e huma esteira e hum uestido com sua mantilha e outro uestido a mai e mantilha Deixo mais as minhas casas da Rua do ?? para uiuerem nellas a ditta Lucresia e Michaela ficando de huma a outra e per sua morte? de ambas se anexarão a minha cappella que neste testamento hei de fazer e lhe darão para ornatto e seruisso de sua casa alguidares e bancos e toda lousa hum tacho e huma baua____? sendo a grande? e sua almofada e bilras e hua [sic] arca de pao e dous espettos e tempre e hum colcham e dous lensois e huma manta e chumato e assi mais leh deixo a michaela huma terra que se chama ao curral dos Bofes e tendo filhos a ditta Michaela de legitimo matrimonio lhe ficara a terra para sempre e a podera uender e assi mais se lha dara a ditta Michaela uinte alqueres de trigo Deixo a minha afilhada jsabel filha de Antonio Vas Bello des mil reis . …" -
"Antigamente qualquer coisinha tinha uma empregada:"
(As primeiras palavras saem comovidas e presas) Benedita Vau: Nasci em janeiro de 1942. Foi em L. Quer dizer, sou do concelho de…, distrito da Guarda, na Serra da Estrela. P: Como era a sua família? Benedita Vau: A minha família, quer dizer, pobres…tudo trabalhava…o meu pai andou no carvão, mas na serra, no carvão, e a minha mãe ajudava. Havia também uma fazenda, quer dizer, eles tomavam conta da fazenda, eram caseiros. Tínhamos assim uma casinha, mas era dos senhores. Era onde tínhamos vacas e galinhas, quer dizer, tínhamos assim um bocadinho de tudo. P: Lembra-se da sua casa? Benedita Vau: Bem, aquilo não era bem uma casa…era o que se pode dizer umas calheiras. Era assim que se dizia. Só havia uma divisão para a gente estar e para o comer dos animais. Era o feno, a cana, a erva que se colhia para eles comerem quando vinha a geada e não tinham que comer. Depois eu saí…estive até aos 10 anos com a minha mãe e saí de casa muito nova. Nós éramos 6, 6 irmãos que agora só temos 4. E fui servir para uma terra que era próxima da minha. A pé ainda demorávamos muito tempo, quase três horas. Os senhores eram sapateiros. P: Como se chamava esse lugar? Benedita Vau: Esse lugar era S. Lá estava um irmão meu com esses senhores e eu fui para o pé dele onde trabalhava também. Nós lá fazíamos de tudo, mas não pagavam, vou já dizer. P: E ficavam lá a dormir ou iam para casa? Benedita Vau: Não, não, estava mesmo lá cativa. O meu irmão guardava as cabras e ovelhas. O meu irmão guardava isso e eu estava do lado dos senhores. P: Foi para lá por serem conhecidos dos seus pais? Benedita Vau: Quer dizer, aí foi o meu irmão que estava e ele perguntou se eu queria ir, e eu fui. Quer dizer, com muitos em casa, não há assim muito que comer, e a gente desaba cada um para cada lado. Antigamente era assim: quem era rico, ficava. Quem era assim pobrezinho, íamos embora. P: Fez a escola? Benedita Vau: Fiz, mas não fiz. Andei lá, e depois fui-me embora. Andei na 1ª classe. Mas depois, quando fui ter com o meu irmão…dessas senhoras fui para outras. Deixei o meu irmão e fui para outra que me dava poucochinho, mas pagavam-me. Essa senhora era professora. P: Nessa altura, como era o seu dia de trabalho? Benedita Vau: Limpava a casa… Na casa com o meu irmão, tinha um quartinho para mim. Levantava-me às sete e meia e a senhora levantava-se também. Ela tinha um casalinho e eu levava a menina à escola. Ainda ficava assim um bocadinho distante e eu ia pô-la à escola. Depois da escola, limpava a casita. A senhora ensinava-me e eu ia limpando. Ia levar o comer onde andava o meu irmão. A seguir tratávamos os dois da horta com alfaces e cenouras e assim… P: E cozinhava? Benedita Vau: Não, não. Na cozinha, não. Ajudava a descascar as batatas, mas era a senhora que cozinhava. P: Tem boas recordações? Benedita Vau: Quer dizer, eu até gostava dos senhores, principalmente da senhora, que era muito boa senhora. Ela era sobrinha de um padre e era mesmo muito boa pessoa. Ele é que não. Ela era uma santa e às vezes até sonho com ela. Bem, mas depois saí dessa casa e fui para casa daquela professora. Aí já era mais velha, tinha 14, 15 anos. Aí já cozinhava e ajudava. Aí com os meus 14 anos fui então para casa dessa professora que vivia com um cunhado. E estávamos então lá em S., mas fins-de-semana e férias íamos passar para outro sítio e levavam-me. Estive lá muito tempo. Aprendi a ler, mas não aprendi a escrever. Só sei assinar o meu nome. P: Essa senhora ajudou? Benedita Vau: Não, não, é que ela lia muitos jornais e eu aprendi com ela a ler no jornal. Ela também era muito religiosa. Obrigava-nos todos os dias a rezar o terço. Leio tudo, mas escrever, não. Na escola só andei na 1ª classe porque eu não gostava muito de andar na escola e então fugia. A minha mãe pagava as multas. Naquela altura pagava-se multas por não ir e a professora mandava recados porque eu aprendia muito bem - porque é que não ia para a escola? Depois eu disse-lhe que não ia, e não fui. P: Isso também a ajudou a sair mais cedo? Era costume na terra que as raparigas fossem para servir? Benedita Vau: Sim, tudo trabalhava. Em geral, havia muita gente que saiu para servir de lá das nossas terras. A única que foi até à 4ª classe foi uma irmã mais nova. P: E como era com as refeições? Benedita Vau: Comíamos na cozinha, nunca comíamos com os patrões. Mas o que eles comiam comíamos nós. Primeiro servia à mesa, e só depois ia comer. P: Essa casa era de pessoas com algumas possibilidades? Benedita Vau: Não, naquela onde fui para a segunda vez era de uma família que podia mais. Os senhores primeiros, não. P: Tinha tempo para si? Benedita Vau: Sim, podia fazer coisinhas para mim. Ao domingo deixavam-me sair com as colegas. Podíamos ir passear. Se alguma lá quisesse ir a casa, também lá podiam ir porque elas davam-me autorização. Mas tinham de ser pessoas com quem elas vissem que nós podíamos andar, porque às vezes a gente arranjava companhias que elas diziam que a gente não…que era assim…enfim… P: Como descansava? Benedita Vau: Era ao domingo. A gente podia estar sentada se quisesse ficar em casa e podíamos sair. Em questão de descanso não me queixo muito. P: Tinha os seus objetos? Benedita Vau: Sim, tinha as minhas coisinhas. Tinha a minha roupa para vestir, mas tinha de andar fardada. As fardas era a senhora que comprava. As minhas só podia vestir ao domingo. P: Como é que foi tornar-se uma mulherzinha? Benedita Vau: Quer dizer, na questão do período, eu não sabia de nada. Ainda estava cá em cima quando isso aconteceu, mas a senhora fez-me umas toalhinhas e deu-me. P: Como é que olhava para aquela pessoa? Benedita Vau: Eu sentia-me bem com a senhora. Fui-me mais embora porque eu estava ali e não recebia nada. Ela comprava-me uma roupita e não valia a pena. O meu irmão também me disse que eu estava ali e não lucrava nada e então fui para aquela senhora. P: E tinha saudades de casa? Benedita Vau: Tinha… tinha saudades da minha mãe… às vezes ia e depois, quando estava na outra, já não ia tantas vezes à serra porque o meu irmão também já não ia tantas vezes, e assim fui passando. P: Nesta segunda casa, havia muitas regras? Benedita Vau: Eu…(grande hesitação)… como é que eu vou explicar? Havia lá um rapazinho que andava atrás de mim, mas, nessa altura a senhora soube e não me deixava sair. P: Não aceitava isso bem… Benedita Vau: Era nova e não queria que eu lhe falasse. Não queriam que eu o namorasse. Como eu não sabia nada da vida eu perguntava-lhes porquê? E ela dizia que ele era mais velho do que eu, mas eu não deixei o rapaz. Continuei a encontrar-me com ele às escondidas, mas namorei. Ela depois percebeu. Eles queriam fazer como se fossem meus pais. Mas eu queria namorar embora depois também nos tivéssemos zangado. P: Então namorar é que era mesmo proibido? Benedita Vau: Namorar não me deixava, mas eu continuei a namorar. Mas depois também nos zangámos. Acabou tudo e…acabou, pronto. P: Em alguns momentos davam-lhe presentes, talvez para compensar não ter salário? Benedita Vau: Olhe, menina, a senhora tinha em Coimbra uma afilhada que a gente ia lá muita vez. E a afilhada era casada, tinha um menino e essa dava-me coisinhas dela, roupa que fosse boa, sapatos…quer dizer, coisas novas, mas não era sempre. P: E para o seu enxoval? Benedita Vau: Às vezes eu comprava peças de lençol, porque antigamente não havia assim nada feito, a gente é que comprava e comecei a fazer assim o meu enxoval. A senhora também fez umas rendinhas e deu-mas, e também me comprava assim umas toalhinhas…e oferecia… P: No Natal? Benedita Vau: Não, porque antigamente o Natal não era assim como agora. Eu nunca soube o que era o Natal; o Natal, embora fizessem qualquer coisa, não faziam trocas de presentes…não, nem em casa, nada disso. Só quando vi para cá, vim para cá com 19 anos e mesmo a senhora não era assim de fazer uma noite de Natal, como agora se faz. Com a minha mãe, já se fazia o Natal que era fritar, comprar massa, esticar e fazer massa com açúcar e canela. Lembra-me assim do Natal. Só assim, mais nada! P: Disse-me que era da zona da Guarda…já ouviu falar na Obra de Previdência e Formação de Criadas? Eles tinham lá uma sede e eram ligados à Igreja Católica e era uma obra de um padre que era ali da região da Guarda. Nunca ouviu falar nesta instituição, nem tentaram falar consigo? Benedita Vau: Não, nunca ouvi nada. P: Nem quando chegou a Lisboa? Benedita Vau: Não, não. Nada. P: Veio para Lisboa como? Benedita Vau: Vim através de uma amiga lá da terra e fiquei sempre na mesma casa. Dos 14 aos 19 estive sempre lá acima, nessa terra, em S. Estive na mesma terra, mas com pessoas diferentes. P: Nesse tempo fazia todo o tipo de trabalho? Benedita Vau: Não, não, não… P: Era a única que lá estava a servir? Benedita Vau: Era, só era eu. Só quando ia para Coimbra é que a senhora já tinha uma empregada e aí já nos juntávamos, já saíamos as duas à noite, porque ela conhecia aquilo e depois levava-me. Quando, ao contrário, a senhora ia lá a S., ela também levava a empregada e a gente também saía. P: Esta senhora não tinha filhos? Benedita Vau: Não, aquela onde eu estava não. Mas a que vinha de Coimbra tinha um filho. P: Nunca teve de cuidar das crianças, como uma ama? Benedita Vau: Não, não…nunca tive nada disso. P: Quanto é que ganhava, lembra-se? Benedita Vau: Ah, muito poucochinho…eu já nem sei dizer, mas era assim…quinze euros, ai..quinze escudos!....Nada…eram quinze escudos. P: E esse dinheiro dava para quê? Benedita Vau: Olhe, dava para muita coisa, menina. Pois… a gente tinha o comer, tínhamos dormida, tínhamos tudo. Ora, só se a gente precisava de comprar alguma coisita. Se a gente não precisava de comprar no mês, sempre juntava o dinheiro. P: E em comparação com outras profissões? Não tinham gastos? Benedita Vau: Nós não tínhamos. Se durante a semana a gente andava com a tal farda da casa, só se a gente quisesse uma roupita nova. Roupa interior e assim é que a gente comprava. Mas antigamente a gente comprava as cuecas baratíssimas. Soutiens e tudo. P: Havia já cinemas ou teatros? Benedita Vau: Não, lá não havia nada disso. Lá, por exemplo, quando era pelo Carnaval, eles faziam as coisas na rua. Dançava-se, cantava-se e assim. Mas isso lá cinemas, não. Não podíamos ter extravagâncias. P: E como é que as pessoas iam de um lado ao outro? De comboio? Benedita Vau: Não havia transportes nenhuns desses. Por exemplo, se a gente quisesse – eu não vinha, mas quem quisesse vir – às feiras, ia de camioneta. Esse senhor sapateiro que fazia uma festa anual, em Arganil, e eu ia com eles. Porque a senhora também ia, era a feira anual durante três dias. A gente ficava lá, eu ia com a senhora, levávamos os meninos e eu também ia. Íamos então com o patrão, com os patrões, e íamos para a feira anual a Arganil. P: E ia com a sua farda? Benedita Vau: Não, não… isso já levava uma sainha minha ou um vestidito. Isso aí já não ia fardada. P: Então só em casa? Pode-me dizer como é que era? Tem alguma fotografia? Benedita Vau: (risos) Ai, não tenho. De farda tenho, mas não sei onde é que a tenho. Mas tenho, isso guardei. P: Como era? Benedita Vau: Olhe, nesta altura em que tirei a fotografia estava de bata, tenho a impressão que era azul-escura com o aventalinho branco e a golinha branca. P: As pessoas eram exigentes com a higiene, o serviço da casa, da mesa? Como é que aprendeu? Benedita Vau: Ah.. à mesa ensinaram-me muito bem a servir. Olhe, servia do lado direito… ou do lado esquerdo, agora já não sei (risos), mas sei que era só daquele lado, tirar os copos do coiso, tirar os pratos, isso eu sabia fazer muito bem, até porque ainda sei fazer. Se tiver cá gente, ainda faço. P: Continua a respeitar essas regras Benedita Vau: Exatamente. Mas era assim. Estavam sempre a ver como devia ser. Às vezes tocavam a campainha para a gente ir ver o que era. P: Havia troca de palavras quando essas pessoas estavam, ou o seu papel era mais de estar em silêncio? Benedita Vau: Não, estava na cozinha à espera que chamassem e ajudava assim na sala (alguma resistência em falar, diminuição do tom de voz). P: Não participava nessas reuniões? Benedita Vau: Não, quer dizer, se estivéssemos ao pé dos patrões, não. Sentava-me sempre na cozinha e quando elas depois chamavam… P: Agora vamos fazer uma viagem até Lisboa. Gostava que, dentro do possível, me descrevesse como é que foi essa chegada a Lisboa. Benedita Vau: Tinha 19 anos quando vim para Lisboa. Olhe, menina, eu, da terra, tinha e tenho uma irmã ali em Sacavém. Estava casada e quando vim, em vez de ir logo para casa da senhora onde vinha para servir, vim para casa da minha irmã. Vim de comboio. Fiquei em Sacavém. Dormi lá essa noite. Já era noite e o meu cunhado foi-me buscar ao comboio. Cheguei de noite e fiquei lá. Ao outro dia, ele veio pôr-me a Lisboa, porque eu não conhecia nada e ele veio pôr-me à direção que eu trazia que era aqui na Av. G., numa vivenda, que era a mãe da senhora para donde eu vinha. Ia ter ali com essa senhora. Apresentei-me ali (e o que é que lhe perguntaram? O que é que queriam saber de si, já vinha com uma referência?) Já vinha de lá o que eu sabia fazer... e assim não pediam informações disto e daquilo. Ela perguntou se eu gostei de ter vindo e eu disse que não conhecia ninguém. Que não sabia se ia gostar… eu uma vez fui ter ao Fundão – já que a menina está a perguntar. Foram-me pôr lá e eu vim novamente com o meu pai (voz assertiva). Não quis lá ficar. Queriam que eu fosse para aí, que tinha lá uma tia minha. Eu ia para ao pé da minha tia e eu não gostei nada daquilo e disse que não queria lá ficar, e chorei, e vim-me embora. O meu pai trouxe-me outra vez. Por isso se eu agora não gostasse eu teria que me ir embora. Ficar aqui, estar contrariada, e para mais que não conhecia…isto aqui era coiso e eu não conhecia nada…e eu disse-lhe que se gostasse de ficar, ficava; se não gostasse, que ia para o pé da minha irmã e que depois ia para a terra outra vez. Então veio a filha da senhora e fui para a 5 de outubro. Fui para a 5 de outubro. E ali estive desde os 19 até que me casei, aos 24 anos. P: Como é que viu Lisboa? Como é que olhava para Lisboa? Benedita Vau: Olhe, menina, Lisboa não era nada daquilo que é hoje. Não havia tantos carros. Não havia… assim… nada, quer dizer, era diferente, pronto. P: Estávamos no ano de… Benedita Vau: Bom, eu tinha 19, em que ano estávamos? (Faço contas e chego ao ano de 1961) P: Como era o prédio para onde foi trabalhar? Benedita Vau: Era num segundo andar… P: E como era a família? Benedita Vau: Olhe, a família era…a senhora. Ele era engenheiro. Ela não fazia nada e tinha uma filha. Não me lembro bem que idade é que tinha a menina, mas …quando vim para esta casa ia casar uma rapariga que lá estava. Eu ainda estive um mês e tal com ela. E como também era lá de cima, a rapariguinha disse-me logo as coisas da casa, como eles eram…como ele era… P: E posso saber o que é que ela lhe disse? Benedita Vau: Ela disse que a senhora era assim um bocadinho…embirrante. Ele, não tanto, mas que não era de muitas palavras, o senhor. E que tínhamos que estar sempre com atenção porque de manhã ele levantava-se cedo e queria o pequeno-almoço na sala. Mas, como estive com ela esse mês…aprendi a fazer as coisas como devia. Estivemos esse mês e eu aprendi. As camisas eram passadas todos os dias: eram muito bem engomadinhas. Eram brancas; parecia que tinham goma e eu tive de começar logo por aí, com ela, a aprender a engomar as camisas. Eles não davam nada a engomar. Tínhamos que nós escovar tudo muito bem escovadinho, passar um pano com Benzovac para tirar as nódoas…também fazíamos esse serviço. …Depois a rapariga casou e eu fiquei com o encargo todo, não tinha mais ninguém. P: E para além da roupa muito bem engomada, havia mais regras? Benedita Vau: Aí já me levantava mais tarde. Às 8 horas. O almoço era servido ao meio-dia. Ele vinha e tinha que estar pronto. O jantar era às sete, sete e meia. Também nunca jantavam mais tarde. Ao domingo é que era diferente. Íamos todos os domingos almoçar a casa da mãe do senhor. Ora, ao domingo eles levantavam-se às quatro da tarde… era…, mas repare, a gente lavava a roupa à mão. Lá em S., ia para a ribeira lavar. Aqui não. A única coisa que havia de electrodoméstico era o frigorífico. Que já lá para cima também havia. E lá ia para a ribeira: ia muito cedo, descalça, lavava, estendia a roupa a corar e tal, e depois ia comer, e depois ia outra vez e punha a roupa a enxugar. Isso é lá em cima. Aqui, ao domingo, punha a roupa à noite na saponária e, como eles se levantavam tarde, fazia uma saponária à roupa, punha-a no tanque e ao domingo de manhã, primeiro ia à missa, à Igreja de Fátima, e depois da missa tomava o café, e então lavava a roupa. P: Ia à missa porque queria ou alguém lhe dizia para ir? Benedita Vau: Não, eu também gostava. Eu gostava de ir à missa. P: Mas ia sozinha ou com as senhoras da casa? Benedita Vau: Não, não, as senhoras nunca foram à missa. A gente é que ia à missa, nós é que íamos sempre. P: Ia com quem? Benedita Vau: Sim, aqui a rapariga que estava na mãe do senhor, ela mais ou menos à hora dizia “Desce, que a gente vai.” Eu descia e íamos as três, porque o prédio era grande. Tinha quatro pessoas. Quer dizer, o prédio era de esquina. E então juntávamo-nos todas as quatro e íamos à missa. Era uma paródia. P: Era uma paródia? Benedita Vau: Ai era, menina. Falávamos dos rapazitos e…olhe, fartávamo-nos de coiso. Saíamos da missa e tínhamos que ir logo para casa. Porque eles sabiam a hora a que acabava a missa. P: Como era o quarto da sua casa? Benedita Vau: Eu tinha o meu quarto, mesmo dentro de casa eu tinha o meu quarto e casinha de banho. Este prédio era na 5 de outubro. Tinha uma casinha de banho para mim e o meu quartinho. A cama era um divã. Quer dizer, era um divã, mas não era de puxar. Tinha um roupeirozinho que era onde a senhora tinha a roupa dela, e da menina. Era grande, era de parede. Tinha uma janelinha pequena. Tomava bem ar. Mas dava tudo para as traseiras. . P: Que objectos é que tinha trazido consigo? Ou valores? Benedita Vau: Não, não tinha nada de valor. Só tinha trazido a minha roupita e mais nada. Coisas de valor não tinha. Quer dizer, o meu enxovalito que fiz lá em cima ficou na minha mãe. Mas não trouxe nada. Não tinha nada. P: E aqui não ganhava nada? Benedita Vau: Aqui já vim ganhar 500$00. P: E isso era bom? Benedita Vau: Era, era menina. Porque eu aí juntava também dinheiro. Eu não era estragada. Aí, como já havia cinema, às vezes íamos ao cinema. Entre nós todas era barato. Quer dizer, barato?! Quer dizer, pouca gente ganhava e era barato porque a gente juntava dinheiro. Já comprava, não sei se a menina sabe, estas mulheres à porta para venderem coisas…roupa, lençóis, isto ou aquilo. Era às portas que mostravam aquelas coisas dentro de umas alcofas grandes e perguntavam se a gente queria ou não queria. Mas não era pela porta, era do lado da porta de serviço que às vezes a porteira não as deixava passar. A gente gostava de ver. Elas tinham que subir de elevador porque não tinham as escadas. E então a gente gostava de ver. Benedita Vau: Às vezes juntávamo-nos ali na varanda, que aquilo tem uma varanda rodada para os quatro inquilinos e a gente via… Às vezes estávamos ali até à meia-noite. Às vezes lá vinha a senhora dizer: Oh meninas!...JÀ é hora de ir para casa… (como quem chama) P: Como é que se juntavam? Benedita Vau: Olhe, tinha uma marquisezinha. A marquise dava para a varanda que era a todo o comprimento do prédio. E então todas elas tinham empregadas, que antigamente toda a coisinha tinha uma empregada. P: Mesmo pessoas com poucas possibilidades? Benedita Vau: Exatamente, porque também pagavam pouco e toda a gente tinha…E então a mais velha que lá estava era uma que dava do lado contrário da nossa 5 de outubro. Mas era muito boa rapariga, aconselhava-nos bem – era a mais velha, mas aconselhava-nos bem. P: Então conseguiam estar ali até à meia-noite? Benedita Vau: Conseguíamos estar ali até à meia-noite. Mas às vezes não podia porque vinha gente de fora… lá os senhores tinham gente e tinha que estar à espera para servir chá, ou isto, ou aquilo. Quando os patrões tinham gente, eu não podia ir. Dava uma escapadela, mas era poucochinho…, mas quando não tínhamos assim que fazer, que os senhores estavam a ver televisão, a gente estava a conversar. Estávamos ali todas. Tinha uma amiga (corrige para colega) que era alentejana; que até foi a madrinha da minha filha mais velha, que era também empregada; chamava-se D.. A gente ficámos sempre amigas… quer dizer, ainda hoje somos amigas. Elas telefonam-me, eu telefono-lhes. Vivíamos ali, quer dizer, parecia que éramos uma família. Estávamos como se fosse uma família. Mas todas ficámos sempre a ser amigas. P: E eram internas? (silêncio) Dormiam lá? Benedita Vau: Sim, era tudo lá. Não, a gente não ia nenhuma sair da casa da senhora. P: Porque é que disse há pouco que “Qualquer coisinha tinha uma pessoa para a ajudar”? Deu-me a entender que não eram só as pessoas mais ricas que tinham uma pessoa dentro de casa. A senhora acha que era mesmo assim? Benedita Vau: Eu acho que sim… sim, por exemplo, onde estava essa minha amiga, a D., que eram já uns senhores de muita idade. O senhor podia ter sido alguma coisa em novo, mas depois também já não era assim de muitas posses para pagar a uma empregada. É isso. Por isso é que havia muita gente, quer dizer, muitas criaditas! E a gente quando se juntava, olhe!.... P: Porque é que diz que eram criaditas? Benedita Vau: Porque éramos piquenas, porque não tínhamos ninguém que nos defendesse, a não sermos umas às outras e, às vezes, bem, eu tive muita sorte por onde andei. Todos eles se interessaram muito por mim. Até esta aqui de Lisboa. Ajudou-me muito e a filha foi ser minha madrinha de casamento. P: E hoje ainda se dão bem? Benedita Vau: Damos, damos. Até com a mãe. E a filha mora lá na casa da mãe. A mãe foi para Sesimbra. Ainda lá fiquei a trabalhar durante um ano depois de casada, que ela não arranjou logo, mas depois veio uma rapariguinha lá de Manteigas. Eu fiquei ainda de manhã, e saía à tarde. P: E vinham todas ali da Beira… Benedita Vau: Alentejanas havia poucas. O resto era tudo lá de cima, até havia uma de Vinhais. (As primeiras palavras saem comovidas e presas) Benedita Vau: Nasci em janeiro de 1942. Foi em L. Quer dizer, sou do concelho de…, distrito da Guarda, na Serra da Estrela. P: Como era a sua família? Benedita Vau: A minha família, quer dizer, pobres…tudo trabalhava…o meu pai andou no carvão, mas na serra, no carvão, e a minha mãe ajudava. Havia também uma fazenda, quer dizer, eles tomavam conta da fazenda, eram caseiros. Tínhamos assim uma casinha, mas era dos senhores. Era onde tínhamos vacas e galinhas, quer dizer, tínhamos assim um bocadinho de tudo. P: Lembra-se da sua casa? Benedita Vau: Bem, aquilo não era bem uma casa…era o que se pode dizer umas calheiras. Era assim que se dizia. Só havia uma divisão para a gente estar e para o comer dos animais. Era o feno, a cana, a erva que se colhia para eles comerem quando vinha a geada e não tinham que comer. Depois eu saí…estive até aos 10 anos com a minha mãe e saí de casa muito nova. Nós éramos 6, 6 irmãos que agora só temos 4. E fui servir para uma terra que era próxima da minha. A pé ainda demorávamos muito tempo, quase três horas. Os senhores eram sapateiros. P: Como se chamava esse lugar? Benedita Vau: Esse lugar era S. Lá estava um irmão meu com esses senhores e eu fui para o pé dele onde trabalhava também. Nós lá fazíamos de tudo, mas não pagavam, vou já dizer. P: E ficavam lá a dormir ou iam para