Trabalho hoteleiro
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"A gente era os caddies"
António Almada: Eu nasci na Maceira, no bairro da Portela, onde era o único rapaz em 10 ou 12 crianças que nasceram. O resto era tudo raparigas e pronto, fomos crescendo…A minha mãe sempre foi doméstica e o meu pai trabalhou em Mafra, depois trabalhou nas águas do Vimeiro, e em mecânica, o que acabou por ser a vida dele toda. E a vida não foi nada fácil, nada fácil na altura. Nessa altura a vida não era fácil para a gente nem para ninguém. Andei na escola e brinquei muito, que era a coisa que mais gostava de fazer. Se pudesse hoje ainda brincava! P: Qual era a profissão que gostava de ter “quando fosse grande”? António Almada: Ah eu acho que na altura nunca tive essas ideias, eu gostava era de brincar e não pensava nisso. P: Então e quando chegou ao hotel tinha mais ou menos que idade? António Almada: Quando comecei a trabalhar tinha, mais ou menos, 15 anos. P: Para ajudar a família? António Almada: Não, porque não queria ir para a escola, então como não estudava tive de ir trabalhar. Quando eu comecei a trabalhar na carpintaria, na Empresa A, e depois é que fui para o hotel, que também pertencia às águas. Estava lá um carpinteiro, no hotel já havia um carpinteiro, um senhor já de idade com quem eu me dei muito bem lá. O nosso trabalho lá era reparar tudo, desde carpintaria, estores, fechaduras, era tudo o que fosse manutenção. Sim, tudo no hotel. Fora a eletricidade e canalizadores que isso existia lá. Havia lá canalizadores e eletricistas. Agora tudo o que era carpintaria, fechaduras, e estores era tudo na parte da carpintaria. P: E já fazia isso tudo com apenas 15 anos? António Almada: Não, eu aí já devia ter os meus 16 anos, porque primeiro andei na carpintaria, cá nas águas. Geralmente a gente não tinha contacto com o cliente porque a receção mandava para a gente o que é que tínhamos de fazer, quais eram as avarias que havia e a que horas é que nós lá podíamos ir não é, quando não estivessem lá clientes. P: E a receção do hotel ou até mesmo a gerência funcionava bem? António Almada: Sim, eu acho que sim! Na receção era tudo certinho, aquilo ali era tudo certinho. P: E mesmo em termos de condições, davam-lhe alimentação ou era só mesmo ir trabalhar? António Almada: Sim nesse sentido tinha-se lá tudo, almoçava-se, tínhamos tudo. P: E os outros empregados, tinha uma boa relação com eles? António Almada: Eu só lidava com aquele senhor, só encontrava outros empregados na hora de almoço que era quando a gente se falava e pronto. Mas lá era tudo pessoal da terra, praticamente, a gente ali falava porque a malta conhecia-se toda, não é? Aquilo era uma empresa onde a maior parte dos empregados eram todos ali da M.. Era quase tudo ali da terra. P: Agora também é assim? António Almada: Não agora já não, aquilo antes era tudo malta da M., B., havia umas pessoas de R., porque de resto aquilo era só ali mesmo, naquele círculo de pessoas que estavam ali e assim. P: E as pessoas eram formadas? António Almada: Não, não. Cada um tinha de se desenrascar. As pessoas que iam para lá servir à mesa aprendiam lá, com os outros, com os mais velhos que lá estavam. Não havia formações, não havia nada. Naquela altura não havia nada de formações, a gente não tinha formações. P: Então o tipo de cliente lá também não era muito exigente? António Almada: Isso também não sei, isso lá dentro com os clientes eu não sei, não tinha esse contacto. Porque eu era só mesmo a parte das avarias que a gente tratava. Quem lidava lá com os clientes eram sempre as pessoas do restaurante, do bar, pronto, essas pessoas. A gente tinha uma entrada de serviço, era uma porta de serviço, ia-se lá para cima, entrava-se nos quartos, batia-se à porta, duas vezes ou três e se ninguém respondesse a gente tinha uma chave mestra que abria tudo e era assim que a gente trabalhava. P: E o seu primeiro dia? Como é que foi a experiência, a expectativa? Alguma coisa que correu bem ou menos bem? António Almada: Não, eu…correu sempre bem porque já eram pessoas que eu já conhecia cá debaixo também, não é? As pessoas que lá estavam também vinham cá abaixo, quando precisava mesmo de ir à oficina da carpintaria, elas vinham cá, porque era tudo pessoal que a gente conhecia, passei pouco para o outro lado. P: E em termos de tarefas, também não era muito difícil? António Almada: Não, não aquilo não era muito difícil, reparava uma mesa, reparava uma cadeira, reparava estores, uma fechadura… aquilo era avarias, praticamente aquilo era avarias. Só houve uma altura em que a gente esteve lá a arranjar as mesas todas do 4º andar, onde era uma sala, era um salão mesmo grande, onde eles fazem jogos, fazem essas coisas todas, e nós andámos a tirar os tampos das mesas, para meter uns tampos novos. E isso foram meses a fazer esse trabalho. Esse trabalho era feito quando a gente saía lá de uma avaria e vinha-se para baixo, porque era quando não havia avarias que a gente ia mudando os tampos das mesas. Foi um critério que eles tiveram para mudar os tampos todos e a gente fazia, pronto. P: E sente que, por exemplo, estando num hotel onde os clientes eram servidos e havia essa importância, o seu trabalho era respeitado, pelas outras áreas? António Almada: Sim, sim. P: Ali toda a gente se respeitava? Não havia diferenças no tratamento? António Almada: Não, nunca vi assim nada. Nem comigo, nem com as outras secções. Não, normalmente não. Não, porque aquilo também era tudo pessoal que já se conhecia há muito tempo. P: E há alguma situação de maior constrangimento no hotel? António Almada: Não, comigo não. P: Quando saiu, saiu de lá bem? António Almada: Sim, quando eu saí de lá, fui para um curso de mecânica, daí ter saído. Eu gostava muito de carpintaria, mas como aquilo começou sempre a ser a mesma coisa, fazer as mesmas coisas, e então tive a oportunidade. Surgiu um curso e eu acabei por ir para lá para o curso. P: Pois, e depois aí definiu logo a área de mecânica para o seu futuro? António Almada: Pois! Do outro lado, no curso, ainda não tinha acabado o curso, quem me estava a dar o curso tinha uma oficina e disse logo: “Tens de passar para Torres, lá para a oficina” e foi a partir dai que vim cá para Torres, e cheguei aqui, a aturar estas pestes todas. P: Desde que foi para Torres Vedras que ficou pelo P.? António Almada: Já vão uns anitos, 30 e tal anos. P: E depois nunca mais se interessou pela parte hoteleira? António Almada: Não, não. Até porque é assim: na parte hoteleira, o servir à mesa, o hotel, são coisas que eu também não gostava. Eu da carpintaria gostava porque era aqueles serviços de arranjar nas coisas, mexer nas coisas. Agora estar a lidar diretamente com os clientes e, se me convidassem para ir trabalhar para lá para servir à mesa eu negava logo que eu não ia, que eu não gostava. Isso eu não gostava. P: Sim, até porque na altura, aquilo se calhar não estava tão desenvolvido… António Almada: Sim, eram as condições que davam e depois havia lá um ou dois que mandava naquilo e aquele pessoal exigia muito com aquela gente e eu como sou um bocadinho lixado de vergar, era aquela coisa. Mas não, era daquelas coisas que eu também não quero. Nunca gostei mesmo de servir à mesa ou estar atrás de um balcão. Mesmo que me convidassem, eu não ia porque não gostava disso. Depois, quando vim para Torres, para a oficina, foi uma coisa que eu me adaptei bem e gostei e sempre tive bons clientes. P: As influências do seu pai acabaram por ajudar um bocadinho, não? António Almada: Sim, sim! Na família, o meu pai é mecânico, o meu irmão é mecânico, o marido da minha irmã é mecânico, eu sou mecânico, e o irmão da minha mulher é mecânico! E nunca houve ninguém que tivesse montado uma oficina para todos trabalharem. P: Ainda não surgiu a oportunidade. António Almada: Pois, agora também é difícil, só se for a minha filha que queira montar uma oficina para mim. P: E o tempo em que trabalhou na parte do golf? António Almada: Ah isso não era um trabalho, isso era um hobbie antes de começar a trabalhar. P: Mas isso nas férias de verão? António Almada: Nas férias de verão a gente ia para lá andar com os senhores, eles andavam lá a jogar golf e a gente ia para lá com eles, a gente era os caddie, para andar com os sacos de Golf, qQue era para a gente ganhar mais uns trocos. Foi aí que eu comecei a ganhar os primeiros trocos, não é? Porque de resto… P: Tinha que idade? António Almada: Ah sei lá, se calhar 12 anos, talvez. A partir dos 12 até aos 15 andei lá, quando era de verão, quando eram as férias, quando era aos fins de semana, de sábado a domingos. P: E eles chamavam? Ou ia para lá todos os dias? António Almada: A gente aos sábados e domingos ia para lá. Havia uns senhores que eram de A. e esses senhores vinham cá quase todos os fins de semana e eu andava sempre com o mesmo senhor. Depois havia mais 3 ou 4 colegas que também, cada um tinha aquela pessoa certa para a gente andar, estás a perceber? P: Então ainda começou a trabalhar muito mais cedo. António Almada: Isso era para a gente arranjar uns trocos, era. P: E como é que funcionavam as folgas e férias na altura em que começou a trabalhar? António Almada: Quando eu comecei a trabalhar, isso estava tudo certinho, as férias eram marcadas, era naquela altura em que a gente pedia, e eles ou aceitavam ou tinham de ser remarcadas para outra altura, mas isso, pela Empresa A, sempre foi certinho. O ordenado nunca foi um ordenado grande, mas aquilo era sempre certinho. Nessa altura, era o Sr. Bernardo Vilas (nome fictício), que foi o senhor que montou a empresa. P: E como está o hotel agora? António Almada: Hoje em dia estão lá meia dúzia de mulheres a fazer limpezas