Histórias de vida
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"A gente chamava-lhe os burgueses" - Entrevista a Rosa Maria
Rosa Maria: Eu nasci em Marinhais, na freguesia de Marinhais, concelho de Salvaterra de Magos. Vivíamos lá todos e eu nasci a 2 de Abril de 1938. Éramos quatro. Eu era a mais nova deles todos. Quer dizer, era a mais nova porque, quando eu tinha 11 anos, a minha mãe teve outro, mas nasceu morto. Por isso fui sempre a mais nova. Éramos três raparigas e um rapaz. Tinha a mais velha com 20 anos e eu tinha 13. Depois a minha mãe morreu e nós ficámos com o meu pai. P: E em pequena, na sua aldeia, o que é que os seus pais faziam? Rosa Maria: Trabalhavam no campo. Os dois. A minha mãe trabalhava no arroz, nas vinhas e aquilo tudo. O meu pai ia para a madeira que era para cortar madeira. Andava por lá uns 15 dias e depois vinha a casa que era para trazer qualquer coisita, porque apanhavam poucochinho. Apanhavam 10$00 por dia. Às vezes não havia dinheiro para comer e então quem ajudava a gente eram os meus avós, que viviam perto e tinham um bocado de terra. E a minha mãe por vezes também semeava batatas…era uma fazenda. P: E a casa, lembra-se como era? Rosa Maria: Oh filha, a casa era feita de…naquela altura chamava-se adobe, feita com barro. Era feita com barro e depois eram caiadas. Aquilo era tudo caiadinho. O chão era de barro e depois alisava-se. Aí até aos 12 anos, a gente dormia numa esteira que era no chão. Usavam-se aquelas esteiras que agora já não se vêem muito. Punha-se uma manta por cima, outra por baixo, e era assim que a gente dormia. P: Passava-se um bocadinho de frio… Rosa Maria: Dormíamos os quatro juntinhos que era para não termos frio. E depois, para lavar a roupa, a minha mãe, no inverno, lavava a roupa que era para enxugar à lareira. A gente quando ia vestir a roupa cheirava a fumo… (risos) Mas, como éramos miúdos, a gente queria era ter a roupa lavada…cheirasse a fumo ou não cheirasse. Entretanto, as coisas foram-se modernizando e depois a gente já estava melhor. P: Na sua aldeia todos viviam assim? Rosa Maria: Havia muita gente a passar necessidades, mas também havia alguns que viviam bem, que a gente chamava-lhe os burgueses, que eram os ricos, esses viviam bem. Agora a classe pobre era aquela que passava mais miséria. P: Quantos burgueses é que lá havia? Rosa Maria: Ai havia…eram aqueles que tinham aqueles terrenos. Tinham os terrenos de vinha, terrenos de arroz e andávamos a trabalhar para eles. Eu também trabalhei muito no campo. (e foi à escola?) A minha escola foi aos 9 anos ir trabalhar. Aos 7 anos ia para casa das minhas tias tomar conta dos meus primos…depois aos 9 anos comecei a trabalhar no campo. Íamos para o arroz e fazer outros trabalhos. (Nem os seus irmãos foram à escola?) O meu irmão foi. Agora as minhas irmãs, não. Não, porque antigamente eles diziam que as filhas das mulheres não precisavam ir para a escola, porque elas depois queriam era aprender a ler para escrever cartas para os rapazes. Era o que diziam. A nossa escola era o trabalho. P: E o trabalho era longe de casa? Ganhava alguma coisa? Rosa Maria: Ganhava 10$00 por dia. Era longe. Às vezes estávamos 15 dias sem ir a casa. Depois, as pessoas ficavam num barracão grande, a nossa cama era palha. Tínhamos a palha. A gente punha uma manta por baixo e outra por cima que era para termos mais manta e a gente não ter frio. Para a gente se tapar. A gente cada um tinha a sua, a gente chamava-lhe “camaradas” (camaratas) e depois para fazer o comer era assim em conjunto. Juntávamo-nos assim uns 3 ou 4, juntávamos todo o farnel que levávamos e depois assim é que a gente fazia as refeições. Comi muita couvinha com batatas sem nunca ferver. Chovia, a lenha estava molhada. A gente só tinha uma hora para almoço, de maneira que a gente às vezes começava a chover e tínhamos que comer umas coisinhas no barro…era quase sempre a mesma coisa…até se comia mais vezes do que a gente come agora…eh,…a gente começava a trabalhar ao nascer do sol, mas já tínhamos bebido o café, que era um bocado de café e um bocado de pão…e era até as sopas do café que a gente comia. Depois íamos trabalhar até às dez e meia… Às dez e meia íamos almoçar as tais couves com batatas, com pão, um bocadinho de toucinho, aquele toucinho já amarelo…e era o que a gente comia. Depois era o jantar, que agora chamam-lhe a merenda, o lanche, vá lá. E então era ao jantar que a gente comia batatas cozidas com sardinhas daquelas amarelas sem cabeça, porque era uma sardinha para dois. Era uma sardinha partida para dois e depois era à noite que a gente chamava-lhe a ceia. A ceia que era outra vez a sopa. E era assim que a gente aguentava. Levávamos o pão de milho ao princípio da semana e íamos comendo. P: E chegavam de carroça ou como é que era? Rosa Maria: De carroça? A pé!... Não sei se conhece a minha terra, que é no Ribatejo…Em Salvaterra de Magos. A gente vinha para Samora Correia…a pé…à segunda-feira. A pé para Samora Correia. E depois voltávamos e vínhamos também a pé para casa. Depois mais tarde é que começou a haver esses cavalos… P: Tinham roupa, calçado? Rosa Maria: Nada! A minha mãe que Deus tem morreu quando eu tinha 13 anos. Morreu cá em Lisboa. Eu para vir ao funeral da minha mãe tive que trazer uns sapatos de uma tia minha, que eu até nunca tinha tido sapatos. Pronto, às vezes a sola dos nossos pés parecia cortiça, a gente andava sempre descalços, no frio, no gelo… P: E como eram os tempos de descanso, lembra-se? Rosa Maria: A gente chegava ao sábado a casa, depois comíamos qualquer coisa e íamos trabalhar para a fazenda. E depois ao domingo levantávamo-nos de manhã e íamos para a fazenda até ao meio-dia. Ao meio-dia almoçávamos. E depois é que íamos lavar a roupa e pronto para depois vestirmos novamente e termos roupa para segunda-feira…que a gente em geral só tinha uma lavagem de roupa. P: E não havia bailaricos? Rosa Maria: Não, havia. Isso aos bailaricos a gente ia sempre aos bailaricos (risos)…eu cheguei a ir para o baile, lavar a roupa e depois ir trabalhar. (onde era?) Era lá… aquilo não tinha um sítio certo. Por exemplo, havia lá um senhor que tocava acordeão e ele tinha assim uma casa de comércio e depois ele fazia lá o baile. As raparigas, ao domingo, iam lavar a roupa, mas depois íamos à Praça, à nossa Praça que era onde se juntavam as raparigas e os rapazes…e homens, e mulheres, que queria arranjar trabalho. Ia um capataz e uma capataza. O capataz dava ordem à capataza para ir buscar tantas mulheres. E ele ia falar aos homens. Depois íamos trabalhar. A gente depois sabia onde era o baile e combinávamos umas com as outras. A gente ia e quando chegava a casa o meu pai já estava assim…. coiso (faz o gesto com o polegar simbolizando alguém que já estava alcoolizado) e depois a gente pedia se o meu pai deixava ir a gente ao baile e ele dizia: “Não, hoje não vai ninguém ao baile…” “Oh pai, deixe lá ir…” -“Então vocês vão mas vai o Toino (o irmão) com vocês.” Mas à meia-noite quero-vos aqui em casa, que o baile começava assim às nove e meia. “Tá bem”. Mas a gente chegava assim às 5, 6 horas da manhã. P: Então era até tarde… Rosa Maria: E de outras vezes, era ele que vinha com a gente. Mas ele começava e os outros a puxarem por ele “Vai mais uma pinguita?” E via o meu pai assim borracho e a gente já sabia que podia ficar até à hora que quisesse. Mas era tudo com respeito. Eu acho, a meu ver, que era tudo com respeito, os rapazes e as raparigas. Depois abriram um cinema. No cinema davam o filme e depois no fim era o baile. A gente pagava 5$00, depois íamos ver o cinema e depois era o baile. O cinema desarmava, a gente ajudava a desarmar a plateia, tirávamos as cadeiras e depois era baile até às quinhentas. (e lembra-se dos filmes que ia lá ver?) Olhe, eu não me lembro…Um que eu achei muita piada chamava-se “Em casa manda ela”. Depois vi foi uns filmes portugueses, que levavam lá os filmes portugueses para a gente ver. Da época, era “Sol e Toiros”; “O sol no Ribatejo”, “O Costa do Castelo”. Todos esses passavam lá no cinema. E antes de haver o cinema, iam lá aquelas barracas como o circo, e passavam lá os filmes também. Eu, a primeira vez que fui ao cinema ainda a minha mãe que Deus tem era viva, ia descalça. E então, para eu entrar no cinema, a minha mãe tinha um xaile. E então ela tapou-me com o xaile e entrei assim com ela no xaile para ver o cinema porque eu não tinha idade para ver o filme. Foi as “Capas Negras”. Nunca mais me esqueceu. Das capas negras…Iam todos, naquela altura parece que pagavam 25 tostões por pessoa, parece que era, mas os miúdos não pagavam. P: E era difícil com o seu pai quando bebia? Rosa Maria: Sim, era, porque ela (a mãe) se calava e ele batia-lhe porque ela o dava ao desprezo. Se ele falava e ela dizia alguma coisa ele batia-lhe porque ela não o dava ao respeito. Faltava-lhe ao respeito e ela coitadinha…e depois com a minha irmã mais velha também era a mesma coisa… (vai baixando a voz até ficar inaudível). P: E falou, há pouco, numa capataza e num capataz… Rosa Maria: Era, portanto, era os que mandavam. Os patrões arranjavam aqueles homens e aquela mulher. O capataz era para falar aos homens. A capataza era para falar às mulheres. A gente ia trabalhar e a capataza dizia: “Amanhã de manhã, quando chegarem ao trabalho, vocês vão para aqui e vocês vão para acolá. Depois ela é que ia mandar na gente.” P: E mandava todo o dia? Rosa Maria: Todo o dia. Toda a semana. P: E ralhava? Rosa Maria: Ai pois não! Ai não que não ralhava!...Eu uma vez andava a cavar terra para arroz e estava dentro d’água e por mandar a enxada e a água salpicar para cima de uma colega minha, ela andava à minha frente e quase me queriam mandar embora. (e não lhe queria pagar?) Não, não era questão de pagar. Naquela altura era assim. As pessoas, por tudo e por nada, falavam e diziam que nós não prestávamos para trabalhar. (e não podiam responder?) Não, a gente não podia dizer nadinha. Se a gente dissesse alguma coisa, naquela semana ainda chegávamos ao fim, mas depois para aquele patrão a gente nunca mais trabalhava. P: Então andou nessa vida de trabalhar no campo… Rosa Maria: Desde os 9 até aos 18. Ainda não tinha bem 18 anos. (então dava para sustentar a família…) Não dava muito bem, filha…Porque quando o meu pai me pôs fora de casa, porque o meu pai pôs-me fora de casa…eh…eu tinha andado a trabalhar sozinha porque nessa altura o meu pai não tinha trabalho…e eu andei a trabalhar toda a semana a apanhar vides, sabe, nas vinhas, e então naquela altura cai o gelo, era inverno, e o frio era tanto que eu já não sentia as mãos…o capataz fazia uma fogueira para a gente se vir aquecer e eu nunca fui à fogueira…e eu fazia assim nas costas para as mãos aquecerem (faz o gesto de esfregar no corpo)…e então cheguei a casa ao sábado…10$00 por dia…60$00. E o meu pai foi para a taberna, uma taberna lá perto de minha casa, e o vizinho pediu-lhe se ele não tinha 50$00 para lhe emprestar. O meu pai dá-lhe os 50$00 a ele…e…ficou com 10$00 e gastou na taberna. Depois, a minha irmã pediu-me dinheiro para ir à mercearia, a gente lá não era a mercearia, era a loja…as lojas vendiam tudo, vendiam roupas, vendiam tudo. E eu disse, “Oh pai, dê-me lá dinheiro para a gente ir buscar…. o bacalhau e aquelas coisas que é para levar segunda-feira para o trabalho”. E ele disse “Ah, não tenho dinheiro…. Compra fiado.” Depois eu disse: “Então o que é que o pai fez ao dinheiro?” Ele tinha lá o dinheirinho todo! Aquilo ali a gente não podia mexer nada onde ele estava. Ele não me dava nenhum. Aquilo quando chegava ao fim-de-semana eu tinha que lho entregar. Ele a mim dava-me 2 tostões que era para eu comprar tremoços. Era o dinheiro que eu tinha por trabalhar. Era esse. “E então o que é que você fez ao dinheiro?”, perguntei ao meu pai. - “Ah, emprestei ali 50$00 ao rapaz. Emprestei ali ao C.”. - “Então pai, eu andei a trabalhar, vocês estiveram em casa e você foi dar o meu dinheiro, que eu ganhei, ao C.? Ele nunca mais lhe paga esse dinheiro. E agora o que é que eu compro? Então não vou trabalhar.” Ele deu-me uma tareia muito grande, mas eu refilei sempre. E depois eu disse: “Se você não me quer em casa diga-me que eu vou-me embora. Porque eu andar a trabalhar para você andar a beber copos, não. Está frio, e muitas vezes não há comida, chegar aqui com o dinheiro e você dá-lo a outro?...” Depois ele disse à minha irmã, “Pega nessa enxada e nesse xaile que está aí e vai levá-la à tua irmã.” A minha irmã já estava casada. Fui para casa da minha irmã. Inda demorava meia-horita a pé. Depois fiquei a viver com ela. Fiquei lá pouco tempo. Eu tinha que ganhar para comer e para me vestir e para me calçar. Só que depois a outra minha irmã casou e foi uma senhora que foi ao casamento da minha irmã, que era aqui perto (no Bairro Alto) e era prima do noivo. E estavam assim a falar: “Olha, se quiseres para ir para servir eu levo-te.” P: Antes de me contar como foi quando chegou a Lisboa, diga-me só como era para saber o que se passava no mundo…tinham rádio? Falavam sobre alguma coisa? Rosa Maria: A gente não sabia de nada…A gente não sabia nada! Só quem tinha rádio eram os ricos, a gente não tinha nada…nada de nada…agente ouvia falar de Lisboa porque havia pessoas que estavam cá e iam lá à terra e a gente depois é que ouvia alguma coisa, mas de governos eu nunca ouvi falar em nada. Só ouvi uma vez falar…o meu pai até foi preso, em Salvaterra, na GNR… que era não sei quê do Norton de Matos e depois o meu pai estava assim mais um grupo a falar e a gente chamava-lhe a camioneta preta. E veio a camioneta preta e levou-os …porque eles não queriam…estavam a fazer uma reunião, não sei quê, porque a gente não ouvia falar de nada. (mas tinham algum medo? Sabiam que não podiam falar de algumas coisas?) A gente não sabia de nada, filha! A gente não sabia se podia falar, a gente não ouvia dizer nada!...os outros é que sabiam, quem era os ricos é que sabia! O meu pai, naquele dia, estavam a falar…por causa de…devia ser por causa do Norton de Matos e qualquer coisa…e depois levaram-nos presos, porque a gente não sabia de nada. Eu só quando vim para Lisboa é que comecei a ouvir falar! Porque a gente ouvia falar no Salazar, não sei quê, mas a gente não sabia quem era o Salazar… P: Havia comboio por ali? Rosa Maria: Havia…havia uma estação perto. Agora já não há, mas havia comboios de…3 vezes por dia, ou 4… P: E quando havia doenças, iam ao Posto Médico? Rosa Maria: Havia posto médico aonde? Não havia posto médico em lado nenhum. Havia um médico que estava lá…quando havia qualquer coisa a gente ia lá. Pagava-se 15$00 por tudo. A primeira vez que fui ao médico tinha 18 anos (risos)… Havia farmácia, não é? havia essas coisas, mas o médico que era o Sr. G. era assim parecido, deixa lá ver… com o filho do Vítor Mendes, o Fernando Mendes…era muito gordo. Assim era aquele médico. E esse era o único que lá havia. Quando havia alguma coisa íamos chamá-lo a casa e ele lá ia no burro. P: E à missa? Não era costume? Rosa Maria: O meu pai não deixava a gente ir à missa. Só deixava ir ao dia de Natal e ao dia de Páscoa…de resto…não havia missa para ninguém. A missa era trabalhar na fazenda. O tempo que a gente tinha para ir à missa andávamos a trabalhar na fazenda. Não havia nada dessas coisas…. embora tivesse casado pela igreja e embora tivesse sido baptizado não era pessoa para… P: Então agora vamos falar da sua vinda para Lisboa… Rosa Maria: Havia uma senhora que morava aqui perto e que era de lá e a gente estava assim a falar e ela perguntou se eu queria vir para Lisboa servir. E eu perguntei à minha irmã mais velha, e disse “A ti Custódia disse que há lá uma senhora que queria uma criada…estás a ver, eu aqui não ganho nada de jeito…e eu vou, sempre ao fim do mês tenho aquele dinheirinho. São sempre 150$00…, mas como eu só ainda tinha 18 anos, o meu pai não me queria deixar…não me queria dar autorização. Porque eu só era maior aos 21. E ele disse, “Agora vais para Lisboa!… vais, mas é para casa porque agora a tua irmã casou-se e vais para casa para tomares conta do teu irmão.” E eu disse: “Eu para casa não vou. Nem que você me mate. Nem que você me mate eu vou para casa. E é agora mesmo. Vou para Lisboa.” E ele disse: “Eu vou buscar a Guarda (GNR).” “Vai buscar a Guarda e eu digo que o pai me pôs fora de casa.” E então o meu pai correu atrás de mim com uma enxada para me matar…e depois como eu refilei sempre foi quando ele me mandou para casa da mana. Por isso eu disse, “Eu não vou para casa” (em tom afirmativo) “Eu vou para Lisboa.” E depois vim. P: Veio sozinha? Rosa Maria: Vim com aquela senhora porque a irmã dela morava lá ao pé de mim. Era só quem eu conhecia, não conhecia mais ninguém. Não conhecia uma letra. Não conhecia ninguém, só conhecia aquela mulher. E daqui fui para o Bairro do Restelo. P: Chegou a Lisboa de comboio? Rosa Maria: Sim, vim de comboio até ao Rossio. Vim com aquela senhora. Dormi em casa dela e depois, no outro dia, ela foi-me levar à senhora onde eu ia servir que era professora primária. Era aqui na Calçada do Combro que a senhora era empregada doméstica. Depois ela levou-me e eu fui para a casa do Restelo. Cheguei lá, vinda da cidade, vinda da província, sempre trabalhei no campo, não sabia uma letra do tamanho de mim, não conhecia ninguém, não conhecia nada, entrar numa casa estranha, com 3 miúdos, ela professora, mas neurótica…os miúdos terríveis que eu tinha as minhas canelas todas pretas dos pontapés que eles me davam…chorei uma semana inteira, de dia e de noite. O meu quarto era numa arrecadação. Era um quarto de tamanho normal, não era muito grande, mas tinha o meu divã, tinha o sítio onde eu pus a minha malita da roupa, que eu trazia duas ordens de roupa (risos), não tinha mais nada… Tinha uma casita de banho para mim que era a sanita e o lavatório. P: O seu quarto ficava dentro da casa? Rosa Maria: Ficava, daquelas casinhas do Bairro do Restelo que era rés-do-chão e 1º andar. P: E não havia mais ninguém a servir? Rosa Maria: Não, era só eu. Eu tinha que limpar a casa, tinha que tomar conta dos miúdos e fazer o comer. Levantava-me às 6 da manhã…ainda não havia máquinas de lavar a roupa nem nada, e o tanque estava no quintal… P: E quando chegou a Lisboa, do que é que gostou? Andou a passear? Rosa Maria: Oh, não, naquela altura não. Porque eu já cá tinha vindo ao funeral da minha mãe. A minha mãe morreu aqui em São José e eu vim cá ao Alto de São João. Quer dizer, eu quando fui para o Bairro do Restelo, aquilo não era como está agora, aquilo ainda era muito campo. Agora é que está tudo cheio de casas. Ainda havia ali muitos campos, por isso eu ali ainda estava…mais ou menos…a casa tinha um quintal grande, eles tinham lá uma enxada e obrigavam-me a ir lá cavar o quintal, plantar couves, plantar alfaces, quer dizer, fazer a horta! Eu fazia horta. (Isso sabia bem, não era?) Pois, não me sabia bem era levantar-me às 6 da manhã no inverno para estar ali ao frio! P: E quando começou, ensinaram-lhe algumas regras? Rosa Maria: Sim, a senhora disse-me o que eu tinha para fazer, a que horas é que tinha que me levantar, e depois só me deitava quando acabava o serviço. À noite é que passava a ferro…às vezes era uma hora da manhã e eu ainda estava a pé. Depois de manhã dava-lhe o pequeno-almoço e ele ia para o escritório, e ela depois saía para a escola e eu ficava com os miúdos. Mas os miúdos eram muita’ maus. Eu fechava-lhes a porta à chave, aquilo era rés-do-chão e primeiro andar, e eles saltavam-me pela janela…eu ia a correr atrás deles até à praia de Algés… P: E eles eram de que idade? Rosa Maria: Quando eu lá cheguei tinha o mais velho que tinha 6, depois o outro tinha 4, e depois o outro tinha 3. Eram assim todos seguidinhos. Entretanto, a miúda foi para a escola e eu queria vir-me embora, ficava lá sozinha. Um dia a patroa chegou lá a casa e eu disse: “Eu quero ir-me embora.” – “Ah, não te vais embora nada, não te vais embora nada…eu vou dizer à D. Custódia. Tu não te vais embora.” E eu disse: “Quero-me ir embora.” Porque lá ao pé estavam uns vizinhos que eram da minha terra e eu, entretanto, puxei conversa com a criada dele. Porque esse senhor conhecia o meu avô. P: Porque tinha muito serviço? Rosa Maria: Pois…era a cozinheira da casa, era a empregada de limpeza…Chamava-se naquela altura “criada para todo o serviço”. Pois…(risos) P: E disse que a patroa era um bocadinho “neurótica”… Não lhe ensinou a fazer as coisas, ou ainda tentou ensinar? Rosa Maria: Ela não sabia fazer nada!...Ela, a primeira vez, quando se casou, que foi fazer o comer, pôs um quilo de arroz dentro de um tacho pequenino, e então ela disse-me “Olha, quando fores fazer arroz não ponhas num tacho pequeno que eu uma vez fui fazer arroz e o arroz não coube lá dentro”. Claro, aquilo não cabia lá… P: E servia à mesa? Rosa Maria: Ah, para servir à mesa tinha de ser de bata preta, aventalinho branco e a touca para a cabeça também era branca e o punho branco. (Em que dias vestia a farda?) Era só quando eles recebiam …e era tão ricos ou tão pobres que me pagavam ao fim do mês, recebiam e pagavam-me, e quando estávamos a chegar ali ao fim do mês, já me estavam a pedir o ordenado (silêncio prolongado). (Pagavam-me 150$00, mas quando era ali para o dia 20 e pouco já me estavam a pedir o ordenado. Depois, ao fim do mês pagavam-me o que me deviam e pagavam-me o ordenado e depois no mês seguinte já me estavam outra vez a pedir o dinheiro. Depois um dia eu disse: Já não quero estar mais nesta casa que eu não estou para aturar malucos. Quer dizer, eu vim da terra que era para não aturar o meu pai que era bêbado e agora vim para aqui aturar uma maluca, por isso vou-me embora. E eles: “Não vais e não vais e não vais”, que ela não queria que eu me fosse dali embora. Eu, entretanto, telefonei para esta senhora e disse: “Oh Custódia, eu quero ir-me embora porque se passou isto assim e assim.” (Tinha-se passado alguma coisa?) “a patroa atirou-me com uma faca e eu não quero cá ficar. Eu quero ir-me embora.” - “E agora como é que a gente vai fazer para tu te ires embora?”