casa? Benedita Vau: Não, não, estava mesmo lá cativa. O meu irmão guardava as cabras e ovelhas. O meu irmão guardava isso e eu estava do lado dos senhores. P: Foi para lá por serem conhecidos dos seus pais? Benedita Vau: Quer dizer, aí foi o meu irmão que estava e ele perguntou se eu queria ir, e eu fui. Quer dizer, com muitos em casa, não há assim muito que comer, e a gente desaba cada um para cada lado. Antigamente era assim: quem era rico, ficava. Quem era assim pobrezinho, íamos embora. P: Fez a escola? Benedita Vau: Fiz, mas não fiz. Andei lá, e depois fui-me embora. Andei na 1ª classe. Mas depois, quando fui ter com o meu irmão…dessas senhoras fui para outras. Deixei o meu irmão e fui para outra que me dava poucochinho, mas pagavam-me. Essa senhora era professora. P: Nessa altura, como era o seu dia de trabalho? Benedita Vau: Limpava a casa… Na casa com o meu irmão, tinha um quartinho para mim. Levantava-me às sete e meia e a senhora levantava-se também. Ela tinha um casalinho e eu levava a menina à escola. Ainda ficava assim um bocadinho distante e eu ia pô-la à escola. Depois da escola, limpava a casita. A senhora ensinava-me e eu ia limpando. Ia levar o comer onde andava o meu irmão. A seguir tratávamos os dois da horta com alfaces e cenouras e assim… P: E cozinhava? Benedita Vau: Não, não. Na cozinha, não. Ajudava a descascar as batatas, mas era a senhora que cozinhava. P: Tem boas recordações? Benedita Vau: Quer dizer, eu até gostava dos senhores, principalmente da senhora, que era muito boa senhora. Ela era sobrinha de um padre e era mesmo muito boa pessoa. Ele é que não. Ela era uma santa e às vezes até sonho com ela. Bem, mas depois saí dessa casa e fui para casa daquela professora. Aí já era mais velha, tinha 14, 15 anos. Aí já cozinhava e ajudava. Aí com os meus 14 anos fui então para casa dessa professora que vivia com um cunhado. E estávamos então lá em S., mas fins-de-semana e férias íamos passar para outro sítio e levavam-me. Estive lá muito tempo. Aprendi a ler, mas não aprendi a escrever. Só sei assinar o meu nome. P: Essa senhora ajudou? Benedita Vau: Não, não, é que ela lia muitos jornais e eu aprendi com ela a ler no jornal. Ela também era muito religiosa. Obrigava-nos todos os dias a rezar o terço. Leio tudo, mas escrever, não. Na escola só andei na 1ª classe porque eu não gostava muito de andar na escola e então fugia. A minha mãe pagava as multas. Naquela altura pagava-se multas por não ir e a professora mandava recados porque eu aprendia muito bem - porque é que não ia para a escola? Depois eu disse-lhe que não ia, e não fui. P: Isso também a ajudou a sair mais cedo? Era costume na terra que as raparigas fossem para servir? Benedita Vau: Sim, tudo trabalhava. Em geral, havia muita gente que saiu para servir de lá das nossas terras. A única que foi até à 4ª classe foi uma irmã mais nova. P: E como era com as refeições? Benedita Vau: Comíamos na cozinha, nunca comíamos com os patrões. Mas o que eles comiam comíamos nós. Primeiro servia à mesa, e só depois ia comer. P: Essa casa era de pessoas com algumas possibilidades? Benedita Vau: Não, naquela onde fui para a segunda vez era de uma família que podia mais. Os senhores primeiros, não. P: Tinha tempo para si? Benedita Vau: Sim, podia fazer coisinhas para mim. Ao domingo deixavam-me sair com as colegas. Podíamos ir passear. Se alguma lá quisesse ir a casa, também lá podiam ir porque elas davam-me autorização. Mas tinham de ser pessoas com quem elas vissem que nós podíamos andar, porque às vezes a gente arranjava companhias que elas diziam que a gente não…que era assim…enfim… P: Como descansava? Benedita Vau: Era ao domingo. A gente podia estar sentada se quisesse ficar em casa e podíamos sair. Em questão de descanso não me queixo muito. P: Tinha os seus objetos? Benedita Vau: Sim, tinha as minhas coisinhas. Tinha a minha roupa para vestir, mas tinha de andar fardada. As fardas era a senhora que comprava. As minhas só podia vestir ao domingo. P: Como é que foi tornar-se uma mulherzinha? Benedita Vau: Quer dizer, na questão do período, eu não sabia de nada. Ainda estava cá em cima quando isso aconteceu, mas a senhora fez-me umas toalhinhas e deu-me. P: Como é que olhava para aquela pessoa? Benedita Vau: Eu sentia-me bem com a senhora. Fui-me mais embora porque eu estava ali e não recebia nada. Ela comprava-me uma roupita e não valia a pena. O meu irmão também me disse que eu estava ali e não lucrava nada e então fui para aquela senhora. P: E tinha saudades de casa? Benedita Vau: Tinha… tinha saudades da minha mãe… às vezes ia e depois, quando estava na outra, já não ia tantas vezes à serra porque o meu irmão também já não ia tantas vezes, e assim fui passando. P: Nesta segunda casa, havia muitas regras? Benedita Vau: Eu…(grande hesitação)… como é que eu vou explicar? Havia lá um rapazinho que andava atrás de mim, mas, nessa altura a senhora soube e não me deixava sair. P: Não aceitava isso bem… Benedita Vau: Era nova e não queria que eu lhe falasse. Não queriam que eu o namorasse. Como eu não sabia nada da vida eu perguntava-lhes porquê? E ela dizia que ele era mais velho do que eu, mas eu não deixei o rapaz. Continuei a encontrar-me com ele às escondidas, mas namorei. Ela depois percebeu. Eles queriam fazer como se fossem meus pais. Mas eu queria namorar embora depois também nos tivéssemos zangado. P: Então namorar é que era mesmo proibido? Benedita Vau: Namorar não me deixava, mas eu continuei a namorar. Mas depois também nos zangámos. Acabou tudo e…acabou, pronto. P: Em alguns momentos davam-lhe presentes, talvez para compensar não ter salário? Benedita Vau: Olhe, menina, a senhora tinha em Coimbra uma afilhada que a gente ia lá muita vez. E a afilhada era casada, tinha um menino e essa dava-me coisinhas dela, roupa que fosse boa, sapatos…quer dizer, coisas novas, mas não era sempre. P: E para o seu enxoval? Benedita Vau: Às vezes eu comprava peças de lençol, porque antigamente não havia assim nada feito, a gente é que comprava e comecei a fazer assim o meu enxoval. A senhora também fez umas rendinhas e deu-mas, e também me comprava assim umas toalhinhas…e oferecia… P: No Natal? Benedita Vau: Não, porque antigamente o Natal não era assim como agora. Eu nunca soube o que era o Natal; o Natal, embora fizessem qualquer coisa, não faziam trocas de presentes…não, nem em casa, nada disso. Só quando vi para cá, vim para cá com 19 anos e mesmo a senhora não era assim de fazer uma noite de Natal, como agora se faz. Com a minha mãe, já se fazia o Natal que era fritar, comprar massa, esticar e fazer massa com açúcar e canela. Lembra-me assim do Natal. Só assim, mais nada! P: Disse-me que era da zona da Guarda…já ouviu falar na Obra de Previdência e Formação de Criadas? Eles tinham lá uma sede e eram ligados à Igreja Católica e era uma obra de um padre que era ali da região da Guarda. Nunca ouviu falar nesta instituição, nem tentaram falar consigo? Benedita Vau: Não, nunca ouvi nada. P: Nem quando chegou a Lisboa? Benedita Vau: Não, não. Nada. P: Veio para Lisboa como? Benedita Vau: Vim através de uma amiga lá da terra e fiquei sempre na mesma casa. Dos 14 aos 19 estive sempre lá acima, nessa terra, em S. Estive na mesma terra, mas com pessoas diferentes. P: Nesse tempo fazia todo o tipo de trabalho? Benedita Vau: Não, não, não… P: Era a única que lá estava a servir? Benedita Vau: Era, só era eu. Só quando ia para Coimbra é que a senhora já tinha uma empregada e aí já nos juntávamos, já saíamos as duas à noite, porque ela conhecia aquilo e depois levava-me. Quando, ao contrário, a senhora ia lá a S., ela também levava a empregada e a gente também saía. P: Esta senhora não tinha filhos? Benedita Vau: Não, aquela onde eu estava não. Mas a que vinha de Coimbra tinha um filho. P: Nunca teve de cuidar das crianças, como uma ama? Benedita Vau: Não, não…nunca tive nada disso. P: Quanto é que ganhava, lembra-se? Benedita Vau: Ah, muito poucochinho…eu já nem sei dizer, mas era assim…quinze euros, ai..quinze escudos!....Nada…eram quinze escudos. P: E esse dinheiro dava para quê? Benedita Vau: Olhe, dava para muita coisa, menina. Pois… a gente tinha o comer, tínhamos dormida, tínhamos tudo. Ora, só se a gente precisava de comprar alguma coisita. Se a gente não precisava de comprar no mês, sempre juntava o dinheiro. P: E em comparação com outras profissões? Não tinham gastos? Benedita Vau: Nós não tínhamos. Se durante a semana a gente andava com a tal farda da casa, só se a gente quisesse uma roupita nova. Roupa interior e assim é que a gente comprava. Mas antigamente a gente comprava as cuecas baratíssimas. Soutiens e tudo. P: Havia já cinemas ou teatros? Benedita Vau: Não, lá não havia nada disso. Lá, por exemplo, quando era pelo Carnaval, eles faziam as coisas na rua. Dançava-se, cantava-se e assim. Mas isso lá cinemas, não. Não podíamos ter extravagâncias. P: E como é que as pessoas iam de um lado ao outro? De comboio? Benedita Vau: Não havia transportes nenhuns desses. Por exemplo, se a gente quisesse – eu não vinha, mas quem quisesse vir – às feiras, ia de camioneta. Esse senhor sapateiro que fazia uma festa anual, em Arganil, e eu ia com eles. Porque a senhora também ia, era a feira anual durante três dias. A gente ficava lá, eu ia com a senhora, levávamos os meninos e eu também ia. Íamos então com o patrão, com os patrões, e íamos para a feira anual a Arganil. P: E ia com a sua farda? Benedita Vau: Não, não… isso já levava uma sainha minha ou um vestidito. Isso aí já não ia fardada. P: Então só em casa? Pode-me dizer como é que era? Tem alguma fotografia? Benedita Vau: (risos) Ai, não tenho. De farda tenho, mas não sei onde é que a tenho. Mas tenho, isso guardei. P: Como era? Benedita Vau: Olhe, nesta altura em que tirei a fotografia estava de bata, tenho a impressão que era azul-escura com o aventalinho branco e a golinha branca. P: As pessoas eram exigentes com a higiene, o serviço da casa, da mesa? Como é que aprendeu? Benedita Vau: Ah.. à mesa ensinaram-me muito bem a servir. Olhe, servia do lado direito… ou do lado esquerdo, agora já não sei (risos), mas sei que era só daquele lado, tirar os copos do coiso, tirar os pratos, isso eu sabia fazer muito bem, até porque ainda sei fazer. Se tiver cá gente, ainda faço. P: Continua a respeitar essas regras Benedita Vau: Exatamente. Mas era assim. Estavam sempre a ver como devia ser. Às vezes tocavam a campainha para a gente ir ver o que era. P: Havia troca de palavras quando essas pessoas estavam, ou o seu papel era mais de estar em silêncio? Benedita Vau: Não, estava na cozinha à espera que chamassem e ajudava assim na sala (alguma resistência em falar, diminuição do tom de voz). P: Não participava nessas reuniões? Benedita Vau: Não, quer dizer, se estivéssemos ao pé dos patrões, não. Sentava-me sempre na cozinha e quando elas depois chamavam… P: Agora vamos fazer uma viagem até Lisboa. Gostava que, dentro do possível, me descrevesse como é que foi essa chegada a Lisboa. Benedita Vau: Tinha 19 anos quando vim para Lisboa. Olhe, menina, eu, da terra, tinha e tenho uma irmã ali em Sacavém. Estava casada e quando vim, em vez de ir logo para casa da senhora onde vinha para servir, vim para casa da minha irmã. Vim de comboio. Fiquei em Sacavém. Dormi lá essa noite. Já era noite e o meu cunhado foi-me buscar ao comboio. Cheguei de noite e fiquei lá. Ao outro dia, ele veio pôr-me a Lisboa, porque eu não conhecia nada e ele veio pôr-me à direção que eu trazia que era aqui na Av. G., numa vivenda, que era a mãe da senhora para donde eu vinha. Ia ter ali com essa senhora. Apresentei-me ali (e o que é que lhe perguntaram? O que é que queriam saber de si, já vinha com uma referência?) Já vinha de lá o que eu sabia fazer... e assim não pediam informações disto e daquilo. Ela perguntou se eu gostei de ter vindo e eu disse que não conhecia ninguém. Que não sabia se ia gostar… eu uma vez fui ter ao Fundão – já que a menina está a perguntar. Foram-me pôr lá e eu vim novamente com o meu pai (voz assertiva). Não quis lá ficar. Queriam que eu fosse para aí, que tinha lá uma tia minha. Eu ia para ao pé da minha tia e eu não gostei nada daquilo e disse que não queria lá ficar, e chorei, e vim-me embora. O meu pai trouxe-me outra vez. Por isso se eu agora não gostasse eu teria que me ir embora. Ficar aqui, estar contrariada, e para mais que não conhecia…isto aqui era coiso e eu não conhecia nada…e eu disse-lhe que se gostasse de ficar, ficava; se não gostasse, que ia para o pé da minha irmã e que depois ia para a terra outra vez. Então veio a filha da senhora e fui para a 5 de outubro. Fui para a 5 de outubro. E ali estive desde os 19 até que me casei, aos 24 anos. P: Como é que viu Lisboa? Como é que olhava para Lisboa? Benedita Vau: Olhe, menina, Lisboa não era nada daquilo que é hoje. Não havia tantos carros. Não havia… assim… nada, quer dizer, era diferente, pronto. P: Estávamos no ano de… Benedita Vau: Bom, eu tinha 19, em que ano estávamos? (Faço contas e chego ao ano de 1961) P: Como era o prédio para onde foi trabalhar? Benedita Vau: Era num segundo andar… P: E como era a família? Benedita Vau: Olhe, a família era…a senhora. Ele era engenheiro. Ela não fazia nada e tinha uma filha. Não me lembro bem que idade é que tinha a menina, mas …quando vim para esta casa ia casar uma rapariga que lá estava. Eu ainda estive um mês e tal com ela. E como também era lá de cima, a rapariguinha disse-me logo as coisas da casa, como eles eram…como ele era… P: E posso saber o que é que ela lhe disse? Benedita Vau: Ela disse que a senhora era assim um bocadinho…embirrante. Ele, não tanto, mas que não era de muitas palavras, o senhor. E que tínhamos que estar sempre com atenção porque de manhã ele levantava-se cedo e queria o pequeno-almoço na sala. Mas, como estive com ela esse mês…aprendi a fazer as coisas como devia. Estivemos esse mês e eu aprendi. As camisas eram passadas todos os dias: eram muito bem engomadinhas. Eram brancas; parecia que tinham goma e eu tive de começar logo por aí, com ela, a aprender a engomar as camisas. Eles não davam nada a engomar. Tínhamos que nós escovar tudo muito bem escovadinho, passar um pano com Benzovac para tirar as nódoas…também fazíamos esse serviço. …Depois a rapariga casou e eu fiquei com o encargo todo, não tinha mais ninguém. P: E para além da roupa muito bem engomada, havia mais regras? Benedita Vau: Aí já me levantava mais tarde. Às 8 horas. O almoço era servido ao meio-dia. Ele vinha e tinha que estar pronto. O jantar era às sete, sete e meia. Também nunca jantavam mais tarde. Ao domingo é que era diferente. Íamos todos os domingos almoçar a casa da mãe do senhor. Ora, ao domingo eles levantavam-se às quatro da tarde… era…, mas repare, a gente lavava a roupa à mão. Lá em S., ia para a ribeira lavar. Aqui não. A única coisa que havia de electrodoméstico era o frigorífico. Que já lá para cima também havia. E lá ia para a ribeira: ia muito cedo, descalça, lavava, estendia a roupa a corar e tal, e depois ia comer, e depois ia outra vez e punha a roupa a enxugar. Isso é lá em cima. Aqui, ao domingo, punha a roupa à noite na saponária e, como eles se levantavam tarde, fazia uma saponária à roupa, punha-a no tanque e ao domingo de manhã, primeiro ia à missa, à Igreja de Fátima, e depois da missa tomava o café, e então lavava a roupa. P: Ia à missa porque queria ou alguém lhe dizia para ir? Benedita Vau: Não, eu também gostava. Eu gostava de ir à missa. P: Mas ia sozinha ou com as senhoras da casa? Benedita Vau: Não, não, as senhoras nunca foram à missa. A gente é que ia à missa, nós é que íamos sempre. P: Ia com quem? Benedita Vau: Sim, aqui a rapariga que estava na mãe do senhor, ela mais ou menos à hora dizia “Desce, que a gente vai.” Eu descia e íamos as três, porque o prédio era grande. Tinha quatro pessoas. Quer dizer, o prédio era de esquina. E então juntávamo-nos todas as quatro e íamos à missa. Era uma paródia. P: Era uma paródia? Benedita Vau: Ai era, menina. Falávamos dos rapazitos e…olhe, fartávamo-nos de coiso. Saíamos da missa e tínhamos que ir logo para casa. Porque eles sabiam a hora a que acabava a missa. P: Como era o quarto da sua casa? Benedita Vau: Eu tinha o meu quarto, mesmo dentro de casa eu tinha o meu quarto e casinha de banho. Este prédio era na 5 de outubro. Tinha uma casinha de banho para mim e o meu quartinho. A cama era um divã. Quer dizer, era um divã, mas não era de puxar. Tinha um roupeirozinho que era onde a senhora tinha a roupa dela, e da menina. Era grande, era de parede. Tinha uma janelinha pequena. Tomava bem ar. Mas dava tudo para as traseiras. . P: Que objectos é que tinha trazido consigo? Ou valores? Benedita Vau: Não, não tinha nada de valor. Só tinha trazido a minha roupita e mais nada. Coisas de valor não tinha. Quer dizer, o meu enxovalito que fiz lá em cima ficou na minha mãe. Mas não trouxe nada. Não tinha nada. P: E aqui não ganhava nada? Benedita Vau: Aqui já vim ganhar 500$00. P: E isso era bom? Benedita Vau: Era, era menina. Porque eu aí juntava também dinheiro. Eu não era estragada. Aí, como já havia cinema, às vezes íamos ao cinema. Entre nós todas era barato. Quer dizer, barato?! Quer dizer, pouca gente ganhava e era barato porque a gente juntava dinheiro. Já comprava, não sei se a menina sabe, estas mulheres à porta para venderem coisas…roupa, lençóis, isto ou aquilo. Era às portas que mostravam aquelas coisas dentro de umas alcofas grandes e perguntavam se a gente queria ou não queria. Mas não era pela porta, era do lado da porta de serviço que às vezes a porteira não as deixava passar. A gente gostava de ver. Elas tinham que subir de elevador porque não tinham as escadas. E então a gente gostava de ver. Benedita Vau: Às vezes juntávamo-nos ali na varanda, que aquilo tem uma varanda rodada para os quatro inquilinos e a gente via… Às vezes estávamos ali até à meia-noite. Às vezes lá vinha a senhora dizer: Oh meninas!...JÀ é hora de ir para casa… (como quem chama) P: Como é que se juntavam? Benedita Vau: Olhe, tinha uma marquisezinha. A marquise dava para a varanda que era a todo o comprimento do prédio. E então todas elas tinham empregadas, que antigamente toda a coisinha tinha uma empregada. P: Mesmo pessoas com poucas possibilidades? Benedita Vau: Exatamente, porque também pagavam pouco e toda a gente tinha…E então a mais velha que lá estava era uma que dava do lado contrário da nossa 5 de outubro. Mas era muito boa rapariga, aconselhava-nos bem – era a mais velha, mas aconselhava-nos bem. P: Então conseguiam estar ali até à meia-noite? Benedita Vau: Conseguíamos estar ali até à meia-noite. Mas às vezes não podia porque vinha gente de fora… lá os senhores tinham gente e tinha que estar à espera para servir chá, ou isto, ou aquilo. Quando os patrões tinham gente, eu não podia ir. Dava uma escapadela, mas era poucochinho…, mas quando não tínhamos assim que fazer, que os senhores estavam a ver televisão, a gente estava a conversar. Estávamos ali todas. Tinha uma amiga (corrige para colega) que era alentejana; que até foi a madrinha da minha filha mais velha, que era também empregada; chamava-se D.. A gente ficámos sempre amigas… quer dizer, ainda hoje somos amigas. Elas telefonam-me, eu telefono-lhes. Vivíamos ali, quer dizer, parecia que éramos uma família. Estávamos como se fosse uma família. Mas todas ficámos sempre a ser amigas. P: E eram internas? (silêncio) Dormiam lá? Benedita Vau: Sim, era tudo lá. Não, a gente não ia nenhuma sair da casa da senhora. P: Porque é que disse há pouco que “Qualquer coisinha tinha uma pessoa para a ajudar”? Deu-me a entender que não eram só as pessoas mais ricas que tinham uma pessoa dentro de casa. A senhora acha que era mesmo assim? Benedita Vau: Eu acho que sim… sim, por exemplo, onde estava essa minha amiga, a D., que eram já uns senhores de muita idade. O senhor podia ter sido alguma coisa em novo, mas depois também já não era assim de muitas posses para pagar a uma empregada. É isso. Por isso é que havia muita gente, quer dizer, muitas criaditas! E a gente quando se juntava, olhe!.... P: Porque é que diz que eram criaditas? Benedita Vau: Porque éramos piquenas, porque não tínhamos ninguém que nos defendesse, a não sermos umas às outras e, às vezes, bem, eu tive muita sorte por onde andei. Todos eles se interessaram muito por mim. Até esta aqui de Lisboa. Ajudou-me muito e a filha foi ser minha madrinha de casamento. P: E hoje ainda se dão bem? Benedita Vau: Damos, damos. Até com a mãe. E a filha mora lá na casa da mãe. A mãe foi para Sesimbra. Ainda lá fiquei a trabalhar durante um ano depois de casada, que ela não arranjou logo, mas depois veio uma rapariguinha lá de Manteigas. Eu fiquei ainda de manhã, e saía à tarde. P: E vinham todas ali da Beira… Benedita Vau: Alentejanas havia poucas. O resto era tudo lá de cima, até havia uma de Vinhais. (As primeiras palavras saem comovidas e presas) Benedita Vau: Nasci em janeiro de 1942. Foi em L. Quer dizer, sou do concelho de…, distrito da Guarda, na Serra da Estrela. P: Como era a sua família? Benedita Vau: A minha família, quer dizer, pobres…tudo trabalhava…o meu pai andou no carvão, mas na serra, no carvão, e a minha mãe ajudava. Havia também uma fazenda, quer dizer, eles tomavam conta da fazenda, eram caseiros. Tínhamos assim uma casinha, mas era dos senhores. Era onde tínhamos vacas e galinhas, quer dizer, tínhamos assim um bocadinho de tudo. P: Lembra-se da sua casa? Benedita Vau: Bem, aquilo não era bem uma casa…era o que se pode dizer umas calheiras. Era assim que se dizia. Só havia uma divisão para a gente estar e para o comer dos animais. Era o feno, a cana, a erva que se colhia para eles comerem quando vinha a geada e não tinham que comer. Depois eu saí…estive até aos 10 anos com a minha mãe e saí de casa muito nova. Nós éramos 6, 6 irmãos que agora só temos 4. E fui servir para uma terra que era próxima da minha. A pé ainda demorávamos muito tempo, quase três horas. Os senhores eram sapateiros. P: Como se chamava esse lugar? Benedita Vau: Esse lugar era S. Lá estava um irmão meu com esses senhores e eu fui para o pé dele onde trabalhava também. Nós lá fazíamos de tudo, mas não pagavam, vou já dizer. P: E ficavam lá a dormir ou iam para casa? Benedita Vau: Não, não, estava mesmo lá cativa. O meu irmão guardava as cabras e ovelhas. O meu irmão guardava isso e eu estava do lado dos senhores. P: Foi para lá por serem conhecidos dos seus pais? Benedita Vau: Quer dizer, aí foi o meu irmão que estava e ele perguntou se eu queria ir, e eu fui. Quer dizer, com muitos em casa, não há assim muito que comer, e a gente desaba cada um para cada lado. Antigamente era assim: quem era rico, ficava. Quem era assim pobrezinho, íamos embora. P: Fez a escola? Benedita Vau: Fiz, mas não fiz. Andei lá, e depois fui-me embora. Andei na 1ª classe. Mas depois, quando fui ter com o meu irmão…dessas senhoras fui para outras. Deixei o meu irmão e fui para outra que me dava poucochinho, mas pagavam-me. Essa senhora era professora. P: Nessa altura, como era o seu dia de trabalho? Benedita Vau: Limpava a casa… Na casa com o meu irmão, tinha um quartinho para mim. Levantava-me às sete e meia e a senhora levantava-se também. Ela tinha um casalinho e eu levava a menina à escola. Ainda ficava assim um bocadinho distante e eu ia pô-la à escola. Depois da escola, limpava a casita. A senhora ensinava-me e eu ia limpando. Ia levar o comer onde andava o meu irmão. A seguir tratávamos os dois da horta com alfaces e cenouras e assim… P: E cozinhava? Benedita Vau: Não, não. Na cozinha, não. Ajudava a descascar as batatas, mas era a senhora que cozinhava. P: Tem boas recordações? Benedita Vau: Quer dizer, eu até gostava dos senhores, principalmente da senhora, que era muito boa senhora. Ela era sobrinha de um padre e era mesmo muito boa pessoa. Ele é que não. Ela era uma santa e às vezes até sonho com ela. Bem, mas depois saí dessa casa e fui para casa daquela professora. Aí já era mais velha, tinha 14, 15 anos. Aí já cozinhava e ajudava. Aí com os meus 14 anos fui então para casa dessa professora que vivia com um cunhado. E estávamos então lá em S., mas fins-de-semana e férias íamos passar para outro sítio e levavam-me. Estive lá muito tempo. Aprendi a ler, mas não aprendi a escrever. Só sei assinar o meu nome. P: Essa senhora ajudou? Benedita Vau: Não, não, é que ela lia muitos jornais e eu aprendi com ela a ler no jornal. Ela também era muito religiosa. Obrigava-nos todos os dias a rezar o terço. Leio tudo, mas