àquilo, enquanto dantes, esta meia dúzia, que lá está, era meia dúzia por cada andar do hotel, está a perceber? Agora é meia dúzia para limpar aquilo tudo! P: E, por exemplo, como é que descreve os postos de emprego? Havia postos diferentes para homens e mulheres? Por exemplo, rececionistas serem apenas mulheres? António Almada: Na receção, na altura, até havia mais homens do que mulheres! Na restauração também era misto, na parte da restauração era misto sim, havia homens, havia mulheres. E nessa altura ainda havia só uns para servir o comer, e havia outros para os vinhos, para as águas. Agora, agora não… Agora chegas lá e tens um tipo de serves-te. P: Ah então agora é tipo Buffet? António Almada: Exatamente tipo Buffet! P: E antes tinha os copeiros? António Almada: Tinha-se tudo, tinha copeiros, tinha chefe de mesa. O chefe de mesa ia lá e tirava o pedido, e depois havia o que levava o comer, o que levava os vinhos, as águas e essas coisas todas. Agora, não há isso… era porque o que leva as bebidas sabe onde é que estavam as bebidas e ele é que ia buscar, agora não! Agora tem de ser a mesma pessoa a fazer tudo. Hoje chegas lá com o comer e ainda não trouxeste o vinho. Enquanto na altura o pedido era feito, o chefe de mesa dava ordem de: “isto é o comer, isto é o vinho” e a pessoa das bebidas podia logo ir lá pôr as bebidas, pôr tudo. Quando viesse o comer, o outro já lá estava. Já as pessoas estavam servidas. Era bom para os clientes! Os clientes na altura ficavam melhor, agora já lá fui, duas ou três vezes com a malta da idade, já lá fomos comer, mas, lá está, aquilo é tudo Buffet! A gente é que vai, só a parte das bebidas é que anda lá uma pessoa e é que vai lá. Ou seja, as bebidas estão atrás da gente e vai lá uma pessoa, agarra na garrafa e serve a gente, mas isso também não interessa, se me metessem a garrafa em cima da mesa eu também me servia. Mas isso é assim, agora. Notas em tudo. Ou seja, dantes tinhas as camareiras, as pessoas que arrumam os quartos, que arrumam aquilo tudo, que se calhar tinham muito mais relação com os clientes do que agora. Dantes tinham melhor relação do que agora. Porque agora elas são tão poucas, que só falam com os clientes se chegar lá para arrumar o quarto e se tiver lá o cliente. E dantes não. Dantes havia, por exemplo, durante a noite, só num piso, se calhar havia cinco ou seis pessoas a trabalhar. E agora não. Agora se calhar essas 5 ou 6 pessoas estão a trabalhar por 3 ou 4 pisos. Desde fazer as limpezas às piscinas, às casas de banho, a tudo, são sempre as mesmas pessoas. Enquanto dantes havia, por exemplo, as pessoas que iam só fazer as camas, as que iam só arrumar os quartos e isso tudo, e aquelas que iam lá fazer a limpeza às casas de banho. Agora elas têm de fazer tudo. Quer dizer, são menos pessoas, mas têm de fazer tudo! António Almada: O patrão era português. Foi ele que montou as. O Hotel A começou onde é as piscinas. Ali havia sempre uma senhora que andava a dar copos de água, aí é que eram as termas. Começaram a encher os garrafões naquelas bicazinhas pequeninas que lá estavam. Carregavam as camionetas para ir para L. O ponto forte daquilo crescer foi por ter levado água para L. Ele era de L., veio aqui, comprou aquilo, montou 3 ou 4 camionetas, começou a acartar para Lisboa e depois seguiu forte. Foi aí que fizeram o primeiro hotel. E aquele tinha muitos clientes e tinha muita malta de Lisboa que vinha para cá, mesmo para tratamentos e aquilo tudo. E depois, como aquilo estava a dar, pensou fazer o hotel A, lá em cima. Mas fez primeiro um mais pequeno. A malta chama-o “O hotel velho”, e depois é que foi feito então aquele grande. Lembro-me daquele hotel a ser feito, devia de ter os meus 6/7 anitos quando aquilo começou a ser feito. E pronto, e enquanto ele geriu aquilo, aquilo deu muita dinheiro. António Almada: Quando o meu pai começou na Empresa A foi para encher águas à mão, os garrafões de água à mão. P: Portanto, ele foi um dos primeiros empregados? António Almada: Ah, isso não sei, dos primeiros empregados não sei. Agora mecânico deve ter sido o primeiro, que ele já veio de M.. O meu pai trabalhou no capote, que era o dono da M.. E depois, quando eles montaram ali a empresa, ele foi convidado para vir para cá, o meu pai, e como já namorava com a minha mãe não é, e para estar aqui mais perto, ele veio para cá. Veio para cá e fez a casa, casou-se e nunca mais saiu de lá. P: Trabalhou a vida toda para a empresa? António Almada: Trabalhou. Menos aqueles anos em que esteve nas águas. Mas reformou-se aos 71 anos. Não, ele reformou-se aos 66 anos, mas trabalhou na empresa até aos 71 anos. Ficou a trabalhar com o ordenado dele e descontava à mesma, mas como estava reformado, tinha a reforma dele e tinha mais o ordenado. Porque ele reformou-se por idade. Se te reformares por doença ou outra coisa qualquer, ou por invalidez, não podes continuar a trabalhar. Agora ele podia continuar a trabalhar no mesmo trabalho e pronto e foi o que ele fez. P: Aquela história do senhor, de quando trabalhava no Golf. Havia um senhor que ia lá muitas vezes e o Rui ia sempre com ele. Lá no golf, pode falar um pouco sobre isso? António Almada: Ah, isso foi um jogador, o C. (importante jogador do Sport Lisboa e Benfica) P: Ele era cliente no Hotel A? António Almada: Ele era cliente e ia lá quase todos os fins de semana, ou seja, quando era as férias grandes, ia lá jogar golf. Ele ia lá de manhã e depois vinha embora à tarde. Mas, almoçava lá, fazia tudo lá. Ele era jogador do Benfica. E eu era rapazito, e ele nessa altura já me pagava bem. Foi, era o gajo que mais me pagava, por cada volta que a gente dava, por cada jogo que ele fazia lá. Eu não jogava, eu levava o carrito, ele jogava Golf e eu levava o carrinho dos tacos. P: E ele era simpático? António Almada: Era! Nunca apanhei lá cliente nenhum que fosse, que as pessoas fossem malcriadas. E mesmo se fosse um gajo que fosse malcriado nem ninguém queria ir com ele, sempre assim foi. A gente só precisava de estar atentos a ver a bola, onde é que ela ia cair, que era se ele não soubesse daquela dava para a gente mais ou menos saber e ir lá ver onde é que ela estava. P: E ele dava-lhe gorjetas? Vocês tinham um ordenado base ou era gorjetas? António Almada: Cada cliente estipulava aquilo que queria pagar por cada volta, está a perceber? Depois era sempre muito coiso, eles não pagavam sempre o mesmo preço. P: Então vocês recebiam de forma diferente? Conforme o cliente? António Almada: Exatamente! Por isso é que havia muitos que… P: Tinham de dar alguma comissão ao hotel? António Almada: Não, não! P: Era tudo para vocês? António Almada: Era tudo para a gente. Porque aquilo não tinha nada a ver com o Hotel A, ou seja, aquilo era ao pé do hotel, o cliente era de lá, a gente estava ali assim, onde eles iam buscar os carrinhos e tudo, e depois eles se precisassem nós íamos lá com eles. P: Alugavam o carrinho e o “funcionário”? António Almada: Não, nós já tínhamos os carrinhos deles. Havia lá um rapaz que tomava conta dessa casa, onde estava os carrinhos e onde estava isso tudo. Esse era lá empregado! P: E vocês transportavam o carrinho? António Almada: Sim, levava-se o carrinho, ia-se com o carrinho com os sacos e depois quando chegavam ao pé da bola, conforme o sítio onde a bola caísse, ele pedia o número do taco que queria? Porque os tacos têm números. Depois ele pedia. P: Têm pesos diferentes é isso? António Almada: Não, têm ângulos diferentes que é outra coisa, que é para a bola seguir uma direção especifica? Tem um taco que é de saída, que entras para mandar a bola com força, depois tem outro em que a bola está aqui e só tem de fazer o movimento. P: E vocês não podiam fazer e experimentar enquanto lá estavam à espera? António Almada: Sim, então quando eles não estavam lá, a gente às vezes experimentava e mandava-se bolas cá para baixo. Porque a gente quando não tinha nada para fazer vinha cá para baixo para os campos de golf à procura de bolas, que eles perdiam muitas bolas, ou enfiadas naquelas árvores e ali tudo. Depois a gente também tinha muitas bolas e então vendia-se. Eles perguntavam à gente se a gente não tinha bolas, porque havia certos indivíduos que não eram bons, ou tinham azar. Também perdiam muitas bolas, e depois quando eles iam para lá perguntavam-nos se tínhamos bolas, a gente vendia. P: E tinham tempo parado? António Almada: Havia sempre aqueles que se encostavam um bocadinho quando podiam. Não, mas por exemplo no Hotel A, havia lá uma equipa muito boa, um senhor conhecido é que era o chefe de manutenção lá do Hotel A. E ele era exigente! Para a parte do campo, onde tem o buraco, aquilo não pode ter ali uma erva grande, não pode ter nada que é para a bola rolar ali. E quase todos os dias havia 2/3 mulheres lá ajoelhadas a puxar aquelas ervazinhas mais, que não era aquele tipo de relva que não era precisa. Tudo o que não fosse, elas estavam ali a arrancar as coisinhas todas! P: E trabalhavam à chapa do sol? Assim? António Almada: Era. Com o chapéu na cabeça e lá andavam. P: Pois e era como vocês quando estavam lá no golf? António Almada: Pois! P: Eram as condições que tinham… E nos dias assim mais de chuva ficavam dentro do hotel? António Almada: Ficava-se cá em baixo, ou seja, onde é o hotel velho, que era onde estavam os carrinhos e a gente ficava ali na brincadeira, na galhofa ali. P: Também eram todos crianças? António Almada: Pois. Era tudo malta nova, era tudo malta até aí aos 15 anos está a ver? A partir dos 15 a malta já arranjava sempre trabalho ou no hotel. Assim que se fazia 14/15 anos, já a malta do hotel dizia: “como é que é, não queres ir servir à mesa? Não queres fazer isto ou fazer aquilo?”