- “Eu arranjo, não te preocupes que eu arranjo uma maneira de eu me ir embora.” Quando ela chegou eu estava a chorar: “Que é que tens?” “Eu tenho que ir para a terra.” “Tens que ir para a terra porquê?” “Tenho a minha avó muito mal e eu tenho que ir para a terra para tomar conta dela, que as minhas irmãs não podem ir nestes dias.” Então, e quanto tempo é que lá vais estar? “Vou lá estar até a minha avó estar melhor. Se quiser telefonar para a Custódia, pode telefonar-lhe para saber.” Claro que eu já tinha combinado com a Custódia. E eu então vim. Vim, mas não trouxe outra coisa para além da roupa que tinha e mais uma ordenha de roupa que ela não me deixou trazer mais nada de meu. Eu cheguei aqui e já esta senhora tinha outra casa para eu ir servir. Depois fui servir para casa de outra professora. P: Então nessa primeira casa tratavam-na mal? Não tinha ligação aos miúdos? Rosa Maria: Não, eu dos miúdos gostava muito. A miúda era muito minha amiga. (ficava com eles a maior parte do tempo ….). Era o dia inteiro. (E eles consigo não tinham essa ligação?) Os rapazes não, mas a miúda era mais velha e era muito minha amiga. Ela às vezes dizia: não ralhes com a Maria que ela chora. P: E contava-lhes coisas? Rosa Maria: Pois, começava-lhes a contar histórias. Inventava-as, e depois cantava aquelas cantigas que havia lá na terra. A lagarto pintado/quem te pintou/Foi uma velha/que aqui passou/depois no tempo da eira/fazia poeira/e depois eu puxava-lhes uma orelha e depois dizia: Puxa lagarto/Por essa orelha!... Sentavam-se ali ao pé de mim e depois estava ali um bocadito, depois fartavam-se… P: E sem ser essa vez violenta com a faca, que contou, o patrão também ralhava? Rosa Maria: O Patrão não. O patrão só ralhou comigo uma vez porque eu bati no filho. E ele não gostou. Ele chamou e perguntou: “Então Maria, tu bateste ao Pedrinho?” “Bati, sim senhor” “Então porquê?” “Olhe, está a ver como eu tenho as minhas canelas?” “Então o que é isso?” “Então pergunte lá aos meninos”. “Então é por causa disso?” “Pois é, eles dão-me pontapés e eu dei-lhe um estalo. Mas por causa disso eu vou-me embora”. E ele disse: Pronto, pronto, pronto…caso contado está meio perdoado.” (começa-se a rir…) Mas depois aconteceram aquelas coisas todas e eu resolvi ir-me embora. P: Quanto tempo é que ainda esteve nessa primeira casa? Rosa Maria: Seis meses. (E tinha folgas?) Tinha de 15 em 15 dias. Ao domingo, depois de fazer e dar o almoço, a gente tinha que deixar tudo arrumado e depois vinha aqui (Bairro Alto) a casa desta senhora. Eu, lá no Bairro do Restelo, tinha que apanhar o eléctrico. Podia apanhar para o Cais do Sodré. No princípio não sabia e apanhei o eléctrico até Santos. Vim de Santos a pé até à Igreja de Santa Catarina… Conhece? Fica aqui ao pé da Calçada do Combro. Ao pé da Igreja de Santa Catarina apanhei um táxi até à travessa…(começa a rir-se…) Quer dizer, estava a 5 minutos da casa da senhora, apanhei um táxi (ri a gargalhada solta) e o homem diz-me assim: “Onde é que você quer ir?” “Para a travessa…(?)” “E você sabe onde é que fica?” “Eu não! Se soubesse não me estava a meter de dentro do táxi.” “Olhe, não sei que voltas é que o homem andou a dar que eu paguei 7$50…(ri-se em silêncio)….Uma vez já tinha ido até ali porque ela trabalhava ali na Escola 22. Eu sabia ir até à Igreja de Santa Catarina, mas para aqui é que eu não era capaz de vir!... P: E lá no Restelo? Saía de vez em quando, por exemplo, para ir às compras? Rosa Maria: Ah, para ir às compras saía muitas vezes. Às 7 horas da manhã ia buscar o pão e o leite. E depois quando era assim outras coisas era eu que ia comprar. Ia à Praça de Algés… Onde ela me mandava ir comprar é que eu lhe comprava. Aos domingos, juntávamo-nos ali 4 raparigas, porque éramos ali todas da minha terra; éramos todas vizinhas, ali pertinho umas das outras. E então juntávamos ali todas na casa daquela senhora. Naquela altura foi quando apareceu a televisão. Ninguém tinha televisão. Mas ela tinha porque o…cunhado dela era da Pide (diz em tom de sussurro). E então ele tinha televisão. E então a gente ia para ali. Naquela altura davam aquelas músicas, aquele folclore, e a gente fazia um baile em casa da senhora.(ri-se) Ela gostava porque a casa ficava com muita gente e ela também tinha uma menina pequenina, a gente trazia-lhe um pacotinho de bolachas de baunilha que naquela altura custava 15 tostões…e ficávamos ali a dançar toda a tarde. Chegava a hora de a gente se ir embora, porque a gente tinha hora certa para entrar em casa…Às 7 horas tínhamos que estar em casa, fosse Verão, fosse Inverno, às 7 tinha que estar em casa para dar o jantar… P: As suas amizades eram essas raparigas com quem se encontrava… Rosa Maria: Era, era…(Não foi conhecendo outras pessoas?) Quer dizer, havia aquelas pessoas a quem eu dizia sempre “bom dia”, “boa tarde”… a padeira, eu conhecia a padeira. Conhecia o leiteiro, conhecia a peixeira onde ia buscar o peixe, essas coisas sim…, mas assim outras, ou outras criadas, mesmo assim nunca falei muito com elas! (Não? Nunca se encontravam para dizer mal dos patrões?) (ri-se): “Só dizia mal dos patrões aqui! (Bairro Alto) Aqui é que a gente contava, porque ela perguntava: “Então? Estás contente?” e eu dizia: “Eu não estou contente, eu quero vir-me embora.” Depois vim-me embora daquela porque ela arranjou-me para uma outra professora que vivia aqui na Calçada do Combro. Trabalhavam as duas pessoas na mesma Escola. Ora eu dizia assim para a D. Custódia: “Olhe lá, então se a D. Luísa está lá a trabalhar na mesma escola que a minha patroa, como é que a gente faz?” E depois se eu me encontro com ela? E ela assim: “Não te incomodes que não te vais encontrar com ela.” Então para lá fui, para aquela professora…já de idade. Também era má! O raio que a parta! Mas tinha um marido que era reformado. Era tenente, mas era reformado. Ali gostava de estar. Era um prédio que era de um professor… como é que se diz, aqueles professores mais altos..(universitário?) naquele tempo não lhe chamavam assim…(catedrático?) Isso mesmo, que era o Dr. A.... A casa era dele. Ele morava no 1º andar, e a gente morava no rés-do-chão. Como ele tinha muitas criadas, e havia também uma senhora que também tinha uma criada, depois a gente começou-se a dar bem ali umas com as outras. O Srº Dr. tinha a governanta, tinha a criada de quarto, a de mesa e tinha a cozinheira. Foi para aí que fui servir, para uma professora que morava no rés-do-chão. Estive lá dois anos e tal. Um dia, era na altura das sementeiras, fui para lá semear a terra…. e um dia chateou-se comigo e bateu-me! E eu não gostava. P: E porque é que ela se chateou consigo? Rosa Maria: Olhe já não me lembro bem o que é que foi. Sei que foi qualquer coisa que ela me disse e eu respondi-lhe. Isto as patroas não gostavam que a gente respondesse. Eles diziam aquilo que queriam e a gente tinha que ficar muito caladinhas. A gente tinha cá poucochinho, não podia falar… Eu sei que estava a lavar roupa, mas já não sei porque foi. E ela dá-me um estalo. E eu não gostei. “Que é isso?... A Senhora bateu-me?...” (silêncio prolongado). “Posso-lhe dizer uma coisa: a Senhora não leva também, não é que eu tenha medo de si. É por respeito. Porque a senhora tem idade de ser minha avó. Porque a minha avó nunca me bateu. E a senhora bateu-me. Então agora vou-me embora.” Agarrou-se a mim a chorar, a pedir-me desculpa, para eu não me ir embora…o sr. Tenente não estava lá. Mas o Sr. Tenente era uma pessoa que gostava muito de mim e eu gostava muito dele. Depois quando ele veio, lá me pediu, pediu…e fiquei ainda lá mais uns tempos. P: Mas para lhe bater…para chegar a esse ponto…era costume? Rosa Maria: Ela era um bocado fera. Ela tinha tido lá uma criada que tinha vindo de Viseu e veio para ali e sujeitou-se a muito. Batia-lhe muitas vezes. P: Havia muitas regras? Rosa Maria: À sexta e ao sábado eu já sabia que tinha que fazer limpeza à casa. Sexta tinha os quartos e a sala e ao sábado era a cozinha. Depois ao Domingo tinha a roupa e tinha de a pôr a serenar, a lavar…terça era para lavar a roupa e à quarta e à quinta era para passar a ferro. E era ir às compras e fazer o comer… P: E gostava? Rosa Maria: (risos) Então, havia certas coisas que eu gostava. Mas havia outras que não. Por exemplo, levantava-me às seis e meia da manhã, ou às seis, e ia lavar a roupa para o quintal. Isso custava-me muito, que eu lá na minha terra, embora a gente também lavasse a roupa ao pé do poço, tínhamos uma barraquinha para estar resguardada do frio. Ali não tínhamos nada disso. P: E para se levantar às seis e meia tinha um relógio seu? Rosa Maria: Era, tinha um despertador ao pé de mim. (na sua casa havia campainhas para chamar?) Não, não, não… Quem tinha as campainhas eram aquelas pessoas mais sofisticadas, mais ricas. Essas é que tinham as campainhas. Aquela não. Estavam na sala, na mesa e gritavam “Oh Maria!...Vê lá isto…” “Oh Maria!...traz aquilo!” P: E tinha direito à sua privacidade? Rosa Maria: Naquela já tinha o meu quarto. A casa de banho é não tinha banheira. Era tudo num alguidar e a gente tomava banho na casa-de-banho dos senhores. Agora na outra, não me deixavam tomar banho na banheira. Tinha que me lavar na tal casa-de-banho que eu tinha, pequena, só o lavatório e a sanita. Ali é que eu me lavava. P: E podia, de vez em quando, ir descansar um bocadinho para o seu quarto? Rosa Maria: (Faz um riso de incredulidade com a pergunta que lhe coloquei) (Continua a rir)…Havia sempre que fazer, nunca tinha tempo para descansar, não…Depois a seguir àquela que me bateu, aí já tinha mais um bocadinho. E, aí, à noite, já ía para o pé… ela não tinha televisão, mas tinha um rádio. No fim do jantar, ela e o marido iam jogar às cartas, e eu podia-me sentar ao pé deles a fazer croché. Foi na segunda casa onde eu estive. Era ao serão. Aí já podia estar enquanto eles estavam a jogar às cartas. Ouvia rádio e fazia croché… P: Como era para cozinhar? Rosa Maria: A gente é que tinha que o buscar todo. O petróleo tinha que se comprar ao litro…aquilo era avulso, não é como agora…havia as carvoarias que vendiam o carvão, o petróleo e aquela coisa toda. Naquela altura não se fazia grandes compras. Tinha que se comprar ao dia-a-dia conforme o dinheiro chegava. Se chegava para comprar um litro, comprava-se um litro, se não chegava comprava-se só meio litro. Era como o carvão. Se chegava para comprar 2 quilos, comprava-se 2 quilos. Se não chegava, comprava-se só 1 quilo. P: E a cozinha? Comiam coisas mais modernas ou mais tradicionais? Rosa Maria: Houve coisas que eu tive que aprender que não se faziam lá na terra. Lá fazíamos uns feijões com um bocado de toucinho e umas batatas, com couve, ou assim… Aqui, já não. Era mais a carne guisada, os bifes, o peixe…lá a gente só comia sardinhas e chicharro, aqui já havia mais peixe… Mas elas não eram assim de comer coisas muito “coisas”, muito puxadas. Eu até comecei a fazer peixe assado no forno, um dia comprei um parguinho e fiz, e olhe, o homem adorou aquilo!... (começa a rir) e outra vez, dantes havia daqueles talhos das miudezas, a cabeça da vaca, a cabeça da vitela, a dobrada…e era tudo vendido assim nesses talhos…E eu uma vez fui ao talho e comprei cabeça de vitela, e fiz jardineira…o homem gostou daquilo!... Da outra vez fiz com grão…Então ele dizia: “Esta mulher cozinha como eu gosto! Assim é que eu gosto!” Ele era assim do Norte… Fui aprendendo…fui aprendendo à minha custa. P: Também costumavam ter convidados? Rosa Maria: Era muito raro… Aquela senhora só teve um filho, e só quando o filho lá ia é que fazíamos…o que a mulher não fazia em casa era o que ele me pedia fazer… P: Nunca foi repreendida em público que não tivesse gostado? Rosa Maria: Ali naquela casa, não. Mas quando saí de lá fui para outra e aí já sofri um bocadinho… (fala em tom muito baixo) P: Deram-lhe alguma vez prendas, ou recompensas? Rosa Maria: Quando era no Natal, aquela professora dava-me um lencinho de mão, uma coisa pequenina…(E disse que, às vezes, o patrão era brincalhão, porquê?) Era assim coisas de galhofa…do género “Oh Maria, hoje estás na boa?” E eu naquela altura dizia-lhe: “Estou na broa, estou.” Depois ele começava a contar-me aquelas histórias lá de África…E eu dizia-lhe, porque ele trouxe uma cambada de filhos de lá: “Então se você trouxe os filhos porque é que não trouxe também a preta?”, - “Porque ela não quis vir!” – dizia assim (começa a rir-se). P: Ele não se ofendia? Rosa Maria: Não!...Às vezes, chegava ao pé deles e dizia “Eu agora vou-me deitar, estou cansada.” E ele respondia, “Não, anda aqui um bocadinho para ao pé da gente, anda lá…” Não, ele era muito boa pessoa. P: Então esses patrões já eram mais próximos? Rosa Maria: Aqueles eram. Ela é que era assim professora primária e já se sabe como é que é, não é? Por isso eu ainda outro dia disse: Os pais agora vão às escolas porque os professores batem nos filhos. Quem me dera a mim que me tivessem dado porrada na escola. (os seus patrões nunca quiseram ensiná-la a ler?) Não, eu estive em casa de duas professoras primárias, não é? Nunca puxaram para me ensinar! Depois, quando eu saí lá dessa professora é que fui para uma casa de onde me casei. Essa professora, depois…havia as escolas nocturnas, e ela disse: “Olha Maria, abriu a escola à noite, para as pessoas que quiserem ir aprender. Eu dou-te aquelas duas horas que é para tu ires aprender a ler.” Não sei se tinha 21, se era 22…ainda andei ali…fiz a primeira classe, depois passei para a 2ª, depois andei na 2ª até ao meio, só cheguei ao meio da 2ª classe…Depois comecei a namorar o meu marido, depois entretanto eles quiseram que eu me casasse e eu desisti da escola… P: Eles, quem? Rosa Maria: A minha patroa. Eu estava a servir à minha cunhada, que era afilhada da minha patroa. Aí é que eu sofri, aí é que eu sofri (num tom muito baixo) Ela tratou-me muito mal.. P: Os patrões naquela altura substituíam um pouco os pais…lembra-se de pensar isso? Rosa Maria: Não, não…nunca foi assim. Esta patroa para onde eu fui quando me casei…quando eu fui para lá o marido tinha-lhe dado uma trombose, ali ainda fui bem tratada que ela era daquelas pessoas que se levantava às seis e depois ia para a missa. Chegava a casa já era uma e tal da manhã…A essa hora eu já tinha dado de comer ao homenzinho…que ele coitadinho também não segurava as fezes…E eu um dia estava deitada, também aí tinha o meu quartinho, tinha a casa de banho em ordem e ele coitadinho aparece-me no meu quarto despido da cintura para baixo e…todo sujo….E ele começa assim: “Oh menina!...! – “O que é que foi?...” – “Oh menina, anda-me acudir!” – Fui dar com ele… meti-o dentro da banheira…despi o homem e era o homem a chorar e eu…nunca tinha feito aquilo…eu era uma miúda, devia ter 22…eu nunca tinha visto nenhum homem nu…e era ele a chorar e eu…depois quando ela chegou ele já estava tratado. E ele “Esta mulher!...Anda sempre na missa!...Não me liga nenhuma…se não fosse a rapariga…coitadinha da menina, teve que me estar aqui a lavar. Olha, ficas avisada, quando ela se casar fazes-lhe o casamento. Até um certo ponto ela também foi minha amiga…No princípio, não queria que eu me casasse. Mas depois, enquanto eu não casei, não descansou.. P: E porque é que saiu daquela segunda vez? Rosa Maria: Porque ela me bateu. Ela bateu-me, mas depois bateu-me uma segunda vez. A primeira eu fiquei. Depois à segunda eu quis vir-me embora…. P: Porque é que lhe bateu? Rosa Maria: Há certas coisas que eu também já não me recordo muito bem, mas ela embirrava com tudo…Vinha da escola, e quando via que com os miúdos havia alguma coisa que não estava bem, eu é que pagava…porque ela também era professora primária. Ela dava aulas à 3ª e à 4ª. Ela tinha as 2 classes…depois, às vezes, chegava a casa e coitada…chorava, e depois começava a ralhar comigo por qualquer coisa, e depois eu refilava… quando saí dessa, fui servir para casa de uma enfermeira, fui para casa de uma enfermeira aonde tinha um bebé pequenino. Tinha…parece que era um mês e meio. Agora tem-se quatro meses de licença de parto. Naquela altura era só 1 mês. E ela passou aquele mês e eu fui para lá para tomar conta do menino. Era enfermeira no Hospital da Cuf. Eu tinha que tomar conta da casa, fazer tudo e tomar conta do menino. Mas, em primeiro lugar, era para tratar do menino…. Quando a patroa estava em casa, dava o peito ao menino. Quando calhava dar a mama ao menino na hora do turno, ela tirava o leite com a bomba e ele ia buscar o leite e depois eu dava ao menino…. uma vez ele não me aparecia…o menino a chorar e eu não conseguia adormecê-lo…e ele não chegava. E que é que eu faço? Pus-me…tinha deixado o menino em casa e ia buscar o leite ao hospital da Cuf. E