escrever, não. Na escola só andei na 1ª classe porque eu não gostava muito de andar na escola e então fugia. A minha mãe pagava as multas. Naquela altura pagava-se multas por não ir e a professora mandava recados porque eu aprendia muito bem - porque é que não ia para a escola? Depois eu disse-lhe que não ia, e não fui. P: Isso também a ajudou a sair mais cedo? Era costume na terra que as raparigas fossem para servir? Benedita Vau: Sim, tudo trabalhava. Em geral, havia muita gente que saiu para servir de lá das nossas terras. A única que foi até à 4ª classe foi uma irmã mais nova. P: E como era com as refeições? Benedita Vau: Comíamos na cozinha, nunca comíamos com os patrões. Mas o que eles comiam comíamos nós. Primeiro servia à mesa, e só depois ia comer. P: Essa casa era de pessoas com algumas possibilidades? Benedita Vau: Não, naquela onde fui para a segunda vez era de uma família que podia mais. Os senhores primeiros, não. P: Tinha tempo para si? Benedita Vau: Sim, podia fazer coisinhas para mim. Ao domingo deixavam-me sair com as colegas. Podíamos ir passear. Se alguma lá quisesse ir a casa, também lá podiam ir porque elas davam-me autorização. Mas tinham de ser pessoas com quem elas vissem que nós podíamos andar, porque às vezes a gente arranjava companhias que elas diziam que a gente não…que era assim…enfim… P: Como descansava? Benedita Vau: Era ao domingo. A gente podia estar sentada se quisesse ficar em casa e podíamos sair. Em questão de descanso não me queixo muito. P: Tinha os seus objetos? Benedita Vau: Sim, tinha as minhas coisinhas. Tinha a minha roupa para vestir, mas tinha de andar fardada. As fardas era a senhora que comprava. As minhas só podia vestir ao domingo. P: Como é que foi tornar-se uma mulherzinha? Benedita Vau: Quer dizer, na questão do período, eu não sabia de nada. Ainda estava cá em cima quando isso aconteceu, mas a senhora fez-me umas toalhinhas e deu-me. P: Como é que olhava para aquela pessoa? Benedita Vau: Eu sentia-me bem com a senhora. Fui-me mais embora porque eu estava ali e não recebia nada. Ela comprava-me uma roupita e não valia a pena. O meu irmão também me disse que eu estava ali e não lucrava nada e então fui para aquela senhora. P: E tinha saudades de casa? Benedita Vau: Tinha… tinha saudades da minha mãe… às vezes ia e depois, quando estava na outra, já não ia tantas vezes à serra porque o meu irmão também já não ia tantas vezes, e assim fui passando. P: Nesta segunda casa, havia muitas regras? Benedita Vau: Eu…(grande hesitação)… como é que eu vou explicar? Havia lá um rapazinho que andava atrás de mim, mas, nessa altura a senhora soube e não me deixava sair. P: Não aceitava isso bem… Benedita Vau: Era nova e não queria que eu lhe falasse. Não queriam que eu o namorasse. Como eu não sabia nada da vida eu perguntava-lhes porquê? E ela dizia que ele era mais velho do que eu, mas eu não deixei o rapaz. Continuei a encontrar-me com ele às escondidas, mas namorei. Ela depois percebeu. Eles queriam fazer como se fossem meus pais. Mas eu queria namorar embora depois também nos tivéssemos zangado. P: Então namorar é que era mesmo proibido? Benedita Vau: Namorar não me deixava, mas eu continuei a namorar. Mas depois também nos zangámos. Acabou tudo e…acabou, pronto. P: Em alguns momentos davam-lhe presentes, talvez para compensar não ter salário? Benedita Vau: Olhe, menina, a senhora tinha em Coimbra uma afilhada que a gente ia lá muita vez. E a afilhada era casada, tinha um menino e essa dava-me coisinhas dela, roupa que fosse boa, sapatos…quer dizer, coisas novas, mas não era sempre. P: E para o seu enxoval? Benedita Vau: Às vezes eu comprava peças de lençol, porque antigamente não havia assim nada feito, a gente é que comprava e comecei a fazer assim o meu enxoval. A senhora também fez umas rendinhas e deu-mas, e também me comprava assim umas toalhinhas…e oferecia… P: No Natal? Benedita Vau: Não, porque antigamente o Natal não era assim como agora. Eu nunca soube o que era o Natal; o Natal, embora fizessem qualquer coisa, não faziam trocas de presentes…não, nem em casa, nada disso. Só quando vi para cá, vim para cá com 19 anos e mesmo a senhora não era assim de fazer uma noite de Natal, como agora se faz. Com a minha mãe, já se fazia o Natal que era fritar, comprar massa, esticar e fazer massa com açúcar e canela. Lembra-me assim do Natal. Só assim, mais nada! P: Disse-me que era da zona da Guarda…já ouviu falar na Obra de Previdência e Formação de Criadas? Eles tinham lá uma sede e eram ligados à Igreja Católica e era uma obra de um padre que era ali da região da Guarda. Nunca ouviu falar nesta instituição, nem tentaram falar consigo? Benedita Vau: Não, nunca ouvi nada. P: Nem quando chegou a Lisboa? Benedita Vau: Não, não. Nada. P: Veio para Lisboa como? Benedita Vau: Vim através de uma amiga lá da terra e fiquei sempre na mesma casa. Dos 14 aos 19 estive sempre lá acima, nessa terra, em S. Estive na mesma terra, mas com pessoas diferentes. P: Nesse tempo fazia todo o tipo de trabalho? Benedita Vau: Não, não, não… P: Era a única que lá estava a servir? Benedita Vau: Era, só era eu. Só quando ia para Coimbra é que a senhora já tinha uma empregada e aí já nos juntávamos, já saíamos as duas à noite, porque ela conhecia aquilo e depois levava-me. Quando, ao contrário, a senhora ia lá a S., ela também levava a empregada e a gente também saía. P: Esta senhora não tinha filhos? Benedita Vau: Não, aquela onde eu estava não. Mas a que vinha de Coimbra tinha um filho. P: Nunca teve de cuidar das crianças, como uma ama? Benedita Vau: Não, não…nunca tive nada disso. P: Quanto é que ganhava, lembra-se? Benedita Vau: Ah, muito poucochinho…eu já nem sei dizer, mas era assim…quinze euros, ai..quinze escudos!....Nada…eram quinze escudos. P: E esse dinheiro dava para quê? Benedita Vau: Olhe, dava para muita coisa, menina. Pois… a gente tinha o comer, tínhamos dormida, tínhamos tudo. Ora, só se a gente precisava de comprar alguma coisita. Se a gente não precisava de comprar no mês, sempre juntava o dinheiro. P: E em comparação com outras profissões? Não tinham gastos? Benedita Vau: Nós não tínhamos. Se durante a semana a gente andava com a tal farda da casa, só se a gente quisesse uma roupita nova. Roupa interior e assim é que a gente comprava. Mas antigamente a gente comprava as cuecas baratíssimas. Soutiens e tudo. P: Havia já cinemas ou teatros? Benedita Vau: Não, lá não havia nada disso. Lá, por exemplo, quando era pelo Carnaval, eles faziam as coisas na rua. Dançava-se, cantava-se e assim. Mas isso lá cinemas, não. Não podíamos ter extravagâncias. P: E como é que as pessoas iam de um lado ao outro? De comboio? Benedita Vau: Não havia transportes nenhuns desses. Por exemplo, se a gente quisesse – eu não vinha, mas quem quisesse vir – às feiras, ia de camioneta. Esse senhor sapateiro que fazia uma festa anual, em Arganil, e eu ia com eles. Porque a senhora também ia, era a feira anual durante três dias. A gente ficava lá, eu ia com a senhora, levávamos os meninos e eu também ia. Íamos então com o patrão, com os patrões, e íamos para a feira anual a Arganil. P: E ia com a sua farda? Benedita Vau: Não, não… isso já levava uma sainha minha ou um vestidito. Isso aí já não ia fardada. P: Então só em casa? Pode-me dizer como é que era? Tem alguma fotografia? Benedita Vau: (risos) Ai, não tenho. De farda tenho, mas não sei onde é que a tenho. Mas tenho, isso guardei. P: Como era? Benedita Vau: Olhe, nesta altura em que tirei a fotografia estava de bata, tenho a impressão que era azul-escura com o aventalinho branco e a golinha branca. P: As pessoas eram exigentes com a higiene, o serviço da casa, da mesa? Como é que aprendeu? Benedita Vau: Ah.. à mesa ensinaram-me muito bem a servir. Olhe, servia do lado direito… ou do lado esquerdo, agora já não sei (risos), mas sei que era só daquele lado, tirar os copos do coiso, tirar os pratos, isso eu sabia fazer muito bem, até porque ainda sei fazer. Se tiver cá gente, ainda faço. P: Continua a respeitar essas regras Benedita Vau: Exatamente. Mas era assim. Estavam sempre a ver como devia ser. Às vezes tocavam a campainha para a gente ir ver o que era. P: Havia troca de palavras quando essas pessoas estavam, ou o seu papel era mais de estar em silêncio? Benedita Vau: Não, estava na cozinha à espera que chamassem e ajudava assim na sala (alguma resistência em falar, diminuição do tom de voz). P: Não participava nessas reuniões? Benedita Vau: Não, quer dizer, se estivéssemos ao pé dos patrões, não. Sentava-me sempre na cozinha e quando elas depois chamavam… P: Agora vamos fazer uma viagem até Lisboa. Gostava que, dentro do possível, me descrevesse como é que foi essa chegada a Lisboa. Benedita Vau: Tinha 19 anos quando vim para Lisboa. Olhe, menina, eu, da terra, tinha e tenho uma irmã ali em Sacavém. Estava casada e quando vim, em vez de ir logo para casa da senhora onde vinha para servir, vim para casa da minha irmã. Vim de comboio. Fiquei em Sacavém. Dormi lá essa noite. Já era noite e o meu cunhado foi-me buscar ao comboio. Cheguei de noite e fiquei lá. Ao outro dia, ele veio pôr-me a Lisboa, porque eu não conhecia nada e ele veio pôr-me à direção que eu trazia que era aqui na Av. G., numa vivenda, que era a mãe da senhora para donde eu vinha. Ia ter ali com essa senhora. Apresentei-me ali (e o que é que lhe perguntaram? O que é que queriam saber de si, já vinha com uma referência?) Já vinha de lá o que eu sabia fazer... e assim não pediam informações disto e daquilo. Ela perguntou se eu gostei de ter vindo e eu disse que não conhecia ninguém. Que não sabia se ia gostar… eu uma vez fui ter ao Fundão – já que a menina está a perguntar. Foram-me pôr lá e eu vim novamente com o meu pai (voz assertiva). Não quis lá ficar. Queriam que eu fosse para aí, que tinha lá uma tia minha. Eu ia para ao pé da minha tia e eu não gostei nada daquilo e disse que não queria lá ficar, e chorei, e vim-me embora. O meu pai trouxe-me outra vez. Por isso se eu agora não gostasse eu teria que me ir embora. Ficar aqui, estar contrariada, e para mais que não conhecia…isto aqui era coiso e eu não conhecia nada…e eu disse-lhe que se gostasse de ficar, ficava; se não gostasse, que ia para o pé da minha irmã e que depois ia para a terra outra vez. Então veio a filha da senhora e fui para a 5 de outubro. Fui para a 5 de outubro. E ali estive desde os 19 até que me casei, aos 24 anos. P: Como é que viu Lisboa? Como é que olhava para Lisboa? Benedita Vau: Olhe, menina, Lisboa não era nada daquilo que é hoje. Não havia tantos carros. Não havia… assim… nada, quer dizer, era diferente, pronto. P: Estávamos no ano de… Benedita Vau: Bom, eu tinha 19, em que ano estávamos? (Faço contas e chego ao ano de 1961) P: Como era o prédio para onde foi trabalhar? Benedita Vau: Era num segundo andar… P: E como era a família? Benedita Vau: Olhe, a família era…a senhora. Ele era engenheiro. Ela não fazia nada e tinha uma filha. Não me lembro bem que idade é que tinha a menina, mas …quando vim para esta casa ia casar uma rapariga que lá estava. Eu ainda estive um mês e tal com ela. E como também era lá de cima, a rapariguinha disse-me logo as coisas da casa, como eles eram…como ele era… P: E posso saber o que é que ela lhe disse? Benedita Vau: Ela disse que a senhora era assim um bocadinho…embirrante. Ele, não tanto, mas que não era de muitas palavras, o senhor. E que tínhamos que estar sempre com atenção porque de manhã ele levantava-se cedo e queria o pequeno-almoço na sala. Mas, como estive com ela esse mês…aprendi a fazer as coisas como devia. Estivemos esse mês e eu aprendi. As camisas eram passadas todos os dias: eram muito bem engomadinhas. Eram brancas; parecia que tinham goma e eu tive de começar logo por aí, com ela, a aprender a engomar as camisas. Eles não davam nada a engomar. Tínhamos que nós escovar tudo muito bem escovadinho, passar um pano com Benzovac para tirar as nódoas…também fazíamos esse serviço. …Depois a rapariga casou e eu fiquei com o encargo todo, não tinha mais ninguém. P: E para além da roupa muito bem engomada, havia mais regras? Benedita Vau: Aí já me levantava mais tarde. Às 8 horas. O almoço era servido ao meio-dia. Ele vinha e tinha que estar pronto. O jantar era às sete, sete e meia. Também nunca jantavam mais tarde. Ao domingo é que era diferente. Íamos todos os domingos almoçar a casa da mãe do senhor. Ora, ao domingo eles levantavam-se às quatro da tarde… era…, mas repare, a gente lavava a roupa à mão. Lá em S., ia para a ribeira lavar. Aqui não. A única coisa que havia de electrodoméstico era o frigorífico. Que já lá para cima também havia. E lá ia para a ribeira: ia muito cedo, descalça, lavava, estendia a roupa a corar e tal, e depois ia comer, e depois ia outra vez e punha a roupa a enxugar. Isso é lá em cima. Aqui, ao domingo, punha a roupa à noite na saponária e, como eles se levantavam tarde, fazia uma saponária à roupa, punha-a no tanque e ao domingo de manhã, primeiro ia à missa, à Igreja de Fátima, e depois da missa tomava o café, e então lavava a roupa. P: Ia à missa porque queria ou alguém lhe dizia para ir? Benedita Vau: Não, eu também gostava. Eu gostava de ir à missa. P: Mas ia sozinha ou com as senhoras da casa? Benedita Vau: Não, não, as senhoras nunca foram à missa. A gente é que ia à missa, nós é que íamos sempre. P: Ia com quem? Benedita Vau: Sim, aqui a rapariga que estava na mãe do senhor, ela mais ou menos à hora dizia “Desce, que a gente vai.” Eu descia e íamos as três, porque o prédio era grande. Tinha quatro pessoas. Quer dizer, o prédio era de esquina. E então juntávamo-nos todas as quatro e íamos à missa. Era uma paródia. P: Era uma paródia? Benedita Vau: Ai era, menina. Falávamos dos rapazitos e…olhe, fartávamo-nos de coiso. Saíamos da missa e tínhamos que ir logo para casa. Porque eles sabiam a hora a que acabava a missa. P: Como era o quarto da sua casa? Benedita Vau: Eu tinha o meu quarto, mesmo dentro de casa eu tinha o meu quarto e casinha de banho. Este prédio era na 5 de outubro. Tinha uma casinha de banho para mim e o meu quartinho. A cama era um divã. Quer dizer, era um divã, mas não era de puxar. Tinha um roupeirozinho que era onde a senhora tinha a roupa dela, e da menina. Era grande, era de parede. Tinha uma janelinha pequena. Tomava bem ar. Mas dava tudo para as traseiras. . P: Que objectos é que tinha trazido consigo? Ou valores? Benedita Vau: Não, não tinha nada de valor. Só tinha trazido a minha roupita e mais nada. Coisas de valor não tinha. Quer dizer, o meu enxovalito que fiz lá em cima ficou na minha mãe. Mas não trouxe nada. Não tinha nada. P: E aqui não ganhava nada? Benedita Vau: Aqui já vim ganhar 500$00. P: E isso era bom? Benedita Vau: Era, era menina. Porque eu aí juntava também dinheiro. Eu não era estragada. Aí, como já havia cinema, às vezes íamos ao cinema. Entre nós todas era barato. Quer dizer, barato?! Quer dizer, pouca gente ganhava e era barato porque a gente juntava dinheiro. Já comprava, não sei se a menina sabe, estas mulheres à porta para venderem coisas…roupa, lençóis, isto ou aquilo. Era às portas que mostravam aquelas coisas dentro de umas alcofas grandes e perguntavam se a gente queria ou não queria. Mas não era pela porta, era do lado da porta de serviço que às vezes a porteira não as deixava passar. A gente gostava de ver. Elas tinham que subir de elevador porque não tinham as escadas. E então a gente gostava de ver. Benedita Vau: Às vezes juntávamo-nos ali na varanda, que aquilo tem uma varanda rodada para os quatro inquilinos e a gente via… Às vezes estávamos ali até à meia-noite. Às vezes lá vinha a senhora dizer: Oh meninas!...JÀ é hora de ir para casa… (como quem chama) P: Como é que se juntavam? Benedita Vau: Olhe, tinha uma marquisezinha. A marquise dava para a varanda que era a todo o comprimento do prédio. E então todas elas tinham empregadas, que antigamente toda a coisinha tinha uma empregada. P: Mesmo pessoas com poucas possibilidades? Benedita Vau: Exatamente, porque também pagavam pouco e toda a gente tinha…E então a mais velha que lá estava era uma que dava do lado contrário da nossa 5 de outubro. Mas era muito boa rapariga, aconselhava-nos bem – era a mais velha, mas aconselhava-nos bem. P: Então conseguiam estar ali até à meia-noite? Benedita Vau: Conseguíamos estar ali até à meia-noite. Mas às vezes não podia porque vinha gente de fora… lá os senhores tinham gente e tinha que estar à espera para servir chá, ou isto, ou aquilo. Quando os patrões tinham gente, eu não podia ir. Dava uma escapadela, mas era poucochinho…, mas quando não tínhamos assim que fazer, que os senhores estavam a ver televisão, a gente estava a conversar. Estávamos ali todas. Tinha uma amiga (corrige para colega) que era alentejana; que até foi a madrinha da minha filha mais velha, que era também empregada; chamava-se D.. A gente ficámos sempre amigas… quer dizer, ainda hoje somos amigas. Elas telefonam-me, eu telefono-lhes. Vivíamos ali, quer dizer, parecia que éramos uma família. Estávamos como se fosse uma família. Mas todas ficámos sempre a ser amigas. P: E eram internas? (silêncio) Dormiam lá? Benedita Vau: Sim, era tudo lá. Não, a gente não ia nenhuma sair da casa da senhora. P: Porque é que disse há pouco que “Qualquer coisinha tinha uma pessoa para a ajudar”? Deu-me a entender que não eram só as pessoas mais ricas que tinham uma pessoa dentro de casa. A senhora acha que era mesmo assim? Benedita Vau: Eu acho que sim… sim, por exemplo, onde estava essa minha amiga, a D., que eram já uns senhores de muita idade. O senhor podia ter sido alguma coisa em novo, mas depois também já não era assim de muitas posses para pagar a uma empregada. É isso. Por isso é que havia muita gente, quer dizer, muitas criaditas! E a gente quando se juntava, olhe!.... P: Porque é que diz que eram criaditas? Benedita Vau: Porque éramos piquenas, porque não tínhamos ninguém que nos defendesse, a não sermos umas às outras e, às vezes, bem, eu tive muita sorte por onde andei. Todos eles se interessaram muito por mim. Até esta aqui de Lisboa. Ajudou-me muito e a filha foi ser minha madrinha de casamento. P: E hoje ainda se dão bem? Benedita Vau: Damos, damos. Até com a mãe. E a filha mora lá na casa da mãe. A mãe foi para Sesimbra. Ainda lá fiquei a trabalhar durante um ano depois de casada, que ela não arranjou logo, mas depois veio uma rapariguinha lá de Manteigas. Eu fiquei ainda de manhã, e saía à tarde. P: E vinham todas ali da Beira… Benedita Vau: Alentejanas havia poucas. O resto era tudo lá de cima, até havia uma de Vinhais. -
"As corridas dos criados de café"
Em 1933, o Luna Parque fechou o ano com chave de ouro: a realização das “Corridas de criados de café”. Nas notícias publicadas sobre o evento entre os dias 27 e 30 de outubro, acreditava-se, e comprovou-se, que estas corridas iam ser um êxito, atraídos que seriam os populares para a realização daquele evento organizado pelo próprio jornal Diário de Lisboa, a Associação de Classe dos Empregados na Indústria Hoteleira e Profissões Anexas e o patrocínio de diferentes estabelecimentos do ramo hoteleiro. O Diário de Lisboa criou este “espectáculo inédito e festivo” como uma forma de homenagear aquela “classe útil e simpática”. As provas eram cronometradas por técnicos de desportos atléticos. Podiam candidatar-se à disputa dos troféus os empregados de mesa dos cafés, hotéis, restaurantes, casas de pasto e vacarias. No dia destinado à realização das primeiras provas, compareceram algumas dezenas, todos “de traje irrepreensível.” Na primeira prova, ganhavam aqueles que vertessem menos líquido fora das chávenas e copos de água, transportadas em bandejas. A segunda prova testava o “serviço aéreo” no “carrossel” dos “zepelins” e era descrito desta forma: “nos bancos suspensos, a par, um criado abria uma garrafa, já com o “carrossel” em movimento, e deitava o conteúdo num copo que outro criado levava numa bandeja, e assim sucessivamente”. Numa terceira e derradeira prova, tinha lugar o “jardim zoológico”(sic): sentado num animal de madeira, cada concorrente tinha que dar algumas voltas, sentado num animal de madeira, com um copo cheio de água, sobre uma bandeja. A esta prova também se chamava «o carrossel dos bichos». Foi a prova mais aplaudida pela multidão. Elencado como uma das recompensas, os concorrentes tinham direito a assistir ao «Poço da Morte» de graça. Dizia-se, já no rescaldo que esta prova tinha sido um espectáculo que fechara brilhantemente a época do Luna Parque. De acordo com a notícia publicada, a prova foi ganha “por um novo e por um velho, respetivamente: Custódio Henrique, de “A Brasileira” que obteve o Grande Prémio do Luna Parque, constituído por um fato completo de “smoking”, a fazer na Casa Africana; e Manuel António Antunes, do Hotel de L’Europe, que ganhou a Taça União Europeia. -
"As criadas numa vila alentejana", por Maria Antónia Pires de Almeida
O livro Memórias Alentejanas do Século XX (Cascais, Princípia, 2010) reúne uma série de entrevistas realizadas com o objetivo de estudar o processo da Reforma Agrária que se iniciou no Sul de Portugal no final de 1974 e se prolongou, nalguns casos, por duas décadas. Depois dos factos apurados, o que fica é a memória de toda uma população afetada por uma experiência marcante e controversa. Salienta-se o contributo da História Oral para uma abordagem da história da mulher em meio rural, na qual se revelam histórias de vida de grande interesse humano, os percursos de pobreza e sofrimento, mas também de alegrias, que passam pelo serviço doméstico e o trabalho agrícola, as desigualdades no mercado de trabalho e a consciência das questões de género e de classe associadas às vivências próprias de meio rural marcado pelo latifúndio e pelo trabalho precário e sazonal. Apresenta-se a memória oral de uma geração em vias de desaparecimento que viveu o regime do Estado Novo em meio rural e participou ativamente na transição para a democracia. As entrevistas foram realizadas a membros das várias classes sociais e o critério de seleção obedeceu a uma amostragem do ecletismo da população local. O resultado foi esclarecedor quanto à diversidade de experiências e percursos e permite verificar que a vivência feminina das trabalhadoras rurais era marcada por uma infância em casas alheias, a prestar serviços em troca de comida, que não tinham na sua própria casa, seguida de uma adolescência animada pelos trabalhos rurais e pelo convívio que estes proporcionavam. Depois vinha invariavelmente o sofrimento, sobretudo após o casamento e a chegada dos filhos. E ainda a subtileza do discurso sobre o aborto e a contraceção, tema importante nesta região do país. Por outro lado, entre as proprietárias e outras mulheres de condição social mais privilegiada, o acesso à educação estava limitado pela sociedade patriarcal onde estavam inseridas, numa total dependência de pais e maridos. Na segunda metade do século XX verifica-se alguma evolução no sentido do interesse na alfabetização das mulheres e maior autonomia, um fenómeno transversal a todas as classes sociais. Trechos do livro: O trabalho doméstico antes dos seis anos: “Eu era para fazer a lida dos mandados, limpar a casa de banho, limpar o pó… Eu até gostava, mas eu gostava mais de andar no campo. Nas casas tínhamos um privilégio melhor: é que comíamos! Tínhamos a barriguinha cheia. Não passávamos fome. Nas ceifas, as mulheres tinham um ordenado diferente dos homens, ganhávamos sempre menos 5$00. E tínhamos de dar o litro como eles davam. Tínhamos de andar à frente deles a esgatanhar, porque se não déssemos eles passavam para a frente e a gente ficávamos ali num coito de trigo a rabejar e éramos despedidas”. Escolaridade: “Eu fui à escola. Fui na idade própria, fui aos sete anos. Mas andei só na 2ª classe. Porque eu em casa não tinha quem me ajudasse… Eu fiz 11 anos já em casa de uma senhora. Eu fui trabalhar, não foi porque fosse maltratada, até arranjei umas pessoas muito amigas, mas não foi por gosto, foi porque a minha mãe não podia. Quando uma filha se põe assim a trabalhar em casa dos outros, é porque a gente lhe custa a aguentá-la em casa. Eu dormia em casa da senhora. Havia uma menina, que tinha menos seis anos do que eu. Brincávamos às vezes, não era? Estive lá até talvez aos 13 ou 14. Não me mandaram embora! Depois, é claro, comecei a gostar também de ir trabalhar para o campo, e aprendi tudo! Aprendi a ceifar, fui à azeitona. Fiz tudo, tudo o que se fazia naquela altura. Custava um bocadinho, mas a gente, como raparigas novas, gostávamos de fazer tudo. Foi a trabalhar no campo que eu conheci o meu marido.” ““Eu não sei ler, o meu pai não deixou. Podia ter ido à escola, porque a gente morava ali a 10 minutos a pé, era um monte assim muito grande, morava lá muita gente. Mas ele não deixou por ser mulher. Eu tenho só uma irmã. Se tivesse um irmão, ele deixava-o ir à escola. Eu queria ir, eu chorava. A minha mãe também não sabia ler. Só me ensinou a coser. Mas eu comecei logo a trabalhar no campo aos oito anos. O dinheiro era todo para os pais.” “Ainda fui à escola e fiz a 3ª classe. Porque dantes era assim: deixava-se de ir à escola para se ir trabalhar. Agora é que é, não estudam, nem querem trabalhar… A minha mãe trabalhava a dias lá para as casas, e o meu pai era maioral das parelhas. E eu fui trabalhar para o campo.” “Quando o meu pai morreu eu tinha 14 anos. Também andei descalça e o meu irmão também. (…) Lá em casa comíamos uma sardinha partida por três, quando eu estava em casa. Era para mim, para o meu irmão e para a minha mãe. E um bocadinho de pão quando havia. Andei na escola até fazer a 3ª classe. Eu já não pude fazer a 4ª classe porque o meu pai adoeceu… Fiquei em casa e depois aos 13 fui servir. Fui trabalhar para casa de uma senhora. Era ajudante, fazia a limpeza, ia aos mandados. E depois saí de lá, porque ganhava pouco. Ganhava-se pouco, pois. E então fui servir para casa do meu padrinho, o médico. Fiquei aí sete anos. Trataram-me sempre muito bem. Não tenho nada que dizer. Nas casas é que eu comia bem. Comia sopas, muitas sopas, de pão e de peixe… Não me posso queixar. Onde eu estive a servir ninguém me tratou mal, e a trabalhar a dias toda a gente me tratou bem.” O casamento: “Eu vivia muito mal foi quando casei, porque eu na altura que era solteira, a minha mãe era cozinheira, o meu pai era pastor, nunca tivemos necessidades. Tinha sapatinhos, tinha roupas, tinha tudo, graças a Deus. Comia bem, matava um porquito, tínhamos hortas, tínhamos essas coisas, nunca tive necessidade. Agora, quando casei, passei muito! Tinha 19 anos, aos 20 anos tive a primeira filha. Aos 21 tive um menino que nasceu morto. Partos terríveis (…) e o mê pai é que tinha de ir pedir fiado ao farmacêutico para levantar os remédios. Eu sofri mais foi em casada. Trabalhava no campo. Depois não tive mais filhos, não, já viu, se fosse assim, daqui a nada estávamos desgraçados. Evitava, pois. Sempre cheia de medo e ai! Nessa altura estava muito fraquinha e quanto mais fraquinha estava mais depressa engravidava. Havia muitas que faziam abortos. Mas a gente tinha medo. Faziam, faziam abortos, mas também era dinheiro e eu também não tinha. Tinham de ir para fora”. Referência bibliográfica: Maria Antónia Pires de Almeida, Memórias Alentejanas do Século XX, Cascais, Princípia, 2010. -