. P: Pois aproveitavam que já tinham ali aquela base para o hotel, não é? António Almada: Pois, pois! Depois a malta ia lá para dentro, não é? Mesmo muita gente. A maior parte da malta da minha idade aprendeu a trabalhar no hotel, a servir à mesa. P: E eles aprendiam, vendo não era? António Almada: Quando eles chegavam lá, os outros diziam: “olha vais ali e levas isto ou fazes aquilo” “vais entregar já ali naquela mesa”. E a malta mais velha estava, iam controlando. Mas aquilo ao fim de duas/três vezes que iam à mesa, aquilo já estava aprendido. E se eles tivessem dúvidas, perguntavam. P: E o patrão chegava a passar por vocês e cumprimentava? António Almada: Falava! O patrão era uma pessoa que falava com os empregados, sim. P: E sabia o vosso nome? António Almada: É assim, ele passava e até podia saber o nome da malta mais velha, da idade do meu pai. A malta da geração dele, não é? Mas a malta que lá começou, tinha de saber o nome de mesmo muita gente! P: Mas, por exemplo, sabia as ligações familiares? Sabia que era filho de X ou Y? António Almada: Ah isso não sei. Eu já apanhei o patrão velho, o patrão vi-o três ou quatro vezes e depois ele, coitado, já não vinha muita vez para cá, que coitado já tinha uma idade. Ele já era mais velho que o meu pai um bocado, ele já era uma pessoa de idade. O meu pai é que o conhecia muito bem! Ele chegou a andar com ele numa avioneta, que ele tinha uma avioneta. O centro de Aviação que foi feito, foi ele que o fez para aterrar lá com a avioneta. Aquele terreno não é dele, aquilo estava na altura a fazer de pista, antes de ser alcatroado. Ele alugou aquele terreno, mas o terreno não era dele, ele fez um contrato. P: E ele era assim tão amigo do seu pai ao ponto de o deixar andar com ele? António Almada: Sim, eles eram muito amigos! Do meu pai e de muitos que lá estavam. Tudo o que era dos primeiros empregados e daquela gente toda que andou ali assim, ele conhecia aquelas pessoas todas. No fundo foram eles que lhe fizeram a empresa. A empresa foi feita, não foi sozinho por ele, foi pelos empregados todos. Se não houvesse aquela gente toda ali à volta dele, ninguém cresce sozinho! Nem ele nem ninguém. O patrão era uma pessoa humilde. Ele também era uma pessoa que veio do nada, não é? …………………………………………………………. António Almada: No hotel, quando o rio começava a encher muito, a empresa tinha uma máquina que, ou ia lá o meu pai, ou ia o L., que era um senhor que trabalhava com o meu pai, agarravam na máquina e iam abrir a foz. Para os campos de golf não serem inundados com água. P: Mesmo no inverno? António Almada: Se o tempo tivesse bem…tudo o que fosse tempo bom dava! P: O grosso dos clientes dormia no hotel ou não? António Almada: Não. A maioria deles que vinha jogar golf, a maioria vinha de fora, iam e vinham, juntavam-se aos grupos e vinham. Eu andei muito tempo com uns senhores de A., que eles aos fins de semana vinham cá de propósito só para jogar golf. P: Era ao fim de semana? António Almada: Era! P: E vocês aí também criavam relações? António Almada: Sim, porque eles também tinham o trabalho deles, não é? Depois juntavam-se àqueles grupos, aqueles que gostavam de jogar. P: E eram pessoas endinheiradas? António Almada: Era. Eram pessoas com mais dinheiro, claro! Pessoas que deviam ter empresas lá para aqueles lados. P: Por exemplo, pessoas lá da terra usufruíam do hotel? António Almada: Não! Havia 3 ou 4 empregados que iam para lá jogar, mas iam para lá jogar e tinham ordens, eles pediam e podiam ir para lá jogar, mas de resto, ali dentro da M. na havia ninguém que tivesse dinheiro para fazer uma vida assim. P: E vinham muitos estrangeiros? António Almada: Vinham, ainda vinham muitos estrangeiros. Na altura em que eu era novo, ainda vinham aquelas coisas da escola, de Espanha. P: As excursões? António Almada: Isso era o nosso chá, ir para lá à noite! E arranjar maneiras de dar a volta àqueles, não sei se eram professores que iam com elas para lá. Arranjar maneira de dar a volta para que elas e eles não é, conseguissem vir para a rua para estarem ao pé do pessoal dali que vinha para P., e então eles tentavam que a malta tentasse dar a volta para ajudá-los para eles saírem de lá e para eles virem também para a galhofa. A malta até dizia: “Olha, vamos às espanholas!”. Então isto era tudo rapazecos da mesma idade, só que claro enquanto em Espanha havia disso, na minha altura nunca ouvi falar que Portugal fosse para algum lado. Agora já vai, mas na altura não me lembro dessas coisas. Eles vinham para cá. P: As diferenças culturais eram grandes. António Almada: Claro. P: Então e como é que vocês comunicavam? António Almada: Oh o espanhol, um gajo consegue perceber melhor o espanhol do que eles à gente, se calhar. Mais ou menos também se percebia bem! P: Então e se fosse um inglês? Vocês sabiam desenrascar? António Almada: Não, eu inglês nunca soube, mesmo hoje também não. P: Mas apareciam algumas pessoas assim, que vocês não entendiam? António Almada: Inglês, por exemplo, não percebia, mas havia lá sempre um ou dois que conseguiam estar ali e entender. Mas assim malta nova, também ingleses e assim, não havia. Quem vinha para cá mesmo só de escola eram os espanhóis! Os espanhóis é que vinham, que eu me lembre, eram só os espanhóis! P: Por causa da praia, ali em Porto Novo? Eles iam por causa do Turismo de Sol e Mar? António Almada: Pois isso não sei como é que era, sei que era viagem de finalistas ou o que era, eles vinham para cá e até muitas excursões. O hotel tinha sempre preços bons que o gajo fazia para esses grupos. Conseguia manter muitos clientes, porque também ao nível dos empregados, eram muitos empregados! Agora não está lá nenhum desses todos, quanto mais metade! Eles agora querem faturar sem gastar, mas isso também não tem, depois falta a outra coisa, não é. Agora qual é? Se é qualidade…, mas mesmo assim eles têm muitos grupos, agora nesta altura, como tinham antes. P: E voltando um pouco atrás, quando era mais novo no golf, tem alguma lembrança das coisas que fazia para além das que disse? António Almada: Não. Aquilo como não era bem emprego, ou seja, era um serviço para a gente ganhar uns trocos, como se dizia antes: “pás Gasosas!”. Mas sim, foi das primeiras coisas que eu fiz, foi isso. Naquela altura, os jovens não iam para a apanha da fruta. Porque naquela altura, ou trabalhavas num hotel, ou nas águas, ou então eras agricultor. P: E acha que, por exemplo, acabou por ir para o hotel por influência do seu pai em conhecer as pessoas? António Almada: Não, não. Para o golf a gente erámos miúdos e aquilo era o entreter de todos os miúdos. A gente estava ali assim: “olha vamos para a praia”, e depois da praia, começava-se a ir lá para cima, e depois andava-se assim. Um gajo para ir jogar golf, um gajo chegava-se ao pé dele e tínhamos a iniciativa. P: E apercebiam-se daqueles que pagavam mais e os que pagavam menos? António Almada: A gente depois acabava por saber porque, por exemplo, hoje ia com um e dava-me x, amanhã ia com outro e dava-me mais, e eu então se eu visse aqueles dois, eu escolhia aquele que me dava mais. E avisava logo os outros: “olha que este gajo é forreta e paga menos!”. Tinha que ser. P: E para a carpintaria foi, saiu da escola e foi logo? António Almada: Não, eu para a carpintaria fui quando saí da escola. O senhor, que era o senhor S., que era chefe das obras, tudo o que tinha obras dentro da empresa, ele é que fazia. Ele viu-me, já conhecia o meu pai e disse: “-Então, não estás na escola? -Não eu já saí da escola! -Então e não queres ir trabalhar? -Ah querer queria! -Então vê lá para onde é que queres ir e diz-me!”. P: Ah então foi o senhor que escolheu a área para onde queria ir? António Almada: Foi! Eu é que escolhi a área! E depois fui para lá para a carpintaria. E depois a mecânica surgiu por causa do curso, mais nada. P: Senão, tinha continuado lá? António Almada: Pois, senão tinha de continuar lá ou então tinha de ir para outra carpintaria ou para outra coisa qualquer. Só que, para aprender mais do que aquilo que eu já sabia? Já tinha de ir para outro lado! P: Ali já não acrescentava? António Almada: Pois não. Porque fazer móveis e essas coisas a gente não fazia, ali era mais fazer portas, fazer janelas, tudo obras que fosse preciso, fazer fechaduras, essas coisas. A partir dali a gente móveis lá não se fazia nada dessas coisas. E então aquilo era mais tipo manutenções, uma porta partia-se ou algo do género e tinha que se fazer uma porta. P: E sente que era um trabalho pesado para a idade que tinha? António Almada: Não, não! P: Tendo em comparação o seu trabalho atual de mecânico? António Almada: Este é muito mais pesado! A mecânica dá mais cabo da cabeça não é. E é puxado, agora a mecânica atual, já é computadores, o computador diz uma coisa, mas não diz tudo! O computador pode dizer que isto está avariado, mas metes a peça e aquilo está a dar-te a mesma avaria. Pode não vir desta, pode vir da outra, mas como o computador está ligado e está a dizer que é esta peça, mas o problema pode não ser desta e pode ser de outra. P: Então e os estudos que tinha, por exemplo, para saber fazer uma porta, há que saber alguma matemática básica para saber tirar medidas e ângulos. António Almada: Sim, era tudo com uma fita e depois esquadrias. P: Eram precisos pequenos cálculos e esse tipo de coisas, acha que conseguia fazer esse tipo de coisas para a sua escolaridade que tinha? António Almada: Sim, para a escolaridade que eu tinha. Fiz muita porta, quando foi para a F., só lá dentro tinha 80 e tal portas, fora as janelas. E foi tudo lá feito, lá na carpintaria. E quando foi a assentar aquilo tudo, também fui eu que estive a assentar aquelas coisas todas. Eu