o eléctrico não vinha…e o que é que eu faço? Pus-me a correr! Pus-me a correr até ao hospital da Cuf. Cheguei lá e ela deu-me o leite e disse: “Agora meta-se no eléctrico! Eu vim a correr até chegar a casa e dar o leite ao miúdo, já o patrão estava em casa… “Onde é que você foi que deixou o menino sozinho?” – “Ai eu fui buscar o leite ao menino…” Porque a gente andava sempre à guerra um com o outro. Ela é que gostava muito de mim. Andávamos sempre à birra um com o outro. Quando a senhora ia trabalhar, por exemplo, das quatro às meia-noite, se eu me despachava antes de ela chegar, levava o menino para o meu quarto…Se ele ainda estava a pé…outras vezes ele chegava e levava o menino para o quarto dele….Uma vez ele chega a casa e o menino estava no meu quarto, e ele costumava bater à porta a perguntar por mim…Naquele dia ele vinha bêbado e abriu a porta do meu quarto e entrou por ali a dentro…E eu disse: “O que é que o senhor quer daqui?” – “Quero o meu filho.” – “O seu filho não sai daqui. Está a dormir. Vá para o seu quarto e deixe estar a criança que você não está em condições de tomar conta dela.” – “Quem é que manda aqui? Sou eu ou é você?” – “O senhor manda no seu quarto. Eu mando no meu.” – “Aqui a casa é minha.” – “A casa é sua, mas o quarto é meu…Eu estou aqui. O quarto é meu. Quando eu cá estou dentro. Por isso, ou você se vai embora ou eu mando-lhe um cesto em cima.” – Nisto, entra a patroa…, mas ela era muito boa…porque eu tive sempre medo de casais novos, ou que tivessem filhos, porque tinha conhecimento de raparigas que já tinham engravidado dos patrões ou dos filhos e eles obrigavam-nas a fazer o aborto, ou então as patroas já sabiam do que se estava passar e punham-nas na rua. Agora eu, se me acontecesse isso, o que é que fazia? Naquela altura…não sei se ainda hoje, mas naquela altura havia as Casas de Santa Zita, que era para onde as raparigas, as que ficavam grávidas dos patrões e eles punham-nas na rua, que era para onde elas iam. Naquela altura havia duas raparigas que eram minhas conhecidas. Ficaram grávidas e tiveram que fazer aborto. Os patrões não lhe pagavam…elas também não tinham dinheiro…porque naquela altura para se fazer um aborto tinha que se ter certos conhecimentos…depois elas iam para lá. Depois criavam lá os filhos e arranjavam emprego… e então eu tive sempre muito medo, eu tive sempre muito medo de ir para alguma casa dessas pessoas para me fazerem mal e depois eu ficava…naquela altura dizia-se que era uma “desgraçada”!... P: Em Lisboa falavam muito nesses perigos, não era? Rosa Maria: Pois, pois… (conheceu pessoas nessa situação?) Eram criadas de servir… então eu tinha muito medo. Quando eu me vim embora da casa da enfermeira, fomos ver uma casa ali no Rossio. E então essa senhora estava a dizer como é que eram as regras da casa…e depois estava a dizer: “Olhe, fica com os meninos…está ali o quarto dos meninos…depois estava a dizer o lugar onde ficavam os sapatos…” Você quando se levantar engraxa os sapatos e vem pô-los aqui, e depois vai fazer os pequenos-almoços”. – “Está bem.” – Cheguei cá fora e disse à Lucinda que tinha ido comigo: - “Oh Lucinda, eu não quero ir para aqui.” – “Então porquê?” – “Não quero. Ela tem filhos. Eu não quero ir para aqui.” E então fui lá para aquela casa em que eu lhe dava banho e essas coisas todas. P: Alguma vez os filhos se puseram a seu lado contra os pais? Rosa Maria: Nunca servi em casas com filhos. Ou eram velhos, ou tinham já os filhos casados. Ou eram aqueles bebés de quem eu ia tomar conta. Mas casais com filhos já homens nunca estive. Se eu fosse à procura de casa e me dissessem que tinham filhos já homens, eu não queria. P: Tinha férias? Rosa Maria: Férias? (Desata a rir sem som) Havia férias naquela altura? (estou a perguntar-lhe….) Não havia férias…Eu nunca tive férias…(No verão, não ia para lado nenhum?)...Ia com os patrões…Quer dizer, com aqueles velhotes que eu tive, íamos para as férias deles. Esses íamos sempre para lá dois meses. Agora com os outros, não. Nunca tive férias. (e no verão o serviço era o mesmo?) Era a mesma coisa. P: Nunca ia à sua terra? Rosa Maria: Não…só ia à terra pela Páscoa. Pela Páscoa é que eu ia no Sábado de Aleluia e depois vinha na segunda-feira. Passava lá o Domingo. P: E era bem recebida pelas pessoas da terra? Rosa Maria: Era, porque éramos muitas. Naquela altura muitas raparigas vinham servir por que a vida do campo não era…A gente saía com o cabelinho curtinho e quando lá ia já ia com o cabelinho cortado, já íamos assim com uns sapatinhos novos para a gente mostrar que a gente lá na cidade vivia-se melhor do que lá na província. (havia inveja?) (risos) Uma vez, quando fui lá passar a Páscoa, eu tinha comprado um fio de ouro, com uma medalha…as raparigas começaram a dizer que aquilo tinha sido um amante que eu cá tinha que me tinha dado o fio…Naquela altura, se a gente aparecesse com certas coisas era logo porque tínhamos aqui alguém que nos dava prendas….”Sabe-se lá o que andam a fazer!...” – Mas eu, graças a Deus… P: Conseguiu poupar? Já ganhava um pouco melhor? Rosa Maria: Já ganhava, parece-me que era 200$00. (E isso em relação às outras profissões?) Sim, já era melhorzinho. Eu, sem saber ler nem escrever, ter assim um ordenadinho de 200$00 ao fim do mês já não era nada mau…Naquela altura já me considerava uma criada bem paga. (e poupava?) Eu não gastava…não ia ao cinema, não ia a lado nenhum, era só as saídas de vir para aqui assim (Bairro Alto). Eu não gastava dinheiro nenhum. A gente poupava assim um dinheirito… P: Mas passeava… Rosa Maria: Às vezes, eu e as minhas colegas íamos até ao Castelo de São Jorge ou íamos até ao cimo do Parque Eduardo Sétimo, eh…havia lá um bailarico todos os domingos à tarde, e então a gente ia para lá…(risos) Havia lá um acordeãozito e a gente também dançava… (mas não eram músicas modernas…) Não, eram músicas daquela altura! Por isso é que eu digo: hoje, se fosse a um baile, não sabia nada porque é só bandas, não é? Naquela altura era só acordeão. Era aquelas músicas que agora não há. Quer dizer, agora há, mas é o rancho folclórico… -
"Antigamente qualquer coisinha tinha uma empregada:"
(As primeiras palavras saem comovidas e presas) Benedita Vau: Nasci em janeiro de 1942. Foi em L. Quer dizer, sou do concelho de…, distrito da Guarda, na Serra da Estrela. P: Como era a sua família? Benedita Vau: A minha família, quer dizer, pobres…tudo trabalhava…o meu pai andou no carvão, mas na serra, no carvão, e a minha mãe ajudava. Havia também uma fazenda, quer dizer, eles tomavam conta da fazenda, eram caseiros. Tínhamos assim uma casinha, mas era dos senhores. Era onde tínhamos vacas e galinhas, quer dizer, tínhamos assim um bocadinho de tudo. P: Lembra-se da sua casa? Benedita Vau: Bem, aquilo não era bem uma casa…era o que se pode dizer umas calheiras. Era assim que se dizia. Só havia uma divisão para a gente estar e para o comer dos animais. Era o feno, a cana, a erva que se colhia para eles comerem quando vinha a geada e não tinham que comer. Depois eu saí…estive até aos 10 anos com a minha mãe e saí de casa muito nova. Nós éramos 6, 6 irmãos que agora só temos 4. E fui servir para uma terra que era próxima da minha. A pé ainda demorávamos muito tempo, quase três horas. Os senhores eram sapateiros. P: Como se chamava esse lugar? Benedita Vau: Esse lugar era S. Lá estava um irmão meu com esses senhores e eu fui para o pé dele onde trabalhava também. Nós lá fazíamos de tudo, mas não pagavam, vou já dizer. P: E ficavam lá a dormir ou iam para casa? Benedita Vau: Não, não, estava mesmo lá cativa. O meu irmão guardava as cabras e ovelhas. O meu irmão guardava isso e eu estava do lado dos senhores. P: Foi para lá por serem conhecidos dos seus pais? Benedita Vau: Quer dizer, aí foi o meu irmão que estava e ele perguntou se eu queria ir, e eu fui. Quer dizer, com muitos em casa, não há assim muito que comer, e a gente desaba cada um para cada lado. Antigamente era assim: quem era rico, ficava. Quem era assim pobrezinho, íamos embora. P: Fez a escola? Benedita Vau: Fiz, mas não fiz. Andei lá, e depois fui-me embora. Andei na 1ª classe. Mas depois, quando fui ter com o meu irmão…dessas senhoras fui para outras. Deixei o meu irmão e fui para outra que me dava poucochinho, mas pagavam-me. Essa senhora era professora. P: Nessa altura, como era o seu dia de trabalho? Benedita Vau: Limpava a casa… Na casa com o meu irmão, tinha um quartinho para mim. Levantava-me às sete e meia e a senhora levantava-se também. Ela tinha um casalinho e eu levava a menina à escola. Ainda ficava assim um bocadinho distante e eu ia pô-la à escola. Depois da escola, limpava a casita. A senhora ensinava-me e eu ia limpando. Ia levar o comer onde andava o meu irmão. A seguir tratávamos os dois da horta com alfaces e cenouras e assim… P: E cozinhava? Benedita Vau: Não, não. Na cozinha, não. Ajudava a descascar as batatas, mas era a senhora que cozinhava. P: Tem boas recordações? Benedita Vau: Quer dizer, eu até gostava dos senhores, principalmente da senhora, que era muito boa senhora. Ela era sobrinha de um padre e era mesmo muito boa pessoa. Ele é que não. Ela era uma santa e às vezes até sonho com ela. Bem, mas depois saí dessa casa e fui para casa daquela professora. Aí já era mais velha, tinha 14, 15 anos. Aí já cozinhava e ajudava. Aí com os meus 14 anos fui então para casa dessa professora que vivia com um cunhado. E estávamos então lá em S., mas fins-de-semana e férias íamos passar para outro sítio e levavam-me. Estive lá muito tempo. Aprendi a ler, mas não aprendi a escrever. Só sei assinar o meu nome. P: Essa senhora ajudou? Benedita Vau: Não, não, é que ela lia muitos jornais e eu aprendi com ela a ler no jornal. Ela também era muito religiosa. Obrigava-nos todos os dias a rezar o terço. Leio tudo, mas escrever, não. Na escola só andei na 1ª classe porque eu não gostava muito de andar na escola e então fugia. A minha mãe pagava as multas. Naquela altura pagava-se multas por não ir e a professora mandava recados porque eu aprendia muito bem - porque é que não ia para a escola? Depois eu disse-lhe que não ia, e não fui. P: Isso também a ajudou a sair mais cedo? Era costume na terra que as raparigas fossem para servir? Benedita Vau: Sim, tudo trabalhava. Em geral, havia muita gente que saiu para servir de lá das nossas terras. A única que foi até à 4ª classe foi uma irmã mais nova. P: E como era com as refeições? Benedita Vau: Comíamos na cozinha, nunca comíamos com os patrões. Mas o que eles comiam comíamos nós. Primeiro servia à mesa, e só depois ia comer. P: Essa casa era de pessoas com algumas possibilidades? Benedita Vau: Não, naquela onde fui para a segunda vez era de uma família que podia mais. Os senhores primeiros, não. P: Tinha tempo para si? Benedita Vau: Sim, podia fazer coisinhas para mim. Ao domingo deixavam-me sair com as colegas. Podíamos ir passear. Se alguma lá quisesse ir a casa, também lá podiam ir porque elas davam-me autorização. Mas tinham de ser pessoas com quem elas vissem que nós podíamos andar, porque às vezes a gente arranjava companhias que elas diziam que a gente não…que era assim…enfim… P: Como descansava? Benedita Vau: Era ao domingo. A gente podia estar sentada se quisesse ficar em casa e podíamos sair. Em questão de descanso não me queixo muito. P: Tinha os seus objetos? Benedita Vau: Sim, tinha as minhas coisinhas. Tinha a minha roupa para vestir, mas tinha de andar fardada. As fardas era a senhora que comprava. As minhas só podia vestir ao domingo. P: Como é que foi tornar-se uma mulherzinha? Benedita Vau: Quer dizer, na questão do período, eu não sabia de nada. Ainda estava cá em cima quando isso aconteceu, mas a senhora fez-me umas toalhinhas e deu-me. P: Como é que olhava para aquela pessoa? Benedita Vau: Eu sentia-me bem com a senhora. Fui-me mais embora porque eu estava ali e não recebia nada. Ela comprava-me uma roupita e não valia a pena. O meu irmão também me disse que eu estava ali e não lucrava nada e então fui para aquela senhora. P: E tinha saudades de casa? Benedita Vau: Tinha… tinha saudades da minha mãe… às vezes ia e depois, quando estava na outra, já não ia tantas vezes à serra porque o meu irmão também já não ia tantas vezes, e assim fui passando. P: Nesta segunda casa, havia muitas regras? Benedita Vau: Eu…(grande hesitação)… como é que eu vou explicar? Havia lá um rapazinho que andava atrás de mim, mas, nessa altura a senhora soube e não me deixava sair. P: Não aceitava isso bem… Benedita Vau: Era nova e não queria que eu lhe falasse. Não queriam que eu o namorasse. Como eu não sabia nada da vida eu perguntava-lhes porquê? E ela dizia que ele era mais velho do que eu, mas eu não deixei o rapaz. Continuei a encontrar-me com ele às escondidas, mas namorei. Ela depois percebeu. Eles queriam fazer como se fossem meus pais. Mas eu queria namorar embora depois também nos tivéssemos zangado. P: Então namorar é que era mesmo proibido? Benedita Vau: Namorar não me deixava, mas eu continuei a namorar. Mas depois também nos zangámos. Acabou tudo e…acabou, pronto. P: Em alguns momentos davam-lhe presentes, talvez para compensar não ter salário? Benedita Vau: Olhe, menina, a senhora tinha em Coimbra uma afilhada que a gente ia lá muita vez. E a afilhada era casada, tinha um menino e essa dava-me coisinhas dela, roupa que fosse boa, sapatos…quer dizer, coisas novas, mas não era sempre. P: E para o seu enxoval? Benedita Vau: Às vezes eu comprava peças de lençol, porque antigamente não havia assim nada feito, a gente é que comprava e comecei a fazer assim o meu enxoval. A senhora também fez umas rendinhas e deu-mas, e também me comprava assim umas toalhinhas…e oferecia… P: No Natal? Benedita Vau: Não, porque antigamente o Natal não era assim como agora. Eu nunca soube o que era o Natal; o Natal, embora fizessem qualquer coisa, não faziam trocas de presentes…não, nem em casa, nada disso. Só quando vi para cá, vim para cá com 19 anos e mesmo a senhora não era assim de fazer uma noite de Natal, como agora se faz. Com a minha mãe, já se fazia o Natal que era fritar, comprar massa, esticar e fazer massa com açúcar e canela. Lembra-me assim do Natal. Só assim, mais nada! P: Disse-me que era da zona da Guarda…já ouviu falar na Obra de Previdência e Formação de Criadas? Eles tinham lá uma sede e eram ligados à Igreja Católica e era uma obra de um padre que era ali da região da Guarda. Nunca ouviu falar nesta instituição, nem tentaram falar consigo? Benedita Vau: Não, nunca ouvi nada. P: Nem quando chegou a Lisboa? Benedita Vau: Não, não. Nada. P: Veio para Lisboa como? Benedita Vau: Vim através de uma amiga lá da terra e fiquei sempre na mesma casa. Dos 14 aos 19 estive sempre lá acima, nessa terra, em S. Estive na mesma terra, mas com pessoas diferentes. P: Nesse tempo fazia todo o tipo de trabalho? Benedita Vau: Não, não, não… P: Era a única que lá estava a servir? Benedita Vau: Era, só era eu. Só quando ia para Coimbra é que a senhora já tinha uma empregada e aí já nos juntávamos, já saíamos as duas à noite, porque ela conhecia aquilo e depois levava-me. Quando, ao contrário, a senhora ia lá a S., ela também levava a empregada e a gente também saía. P: Esta senhora não tinha filhos? Benedita Vau: Não, aquela onde eu estava não. Mas a que vinha de Coimbra tinha um filho. P: Nunca teve de cuidar das crianças, como uma ama? Benedita Vau: Não, não…nunca tive nada disso. P: Quanto é que ganhava, lembra-se? Benedita Vau: Ah, muito poucochinho…eu já nem sei dizer, mas era assim…quinze euros, ai..quinze escudos!....Nada…eram quinze escudos. P: E esse dinheiro dava para quê? Benedita Vau: Olhe, dava para muita coisa, menina. Pois… a gente tinha o comer, tínhamos dormida, tínhamos tudo. Ora, só se a gente precisava de comprar alguma coisita. Se a gente não precisava de comprar no mês, sempre juntava o dinheiro. P: E em comparação com outras profissões? Não tinham gastos? Benedita Vau: Nós não tínhamos. Se durante a semana a gente andava com a tal farda da casa, só se a gente quisesse uma roupita nova. Roupa interior e assim é que a gente comprava. Mas antigamente a gente comprava as cuecas baratíssimas. Soutiens e tudo. P: Havia já cinemas ou teatros? Benedita Vau: Não, lá não havia nada disso. Lá, por exemplo, quando era pelo Carnaval, eles faziam as coisas na rua. Dançava-se, cantava-se e assim. Mas isso lá cinemas, não. Não podíamos ter extravagâncias. P: E como é que as pessoas iam de um lado ao outro? De comboio? Benedita Vau: Não havia transportes nenhuns desses. Por exemplo, se a gente quisesse – eu não vinha, mas quem quisesse vir – às feiras, ia de camioneta. Esse senhor sapateiro que fazia uma festa anual, em Arganil, e eu ia com eles. Porque a senhora também ia, era a feira anual durante três dias. A gente ficava lá, eu ia com a senhora, levávamos os meninos e eu também ia. Íamos então com o patrão, com os patrões, e íamos para a feira anual a Arganil. P: E ia com a sua farda? Benedita Vau: Não, não… isso já levava uma sainha minha ou um vestidito. Isso aí já não ia fardada. P: Então só em casa? Pode-me dizer como é que era? Tem alguma fotografia? Benedita Vau: (risos) Ai, não tenho. De farda tenho, mas não sei onde é que a tenho. Mas tenho, isso guardei. P: Como era? Benedita Vau: Olhe, nesta altura em que tirei a fotografia estava de bata, tenho a impressão que era azul-escura com o aventalinho branco e a golinha branca. P: As pessoas eram exigentes com a higiene, o serviço da casa, da mesa? Como é que aprendeu? Benedita Vau: Ah.. à mesa ensinaram-me muito bem a servir. Olhe, servia do lado direito… ou do lado esquerdo, agora já não sei (risos), mas sei que era só daquele lado, tirar os copos do coiso, tirar os pratos, isso eu sabia fazer muito bem, até porque ainda sei fazer. Se tiver cá gente, ainda faço. P: Continua a respeitar essas regras Benedita Vau: Exatamente. Mas era assim. Estavam sempre a ver como devia ser. Às vezes tocavam a campainha para a gente ir ver o que era. P: Havia troca de palavras quando essas pessoas estavam, ou o seu papel era mais de estar em silêncio? Benedita Vau: Não, estava na cozinha à espera que chamassem e ajudava assim na sala (alguma resistência em falar, diminuição do tom de voz). P: Não participava nessas reuniões? Benedita Vau: Não, quer dizer, se estivéssemos ao pé dos patrões, não. Sentava-me sempre na cozinha e quando elas depois chamavam… P: Agora vamos fazer uma viagem até Lisboa. Gostava que, dentro do possível, me descrevesse como é que foi essa chegada a Lisboa. Benedita Vau: Tinha 19 anos quando vim para Lisboa. Olhe, menina, eu, da terra, tinha e tenho uma irmã ali em Sacavém. Estava casada e quando vim, em vez de ir logo para casa da senhora onde vinha para servir, vim para casa da minha irmã. Vim de comboio. Fiquei em Sacavém. Dormi lá essa noite. Já era noite e o meu cunhado foi-me buscar ao comboio. Cheguei de noite e fiquei lá. Ao outro dia, ele veio pôr-me a Lisboa, porque eu não conhecia nada e ele veio pôr-me à direção que eu trazia que era aqui na Av. G., numa vivenda, que era a mãe da senhora para donde eu vinha. Ia ter ali com essa senhora. Apresentei-me ali (e o que é que lhe perguntaram? O que é que queriam saber de si, já vinha com uma referência?) Já vinha de lá o que eu sabia fazer... e assim não pediam informações disto e daquilo. Ela perguntou se eu gostei de ter vindo e eu disse que não