"Assalariadas domésticas: situação a rever"
Em janeiro de 1971, Helena Neves assina um artigo intitulado “Assalariadas domésticas: situação a rever” no saudoso Diário de Lisboa. O artigo “Assalariadas domésticas: situação a rever”, é assinado pela jornalista Helena Neves e o que nos propõe é uma volta ao mundo sobre trabalho doméstico a partir dos dados discutidos no âmbito da Conferência Internacional do Trabalho, em 1965. Helena Neves foi das primeiras mulheres que escreveram na imprensa diária em áreas para além da crítica de arte ou da página feminina e a sua síntese ajuda-nos a colocar algumas perguntas importantes: por que razão o trabalho doméstico diminuiu essencialmente nos países socialistas, quando comparado com outros? Deve existir uma orientação que afaste os jovens das profissões domésticas e, portanto, a formação neste setor não será prioritária ou, por outro lado, deve haver uma especialização como fator de prestígio social para a profissão? Além disso, faz um diagnóstico muito preciso sobre os problemas estruturais que afetavam o trabalho doméstico, à época, e que permanecem por resolver, nomeadamente, a ausência de direito de descanso, a precariedade, a indistinção da carga de trabalho exigida, a feminização, entre outros. -
"Em dia de convidados"
“Criado mudo” e “mesa de serviço”: a produção de distância entre senhores e servos Quão longínqua pode estar a referência a um objeto de uma referência feita a um trabalhador? Tornada hoje um anátema, a palavra “criado-mudo” foi banalizada durante décadas para se referir a um objeto que hoje designamos por mesa de cabeceira. No Brasil, a discussão atingiu um pouco crítico quando se desvendou que a sua origem estava intimamente ligada ao período esclavagista. Era costume os senhores imporem a obrigação de os seus escravos permanecerem junto à cama, de forma a que suprissem as suas variadas e inesperadas necessidades, durante o período da noite. Tendo um escravo a seu lado, para lhe colmatar a sede, a fome ou o frio, o esforço era totalmente transferido para quem o servia, imóvel e calado. Portador desses objetos, e votado ao silêncio durante a vigília noturna, ficava aos senhores garantido o privilégio de uma noite sem sobressaltos. Após a abolição da escravatura, este ato de total de “coisificação” é substituído pela aquisição do objeto “mesa-de-cabeceira” onde passam a ser albergados e depositados esses mesmos objetos de uso noturno. Hoje a palavra foi proclamada non grata, em respeito pela memória dos escravos. Uma discussão semelhante ocorre, cerca da década de 1940, em Portugal. As famílias que contratavam serviço doméstico interno estavam cada vez menos complacentes com a presença dos seus “criados” nos momentos de convívio alimentar, e em particular por ocasião da presença de convidados, uma vez que a sensação de estarem a ser vigiados crescia, como cresciam os receios de que os seus segredos fossem desvelados. E são por isso incentivadas essas mesmas famílias a adquirirem uma peça de mobiliário para as suas salas de jantar, a “aparador” ou “criado mudo”. Em inglês, a palavra “dumbwaiter” tem uma ressonância de significado muito similar, estando mais próxima também de um móvel auxiliar para pôr pratos e talheres. Deixamos uma citação de um artigo publicado na Revista Modas e Bordados, que atesta esta mesma discussão: “Para evitar certas atrapalhações que, por vezes, tem o pessoal doméstico quando há convidados para jantar, é muito prático organizar a chamada “mesa de serviço” onde se encontram, devidamente alinhados, os pratos, travessas, molheiras, talheres, lavabos e todos os utensílios que devam servir na mesa. É de bom critério ter tudo preparado com muita antecedência a fim de não haver depois essas hesitações do pessoal, que motivam, no momento próprio, troca de olhares, ordens em segredo e sinais de entendimento entre a dona de casa que, em vez de atender apenas aos seus convidados, não tira os olhos da criada…” Destes preparatórios, que pouco trabalho dão a organizar, depende o bom seguimento do serviço no decorrer da refeição em dia de convidados e que marca muito no conceito que possa fazer-se sobre a dona de casa. Nada mais desagradável, no decorrer dum jantar, do que a criada abrindo e fechando constantemente os armários e gavetas da sala de jantar porque lhe falta, à mão, isto ou aquilo que deverá pôr na mesa.” In: “Em dia de convidados”, in Modas e Bordados, No. 1738, 30 de Maio de 1945 -
"Entre gaiolas", - Entrevista a Márcia Figueiredo
P: Como começou a trabalhar neste hotel? Márcia Figueiredo: Comecei como empregada de andares. Antes disso era auxiliar de ação educativa (murmura). Entretanto, essa minha profissão acabou porque engravidei…e já não servi. Fiquei com uma criança pequenina. Vim à procura de trabalho e foi aqui que comecei e aprendi tudo. Vim para fazer quartos. Depois, a minha governanta enquadrou-me no turno da tarde que é o turno onde se sabe tudo porque é o turno em que se faz um bocadinho de tudo. O turno que começa entre as 15h e as 15h30 é o que faz todas as áreas do hotel. Depois temos das 8h às 16h30 que só fazem quartos. Depois temos um turno entre as 14h30 e as 22h30 que faz tudo. Entregam coisas aos quartos e, como ficam sozinhas, têm de aprender tudo porque ficam duas pessoas sozinhas a tratar de todo o departamento. Ficam responsáveis pela limpeza, organização. Fazem a contagem do minibar dos quartos, entregam a roupa dos clientes, limpam o restaurante e resolvem pequenas avarias que são detetadas: foi por isso que eu passei. O número total de empregadas ronda os vinte e cinco. P: Foi difícil a adaptação a uma nova forma de trabalho? Márcia Figueiredo: No primeiro dia em que fiquei sozinha tive que me desenvencilhar, do tipo, “Caiu uma porta! Vanda, vai lá ver!” Tive de aprender a desenvencilhar-me por mim própria. Agora faço apenas supervisão para ver se está tudo bem. Dantes era eu quem reparava. Dantes fazia os quartos e limpava, tal e qual como uma empregada. Agora não. Um quarto demora meia-hora a limpar. Se for um quarto que está todo virado e muito mau, demora mais tempo. Quando a pessoa é mais organizada e deixa as coisas mais ou menos no sítio leva menos tempo. A primeira coisa a fazer é abrir a janela para arejar. Depois, é tirar roupa suja, tirar lixos. Pronto: sai tudo do quarto e vai para o carrinho de roupa suja. Cada funcionária carrega dois carrinhos, um balde, a esfregona e um aspirador. Há um carrinho que montam no início do dia com tudo o que o quarto leva: os papéis, os bombons… e depois há um saco vazio, preto, onde nós pomos a roupa suja. Nada pode ser misturado até porque ainda tem que ser feita a reciclagem: um saquinho de cada cor para todo o tipo de lixo e é assim que funciona. Aqui nós fazemos 16 quartos. Quando distribuo quartos: distribuo 16 para cada uma delas. Para mim, o trabalho mais difícil é o trabalho de andares. Porquê? Porque é o mais trabalhoso, é o mais exigente, é o que tem que ser mais perfeito, apesar de eu achar que tudo tem que estar bem. Mas é puxar uma cama, a casa-de-banho, os inox têm que estar todos impecáveis. P: O que pode correr mal? Márcia Figueiredo: Por exemplo, eu, uma vez, à noite, entrei dentro de um quarto. Tínhamos uma companhia aérea e quando entrei no quarto deu-me vontade de fechar a porta e ir embora porque eu tinha as camas separadas, com a mesa do terraço dentro, com camarões por todo o lado, sacos de comida por todo o lado, os móveis retirados dos sítios…eu olhei e apeteceu-me fechar tudo. Também já aconteceu chegarmos e ver a cabeceira toda danificada de cigarros, com buraquinhos, com camas manchadas de vinho. Temos clientes muito diferentes. Às vezes parece que passou por ali um furacão. Um dia bato à porta do cliente e digo “housekeeping, housekeeping” e nada. Ninguém responde. Quando entro e ponho o cartão para acender a luz, tinha uma pessoa toda nua em cima da cama. Não me ouviu (risos) P: É difícil gerir todos os objetos dos clientes, em termos de arrumação? Márcia Figueiredo: Em regra, temos ordem para não mexer nos objetos pessoais, a não ser que atropele a limpeza. Por aí, consegue-se tirar um pouco da personalidade do cliente: uns sapatos mais chiques, o computador pessoal. Dá para ver o perfil, sim. P: Qual é o kit de cada quarto? Márcia Figueiredo: Para um quarto de casal, 3 lençóis, 4 fronhas, 2 banhos, 2 rostos, um tapete, papel higiénico, shampôs e sabonetes. Se for familiar, já passa a 12 lençóis e multiplica-se tudo por dois. P: Costumam conhecer os clientes? Márcia Figueiredo: Nem sempre os clientes estabelecem uma abordagem no corredor. Às vezes é mesmo o mais completo silêncio, passando por cima do cumprimento matinal. Os clientes queixam-se muito do aspirador porque querem dormir… P: É muito duro, este trabalho? Márcia Figueiredo: Quando falta aqui alguém, isto é obra. Eu tenho a minha filha na cresce e um marido que apoia. A passagem para a supervisão foi porque eu já sabia um pouco de tudo e, no fundo, eu já geria o meu turno. Então comecei a gerir o serviço, a lidar com elas: elas também começaram a ter uma aproximação a mim diferente e era comigo que vinham falar. Quando eu fazia quartos chegava ali, tirava a roupa e limpava! Hoje, não. Hoje entro dentro de um quarto e tenho que ver se alguém limpou bem. Se não, tenho que chamar a atenção: por exemplo, um vidro. Por exemplo, deixar o espelho de aumento do lado errado, ou se deixam os carros arrumados. Eu tenho à minha responsabilidade quatro pisos e um determinado número de quartos. Tenho que inspecionar. Para mim, o mais difícil é confiar que essa pessoa vai fazer bem. Para mim, foi um bocado difícil coordenar as minhas colegas porque elas já foram minhas colegas. A lista de trabalhos modifica-se consoante o dia. Se eu tiver salas ocupadas como o dia de hoje, as meninas da tarde vão ter que fazer salas, para além dos quartos. Temos de gerir as prioridades. P: Têm tempo para pausas? Márcia Figueiredo: Nós também temos os nossos momentos de piadas. Este trabalho não é solitário, não, não. Nós também temos os nossos momentos de piadas. São umas quantas a aproveitar para ver a novela enquanto trabalhamos. No caso dos andares é mais solitário e têm de andar sempre a correr e chegam a conseguir ver um episódio, mas a partir de quartos diferentes. Mas fazem o trabalho delas e isso é que importa. P: Como é o local de trabalho de uma governanta de andares? Márcia Figueiredo: Isto é uma rouparia. É onde é guardada a roupa, é onde reunimos. Quando chegam, às oito da manhã, é aqui que se dirigem. Começamos a distribuir trabalho. Vêm aqui e recolhem as instruções de trabalho. Este espaço também serve para passar informação sobre o que se passou no dia anterior, por exemplo. Levam as chaves dos pisos e começam a trabalhar. À hora de almoço, descem e dão informação sobre os quartos que fizeram da parte da manhã e os consumos do minibar. Aqui há de tudo: as sapateiras, os copos e a base dos copos, peluches, peças de encosto do pescoço, menu de almofadas, lençóis de seda se o cliente quiser, café, máquinas e tabuleiros. Há um kit de detergentes (os cestos levam as amenities). O cliente também pode pedir chaleiras. Há a roupa de beliches, com motivos mais infantis. Há chapéus de sol que foram deixados por clientes. As gaiolas (são os carrinhos que levam as coisas). Tudo está por caixas, para facilitar a orientação. P: Têm vestuário próprio? Márcia Figueiredo: As empregadas têm os seus próprios sapatinhos confortáveis ou as crocs para trabalhar. As costas são as zonas mais sensíveis destes trabalhos. O facto de termos de puxar pelas costas… P: Os clientes tentam enganar? Márcia Figueiredo: Por exemplo, a batata frita, fecham para fingir que não consumiram. também fazem o mesmo com a água. Depois, a responsabilidade é nossa… fecham a latinha do amendoim e depois não sabemos que cliente foi… -
"Famílias Cruzadas"
Luíza C.: Vou começar por dizer que a minha família é completamente diferente do lado da minha mãe e do lado do meu pai… do lado do meu pai (eu até trouxe fotografias para ver) toda a gente que já tinha curso superior e uma infância… (confortável?) Sim, apesar de o meu pai ter vindo para o Colégio dos Jesuítas. Mas já o meu bisavô tinha bacharelato. Do lado da minha mãe, é completamente diferente. O meu avô era carpinteiro, a minha avó doméstica. Não viviam mal, só que o meu avô morreu e, como tinham vários filhos, veio tudo por ali abaixo (quantos filhos?) Na altura, quatro. Eram três raparigas e um rapaz. A solução era a minha mãe e mais uma das irmãs irem para a Casa Pia. Mas, como elas tinham uma casa, e um terreno pequenino, disseram logo que elas tinham muito dinheiro, quando foram lá para fazer o ponto de situação. Assim, só a irmã da minha mãe é que foi para a Casa Pia. A minha mãe ficou. Só que a minha mãe era uma pessoa muito desembaraçada. Ela tinha 10 anos quando o pai morreu. E, numa família, andavam à procura de uma criança para fazer companhia à Senhora. E a minha mãe foi para lá porque foi a que conseguiu o lugar. (e tinha quantos anos, nessa altura?) Devia ter uns onze…ela não gostava muito de falar da infância. E então, a minha mãe foi, esteve lá um ano, mas a senhora tinha lá um Senhor dos Passos muito grande que ela diz que se assustava quando se levantava de noite e ia à casa de banho, e aquilo assustava-a, e depois a irmã mais velha começava a dizer que, no sítio onde viviam, a festa disto e a festa daqueloutro, e ela acabou por sair e então teve que ir trabalhar. Sei que ela trabalhou numa fabriqueta, uma fábrica de doces para Belém e, como era assim muito espevitada, puseram-na até a fazer marmelada. E depois ela acabou por se queimar e…tiraram-na depois de lá. Devem ter tido também um certo receio, como ela era muito nova…e então foi trabalhar para várias casas. Eu sei que ela trabalhou numas espanholas, mas não gostava de contar (com ênfase). Eu só sei isso. A única coisa que ela me contava é que depois foi parar a uma casa de gente muito rica, tinha um cozinheiro, e ela aprendeu a cozinhar com o Senhor, e foi aí que ela conheceu o meu pai. O meu pai foi uma pessoa que... não sei, depois, mais pormenores… sei que ela acabou por ir viver com o meu pai: tenho impressão que…a servir, e depois acabaram por juntar os trapinhos, como se costuma dizer. Porque o meu pai só casou com a minha mãe pela igreja porque a minha mãe era de um estrato social muito diferente e as minhas tias eram muito, muito religiosas e não iam admitir a minha mãe sem ser casada pela igreja. Para elas isso é que era o importante, até porque o meu pai depois seguiu a carreira diplomática (com que cargo?) Ele chegou a..C.. E pronto. Depois nós nascemos. O meu irmão mais velho nasceu aqui (Lisboa). Nós já nascemos no Norte. Eu e mais dois que eram mais velhos do que eu. E depois como o meu pai andou sempre fora, no estrangeiro, nós acabámos por ficar cá (Lisboa). Entretanto, o meu irmão mais velho, como ia para a universidade, quis vir para Lisboa e nós viemos por arrasto porque a minha mãe era cá de Lisboa. Vim eu e veio outro dos meus irmãos. O outro vivia com as tias. Em relação ao Norte, eu nasci numa casa enorme, uma casa que tinha quase 40 metros de comprimento e havia muitas empregadas, desde a cozinheira, criadas de sala, depois uma outra que se ocupava da roupa. (quer explicar melhor o que é uma criada de sala?) A criada de sala só serve à mesa - esta por acaso também ia às compras - e tem a incumbência de servir e ver se realmente a comida vinha em condições e, normalmente, auxiliava também a minha tia na roupa, no vestir. Como a casa era muito grande, havia mais duas que se ocupavam da parte de limpeza da casa e havia uma que era quase exclusivamente para passar a ferro, lavar a roupa, pôr no tanque, fazer as barrelas e assim. E havia também os criados do quintal. As empregadas viviam em casa e tinham os seus quartos lá em cima, nas águas-furtadas, mas os quartos não eram maus. E, no quintal, havia o criado que até era mais feitor. Havia um que só cuidava do quintal: de regar, de sachar. Mas esse que vivia no quintal era casado com a filha da cozinheira. Quando nasci, a cozinheira já era muito velhota. A cozinheira foi para lá quando o meu pai nasceu. Foi no fim do século XIX. E ela tinha uma filha (até tinha outra que vivia no Brasil). Ela era uma excelente cozinheira. Eu não tenho memória dos cozinhados dela. Ela já estava muito velha e quase sempre sentada numa cadeira, na cozinha, só para vigiar e assim. Descascava batatas, era o entretém dela, e estava ali sentadinha. E contava-me histórias. Eu às vezes gostava de estar sentada ao lado dela. Contava-me coisas do tempo em que era preciso ir buscar água e que era sonâmbula e que depois ficava muito aflita porque de manhã encontrava os cântaros todos com água. Eles estiveram numa casa em que eu penso que tinham que ir buscar água, mas como era pequena, havia pormenores aos quais eu não ligava. Então ela via os cântaros cheios de água e perguntava-se como aquilo tinha sido possível. Então, a ideia dela foi durante a noite amarrar um avental às pernas e, quando ia para se levantar, acordava… (para travar o sonambulismo). Ela morreu. Julgo que morreu em 1956, 57…ela até morreu de desgosto porque gostava muito do genro e ele tinha morrido. Ninguém lhe queria dizer nada porque ela já estava com muita idade e ela deve ter perguntado por ele (ele vivia no quintal com a filha) e algum de nós deve ter ido “O J. Morreu”. O certo é que ela morreu logo a seguir com o desgosto. Já devia ter oitenta e tal anos. (Portanto, ficou sempre na casa?) Ficou sempre na casa. Aliás, uma das filhas foi para o Brasil e a outra filha ficou lá (na casa). Eu penso que essa filha também trabalhou, em princípio, lá em casa. Quando a conheci já estava casada e tinha os filhos. O mais novo até tinha a minha idade. Os outros eram todos mais velhos. Ela vivia à parte com os filhos, mas lá em casa sempre os acolheram muito bem porque a filha mais velha tirou Farmácia. Uma das minhas tias era madrinha e gostava muito dela. O outro rapaz era afilhado de outro dos meus tios e fez até ao 5º ano antigo. Outra filha fez o 2º ano e não quis mais. Outra foi para a costura porque não queria e depois ainda tinha mais outro que só fez a antiga 4ª classe e também não quis. Maria C.: A nossa família tinha muitas quintas. Dezanove. Foi o meu bisavô que as comprou. Foi para o Brasil, miúdo, e depois enriqueceu lá, e veio, e comprou 19 quintas e trouxe a família toda. E ele tinha uma quinta muito bonita que é a Quinta da M. (essa quinta fazia parte da família) e eu ainda me lembro de a ir ver. E aqui há uns anos atrás, veio cá uma prima nossa do Brasil, que não conhecíamos, e estivemos a ver a quinta. E o senhor, o caseiro, deixou-nos entrar e é que nos contou como era a vida deles. Por exemplo, eles eram caseiros, mas não podiam ter gado, só podiam gerir o gado dos senhores. Apesar de tudo, os caseiros tinham uma casa, não é? Luísa C.: Conheci algumas casas que até eram muito boas, de pedra. As outras não sei… P: E as relações entre o pessoal doméstico, como eram? Luíza C.: Havia uma hierarquia, não é? Mas, por exemplo, a “Luísa cozinheira”, como a gente lhe chamava, tinha a filha que era casada com o feitor. Depois havia uma outra senhora cuja filha esteve lá como criada, casou lá, e continuou lá, mas já como externa. E havia a sobrinha desse senhor que tinha também uma sobrinha lá a trabalhar. Depois também havia uma senhora que estava lá como Dama de Companhia, mas também fazia assim umas coisas. Essa esteve num convento e acho que se deu muito mal, ou não estavam para aturá-la e mandaram-na para lá. (Imagino que à hora da refeição teriam uma mesa onde se sentavam todos?) Era. Havia uma grande mesa. Maria C.: Eu já comi com eles nessa mesa! Luíza C.: A mesa ficava assim encostada à parede, era grande, mas às vezes nem cabiam lá todos e depois comiam outros noutra mesa. Porque havia lá o do quintal, o filho, era o outro senhor que também lá trabalhava, havia a filha, havia uma que era prima, e havia outra sobrinha. A Maria Emília era sobrinha do senhor António. E a Domicilia era sobrinha da Maria Emília. (Em termos de funções?) Temos uma que se ocupava principalmente da roupa, de passar a ferro, lavar e também ajudava a fazer os quartos. A outra fazia a limpeza e também ajudava a fazer os quartos. Havia a de sala porque se fosse para fazer um recado ou ir a casa de alguns primos, era ela que normalmente ia. As criadas de sala normalmente é que iam. (Luíza mostra um avental): Isto já deve ser mais velho do que eu. Essa levava um avental branco. Faziam questão. A da cozinha, tinha o avental da cozinha, mas se tinha que ir buscar qualquer coisa à rua, levava um destes (mostra-me um segundo avental). Na parte de trás, as tiras cruzavam-se. A da cozinha, se tivesse que sair, tirava o avental para se calçar. Elas até gostavam muito de andar descalças, mas lembro-me que naquela altura era proibido. Pagava-se 25 tostões se eram apanhadas (risos) (Mas em casa andavam descalças?) Não as deixavam. Tinham de andar com uns chinelos ou uma coisa assim. No caso do avental, era levado sempre pela criada de sala normalmente quando íamos a casa dos primos e eu até achava muita graça porque ela dizia: “A senhora manda dizer à senhora que manda muitos cumprimentos” (risos). Eu até acho que a Maria E. me dizia que usava este avental branco com um vestido preto e que o levou ao meu batizado. Maria C.: A Maria E. é, para nós, a grande referência, porque foi lá para casa com 20 anos e ela era suposto ser criada de fora (a chamada criada de fora). Mas ela gostava de cozinhar e aprendeu com a Luísa e ela era uma doceira e uma pasteleira como não há! Eu ainda tenho receitas que ela me deu. E era muito engraçado porque ela tinha 20 anos e brincava com o meu pai no corredor e faziam corridas. O corredor tinha... 