aprendi a fazer aquilo tudo, agora se calhar se agarrasse na madeira estava ali um bocadinho a pensar como é que se fazia uma porta outra vez. Já lá vão 40 anos. P: E sentiu-se feliz enquanto lá esteve? António Almada: Sim! Só estava lá um da carpintaria que uma vez se chateou comigo, não me falava e eu não falava com ele, era primo do meu pai. Mas pronto, o tempo que eu lá estive nunca falei com ele e ele nunca falou comigo. Nunca mais falámos. Depois passei lá para o Hotel A, fui para ao pé do outro senhor e aí pronto. P: E sentiu-se realizado? António Almada: Senti-me. Gostei muito enquanto lá estive e daquilo que eu fiz, que ainda hoje sinto saudades de certas coisas de lá. De andar lá a arranjar as coisas, e a correr no hotel e isso tudo! Um gajo andava com a chave mestra, era só bater à porta. P: E encontrou alguma coisa engraçada nos quartos? António Almada: Não, não. Nunca entrei em quarto nenhum que tivesse gente lá dentro. P: Mas, por exemplo, objetos ou assim? António Almada: Ah não. P: Os quartos estavam arrumados? António Almada: Aquilo era assim, geralmente quando eu ia fazer a minha manutenção ao quarto já lá tinham passado os empregados de quarto e isso tudo. Já lá tinha passada tudo, então assim que saíam os clientes, estavam logo lá as empregadas para começar a limpar aquilo. Agora, se calhar, já demoram mais tempo porque são menos. P: E o hotel estava muito cheio, sempre? António Almada: Quando era verão estava sempre cheio! P: E quanto tempo trabalhou lá? António Almada: No hotel? Sei lá, talvez quase 2 anos. Mas isso no hotel, cá em baixo devia ter estado mais perto de dois anos, mais coisa menos coisa. Já andava a tirar a carta quando passei para o curso, devia ter aí os meus 19. P: E acha que a nível de salários era justo para a altura que era? António Almada: Para aquela altura, comparado com agora, se era justo ou não, não sei. P: Sentiu aquela sensação de: dão-me pouco para aquilo que eu faço? Antónia Almada: Isso aí é difícil de responder, a gente não tinha como comparar, não sabia o ordenado do meu pai, não sabia nem das outras pessoas, mas comparado com a malta da minha idade, naquela altura os ordenados eram todos equiparados uns com os outros. E a gente, assim que entrava para lá começava a fazer logo descontos e tudo. P: E a farda? Como é que era? Vocês tinham de usar algum macacão? António Almada: Não, não! Eu, farda, nunca usei. Quem chegou a usar lá farda, que eram macacos, eram os canalizadores, eletricistas, lá dentro esses é que estavam mais ou menos fardados. E as fardas pronto, dentro do hotel isso já havia, lá da malta da receção e tudo. Isso era tudo fardado já. P: E eram como? As mulheres com saia e os homens de calças? António Almada: Os homens de calças e as mulheres de saia, ainda deve ser agora também, não sei como é que é. Mas as mulheres agora também já devem usar calças. -
"Entre gaiolas", - Entrevista a Márcia Figueiredo
P: Como começou a trabalhar neste hotel? Márcia Figueiredo: Comecei como empregada de andares. Antes disso era auxiliar de ação educativa (murmura). Entretanto, essa minha profissão acabou porque engravidei…e já não servi. Fiquei com uma criança pequenina. Vim à procura de trabalho e foi aqui que comecei e aprendi tudo. Vim para fazer quartos. Depois, a minha governanta enquadrou-me no turno da tarde que é o turno onde se sabe tudo porque é o turno em que se faz um bocadinho de tudo. O turno que começa entre as 15h e as 15h30 é o que faz todas as áreas do hotel. Depois temos das 8h às 16h30 que só fazem quartos. Depois temos um turno entre as 14h30 e as 22h30 que faz tudo. Entregam coisas aos quartos e, como ficam sozinhas, têm de aprender tudo porque ficam duas pessoas sozinhas a tratar de todo o departamento. Ficam responsáveis pela limpeza, organização. Fazem a contagem do minibar dos quartos, entregam a roupa dos clientes, limpam o restaurante e resolvem pequenas avarias que são detetadas: foi por isso que eu passei. O número total de empregadas ronda os vinte e cinco. P: Foi difícil a adaptação a uma nova forma de trabalho? Márcia Figueiredo: No primeiro dia em que fiquei sozinha tive que me desenvencilhar, do tipo, “Caiu uma porta! Vanda, vai lá ver!” Tive de aprender a desenvencilhar-me por mim própria. Agora faço apenas supervisão para ver se está tudo bem. Dantes era eu quem reparava. Dantes fazia os quartos e limpava, tal e qual como uma empregada. Agora não. Um quarto demora meia-hora a limpar. Se for um quarto que está todo virado e muito mau, demora mais tempo. Quando a pessoa é mais organizada e deixa as coisas mais ou menos no sítio leva menos tempo. A primeira coisa a fazer é abrir a janela para arejar. Depois, é tirar roupa suja, tirar lixos. Pronto: sai tudo do quarto e vai para o carrinho de roupa suja. Cada funcionária carrega dois carrinhos, um balde, a esfregona e um aspirador. Há um carrinho que montam no início do dia com tudo o que o quarto leva: os papéis, os bombons… e depois há um saco vazio, preto, onde nós pomos a roupa suja. Nada pode ser misturado até porque ainda tem que ser feita a reciclagem: um saquinho de cada cor para todo o tipo de lixo e é assim que funciona. Aqui nós fazemos 16 quartos. Quando distribuo quartos: distribuo 16 para cada uma delas. Para mim, o trabalho mais difícil é o trabalho de andares. Porquê? Porque é o mais trabalhoso, é o mais exigente, é o que tem que ser mais perfeito, apesar de eu achar que tudo tem que estar bem. Mas é puxar uma cama, a casa-de-banho, os inox têm que estar todos impecáveis. P: O que pode correr mal? Márcia Figueiredo: Por exemplo, eu, uma vez, à noite, entrei dentro de um quarto. Tínhamos uma companhia aérea e quando entrei no quarto deu-me vontade de fechar a porta e ir embora porque eu tinha as camas separadas, com a mesa do terraço dentro, com camarões por todo o lado, sacos de comida por todo o lado, os móveis retirados dos sítios…eu olhei e apeteceu-me fechar tudo. Também já aconteceu chegarmos e ver a cabeceira toda danificada de cigarros, com buraquinhos, com camas manchadas de vinho. Temos clientes muito diferentes. Às vezes parece que passou por ali um furacão. Um dia bato à porta do cliente e digo “housekeeping, housekeeping” e nada. Ninguém responde. Quando entro e ponho o cartão para acender a luz, tinha uma pessoa toda nua em cima da cama. Não me ouviu (risos) P: É difícil gerir todos os objetos dos clientes, em termos de arrumação? Márcia Figueiredo: Em regra, temos ordem para não mexer nos objetos pessoais, a não ser que atropele a limpeza. Por aí, consegue-se tirar um pouco da personalidade do cliente: uns sapatos mais chiques, o computador pessoal. Dá para ver o perfil, sim. P: Qual é o kit de cada quarto? Márcia Figueiredo: Para um quarto de casal, 3 lençóis, 4 fronhas, 2 banhos, 2 rostos, um tapete, papel higiénico, shampôs e sabonetes. Se for familiar, já passa a 12 lençóis e multiplica-se tudo por dois. P: Costumam conhecer os clientes? Márcia Figueiredo: Nem sempre os clientes estabelecem uma abordagem no corredor. Às vezes é mesmo o mais completo silêncio, passando por cima do cumprimento matinal. Os clientes queixam-se muito do aspirador porque querem dormir… P: É muito duro, este trabalho? Márcia Figueiredo: Quando falta aqui alguém, isto é obra. Eu tenho a minha filha na cresce e um marido que apoia. A passagem para a supervisão foi porque eu já sabia um pouco de tudo e, no fundo, eu já geria o meu turno. Então comecei a gerir o serviço, a lidar com elas: elas também começaram a ter uma aproximação a mim diferente e era comigo que vinham falar. Quando eu fazia quartos chegava ali, tirava a roupa e limpava! Hoje, não. Hoje entro dentro de um quarto e tenho que ver se alguém limpou bem. Se não, tenho que chamar a atenção: por exemplo, um vidro. Por exemplo, deixar o espelho de aumento do lado errado, ou se deixam os carros arrumados. Eu tenho à minha responsabilidade quatro pisos e um determinado número de quartos. Tenho que inspecionar. Para mim, o mais difícil é confiar que essa pessoa vai fazer bem. Para mim, foi um bocado difícil coordenar as minhas colegas porque elas já foram minhas colegas. A lista de trabalhos modifica-se consoante o dia. Se eu tiver salas ocupadas como o dia de hoje, as meninas da tarde vão ter que fazer salas, para além dos quartos. Temos de gerir as prioridades. P: Têm tempo para pausas? Márcia Figueiredo: Nós também temos os nossos momentos de piadas. Este trabalho não é solitário, não, não. Nós também temos os nossos momentos de piadas. São umas quantas a aproveitar para ver a novela enquanto trabalhamos. No caso dos andares é mais solitário e têm de andar sempre a correr e chegam a conseguir ver um episódio, mas a partir de quartos diferentes. Mas fazem o trabalho delas e isso é que importa. P: Como é o local de trabalho de uma governanta de andares? Márcia Figueiredo: Isto é uma rouparia. É onde é guardada a roupa, é onde reunimos. Quando chegam, às oito da manhã, é aqui que se dirigem. Começamos a distribuir trabalho. Vêm aqui e recolhem as instruções de trabalho. Este espaço também serve para passar informação sobre o que se passou no dia anterior, por exemplo. Levam as chaves dos pisos e começam a trabalhar. À hora de almoço, descem e dão informação sobre os quartos que fizeram da parte da manhã e os consumos do minibar. Aqui há de tudo: as sapateiras, os copos e a base dos copos, peluches, peças de encosto do pescoço, menu de almofadas, lençóis de seda se o cliente quiser, café, máquinas e tabuleiros. Há um kit de detergentes (os cestos levam as amenities). O cliente também pode pedir chaleiras. Há a roupa de beliches, com motivos mais infantis. Há chapéus de sol que foram deixados por clientes. As gaiolas (são os carrinhos que levam as coisas). Tudo está por caixas, para facilitar a orientação. P: Têm vestuário próprio? Márcia Figueiredo: As empregadas têm os seus próprios sapatinhos confortáveis ou as crocs para trabalhar. As costas são as zonas mais sensíveis destes trabalhos. O facto de termos de puxar pelas costas… P: Os clientes tentam enganar? Márcia Figueiredo: Por exemplo, a batata frita, fecham para fingir que não consumiram. também fazem o mesmo com a água. Depois, a responsabilidade é nossa… fecham a latinha do amendoim e depois não sabemos que cliente foi… -