conhecia ninguém. Que não sabia se ia gostar… eu uma vez fui ter ao Fundão – já que a menina está a perguntar. Foram-me pôr lá e eu vim novamente com o meu pai (voz assertiva). Não quis lá ficar. Queriam que eu fosse para aí, que tinha lá uma tia minha. Eu ia para ao pé da minha tia e eu não gostei nada daquilo e disse que não queria lá ficar, e chorei, e vim-me embora. O meu pai trouxe-me outra vez. Por isso se eu agora não gostasse eu teria que me ir embora. Ficar aqui, estar contrariada, e para mais que não conhecia…isto aqui era coiso e eu não conhecia nada…e eu disse-lhe que se gostasse de ficar, ficava; se não gostasse, que ia para o pé da minha irmã e que depois ia para a terra outra vez. Então veio a filha da senhora e fui para a 5 de outubro. Fui para a 5 de outubro. E ali estive desde os 19 até que me casei, aos 24 anos. P: Como é que viu Lisboa? Como é que olhava para Lisboa? Benedita Vau: Olhe, menina, Lisboa não era nada daquilo que é hoje. Não havia tantos carros. Não havia… assim… nada, quer dizer, era diferente, pronto. P: Estávamos no ano de… Benedita Vau: Bom, eu tinha 19, em que ano estávamos? (Faço contas e chego ao ano de 1961) P: Como era o prédio para onde foi trabalhar? Benedita Vau: Era num segundo andar… P: E como era a família? Benedita Vau: Olhe, a família era…a senhora. Ele era engenheiro. Ela não fazia nada e tinha uma filha. Não me lembro bem que idade é que tinha a menina, mas …quando vim para esta casa ia casar uma rapariga que lá estava. Eu ainda estive um mês e tal com ela. E como também era lá de cima, a rapariguinha disse-me logo as coisas da casa, como eles eram…como ele era… P: E posso saber o que é que ela lhe disse? Benedita Vau: Ela disse que a senhora era assim um bocadinho…embirrante. Ele, não tanto, mas que não era de muitas palavras, o senhor. E que tínhamos que estar sempre com atenção porque de manhã ele levantava-se cedo e queria o pequeno-almoço na sala. Mas, como estive com ela esse mês…aprendi a fazer as coisas como devia. Estivemos esse mês e eu aprendi. As camisas eram passadas todos os dias: eram muito bem engomadinhas. Eram brancas; parecia que tinham goma e eu tive de começar logo por aí, com ela, a aprender a engomar as camisas. Eles não davam nada a engomar. Tínhamos que nós escovar tudo muito bem escovadinho, passar um pano com Benzovac para tirar as nódoas…também fazíamos esse serviço. …Depois a rapariga casou e eu fiquei com o encargo todo, não tinha mais ninguém. P: E para além da roupa muito bem engomada, havia mais regras? Benedita Vau: Aí já me levantava mais tarde. Às 8 horas. O almoço era servido ao meio-dia. Ele vinha e tinha que estar pronto. O jantar era às sete, sete e meia. Também nunca jantavam mais tarde. Ao domingo é que era diferente. Íamos todos os domingos almoçar a casa da mãe do senhor. Ora, ao domingo eles levantavam-se às quatro da tarde… era…, mas repare, a gente lavava a roupa à mão. Lá em S., ia para a ribeira lavar. Aqui não. A única coisa que havia de electrodoméstico era o frigorífico. Que já lá para cima também havia. E lá ia para a ribeira: ia muito cedo, descalça, lavava, estendia a roupa a corar e tal, e depois ia comer, e depois ia outra vez e punha a roupa a enxugar. Isso é lá em cima. Aqui, ao domingo, punha a roupa à noite na saponária e, como eles se levantavam tarde, fazia uma saponária à roupa, punha-a no tanque e ao domingo de manhã, primeiro ia à missa, à Igreja de Fátima, e depois da missa tomava o café, e então lavava a roupa. P: Ia à missa porque queria ou alguém lhe dizia para ir? Benedita Vau: Não, eu também gostava. Eu gostava de ir à missa. P: Mas ia sozinha ou com as senhoras da casa? Benedita Vau: Não, não, as senhoras nunca foram à missa. A gente é que ia à missa, nós é que íamos sempre. P: Ia com quem? Benedita Vau: Sim, aqui a rapariga que estava na mãe do senhor, ela mais ou menos à hora dizia “Desce, que a gente vai.” Eu descia e íamos as três, porque o prédio era grande. Tinha quatro pessoas. Quer dizer, o prédio era de esquina. E então juntávamo-nos todas as quatro e íamos à missa. Era uma paródia. P: Era uma paródia? Benedita Vau: Ai era, menina. Falávamos dos rapazitos e…olhe, fartávamo-nos de coiso. Saíamos da missa e tínhamos que ir logo para casa. Porque eles sabiam a hora a que acabava a missa. P: Como era o quarto da sua casa? Benedita Vau: Eu tinha o meu quarto, mesmo dentro de casa eu tinha o meu quarto e casinha de banho. Este prédio era na 5 de outubro. Tinha uma casinha de banho para mim e o meu quartinho. A cama era um divã. Quer dizer, era um divã, mas não era de puxar. Tinha um roupeirozinho que era onde a senhora tinha a roupa dela, e da menina. Era grande, era de parede. Tinha uma janelinha pequena. Tomava bem ar. Mas dava tudo para as traseiras. . P: Que objectos é que tinha trazido consigo? Ou valores? Benedita Vau: Não, não tinha nada de valor. Só tinha trazido a minha roupita e mais nada. Coisas de valor não tinha. Quer dizer, o meu enxovalito que fiz lá em cima ficou na minha mãe. Mas não trouxe nada. Não tinha nada. P: E aqui não ganhava nada? Benedita Vau: Aqui já vim ganhar 500$00. P: E isso era bom? Benedita Vau: Era, era menina. Porque eu aí juntava também dinheiro. Eu não era estragada. Aí, como já havia cinema, às vezes íamos ao cinema. Entre nós todas era barato. Quer dizer, barato?! Quer dizer, pouca gente ganhava e era barato porque a gente juntava dinheiro. Já comprava, não sei se a menina sabe, estas mulheres à porta para venderem coisas…roupa, lençóis, isto ou aquilo. Era às portas que mostravam aquelas coisas dentro de umas alcofas grandes e perguntavam se a gente queria ou não queria. Mas não era pela porta, era do lado da porta de serviço que às vezes a porteira não as deixava passar. A gente gostava de ver. Elas tinham que subir de elevador porque não tinham as escadas. E então a gente gostava de ver. Benedita Vau: Às vezes juntávamo-nos ali na varanda, que aquilo tem uma varanda rodada para os quatro inquilinos e a gente via… Às vezes estávamos ali até à meia-noite. Às vezes lá vinha a senhora dizer: Oh meninas!...JÀ é hora de ir para casa… (como quem chama) P: Como é que se juntavam? Benedita Vau: Olhe, tinha uma marquisezinha. A marquise dava para a varanda que era a todo o comprimento do prédio. E então todas elas tinham empregadas, que antigamente toda a coisinha tinha uma empregada. P: Mesmo pessoas com poucas possibilidades? Benedita Vau: Exatamente, porque também pagavam pouco e toda a gente tinha…E então a mais velha que lá estava era uma que dava do lado contrário da nossa 5 de outubro. Mas era muito boa rapariga, aconselhava-nos bem – era a mais velha, mas aconselhava-nos bem. P: Então conseguiam estar ali até à meia-noite? Benedita Vau: Conseguíamos estar ali até à meia-noite. Mas às vezes não podia porque vinha gente de fora… lá os senhores tinham gente e tinha que estar à espera para servir chá, ou isto, ou aquilo. Quando os patrões tinham gente, eu não podia ir. Dava uma escapadela, mas era poucochinho…, mas quando não tínhamos assim que fazer, que os senhores estavam a ver televisão, a gente estava a conversar. Estávamos ali todas. Tinha uma amiga (corrige para colega) que era alentejana; que até foi a madrinha da minha filha mais velha, que era também empregada; chamava-se D.. A gente ficámos sempre amigas… quer dizer, ainda hoje somos amigas. Elas telefonam-me, eu telefono-lhes. Vivíamos ali, quer dizer, parecia que éramos uma família. Estávamos como se fosse uma família. Mas todas ficámos sempre a ser amigas. P: E eram internas? (silêncio) Dormiam lá? Benedita Vau: Sim, era tudo lá. Não, a gente não ia nenhuma sair da casa da senhora. P: Porque é que disse há pouco que “Qualquer coisinha tinha uma pessoa para a ajudar”? Deu-me a entender que não eram só as pessoas mais ricas que tinham uma pessoa dentro de casa. A senhora acha que era mesmo assim? Benedita Vau: Eu acho que sim… sim, por exemplo, onde estava essa minha amiga, a D., que eram já uns senhores de muita idade. O senhor podia ter sido alguma coisa em novo, mas depois também já não era assim de muitas posses para pagar a uma empregada. É isso. Por isso é que havia muita gente, quer dizer, muitas criaditas! E a gente quando se juntava, olhe!.... P: Porque é que diz que eram criaditas? Benedita Vau: Porque éramos piquenas, porque não tínhamos ninguém que nos defendesse, a não sermos umas às outras e, às vezes, bem, eu tive muita sorte por onde andei. Todos eles se interessaram muito por mim. Até esta aqui de Lisboa. Ajudou-me muito e a filha foi ser minha madrinha de casamento. P: E hoje ainda se dão bem? Benedita Vau: Damos, damos. Até com a mãe. E a filha mora lá na casa da mãe. A mãe foi para Sesimbra. Ainda lá fiquei a trabalhar durante um ano depois de casada, que ela não arranjou logo, mas depois veio uma rapariguinha lá de Manteigas. Eu fiquei ainda de manhã, e saía à tarde. P: E vinham todas ali da Beira… Benedita Vau: Alentejanas havia poucas. O resto era tudo lá de cima, até havia uma de Vinhais. (As primeiras palavras saem comovidas e presas) Benedita Vau: Nasci em janeiro de 1942. Foi em L. Quer dizer, sou do concelho de…, distrito da Guarda, na Serra da Estrela. P: Como era a sua família? Benedita Vau: A minha família, quer dizer, pobres…tudo trabalhava…o meu pai andou no carvão, mas na serra, no carvão, e a minha mãe ajudava. Havia também uma fazenda, quer dizer, eles tomavam conta da fazenda, eram caseiros. Tínhamos assim uma casinha, mas era dos senhores. Era onde tínhamos vacas e galinhas, quer dizer, tínhamos assim um bocadinho de tudo. P: Lembra-se da sua casa? Benedita Vau: Bem, aquilo não era bem uma casa…era o que se pode dizer umas calheiras. Era assim que se dizia. Só havia uma divisão para a gente estar e para o comer dos animais. Era o feno, a cana, a erva que se colhia para eles comerem quando vinha a geada e não tinham que comer. Depois eu saí…estive até aos 10 anos com a minha mãe e saí de casa muito nova. Nós éramos 6, 6 irmãos que agora só temos 4. E fui servir para uma terra que era próxima da minha. A pé ainda demorávamos muito tempo, quase três horas. Os senhores eram sapateiros. P: Como se chamava esse lugar? Benedita Vau: Esse lugar era S. Lá estava um irmão meu com esses senhores e eu fui para o pé dele onde trabalhava também. Nós lá fazíamos de tudo, mas não pagavam, vou já dizer. P: E ficavam lá a dormir ou iam para casa? Benedita Vau: Não, não, estava mesmo lá cativa. O meu irmão guardava as cabras e ovelhas. O meu irmão guardava isso e eu estava do lado dos senhores. P: Foi para lá por serem conhecidos dos seus pais? Benedita Vau: Quer dizer, aí foi o meu irmão que estava e ele perguntou se eu queria ir, e eu fui. Quer dizer, com muitos em casa, não há assim muito que comer, e a gente desaba cada um para cada lado. Antigamente era assim: quem era rico, ficava. Quem era assim pobrezinho, íamos embora. P: Fez a escola? Benedita Vau: Fiz, mas não fiz. Andei lá, e depois fui-me embora. Andei na 1ª classe. Mas depois, quando fui ter com o meu irmão…dessas senhoras fui para outras. Deixei o meu irmão e fui para outra que me dava poucochinho, mas pagavam-me. Essa senhora era professora. P: Nessa altura, como era o seu dia de trabalho? Benedita Vau: Limpava a casa… Na casa com o meu irmão, tinha um quartinho para mim. Levantava-me às sete e meia e a senhora levantava-se também. Ela tinha um casalinho e eu levava a menina à escola. Ainda ficava assim um bocadinho distante e eu ia pô-la à escola. Depois da escola, limpava a casita. A senhora ensinava-me e eu ia limpando. Ia levar o comer onde andava o meu irmão. A seguir tratávamos os dois da horta com alfaces e cenouras e assim… P: E cozinhava? Benedita Vau: Não, não. Na cozinha, não. Ajudava a descascar as batatas, mas era a senhora que cozinhava. P: Tem boas recordações? Benedita Vau: Quer dizer, eu até gostava dos senhores, principalmente da senhora, que era muito boa senhora. Ela era sobrinha de um padre e era mesmo muito boa pessoa. Ele é que não. Ela era uma santa e às vezes até sonho com ela. Bem, mas depois saí dessa casa e fui para casa daquela professora. Aí já era mais velha, tinha 14, 15 anos. Aí já cozinhava e ajudava. Aí com os meus 14 anos fui então para casa dessa professora que vivia com um cunhado. E estávamos então lá em S., mas fins-de-semana e férias íamos passar para outro sítio e levavam-me. Estive lá muito tempo. Aprendi a ler, mas não aprendi a escrever. Só sei assinar o meu nome. P: Essa senhora ajudou? Benedita Vau: Não, não, é que ela lia muitos jornais e eu aprendi com ela a ler no jornal. Ela também era muito religiosa. Obrigava-nos todos os dias a rezar o terço. Leio tudo, mas escrever, não. Na escola só andei na 1ª classe porque eu não gostava muito de andar na escola e então fugia. A minha mãe pagava as multas. Naquela altura pagava-se multas por não ir e a professora mandava recados porque eu aprendia muito bem - porque é que não ia para a escola? Depois eu disse-lhe que não ia, e não fui. P: Isso também a ajudou a sair mais cedo? Era costume na terra que as raparigas fossem para servir? Benedita Vau: Sim, tudo trabalhava. Em geral, havia muita gente que saiu para servir de lá das nossas terras. A única que foi até à 4ª classe foi uma irmã mais nova. P: E como era com as refeições? Benedita Vau: Comíamos na cozinha, nunca comíamos com os patrões. Mas o que eles comiam comíamos nós. Primeiro servia à mesa, e só depois ia comer. P: Essa casa era de pessoas com algumas possibilidades? Benedita Vau: Não, naquela onde fui para a segunda vez era de uma família que podia mais. Os senhores primeiros, não. P: Tinha tempo para si? Benedita Vau: Sim, podia fazer coisinhas para mim. Ao domingo deixavam-me sair com as colegas. Podíamos ir passear. Se alguma lá quisesse ir a casa, também lá podiam ir porque elas davam-me autorização. Mas tinham de ser pessoas com quem elas vissem que nós podíamos andar, porque às vezes a gente arranjava companhias que elas diziam que a gente não…que era assim…enfim… P: Como descansava? Benedita Vau: Era ao domingo. A gente podia estar sentada se quisesse ficar em casa e podíamos sair. Em questão de descanso não me queixo muito. P: Tinha os seus objetos? Benedita Vau: Sim, tinha as minhas coisinhas. Tinha a minha roupa para vestir, mas tinha de andar fardada. As fardas era a senhora que comprava. As minhas só podia vestir ao domingo. P: Como é que foi tornar-se uma mulherzinha? Benedita Vau: Quer dizer, na questão do período, eu não sabia de nada. Ainda estava cá em cima quando isso aconteceu, mas a senhora fez-me umas toalhinhas e deu-me. P: Como é que olhava para aquela pessoa? Benedita Vau: Eu sentia-me bem com a senhora. Fui-me mais embora porque eu estava ali e não recebia nada. Ela comprava-me uma roupita e não valia a pena. O meu irmão também me disse que eu estava ali e não lucrava nada e então fui para aquela senhora. P: E tinha saudades de casa? Benedita Vau: Tinha… tinha saudades da minha mãe… às vezes ia e depois, quando estava na outra, já não ia tantas vezes à serra porque o meu irmão também já não ia tantas vezes, e assim fui passando. P: Nesta segunda casa, havia muitas regras? Benedita Vau: Eu…(grande hesitação)… como é que eu vou explicar? Havia lá um rapazinho que andava atrás de mim, mas, nessa altura a senhora soube e não me deixava sair. P: Não aceitava isso bem… Benedita Vau: Era nova e não queria que eu lhe falasse. Não queriam que eu o namorasse. Como eu não sabia nada da vida eu perguntava-lhes porquê? E ela dizia que ele era mais velho do que eu, mas eu não deixei o rapaz. Continuei a encontrar-me com ele às escondidas, mas namorei. Ela depois percebeu. Eles queriam fazer como se fossem meus pais. Mas eu queria namorar embora depois também nos tivéssemos zangado. P: Então namorar é que era mesmo proibido? Benedita Vau: Namorar não me deixava, mas eu continuei a namorar. Mas depois também nos zangámos. Acabou tudo e…acabou, pronto. P: Em alguns momentos davam-lhe presentes, talvez para compensar não ter salário? Benedita Vau: Olhe, menina, a senhora tinha em Coimbra uma afilhada que a gente ia lá muita vez. E a afilhada era casada, tinha um menino e essa dava-me coisinhas dela, roupa que fosse boa, sapatos…quer dizer, coisas novas, mas não era sempre. P: E para o seu enxoval? Benedita Vau: Às vezes eu comprava peças de lençol, porque antigamente não havia assim nada feito, a gente é que comprava e comecei a fazer assim o meu enxoval. A senhora também fez umas rendinhas e deu-mas, e também me comprava assim umas toalhinhas…e oferecia… P: No Natal? Benedita Vau: Não, porque antigamente o Natal não era assim como agora. Eu nunca soube o que era o Natal; o Natal, embora fizessem qualquer coisa, não faziam trocas de presentes…não, nem em casa, nada disso. Só quando vi para cá, vim para cá com 19 anos e mesmo a senhora não era assim de fazer uma noite de Natal, como agora se faz. Com a minha mãe, já se fazia o Natal que era fritar, comprar massa, esticar e fazer massa com açúcar e canela. Lembra-me assim do Natal. Só assim, mais nada! P: Disse-me que era da zona da Guarda…já ouviu falar na Obra de Previdência e Formação de Criadas? Eles tinham lá uma sede e eram ligados à Igreja Católica e era uma obra de um padre que era ali da região da Guarda. Nunca ouviu falar nesta instituição, nem tentaram falar consigo? Benedita Vau: Não, nunca ouvi nada. P: Nem quando chegou a Lisboa? Benedita Vau: Não, não. Nada. P: Veio para Lisboa como? Benedita Vau: Vim através de uma amiga lá da terra e fiquei sempre na mesma casa. Dos 14 aos 19 estive sempre lá acima, nessa terra, em S. Estive na mesma terra, mas com pessoas diferentes. P: Nesse tempo fazia todo o tipo de trabalho? Benedita Vau: Não, não, não… P: Era a única que lá estava a servir? Benedita Vau: Era, só era eu. Só quando ia para Coimbra é que a senhora já tinha uma empregada e aí já nos juntávamos, já saíamos as duas à noite, porque ela conhecia aquilo e depois levava-me. Quando, ao contrário, a senhora ia lá a S., ela também levava a empregada e a gente também saía. P: Esta senhora não tinha filhos? Benedita Vau: Não, aquela onde eu estava não. Mas a que vinha de Coimbra tinha um filho. P: Nunca teve de cuidar das crianças, como uma ama? Benedita Vau: Não, não…nunca tive nada disso. P: Quanto é que ganhava, lembra-se? Benedita Vau: Ah, muito poucochinho…eu já nem sei dizer, mas era assim…quinze euros, ai..quinze escudos!....Nada…eram quinze escudos. P: E esse dinheiro dava para quê? Benedita Vau: Olhe, dava para muita coisa, menina. Pois… a gente tinha o comer, tínhamos dormida, tínhamos tudo. Ora, só se a gente precisava de comprar alguma coisita. Se a gente não precisava de comprar no mês, sempre juntava o dinheiro. P: E em comparação com outras profissões? Não tinham gastos? Benedita Vau: Nós não tínhamos. Se durante a semana a gente andava com a tal farda da casa, só se a gente quisesse uma roupita nova. Roupa interior e assim é que a gente comprava. Mas antigamente a gente comprava as cuecas baratíssimas. Soutiens e tudo. P: Havia já cinemas ou teatros? Benedita Vau: Não, lá não havia nada disso. Lá, por exemplo, quando era pelo Carnaval, eles faziam as coisas na rua. Dançava-se, cantava-se e assim. Mas isso lá cinemas, não. Não podíamos ter extravagâncias. P: E como é que as pessoas iam de um lado ao outro? De comboio? Benedita Vau: Não havia transportes nenhuns