38 metros. De maneira que eles faziam corridas os dois. E também foi sempre uma referência para nós. E eu cheguei lá a passar uns dias de férias e ela fazia-me todos os dias uma receita de família. Muitas das receitas vieram do Brasil. Uma das receitas era o véu da noiva ou trouxa ...eram salgados. Eu tenho uma receita de família, de empadas, que veio do Brasil. E o timbale, que é um pastel de massa folhada, também foi ela que me ensinou a fazer e ela é para nós a grande referência como empregada porque… era uma pessoa de família. E ela contou-me no comboio que…A última vez que a vi ainda estava lá a trabalhar em casa da minha tia, já muito velhinha, e ela contou-me que elas só foram inscritas na segurança social e tiveram direito a um salário com o 25 de abril. Disse-me que recebiam 1500$00. Ora, quando eu fui lá foi em 1998, elas estavam a receber 3 contos por mês. 3 contos, 3 contos e quinhentos que elas ganhavam. Luíza C.: Eu acho que elas ganhavam 150$00 quando eu era pequena. Na família do meu pai, era o meu avô que era carpinteiro e a minha avó que esteve em casa (Luíza mostra-me as fotos). Esta é a minha mãe e a minha avó materna. Maria C.: É que as minhas avós eram irmãs. Os meus pais são primos direitos. A minha outra avó foi para aquele orfanato que havia ali entre P... Uma coisa muito conhecida que agora penso que está em ruínas…onde estão os depósitos de gás…nesse orfanato ela esteve desde os oito aos dezoito. Nunca tinha visitas da família. Esta fotografia é na casa do C. que agora não se visita porque foi vendida e deve estar para construção. Luíza C.: Esta também era empregada lá em casa, mas era do outro lado, da minha tia. Era a Amélia. Maria C.: A Amélia era tão pequenina que lhe fizeram uma … Quando eu nasci, ela só se dedicava exclusivamente a uma tia-avó minha que tinha tido tuberculose, e ela recebia a comida, tinha uma cozinha à parte onde lavava a loiça. Tratava só dessa minha tia-avó. Este meu avô ficou viúvo muito cedo. A minha avó teve 4 filhos e morreu com 32 anos. E ele casou com uma cunhada. Foi professor na Universidade de…. E a minha avó (o pai dela tinha muito dinheiro) e ela foi para a Suíça, para Davos. Esteve lá 3 anos para ver se melhorava e na altura chamavam-nos “tísicos” (hoje será pneumologia) e ele foi professor na Universidade. Ele casou com uma cunhada (a minha tia-avó) que foi minha madrinha. Maria C.: Mas também foi um dos responsáveis pela instalação da assistência à tuberculose. Havia umas enfermeiras visitadoras. Na altura havia muita tuberculose, e eu lembro-me que essa minha tia-avó, que era minha madrinha, que depois descobriram que estava tuberculosa, nós não nos podíamos chegar perto dela para não nos contagiar. Depois a Amélia ainda ficou como empregada da minha tia-avó na Av. I. e lembro-me perfeitamente que ela era tão pequenina que tinha um caixote de madeira para chegar ao fogão. E nós quando éramos pequeninos, íamos lá visitá-la ela cantava-nos aquelas canções “Amélia vem…” e não fazia a mínima ideia de onde vinham aquelas canções, mas eu aprendi com ela. Antes dessa minha tia-avó ter ficado tuberculosa, um irmão do meu pai que era filho dela do segundo casamento (de onde nasceu uma rapariga e um rapaz) acabou também por ficar tuberculoso. E foi para o sanatório da Guarda. E até acho que eles tinham uns chalés para os doentes estarem porque a Amélia foi para lá. E a Amélia ele nem queria que ela chegasse muito perto porque tinha medo. Ele morreu em 1939 e ela contava muitas vezes que ele tinha medo que ela apanhasse e dizia: “Vai-te embora!” Eu tenho aqui cartas delas do sanatório a dizer do estado dele, como é que ele estava. Maria Campos: Essa desgraçada da Amélia ainda foi tomar conta de um padre em G.!...ela era órfã, foi criada num asilo. Ela tinha umas mãos de fada, tinha umas mãos que faziam uns trabalhos magníficos. Tinha uma tal memória visual que às vezes a minha tia via alguma coisa numa montra, a Amélia ia lá, olhava, chegava a casa e tirava o bordado. E é engraçado porque ela tinha um sobrinho que foi ajudando e lhe fez o enxoval para ele ir para padre, e ele foi para padre. Uma vez fui ver uma palestra porque estava desconfiada que era ele, e no fim fui perguntar-lhe se não era sobrinho. E ele disse: “Sou!” e ficou até muito admirado. Ela devia ter muito jeito para os doentes, penso eu…O que nós chamaríamos hoje um “cuidador”. Cuidadora, neste caso. Mas o caso aqui é herdarem e emprestarem as criadas, não é? Alguém que herda, não é? Luíza C.: Ela foi para lá de empréstimo e voltou outra vez para casa. (Não tinham costureira em casa?) Uma das filhas do feitor tinha ido para a costura. De maneira que ela é que fazia os arranjos. Maria C.: Eles tinham um quarto de costura a que chamavam a “Sala da costura” que era uma sala para onde foi depois a televisão e até se ficava lá quando era preciso, mas era a sala da costura. Até porque houve uma criada lá em casa que eu ouvia falar, que era a J., que acabou por morrer também lá em casa. Chamavam-lhe “A Araúja”. Era a J. e era a “Araúja”. Devia ser Araújo de apelido. Luíza C.: Há cinco ou seis empregados que trabalhavam lá em casa que estão no cemitério, num jazigo, que é muito bonito. É um monumento muito bonito. (e onde é que está disposto? Ao lado da família?) Maria C.: Não está disposto ao lado da família, mas está pela família, não é? É mais bonito o jazigo dos empregados que o da família. Luíza C.: O jazigo foi herdado pela minha bisavó e até está num lugar muito próximo da capela, onde tem uns leões e uma nossa senhora. É muito bonito. Tem duas pedras. E eu lembro-me de…ora o João, a Luísa, a Maria A., a Amélia, a Maria E.… O primeiro a morrer até foi o João, que eu me lembre…e se calhar até um bebé…tenho a impressão de que havia um bebé que morreu, filho do João, e é capaz de estar lá enterrado. (mostrando as fotografias) É este o dos empregados. E este é o da família. É até mais alto, mais projetado. Houve uma que pediram autorização para ficar lá, não foi? Foi a Maria E.. Ela tratava-me sempre por menina. Iam sempre embrulhados num lençol de linho. E ela disse-me: “Eu posso ficar com o lençol de linho?” E eu respondi: Ó Maria E., fica com os lençóis de linho que quiseres.” Maria C.: Na realidade, elas ficavam lá em casa, sempre. Eu lembro-me ainda da Maria A.… Luíza C.: (ainda vendo as fotografias) “Aqui a tal que esteve num convento.” “E aqui a que tratava da roupa. Morreu há pouco tempo. Morreu este ano, com 90 e poucos anos. Este é o pai da minha sobrinha e a minha mãe e a minha tia. Foi por causa dela que a minha mãe teve que casar.” Maria C.: Ela era um bocado tenebrosa, era…muito religiosa! Contava-nos uma história porque tinha uma quinta em A. e o padre de F. tinha a quinta em frente. A. é uma pequena terra que tem uma quinta muito bonita. E aquilo só tinha uma entrada, uma quinta, tinha a do padre e tinha a Igreja. E o padre foi lá e disse: “Ai, Senhora Dona Maria L., coitadinhas das crianças, não têm escola lá na zona, a senhora tem a casa da quinta vazia… não se importa de dar umas salas para fazer uma escola para as crianças?”. E ela disse: “Ah, está bem, Senhor Padre e fruta também podem colher para comer.” Mas depois veio outra vez o Senhor Padre e disse: “Ah, Senhora Dona Maria L., as crianças mais pequenas precisam de um jardim infantil…” Ela olhou para ele (e era super católica) e disse: “Oh Senhor padre, eu já emprestei metade da quinta, agora o senhor tem a quinta em frente, empreste o Senhor!” (risos) Esta foi ama dela. Foi ama de leite, que depois foi para o Brasil, era a Felismina, e até tenho aqui… ela nasceu em 1897. A minha avó, eu vejo cartas dela em que ela se diz sempre muito cansada, e o certo é que teve os 4 filhos e acabou por morrer porque… quando ela morreu, o mais pequeno teria para aí dois anos. Os quatro filhos teriam a idade de seis, cinco, três e dois. Eu acho que ela não podia amamentar…eu acho que sim…como morreu e nas cartas está sempre muito cansada…. Já devia ter tuberculose. Depois de nascer a minha tia ficou grávida de outro filho, o meu tio C., e a minha tia ficou com a avó. Depois, mais tarde, a Felismina foi para o Brasil, a que foi ama da minha tia. P: É curioso terem tantas memórias fotográficas… MC: Sim, na família havia muitas fotografias e eles tinham vários álbuns e há muitas fotografias destas. Por exemplo, tenho uma da minha avó ainda muito novinha no Gerês. E sabe, depois as coisas acabam por se encaixar todas, porque a minha tia quando foi para a instrução primária foi para as Doroteias. Durante a Implantação da República, lá teve que regressar à base porque correram com os religiosos, e então veio uma professora para a minha tia do Luxemburgo que eu tenho muitas cartas dessa professora. Veio fazer a educação da minha tia, aprender o francês, pintar, tocar piano e acho que até aprendeu um bocado de alemão. E, entretanto, a minha tia cresceu, já não precisava dela, e houve uma condessa que arranjou que essa senhora fosse para a casa da Í… fazer a educação do Marquês de…. A senhora escreve à minha tia, conta a vida lá na casa da Í… e muitas vezes pergunta pela senhora Júlia Araúja. Ela era luxemburguesa e devia gostar muito dessa empregada porque pergunta nas cartas pela Araúja e fala muitas vezes nela. Devia ser no tempo da L., a cozinheira. Nas cartas, passa por Paris e diz o que se usa, quando vai ver a família depois da Guerra descreve aquilo tudo…e quando vai para a praia da granja, de férias, e as outras, pergunta sempre pelas empregadas. Maria C.: Havia uma condição para todas elas serem empregadas da casa. Todas elas tinham que rezar muito. Ai isso era. Elas rezavam todas as noites o terço e tinham que ir à comunhão, à missa. E não podiam ser muito novas. Isso a gente acha que devia ser por causa dos meus tios (dos irmãos das minhas tias) serem rapazes, não é? E para evitar problemas. Elas tinham que ter pelo menos 18 anos, ou assim. Por acaso, a Domicilia foi julgo que com 15 anos para Coimbra, mas lás nessa altura não havia rapazes. (as empregadas sabiam ler, escrever? Tiveram essa preocupação?) Sim, tinham. Sabiam ler porque, se vir, podem estar mal escritas, mas escreviam cartas. Esta é de 1938 e elas escrevem. (leio uma referência à Prazeres). A P. é a tal que tirou farmácia, do feitor. Elas mesmo quando foram para o Brasil, não deixaram de escrever. Maria C.: Esta carta é gira: “O P. só quer trabalhar oito horas, mas há um pedreiro em M. que trabalha 10 horas e é um bom pedreiro e é bom trabalhador e o mudo foi o que fez o forno de cavadas (já aqui está a reivindicação das 8 horas!) Isto é em 1939. O meu bisavô teve muito sucesso, até porque casou com a filha do patrão, e o patrão por acaso até era também lá de F. e ele chegou a comprar a casa, e remodelou-a. O meu bisavô comprou aquela casa. Ainda têm uma ramada com as vides que ele levou daqui para lá. E ela fez a tese dela com os documentos de família. A casa de família era daquelas senhoriais que tinham a adega de um lado e o celeiro do outro. Aquelas grandes arcas. E as tias eram beatas até dar por um… e então, elas tinham uma característica muito engraçada: elas davam catequese, lá em F.. E além de darem marmelada como merenda, compraram uma bola de cauchu porque elas gostavam muito de futebol. E então, nos intervalos da catequese, jogavam os mais velhos com uma bola verdadeira, para atrair os mais novos para a catequese. E ela arbitrava. Ainda hoje há muita gente que me diz que fazia catequese com as tias da casa. E tinham uma máquina de filmar e passavam os filmes. Primeiro com a lanterna mágica, e depois com a máquina. Elas nunca casaram, mas tinham esse aspeto…. Há até uma história de que uma vez estavam a ver o Clube F. a jogar, e ela olhou e disse: Falta o não sei quantos. Onde é que ele está? Estou aqui, minha Senhora. Por isso, elas gostavam de futebol. `Portanto, sendo elas muito católicos e sem querer casar, tinham uma versão muito engraçada… Luíza C.: Eu tenho centenas de cartas e isso é como viajar no tempo…Por exemplo, uma vez o meu pai levou uma palmada e a criada ficou toda zangada porque tinham dado uma palmada ao menino. Maria C.: Era uma vida difícil, a das mademoiselles, porque era um bocadinho acima das criadas. E ela fazia roupa, teria mais lugar à mesa. Ela ensinava línguas. Era, vá lá, mais especializada porque ensinava as línguas, ensinava a pintar, tocar piano… Por exemplo, guardo documentos em que se percebe que o patrão que tinham um criado e quando viu que o criado foi preso, disse que o criado que era dele e fazerem o favor de o libertar e darem-lhe duas vacas que tinha levado. P: Regressando agora à relação entre o seu pai e a sua mãe, apesar de tudo, é uma relação com um final feliz, não é? Luíza C.: Não…eu nunca vivi com o meu pai…ele estava sempre no estrangeiro. E depois a minha mãe acabou por ficar sempre cá e depois houve uma separação…assim…ele ainda pensou em levar a minha mãe, só que nessa altura a questão do estrato social era muito complicado…E a minha mãe era uma mulher bonita. Era uma pessoa cheia de vivacidade e era assim também um bocadinho fora da época, para ela. Mas casaram pela igreja e tudo. Maria C.: Ah sim, as tias eram muito religiosas. A única pessoa que lá entrou sem ser casada fui eu. A minha mãe levou o R. lá. O meu pai tinha uns amigos que eram muito amigos e que moravam aqui no Bairro das C.. E eram casados pelo civil e a minha mãe não os deixou…O R., aos dois, não era batizado. E ela disse: eu sei que trouxe o filho do pecado cá a casa e a minha mãe respondeu: “Não, trouxe o meu neto”. Mas eu não era bem-vinda lá em casa. (Mas deve ter sido difícil manter aquele matrimónio) Ah foi, até porque ele nunca estava, e a minha avó vivia presa em F. P: E quanto às horas das refeições? Luíza C.: Eles comiam ao meio-dia e nós comíamos à uma. Havia uma panela com sopa e depois comiam bem. E ao pequeno-almoço também era uma malga de cevada e punham açúcar amarelo e comiam pão trigo. E também merendavam. -
"Grande Hotel no Porto", Revista de turismo: publicação quinzenal de turismo, propaganda, viagens, navegação, arte e literatura, no Ano II- Edição nº 26.
“Todo o pessoal é atencioso e o sorriso bajulativo não se vê na boca de nenhum criado, como também não se veem nódoas de gordura na sua farda.” Foi assim rematado este artigo que dava conta da inauguração do Grande Hotel, no Porto, no ano de 1916, querendo elogiar as práticas de asseio nos códigos de vestuário dos trabalhadores hoteleiros, emanando do seu corpo um sinal conforme à etiqueta de luxo, mas sobretudo um comportamento emocional que não acusasse demasiado servilismo e adulação. No mesmo artigo, o cronista não esquece de enaltecer a ausência de “cheiro a refugado”, então marca da hotelaria portuguesa. Mas a razão deste progresso era menos favorável para os cozinheiros, pois isso significava trabalhar numa cave para evitar a propagação de cheiros nas “zonas nobres.” Em todo o seu luxo, o Hotel esperava assim “receber a alta sociedade portuense” e vê-la em fraternidade com os turistas. A demora na inauguração do espaço devia-se à "maldita guerra" (uma referência à Primeira Guerra Mundial), responsável pelo atraso na construção. O elogio do luxo é permanente, tendo sempre como pano subjacente a adoção de práticas higienistas mais em conformidade com aquilo que “lá por fora” já seria regra. Assim, descreve-se que “o ar é purificado por meio de ventoinhas eléctricas que o renovam constantemente.” -
"La infanta Isabel Clara Eugenia y Magdalena Ruiz"
Pintura a óleo atribuída a Alonso Sánchez Coello. A jovem retratada é Isabel Clara Eugénia, filha de Filipe II. A infanta apresenta na mão direita um camafeu com a imagem do rei, enquanto apoia a mão esquerda na cabeça de uma idosa: trata-se de Magdalena Ruiz, criada da corte espanhola desde o reinado de Carlos V com Isabel de Portugal. Ajoelhada ao lado da infanta, Magdalena Ruiz segura um medalhão e dois pequenos macacos que se crê oriundos da Amazónia. A obra pertence ao Museu do Prado, em Madrid, e integra o itinerário interativo “Los trabajos de las mujeres” disponível no website desse museu. Encontra-se temporariamente exposta no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa. Fontes Museo del Prado – https://www.museodelprado.es, La infanta Isabel Clara Eugenia y Magdalena Ruiz, número de catálogo: P000861. Museu Nacional de Arte Antiga – http://museudearteantiga.pt, Obra Convidada – Alonso Sánchez Coello, Infanta Isabel Clara Eugénia com Magdalena Ruiz. Ruiz Gómez, Leticia (2008), “La infanta Isabel Clara Eugenia y Magdalena Ruiz” in El retrato del Renacimiento, Madrid, Museo Nacional del Prado, pp. 404-405. -
"Mãe e Filho, Peregrinos em Fátima"
Mãe e filho peregrinos em Fátima, de Cilínio Fraga, Lisboa, Edições Colibri, 2020. Obra lida e comentada por António Silva (“Nica”) 1. O encontro Numa tarde de sexta-feira, o senhor Celino Neves subiu a íngreme escadaria de pedra e entrou no edifício de dois pisos onde funciona a Divisão de História e Cultura da GNR, em Alcântara, Lisboa. Por insólito que pareça, e devido a uma série de acasos, naquela tarde, eu era a única pessoa a trabalhar na Divisão. O Sr. Celino abordou-me e disse que procurava o processo do seu avô, que tinha sido cabo da GNR, para uma investigação que tentava levar a cabo; que já tinha estado no Arquivo do Exército, que lá lhe tinham dado o número do processo e a caixa dizendo que se encontra no Arquivo da GNR. Já tinha enviado vários e-mails para a GNR, já lhe tinham pedido vários dados, mas como não havia meio de lhe darem uma resposta positiva tinha resolvido “meter os pés ao caminho” e ali estava ele. - Você está com um azar do “caraças”! – respondi-lhe eu, depois de o ter escutado. - Então, porquê? – perguntou, intrigado, o Sr. Celino. - É que hoje não está nenhum arquivista, eu sou bibliotecário, não trabalho no arquivo… Se tivesse telefonado antes… - disse-lhe eu, um pouco embaraçado. Conversa puxa conversa e, a um dado momento, perguntei: - E o seu avô era de onde? - São Pedro da Cova, Gondomar – respondeu de pronto. - Eh pá, mas é a terra da minha mulher, foi na igreja de lá que casámos! – exclamei eu, animado com a coincidência. Em parte devido às recomendações do Chefe da Divisão que pretendia que todos soubéssemos um pouco das diferentes áreas de trabalho, e também por curiosidade e interesse natural, eu conhecia os códigos de acesso ao programa de pesquisa dos processos do arquivo e a forma de ordenação das caixas e processos na infinidade de estantes. - Espere, aqui, que pode ser que o consiga ajudar – disse-lhe eu, dirigindo-me para o interior do Arquivo Histórico. Inseri o código no computador, digitei os dados na pesquisa e esperei pela resposta da base de dados: “Henrique Barbosa da Neves, 1º cabo, N.º processo X, estante Y, prateleira Z”. Dirigi-me apressado para a estante pensando: “vai ser canja!” Passado um bom quarto de hora lá fui ter com o Sr. Celino que me esperava ansioso. - Está perdido, Sr. Celino. O processo está cá no arquivo, está registado na base de dados, mas não está na estante, no local dele – informei-o eu com algum desalento. - “Então era por isso que não me respondiam” – pensou, falando alto, o Sr. Celino – E agora!? - Olhe, agora!? São milhares e milhares de processos, pode estar em qualquer lado. Quando se perde um processo só com uma grande sorte é que se volta a encontrá-lo. Pode ser que, daqui a uns tempos, por um acaso qualquer, se dê com ele no sítio errado e se coloque novamente no lugar dele – expliquei eu. O desânimo era grande no rosto do Sr. Celino que se preparava para regressar a casa de “mãos a abanar”. De repente, tive uma espécie de “iluminação” e disse-lhe: - Tive uma ideia, espere aqui um bocadinho! Passado um minuto ou dois lá apareci, sorridente, com o processo do avô do Sr. Celino na mão. - Aqui está ele! – e li o nome manuscrito na capilha amarelecida pelo tempo – “Henrique Barbosa das Neves”, até tem aqui uma foto dele! O Sr. Celino, muito animado, não parava de me agradecer e, apressado, foi consultar o processo na sala de leitura, onde descobriu que o avô tinha participado na Primeira Guerra Mundial, tendo combatido na Flandres, na Batalha de La Lys, acabando prisioneiro num campo alemão, sendo libertado e regressando a Portugal já muitos meses depois do fim da Guerra. Fiquei de lhe enviar uma digitalização da fotografia do avô, por e-mail, e o Sr. Celino prometeu oferecer-me um exemplar do livro quando publicado. À despedida, ainda continuávamos emocionados com o “milagroso” achamento do processo: - Ó Sr Celino, você até teve sorte, se eu não estivesse aqui, hoje, sozinho, se calhar nunca mais achava o processo. O arquivista ia à prateleira, não estava lá, e pronto … - disse-lhe eu. - É verdade, Sr. António Silva, isto há coincidências difíceis de entender. Em tantos meses, porque é que hoje, quando me levantei, decidi: “ tenho de ir ao arquivo da GNR!” Olhe se não tenho vindo?! Se não o tenho encontrado a si e se não fosse essa sua ideia?… Passado algum tempo, recebi um telefonema do Senhor Celino que pretendia o meu endereço postal para me enviar o prometido livro, acabado de editar. Conversámos, ainda, um pouco: - Já não me lembro bem, Sr. Celino, e como é que eu descobri o processo do seu avô? – perguntei-lhe eu, já esquecido do assunto. - O meu avô era da GNR e o processo não aparecia em lado nenhum, estava perdido. Então, você teve aquela “intuição” e pensou: Será que se enganaram e colocaram-no na ordenação correta mas junto dos processos da Guarda Fiscal. Porque os processos da GNR e da Guarda Fiscal estavam separados. E lá estava ele, encontrámos o meu avô GNR no meio dos Guardas – Fiscais. Foi assim! 