“Nós até somos muito bons. Demasiado.” (Entrevista a Simão Nevada)
P: Como começou a trabalhar este hotel? Simão Nevada: Eu estive em Londres a trabalhar três anos e meio e vim a Portugal responder a uma entrevista. Tinha já enviado o CV para este Hotel, e depois acabei por ficar cá. Profissionalmente, sempre estive no mesmo ramo, o da receção. Vim com a estreia do Hotel. P: Qual o papel da receção num Hotel? Simão Nevada: A receção é o grau de exposição máximo, em termos laborais. Digamos que é o núcleo por onde tudo passa. Do ponto de vista das características mais importantes do rececionista, a coisa mais importante é o sorriso. É a primeira imagem com que o cliente fica, e que leva também do hotel. Mas também a simpatia, a disponibilidade. Isto também já vem da educação e também da própria personalidade da pessoa. As línguas são muito importantes também: o inglês, o francês e o espanhol. Aqui fala-se muito o francês e o espanhol, uma vez que se trata de um hotel de * e vêm aqui todas as nacionalidades. De dia, é mais o contacto com o cliente e, de noite, é mais trabalho de escritório, BackOffice, papeladas, relatórios, fecho do fim do dia… é mais trabalho operacional. À noite, o movimento já não é o mesmo. Tudo o que é burocracia é à noite. P: Como funciona o vosso regime de turnos? Simão Nevada: Há três turnos. Neste hotel, o horário mais turbulento é o da tarde. No geral, é sempre o da tarde. Um hotel como este está sempre a encher. A sair, já não é tão trabalhoso, é mais simples: chega, entrega a chave, paga o que tem a pagar e vai embora. Quando o cliente chega, à partida, ele quer saber tudo: o que é que a cidade tem, quais os serviços disponíveis, a nível de tours, visitas à cidade… tem que se ter sempre mais tempo para o cliente, o que por vezes também não é fácil... Nós temos que ter cultura geral. Temos que ter preparação para isso, a nível de comunicação social e jornais. Este turista também está interessado na nossa história, nos nossos restaurantes. Nós trabalhamos muito com restaurantes, a nível de passeios. P: Se um cliente só tiver uma tarde, o que é que lhe vai aconselhar? Simão Nevada: Depende... Se o cliente está mais voltado para os monumentos e ver a arquitetura de Lisboa, temos passeios, os autocarros turísticos da cidade, que podem sair a qualquer momento de vários pontos da cidade. Esse é o passeio mais rápido e mais indicado. As pessoas vão vendo cada ponto histórico, ou então podem sair para usufruir melhor. Nós ainda não trabalhamos muito com tutuques porque esses estão mais nas zonas históricas. É tentar avaliar o cliente que temos à frente, ser atento ao detalhe: pela conversa temos que avaliar e chegar àquilo que o cliente quer, sem ele se aperceber. Por exemplo, se quer ir ver a catedral é porque é religioso e gosta de ver essas situações. Aí, podemos sugerir também o Mosteiro dos Jerónimos, a Sé. Há certo tipo de detalhes que nos levam a entender aquilo que procura. P: Que tipo de dados pedem ao cliente, quando faz a reserva? Simão Nevada: A ficha de dados do cliente não inclui informação sobre a profissão. Por vezes, é ver também o aspeto físico, a forma como a pessoa se apresenta. Se vier vestido à executivo, se calhar, já vai procurar outro tipo de situações, já não tem tempo para lazer, já vem mais nos negócios. Em termos de clientes, há o “business” e o “leisure”. Nós aqui é mais a nível de stakeholders ou clientes que vêm mais para pernoitar. E temos também clientes de negócios. P: Quais são as componentes principais do serviço de receção? Simão Nevada: Para além da receção, temos uma parte de concierge. Os clientes ainda usam o telefone para colocar questões: pedir um ferro e uma tábua, pedirem serviço de “room service” e aí nós passamos ao restaurante porque são eles os entendidos…, mas nós disponibilizamos almofadas ao gosto do cliente, berço, cama-extra… uma vez uma cliente sentiu-se mal e tivemos logo que chamar o médico de serviço. Nós somos o ponto número 1 de contacto. Tudo começa na receção e tudo acaba nela. E a última imagem que o cliente leva tem que ver com a receção. Todas as secções têm contacto com a receção. A receção é o apoio de onde sai toda a informação. P: Quantos funcionários fazem parte da equipa de receção? Simão Nevada: No turno de manhã e de tarde estão duas pessoas e, à noite, também. Pode haver alguma situação em que estejam três, mas é exceção, embora um hotel com este movimento pudesse ter três. Nunca são demais. No local temos computador, temos três postos com sistema, temos os telefones, a impressora, fotocopiadora, temos um sistema de fazer chaves…é o nosso kit de trabalho (ri-se) P: Num dia muito, muito difícil, quantos registos podem aparecer? Simão Nevada: Diariamente, temos para cima de 100 chegadas e não é fácil. São 68 quartos e, por vezes, é complicado para duas únicas pessoas tratarem. Quando há mil e umas coisas para resolver: a operação para controlar, os clientes que temos para satisfazer… nem sempre é fácil… dependendo das condições que nos dão e que nos apresentam. Quase não há pausas: temos meia-hora de jantar, de refeição e pausas só mesmo para ir à casa-de-banho. Aqui, quem quiser fazer pausas por autoria própria, é impossível, a não ser que arranje alguma maneira…mesmo em termos de internet, o acesso está restrito, os sites sem serem dentro do sistema, estão restritos. P: Já se deparou com situações de clientes alcoolizados? Simão Nevada: Ah, sim. Ainda outro dia a senhora da limpeza estava no período da tarde e veio dizer-nos que estava um senhor todo nu no corredor, e efetivamente estava. Não quis acreditar. Fui lá acima e depois percebemos que a porta se tinha fechado com o senhor cá fora (gargalhada). A senhora da limpeza ficou escandalizada e chegou à receção aos gritos e pedimos que ela falasse um pouco mais baixo. Mas acho que o cliente também estava um pouco embriagado. Alguma coisa que quis ver e foi atraiçoado. Temos de tentar que sempre que haja uma reclamação por algum motivo, que os outros clientes não se apercebam porque, por vezes, reclamação gera reclamação, e então é complicado. Saber resolver a situação com alguma precaução e sigilo, se assim podemos dizer, quase com invisibilidade: tentar chamar o cliente à parte. P: Sentem que guardam muitos segredos sobre o cliente? Simão Nevada: Não é tanto assim porque, de alguma maneira, nós mantemos sempre alguma distância e a postura para não invadirmos esse cliente. Aliás, já tivemos clientes que nos pediram diretamente o anonimato, não querem que ninguém saiba que estão cá. A priori, nós não prestamos qualquer informação sobre o cliente. Dizem-nos que nunca estiveram cá, não estão cá e não querem ser incomodados com chamadas e por pessoas. Qualquer um dos hotéis, a nível geral, têm um código de conduta do trabalhador. Se ligarem para aqui a perguntar se a pessoa x está, nós não estamos autorizados a prestar essa informação, é complicado. P: Há muito desgaste nesta área? Simão Nevada: Por vezes, é bom haver rotação, pôr caras novas. Mas, outras vezes, também é muito o reconhecimento, sobretudo os clientes habituais também gostam de ser reconhecidos e se houver demasiada rotatividade, isso nunca vai acontecer. O cliente não se sente seguro se estão sempre a mudar as pessoas. P: Como é o vosso ambiente de trabalho? Simão Nevada: Há muita interação na receção e eu prezo muito isso. E a hotelaria é muito isso: é trabalhar com alegria, trabalhar com vontade e, se houver um bom ambiente de trabalho, eu acho que é muito importante. Trabalhar à séria, mas a brincar: tem que haver equilíbrio e responsabilidade porque nós aqui trabalhamos todos em conjunto, estamos a trabalhar todos para o mesmo. Tem que haver uma interajuda grande. Gosto do que faço. Eu já saltei algumas vezes de hotel em hotel e julgo que isso é importante a nível curricular. Há sempre alturas em que chegamos a um sítio e dizemos que já não vamos tirar nada. Aí tento sempre procurar outra situação. Até hoje não me arrependo de estar por aqui. A hotelaria não é diferente lá fora. Nós até, em termos de acolhimento, somos muito bons. Demasiado. A priori já somos alegres. Mas nem todos somos iguais. -
Uma vida muito comprida