desses. Por exemplo, se a gente quisesse – eu não vinha, mas quem quisesse vir – às feiras, ia de camioneta. Esse senhor sapateiro que fazia uma festa anual, em Arganil, e eu ia com eles. Porque a senhora também ia, era a feira anual durante três dias. A gente ficava lá, eu ia com a senhora, levávamos os meninos e eu também ia. Íamos então com o patrão, com os patrões, e íamos para a feira anual a Arganil. P: E ia com a sua farda? Benedita Vau: Não, não… isso já levava uma sainha minha ou um vestidito. Isso aí já não ia fardada. P: Então só em casa? Pode-me dizer como é que era? Tem alguma fotografia? Benedita Vau: (risos) Ai, não tenho. De farda tenho, mas não sei onde é que a tenho. Mas tenho, isso guardei. P: Como era? Benedita Vau: Olhe, nesta altura em que tirei a fotografia estava de bata, tenho a impressão que era azul-escura com o aventalinho branco e a golinha branca. P: As pessoas eram exigentes com a higiene, o serviço da casa, da mesa? Como é que aprendeu? Benedita Vau: Ah.. à mesa ensinaram-me muito bem a servir. Olhe, servia do lado direito… ou do lado esquerdo, agora já não sei (risos), mas sei que era só daquele lado, tirar os copos do coiso, tirar os pratos, isso eu sabia fazer muito bem, até porque ainda sei fazer. Se tiver cá gente, ainda faço. P: Continua a respeitar essas regras Benedita Vau: Exatamente. Mas era assim. Estavam sempre a ver como devia ser. Às vezes tocavam a campainha para a gente ir ver o que era. P: Havia troca de palavras quando essas pessoas estavam, ou o seu papel era mais de estar em silêncio? Benedita Vau: Não, estava na cozinha à espera que chamassem e ajudava assim na sala (alguma resistência em falar, diminuição do tom de voz). P: Não participava nessas reuniões? Benedita Vau: Não, quer dizer, se estivéssemos ao pé dos patrões, não. Sentava-me sempre na cozinha e quando elas depois chamavam… P: Agora vamos fazer uma viagem até Lisboa. Gostava que, dentro do possível, me descrevesse como é que foi essa chegada a Lisboa. Benedita Vau: Tinha 19 anos quando vim para Lisboa. Olhe, menina, eu, da terra, tinha e tenho uma irmã ali em Sacavém. Estava casada e quando vim, em vez de ir logo para casa da senhora onde vinha para servir, vim para casa da minha irmã. Vim de comboio. Fiquei em Sacavém. Dormi lá essa noite. Já era noite e o meu cunhado foi-me buscar ao comboio. Cheguei de noite e fiquei lá. Ao outro dia, ele veio pôr-me a Lisboa, porque eu não conhecia nada e ele veio pôr-me à direção que eu trazia que era aqui na Av. G., numa vivenda, que era a mãe da senhora para donde eu vinha. Ia ter ali com essa senhora. Apresentei-me ali (e o que é que lhe perguntaram? O que é que queriam saber de si, já vinha com uma referência?) Já vinha de lá o que eu sabia fazer... e assim não pediam informações disto e daquilo. Ela perguntou se eu gostei de ter vindo e eu disse que não conhecia ninguém. Que não sabia se ia gostar… eu uma vez fui ter ao Fundão – já que a menina está a perguntar. Foram-me pôr lá e eu vim novamente com o meu pai (voz assertiva). Não quis lá ficar. Queriam que eu fosse para aí, que tinha lá uma tia minha. Eu ia para ao pé da minha tia e eu não gostei nada daquilo e disse que não queria lá ficar, e chorei, e vim-me embora. O meu pai trouxe-me outra vez. Por isso se eu agora não gostasse eu teria que me ir embora. Ficar aqui, estar contrariada, e para mais que não conhecia…isto aqui era coiso e eu não conhecia nada…e eu disse-lhe que se gostasse de ficar, ficava; se não gostasse, que ia para o pé da minha irmã e que depois ia para a terra outra vez. Então veio a filha da senhora e fui para a 5 de outubro. Fui para a 5 de outubro. E ali estive desde os 19 até que me casei, aos 24 anos. P: Como é que viu Lisboa? Como é que olhava para Lisboa? Benedita Vau: Olhe, menina, Lisboa não era nada daquilo que é hoje. Não havia tantos carros. Não havia… assim… nada, quer dizer, era diferente, pronto. P: Estávamos no ano de… Benedita Vau: Bom, eu tinha 19, em que ano estávamos? (Faço contas e chego ao ano de 1961) P: Como era o prédio para onde foi trabalhar? Benedita Vau: Era num segundo andar… P: E como era a família? Benedita Vau: Olhe, a família era…a senhora. Ele era engenheiro. Ela não fazia nada e tinha uma filha. Não me lembro bem que idade é que tinha a menina, mas …quando vim para esta casa ia casar uma rapariga que lá estava. Eu ainda estive um mês e tal com ela. E como também era lá de cima, a rapariguinha disse-me logo as coisas da casa, como eles eram…como ele era… P: E posso saber o que é que ela lhe disse? Benedita Vau: Ela disse que a senhora era assim um bocadinho…embirrante. Ele, não tanto, mas que não era de muitas palavras, o senhor. E que tínhamos que estar sempre com atenção porque de manhã ele levantava-se cedo e queria o pequeno-almoço na sala. Mas, como estive com ela esse mês…aprendi a fazer as coisas como devia. Estivemos esse mês e eu aprendi. As camisas eram passadas todos os dias: eram muito bem engomadinhas. Eram brancas; parecia que tinham goma e eu tive de começar logo por aí, com ela, a aprender a engomar as camisas. Eles não davam nada a engomar. Tínhamos que nós escovar tudo muito bem escovadinho, passar um pano com Benzovac para tirar as nódoas…também fazíamos esse serviço. …Depois a rapariga casou e eu fiquei com o encargo todo, não tinha mais ninguém. P: E para além da roupa muito bem engomada, havia mais regras? Benedita Vau: Aí já me levantava mais tarde. Às 8 horas. O almoço era servido ao meio-dia. Ele vinha e tinha que estar pronto. O jantar era às sete, sete e meia. Também nunca jantavam mais tarde. Ao domingo é que era diferente. Íamos todos os domingos almoçar a casa da mãe do senhor. Ora, ao domingo eles levantavam-se às quatro da tarde… era…, mas repare, a gente lavava a roupa à mão. Lá em S., ia para a ribeira lavar. Aqui não. A única coisa que havia de electrodoméstico era o frigorífico. Que já lá para cima também havia. E lá ia para a ribeira: ia muito cedo, descalça, lavava, estendia a roupa a corar e tal, e depois ia comer, e depois ia outra vez e punha a roupa a enxugar. Isso é lá em cima. Aqui, ao domingo, punha a roupa à noite na saponária e, como eles se levantavam tarde, fazia uma saponária à roupa, punha-a no tanque e ao domingo de manhã, primeiro ia à missa, à Igreja de Fátima, e depois da missa tomava o café, e então lavava a roupa. P: Ia à missa porque queria ou alguém lhe dizia para ir? Benedita Vau: Não, eu também gostava. Eu gostava de ir à missa. P: Mas ia sozinha ou com as senhoras da casa? Benedita Vau: Não, não, as senhoras nunca foram à missa. A gente é que ia à missa, nós é que íamos sempre. P: Ia com quem? Benedita Vau: Sim, aqui a rapariga que estava na mãe do senhor, ela mais ou menos à hora dizia “Desce, que a gente vai.” Eu descia e íamos as três, porque o prédio era grande. Tinha quatro pessoas. Quer dizer, o prédio era de esquina. E então juntávamo-nos todas as quatro e íamos à missa. Era uma paródia. P: Era uma paródia? Benedita Vau: Ai era, menina. Falávamos dos rapazitos e…olhe, fartávamo-nos de coiso. Saíamos da missa e tínhamos que ir logo para casa. Porque eles sabiam a hora a que acabava a missa. P: Como era o quarto da sua casa? Benedita Vau: Eu tinha o meu quarto, mesmo dentro de casa eu tinha o meu quarto e casinha de banho. Este prédio era na 5 de outubro. Tinha uma casinha de banho para mim e o meu quartinho. A cama era um divã. Quer dizer, era um divã, mas não era de puxar. Tinha um roupeirozinho que era onde a senhora tinha a roupa dela, e da menina. Era grande, era de parede. Tinha uma janelinha pequena. Tomava bem ar. Mas dava tudo para as traseiras. . P: Que objectos é que tinha trazido consigo? Ou valores? Benedita Vau: Não, não tinha nada de valor. Só tinha trazido a minha roupita e mais nada. Coisas de valor não tinha. Quer dizer, o meu enxovalito que fiz lá em cima ficou na minha mãe. Mas não trouxe nada. Não tinha nada. P: E aqui não ganhava nada? Benedita Vau: Aqui já vim ganhar 500$00. P: E isso era bom? Benedita Vau: Era, era menina. Porque eu aí juntava também dinheiro. Eu não era estragada. Aí, como já havia cinema, às vezes íamos ao cinema. Entre nós todas era barato. Quer dizer, barato?! Quer dizer, pouca gente ganhava e era barato porque a gente juntava dinheiro. Já comprava, não sei se a menina sabe, estas mulheres à porta para venderem coisas…roupa, lençóis, isto ou aquilo. Era às portas que mostravam aquelas coisas dentro de umas alcofas grandes e perguntavam se a gente queria ou não queria. Mas não era pela porta, era do lado da porta de serviço que às vezes a porteira não as deixava passar. A gente gostava de ver. Elas tinham que subir de elevador porque não tinham as escadas. E então a gente gostava de ver. Benedita Vau: Às vezes juntávamo-nos ali na varanda, que aquilo tem uma varanda rodada para os quatro inquilinos e a gente via… Às vezes estávamos ali até à meia-noite. Às vezes lá vinha a senhora dizer: Oh meninas!...JÀ é hora de ir para casa… (como quem chama) P: Como é que se juntavam? Benedita Vau: Olhe, tinha uma marquisezinha. A marquise dava para a varanda que era a todo o comprimento do prédio. E então todas elas tinham empregadas, que antigamente toda a coisinha tinha uma empregada. P: Mesmo pessoas com poucas possibilidades? Benedita Vau: Exatamente, porque também pagavam pouco e toda a gente tinha…E então a mais velha que lá estava era uma que dava do lado contrário da nossa 5 de outubro. Mas era muito boa rapariga, aconselhava-nos bem – era a mais velha, mas aconselhava-nos bem. P: Então conseguiam estar ali até à meia-noite? Benedita Vau: Conseguíamos estar ali até à meia-noite. Mas às vezes não podia porque vinha gente de fora… lá os senhores tinham gente e tinha que estar à espera para servir chá, ou isto, ou aquilo. Quando os patrões tinham gente, eu não podia ir. Dava uma escapadela, mas era poucochinho…, mas quando não tínhamos assim que fazer, que os senhores estavam a ver televisão, a gente estava a conversar. Estávamos ali todas. Tinha uma amiga (corrige para colega) que era alentejana; que até foi a madrinha da minha filha mais velha, que era também empregada; chamava-se D.. A gente ficámos sempre amigas… quer dizer, ainda hoje somos amigas. Elas telefonam-me, eu telefono-lhes. Vivíamos ali, quer dizer, parecia que éramos uma família. Estávamos como se fosse uma família. Mas todas ficámos sempre a ser amigas. P: E eram internas? (silêncio) Dormiam lá? Benedita Vau: Sim, era tudo lá. Não, a gente não ia nenhuma sair da casa da senhora. P: Porque é que disse há pouco que “Qualquer coisinha tinha uma pessoa para a ajudar”? Deu-me a entender que não eram só as pessoas mais ricas que tinham uma pessoa dentro de casa. A senhora acha que era mesmo assim? Benedita Vau: Eu acho que sim… sim, por exemplo, onde estava essa minha amiga, a D., que eram já uns senhores de muita idade. O senhor podia ter sido alguma coisa em novo, mas depois também já não era assim de muitas posses para pagar a uma empregada. É isso. Por isso é que havia muita gente, quer dizer, muitas criaditas! E a gente quando se juntava, olhe!.... P: Porque é que diz que eram criaditas? Benedita Vau: Porque éramos piquenas, porque não tínhamos ninguém que nos defendesse, a não sermos umas às outras e, às vezes, bem, eu tive muita sorte por onde andei. Todos eles se interessaram muito por mim. Até esta aqui de Lisboa. Ajudou-me muito e a filha foi ser minha madrinha de casamento. P: E hoje ainda se dão bem? Benedita Vau: Damos, damos. Até com a mãe. E a filha mora lá na casa da mãe. A mãe foi para Sesimbra. Ainda lá fiquei a trabalhar durante um ano depois de casada, que ela não arranjou logo, mas depois veio uma rapariguinha lá de Manteigas. Eu fiquei ainda de manhã, e saía à tarde. P: E vinham todas ali da Beira… Benedita Vau: Alentejanas havia poucas. O resto era tudo lá de cima, até havia uma de Vinhais. (As primeiras palavras saem comovidas e presas) Benedita Vau: Nasci em janeiro de 1942. Foi em L. Quer dizer, sou do concelho de…, distrito da Guarda, na Serra da Estrela. P: Como era a sua família? Benedita Vau: A minha família, quer dizer, pobres…tudo trabalhava…o meu pai andou no carvão, mas na serra, no carvão, e a minha mãe ajudava. Havia também uma fazenda, quer dizer, eles tomavam conta da fazenda, eram caseiros. Tínhamos assim uma casinha, mas era dos senhores. Era onde tínhamos vacas e galinhas, quer dizer, tínhamos assim um bocadinho de tudo. P: Lembra-se da sua casa? Benedita Vau: Bem, aquilo não era bem uma casa…era o que se pode dizer umas calheiras. Era assim que se dizia. Só havia uma divisão para a gente estar e para o comer dos animais. Era o feno, a cana, a erva que se colhia para eles comerem quando vinha a geada e não tinham que comer. Depois eu saí…estive até aos 10 anos com a minha mãe e saí de casa muito nova. Nós éramos 6, 6 irmãos que agora só temos 4. E fui servir para uma terra que era próxima da minha. A pé ainda demorávamos muito tempo, quase três horas. Os senhores eram sapateiros. P: Como se chamava esse lugar? Benedita Vau: Esse lugar era S. Lá estava um irmão meu com esses senhores e eu fui para o pé dele onde trabalhava também. Nós lá fazíamos de tudo, mas não pagavam, vou já dizer. P: E ficavam lá a dormir ou iam para casa? Benedita Vau: Não, não, estava mesmo lá cativa. O meu irmão guardava as cabras e ovelhas. O meu irmão guardava isso e eu estava do lado dos senhores. P: Foi para lá por serem conhecidos dos seus pais? Benedita Vau: Quer dizer, aí foi o meu irmão que estava e ele perguntou se eu queria ir, e eu fui. Quer dizer, com muitos em casa, não há assim muito que comer, e a gente desaba cada um para cada lado. Antigamente era assim: quem era rico, ficava. Quem era assim pobrezinho, íamos embora. P: Fez a escola? Benedita Vau: Fiz, mas não fiz. Andei lá, e depois fui-me embora. Andei na 1ª classe. Mas depois, quando fui ter com o meu irmão…dessas senhoras fui para outras. Deixei o meu irmão e fui para outra que me dava poucochinho, mas pagavam-me. Essa senhora era professora. P: Nessa altura, como era o seu dia de trabalho? Benedita Vau: Limpava a casa… Na casa com o meu irmão, tinha um quartinho para mim. Levantava-me às sete e meia e a senhora levantava-se também. Ela tinha um casalinho e eu levava a menina à escola. Ainda ficava assim um bocadinho distante e eu ia pô-la à escola. Depois da escola, limpava a casita. A senhora ensinava-me e eu ia limpando. Ia levar o comer onde andava o meu irmão. A seguir tratávamos os dois da horta com alfaces e cenouras e assim… P: E cozinhava? Benedita Vau: Não, não. Na cozinha, não. Ajudava a descascar as batatas, mas era a senhora que cozinhava. P: Tem boas recordações? Benedita Vau: Quer dizer, eu até gostava dos senhores, principalmente da senhora, que era muito boa senhora. Ela era sobrinha de um padre e era mesmo muito boa pessoa. Ele é que não. Ela era uma santa e às vezes até sonho com ela. Bem, mas depois saí dessa casa e fui para casa daquela professora. Aí já era mais velha, tinha 14, 15 anos. Aí já cozinhava e ajudava. Aí com os meus 14 anos fui então para casa dessa professora que vivia com um cunhado. E estávamos então lá em S., mas fins-de-semana e férias íamos passar para outro sítio e levavam-me. Estive lá muito tempo. Aprendi a ler, mas não aprendi a escrever. Só sei assinar o meu nome. P: Essa senhora ajudou? Benedita Vau: Não, não, é que ela lia muitos jornais e eu aprendi com ela a ler no jornal. Ela também era muito religiosa. Obrigava-nos todos os dias a rezar o terço. Leio tudo, mas escrever, não. Na escola só andei na 1ª classe porque eu não gostava muito de andar na escola e então fugia. A minha mãe pagava as multas. Naquela altura pagava-se multas por não ir e a professora mandava recados porque eu aprendia muito bem - porque é que não ia para a escola? Depois eu disse-lhe que não ia, e não fui. P: Isso também a ajudou a sair mais cedo? Era costume na terra que as raparigas fossem para servir? Benedita Vau: Sim, tudo trabalhava. Em geral, havia muita gente que saiu para servir de lá das nossas terras. A única que foi até à 4ª classe foi uma irmã mais nova. P: E como era com as refeições? Benedita Vau: Comíamos na cozinha, nunca comíamos com os patrões. Mas o que eles comiam comíamos nós. Primeiro servia à mesa, e só depois ia comer. P: Essa casa era de pessoas com algumas possibilidades? Benedita Vau: Não, naquela onde fui para a segunda vez era de uma família que podia mais. Os senhores primeiros, não. P: Tinha tempo para si? Benedita Vau: Sim, podia fazer coisinhas para mim. Ao domingo deixavam-me sair com as colegas. Podíamos ir passear. Se alguma lá quisesse ir a casa, também lá podiam ir porque elas davam-me autorização. Mas tinham de ser pessoas com quem elas vissem que nós podíamos andar, porque às vezes a gente arranjava companhias que elas diziam que a gente não…que era assim…enfim… P: Como descansava? Benedita Vau: Era ao domingo. A gente podia estar sentada se quisesse ficar em casa e podíamos sair. Em questão de descanso não me queixo muito. P: Tinha os seus objetos? Benedita Vau: Sim, tinha as minhas coisinhas. Tinha a minha roupa para vestir, mas tinha de andar fardada. As fardas era a senhora que comprava. As minhas só podia vestir ao domingo. P: Como é que foi tornar-se uma mulherzinha? Benedita Vau: Quer dizer, na questão do período, eu não sabia de nada. Ainda estava cá em cima quando isso aconteceu, mas a senhora fez-me umas toalhinhas e deu-me. P: Como é que olhava para aquela pessoa? Benedita Vau: Eu sentia-me bem com a senhora. Fui-me mais embora porque eu estava ali e não recebia nada. Ela comprava-me uma roupita e não valia a pena. O meu irmão também me disse que eu estava ali e não lucrava nada e então fui para aquela senhora. P: E tinha saudades de casa? Benedita Vau: Tinha… tinha saudades da minha mãe… às vezes ia e depois, quando estava na outra, já não ia tantas vezes à serra porque o meu irmão também já não ia tantas vezes, e assim fui passando. P: Nesta segunda casa, havia muitas regras? Benedita Vau: Eu…(grande hesitação)… como é que eu vou explicar? Havia lá um rapazinho que andava atrás de mim, mas, nessa altura a senhora soube e não me deixava sair. P: Não aceitava isso bem… Benedita Vau: Era nova e não queria que eu lhe falasse. Não queriam que eu o namorasse. Como eu não sabia nada da vida eu perguntava-lhes porquê? E ela dizia que ele era mais velho do que eu, mas eu não deixei o rapaz. Continuei a encontrar-me com ele às escondidas, mas namorei. Ela depois percebeu. Eles queriam fazer como se fossem meus pais. Mas eu queria namorar embora depois também nos tivéssemos zangado. P: Então namorar é que era mesmo proibido? Benedita Vau: Namorar não me deixava, mas eu continuei a namorar. Mas depois também nos zangámos. Acabou tudo e…acabou, pronto. P: Em alguns momentos davam-lhe presentes, talvez para compensar não ter salário? Benedita Vau: Olhe, menina, a senhora tinha em Coimbra uma afilhada que a gente ia lá muita vez. E a afilhada era casada, tinha um menino e essa dava-me coisinhas dela, roupa que fosse boa, sapatos…quer dizer, coisas novas, mas não era sempre. P: E para o seu enxoval? Benedita Vau: Às vezes eu comprava peças de lençol, porque antigamente não havia assim nada feito, a gente é que comprava e comecei a fazer assim o meu enxoval. A senhora também fez umas rendinhas e deu-mas, e também me comprava assim umas