2. A biografia Podemos dizer que Leonida de Jesus Vilela (Provesende 1907-Leiria 1991) nasceu e morreu como criada de servir. Embora tenha tido, esporadicamente, outras ocupações, é a condição de criada que a “persegue” toda a vida. Órfã de pai muito pequena, sem irmãos - os cinco que teve morreram antes de ter nascido - Leonida é “sinalizada”, com seis anos de idade, pelo pároco da aldeia onde vive que “negoceia” com um casal abastado, que habita longe da aldeia, e a mãe, a ida da filha para fazer pequenos serviços e companhia a uma menina de oito anos, filha única desse casal. A intervenção do padre teria como objetivo livrá-la da miséria e da fome – mas haverá, para uma criança, “fome” maior que a falta de uma mãe? É, pois, o argumento de uma “vida melhor” que é usado para convencer a mãe a deixar partir a filha para longe de si. De resto, a mãe de Leonida, Genoveva de Jesus, é também uma mulher “marcada” pela doutrina da Igreja e pelo sistema de servidão rural - é filha do “pecado”, pois nasce devido à relação entre a mãe, criada de servir, com o seu patrão, mas este nunca a virá a ajudar nem reconhecer como filha. A propósito dos abusos sexuais nestes sistemas de servidão, e tendo em mente a avó materna, o autor refere: Infelizmente, a abastança de muitos homens faz deles animais irracionais, que ferem, mordem, e matam – umas vezes com palavras, outras com gestos e muitas vezes com atos – a dignidade de muitas mulheres humildes e indefesas contra a alta esfera da sociedade. Sabemos que sempre existiram, ao longo da nossa história, homens com esta índole, muitos deles vindos de classes sociais mais abastadas ou de ilustres famílias com distintas honrarias, que usavam e abusavam das suas serviçais, perseguindo-as como cães famintos, ávidos de luxúria, para satisfazerem os seus prazeres carnais pela calada da noite, ou em qualquer lugar em que a presa não tivesse a mínima hipótese de saída. Em sentido inverso, a necessidade, a fome, ou o medo de perder o posto de trabalho, o garante de pão em cima da mesa, faz com que muitas mulheres se deixem subjugar por esses ilustres e perversos senhores, que têm o poder de passar um atestado de vergonha às mais fracas e humildes, submetendo-as ao juízo da desonra, sempre com a conveniência das leis da justiça da terra, nem sempre cegas, feitas por alfaiates, que as ajustam à medida da pança de cada um desses abutres (Fraga,2020:38). A pequena Leonida acaba por voltar à aldeia, passado alguns meses, porque a menina não simpatizava com ela e a relação entre ambas não deu os frutos que os pais esperavam. Anos mais tarde, já adolescente, é contratada como criada interna por um coronel do Exército e sua esposa, em Vila Real. É dispensada cinco anos depois, quando essa família se muda para Lisboa, regressando a Provesende. Acaba depois por ser contratada para trabalhar no Porto, sendo criada “novamente” da menina que foi fazer companhia quando tinha seis anos, agora professora no colégio das irmãs Doroteias e recém-casada com um jovem engenheiro dos caminhos de ferro. Na cidade do Porto ainda tem alguns esgares de felicidade, na companhia de outras criadas de servir, durante os passeios que dão nas únicas três ou quatro horas de liberdade que os patrões lhes dão aos domingos à tarde. Volta depois para a aldeia para cuidar da mãe, doente com uma pneumonia, e acaba por casar, aos 32 anos de idade, com José Ramos das Neves, um mineiro que passa longos períodos fora de casa. A família, pouco tempo depois do casamento, muda-se para a aldeia de Justes (Vila Real) onde julgam encontrar melhores meios de subsistência. Os dois primeiros filhos de Leonida morrem cedo, com cerca de 16 meses, e, quando engravida pela terceira vez, o marido abandona-a nunca chegando a conhecer o filho Celino (autor desta biografia). Movida por uma fé enorme, e pelo extremo amor ao filho, promete de ir ao Santuário de Fátima agradecer a Nossa Senhora se ele ultrapassasse os fatídicos 16 meses e completasse, com saúde, os dois anos de idade. Sozinha, com o filho ao colo ou à cabeça enquanto dorme, numa espécie de canastra, Leonida vai percorrer os quase trezentos quilómetros que separa a aldeia de Justes de Cova da Iria. Começa a caminhar pela alvorada e, ao entardecer, assim que avista uma igreja ou campanário para lá se dirige para descansar e procurar auxílio para passar a noite com o filho. Com a ajuda dos habitantes das terras por onde passa chega a Fátima, passado quase um mês, cumprindo a sua promessa e a tempo de assistir às celebrações das aparições de 13 de Maio, que muito a reconfortaram. Finda a peregrinação, no regresso, acaba por não voltar a Trás-os-Montes e vai fixar-se em Leiria onde é apoiada por algumas famílias que tinha conhecido na ida para Fátima. Ali, mãe e filho vão ficar conhecidos por muitos anos como “os peregrinos de Fátima”. Vive com alguma tranquilidade e felicidade com o filho numa pequena casa arrendada, e até consegue que ele frequente, gratuitamente, uma escola particular o Jardim-Escola João de Deus, uma feliz raridade, em Portugal, em termos de inovação pedagógica. Fruto de vários aconselhamentos que lhe procuravam demonstrar a fragilidade da sua situação familiar, recordando uns dias em que esteve internada no hospital, ficando o filho aos cuidados dos vizinhos, acaba por se separar do filho ao inscrevê-lo, aos sete anos, no “Asilo”, o Internato Distrital de Leiria, uma escola para os filhos dos pobres, então dirigida pelo Frei padre franciscano João d’ Alcaravela (que irá escrever a nota de apresentação deste livro). Essa separação é traumática para ambos e, aos 16 anos, quando já não é obrigado a permanecer no Internato, Celino abandona-o com a esperança de arranjar um trabalho, tirar a mãe da condição de criada, alugar uma casa, e ir viver com ela - o sonho de regressar à sua “idade de ouro”, aos poucos anos de felicidade que viveu com a mãe na infância. Não conseguiu esse sonho o adolescente Celino, mas tentou-o, nesse imenso amor pela mãe. Leonida acabou por ficar a trabalhar quase 40 anos para uma mesma família em Leiria, que fez dela quase um seu membro, mas que, na verdade, a impediu de ter a sua própria família, de poder desfrutar a convivência diária o amor com o filho. Morre nos braços do filho Celino num lar em Leiria, a 24 de Dezembro de em 1991, aos 84 anos de idade. 3. A crítica A leitura de Mãe e filho peregrinos em Fátima, de Cilínio Fraga, envolve-nos num misto de angústia e prazer. Será difícil não sentirmos o estômago apertado por uma impotente revolta. Revolta de não conseguirmos mudar a realidade, de sabermos que aquela “peregrinação” não é só ficção mas a verdade da vida dura, e muitas vezes injusta, de Leonida de Jesus Vilela. Conjugado com todas essas emoções ou comoções vem aquele prazer, próprio da boa escrita, de querermos “devorar” as páginas, de saber o que vem a seguir, de perscrutar as soluções que a mãe Leonida inventa para prosseguir com a sua vida e a do filho. A biografia foi escrita de modo a deixar emergir, “a cada página”, uma corrente de fé católica - ou não fosse Leonida uma fervorosa crente. Assim, vemos que o autor pelo seu carácter benevolente e apaziguador, ou por razões de fé, enaltece todos os membros da Igreja que se cruzaram na vida da mãe e todos os patrões a quem serviu. Mas terá sido mesmo assim? Terão sido todos “anjos da guarda” para Leonida? Há situações que nos levam a duvidar. Leonida tinha, enquanto criança e jovem, uma enorme vontade de aprender a ler e escrever mas nunca conseguiu realizar esse seu desejo. Uma freira em Vila Real ainda lhe deu algumas lições, mas o regresso inesperado a Provesende acabou com esse sonho. De entre toda as outras pessoas letradas, presentes por longos períodos na vida de Leonida, e descritas como caridosas (padres, freiras, militares, engenheiros, professoras), não houve uma que se tenha disponibilizado para lhe ensinar os rudimentos da escrita e da leitura. Seria considerado instrução a mais, e desnecessária, dada a sua condição social? Não será esse desinteresse uma forma de mal? O autor coloca o mal, quase sempre, como ações, ou omissões, de particulares sobre Leonida – o marido, o sogro, o avô materno – um pouco na senda dos exemplos bíblicos da doutrina cristã. Contudo, no caso de Leonida - e de inúmeras “Leonidas”- o mal ter-se-á de equacionar de um modo mais abrangente, coletivo, pois, mais que a ação de um sujeito ou outro, são as normas sócio-políticas, económicas e religiosas do Portugal de então, como um todo, os males maiores que amarraram Leonida à condição servil e lhe retiram a liberdade. A vida de Leonida é um espelho das ideias que a ditadura de então, e a sociedade em geral, tinham para as mulheres, particularmente para as dos estratos sociais mais baixos; mas é-o também das normas e proibições com que a Igreja Católica amordaçava as mulheres, especialmente as mais crentes e desprotegidas. Não eram verdadeiras servas em Cristo, como acreditavam ou lhe faziam crer, mas servas da Igreja Romana e da sua doutrina. Mãe e filho peregrinos em Fátima, de Cilínio Fraga, é também a constatação, em papel impresso, de que uma certa tradição literária elitista das obras biográficas, associadas a supostos ilustres ou famosos, é de crédito duvidoso, pois toda a pessoa humana encerra uma singularidade e uma riqueza de vida que podem ser transpostas para a boa literatura - haja talento para escrever e livreiros interessados em publicar. Não será preciso procurar “longe” ou “alto”, bastará interessamo-nos, ou amarmos (na terminologia cristã) os que nos rodeiam, os que nos são próximos. É, porventura, esse ato profundo de amor pela mãe, transposto para a escrita pelo autor, que faz deste seu livro uma obra de boa literatura que importa ler e divulgar. 17 de Fevereiro de 2022 -
"Não tinha liberdade nenhuma."- Entrevista a Mariana Bonfim
Mariana Bonfim: Sou de Trás-os-Montes. P: E como é que são as suas recordações desse tempo? Mariana Bonfim: Éramos muito pobres. Tínhamos que andar a pedir. A minha mãe foi sempre muito doente. Quando ela morreu, eu tinha 6 anos. Depois internaram-me no Asilo de Infância em Vila Real. P: O seu pai trabalhava na terra? Mariana Bonfim: O meu pai andava de terra em terra porque naquela altura não havia…de maneira que não. (E eram muitos irmãos?) Não, não éramos. Ficaram 3, mas um morreu … mas o meu irmão andava com o meu pai… (e foi à escola antes de ir para o Asilo?) Não. Fui logo diretamente, e foi lá que fiz a 4ª classe. (e onde era esse Asilo?) Era em Vila Real de Trás-os-Montes… (Lembra-se? Foi difícil separar-se do seu pai?) Eh…o meu pai já não estava muito porque ele andava de terra em terra… Eu estava era com uma tia minha mas…custou-me bastante porque…via ir todos…de férias, no Natal e na Páscoa e nas férias nunca ia a lado nenhum porque não me iam lá buscar… (Diz com comoção). P: Quantos anos lá esteve? Mariana Bonfim: Estive lá 10 anos. (Era um asilo de freiras?) Não, não era de freiras. Era um asilo de uma senhora, que era de Sabrosa e estava ali a dirigir aquilo. De freiras não era. (davam-vos a escola e podiam brincar, ou eram muito severos?) Um bocadinho, um bocadinho, mas também fez bem em certas coisas. (mas pelo menos fez a 4ª classe). Sim, e na altura a 4ª classe equivale agora ao 9º ano. P: E depois começou logo a trabalhar? Mariana Bonfim: Aos 16 anos tínhamos que sair, não podíamos estar lá mais tempo. Fui servir para a casa da senhora que me internou... servir, claro. Estive lá pouco tempo … Depois fui outra vez para Vila Real, mas só estive lá um ano… A senhora morreu-lhe o marido, a vida também não era muito boa…e depois arranjaram-me cá para Lisboa, fui para St. Amaro… …pra lá estive quatro anos, mas também foi horrível… P: Quantos anos tinha quando chegou a Lisboa? Mariana Bonfim: Tinha vinte e poucos. Em Vila Real não era para fazer todo o tipo de trabalho, porque tinha uma cozinheira e era para fazer…a limpeza. Depois quando vim cá para Lisboa é que…fazíamos tudo! Era tudo muito diferente. (e tinha direito a um quarto? Como é que a instalaram?) No primeiro sítio não tinha um quarto porque a casa era pequena. Tinham 2 filhos… De maneira que, como eles tinham 2 marquises grandes… o senhor era engenheiro e fez um divã. À noite…abria-se no corredor. De dia, levantava-se e prendia-se…pois… não tinha um quarto. P: Nessa altura, já ganhava? Mariana Bonfim: Vim para cá ganhar 50$00. (E em Vila Real?) Em Vila Real ganhava 30! (ri pela primeira vez). E nessa altura sentia que era um bom ordenado? Sim, era. Era (o que é que tinha direito, davam-lhe roupa?) Não, não. Não me davam roupa. Se precisasse tinha de a comprar. Pedia à senhora para me comprar. (mas também já era uma mulher, não é? Ia com a sua patroa comprar?) Ia. P: Como é que era a relação com a patroa? Mariana Bonfim: Ela não era má pessoa, mas também levei muitas tareias com ela. (tinha por hábito fazer isso, mesmo com essa idade?) Pois. (Lembra-se o que é que os levava a fazer isso?) Às vezes era porque…ela tinha 2 miúdos…um era mais espertalhão; o outro era mais bebé e então…tinham a mania de…se eu agarrava os miúdos a falar ou a beijar ou isso…não gostavam…e depois eu também refilava, claro. (era quem tomava conta deles?) Pois. Era. (não gostava que lhes desse carinho, era isso?) Não…ficavam sempre, por qualquer coisinha, e depois viam que eu não tinha cá ninguém…. P: E quando eles faziam isso, o que é que fazia? Fugia, ficava no quarto? Mariana Bonfim: Eh, não fazia nada. Ia ficando. Depois houve uma altura que encontrei uma…uma rapariga que era mais ou menos da minha idade…que era da minha terra….Eu nessa altura fui uns dias para casa dela. E depois de lá arranjei outra casa ali para a Fernão Lopes… (ainda em St. Amaro…lembra-se da profissão dos patrões). O senhor era Engenheiro, era da Carris. (E a senhora não trabalhava?) Não. (e eram os dois a mesma coisa?) Ele quando estava de maré também era mau. P: A que horas tinha de se levantar, recorda-se? Mariana Bonfim: Eh, às 7 horas. (E depois, lembra-se se tinha tempo para si? Sentia-se muito cansada?) Não, naquela altura não. (Nunca adoeceu?) Não. (não responde mais). (Fazia todo o serviço?) Pois, aí…foi onde eu aprendi mais coisas, mesmo de cozinha. (E que coisas eram?) Fazia croquetes, faziam rissóis, eram pastéis de bacalhau…fazia-se muita coisa e ela…isso eu não sabia fazer e ela ensinou-me. (E servir à mesa?) Tinha. (Como era?) Tínhamos que andar a servir, em volta, à mesa, com o prato, tínhamos fardas. (Farda com avental?) Pois. (E falava com as pessoas?) Eu não sou muito de falar. (começamos a rir). P: Já percebi que esses quatro anos não foram muito fáceis, mas, pelo menos, tinha alguma folga? Mariana Bonfim: Não, eu não tinha folgas porque também não tinha para onde ir. Não conhecia cá ninguém. (então estava em Lisboa, mas não conhecia Lisboa?) Não conhecia Lisboa!... (mas nunca saía à rua?) Não, quando ia à rua íamos à Praça, ou isso, ia sempre a senhora comigo. (não tinha às vezes um passeio?) Não, quando ia às vezes, íamos passear, íamos ao jardim…,mas era com os miúdos…(sorri) P: Não tinha assim nada de seu, em casa dos patrões? Mariana Bonfim: Não tinha nada. (Nem fazia croché?) Crochés fazia muitos, a gente fazia muitos crochés para fora. P: Então quando saiu dessa casa foi porque não conseguia…e não gostava? Mariana Bonfim: Sim, porque depois, é a tal coisa, também para ser assim tratada, também não…E depois cheguei a ir para a Rua Fernão Lopes, para o Saldanha, para uns senhores que já morreram. Mas ainda vou…ainda vou a uma filha, a uma filha dela que tem 90 anos. 90 Anos, não. Tem agora 99 anos, fez agora em agosto. (ainda vai lá dar um jeitinho?) Vou, e vou também agora para uma sobrinha dela que já tem 82 anos…então dessa casa nunca mais perdeu a ligação. Não porque agora, praticamente, ando nas famílias. P: E nessa casa, já gostou mais? Mariana Bonfim: Nessa casa não era mau. (já tinha o seu próprio quarto?) Já, já tínhamos o nosso quarto. (e folgas?) Folgas tínhamos ao Domingo. (e onde é que ia?) Ia ter com uma pessoa que era da minha terra…(risos)… íamos passear. (Do que é que se lembra de Lisboa?) Eu para mim…era só aquele sítio onde estava, não conhecia… (não conversava com outras senhoras que andassem a servir?) Também não tinha muita conversa porque geralmente nunca dava resultados. (E lá também tomava conta das crianças?) Lá não tinha crianças; eram 2 netas, que eram pequenas…e quando iam lá a casa, claro, ainda lhe cheguei a dar o comer à boca e tudo, mas eram muito pequeninas. P: E como é que olhava para as pessoas daquela casa? Mariana Bonfim: Ah, era como que seja família. (sentia afeto pelas pessoas?) Pois, o senhor era Comandante da Marinha, também é muito boa pessoa e ele até me abriu uma conta no…no Montepio. Conforme eu recebia, ele levava e depositava o dinheiro. Pronto, eu lá já ganhava 200 contos, 200 contos? 200 escudos! (ri-se) de maneira que… (seria só seu caso ou naquela altura já toda a gente ganhava assim?) Naquela altura já toda a gente ganhava mais ou menos…,Mas isto já vai há…55, 56 anos, 57. Sim, porque o meu filho mais velho já tem 55 anos. Ele nasceu depois de eu sair de lá!... (Fazia todo o serviço?) Fazia tudo. (Deixavam-na conviver à noite, no serão?) Podia (risos) (E sabia o que se passava à sua volta, tinha curiosidade por ler?) Eu ler, nunca fui assim muito amiga de ler. P: E namoro? Deixavam-na namorar? Mariana Bonfim: Namorar também não fui muito namoradeira. O primeiro foi o meu marido, foi com quem casei. (os patrões deixavam?) Sim, porque eles até gostavam muito dele. Ele telefonava para lá e gostavam muito de o ouvir. De maneira que o primeiro que namorei foi com quem casei. (os padrinhos foram as pessoas da casa?) Eram para ser, mas como estavam para fora de férias, não foram. P: Quando casou, deixou de viver nessa casa… Mariana Bonfim: Pois, mas ia lá trabalhar. E, quando nasciam os meus filhos davam sempre qualquer coisa. E estavam sempre a dar. (já casada e com filhos, manteve-se ligada a essa casa?) Sim. (era muito diferente, para si, estar dentro ou fora daquela casa?) Era diferente porque tinha que lá estar às 9 h e tinha que vir embora para fazer o comer para os meus filhos. (E não gostou de ter assim uma liberdade maior?) Não, porque também não gostava de ter assim muita liberdade. Estive ali 10 anos…metida. Não tinha liberdade nenhuma. Maneira que nunca fui assim muito de… querer mais liberdade (fez-se um silêncio) P: E quando estava na casa dos patrões, tinha direito à sua intimidade, a descansar no seu quarto às vezes durante o seu tempo? Mariana Bonfim: Tinha, tinha. Tinha. P: E a comida? Mariana Bonfim: Era boa. (era a mesma dos patrões?) Era. Pois. Nunca fizeram comeres separados. (tinha mais alguém a ajudar, ou não?) Não, ia lá a mulher a dias uma vez por semana…A mulher a dias ia lá só para fazer a limpeza e isso, de resto era eu que fazia… P: E mais, o que é que me quer contar? Houve algum momento mau? Mariana Bonfim: Foi um bocadinho sempre a melhorar … Nas casas…, mas depois de estar casada também…eu não tive uma vida muito…muito coisa (como a expressar que não melhorou assim tanto), porque ele (o marido) depois desempregou-se, e depois já não havia trabalho…e depois (qual era o emprego dele?) Ele trabalhava numas serrações, a serração fechou… P: Então no seu caso foi importante continuar a trabalhar, não é? Mariana Bonfim: Pois, trabalhei sempre…foi…e chegámos, e cheguei a andar a pedir!...(já mesmo casada?) Mesmo casada. Tinha o meu mais velho, e tinha outro que morreu…tinha que andar a pedir porque não tinha para lhe dar…não tinha para o poder sustentar. (não chegava porque era só uma pessoa a ganhar, é isso?) Ah, pois foi. (como é que conseguiram ultrapassar?) Eu trabalhava muito e depois ele também se metia na bebida… P: Passou a ganhar melhor quando passou a dias? Mariana Bonfim: Naquela altura ganhava 20$00. Depois tinha aquelas senhas para andar no autocarro, davam-me sempre senhas para o autocarro. (tinha direito a descontos?) Não, nessa altura ainda não havia descontos. (e a saúde, pagavam-lhe?) Eu nunca fui ao médico lá! (é uma senhora muito forte! Deixavam-na levar as crianças para trabalhar?) Levava. Para lá levava, ia para outros lados, tinha que as deixar…, mas, geralmente, iam. Iam por ir, porque, pelo comer, porque o dinheiro que eu ganhava não dava para pagar a quem me ficava com os miúdos. (quando é que a sua vida melhorou um bocadinho?) Eu tenho a impressão que melhorou desde que ele morreu. P: Os seus patrões ajudaram à educação dos seus filhos? Foram seus amigos? Mariana Bonfim: Foram. Uma, a D.… até foi madrinha duma que eu tenho, que já tem agora 49 anos. (por isso é que também nunca se separou dessas pessoas?) Pois. A madrinha, a da minha filha, vou lá todas as semanas à quarta-feira…quer dizer, mesmo muito antes de lá andar, ela até me dava mercearia…telefonava-me e dava-me aos 500$00, nessa altura era muito dinheiro…depois deu-me sempre… P: Hoje já tem alguma idade e continua a trabalhar? Não se sente cansada? Mariana Bonfim: Eu sinto-me cansada, mas é a tal coisa, a pensão também não dá …e também tenho um filho que nada faz…de maneira que…(então quase todos os dias trabalha?) Pois, só à sexta-feira é que não. E agora à segunda. (quantas horas por dia? O dia inteiro?) Às vezes. Um dia vou para Alvalade, para a tia do M. Terças e quintas é para uma tia do M. também, para Alfornelos…à quarta feira também é uma prima do M. que é a madrinha da minha mais velha. P: E o que é que sempre gostou mais de fazer? Mariana Bonfim: Eu naquela altura gostava muito de cozinha. (Ainda gosta de descobrir a fazer coisas novas na cozinha?) Não, agora não. Agora já não tenho coiso para isso. (gostava do serviço da casa?) O serviço da casa não gostava muito, mas tinha que o fazer, claro. (lembra-se da altura em que não havia nada de máquinas…) O fogão era todo amarelo e tínhamos que o ter todo areado. Tinha aqueles tachos amarelos de pendurar na parede, tudo areado, muitas casas eram esfregadas, e depois eram enceradas. (se calhar as pessoas hoje nem sabem o que isso é...) Sim, eu às vezes digo para os meus filhos: vocês falam, falam, falam, mas não sabem o que foi a vida!...Para vocês, até os mais velhos, já foi uma maravilha…Os dois mais velhos é que foram mais sacrificados porque…não tinha. Eu ainda tenho um comigo, já tem 45 anos, também não pára em lado nenhum! (começa a falar da infância) Mariana Bonfim: Tinha dias em que tanto eu como o pai, tínhamos lá um quintalinho e tínhamos lá hortelã e fazíamos um chá de hortelã e bebíamos e andávamos assim todo o dia…só andava a pedir, o que arranjava era para dar de comer aos miúdos. P: Voltou alguma vez à sua terra? Mariana Bonfim: Não, nunca mais lá fui. Não fui porque ele (o pai) morreu cá, morreu ao pé de mim. E o meu irmão também morreu, de maneira que eu também primos…eu tinha uma tia da parte da minha mãe, também morreu. Tive dois tios também da parte da minha mãe, também morreram, de maneira que não tinha para onde ir lá também, não me orientava lá ir. P: Quando os senhores iam de férias, levavam-na? Mariana Bonfim: Não, ficava em casa. Olhe, quando eles faziam as férias, tinham uma filha que também já morreu, que iam para a Rinchoa passar férias com os filhos, e eu ia para lá para a Rinchoa, para o pé deles. P: Tem boas recordações? Mariana Bonfim: Ainda cheguei a ir com as filhas para a praia, para Sintra. Mas também ia e tinha que ter a lida da casa. P: E hoje, quando está no seu cantinho, o que é que gosta de fazer? Gosta de descansar? Gosta de ver televisão? É o que mais a entretém? Mariana Bonfim: Gosto, pelo menos ajuda… (começa a rir-se). Gosto de ver as novelas (diz com um ar sorridente. (e na sua casa, também tem de tratar dela, não é? Ah pois, aqui é a tal coisa. Se a gente não tratar hoje, trata amanhã, e o trabalho… P: Quer contar mais alguma coisa? Mariana Bonfim: Não tenho mais nada para dizer…(ri-se). Deitava-se tarde? Tarde, tarde nunca me deitei. Costumava despachar-me, ia para o meu quarto e deitava-me. P: Gostava de ir à missa? Tinha essa necessidade? Mariana Bonfim: Não, olhe, quando estávamos internadas, tínhamos que ir todos os domingos à missa. Agora ali na senhora onde estive no Saldanha, também gostavam, queria que eu fosse…mas uma pessoa ter que…andar…coiso…e acabava por não ir. P: Em pequena ficou muito traumatizada com o internato? Mariana Bonfim: É a tal coisa, a gente em pequena é bom porque não tem ninguém, e estamos ali e ao menos ali não nos acontece…nada. Mas também passamos muito porque, se estávamos a gente a ir para a casa de jantar, tínhamos que estar todas de enfiada, em fila, se a gente falava, éramos logo castigadas, ficávamos sem jantar, ficávamos sem almoçar. No verão então, se éramos castigadas ficávamos sem lanche…não foi assim muito… (Mariana começa espontaneamente a falar-me do regime de trabalho) Mariana Bonfim: Nessa altura também havia casas que não tratavam a gente como tal, até era a escravidão. Por acaso na última que estive tive sorte porque o senhor era muito boa pessoa, e a senhora também era…e a filha de 99 anos que vivia com os pais também…era mais rebiteza mas pronto, levava-se bem. (essa filha chegou a tornar-se sua amiga?) Ela não…não gostava assim muito de mim porque eu…depois, acabava sempre por refilar porque também estava sempre… P: Dessas pessoas que viu crescer, ficaram suas amigas? Lembra-se de ter brincado com elas? Mariana Bonfim: Sim, brincava com elas… Quando elas iam aos avós, ou ficavam lá comigo, é assim. (tinha que as ir buscar à escola?) Tinha sim, aquela que mora em Alvalade, cheguei a ir buscá-la ao liceu. Tinha 12 anos. O M. cheguei a mudar-lhe as fraldas e a levá-lo ao Colégio M., mas também não gostavam muito dele e tiraram-no de lá. Eu sempre gostei muito de crianças. P: As casas onde esteve eram casas muito ricas? Mariana Bonfim: Não, não eram. Essa casa da tia do M., a mãe tinha 6 filhos…e o pai era juiz. Por isso é que eu também não ganhava assim… Eles tinham bastantes dificuldades porque os avós é que lhes davam muita coisa. (e nessa casa havia 6 crianças?) Pois. (E recebiam muitas pessoas, com muitos convidados?) ... Quer dizer, o pai recebia pessoas porque ele era juiz da Câmara, pessoas que iam muitas a pagar, iam lá ter com ele, pedir…mas, tirando isso…(a casa era grande?) Não…e essa casa era toda esfregada porque ele ainda tinha a mãe dele e a mãe…e ele também tinha asma, de maneira que não se punha cera, não se punha nada e era tudo esfregado. P: Por quanto tempo vai continuar a trabalhar? Mariana Bonfim: Ah… qualquer dia deixo, que uma pessoa já não tem…Agora o pouco que se ganhe sempre vem algum. P: Ganha ao mês? Mariana Bonfim: Geralmente todas me pagam ao mês. P: Tem fotografias de quando era mais nova? Mariana Bonfim: Não, porque naquela altura não tirava fotografias. -
"Polir talheres, todos os dias" Imagem doada por Maria do Mar (nome fictício), cozinheira de restaurante