P: Gosto sempre de começar por perguntar onde é que nasceu, como é que era a sua vida na altura, qual era a profissão dos seus pais e o caminho que fez até chegar aqui R: A minha mãe, claro que a minha mãe trabalhou sempre só em casa. O meu pai era lavador de carros (lavava carros, pronto), mas depois pensou em estabelecer-se então abriu uma mercearia. Eu andava na escola, quando sai da escola tinha 11 anos e depois fui trabalhar para a mercearia. P: Então foi ajudar o seu pai? R: Pois. Depois, até aos 19 anos, fui para Lisboa, mais o meu pai. O meu pai estabeleceu-se lá mais uma casa de comidas. Ali trabalhei, e tinha empregados, tinha cozinheira, tinha essas coisas todas. Mas como o meu pai não se deu bem, aí nessa casa, passou-a e fomos para outra. Essa outra só levava uma luz de cozinha, e aí comecei eu a trabalhar mais ele. Trabalhámos sozinhos, os dois, eu como cozinheira e ele ao balcão. E ali andámos 9 anos! P: Foi onde? R: Em Lisboa, na Graça. E depois, comecei a namorar. O meu marido estabeleceu-se, antes de casar, e depois casámos, e ali fui cozinheira mais uns anos. P: Foi cozinheira nessa casa, com o seu pai, então? R: Do meu pai no início, e a depois do meu marido também. P: Então juntaram-se todos no mesmo negócio? R: Não, o meu pai não se juntou. O meu pai depois veio outra vez para cá (P.), novamente. Pôs um aviário e assim era. E depois eu o meu marido estabelecemo-nos, mas era sociedade. P: Ser sociedade é o quê? R: Sociedade quer dizer que tinha outros sócios. Ele era sócio, tanto como os outros, mas trabalhava e tinha o ordenado dele, não é? Depois eu comecei a trabalhar, a ajudar e tal, e fiquei também como cozinheira. Isso já em Cacilhas. P: E quando é que veio para P.? R: Quando voltei para cá, já não fui mais cozinheira, só em casa e a fazer alguns trabalhitos. Eu cozinheira fui 28 anos. Depois, mais a minha irmã, arranjámos sociedade e abrimos um minimercado. P: Aqui em P.? R: Sim! Aquela casa de primeiro andar era uma casa com dois andares e a gente morava por cima, e por baixo era a mercearia, era a loja do “Tio Eduardo”. Claro que depois a gente passámos a casa lá de Cacilhas, e viemos para cá. O meu marido reformou-se, mas começou a trabalhar. Quer dizer, ele não se reformou bem naquela altura. Doi só depois de ter começado a trabalhar na bomba. E eu trabalhava ali com a minha irmã, onde estivemos uns anos. Depois, aquilo não estava a dar muito. P: Não? R: Não. Sabe que os santos da casa nunca fazem milagres... começaram a abrir muitos supermercados. Quando começou a abrir o Pingo Doce, e essas coisas todas, então a gente perdeu, até que se fechou, fechámos aquilo… o meu pai morreu, depois morreu a minha mãe, morreu a minha irmã e eu depois empreguei-me. Empreguei-me aqui numa senhora que me pediu se eu podia ir fazer o lugar dela enquanto ela era operada. Então fui para S. trabalhar, chamava-se “O B.”. P: Mas ainda esteve a trabalhar antes disso, não foi? R: Ah sim! Tinha 62 anos. Quando fui para Lisboa tinha 19 anos. Quando me empreguei mesmo, porque onde trabalhei mesmo foi na casa da família, no restaurante que o meu pai abriu, foi aí. Mas depois aquilo foi para o meu marido. E fui trabalhar aos 62 anos em T. Aquilo tinha um café onde trabalhei a cozinhar. P: E os filhos? Como é que geriu isso? R: Elas andavam a estudar, uma andava a estudar aqui, a outra também andava a estudar, mas em Almada. Mas depois veio para cá… a gente passámos a casa e ela não quis ir mais para a escola. Eu ainda a inscrevi lá, mas ela não quis estudar mais, e agora dá-me na cara que eu é que fui a culpada. P: Mas nasceram aqui em P.? R: Não, nasceram em C. mesmo. Tanto uma como a outra. P: E teve as suas filhas com que idade? R: Tinha 28 anos na primeira, e tinha 36, parece-me, quando tive a segunda. P: Foi quando arranjou mais estabilidade? E as coisas já estavam mais seguras? R: Ah não, porque depois tinha de andar com as filhas atrás de mim e íamos trabalhar, porque a casa pertencia também ao meu marido, e as miúdas também tinham de lá estar, não é? P: Elas também iam para lá trabalhar? R: Trabalhar? Elas nunca trabalhavam. Também eram muito novas, a mais nova tinha 5 anos quando veio para P., a mais velha havia de ter uns 14 anos. Lá não faziam nada… uma vez o pai obrigou- a ir enxugar a loiça, ela não queria e levou uma palmada e não sei quê, cai-lhe um prato no chão e partiu o prato. Ela depois não fez nada. Aqui, nunca fez nada… depois é que começou a pedir à minha prima, que fazia luvas, então ela começou a fazer luvas. Eu nunca lhe pedi dinheiro nenhum, ela é que guardava e era para ela, mas pronto, não faziam mais nada. Mas hoje dá-me na cara que trabalhou muito. Casou com 19 anos… sim, ela casou tinha 19 anos; foi muito nova. Mas pronto, depois quando fiz 68 anos fiquei em casa e já não fui mais porque o B. fechou. Já não fui para mais lado nenhum. Também nunca procurei trabalho, vinham era cá pedir para eu ir trabalhar. Uma senhora veio-me cá pedir para eu ir enquanto ela fosse operada, depois eu fui trabalhar e depois olhe eu já não tinha vontade de fazer mais nada. P: Porque já estava cansada? R: Sim, mas a senhora coitada, foi infeliz e morreu. Depois da operação ela morreu. Então continuei lá a trabalhar, com a filha dela. P: E eles gostavam do seu trabalho? R: Eu trabalhava mais ou menos como ela, a senhora que foi operada era boazinha, coitada…só esteve lá um dia comigo a dizer-me os hábitos da casa, como é que se faziam as coisas. E lá fui, aprendi bastante com ela, num dia só aprendi muito com ela. P: E quando para Lisboa? R: Em Lisboa aprendi à minha custa. P: Então nem teve oportunidade de ver os outros trabalhar? R: No princípio ia à Praça com o meu pai, e vinha da praça e trazia peixe, caldeirada… mas eu até dizia: “Ó pai, mas eu nunca fiz isso!” Nunca tinha feito, mas saía-me sempre bem! P: A sério? R: Sempre bem! Até uma sopa de favas que eu nunca tinha feito! A minha mãe nunca fez sopa de favas. P: Então como é que sabia fazer? R: Sei que fiz com gosto porque a senhora que foi lá comer também era cozinheira e ela comeu muita sopa. Eu disse: “Nunca fiz nem nunca vi sopa de favas”, porque eu não usava muito. Elas punham favas em qualquer sopa, punham hortaliça e misturavam…. A minha mãe não misturava favas, ela não era muito amante de favas. P: E em Lisboa, como é que eram as suas condições de trabalho? Recebia algum dinheiro? R: Tinha muito más condições! Eu trabalhava com fogões de petróleo. A casa tinha um fogão daqueles grandes de lenha, mas o fogão não prestava, nem deitava fumo, nem nada. Então pus os fogões em cima do outro a ferro e ali cozinhei, sempre. Não precisei de mais. Quando precisava de assar coisas no forno tinha o padeiro ao pé. Ia ao padeiro e assava lá. P: E teve algum acidente na cozinha? R: Sim! Num dia apareceu-me um grupo que joga à bola e foi lá com o “Águias do Oriente”, lá no sítio onde eu estava, então eles encomendaram-me bifes para todos, e eu assim, “mas como é que eu vou fritar batatas para tanta gente?”. Eram os dois grupos, eram 22 pessoas, mas era mais porque depois há suplentes e pronto, toda a gente vem atrás da equipa. E depois queimei-me! Fui ajeitar o fogão, a frigideira untou-se e queimei esta mão toda aqui acima. Ainda quando está frio nota-se. É uma mancha branquinha, esta mancha toda. Eu fui ao Hospital de São José. P: Teve de fazer alguma cirurgia? R: Não, aquilo curou sozinho. P: Como é que eles fizeram o curativo? R: Sei lá, não fizeram, até se nota ainda, chega cá acima. P: E teve mais alguma com o fogão ou com o forno? R: Ah, isso foi em C. Uma explosão de gás! Eu tinha feito bacalhau à Gomes de Sá, pus no forno, e ao fechar o forno, o forno apagou-se, e eu não reparei, quando eu comecei a tocar disse: “Então, mas isto está frio?” Vou a abrir aquilo e tinha os lumes todos acessos em cima e explodiu tudo. Eu caio para o chão… não caí mesmo no chão porque as cozinhas eram sempre pequeninas. Bati contra a porta. Os vidros da cozinha foram parar à rua e ficavam lá no fundo, mas foram parar à rua e eu sei lá… tanto chiqueiro, que eu nunca tinha visto tanto chiqueiro! Como é que o fogão tinha acumulado tanta porcaria? E estava sempre muito limpinho, mas eu não sei realmente onde é que acumulou tanto lixo. Foi porque então, o fogão ficou todo desmontado! O meu marido tinha ido para a praça, e eu, claro, fiquei na cozinha. Tinha batatas a cozer num tacho. Essa foi o que eu tive mais sorte. Tinha um tacho grande com dourada em lume brando e tinha batatas a cozer, e tinha a sopa, também ao lume. E então o meu marido chegou lá à cozinha, que ele tinha ido para a praça. P: E ia buscar comida para cozinhar? R: Pois! Peixe, carne. P: Pois era sempre tudo fresco? R: Sempre! Tudo fresco, era na altura, como é que aquilo se chama? A Ribeira! Iam para a Ribeira. E quando ele chegou ao pé de mim as pessoas já tinham dado conta porque havia uma barbearia ao lado. Então os barbeiros o que é que fizeram? Com medo de ele ficar assim, chegar ali de surpresa, ficaram à espera dele quando saiu do barco “olha, passou-se isto assim, assim…” P: Mas quando ele chegou lá já tinham tratado do assunto? R: Sim, e depois teve que se fechar as portas. Aquilo era só lixo, eram os vidros, porque aquilo era tudo envidraçado, tinha umas redes também, que ficaram todas soltas. Isso é que foi uma explosão de gás, só visto! Então estavam lá dois clientes e um deles alevantou-se. P: E foi-se embora logo? Não chamou ajuda? R: Foi-se embora logo! E não chamou. O único que me ajudou foi o empregado. Começou a puxar-me, foi pela camisola. Ele não sabia o que é que havia de fazer, até ficou pior que eu! Ele ficou branquinho mais cal que a parede! Não sabia o que é que havia de fazer e ainda disse: “vê lá se consegues tirar essas coisas aí de cima e desligares o fogão, porque eu já desliguei o gás!”, porque eu tinha a bilha lá dentro. Eu mesmo assim, quase deitada ainda consegui desligar o cabo a tempo, senão ia à vida. P: E não estava inconsciente? R: Não, nada! Depois o meu marido levou-me ao hospital, porque eu tinha-me queimado! A minha sorte foi, que não foram tachos com gordura. Foi o das batatas cozidas, que era só água! Caiu mesmo aqui, mas o médico tratou de mim com o seu tempo e disse-me: “teve muita sorte que podia ter ficado com o seu peito colado!”