toalhinhas…e oferecia… P: No Natal? Benedita Vau: Não, porque antigamente o Natal não era assim como agora. Eu nunca soube o que era o Natal; o Natal, embora fizessem qualquer coisa, não faziam trocas de presentes…não, nem em casa, nada disso. Só quando vi para cá, vim para cá com 19 anos e mesmo a senhora não era assim de fazer uma noite de Natal, como agora se faz. Com a minha mãe, já se fazia o Natal que era fritar, comprar massa, esticar e fazer massa com açúcar e canela. Lembra-me assim do Natal. Só assim, mais nada! P: Disse-me que era da zona da Guarda…já ouviu falar na Obra de Previdência e Formação de Criadas? Eles tinham lá uma sede e eram ligados à Igreja Católica e era uma obra de um padre que era ali da região da Guarda. Nunca ouviu falar nesta instituição, nem tentaram falar consigo? Benedita Vau: Não, nunca ouvi nada. P: Nem quando chegou a Lisboa? Benedita Vau: Não, não. Nada. P: Veio para Lisboa como? Benedita Vau: Vim através de uma amiga lá da terra e fiquei sempre na mesma casa. Dos 14 aos 19 estive sempre lá acima, nessa terra, em S. Estive na mesma terra, mas com pessoas diferentes. P: Nesse tempo fazia todo o tipo de trabalho? Benedita Vau: Não, não, não… P: Era a única que lá estava a servir? Benedita Vau: Era, só era eu. Só quando ia para Coimbra é que a senhora já tinha uma empregada e aí já nos juntávamos, já saíamos as duas à noite, porque ela conhecia aquilo e depois levava-me. Quando, ao contrário, a senhora ia lá a S., ela também levava a empregada e a gente também saía. P: Esta senhora não tinha filhos? Benedita Vau: Não, aquela onde eu estava não. Mas a que vinha de Coimbra tinha um filho. P: Nunca teve de cuidar das crianças, como uma ama? Benedita Vau: Não, não…nunca tive nada disso. P: Quanto é que ganhava, lembra-se? Benedita Vau: Ah, muito poucochinho…eu já nem sei dizer, mas era assim…quinze euros, ai..quinze escudos!....Nada…eram quinze escudos. P: E esse dinheiro dava para quê? Benedita Vau: Olhe, dava para muita coisa, menina. Pois… a gente tinha o comer, tínhamos dormida, tínhamos tudo. Ora, só se a gente precisava de comprar alguma coisita. Se a gente não precisava de comprar no mês, sempre juntava o dinheiro. P: E em comparação com outras profissões? Não tinham gastos? Benedita Vau: Nós não tínhamos. Se durante a semana a gente andava com a tal farda da casa, só se a gente quisesse uma roupita nova. Roupa interior e assim é que a gente comprava. Mas antigamente a gente comprava as cuecas baratíssimas. Soutiens e tudo. P: Havia já cinemas ou teatros? Benedita Vau: Não, lá não havia nada disso. Lá, por exemplo, quando era pelo Carnaval, eles faziam as coisas na rua. Dançava-se, cantava-se e assim. Mas isso lá cinemas, não. Não podíamos ter extravagâncias. P: E como é que as pessoas iam de um lado ao outro? De comboio? Benedita Vau: Não havia transportes nenhuns desses. Por exemplo, se a gente quisesse – eu não vinha, mas quem quisesse vir – às feiras, ia de camioneta. Esse senhor sapateiro que fazia uma festa anual, em Arganil, e eu ia com eles. Porque a senhora também ia, era a feira anual durante três dias. A gente ficava lá, eu ia com a senhora, levávamos os meninos e eu também ia. Íamos então com o patrão, com os patrões, e íamos para a feira anual a Arganil. P: E ia com a sua farda? Benedita Vau: Não, não… isso já levava uma sainha minha ou um vestidito. Isso aí já não ia fardada. P: Então só em casa? Pode-me dizer como é que era? Tem alguma fotografia? Benedita Vau: (risos) Ai, não tenho. De farda tenho, mas não sei onde é que a tenho. Mas tenho, isso guardei. P: Como era? Benedita Vau: Olhe, nesta altura em que tirei a fotografia estava de bata, tenho a impressão que era azul-escura com o aventalinho branco e a golinha branca. P: As pessoas eram exigentes com a higiene, o serviço da casa, da mesa? Como é que aprendeu? Benedita Vau: Ah.. à mesa ensinaram-me muito bem a servir. Olhe, servia do lado direito… ou do lado esquerdo, agora já não sei (risos), mas sei que era só daquele lado, tirar os copos do coiso, tirar os pratos, isso eu sabia fazer muito bem, até porque ainda sei fazer. Se tiver cá gente, ainda faço. P: Continua a respeitar essas regras Benedita Vau: Exatamente. Mas era assim. Estavam sempre a ver como devia ser. Às vezes tocavam a campainha para a gente ir ver o que era. P: Havia troca de palavras quando essas pessoas estavam, ou o seu papel era mais de estar em silêncio? Benedita Vau: Não, estava na cozinha à espera que chamassem e ajudava assim na sala (alguma resistência em falar, diminuição do tom de voz). P: Não participava nessas reuniões? Benedita Vau: Não, quer dizer, se estivéssemos ao pé dos patrões, não. Sentava-me sempre na cozinha e quando elas depois chamavam… P: Agora vamos fazer uma viagem até Lisboa. Gostava que, dentro do possível, me descrevesse como é que foi essa chegada a Lisboa. Benedita Vau: Tinha 19 anos quando vim para Lisboa. Olhe, menina, eu, da terra, tinha e tenho uma irmã ali em Sacavém. Estava casada e quando vim, em vez de ir logo para casa da senhora onde vinha para servir, vim para casa da minha irmã. Vim de comboio. Fiquei em Sacavém. Dormi lá essa noite. Já era noite e o meu cunhado foi-me buscar ao comboio. Cheguei de noite e fiquei lá. Ao outro dia, ele veio pôr-me a Lisboa, porque eu não conhecia nada e ele veio pôr-me à direção que eu trazia que era aqui na Av. G., numa vivenda, que era a mãe da senhora para donde eu vinha. Ia ter ali com essa senhora. Apresentei-me ali (e o que é que lhe perguntaram? O que é que queriam saber de si, já vinha com uma referência?) Já vinha de lá o que eu sabia fazer... e assim não pediam informações disto e daquilo. Ela perguntou se eu gostei de ter vindo e eu disse que não conhecia ninguém. Que não sabia se ia gostar… eu uma vez fui ter ao Fundão – já que a menina está a perguntar. Foram-me pôr lá e eu vim novamente com o meu pai (voz assertiva). Não quis lá ficar. Queriam que eu fosse para aí, que tinha lá uma tia minha. Eu ia para ao pé da minha tia e eu não gostei nada daquilo e disse que não queria lá ficar, e chorei, e vim-me embora. O meu pai trouxe-me outra vez. Por isso se eu agora não gostasse eu teria que me ir embora. Ficar aqui, estar contrariada, e para mais que não conhecia…isto aqui era coiso e eu não conhecia nada…e eu disse-lhe que se gostasse de ficar, ficava; se não gostasse, que ia para o pé da minha irmã e que depois ia para a terra outra vez. Então veio a filha da senhora e fui para a 5 de outubro. Fui para a 5 de outubro. E ali estive desde os 19 até que me casei, aos 24 anos. P: Como é que viu Lisboa? Como é que olhava para Lisboa? Benedita Vau: Olhe, menina, Lisboa não era nada daquilo que é hoje. Não havia tantos carros. Não havia… assim… nada, quer dizer, era diferente, pronto. P: Estávamos no ano de… Benedita Vau: Bom, eu tinha 19, em que ano estávamos? (Faço contas e chego ao ano de 1961) P: Como era o prédio para onde foi trabalhar? Benedita Vau: Era num segundo andar… P: E como era a família? Benedita Vau: Olhe, a família era…a senhora. Ele era engenheiro. Ela não fazia nada e tinha uma filha. Não me lembro bem que idade é que tinha a menina, mas …quando vim para esta casa ia casar uma rapariga que lá estava. Eu ainda estive um mês e tal com ela. E como também era lá de cima, a rapariguinha disse-me logo as coisas da casa, como eles eram…como ele era… P: E posso saber o que é que ela lhe disse? Benedita Vau: Ela disse que a senhora era assim um bocadinho…embirrante. Ele, não tanto, mas que não era de muitas palavras, o senhor. E que tínhamos que estar sempre com atenção porque de manhã ele levantava-se cedo e queria o pequeno-almoço na sala. Mas, como estive com ela esse mês…aprendi a fazer as coisas como devia. Estivemos esse mês e eu aprendi. As camisas eram passadas todos os dias: eram muito bem engomadinhas. Eram brancas; parecia que tinham goma e eu tive de começar logo por aí, com ela, a aprender a engomar as camisas. Eles não davam nada a engomar. Tínhamos que nós escovar tudo muito bem escovadinho, passar um pano com Benzovac para tirar as nódoas…também fazíamos esse serviço. …Depois a rapariga casou e eu fiquei com o encargo todo, não tinha mais ninguém. P: E para além da roupa muito bem engomada, havia mais regras? Benedita Vau: Aí já me levantava mais tarde. Às 8 horas. O almoço era servido ao meio-dia. Ele vinha e tinha que estar pronto. O jantar era às sete, sete e meia. Também nunca jantavam mais tarde. Ao domingo é que era diferente. Íamos todos os domingos almoçar a casa da mãe do senhor. Ora, ao domingo eles levantavam-se às quatro da tarde… era…, mas repare, a gente lavava a roupa à mão. Lá em S., ia para a ribeira lavar. Aqui não. A única coisa que havia de electrodoméstico era o frigorífico. Que já lá para cima também havia. E lá ia para a ribeira: ia muito cedo, descalça, lavava, estendia a roupa a corar e tal, e depois ia comer, e depois ia outra vez e punha a roupa a enxugar. Isso é lá em cima. Aqui, ao domingo, punha a roupa à noite na saponária e, como eles se levantavam tarde, fazia uma saponária à roupa, punha-a no tanque e ao domingo de manhã, primeiro ia à missa, à Igreja de Fátima, e depois da missa tomava o café, e então lavava a roupa. P: Ia à missa porque queria ou alguém lhe dizia para ir? Benedita Vau: Não, eu também gostava. Eu gostava de ir à missa. P: Mas ia sozinha ou com as senhoras da casa? Benedita Vau: Não, não, as senhoras nunca foram à missa. A gente é que ia à missa, nós é que íamos sempre. P: Ia com quem? Benedita Vau: Sim, aqui a rapariga que estava na mãe do senhor, ela mais ou menos à hora dizia “Desce, que a gente vai.” Eu descia e íamos as três, porque o prédio era grande. Tinha quatro pessoas. Quer dizer, o prédio era de esquina. E então juntávamo-nos todas as quatro e íamos à missa. Era uma paródia. P: Era uma paródia? Benedita Vau: Ai era, menina. Falávamos dos rapazitos e…olhe, fartávamo-nos de coiso. Saíamos da missa e tínhamos que ir logo para casa. Porque eles sabiam a hora a que acabava a missa. P: Como era o quarto da sua casa? Benedita Vau: Eu tinha o meu quarto, mesmo dentro de casa eu tinha o meu quarto e casinha de banho. Este prédio era na 5 de outubro. Tinha uma casinha de banho para mim e o meu quartinho. A cama era um divã. Quer dizer, era um divã, mas não era de puxar. Tinha um roupeirozinho que era onde a senhora tinha a roupa dela, e da menina. Era grande, era de parede. Tinha uma janelinha pequena. Tomava bem ar. Mas dava tudo para as traseiras. . P: Que objectos é que tinha trazido consigo? Ou valores? Benedita Vau: Não, não tinha nada de valor. Só tinha trazido a minha roupita e mais nada. Coisas de valor não tinha. Quer dizer, o meu enxovalito que fiz lá em cima ficou na minha mãe. Mas não trouxe nada. Não tinha nada. P: E aqui não ganhava nada? Benedita Vau: Aqui já vim ganhar 500$00. P: E isso era bom? Benedita Vau: Era, era menina. Porque eu aí juntava também dinheiro. Eu não era estragada. Aí, como já havia cinema, às vezes íamos ao cinema. Entre nós todas era barato. Quer dizer, barato?! Quer dizer, pouca gente ganhava e era barato porque a gente juntava dinheiro. Já comprava, não sei se a menina sabe, estas mulheres à porta para venderem coisas…roupa, lençóis, isto ou aquilo. Era às portas que mostravam aquelas coisas dentro de umas alcofas grandes e perguntavam se a gente queria ou não queria. Mas não era pela porta, era do lado da porta de serviço que às vezes a porteira não as deixava passar. A gente gostava de ver. Elas tinham que subir de elevador porque não tinham as escadas. E então a gente gostava de ver. Benedita Vau: Às vezes juntávamo-nos ali na varanda, que aquilo tem uma varanda rodada para os quatro inquilinos e a gente via… Às vezes estávamos ali até à meia-noite. Às vezes lá vinha a senhora dizer: Oh meninas!...JÀ é hora de ir para casa… (como quem chama) P: Como é que se juntavam? Benedita Vau: Olhe, tinha uma marquisezinha. A marquise dava para a varanda que era a todo o comprimento do prédio. E então todas elas tinham empregadas, que antigamente toda a coisinha tinha uma empregada. P: Mesmo pessoas com poucas possibilidades? Benedita Vau: Exatamente, porque também pagavam pouco e toda a gente tinha…E então a mais velha que lá estava era uma que dava do lado contrário da nossa 5 de outubro. Mas era muito boa rapariga, aconselhava-nos bem – era a mais velha, mas aconselhava-nos bem. P: Então conseguiam estar ali até à meia-noite? Benedita Vau: Conseguíamos estar ali até à meia-noite. Mas às vezes não podia porque vinha gente de fora… lá os senhores tinham gente e tinha que estar à espera para servir chá, ou isto, ou aquilo. Quando os patrões tinham gente, eu não podia ir. Dava uma escapadela, mas era poucochinho…, mas quando não tínhamos assim que fazer, que os senhores estavam a ver televisão, a gente estava a conversar. Estávamos ali todas. Tinha uma amiga (corrige para colega) que era alentejana; que até foi a madrinha da minha filha mais velha, que era também empregada; chamava-se D.. A gente ficámos sempre amigas… quer dizer, ainda hoje somos amigas. Elas telefonam-me, eu telefono-lhes. Vivíamos ali, quer dizer, parecia que éramos uma família. Estávamos como se fosse uma família. Mas todas ficámos sempre a ser amigas. P: E eram internas? (silêncio) Dormiam lá? Benedita Vau: Sim, era tudo lá. Não, a gente não ia nenhuma sair da casa da senhora. P: Porque é que disse há pouco que “Qualquer coisinha tinha uma pessoa para a ajudar”? Deu-me a entender que não eram só as pessoas mais ricas que tinham uma pessoa dentro de casa. A senhora acha que era mesmo assim? Benedita Vau: Eu acho que sim… sim, por exemplo, onde estava essa minha amiga, a D., que eram já uns senhores de muita idade. O senhor podia ter sido alguma coisa em novo, mas depois também já não era assim de muitas posses para pagar a uma empregada. É isso. Por isso é que havia muita gente, quer dizer, muitas criaditas! E a gente quando se juntava, olhe!.... P: Porque é que diz que eram criaditas? Benedita Vau: Porque éramos piquenas, porque não tínhamos ninguém que nos defendesse, a não sermos umas às outras e, às vezes, bem, eu tive muita sorte por onde andei. Todos eles se interessaram muito por mim. Até esta aqui de Lisboa. Ajudou-me muito e a filha foi ser minha madrinha de casamento. P: E hoje ainda se dão bem? Benedita Vau: Damos, damos. Até com a mãe. E a filha mora lá na casa da mãe. A mãe foi para Sesimbra. Ainda lá fiquei a trabalhar durante um ano depois de casada, que ela não arranjou logo, mas depois veio uma rapariguinha lá de Manteigas. Eu fiquei ainda de manhã, e saía à tarde. P: E vinham todas ali da Beira… Benedita Vau: Alentejanas havia poucas. O resto era tudo lá de cima, até havia uma de Vinhais. -
"Famílias Cruzadas"
Luíza C.: Vou começar por dizer que a minha família é completamente diferente do lado da minha mãe e do lado do meu pai… do lado do meu pai (eu até trouxe fotografias para ver) toda a gente que já tinha curso superior e uma infância… (confortável?) Sim, apesar de o meu pai ter vindo para o Colégio dos Jesuítas. Mas já o meu bisavô tinha bacharelato. Do lado da minha mãe, é completamente diferente. O meu avô era carpinteiro, a minha avó doméstica. Não viviam mal, só que o meu avô morreu e, como tinham vários filhos, veio tudo por ali abaixo (quantos filhos?) Na altura, quatro. Eram três raparigas e um rapaz. A solução era a minha mãe e mais uma das irmãs irem para a Casa Pia. Mas, como elas tinham uma casa, e um terreno pequenino, disseram logo que elas tinham muito dinheiro, quando foram lá para fazer o ponto de situação. Assim, só a irmã da minha mãe é que foi para a Casa Pia. A minha mãe ficou. Só que a minha mãe era uma pessoa muito desembaraçada. Ela tinha 10 anos quando o pai morreu. E, numa família, andavam à procura de uma criança para fazer companhia à Senhora. E a minha mãe foi para lá porque foi a que conseguiu o lugar. (e tinha quantos anos, nessa altura?) Devia ter uns onze…ela não gostava muito de falar da infância. E então, a minha mãe foi, esteve lá um ano, mas a senhora tinha lá um Senhor dos Passos muito grande que ela diz que se assustava quando se levantava de noite e ia à casa de banho, e aquilo assustava-a, e depois a irmã mais velha começava a dizer que, no sítio onde viviam, a festa disto e a festa daqueloutro, e ela acabou por sair e então teve que ir trabalhar. Sei que ela trabalhou numa fabriqueta, uma fábrica de doces para Belém e, como era assim muito espevitada, puseram-na até a fazer marmelada. E depois ela acabou por se queimar e…tiraram-na depois de lá. Devem ter tido também um certo receio, como ela era muito nova…e então foi trabalhar para várias casas. Eu sei que ela trabalhou numas espanholas, mas não gostava de contar (com ênfase). Eu só sei isso. A única coisa que ela me contava é que depois foi parar a uma casa de gente muito rica, tinha um cozinheiro, e ela aprendeu a cozinhar com o Senhor, e foi aí que ela conheceu o meu pai. O meu pai foi uma pessoa que... não sei, depois, mais pormenores… sei que ela acabou por ir viver com o meu pai: tenho impressão que…a servir, e depois acabaram por juntar os trapinhos, como se costuma dizer. Porque o meu pai só casou com a minha mãe pela igreja porque a minha mãe era de um estrato social muito diferente e as minhas tias eram muito, muito religiosas e não iam admitir a minha mãe sem ser casada pela igreja. Para elas isso é que era o importante, até porque o meu pai depois seguiu a carreira diplomática (com que cargo?) Ele chegou a..C.. E pronto. Depois nós nascemos. O meu irmão mais velho nasceu aqui (Lisboa). Nós já nascemos no Norte. Eu e mais dois que eram mais velhos do que eu. E depois como o meu pai andou sempre fora, no estrangeiro, nós acabámos por ficar cá (Lisboa). Entretanto, o meu irmão mais velho, como ia para a universidade, quis vir para Lisboa e nós viemos por arrasto porque a minha mãe era cá de Lisboa. Vim eu e veio outro dos meus irmãos. O outro vivia com as tias. Em relação ao Norte, eu nasci numa casa enorme, uma casa que tinha quase 40 metros de comprimento e havia muitas empregadas, desde a cozinheira, criadas de sala, depois uma outra que se ocupava da roupa. (quer explicar melhor o que é uma criada de sala?) A criada de sala só serve à mesa - esta por acaso também ia às compras - e tem a incumbência de servir e ver se realmente a comida vinha em condições e, normalmente, auxiliava também a minha tia na roupa, no vestir. Como a casa era muito grande, havia mais duas que se ocupavam da parte de limpeza da casa e havia uma que era quase exclusivamente para passar a ferro, lavar a roupa, pôr no tanque, fazer as barrelas e assim. E havia também os criados do quintal. As empregadas viviam em casa e tinham os seus quartos lá em cima, nas águas-furtadas, mas os quartos não eram maus. E, no quintal, havia o criado que até era mais feitor. Havia um que só cuidava do quintal: de regar, de sachar. Mas esse que vivia no quintal era casado com a filha da cozinheira. Quando nasci, a cozinheira já era muito velhota. A cozinheira foi para lá quando o meu pai nasceu. Foi no fim do século XIX. E ela tinha uma filha (até tinha outra que vivia no Brasil). Ela era uma excelente cozinheira. Eu não tenho memória dos cozinhados dela. Ela já estava muito velha e quase sempre sentada numa cadeira, na cozinha, só para vigiar e assim. Descascava batatas, era o entretém