“Aqui estávamos a aviar, com a lixa, com drenante. Passávamos depois com um pano e depois ainda com pão duro que era para tirar aquela coisa do meio dos garfos, porque criava assim uma coisa esquisita. Aquilo tinha de sair tudo, não podia ficar lá nada. Fazíamos isto todos os dias, tinha de ser feito todos os dias. Eram talheres de cabo de madeira e ferro. Quando começou a aparecer os de aço inoxidável, foi depois.” Maria do Mar (nome fictício), explica ao pormenor todo o processo que era necessário levar a cabo para polir os talheres, uma vez que estes eram feitos de ferro e não podiam correr o risco de enferrujar e, consequentemente, estragar-se. A fotografia mostra, igualmente, que este momento era de convívio e informalidade entre os empregados. Um deles está a sorrir com uma bebida que leva espontaneamente à boca. Também a roupa é destacável pelo seu cuidado e apresentação, através de fatos formais e gravatas, funcionando como projeção da imagem de rigor e protocolo no serviço ao público. -
"Sem mimo, sem amor, sem nada" (entrevista a Catarina Miguel)
P: Fale-me da sua infância Catarina Miguel: Eu era filha de gente pobre, já se sabe… O meu pai… nós éramos 3 irmãs, o meu pai foi para o Brasil com 25 anos e nunca mais quis saber da minha mãe (diz suspirando) a minha mãe ficou com 3 filhas, a mais velha era eu, tinha 5 anos e meio quando ele abalou, e eu aos 12 vim para Lisboa, já viu, eu vim aos 12… tenho 70, vim aos 12…, mas eu gosto de estar aqui. P: E quando veio lembra-se como é que foi? Lembra-se? Catarina Miguel: Lembro, lembro… lembro-me perfeitamente. Eu tinha saído da escola, fiz a 3ª classe só porque a professora chegava à altura dos exames e não dava exame aos alunos! Nada. Nada. Levava-os até à Páscoa e chegava-se à Páscoa e ia-se…de maneira que eu tinha a mania, quer dizer, coitadinha de mim, tinha a mania que queria ser professora, era uma ideia de garota, não é, na nossa infância qualquer pessoa tem isso…E então eu tinha cá uma tia que era, uma tia quer era madrinha…da minha mãe… e trouxe-me. Trouxe-me para cá ao engano! Eu vim ao engano. Ela disse-me: “Vá, levo-te para lá, vais estudar à escola…,” mas não. Chegou cá pôs-me a servir. Fui servir para a Rua do Arco em S. Mamede. Ao pé do Rato. Era uma senhora que era empregada no Príncipe Real, tinha 2 filhos…, mas eu, coitadinha de mim, o que é que eu sabia? Era uma garota com 12 anos, vinda da Província, sabia o quê? Nada! O que é que os nossos pais nos ensinaram? A apanhar batatas, milho, mais nada. Não sabíamos mais nada. E vim para ali e a senhora entendia que eu já devia saber o que…pronto, era aquela escravidão, era escravidão… P: Como era essa família? Catarina Miguel: um dos filhos era arquiteto, o outro era engenheiro…eh, eram os dois solteiros, a senhora era empregada no Príncipe Real, naquele edifício que agora fizeram um lar, não sei bem. A senhora era muito boa, não tenho a dizer, mas os filhos eram terríveis, e depois, a minha madrinha morava também na D. Piedade em São Bento. Ora, eu vim da terra para ali… e então a senhora, a senhora não, era uma senhora separada do marido, mas era uma senhora boa, não havia fome, nada, mas os filhos, pronto, naquela altura, o que é que eu sabia? Nada! Tinham a mania que eram, como a gente chama, uns mariolas, entendeu? E eu coitadinha vinha ceguinha lá da terra e então ele tentou... abusar de mim…tentou, começou-me a agarrar, eu comecei a gritar, porque, tive medo, tive medo não sei porquê, e ele não me fez mal. E fugi. Fugi, fui para a minha madrinha. Fui para a minha madrinha, cheguei lá, e disse, “Eu nunca mais vou para aquela casa porque o menino R. fez-me isto e…tantatan…” E ela não gostou nada. A partir de hoje, a minha sobrinha vai-se embora, vai comigo, vai lá para a minha casa. E fui-me embora. P: Quanto tempo lá esteve? Catarina Miguel: Estive lá só 3 meses. Só estive 3 meses. Depois a minha madrinha tinha um lugar de hortaliças aqui na 24 de julho, no mercado, e então de manhã, chego lá, trazia-me com ela, vinha às 4 da manhã com ela e…pronto, ajudava-a ali a juntar a hortaliça, as coisas…até que me arranjou ali uma senhora para a 24 de julho, uma senhora que também era viúva, tinha vindo de África e tinha uma filha que era médica, ela tinha uma farmácia. A farmácia ainda lá está, mas suponho que já não deve ser deles, ali na R…. uma farmácia que estava ali assim…era deles. Pronto, e eu era mais para fazer companhia à Senhora. Porque tinham outra criada, tinham uma criada para fazer o comer, eu era mais para ir com a Senhora aqui e ali…além…ora, mas lá voltamos ao mesmo. Eu queria era ir para a minha mãe, queria ir para a minha irmã, queria era ir para a terra…depois eu estava ali e chorava, chorava. Aquela Senhora…foi duma… olhe, nem sei como é que hei-de explicar... Aquela senhora foi duma…teve tanta paciência comigo…Eu de noite acordava cheia de medo e gritava, gritava, vinha assim para a varanda, mas…eu gritava, “Eu quero ir para a minha mãe!”. Eu não gostava nada de cá. Não gostava do comer. Não gostava de…ela fazia-me de tudo. Se eu queria café com leite ela dava-me, se eu queria doce, a senhora fazia-me tudo!.., mas eu não. Eu não queria nada, eu não queria nada, eu queria era ir para a minha mãe, depois punha-me a dizer que não gostava do comer, que não gostava deste comer, que não gostava daquele, até que ela, coitada, chegou a dizer à minha madrinha… olhe, faça-lhe a senhora lá o comer que eu lhe pago e traz-mo… porque ela gostava muito de mim!... Porque eu ia com ela, e fazia-lhe companhia, e eu era muito alegre. Eu era assim muito alegre quando não me dava a telha! Mas não, eu fui muito má para aquela senhora, eu fui muito má. Neste sentido: porque não os deixava dormir, eu levantava-me de noite…ela até me chegou a pôr a dormir na sala, pôs-me num colchão a dormir na sala que era para ver a claridade do Tejo, virada para o Tejo que ali via os barcos de Cacilhas…, mas eu não, nada daquilo me seduzia. Ela dizia-me: “Vai para a varanda! Olha, quando acordares vai para a varanda!...era num 6º andar, ninguém ia ali, não é, “Vai que…” Ela coitada! Tanto ela como a filha, eram extraordinárias! Mas eu nada! Nada daquilo, a minha madrinha lá aparecia com o caldo bem feito à moda da terra…(risos em silêncio), mas eu não… P: E como era o seu dia? Catarina Miguel: Olhe, aquilo era assim. De manhã, punha a mesa para a senhora beber o café, e a senhora tomava o café e eu sentava-me ali ao pé dela, ela conversava comigo e depois, sim senhora, ela queria ir à rua e eu ia com ela. Íamos à rua…vínhamos…se me apetecia dormir, dormia, se não me apetecia, nada… (era muito livre?) Era, era, eu sinceramente não passei nada…, mas, lá está, chega-se a um ponto em que as pessoas enjoam, não é? Eu não queria, não queria, não queria, e fui-me embora. Fui-me embora e então…arranjei para uma senhora aqui à Travessa…, ali à Rua do S., que era modista. Então ali sim. Ali eu já gostava de estar. Porque andava na rua, a entregar os vestidos, os fatos, eu conhecia Lisboa de ponta a ponta. Campo de Ourique, eu lembro-me sempre de Campo de Ourique e eram só centeios e…coisas, assim, eu ia lá levar uns fatos ao Domingo, havia lá aqueles jogos de futebol amadores, aqueles assim, e eu ficava ali, quase a ver, pronto, depois ia para o Estoril…metia-me aqui no Cais do Sodré no comboio, nunca pagava bilhete. P: Então tinha liberdade de movimentos… Catarina Miguel: Tinha, tinha…eu vinha aqui à Baixa, buscar as amostras, comprar alfinetes. Eu ali gostava muito de estar, gostava muito de estar…, mas, já tinha 15 anos. E então acontece o quê? Acontece que estamos na mocidade e aparecem uns rapazitos para namorar e não sei quê. Mas não foi o meu caso, por acaso até não foi. Fui à terra. No mês de agosto fomos à terra, fui com a minha madrinha e, claro está, havia os bailaricos daquela época, que hoje não há, e ta-ta-ta, e claro, eu já não quis voltar. A minha madrinha ficou muito aborrecida… “agora como é que eu digo à senhora?” Tinha cá deixado a roupa… “Mas eu não quero saber, eu não vou.” Fugi. Até me fui esconder para não vir. E fiquei. Fiquei, mas dei um pontapé na minha vida, como se costuma dizer. Fiquei, e então fui para casa de umas senhoras…eh, umas senhoras que eram também duas irmãs, eram umas pessoas muito ricas e eu aí, então, é que não fazia mesmo nada. Andava só com as senhoras pelas propriedades, aqui e ali, e andava assim. Mas, uma tia que eu tinha lá em Trancoso, que era irmã do meu pai, precisou de uma … empregada…e aí é que eu amarguei…e então foi-me lá buscar…ali é que eu passei as passas do Algarve!... (pausada e sofridamente), como se costuma dizer. (Era em T.?) Em T. Eu fui para casa da minha tia, mas aquela pessoa não era minha tia, era uma pessoa muito má, muito má, foi muito má para mim. Tratou-me muito mal. Bateu-me muito. Passei lá fome. Passei fome. Bateu-me, proibia-me de falar com a minha mãe, com os meus avós. E tudo até que um dia…ela um dia deu-me uma tareia muito grande porque eu pedi-lhe para ir à festa da minha aldeia. A minha mãe foi lá pedir-lhe e ela disse que não me deixava ir. Que se eu fosse já não podia voltar…Ora ali a quatro passinhos, quatro quilómetros, não era assim tão difícil… Mas não. Ela entendeu que não me deixava ir. E então eu disse “Você não me deixa ir a bem, deixa-me ir a mal, que eu vou. A minha mãe é que manda em mim e eu vou.” Eu nessa altura tinha 15 anos…e ela então, olhe, deu-me uma tareia!…tão grande, tão grande que eu fiquei de cama 15 dias. Fiquei toda negra, toda negra, toda negra…Fiquei toda negra, e então quando comecei a levantar, depois ela queria-me obrigar a fazer as coisas na mesma, a lavar as escadas, “Quero as escadas a esfregar”…e aquilo tudo…e eu cheguei a um ponto em que cheguei lá um dia em que fui ter com um daqueles senhores que faziam os correios, naquela altura havia aqueles senhores que faziam os correios e…mandei um papel para a minha mãe me vir buscar, que eu não aguentava mais estar ali, senão fugia. Então a minha mãe, quando recebeu o papel, disse para a minha irmã do meio- “Olha, vais lá buscar a tua irmã.” Então combinámos eu ir à missa do meio-dia, e assim fiz. E pronto, lá fui para a terra. Ela depois mandou lá o filho à minha procura, a GNR, e aquilo tudo, mas a GNR não podia fazer nada, eu não tinha roubado nada, não tinha feito nada, era por ela me ter tratado mal…a GNR quando lá chegou disse “Estás com a tua mãe, estás muito bem, deixa-te estar.” A minha mãe até disse à GNR que ia lá e fazia e acontecia, mas não fez nada. E pronto. E fiquei. Fiquei ali um tempo: foi de maio até agosto, porque depois a minha madrinha voltou à terra e eu pedi-lhe para me trazer outra vez. Ela não me queria trazer, mas depois ela lá me trouxe. E então fui servir ali para a Avenida da Liberdade. Mas aí eu já estava quase a fazer 17 anos, e então ali para a Avenida da Liberdade, é o Condes…era logo ali... eu fui para aí servir como criada-de-fora, que havia a cozinheira e a criada-de-fora. (explique-me um pouco o que faziam as criadas-de-fora) Então a criada de fora essa assim: a cozinheira era a cozinheira, fazia o comer, ia às compras, passava a roupa-a-ferro e assim… e a criada de fora punha a mesa, levantava a mesa, servia os senhores. Eu servia à mesa, foi lá que eu aprendi a pôr uma mesa como deve ser, realmente…eu estive lá 2 anos e meio e aprendi muito com aquela senhora. Eram umas pessoas que também não eram fartas. O que eles comiam não comia a gente. Era tudo por ração. Naquela altura, era o pão escuro, metade para mim, metade para a P., que era a cozinheira. Dividia a manteiga, metade para mim, metade para a outra, mas a gente desenrascava-se, sim, a gente desenrascava-se, a gente não passava fome que a gente desenrascava-se…mas a criada-de-fora era assim: eu fazia, fazia a cama da senhora, que ela não consentia que ninguém mais fosse lá, fazia a cama da senhora, fazia a cama dos 2 filhos, que era um filho e uma filha, mas depois limpava o chão, depois punha a mesa…e então..(era interna?) Pois, dormia lá e tudo (tinha direito um quarto?) Sim, sim, sim, tinha um quarto pequenino, tinha um quarto pequenino, mas era um quarto só, ela dormia num quarto, eu dormia noutro quarto…tinha, sim senhora…tinha farda, tinha uma farda, mais que uma, até. Ia à rua, a senhora mandava naquela altura comprava-se o carvão, comprava-se o petróleo, e ela mandava-me à rua buscar essas coisas; ia sempre fardadinha, com aquela farda preta, e então quando a senhora queria sair, eu ia com ela também. E então, elas jogavam lá muito à Canasta, jogavam muito à Canasta e eu ficava ali às vezes até às 3, 4 da manhã ali a secar…porque elas depois pediam chá, pediam bolachas…pediam essas coisas e, às vezes, eu estava ali com a cabeça em cima da mesa. Tinha que estar, tinha que estar, não era uma questão de me tratarem mal, aquilo era assim mesmo e, e depois quando aquilo acabava já podia ir dormir mas depois às seis da manhã já tinha que estar a pé. Os meninos iam para a escola e eu já tinha que fazer o pequeno-almoço para os meninos, e tinha que ir levar os meninos à escola. P: Nunca tomou conta de crianças? Catarina Miguel: Não, criar crianças nunca criei. Nunca fui, nesse sentido nunca foi. E eles nessa altura já andavam na 3ª ou na 4ª classe. Mas ela [a patroa] nunca os deixava ir sozinhos. E então eu ia lá levar os miúdos à escola. Ia levar um e depois ia levar o outro, porque eles não andavam na mesma escola. E, pronto, era isto assim que eu fazia: às vezes lá passava um bocadito a ferro, depois trocava com a minha colega. Ela não gostava muito e passava eu… P: Tinha tempo livre? Catarina Miguel: Tinha… só tinha folga de 15 em 15 dias. Uma semana era ela [a outra trabalhadora doméstica], outra era eu. Só de 15 em 15 dias é que tínhamos folga. Era ao Domingo, a seguir ao almoço. Eu ia sempre para a minha madrinha… bem, depois também comecei a namoriscar e tal e…ia ao teatro, ao ABC. Às vezes ficava ali pertinho, outras vezes ia visitar a minha madrinha. Na semana em que a minha colega folgava, eu tinha que fazer…ela deixava já o jantar adiantado, e depois eu tinha que fazer, aquecê-lo e pronto, a combinação já era aquela, e aí às 8 da noite tinha que estar lá. Era só aquele bocadinho da 1 da tarde até às 8 da noite. Era só aquele bocadinho de 15 em 15 dias. P: Ensinaram-na a cozinhar pratos sofisticados, a servir? Catarina Miguel: Não, eu isso receitas de bolos e assim nunca aprendi. Bem, naquela casa principalmente, naquela casa ali, uma pessoa tinha que estar ali, tinha que pôr os talheres muito bem…a senhora mesmo ensinou-me, quando era assim alguém mais especial, eu tinha umas luvinhas brancas para pôr, os aventais especiais, uma bata diferente, tinha que estar ali muito direitinha, depois a senhor fazia, tinha uma campainha ou tocava a campainha, ou fazia um sinal qualquer e eu tirava os pratos pela direita, ou pela esquerda, era assim…Depois cheguei a um ponto em que até já só com um movimento da senhora eu já sabia como é que havia de fazer, tinha que deixar sempre acabar o último para tirar o prato, tinha essas coisas todas. Mas assim aprender a fazer bolos e comeres, eu isso não sabia. P: E não se sentia controlada? Não tinha vontade de contrariar? Catarina Miguel: Ah tinha, claro que tinha (risos) Claro que tinha, mas uma pessoa não conseguia. Uma pessoa não conseguia porque era assim: ainda algumas vezes eu…pedi…, “Ó D. E., deixe-me ir hoje mais cedo para a minha madrinha, ou deixe-me vir mais tarde…” Então aí era logo uma guerra, era logo uma guerra: “Não! E porque assim, e porque assado, e porque desta maneira e assim.” Eu fui para lá ganhar 40$00. Fui para lá ganhar 40$00 e ela logo no 2º mês logo me aumentou para 50$00. (Na altura era um bom ordenado?) Era um bom ordenado, 50$00. Ora eu tinha 17 anos, eu hoje tenho 70, já vê, era um bom ordenado naquela altura. Mas também era uma vida assim um bocadinho sacrificada, porque hoje as empregadas domésticas não têm nada a ver com o nosso tempo. Nós naquele tempo tínhamos que fazer tudo, desde as máquinas de lavar, não havia nada!... Era tudo feito à mão. (alguma vez adoeceu, trataram de si?) Não, isso felizmente eu nunca adoeci. Com isso, por exemplo, naquela casa em que eu estive…ali na rua Nova de São Mamede, faziam-me raspar o chão com os esfregões de arame. Faziam-me raspar o chão e isso é que me faziam…. depois eles gritavam muito comigo, que eu não limpava bem, que tinha os cantinhos mal limpos, eu queria era arear as tábuas!...o resto queria lá saber dos cantos…(risos) e então aí, sim, eles ralhavam muito comigo e pronto, aí nem tinha folgas! Quando eu fui para aí nunca tive folgas. Tive, nunca tive…a senhora ao Domingo arranjava sempre maneira de a gente ter que limpar as paredes, ter que limpar aquilo…nunca tive folgas. Na rua lá de São Mamede nunca tive folgas, nunca! Ali tive, tive de 15 em 15 dias. Mas pronto, foi bom, mas acabou porque… (está a falar do tempo em que trabalhava para a modista) até se eu não me tivesse ido embora eu até tinha aprendido costura…e quando a gente vem, é por isso que eu digo, naquele tempo havia montes de garotas, raparigas…havia a ceifa, havia a apanha do vinho, da azeitona e depois tudo aquilo me lembrava… P: Nos primeiros tempos, houve alguma altura que não ganhasse, que fosse a troco de cama e comida? Catarina Miguel: Isso eu já não me lembro muito bem, mas eu suponho que quando eu fui…eu suponho que quando fui lá para S. Bento eu só estava lá pelo vestir, vestir e calçar. Porque eu nunca me lembro de a minha madrinha me dizer que elas me davam dinheiro…nem nada. Eu quando comecei a ganhar dinheiro para ali para aquela senhora fui ganhar 20$00. Lembro-me porque a minha madrinha comprou-me uma pulseira, ainda a tenho, e então a pulseira custou 600$00. Ainda a tenho. E então a minha madrinha dava-me todos os dias uns 20$00 (escuditos) que ela me dava. Ela é que a pagou…depois quando fui ali para aquela senhora, para ali, é que era 40$00, já me dava o dinheiro todo, mas eu suponho que ali para a Rua do Arco eu não fui para ganhar nada. Suponho que estava lá só pelo vestir porque ela me dava um vestido, uns sapatos, e dava-me cuecas, e dava-me assim meias… P: Naquela fase em que se tornou mulher, como foi? Essas pessoas substituíam um pouco a sua família? Catarina Miguel: Não!... Houve sempre aquela separação das águas, como a gente lhe chamava. Sempre, sempre. Ali aquela senhora da 24 de julho é que tinha muita paciência para mim, ela estava sozinha, era uma senhora viúva, sim, essa senhora tratou-me praticamente como uma pessoa de família, ela até dizia à minha madrinha para me fazer o comer… agora nos outros lados, não. Havia a separação das águas. Não…não queriam lá…(não recebia afeto?) Não, não, nada disso. Mesmo eram agrestes para a gente. Por exemplo, a falar, às vezes estávamos lá na cozinha (eu mais a minha colega…) estava lá ao pé dela, estávamos a almoçar ou assim, ela ia lá “Não há nada que fazer?!...”. Os gritos que davam assim à gente, aqueles gritos…e vais fazer isto, e vais…às vezes coisas que a gente já tinha limpado e tinha que fazer outra vez…Era para a gente ter o tempo ocupado, não deixavam que a gente…Não, isso não. Pronto, e eu…sinceramente, quando comecei assim a crescer mais um bocadito, quis-me foi livrar daquilo. Depois tinha então 17 anos quando…eh…saí de servir. Saí porque arranjei aqui na B., aqui assim ao Cais do Sodré, uma pastelaria… (em que ano foi?) Ai, sei lá…Deixe-me cá ver, deixe-me cá ver…eu casei-me em 61…casei-me em 61, casei-me com 22, devia ter sido prá i em 58 ou, eu casei-me com 21 anos, 22! Tinha quase 22 e casei-me em 61…E então depois, como lhe disse a minha madrinha tinha ali aquele lugar de hortaliça…mas também não era aquilo que eu idealizava. Não queria, não queria, não queria. Queria ser um bocadinho independente, queria ser independente, mas com esta minha madrinha também não queria porque, veja, depois eu tinha prá i 18 anos, depois uma pessoa começa a namoriscar e…aquelas pessoas antigamente eram muito severas, a minha madrinha foi uma das pessoas que para mim foi minha madrinha, minha tia, minha mãe! também…mas sem mimo, sem amor, sem nada, sem nada, era daquelas pessoas “Posso, quero e mando”, e não deixava que a gente passasse daqui para ali, eu também com a minha madrinha passei muito…passei talvez mais do que nos patrões…na verdade, porque a minha madrinha era muito severa, para a filha, para mim, e tudo…era daquelas pessoas que, pronto, só ela é que era, só ela é que mandava, só ela é que sabia, só ela é que queria…e tínhamos que estar ali a fogo e ferro. E então eu comecei a ficar farta daquilo e um dia apareceu um anúncio para aquela pastelaria e eu fui para lá. Fui para lá para a pastelaria, ia às compras à Ribeira e ia para o Balcão. Fazia sandes, lavava copos, fazia sandes, quando era pela altura do Natal havia a fruta cristalizada e ia lá para a fábrica fazer fruta cristalizada…e então estive ali 3 anos e meio até que foi dali que eu me casei. Estive lá até me casar. Já se vê. Aí a vida deu outra volta. Depois…fui trabalhar para o Ministério…bem, mas estive ali ainda um tempo na Praça com a minha madrinha…porque, entretanto, o meu marido foi prá…tropa…e enquanto ele esteve na tropa – lá voltamos ao mesmo – nós próprios mais novos, também éramos um bocadinho…machistas, oh…não sei, não sei como é que hei-de explicar…o meu marido com ciúmes não deixava que eu estivesse empregada em lado nenhum. E então, espetou comigo na minha madrinha outra vez, porque ela tinha ali o lugar na Praça…então fui para lá outra vez…ó minha senhora!.. eu passei ali, eu passei ali as passas do Algarve. Eu passei ali muito! Trabalhei muito ali naquele mercado 24 de Julho, trabalhei muito para ela. Porque era assim: não sei se conheceu, cá em baixo era o mercado abastecedor e lá no primeiro andar é que servia ao público…e então a gente tinha que levar tudo cá debaixo do rés-do-chão…trabalhei ali muito!... carreguei com muita caixa de feijão, muita caixa de tomate…, mas lá voltamos ao mesmo! Até que eu cheguei a um dia…e disse, bem eu meto o barro à parede e vou-me embora. Então eu disse-lhe, porque havia ali um senhor do Ministério e ele disse, “Ai, você até é mal empregada estar aqui…uma rapariga estar aqui metida nisto e tátátátá” - “Pois é, mas eu é que não arranjo”. “Ah, mas eu arranjo-te lugar para lá.” E eu disse ao meu marido. “Olha, o Sr. D. arranja-me lugar para o Ministério e eu vou-me embora!...” – “Ah, mas não vais, porque tu estás aqui…” – “Mas vou.” Então disse, caramba, eu também tenho que ter a minha oportunidade, tenho que me impor, eu não sou, eu não sou nenhuma propriedade dele…sim, eu sou mulher dele, mas não sou nenhuma propriedade!... já tinha esta genica. Eu não sou propriedade! Mas eu vou chegar a um ponto em que não vai ter que ser assim. Então cheguei um dia e disse-lhe: “Olha, (o sr. D. disse-me) – “Estás a fazer quase 35 anos. Se não entrares agora já nunca mais entras.” E eu cheguei a casa e disse para o meu marido: “Eu vou para o Ministério.” Ele a dizer que não e eu a dizer que sim, ele a dizer que não e eu a dizer que sim. Mas vou! mas não vais! Mas vou! Eu não sou tua propriedade. Sou tua mulher, sou tua companheira, ouviste? Não queres assim largas-me da mão e eu vou fazer a minha vida e tu… Nunca tínhamos tido uma zanga, nunca tínhamos tido nada, mas nesse dia foi a sério! Ele entendia que eu que não o fazia. E ele disse: “Não vais, ai isso é que não vais”. Ai isso é que eu vou. E fui. Isto foi a uma quarta-feira e na quinta-feira eu larguei tudo ali! (diz com impetuosidade) Não quis saber de hortaliça, de nada! E fui para o Ministério. Cheguei lá e apresentei-me lá ao Sr. D., “Ó Sr. D., eu vinha cá saber se eu podia vir então para…Veja, quando é que eu posso?...” “Pode ficar já hoje. Fica já hoje.” Olhe, aquele serviço a mim não me… claro que fui para as limpezas…Não fui para nenhum escritório nem nada disso porque não tinha habilitações para isso…E então ele disse-me…” olha, agora vou-te arranjar para o gabinete do Ministro…, mas agora tens que ficar aqui…” “Oh, eu fico em qualquer lado, eu não tenho medo nenhum de trabalhar! Eu não tenho medo nenhum de trabalhar.” Então tinha metido cá na tola e disse-lhe, “oh, Sr. Dias, eu sei limpar uma casa…” porque eu tinha aprendido! “Eu sei limpar uma casa, sei aspirar, sei varrer, sei limpar o pó, sei limpar uma casa como deve ser, sei lavar as janelas, sei fazer isso tudo. Porque nas casas onde servi, também não era o meu serviço, mas eu ajudava a minha colega a fazer. Eu quando não tinha…ajudava-a a lavar as janelas, a limpar o pó, a pôr a cera, porque naquela altura tinha que se pôr tudo à mão.” Pronto, então, está bem. “Então anda cá que eu vou-te dizer.” Olhe, espetou-me um serviço que foi o primeiro andar todo do Ministério da…. Foi o primeiro andar