. Por causa dos ossos. Eu apanhei assim umas queimadurazitas não é, mas não eram pequenas! P: E a D. Maria só estava na cozinha ou também ia servir? R: Às vezes ia, como aquilo era assim uma coisa pequena, como não era assim uma coisa grande. P: Havia mais intimidade com o cliente? R: Sim! Era uma coisa mais familiar, ia lá pessoal da L. comer ao almoço. Ao jantar, eu não tinha horas. Depois, na altura em que fecharam as casas daquelas mulheres, iam muitas para a Costa da Caparica, e claro depois vinham às tantas, aquilo tinha licença até às duas horas da manhã. Tínhamos lá até às duas horas. Eu, quando o serviço estava despachado e via que tinha a cozinha arrumada, ia-me embora. A essa hora eram eles que faziam. P: Quem eram eles? R: Era o meu marido e outro que estava ali. P: E os clientes eram mais amigos ou tinham um pouco de tudo? R: Sim, tínhamos muitos amigos. P: Que já conheciam o espaço, a comida…? R: Pois, exatamente. E foram mesmo os clientes é que pediram para eu ficar, porque o meu marido tinha ficado sem empregada, tinha a empregada a levar o saco cheio. Realmente estavas a dizer e é verdade, há umas historiazinhas que realmente… P: Ah, mas conte! R: O meu marido andava desconfiado que ela andava a roubar, e andavam sempre a espreitar. Num dia, havia falta de bacalhau e é claro, despediu a empregada. Porque ela enchia o saco e ia guardar a uma casa que vendia hortaliças e assim, um lugar de hortaliças. Fiquei eu a trabalhar, mas o meu marido não gostava…porque eu estava grávida da mais velha, e é claro que ele achava que eu não devia de estar ali a trabalhar. Trabalhei sempre, mas nem ganhava nada! P: Não? R: Não, eu comia. Mas trabalhava muito. P: Mas não ganhava para estar ali a trabalhar? R: Era o meu marido que estava ali a tomar conta, ele já ganhava pouco, também… ainda quanto mais me dar o ordenado… não me dava. O meu marido é que foi culpado sempre, nem em caixa nem nada. O depois o guarda-livros, o guarda-livros era genro de um dos sócios. P: O que é que era um guarda-livros? R: Um guarda-livros é o que toma conta da escrita. P: O guarda-livros ia lá para quê? R: Ele ia lá quando, por exemplo, a gente sabia que estava lá a fiscalização. A gente telefonava para ele. Assim, ele aparecia, e alguém o atendia, por causa de ver as escritas das finanças, para ver se estava tudo em ordem e essa coisa toda. Depois ele é que respondia, ele sabia como é que aquilo andava, porque ele é que fazia a escrita toda. E depois quando foi para lá o outro, disse assim: “Ó A., mas você não tem a sua mulher à caixa?” e ele assim: “Pois não, nem nunca falei, nem com o teu sogro…”, “Ah, mas a gente vai pôr!”, e então pôs! Foi desde aí que eu comecei a receber alguma coisa, porque eu não recebia nada! E é isso que me está a valer agora, senão não tinha nada! P: Foi quando começou a descontar para a Segurança Social? R: Pois! Só depois dos 70 anos é que eles dão… que eles dão, mas a gente é que tem de andar a tratar disso e de papéis antes e assim. Sei lá os papeis que lá pôs…. Porque eles diziam que eu não tinha direito a nada, não tinha direito a nada, e um dia fui lá mais a minha filha, fomos lá, porque das outras vezes perdemos muito tempo ali. Mas consegui! Porque estava lá uma senhora a dizer assim: “O quê? Que não tem direito a nada? Toda a gente tem direito a uma pensão!”. De maneira que ela depois esteve a ver e diz: “Então claro! A sua mãe descontou 6 anos. P: Foi 6 em Lisboa ou depois quando veio para cá? R: Em Lisboa! Aqui eu nunca tive. P: Então nunca descontou cá, foi sempre por fora? R: Sim, descontei só em Lisboa, 6 anos. P: Eram tempos difíceis. R: Eram…. Depois mostrei à minha filha, à mais velha, que até estava em Inglaterra. Ela teve de tratar lá duns papéis, mandou para cá e depois não tinha direito a nada! Tinha sim senhor, elas é que não querem saber! P: E o seu marido também descontou? R: Não! O mal foi esse, porque depois ele recebia uma coisita de nada, também. Era 270, se eu não tivesse…e só consegui depois de ele morrer. Porque já tinha direito a 200€, e é o que eu recebo, porque o ordenado era pouco mais disso. Mas o meu marido, por exemplo, se ele estivesse vivo e eu estivesse a viver só da reforma do meu marido, já tínhamos morrido de fome! Ele recebia 270 ou que era. P: Isso aconteceu porque não tinham todos os papeis? R: Pois! O meu marido podia ter tido uma reforma boa porque começou a trabalhar aos 15 anos, na altura em que veio para Portugal. P: O seu marido era do estrangeiro? R: Era de Galiza. P: E como é que se conheceram? R: Porque eles nos dias de folga iam à casa do meu pai. E depois a gente começou a piscar o olho um ao outro. P: Então e ele falava português? R: Falava alguma coisa, arranhava. Mas também coitado, também o chateei bastante não é, que eu não percebia o que ele dizia, então era chata. Estava pior que agora, mas agora é surda. P: E depois conseguiu aprender espanhol? R: Não. P: Ele é que aprendeu português? R: Sim, ele é que aprendeu português. Ele só lidava com portugueses, mas lá paravam muitos espanhóis, lá na casa! Iam lá muitos almoçar, na sua folga pelo menos eles iam lá. P: E como é que comunicavam com eles? R: Haha… sei lá. A gente ainda entendia e fazíamos assim uns gestos para também tentar perceber não era. Mas a pronuncia nunca sai… eles têm muita coisa em português também! Falam muito parecido. Umas palavras têm mais uma letra, outras menos uma letra, mas é muito parecido. Porque é no norte de Espanha, na Galiza, é um sítio entre o Norte. Então o Presidente de lá… agora não me estou a lembrar do nome dele, que os nomes eu esqueço-me. P: O Presidente de onde? R: De Espanha! Antes do Rei Carlos, foi esse presidente que pagou os estudos todos ao Rei Carlos. O Rei Carlos ficou sem pai, era novo! Aquilo era reinado e depois o reinado passou a ser… O meu marido jogou muito à moeda com o Rei Carlos. O Rei Carlos passou por aqui, em Portugal. E ele, o meu marido, chegou a trabalhar, antes de estabelecer, trabalhou em boites também, à noite, e foi aí que ele o conheceu. Depois quando eles saíam, vinham cá para fora jogar às moedas. Então ele é da idade do meu marido. P: Então e ele ia lá ao seu restaurante? O Rei Carlos? R: Ao meu, não! P: Qual foi a pessoa mais importante que serviu? Foram lá pessoas importantes? R: Sim, foram! Iam lá advogados, por exemplo. P: Pois, eram pessoas assim mais da alta sociedade na altura, não é? R: É, mas eles também procuram onde é que era o mais barato e que seja bom! P: E o seu era a escolha mais barata? R: Sim, claro! Porque nos outros lados, nos restaurantes paga-se bem! Sempre foi assim. P: E o seu era mais tradicional? R: Era! Não estava como restaurante, estava como comidas e bebidas. P: Era estilo Snack Bar, agora, porque antigamente não sei como é que se chamava. R: Porque eu ainda estava solteira e depois juntei-me com ele, com o meu marido! Porque ele coitado, como ficou sem a cozinheira, telefonou-me logo para casa, pediu para o desenrascar e pronto lá vou eu, para o desenrascar. P: Mas ainda não namoravam nessa altura? R: Quando ele se estabeleceu? Já! Então ele estabeleceu-se em novembro, em janeiro fui para lá! Juntámo-nos, já não esperava outra coisa, eu namorava com ele há 6 anos. P: Ah foi? É engraçado ver porque as pessoas na altura nem namoravam, casavam logo e a D. Maria ainda namorou bastante tempo! R: Não era bem assim…. Havia namoros, a minha mãe também… acho que também namorou 6 anos. A minha irmã, por exemplo, namorou 9 anos! P: Antes de casar? R: Pois, então ela começou a namorar tinha 14 anos! Aliás, ainda não tinha bem os 14. P: Então e usava farda? R: Não! P: Então ia com a roupa normal? E o cabelo, ia apanhado? R: Não, isso a toca era obrigatória, tinha que usar! P: E os empregados também andavam com roupa normal ou tinham um avental? R: Tinham roupa normal. P: E não tinham um avental? Ou alguma coisa que os identificasse? R: Quando era preciso, tinha que se pôr. Eu sim, eu tinha, mas era meu! P: E cá em T. já tinha farda? R: Ah sim! Não tinha farda, mas os aventais eram da casa. Os aventais, por exemplo, numa casa que estive, na Boavista, eram da casa. Mas lá não estive assim muito tempo, porque eu ali nunca me senti cozinheira! A mulher metia-se em tudo, até houve um dia em que me estragou um tacho de polvo, de arroz de polvo. P: Mas quem era essa mulher? R: Era a mulher do patrão. P: E ela fazia o quê lá? R: Olhe, era tudo o que estava bom, era ela que fazia…, mas na verdade não fazia nada. Mas para estragar ela estragava. Mas depois quem ouvia ralhar era eu, lá vinha o patrão…Ela meteu-se enquanto eu fazia o polvo. a mulher esfregava aquilo com quilos de sal, ainda por cima como era polvo fresco, até deita aquela goma…não era preciso isso. O polvo tem de ser bem batido e lavado, com água e sal, se estiver realmente muito coiso, mas não era assim! Não pode deixar ao sal, a gente sabe logo quando o polvo está salgado, quando vamos fazer a comida a gente põe o sal, nem vai provando. Eu, é raro provar, mesmo cá em casa, é raro provar a comida. P: Então e como é que sabe que está bom? R: Eu sei, mais ou menos. Se ficasse insonso tinha remédio, agora se ficar salgado, ficava logo mal. P: Bebe-se água. R: Exatamente! Eu preferia que ficasse insonso que salgado. Qualquer coisa punha-se sempre um bocadinho de sal para acrescentar. P: E teve quanto tempo nessa churrascaria? R: Não sei bem, mas aí uns 4 meses ou qualquer coisa. P: E foi o seu patrão que a mandou embora ou foi a D. Maria que quis ir? R: Fui eu que me despedi. Porque houve uma vez que ouvi uma coisa. O meu marido, ele vinha-me pôr ao churrasco, e houve uma vez que ouvi uma conversa e não gostei. E depois chamei o Sr. Vítor, ele tinha um talho também ao pé, e disse: “Ó senhor Vítor, eu estou aqui a mais, porque a sua senhora afinal é que é aqui a cozinheira, porque eu aqui não me sinto cozinheira. Se a comida está boa, é ela que faz, se a comida está má, sou eu! E ela mete a colher em todo o lado! Portanto, senhor, eu vou-me embora!”