dela, e estava ali sentadinha. E contava-me histórias. Eu às vezes gostava de estar sentada ao lado dela. Contava-me coisas do tempo em que era preciso ir buscar água e que era sonâmbula e que depois ficava muito aflita porque de manhã encontrava os cântaros todos com água. Eles estiveram numa casa em que eu penso que tinham que ir buscar água, mas como era pequena, havia pormenores aos quais eu não ligava. Então ela via os cântaros cheios de água e perguntava-se como aquilo tinha sido possível. Então, a ideia dela foi durante a noite amarrar um avental às pernas e, quando ia para se levantar, acordava… (para travar o sonambulismo). Ela morreu. Julgo que morreu em 1956, 57…ela até morreu de desgosto porque gostava muito do genro e ele tinha morrido. Ninguém lhe queria dizer nada porque ela já estava com muita idade e ela deve ter perguntado por ele (ele vivia no quintal com a filha) e algum de nós deve ter ido “O J. Morreu”. O certo é que ela morreu logo a seguir com o desgosto. Já devia ter oitenta e tal anos. (Portanto, ficou sempre na casa?) Ficou sempre na casa. Aliás, uma das filhas foi para o Brasil e a outra filha ficou lá (na casa). Eu penso que essa filha também trabalhou, em princípio, lá em casa. Quando a conheci já estava casada e tinha os filhos. O mais novo até tinha a minha idade. Os outros eram todos mais velhos. Ela vivia à parte com os filhos, mas lá em casa sempre os acolheram muito bem porque a filha mais velha tirou Farmácia. Uma das minhas tias era madrinha e gostava muito dela. O outro rapaz era afilhado de outro dos meus tios e fez até ao 5º ano antigo. Outra filha fez o 2º ano e não quis mais. Outra foi para a costura porque não queria e depois ainda tinha mais outro que só fez a antiga 4ª classe e também não quis. Maria C.: A nossa família tinha muitas quintas. Dezanove. Foi o meu bisavô que as comprou. Foi para o Brasil, miúdo, e depois enriqueceu lá, e veio, e comprou 19 quintas e trouxe a família toda. E ele tinha uma quinta muito bonita que é a Quinta da M. (essa quinta fazia parte da família) e eu ainda me lembro de a ir ver. E aqui há uns anos atrás, veio cá uma prima nossa do Brasil, que não conhecíamos, e estivemos a ver a quinta. E o senhor, o caseiro, deixou-nos entrar e é que nos contou como era a vida deles. Por exemplo, eles eram caseiros, mas não podiam ter gado, só podiam gerir o gado dos senhores. Apesar de tudo, os caseiros tinham uma casa, não é? Luísa C.: Conheci algumas casas que até eram muito boas, de pedra. As outras não sei… P: E as relações entre o pessoal doméstico, como eram? Luíza C.: Havia uma hierarquia, não é? Mas, por exemplo, a “Luísa cozinheira”, como a gente lhe chamava, tinha a filha que era casada com o feitor. Depois havia uma outra senhora cuja filha esteve lá como criada, casou lá, e continuou lá, mas já como externa. E havia a sobrinha desse senhor que tinha também uma sobrinha lá a trabalhar. Depois também havia uma senhora que estava lá como Dama de Companhia, mas também fazia assim umas coisas. Essa esteve num convento e acho que se deu muito mal, ou não estavam para aturá-la e mandaram-na para lá. (Imagino que à hora da refeição teriam uma mesa onde se sentavam todos?) Era. Havia uma grande mesa. Maria C.: Eu já comi com eles nessa mesa! Luíza C.: A mesa ficava assim encostada à parede, era grande, mas às vezes nem cabiam lá todos e depois comiam outros noutra mesa. Porque havia lá o do quintal, o filho, era o outro senhor que também lá trabalhava, havia a filha, havia uma que era prima, e havia outra sobrinha. A Maria Emília era sobrinha do senhor António. E a Domicilia era sobrinha da Maria Emília. (Em termos de funções?) Temos uma que se ocupava principalmente da roupa, de passar a ferro, lavar e também ajudava a fazer os quartos. A outra fazia a limpeza e também ajudava a fazer os quartos. Havia a de sala porque se fosse para fazer um recado ou ir a casa de alguns primos, era ela que normalmente ia. As criadas de sala normalmente é que iam. (Luíza mostra um avental): Isto já deve ser mais velho do que eu. Essa levava um avental branco. Faziam questão. A da cozinha, tinha o avental da cozinha, mas se tinha que ir buscar qualquer coisa à rua, levava um destes (mostra-me um segundo avental). Na parte de trás, as tiras cruzavam-se. A da cozinha, se tivesse que sair, tirava o avental para se calçar. Elas até gostavam muito de andar descalças, mas lembro-me que naquela altura era proibido. Pagava-se 25 tostões se eram apanhadas (risos) (Mas em casa andavam descalças?) Não as deixavam. Tinham de andar com uns chinelos ou uma coisa assim. No caso do avental, era levado sempre pela criada de sala normalmente quando íamos a casa dos primos e eu até achava muita graça porque ela dizia: “A senhora manda dizer à senhora que manda muitos cumprimentos” (risos). Eu até acho que a Maria E. me dizia que usava este avental branco com um vestido preto e que o levou ao meu batizado. Maria C.: A Maria E. é, para nós, a grande referência, porque foi lá para casa com 20 anos e ela era suposto ser criada de fora (a chamada criada de fora). Mas ela gostava de cozinhar e aprendeu com a Luísa e ela era uma doceira e uma pasteleira como não há! Eu ainda tenho receitas que ela me deu. E era muito engraçado porque ela tinha 20 anos e brincava com o meu pai no corredor e faziam corridas. O corredor tinha... 38 metros. De maneira que eles faziam corridas os dois. E também foi sempre uma referência para nós. E eu cheguei lá a passar uns dias de férias e ela fazia-me todos os dias uma receita de família. Muitas das receitas vieram do Brasil. Uma das receitas era o véu da noiva ou trouxa ...eram salgados. Eu tenho uma receita de família, de empadas, que veio do Brasil. E o timbale, que é um pastel de massa folhada, também foi ela que me ensinou a fazer e ela é para nós a grande referência como empregada porque… era uma pessoa de família. E ela contou-me no comboio que…A última vez que a vi ainda estava lá a trabalhar em casa da minha tia, já muito velhinha, e ela contou-me que elas só foram inscritas na segurança social e tiveram direito a um salário com o 25 de abril. Disse-me que recebiam 1500$00. Ora, quando eu fui lá foi em 1998, elas estavam a receber 3 contos por mês. 3 contos, 3 contos e quinhentos que elas ganhavam. Luíza C.: Eu acho que elas ganhavam 150$00 quando eu era pequena. Na família do meu pai, era o meu avô que era carpinteiro e a minha avó que esteve em casa (Luíza mostra-me as fotos). Esta é a minha mãe e a minha avó materna. Maria C.: É que as minhas avós eram irmãs. Os meus pais são primos direitos. A minha outra avó foi para aquele orfanato que havia ali entre P... Uma coisa muito conhecida que agora penso que está em ruínas…onde estão os depósitos de gás…nesse orfanato ela esteve desde os oito aos dezoito. Nunca tinha visitas da família. Esta fotografia é na casa do C. que agora não se visita porque foi vendida e deve estar para construção. Luíza C.: Esta também era empregada lá em casa, mas era do outro lado, da minha tia. Era a Amélia. Maria C.: A Amélia era tão pequenina que lhe fizeram uma … Quando eu nasci, ela só se dedicava exclusivamente a uma tia-avó minha que tinha tido tuberculose, e ela recebia a comida, tinha uma cozinha à parte onde lavava a loiça. Tratava só dessa minha tia-avó. Este meu avô ficou viúvo muito cedo. A minha avó teve 4 filhos e morreu com 32 anos. E ele casou com uma cunhada. Foi professor na Universidade de…. E a minha avó (o pai dela tinha muito dinheiro) e ela foi para a Suíça, para Davos. Esteve lá 3 anos para ver se melhorava e na altura chamavam-nos “tísicos” (hoje será pneumologia) e ele foi professor na Universidade. Ele casou com uma cunhada (a minha tia-avó) que foi minha madrinha. Maria C.: Mas também foi um dos responsáveis pela instalação da assistência à tuberculose. Havia umas enfermeiras visitadoras. Na altura havia muita tuberculose, e eu lembro-me que essa minha tia-avó, que era minha madrinha, que depois descobriram que estava tuberculosa, nós não nos podíamos chegar perto dela para não nos contagiar. Depois a Amélia ainda ficou como empregada da minha tia-avó na Av. I. e lembro-me perfeitamente que ela era tão pequenina que tinha um caixote de madeira para chegar ao fogão. E nós quando éramos pequeninos, íamos lá visitá-la ela cantava-nos aquelas canções “Amélia vem…” e não fazia a mínima ideia de onde vinham aquelas canções, mas eu aprendi com ela. Antes dessa minha tia-avó ter ficado tuberculosa, um irmão do meu pai que era filho dela do segundo casamento (de onde nasceu uma rapariga e um rapaz) acabou também por ficar tuberculoso. E foi para o sanatório da Guarda. E até acho que eles tinham uns chalés para os doentes estarem porque a Amélia foi para lá. E a Amélia ele nem queria que ela chegasse muito perto porque tinha medo. Ele morreu em 1939 e ela contava muitas vezes que ele tinha medo que ela apanhasse e dizia: “Vai-te embora!” Eu tenho aqui cartas delas do sanatório a dizer do estado dele, como é que ele estava. Maria Campos: Essa desgraçada da Amélia ainda foi tomar conta de um padre em G.!...ela era órfã, foi criada num asilo. Ela tinha umas mãos de fada, tinha umas mãos que faziam uns trabalhos magníficos. Tinha uma tal memória visual que às vezes a minha tia via alguma coisa numa montra, a Amélia ia lá, olhava, chegava a casa e tirava o bordado. E é engraçado porque ela tinha um sobrinho que foi ajudando e lhe fez o enxoval para ele ir para padre, e ele foi para padre. Uma vez fui ver uma palestra porque estava desconfiada que era ele, e no fim fui perguntar-lhe se não era sobrinho. E ele disse: “Sou!” e ficou até muito admirado. Ela devia ter muito jeito para os doentes, penso eu…O que nós chamaríamos hoje um “cuidador”. Cuidadora, neste caso. Mas o caso aqui é herdarem e emprestarem as criadas, não é? Alguém que herda, não é? Luíza C.: Ela foi para lá de empréstimo e voltou outra vez para casa. (Não tinham costureira em casa?) Uma das filhas do feitor tinha ido para a costura. De maneira que ela é que fazia os arranjos. Maria C.: Eles tinham um quarto de costura a que chamavam a “Sala da costura” que era uma sala para onde foi depois a televisão e até se ficava lá quando era preciso, mas era a sala da costura. Até porque houve uma criada lá em casa que eu ouvia falar, que era a J., que acabou por morrer também lá em casa. Chamavam-lhe “A Araúja”. Era a J. e era a “Araúja”. Devia ser Araújo de apelido. Luíza C.: Há cinco ou seis empregados que trabalhavam lá em casa que estão no cemitério, num jazigo, que é muito bonito. É um monumento muito bonito. (e onde é que está disposto? Ao lado da família?) Maria C.: Não está disposto ao lado da família, mas está pela família, não é? É mais bonito o jazigo dos empregados que o da família. Luíza C.: O jazigo foi herdado pela minha bisavó e até está num lugar muito próximo da capela, onde tem uns leões e uma nossa senhora. É muito bonito. Tem duas pedras. E eu lembro-me de…ora o João, a Luísa, a Maria A., a Amélia, a Maria E.… O primeiro a morrer até foi o João, que eu me lembre…e se calhar até um bebé…tenho a impressão de que havia um bebé que morreu, filho do João, e é capaz de estar lá enterrado. (mostrando as fotografias) É este o dos empregados. E este é o da família. É até mais alto, mais projetado. Houve uma que pediram autorização para ficar lá, não foi? Foi a Maria E.. Ela tratava-me sempre por menina. Iam sempre embrulhados num lençol de linho. E ela disse-me: “Eu posso ficar com o lençol de linho?” E eu respondi: Ó Maria E., fica com os lençóis de linho que quiseres.” Maria C.: Na realidade, elas ficavam lá em casa, sempre. Eu lembro-me ainda da Maria A.… Luíza C.: (ainda vendo as fotografias) “Aqui a tal que esteve num convento.” “E aqui a que tratava da roupa. Morreu há pouco tempo. Morreu este ano, com 90 e poucos anos. Este é o pai da minha sobrinha e a minha mãe e a minha tia. Foi por causa dela que a minha mãe teve que casar.” Maria C.: Ela era um bocado tenebrosa, era…muito religiosa! Contava-nos uma história porque tinha uma quinta em A. e o padre de F. tinha a quinta em frente. A. é uma pequena terra que tem uma quinta muito bonita. E aquilo só tinha uma entrada, uma quinta, tinha a do padre e tinha a Igreja. E o padre foi lá e disse: “Ai, Senhora Dona Maria L., coitadinhas das crianças, não têm escola lá na zona, a senhora tem a casa da quinta vazia… não se importa de dar umas salas para fazer uma escola para as crianças?”. E ela disse: “Ah, está bem, Senhor Padre e fruta também podem colher para comer.” Mas depois veio outra vez o Senhor Padre e disse: “Ah, Senhora Dona Maria L., as crianças mais pequenas precisam de um jardim infantil…” Ela olhou para ele (e era super católica) e disse: “Oh Senhor padre, eu já emprestei metade da quinta, agora o senhor tem a quinta em frente, empreste o Senhor!” (risos) Esta foi ama dela. Foi ama de leite, que depois foi para o Brasil, era a Felismina, e até tenho aqui… ela nasceu em 1897. A minha avó, eu vejo cartas dela em que ela se diz sempre muito cansada, e o certo é que teve os 4 filhos e acabou por morrer porque… quando ela morreu, o mais pequeno teria para aí dois anos. Os quatro filhos teriam a idade de seis, cinco, três e dois. Eu acho que ela não podia amamentar…eu acho que sim…como morreu e nas cartas está sempre muito cansada…. Já devia ter tuberculose. Depois de nascer a minha tia ficou grávida de outro filho, o meu tio C., e a minha tia ficou com a avó. Depois, mais tarde, a Felismina foi para o Brasil, a que foi ama da minha tia. P: É curioso terem tantas memórias fotográficas… MC: Sim, na família havia muitas fotografias e eles tinham vários álbuns e há muitas fotografias destas. Por exemplo, tenho uma da minha avó ainda muito novinha no Gerês. E sabe, depois as coisas acabam por se encaixar todas, porque a minha tia quando foi para a instrução primária foi para as Doroteias. Durante a Implantação da República, lá teve que regressar à base porque correram com os religiosos, e então veio uma professora para a minha tia do Luxemburgo que eu tenho muitas cartas dessa professora. Veio fazer a educação da minha tia, aprender o francês, pintar, tocar piano e acho que até aprendeu um bocado de alemão. E, entretanto, a minha tia cresceu, já não precisava dela, e houve uma condessa que arranjou que essa senhora fosse para a casa da Í… fazer a educação do Marquês de…. A senhora escreve à minha tia, conta a vida lá na casa da Í… e muitas vezes pergunta pela senhora Júlia Araúja. Ela era luxemburguesa e devia gostar muito dessa empregada porque pergunta nas cartas pela Araúja e fala muitas vezes nela. Devia ser no tempo da L., a cozinheira. Nas cartas, passa por Paris e diz o que se usa, quando vai ver a família depois da Guerra descreve aquilo tudo…e quando vai para a praia da granja, de férias, e as outras, pergunta sempre pelas empregadas. Maria C.: Havia uma condição para todas elas serem empregadas da casa. Todas elas tinham que rezar muito. Ai isso era. Elas rezavam todas as noites o terço e tinham que ir à comunhão, à missa. E não podiam ser muito novas. Isso a gente acha que devia ser por causa dos meus tios (dos irmãos das minhas tias) serem rapazes, não é? E para evitar problemas. Elas tinham que ter pelo menos 18 anos, ou assim. Por acaso, a Domicilia foi julgo que com 15 anos para Coimbra, mas lás nessa altura não havia rapazes. (as empregadas sabiam ler, escrever? Tiveram essa preocupação?) Sim, tinham. Sabiam ler porque, se vir, podem estar mal escritas, mas escreviam cartas. Esta é de 1938 e elas escrevem. (leio uma referência à Prazeres). A P. é a tal que tirou farmácia, do feitor. Elas mesmo quando foram para o Brasil, não deixaram de escrever. Maria C.: Esta carta é gira: “O P. só quer trabalhar oito horas, mas há um pedreiro em M. que trabalha 10 horas e é um bom pedreiro e é bom trabalhador e o mudo foi o que fez o forno de cavadas (já aqui está a reivindicação das 8 horas!) Isto é em 1939. O meu bisavô teve muito sucesso, até porque casou com a filha do patrão, e o patrão por acaso até era também lá de F. e ele chegou a comprar a casa, e remodelou-a. O meu bisavô comprou aquela casa. Ainda têm uma ramada com as vides que ele levou daqui para lá. E ela fez a tese dela com os documentos de família. A casa de família era daquelas senhoriais que tinham a adega de um lado e o celeiro do outro. Aquelas grandes arcas. E as tias eram beatas até dar por um… e então, elas tinham uma característica muito engraçada: elas davam catequese, lá em F.. E além de darem marmelada como merenda, compraram uma bola de cauchu porque elas gostavam muito de futebol. E então, nos intervalos da catequese, jogavam os mais velhos com uma bola verdadeira, para atrair os mais novos para a catequese. E ela arbitrava. Ainda hoje há muita gente que me diz que fazia catequese com as tias da casa. E tinham uma máquina de filmar e passavam os filmes. Primeiro com a lanterna mágica, e depois com a máquina. Elas nunca casaram, mas tinham esse aspeto…. Há até uma história de que uma vez estavam a ver o Clube F. a jogar, e ela olhou e disse: Falta o não sei quantos. Onde é que ele está? Estou aqui, minha Senhora. Por isso, elas gostavam de futebol. `Portanto, sendo elas muito católicos e sem querer casar, tinham uma versão muito engraçada… Luíza C.: Eu tenho centenas de cartas e isso é como viajar no tempo…Por exemplo, uma vez o meu pai levou uma palmada e a criada ficou toda zangada porque tinham dado uma palmada ao menino. Maria C.: Era uma vida difícil, a das mademoiselles, porque era um bocadinho acima das criadas. E ela fazia roupa, teria mais lugar à mesa. Ela ensinava línguas. Era, vá lá, mais especializada porque ensinava as línguas, ensinava a pintar, tocar piano… Por exemplo, guardo documentos em que se percebe que o patrão que tinham um criado e quando viu que o criado foi preso, disse que o criado que era dele e fazerem o favor de o libertar e darem-lhe duas vacas que tinha levado. P: Regressando agora à relação entre o seu pai e a sua mãe, apesar de tudo, é uma relação com um final feliz, não é? Luíza C.: Não…eu nunca vivi com o meu pai…ele estava sempre no estrangeiro. E depois a minha mãe acabou por ficar sempre cá e depois houve uma separação…assim…ele ainda pensou em levar a minha mãe, só que nessa altura a questão do estrato social era muito complicado…E a minha mãe era uma mulher bonita. Era uma pessoa cheia de vivacidade e era assim também um bocadinho fora da época, para ela. Mas casaram pela igreja e tudo. Maria C.: Ah sim, as tias eram muito religiosas. A única pessoa que lá entrou sem ser casada fui eu. A minha mãe levou o R. lá. O meu pai tinha uns amigos que eram muito amigos e que moravam aqui no Bairro das C.. E eram casados pelo civil e a minha mãe não os deixou…O R., aos dois, não era batizado. E ela disse: eu sei que trouxe o filho do pecado cá a casa e a minha mãe respondeu: “Não, trouxe o meu neto”. Mas eu não era bem-vinda lá em casa. (Mas deve ter sido difícil manter aquele matrimónio) Ah foi, até porque ele nunca estava, e a minha avó vivia presa em F. P: E quanto às horas das refeições? Luíza C.: Eles comiam ao meio-dia e nós comíamos à uma. Havia uma panela com sopa e depois comiam bem. E ao pequeno-almoço também era uma malga de cevada e punham açúcar amarelo e comiam pão trigo. E também merendavam. -
"Não tinha liberdade nenhuma."- Entrevista a Mariana Bonfim