todo! Onde andavam 17 gabinetes, um corredor e uma escadaria!... para se fazer das 6h às 9h da manhã, não era brinquedo!... Pronto, mas quem é que me mandou a mim? Se eu queria, fui, fui. P: Nessa altura foi ganhar um bom ordenado? Catarina Miguel: Era cinco contos, era cinco contos. Naquela altura era cinco contos, foi quanto eu fui para lá ganhar. E então eu…não tenho medo, mas, claro, para o primeiro dia, habituadinha como eu ia a fazer aqui em casa de tirar os bibelots, limpá-los…e depois no fim é que aspirava tudo, ali não podia ser assim. Tinha que ser a despachar e então era uma coisa muito má que o Ministério tinha. Só tinha 3 aspiradores para o Ministério todo. E eu, elas já estavam vestidas com as batas, e eu também, e eu pego por ali acima e comecei por um gabinete, a limpar muito bem, acabava de limpar um e começava a aspirar outro. Ah, daí a um bocado…talvez três quartos de hora depois e vem lá uma colega e diz: “Já aspirastes?” E eu disse: “Não…” “ai, não…então se não aspirastes tivesses aspirado porque eu agora vou-te levar o aspirador.” “Então leva!” – Não me atrapalhei nada. Fui buscar uma vassoura e disse, mas espera lá. Eu tenho que dar volta a isto. Agarrei, subiu-me logo aquilo à ideia. Agarrei, comecei a despejar os cinzeiros e os caixotes todos, dos gabinetes todos…e depois peguei numa vassoura e pronto. Varri de maneira a não deixar assentar o pó…e depois é que comecei no gabinete a limpar o pó. E deixei a escadaria para o fim, tinha que ser. Mas pensei… deixa estar que me enganaste hoje, mas não me voltas a enganar. No outro dia, elas lá ficaram a conversar e tal e eu… pego no aspirador, despejei os caixotes e aspirei aquilo tudo!...daí a bocado vem aí a outra. Já aspirastes? Eu não! Eu não. Então, não aspirastes, tivesses aspirado! Está bem, leva lá, eu tenho aqui uma vassoura!... Nunca mais me enganou! Nunca mais me enganou! Até que um dia me apanhou, claro, ela andava desconfiada, claro, e “Como é que esta tem tempo?” porque um dia ela estava a dizer assim para a irmã: “Ai, deixa estar que o serviço daquela há-de ficar bom! Vê lá tu, a varrer as alcatifas, que aquilo era tudo com alcatifas, a varrer as alcatifas ali com aquele pó!... deixa lá que não hão-de chover reclamações!” Eu, que apanhei aquilo, ai é? Haver reclamações!...Não te importes! Se houver reclamações não é contigo, é comigo. Não te preocupes. As reclamações… Até que um dia ela me apanhou (conta o episódio a rir) e diz, “Oh, Ana, sabes, ela já tinha aspirado tudo!” Ah, bem me queria parecer…” então vocês pensavam que me vinham ensinar alguma coisa a mim?” P: Então não foram nada hospitaleiras? Catarina Miguel: Não, não foram. Nada, nem eram nada amigas. Por exemplo, algumas coisas eu perguntava, perguntava, porque havia o gabinete das telefonistas, e eu perguntava como é que se limpava o PBx, “Eu não sei como é que se…” Então não sabes…Então vocês andam aqui… é que eu tenho medo de tirar algum fio e depois não se ver…” Não foram capazes de me dizer nada, não foram. A biblioteca era a mesma coisa. Também na biblioteca havia uma quantidade de coisas que…uma pessoa não podia mexer naquilo, não, não foram…, mas depois até foram. Elas depois foram lá! Depois foram lá. Depois o Sr. Dias agarrou-me, que também foi uma pessoa muito minha amiga e disse-me: “Isto agora, a partir do dia 1, vais para o gabinete do Ministro.” Estive lá até passar a contínua. Estive no gabinete do Ministro…e mais, arranjei um aspirador só para mim (risos)…Isso é que foi a danação delas. Depois eu ainda é que as ia ajudar a elas. Quando elas diziam… “ai, hoje estou tão atrasada…” - “Então anda cá, que eu já te vou ajudar.” Não, e depois arranjei lá grandes amigas e fomos todas grandes amigas porque depois chegámos à conclusão de que era assim… Elas não me conheciam de lado nenhum… Também não sabia como era…, mas naquela altura podiam ter sido um bocadinho mais… “Olha, tens que fazer assim…tens que aspirar, ou…” mas não… P: Gostava mais desse trabalho que conseguiu lá no Ministério? Era muito exigente? Catarina Miguel: Quer dizer, a gente entrava às 6 da manhã e era das 6h até às 9h. Depois…lá, lavava-se paredes, lavava-se janelas, lavava-se cá fora a rua, lavava-se os corredores, tínhamos uma máquina de raspar os corredores para depois pormos a cera…e depois, tudo isso. Pronto, era um serviço como se fosse em casa, esses serviços assim, como se fazia nas senhoras, é verdade, mas era um serviço mais da nossa responsabilidade, nós já sabíamos que cada uma tinha os seus gabinetes, cada uma tinha que responder por aquilo. Era uma autonomia completamente diferente. Quando acabasse…quando eu acabava, se me apetecia ir embora ia, se me apetecia sentava-me lá e pronto, tomava o pequeno-almoço, das 9 às 10, era a hora que a gente tinha para pequeno-almoço. Nós tínhamos que ter as coisas limpas porque eles começavam a entrar para os gabinetes e assim…deixávamos então para o fim a escadaria. Depois íamos então comer e a seguir limpávamos os amarelos – em conjunto – juntávamo-nos todas e dizíamos: este dia é para limpar os amarelos, umas põem a insulina, outras puxam o lustre, depois limpavam a escada e era assim. E ao sábado, em princípio íamos ao sábado, mas depois passámos a ir na sexta-feira à noite, para não irmos ao sábado. Para nos darem o sábado livre, então o senhor era muito bom e ele dizia, vocês ao sábado fazem assim uma limpeza mais ligeira que é para vocês não estarem aqui muito tempo. E era assim que a gente fazia. Às vezes juntávamo-nos todas e começávamos numa ponta e acabávamos noutra. Depois na segunda-feira já fazíamos melhor, já cada uma tinha o seu, e não, já era um serviço completamente diferente… E faziam parte do quadro? Não, não. Eu ainda estive lá muito tempo. Já descontava para a Segurança Social, mas sem estarmos no Quadro. Para termos direito à ADSE, descontávamos para a Segurança Social. P: Vieram, como a senhora, muitas mulheres do interior do país que começaram pelo serviço doméstico…acha que foram as trabalhadoras que começaram a ir embora ou eram as famílias que já não podiam pagar? Catarina Miguel: Não, não foi pelas famílias já não poderem pagar. Eu acho também que foi porque as pessoas queriam ter uma certa liberdade, havia casas que tinham muitas pessoas e a gente às vezes conversava e havia colegas que eram muito maltratadas…, mas na casa dos pais ainda estavam piores!... porque lá trabalhavam e tinham que dar tudo aos pais, e também não as deixavam ir para aqui, não as deixavam ir para ali, claro, o sair de lá, para ganhar dinheiro, para elas já era muito bom! E depois, também houve muitos patrões…que havia muito disso, eles abusavam das empregadas. Houve muito disso. Houve!...Houve muito disso… (como é que se sabia dessas situações?) Quer dizer…falava-se e depois acabava por se saber porque, porque…havia raparigas que engravidavam…e essa coisa toda, e depois os pais punham-nas fora de casa, não as queriam, punham-nas fora de casa…às vezes apareciam lá… não assumiam que a filha tivesse tido aquela coisa, e assim…eu tive na família uma pessoa assim, que estava a servir numa casa e depois ele engravidou-a e depois sabe o que é que eles fizeram? Olhe, espetaram com ela para o Brasil!... para a família dela não saber que ela estava grávida do patrão! É verdade! Ela teve lá o filho, que eu conheço-o, ele já cá veio, eu conheço-o perfeitamente! E a Z. também sabe quem é…e foi assim…E depois começaram a aparecer aquelas casas de trabalharem a dias, como se chamava, e então muitas pessoas já faziam assim: trabalhavam…começavam a querer ir-se embora porque arranjavam aquelas pessoas onde dormir, onde dormir, mas por dormir eles faziam-lhe a limpeza da casa e depois iam fazer outras horas fora. Era assim que faziam. Porque eu tive cunhadas minhas que foi assim: estavam a servir…pronto, uma delas estava a servir ali na Rua das Janelas Verdes…e fez isso! Estava a servir, mas as senhoras também eram tão coisas, tão coisas que ela agarrou e o que é que ela fez? Arranjou um quarto numa senhora, a senhora não lhe levava renda por ela dormir, mas ela fazia-lhe as limpezas todas, em troca da renda limpava a escada quando pertencia à senhora, como hoje, como nós aqui, cada inquilino limpa o seu vão de escada … eu tenho lá uma cunhada da terra que está num casal a tomar conta do filho, mas vai todos os dias: entra às seis da manhã e sai todos os dias às seis da tarde. Todos os dias, todos os dias. Mas ela lá não dorme. Tem a sua casa, tem os seus filhos, e aquilo deu aquela volta assim… chegou-se a uma altura que as pessoas também…começaram por ter um pouco de liberdade, porque não havia folgas, não havia nada…não foi bem o meu caso. Estive naquela senhora que foi assim, mas depois de 15 em 15 dias já tinha folgas. Mas depois também havia raparigas que não tinham. Lá quando íamos à terra no mês de Agosto, era sempre quando a gente conversava na terra sobre… “Olha, estou em tal lado, estou assim, estou assado…” e depois elas contavam – “Oh, a minha senhora é tão má, eu tenho que andar sempre a comer às escondidas…” havia algumas que passavam fome!...Tinham que andar a esconder, mas elas apesar de passarem mal não queriam voltar porque, apesar de tudo, aqui elas tinham o seu dinheirinho. E lá na terra, não. Porque a gente lá na terra, era assim, enquanto lá estive também andava lá a sachar milho e aquelas coisas todas, mas era de graça…antigamente…lá na nossa aldeia havia 3 pessoas…3, 4 pessoas que eram donas da gente todos, como se costuma dizer. Era como no Alentejo!...A gente chegava lá, eu ainda me lembro, um senhor que já faleceu, ele chegava lá e dizia assim para a minha mãe: “Ouviste?” (era assim que tratavam a gente…) “Vais segunda, terça quarta e quinta, vais para lá, vais tirar as batatas e aquilo e levas a garota!” (que era eu, que era a mais velha) Lá ia eu. Olhe, começávamos a sachar ao nascer do sol até já de escuro, até às 9 horas da noite, eram ali 14 e 15 horas a trabalhar, sob aquele sol ardente…eu era uma garota e não ganhava nada, e a minha mãe ganhava 25 tostões! Por dia, e comer, comíamos, é verdade, ah, isto há sessenta anos! Já viu? E era assim…escravizavam ali a gente, escravizavam ali a gente… e lá está o mesmo o problema…eu aqui, mal, tinha a barriguinha cheia e ainda levava aqueles 20 escuditos, primeiro, depois mais aqueles 40, e pronto, e era assim, e depois quando já tinha 17 já ia ao teatro, era assim. E claro, comecei-me a habituar mais à cidade, mas nunca deixei a minha terra, todos os anos eu ia lá! Mas já lá nunca quis ficar!... Desde que fui tratada mal pela minha tia nunca mais lá quis ficar. Mas… muita gente passou e muito! Muitas raparigas que vieram para aí servir passaram, digo-lhe que passaram…elas contavam, porque também já eram mais velhas do que eu…, mas contavam, “Ai, a minha senhora é tão má, às vezes já são tantas da noite ainda estou a lavar roupa.” Porque aquilo no meu tempo era tudo lavado à mão!... era tudo com o sabão e com a escova…não havia eletrodomésticos! Que é que havia? Havia, olhe, os fogareiros a carvão, os briquetes, não sei se…ouviu falar em briquetes, que a gente ia comprar lá à coisa!...eu também fui muita vez comprar lá as briquetes. Os fogões eram a briquetes, eram a carvão. Não havia eletricidade, não havia fogões elétricos, nem a gás, era tudo a carvão e a briquetes, daqueles fogões muito negros. Depois a gente tinha que arear aquilo tudo ficava ali como uma prata, areadinho, era trabalhoso, era. Aliás, às vezes a cozinheira fazia isso, ela ia lavar o fogão e eu lavava o chão, de joelhos, era tudo de joelhos, era tudo esfregado com uma escova, não foi fácil! Não foi fácil. P: E conversavam com os patrões? Catarina Miguel: Não, nada, nada. Olhe, uma vez até foi ali naquela senhora que vivia ali na Avenida L. e até foi muito engraçado. As traseiras…ainda lá deve existir…, mas havia umas rapariguitas…até quando um rapaz olha para a gente a gente fica logo todas deslumbradas, mas eu então era muito engraçado porque havia um campo de basquete no Ateneu Comercial…E as nossas janelas davam para o campo de basquetebol. E depois era muito engraçado porque eu, à noite, quando via que elas estavam lá a jogar…eu ia para lá, gostava de ver aquilo (diz sussurrando), gostava de ver aquilo…Quer dizer que, mais tarde, nos encontrámos na rua e ficámos tão amigos!!..ele próprio reconheceu que nós estávamos ali oprimidas…e o rapaz fez instrução, notava-se que era uma pessoa assim… e então, um dia, eu estava ali a comprar o carvão e ele disse-me: “Olha, tu não és ali daquele prédio?” “Sou”. “Às vezes vejo-te lá quando estou a jogar o basquetebol.” “Ah, olha, é para estar entretida!...Para não me dar o sono…para não me dar o sono…” Olhe, e depois o rapazinho começou-me a dar livros para eu ler, foi, foi…extraordinário, ficámos amigos!...quando se casou convidou-me para o casamento. Ficámos amigos… P: Na altura tinha voltado à escola? Catarina Miguel: Não se esqueça que eu, para entrar no ministério, tinha que fazer a 4ª classe. Fiz a 4ª classe em 28 dias. Já viu a minha força de vontade? (Era obrigatório?) Era obrigatório ter a 4ª classe. Eu fui para uma escola ali para o Alto de São João…Era uma Escola de adultos, era uma escola de adultos…Ah, agora não me lembro…ah, ao pé da Paiva Couceiro. Foi em 28 dias…andavam lá muitos adultos nessa altura…E então eu fiz a 4ª Classe…bem, eu tinha uma 3ª classe muito bem preparada… porque era assim! Ela levava-nos até ali e depois deixava-nos…e eu tinha uma coisa de querer ser professora. E então eu…quantos papéis eu encontrava eu lia tudo. Eu sabia a história de Portugal melhor do que os da 4ª classe. Tudo, todos os papéis que eu apanhasse…eu discutia a bola, eu fazia tudo isso, apanhava todos os papéis que houvesse. Eu saía para a rua, se encontrasse um papel na rua eu punha-me a lê-lo, porque eu tinha que estar a ler, às vezes até às 4 da manhã e eu tinha que pegar em qualquer coisa para me dar o sono. E então eu lia e escrevi muito, não dava erros, não dava nada. De maneira que foi muito fácil. Em 28 dias eu fiz exame para entrar para o Ministério. É verdade. Sei que aquela minha força de vontade. Eu para contas e tudo isso eu era uma barra! Era, ainda hoje…e eu era boa em matemática, e redação, eu fixava muito bem as coisas, mas naquela altura, eu sabia, eu tenho ainda aqui o meu livro da 3ª classe que eu não dou a ninguém, não me desfaço dele. Eu sei o meu livro da 3ª classe de cor. Eu sabia aquilo…aquilo para mim era música. Eu andava sempre a ler, sempre a ler, sempre a ler as mesmas coisas… até que eu o aprendi de cor… (risos) Eu até quando fui fazer exame (e comprava algumas revistas?) Não, não. Naquela altura não. Hoje compro, naquela altura eu não comprava. Mas…eu, quando fui fazer exame da 3ª classe a professora chegou lá e disse: qual é a lição que queres estudar? “O automóvel, o trem e o avião.” Olhe, e depois ela disse: olha, mas tu não estás a ler, tu estás a cantar!” (ri com vontade) Eu sabia a letra toda de cor, era uma coisa!... Mas pronto. E pronto olhe, foi assim, a história da minha vida. (ri-se) (retoma o fio de conversa espontaneamente) Mas olhe que as mulheres foram escravizadas…E de que maneira! A história de H. aqui da aldeia foi com certeza bem diferente da minha… tenho a certeza absoluta que houve mulheres, raparigas!... que vieram para aqui e que passaram muito a servir. Sei de algumas que até tinham que fugir das casas porque os patrões faziam pouco delas… Eu sei, porque houve até uma que estava ali em Almada e depois ela engravidou do filho do patrão e depois o filho do patrão puseram-na fora…era a realidade, mas aquela realidade encoberta! Porque a gente, hoje, a gente vê tudo na televisão e diz “Ai, isto é uma pouca-vergonha!...” Não é uma pouca-vergonha nada. Não é, não é. As pessoas percam a ilusão de que hoje é pior do que antigamente. Só que antigamente, olhe, a gente não podia falar, não podia dizer, sim, porque havia aquela censura, sim, eu sou do tempo da censura, a gente não podia nada. Eu ainda uma vez estava aqui na 24 de Julho, e estávamos 3 pessoas…já eu era mulher, já…e chegou lá um polícia e queria levar a gente para a esquadra porque a gente estávamos a falar de política e nós não estávamos a falar nada de política! Mas vê, era assim, abafava-se. A mulher andava grávida deste, calava-se, então, e só agora é que aparecem raparigas grávidas, minha senhora? Tanta rapariga grávida que houve naqueles tempos! Tanta! Tanta! Mas era tudo encoberto!... vergonha, isto é uma vergonha para a família…eu tenho uma tia que a filha dela também ficou grávida de um criado…e já estava grávida de 3 meses quando ela descobriu. Sabe o que é que ela fez? Agarrou na rapariga e queria matá-la!... Queria matar a rapariga. Depois é que agarrou, tinha lá uns senhores conhecidos no Rio de Janeiro e levaram para lá a rapariga. Olhe, a rapariga lá teve o rapazinho, lá teve o filho, e lá se casou e já tem 3 filhos …vê? Mas pronto, estava grávida de um criado, mas também podia ser empregada e estar desonrada do marido, que não era. (faz uma pausa..) Naquela altura era assim…hoje em dia as pessoas já não vão tanto nisso, mas naquele tempo era assim…Não havia acesso a nada, não havia a comunicação social…agora a gente abre a televisão e ouve tudo… Eu alguma vez tive um brinquedo? Eu nunca tive um brinquedo! A minha mãezinha, coitadinha, não tinha para nos dar e não nos dava…, mas ainda uma vez, no meio deste mês de agosto, há lá uma grande feira de S. B. que começa agora…é bonita, lá para eles, pronto, é o que têm, não é? E então, a minha mãe, vendiam aquelas bonecas de papelão, aqueles carrinhos de madeira, aquilo tudo. E eu, coitadinha de mim, queria uma boneca. Queria uma boneca…e comecei a dizer para a minha mãe que queria uma boneca e a minha mãe, coitadinha!...nunca me esqueço disto, a chorar, disse “Oh filha, mas eu não tenho dinheiro!..” mas eu para te comprar para ti tenho de comprar para a F. e para a I.…olha, mas deixa que eu vou lá para baixo e vou apanhar umas ervas de pinha que nascem ao pé do milho e vou vender para ver se eu consigo arranjar dinheiro para te comprar as bonecas.” E foi o que ela fez… eu nunca me lembro, e digo isto com mágoa de a minha mãe me agarrar assim ao colo e me dar beijinhos como a gente hoje faz aos filhos e aos sobrinhos e aos netos! A gente hoje agarra os filhos e dá-lhe carinhos…e a mim fez-me falta! Eu senti imensa falta!... eu às vezes chorava e a minha mãe nunca me deu um beijinho, já grande, e eu às vezes chorava!... Ai, a minha mãe nunca me deu um beijinho…Coitada, ela não tinha tempo para nada. Ela agarrava na gente e ia trabalhar fora e deixava o comer e dizia “aquecei-o e comei-o”…vinha à noite, coitada, com três filhos, naquele tempo, sozinha, a ganhar 5$00 por dia quando os ganhava, quando era no inverno não ganhava nada…e eu hoje pego nos meus sobrinhos e sinto aquela coisa de os acarinhar e ao mesmo tempo sinto, ai, a minha mãe nunca me fez isto!...é verdade, a gente não tinha carinho. Os nossos pais não eram carinhosos, mas eles não tinham…a minha mãe, ai de alguém que tocasse na gente! Mas era um amor diferente. Elas tinham amor à gente, mas não eram capazes de o demonstrar... eu nunca me lembro de a minha mãe me dar um beijo! Não me lembro! A minha mãe trouxe-nos sempre limpinhas! Com uns lacinhos nos cabelos, nunca andámos descalças…nunca. Nunca passámos fome. Comprava quatro sardinhas, uma era para ela e o resto era para a gente. Nunca passámos fome, mas era daquilo que havia, era as batatas e pão, mas carinho, não. Parece que ainda me lembro. Eu dormia com a minha mãe, não é, nós dormíamos as 4, a minha mãe dormia com a gente as 3, era assim, e eu gostava muito de dormir com o meu avô e com a minha avó. Porque o meu avô acarinhava-me! E então era uma guerra para dormir com eles! A minha mãe ficava danada! E o meu avô acarinhava-me e eu sentia aquele calorzinho, aquele carinho que a minha mãe não me fazia…, mas também quando eu me fui embora ela também, foi como se costuma dizer, foi como quem lhe arrancou os dentes!...ela chorou tanto, ela não queria nada que eu viesse, nada! Pronto, porque mãe é mãe e ela podia não me acarinhar, mas o amor dela estava lá… e pronto, mas a vida foi isto e eu também depois ainda a ajudei naquilo que eu pude. Fui amiga dela e ela era minha amiga. Entretanto, a do meio também foi para a França e também já a ajudava…E é assim. A gente levantava-se de noite quando era dezembro por causa da apanha da azeitona…Frio! A nevar, a nevar… Nós, garotinhas, lá íamos andar uns 20 Km ou mais para apanhar a azeitona. A gente fazia fogueiras para aquecer as pernas…uma vez quando vim para Lisboa a senhora disse-me, olha, vais ali ao talho e trazes 6 costeletas. E eu nunca me esqueceu isto. Eu cheguei lá e disse ao senhor do talho: “olhe, dê-me 6 costeletas de porco.” Quando o homem começou a cortar as costeletas eu disse assim para o homem (começa-se a rir com vontade) “Isso é costeletas de porco? Lá na casa da minha avó também há dessa carne!...(ri-se)”. Era carne de porco, mas eu sabia lá que isso era para se comer!... eu sabia lá o que eram costeletas, eu sabia lá o que era um bife! Não, não sabia!... agora já não, mas nos primeiros anos que eu ia à terra ia lá ao cafezinho e dizia, dê-me uma bica. Ninguém sabia o que era uma bica!... nós lá nas províncias éramos muito tapadinhos porque, lá está, nós não tínhamos acesso a nada! Nós não tínhamos acesso a nada…A gente ia daqui de Lisboa para lá e as pessoas diziam, “Ah…tu vens muito bonita! Vens de Lisboa, vens muito bonita!...” Porque lá está, não se apercebiam que estávamos num meio diferente! A gente aqui andávamos limpinhas, lá andávamos sujas porque andávamos na terra… uma vez, já eu tinha aí uns 18 anitos e tinha feito uma permanente, tinha cortado o cabelo, tinha uns brinquinhos de ouro que a minha mãe me tinha comprado, e então, ao domingo fui à missa e levei um vestido e então elas puseram-se a dizer: “Ah, mas tu fizeste-te uma vaidosa! Foste tu para Lisboa para te fazeres…” E eu disse, “Não, não ando vaidosa, só que lá não ando suja como andava aqui. Esta roupinha era a que eu tinha lá, e eu agora venho para aqui e venho de férias e não venho para aqui trabalhar e andar outra vez a apanhar batatas.”. Era uma censura…parece que era assim uma censura…e então havia outra coisa…a rapariga que viesse para Lisboa já era raro casar-se lá na terra porque as pessoas lá tinham a mania que a gente vinha para aqui e se entregava aí a qualquer…Eu ainda uma vez namorei lá um rapaz da terra e um dia mãe dele disse, e eu larguei-o por causa disso, e se eu gostava do rapaz e foi o primeiro namorado que eu tive, mas larguei-o por causa disso porque cheguei lá, e como ia assim já arranjadinha a mãe disse: “Onde é que tu ganhas o dinheiro? Andas a deitar-te debaixo de uns e doutros?” Eh pá… quando a mulher me disse aquilo eu era um bocadito senhorita do meu nariz e disse: “O que é que você está a dizer? Pois você julga que por vir aqui com um vestido?... eu trabalho!” “Ai, o meu Zé tem que ver o que é que anda a fazer!” quando ela me disse aquilo, eu adeus passa muito bem. Nunca mais quis saber do rapaz. Quando ele lá foi a casa da minha mãe eu disse, “Oh menino, a partir de agora nunca mais pões aqui os pés! Arranja uma rapariga lá à vontade da tua mãe porque a tua mãe disse-me isto, isto e isto.” Mas tinham a mania de dizer essas coisas. E eu, quando vim para cá, a minha madrinha logo me avisou, já nessa altura diziam essas coisas: que havia as casas dessas tias onde os rapazes, para não levarem as raparigas para as casas das meninas diziam que as levavam a casa das tias. Era muito vulgar aqui em Lisboa isso. Era vulgaríssimo. Era vulgaríssimo. Então a minha madrinha avisou-me para eu nunca ir para casa dessas tias porque era onde estavam as mulheres da vida, aquelas mulheres que se entregam a qualquer homem…E tu não vás! Olha que depois fazem pouco de ti e deixam-te com a barriga à boca.” Eu perguntei-lhe o que era deixar de barriga à boca e ela disse “Deixam-te grávida!” e eu então tive medo e quando comecei a namorar o meu marido e ele um dia disse, olha, hoje vais conhecer a minha tia Deolinda que eu quero-te apresentar a ela. E não, eu não fui. Fui com ele até à rua, ele chegou lá, bateu-lhe à porta, ela também estava lá a servir em casa duma senhora, ela veio à janela pedir-me para eu entrar mas eu é que não entrei. Ela é que teve que cá vir abaixo. Fiquei com aquele medo. Diziam, diziam. Isso era muito vulgar naqueles anos 50, eram as casas das tias.