. Mas foi maravilhoso, ele realmente concordou comigo. P: E tinha que idade? R: Eu tinha 62 anos, foi em 2005, mais ou menos, foi antes de trabalhar em T. Porque essa coisa de salgar muito a comida, mexeu muito comigo! Até pensei: “Não vou é trabalhar em mais lado nenhum!”. P: Então foi primeiro para Torres Vedras e só depois é que foi para lá? R: Foi, porque aquela casa era de um primo meu que abriu. P: E como é que correu lá? R: Ah correu bem, depois foi para lá a sogra dele. Eles depois começavam-se a cansar daquilo porque muita gente não gosta de trabalhar. Não gosta porque é aos sábados, aos domingos, aos feriados… e mesmo assim eles fechavam muito. E na hora do almoço, em vez de estarem ali a tomar conta, não. Saíam e iam tomar café com esse casal. Não estando o patrão, ficava eu e a sogra dele. P: A servir e a cozinhar? R: Pois, “Eu faço ali trabalhos que não me pertenciam a mim. Eu não pertenço a arrumar loiça e a lavar roupa!” Porque também se lavava lá roupa, os panos de cozinha. “O meu serviço aqui é de chef! Portanto não tenho nada de estar aqui a fazer limpezas.” Porque às vezes saía às cinco ou mais, da tarde. Eles não davam jantares, só almoços. Ela num dia até levou a mal e disse: “então olhe a porta da rua é serventia da casa!”. E eu assim: “Olhe, nem mais nem menos, amanhã já não venho aqui trabalhar!”. Então para estar a ouvir as coisas que ela dizia e mandava para as pessoas… E depois a confiança que ela dava aos clientes… A gente tem de saber-se comportar como deve ser. P: E nesse, de T., quem é que recebia mais? As mulheres ou os homens? Ou não havia essa diferença? R: Como não havia mais empregados, era só eu, ele e a sogra dele que foi para lá muito depois, então não havia essa diferença. P: E nunca se sentiu muito cansada? R: Sim! Pois por isso é que eu me afastei. Pois claro, eu também já não era criança, já tinha 60 e tal anos. P: E as pessoas pediam muito rigor, eram muito exigentes? R: Não eram assim muito, não tinha razão de queixa. Mas quem os aturava eram eles. Vendíamos também muita comida para fora. P: Mas as pessoas pediam para levar para casa? R: Era! P: Quando é que surgiu isso? Já em Lisboa também fazia? R: Às vezes sim! Mas era mais raro. Quando estive em Lisboa, na casa do meu pai, aqueciam-se muitas panelinhas porque pediam. P: E a D. Maria falava muito com os clientes? R: Sim! Sempre lá ia um perguntar isto ou aquilo. P: Nunca teve uma queixa? R: Tive! Tive uma queixa uma vez, apareceu uma baratinha na comida! Estava nas ervilhas. P: E o que é que fez? R: Olhe, foi a uma senhora que trabalhava na U. E ela compreendeu, entendeu como é que podia ter sido. P: E a senhora não se chateou? R: Não, ela não ficou chateada, ela continuou. P: Ah ainda bem! E lá em Lisboa, não teve assim nenhuma queixa? R: Em Lisboa também foi por causa de uma barata, a gente ia levar os tabuleiros para assar o peixe e assim. Mas claro, nos padeiros é normal, não há padeiro nenhum que não tenha baratas. Então em Lisboa, na cidade velha! Na moradia, tinha lá baratas…ah credo! Aquilo até tinha umas bombas, é assim que se chama. E um dia, o meu pai à noite fez aquilo, parecia uma chuva! Mas assim, daquelas grandes! Foi onde eu conheci isso, que eu não sabia o que eram baratas. E percevejos, que eu conheci, em Lisboa! Aquelas casas velhas, em Lisboa, aquilo estava tudo minado. P: Mas o seu restaurante não tinha nada disso? R: Mais ou menos. De vez em quando apareciam percevejos, mas só se viam à noite que era quando andavam de um lado para o outro. Houve uma vez que o meu irmão foi picado e tinha o corpo todo cheio de borbulhas, e tive de lavar o colchão com petróleo, que era como se lavava na altura. Tinha havido uma limpeza porque o meu pai depois só abriu quando fez umas obras. Realmente, eu parece que tenho uma vida muita comprida. P: Então e quem é que lavava os copos e a loiça? Tinham um empregado para isso? R: Não! Lavávamos a gente nos intervalos. Quando era preciso, se não tivéssemos, a gente tinha de lavar à pressa. Um dia a casa foi assaltada, a do meu pai! Quando passa o vento, as portas da cozinha estavam abertas, tinha um guarda vento, que é aqueles portitos que antigamente se usava, de madeira. Aquilo tinha lá um degrau onde tínhamos uma parreira grande de vinho, e ao subir as escadas, estava lá uma camisola cheia de vinho, e eu: “Ah!” O meu pai coitado levantou-se, porque na altura era eu mais ele, a minha irmã ficou cá com a minha mãe, aqui na P. P: Então, e no assalto, o que é que levaram? R: Levaram a registadora. P: Com o dinheiro? R: Era com tabaco. Dinheiro não havia lá muito, o meu pai era raro deixar o dinheiro lá. Só tinha uns trocozitos, deixava-se lá para ter trocos. Mas, às vezes, as pessoas não podiam pagar e então deixavam relógios, coisas assim. O meu pai, coitado, é que teve de pagar o concerto da registadora, porque eles foram metê-la dentro de um poço. Ainda gastou 900 escudos que naquele tempo era muito dinheiro. P: E como é que aprenderam a troca da moeda? R: Fomo-nos habituando. Eu vim para cá (P.) em 1982, que foi quando a gente veio para cá. P: E quando foi trabalhar, ninguém lhe ensinou como é que se fazia? R: Não! Aprendi à minha custa. Ia buscar mais ou menos aquilo que via a cozinheira fazer, quando o meu pai se estabeleceu. Ela era boa cozinheira, depois estragou-se foi com o amante… Esse, claro não fazia nada… chulozito… começava lá a tocar viola. Começou a levá-la para os bailes e ela ficou toda contente com aquilo. P: Na altura, usavam saia ou eram calças? R: Já se usavam calças, mas usava-se mais saia. Calça, nem toda a gente. Eu, quando comecei a usar calças, já morava em C. P: E começou a usar por ser mais prático? R: Não sei… o meu marido também gostava mais de me ver de calças. Mas eu mesmo assim ainda usava saias. P: Para finalizar, acabou a sua carreira por já estar cansada? R: Acabei porque aquilo fechou e eu não me interessei mais. Nunca mais, eu nunca mais. Cozinhava para o meu marido, às vezes ele tinha saudade de certas comidas... Depois de casados, trabalhámos quase sempre juntos, e quando eu ia, ele ia também! Mas, quer dizer, ele já estava reformado. Ele ia-me levar, depois vinha-me buscar, e depois só não ia mais vezes porque não tinha paciência, então andava de bicicleta, ele andava por lá de bicicleta, lá em S. Áudio 2 (12 min e 58 segundos) P: Diga-me lá como é que foi o seu casamento? R: Já estava junta e foi na Conservatória. Depois fomos para a Quinta de S. comer. Estava já tudo encomendado: coelho à caçador, e fui bem servida. Estavam lá pessoas conhecidas do meu marido. Houve dança… P: Então e para não fechar o estabelecimento, como é que fez? R: Nesse dia? Porque a gente fechávamos às quartas-feiras, era o dia de folga. Depois quando a gente saímos do restaurante, apanhámos a camionete e fomos para Cacilhas, pela ponte que eu nunca tinha atravessado. P: Foi a primeira vez? R: Foi! Atravessei a ponte 25 de Abril que na altura era a Ponte de Salazar, e foi a minha lua de mel. Depois cheguei a casa, despi a roupa, vesti a roupa de trabalho e fui para o restaurante para adiantar o trabalho da véspera. Fazia cozido à quinta-feira. Era pôr sal nas carnes, deixar a loiça arranjada… Depois os empregados, quando chegavam é que punham a panela ao lume. Ali todo o serviço era adiantado. E às vezes eu chegava lá e eles já tinham quase tudo pronto, não era preciso fazer muito. P: Era engraçado como é que cozinhava tanto em dois bicos! R: Dois bicos e 4 fogões de petróleo! Havia vezes em que era em todo o lado! Onde eu trabalhei com um fogão bom foi na B. Esse é que era um fogão comercial. Até me custava chegar ao fim para o limpar, porque o fogão pertence à cozinheira limpar. P: Nos tempos livres em que não trabalhavam, iam jogar à bola? R: Nos domingos eles iam jogar à bola, eram um grupo, o “Á.”. P: Então nos tempos livres vocês também aproveitavam todos juntos. R: Era! Eu gostei muito de estar lá! P: E nunca foi ao seu restaurante alguém da PIDE? R: Não! Havia o quartel deles lá ao pé, ao pé da igreja! Foram lá uma vez. A minha mãe, coitada, cortou-se. Mas eles foram comer fora de horas. Já estava a porta fechada, bateram à porta, e eu assim: “Mas os senhores sabem que eu não posso fazer isso!”, e depois houve um que esteve a fazer o curativo e tudo à minha mãe, porque ela deu um golpe grande, não sabia trabalhar com facas… Eles eram chatos, muito chatos, parece que não queriam sair de lá! P: Mas acha que estavam ali à procura de alguma informação? R: Não, não. Eles foram só comer. Comeram bifes, àquela hora o que é que eu ia fazer… A gente fechávamos à meia-noite. P: E abriam a que horas? R: Entre as 8h e as 9h. Eu cheguei a trabalhar lá sozinha com o meu pai! P: Então serviam pequenos-almoços? R: Sim! P: Então e almoçavam e jantavam antes de começar a servir os clientes? R: Era depois. Eu às vezes nem almoçava… Isto era assim, eu ia primeiro pôr as coisas todas a jeito, e depois é que servia e só a seguir comia. P: O que é que é a Carta do sindicato? É uma identificação do trabalho? R: É, é isso. A gente quando sai de uma casa tem de mostrar ao sindicato. Se houver alguma coisa com os patrões a gente vai ao sindicato e o sindicato é que gere para a gente receber. P: E recebiam o dinheiro? R: Claro! Se a gente saía eles tinham de nos dar o dinheiro dessa altura. Saía com razão e pagavam a indeminização. P: E assinavam um contrato? R: Não, era tudo por palavra. Nós íamos buscar a carta do Sindicato em Lisboa, mesmo no centro, ao pé do teatro Nacional. P: E tinham de pagar alguma coisa para fazer a carta? R: Não, acho que não. A gente tinha de pagar alguma coisa, mas não era muito, tínhamos era de apresentar a carta lá todos os anos. Não chega servir…