Mariana Bonfim: Sou de Trás-os-Montes. P: E como é que são as suas recordações desse tempo? Mariana Bonfim: Éramos muito pobres. Tínhamos que andar a pedir. A minha mãe foi sempre muito doente. Quando ela morreu, eu tinha 6 anos. Depois internaram-me no Asilo de Infância em Vila Real. P: O seu pai trabalhava na terra? Mariana Bonfim: O meu pai andava de terra em terra porque naquela altura não havia…de maneira que não. (E eram muitos irmãos?) Não, não éramos. Ficaram 3, mas um morreu … mas o meu irmão andava com o meu pai… (e foi à escola antes de ir para o Asilo?) Não. Fui logo diretamente, e foi lá que fiz a 4ª classe. (e onde era esse Asilo?) Era em Vila Real de Trás-os-Montes… (Lembra-se? Foi difícil separar-se do seu pai?) Eh…o meu pai já não estava muito porque ele andava de terra em terra… Eu estava era com uma tia minha mas…custou-me bastante porque…via ir todos…de férias, no Natal e na Páscoa e nas férias nunca ia a lado nenhum porque não me iam lá buscar… (Diz com comoção). P: Quantos anos lá esteve? Mariana Bonfim: Estive lá 10 anos. (Era um asilo de freiras?) Não, não era de freiras. Era um asilo de uma senhora, que era de Sabrosa e estava ali a dirigir aquilo. De freiras não era. (davam-vos a escola e podiam brincar, ou eram muito severos?) Um bocadinho, um bocadinho, mas também fez bem em certas coisas. (mas pelo menos fez a 4ª classe). Sim, e na altura a 4ª classe equivale agora ao 9º ano. P: E depois começou logo a trabalhar? Mariana Bonfim: Aos 16 anos tínhamos que sair, não podíamos estar lá mais tempo. Fui servir para a casa da senhora que me internou... servir, claro. Estive lá pouco tempo … Depois fui outra vez para Vila Real, mas só estive lá um ano… A senhora morreu-lhe o marido, a vida também não era muito boa…e depois arranjaram-me cá para Lisboa, fui para St. Amaro… …pra lá estive quatro anos, mas também foi horrível… P: Quantos anos tinha quando chegou a Lisboa? Mariana Bonfim: Tinha vinte e poucos. Em Vila Real não era para fazer todo o tipo de trabalho, porque tinha uma cozinheira e era para fazer…a limpeza. Depois quando vim cá para Lisboa é que…fazíamos tudo! Era tudo muito diferente. (e tinha direito a um quarto? Como é que a instalaram?) No primeiro sítio não tinha um quarto porque a casa era pequena. Tinham 2 filhos… De maneira que, como eles tinham 2 marquises grandes… o senhor era engenheiro e fez um divã. À noite…abria-se no corredor. De dia, levantava-se e prendia-se…pois… não tinha um quarto. P: Nessa altura, já ganhava? Mariana Bonfim: Vim para cá ganhar 50$00. (E em Vila Real?) Em Vila Real ganhava 30! (ri pela primeira vez). E nessa altura sentia que era um bom ordenado? Sim, era. Era (o que é que tinha direito, davam-lhe roupa?) Não, não. Não me davam roupa. Se precisasse tinha de a comprar. Pedia à senhora para me comprar. (mas também já era uma mulher, não é? Ia com a sua patroa comprar?) Ia. P: Como é que era a relação com a patroa? Mariana Bonfim: Ela não era má pessoa, mas também levei muitas tareias com ela. (tinha por hábito fazer isso, mesmo com essa idade?) Pois. (Lembra-se o que é que os levava a fazer isso?) Às vezes era porque…ela tinha 2 miúdos…um era mais espertalhão; o outro era mais bebé e então…tinham a mania de…se eu agarrava os miúdos a falar ou a beijar ou isso…não gostavam…e depois eu também refilava, claro. (era quem tomava conta deles?) Pois. Era. (não gostava que lhes desse carinho, era isso?) Não…ficavam sempre, por qualquer coisinha, e depois viam que eu não tinha cá ninguém…. P: E quando eles faziam isso, o que é que fazia? Fugia, ficava no quarto? Mariana Bonfim: Eh, não fazia nada. Ia ficando. Depois houve uma altura que encontrei uma…uma rapariga que era mais ou menos da minha idade…que era da minha terra….Eu nessa altura fui uns dias para casa dela. E depois de lá arranjei outra casa ali para a Fernão Lopes… (ainda em St. Amaro…lembra-se da profissão dos patrões). O senhor era Engenheiro, era da Carris. (E a senhora não trabalhava?) Não. (e eram os dois a mesma coisa?) Ele quando estava de maré também era mau. P: A que horas tinha de se levantar, recorda-se? Mariana Bonfim: Eh, às 7 horas. (E depois, lembra-se se tinha tempo para si? Sentia-se muito cansada?) Não, naquela altura não. (Nunca adoeceu?) Não. (não responde mais). (Fazia todo o serviço?) Pois, aí…foi onde eu aprendi mais coisas, mesmo de cozinha. (E que coisas eram?) Fazia croquetes, faziam rissóis, eram pastéis de bacalhau…fazia-se muita coisa e ela…isso eu não sabia fazer e ela ensinou-me. (E servir à mesa?) Tinha. (Como era?) Tínhamos que andar a servir, em volta, à mesa, com o prato, tínhamos fardas. (Farda com avental?) Pois. (E falava com as pessoas?) Eu não sou muito de falar. (começamos a rir). P: Já percebi que esses quatro anos não foram muito fáceis, mas, pelo menos, tinha alguma folga? Mariana Bonfim: Não, eu não tinha folgas porque também não tinha para onde ir. Não conhecia cá ninguém. (então estava em Lisboa, mas não conhecia Lisboa?) Não conhecia Lisboa!... (mas nunca saía à rua?) Não, quando ia à rua íamos à Praça, ou isso, ia sempre a senhora comigo. (não tinha às vezes um passeio?) Não, quando ia às vezes, íamos passear, íamos ao jardim…,mas era com os miúdos…(sorri) P: Não tinha assim nada de seu, em casa dos patrões? Mariana Bonfim: Não tinha nada. (Nem fazia croché?) Crochés fazia muitos, a gente fazia muitos crochés para fora. P: Então quando saiu dessa casa foi porque não conseguia…e não gostava? Mariana Bonfim: Sim, porque depois, é a tal coisa, também para ser assim tratada, também não…E depois cheguei a ir para a Rua Fernão Lopes, para o Saldanha, para uns senhores que já morreram. Mas ainda vou…ainda vou a uma filha, a uma filha dela que tem 90 anos. 90 Anos, não. Tem agora 99 anos, fez agora em agosto. (ainda vai lá dar um jeitinho?) Vou, e vou também agora para uma sobrinha dela que já tem 82 anos…então dessa casa nunca mais perdeu a ligação. Não porque agora, praticamente, ando nas famílias. P: E nessa casa, já gostou mais? Mariana Bonfim: Nessa casa não era mau. (já tinha o seu próprio quarto?) Já, já tínhamos o nosso quarto. (e folgas?) Folgas tínhamos ao Domingo. (e onde é que ia?) Ia ter com uma pessoa que era da minha terra…(risos)… íamos passear. (Do que é que se lembra de Lisboa?) Eu para mim…era só aquele sítio onde estava, não conhecia… (não conversava com outras senhoras que andassem a servir?) Também não tinha muita conversa porque geralmente nunca dava resultados. (E lá também tomava conta das crianças?) Lá não tinha crianças; eram 2 netas, que eram pequenas…e quando iam lá a casa, claro, ainda lhe cheguei a dar o comer à boca e tudo, mas eram muito pequeninas. P: E como é que olhava para as pessoas daquela casa? Mariana Bonfim: Ah, era como que seja família. (sentia afeto pelas pessoas?) Pois, o senhor era Comandante da Marinha, também é muito boa pessoa e ele até me abriu uma conta no…no Montepio. Conforme eu recebia, ele levava e depositava o dinheiro. Pronto, eu lá já ganhava 200 contos, 200 contos? 200 escudos! (ri-se) de maneira que… (seria só seu caso ou naquela altura já toda a gente ganhava assim?) Naquela altura já toda a gente ganhava mais ou menos…,Mas isto já vai há…55, 56 anos, 57. Sim, porque o meu filho mais velho já tem 55 anos. Ele nasceu depois de eu sair de lá!... (Fazia todo o serviço?) Fazia tudo. (Deixavam-na conviver à noite, no serão?) Podia (risos) (E sabia o que se passava à sua volta, tinha curiosidade por ler?) Eu ler, nunca fui assim muito amiga de ler. P: E namoro? Deixavam-na namorar? Mariana Bonfim: Namorar também não fui muito namoradeira. O primeiro foi o meu marido, foi com quem casei. (os patrões deixavam?) Sim, porque eles até gostavam muito dele. Ele telefonava para lá e gostavam muito de o ouvir. De maneira que o primeiro que namorei foi com quem casei. (os padrinhos foram as pessoas da casa?) Eram para ser, mas como estavam para fora de férias, não foram. P: Quando casou, deixou de viver nessa casa… Mariana Bonfim: Pois, mas ia lá trabalhar. E, quando nasciam os meus filhos davam sempre qualquer coisa. E estavam sempre a dar. (já casada e com filhos, manteve-se ligada a essa casa?) Sim. (era muito diferente, para si, estar dentro ou fora daquela casa?) Era diferente porque tinha que lá estar às 9 h e tinha que vir embora para fazer o comer para os meus filhos. (E não gostou de ter assim uma liberdade maior?) Não, porque também não gostava de ter assim muita liberdade. Estive ali 10 anos…metida. Não tinha liberdade nenhuma. Maneira que nunca fui assim muito de… querer mais liberdade (fez-se um silêncio) P: E quando estava na casa dos patrões, tinha direito à sua intimidade, a descansar no seu quarto às vezes durante o seu tempo? Mariana Bonfim: Tinha, tinha. Tinha. P: E a comida? Mariana Bonfim: Era boa. (era a mesma dos patrões?) Era. Pois. Nunca fizeram comeres separados. (tinha mais alguém a ajudar, ou não?) Não, ia lá a mulher a dias uma vez por semana…A mulher a dias ia lá só para fazer a limpeza e isso, de resto era eu que fazia… P: E mais, o que é que me quer contar? Houve algum momento mau? Mariana Bonfim: Foi um bocadinho sempre a melhorar … Nas casas…, mas depois de estar casada também…eu não tive uma vida muito…muito coisa (como a expressar que não melhorou assim tanto), porque ele (o marido) depois desempregou-se, e depois já não havia trabalho…e depois (qual era o emprego dele?) Ele trabalhava numas serrações, a serração fechou… P: Então no seu caso foi importante continuar a trabalhar, não é? Mariana Bonfim: Pois, trabalhei sempre…foi…e chegámos, e cheguei a andar a pedir!...(já mesmo casada?) Mesmo casada. Tinha o meu mais velho, e tinha outro que morreu…tinha que andar a pedir porque não tinha para lhe dar…não tinha para o poder sustentar. (não chegava porque era só uma pessoa a ganhar, é isso?) Ah, pois foi. (como é que conseguiram ultrapassar?) Eu trabalhava muito e depois ele também se metia na bebida… P: Passou a ganhar melhor quando passou a dias? Mariana Bonfim: Naquela altura ganhava 20$00. Depois tinha aquelas senhas para andar no autocarro, davam-me sempre senhas para o autocarro. (tinha direito a descontos?) Não, nessa altura ainda não havia descontos. (e a saúde, pagavam-lhe?) Eu nunca fui ao médico lá! (é uma senhora muito forte! Deixavam-na levar as crianças para trabalhar?) Levava. Para lá levava, ia para outros lados, tinha que as deixar…, mas, geralmente, iam. Iam por ir, porque, pelo comer, porque o dinheiro que eu ganhava não dava para pagar a quem me ficava com os miúdos. (quando é que a sua vida melhorou um bocadinho?) Eu tenho a impressão que melhorou desde que ele morreu. P: Os seus patrões ajudaram à educação dos seus filhos? Foram seus amigos? Mariana Bonfim: Foram. Uma, a D.… até foi madrinha duma que eu tenho, que já tem agora 49 anos. (por isso é que também nunca se separou dessas pessoas?) Pois. A madrinha, a da minha filha, vou lá todas as semanas à quarta-feira…quer dizer, mesmo muito antes de lá andar, ela até me dava mercearia…telefonava-me e dava-me aos 500$00, nessa altura era muito dinheiro…depois deu-me sempre… P: Hoje já tem alguma idade e continua a trabalhar? Não se sente cansada? Mariana Bonfim: Eu sinto-me cansada, mas é a tal coisa, a pensão também não dá …e também tenho um filho que nada faz…de maneira que…(então quase todos os dias trabalha?) Pois, só à sexta-feira é que não. E agora à segunda. (quantas horas por dia? O dia inteiro?) Às vezes. Um dia vou para Alvalade, para a tia do M. Terças e quintas é para uma tia do M. também, para Alfornelos…à quarta feira também é uma prima do M. que é a madrinha da minha mais velha. P: E o que é que sempre gostou mais de fazer? Mariana Bonfim: Eu naquela altura gostava muito de cozinha. (Ainda gosta de descobrir a fazer coisas novas na cozinha?) Não, agora não. Agora já não tenho coiso para isso. (gostava do serviço da casa?) O serviço da casa não gostava muito, mas tinha que o fazer, claro. (lembra-se da altura em que não havia nada de máquinas…) O fogão era todo amarelo e tínhamos que o ter todo areado. Tinha aqueles tachos amarelos de pendurar na parede, tudo areado, muitas casas eram esfregadas, e depois eram enceradas. (se calhar as pessoas hoje nem sabem o que isso é...) Sim, eu às vezes digo para os meus filhos: vocês falam, falam, falam, mas não sabem o que foi a vida!...Para vocês, até os mais velhos, já foi uma maravilha…Os dois mais velhos é que foram mais sacrificados porque…não tinha. Eu ainda tenho um comigo, já tem 45 anos, também não pára em lado nenhum! (começa a falar da infância) Mariana Bonfim: Tinha dias em que tanto eu como o pai, tínhamos lá um quintalinho e tínhamos lá hortelã e fazíamos um chá de hortelã e bebíamos e andávamos assim todo o dia…só andava a pedir, o que arranjava era para dar de comer aos miúdos. P: Voltou alguma vez à sua terra? Mariana Bonfim: Não, nunca mais lá fui. Não fui porque ele (o pai) morreu cá, morreu ao pé de mim. E o meu irmão também morreu, de maneira que eu também primos…eu tinha uma tia da parte da minha mãe, também morreu. Tive dois tios também da parte da minha mãe, também morreram, de maneira que não tinha para onde ir lá também, não me orientava lá ir. P: Quando os senhores iam de férias, levavam-na? Mariana Bonfim: Não, ficava em casa. Olhe, quando eles faziam as férias, tinham uma filha que também já morreu, que iam para a Rinchoa passar férias com os filhos, e eu ia para lá para a Rinchoa, para o pé deles. P: Tem boas recordações? Mariana Bonfim: Ainda cheguei a ir com as filhas para a praia, para Sintra. Mas também ia e tinha que ter a lida da casa. P: E hoje, quando está no seu cantinho, o que é que gosta de fazer? Gosta de descansar? Gosta de ver televisão? É o que mais a entretém? Mariana Bonfim: Gosto, pelo menos ajuda… (começa a rir-se). Gosto de ver as novelas (diz com um ar sorridente. (e na sua casa, também tem de tratar dela, não é? Ah pois, aqui é a tal coisa. Se a gente não tratar hoje, trata amanhã, e o trabalho… P: Quer contar mais alguma coisa? Mariana Bonfim: Não tenho mais nada para dizer…(ri-se). Deitava-se tarde? Tarde, tarde nunca me deitei. Costumava despachar-me, ia para o meu quarto e deitava-me. P: Gostava de ir à missa? Tinha essa necessidade? Mariana Bonfim: Não, olhe, quando estávamos internadas, tínhamos que ir todos os domingos à missa. Agora ali na senhora onde estive no Saldanha, também gostavam, queria que eu fosse…mas uma pessoa ter que…andar…coiso…e acabava por não ir. P: Em pequena ficou muito traumatizada com o internato? Mariana Bonfim: É a tal coisa, a gente em pequena é bom porque não tem ninguém, e estamos ali e ao menos ali não nos acontece…nada. Mas também passamos muito porque, se estávamos a gente a ir para a casa de jantar, tínhamos que estar todas de enfiada, em fila, se a gente falava, éramos logo castigadas, ficávamos sem jantar, ficávamos sem almoçar. No verão então, se éramos castigadas ficávamos sem lanche…não foi assim muito… (Mariana começa espontaneamente a falar-me do regime de trabalho) Mariana Bonfim: Nessa altura também havia casas que não tratavam a gente como tal, até era a escravidão. Por acaso na última que estive tive sorte porque o senhor era muito boa pessoa, e a senhora também era…e a filha de 99 anos que vivia com os pais também…era mais rebiteza mas pronto, levava-se bem. (essa filha chegou a tornar-se sua amiga?) Ela não…não gostava assim muito de mim porque eu…depois, acabava sempre por refilar porque também estava sempre… P: Dessas pessoas que viu crescer, ficaram suas amigas? Lembra-se de ter brincado com elas? Mariana Bonfim: Sim, brincava com elas… Quando elas iam aos avós, ou ficavam lá comigo, é assim. (tinha que as ir buscar à escola?) Tinha sim, aquela que mora em Alvalade, cheguei a ir buscá-la ao liceu. Tinha 12 anos. O M. cheguei a mudar-lhe as fraldas e a levá-lo ao Colégio M., mas também não gostavam muito dele e tiraram-no de lá. Eu sempre gostei muito de crianças. P: As casas onde esteve eram casas muito ricas? Mariana Bonfim: Não, não eram. Essa casa da tia do M., a mãe tinha 6 filhos…e o pai era juiz. Por isso é que eu também não ganhava assim… Eles tinham bastantes dificuldades porque os avós é que lhes davam muita coisa. (e nessa casa havia 6 crianças?) Pois. (E recebiam muitas pessoas, com muitos convidados?) ... Quer dizer, o pai recebia pessoas porque ele era juiz da Câmara, pessoas que iam muitas a pagar, iam lá ter com ele, pedir…mas, tirando isso…(a casa era grande?) Não…e essa casa era toda esfregada porque ele ainda tinha a mãe dele e a mãe…e ele também tinha asma, de maneira que não se punha cera, não se punha nada e era tudo esfregado. P: Por quanto tempo vai continuar a trabalhar? Mariana Bonfim: Ah… qualquer dia deixo, que uma pessoa já não tem…Agora o pouco que se ganhe sempre vem algum. P: Ganha ao mês? Mariana Bonfim: Geralmente todas me pagam ao mês. P: Tem fotografias de quando era mais nova? Mariana Bonfim: Não, porque naquela altura não tirava fotografias. -
"Sem mimo, sem amor, sem nada" (entrevista a Catarina Miguel)
P: Fale-me da sua infância Catarina Miguel: Eu era filha de gente pobre, já se sabe… O meu pai… nós éramos 3 irmãs, o meu pai foi para o Brasil com 25 anos e nunca mais quis saber da minha mãe (diz suspirando) a minha mãe ficou com 3 filhas, a mais velha era eu, tinha 5 anos e meio quando ele abalou, e eu aos 12 vim para Lisboa, já viu, eu vim aos 12… tenho 70, vim aos 12…, mas eu gosto de estar aqui. P: E quando veio lembra-se como é que foi? Lembra-se? Catarina Miguel: Lembro, lembro… lembro-me perfeitamente. Eu tinha saído da escola, fiz a 3ª classe só porque a professora chegava à altura dos exames e não dava exame aos alunos! Nada. Nada. Levava-os até à Páscoa e chegava-se à Páscoa e ia-se…de maneira que eu tinha a mania, quer dizer, coitadinha de mim, tinha a mania que queria ser professora, era uma ideia de garota, não é, na nossa infância qualquer pessoa tem isso…E então eu tinha cá uma tia que era, uma tia quer era madrinha…da minha mãe… e trouxe-me. Trouxe-me para cá ao engano! Eu vim ao engano. Ela disse-me: “Vá, levo-te para lá, vais estudar à escola…,” mas não. Chegou cá pôs-me a servir. Fui servir para a Rua do Arco em S. Mamede. Ao pé do Rato. Era uma senhora que era empregada no Príncipe Real, tinha 2 filhos…, mas eu, coitadinha de mim, o que é que eu sabia? Era uma garota com 12 anos, vinda da Província, sabia o quê? Nada! O que é que os nossos pais nos ensinaram? A apanhar batatas, milho, mais nada. Não sabíamos mais nada. E vim para ali e a senhora entendia que eu já devia saber o que…pronto, era aquela escravidão, era escravidão… P: Como era essa família? Catarina Miguel: um dos filhos era arquiteto, o outro era engenheiro…eh, eram os dois solteiros, a senhora era empregada no Príncipe Real, naquele edifício que agora fizeram um lar, não sei bem. A senhora era muito boa, não tenho a dizer, mas os filhos eram terríveis, e depois, a minha madrinha morava também na D. Piedade em São Bento. Ora, eu vim da terra para ali… e então a senhora, a senhora não, era uma senhora separada do marido, mas era uma senhora boa, não havia fome, nada, mas os filhos, pronto, naquela altura, o que é que eu sabia? Nada! Tinham a mania que eram, como a gente chama, uns mariolas, entendeu? E eu coitadinha vinha ceguinha lá da terra e então ele tentou... abusar de mim…tentou, começou-me a agarrar, eu comecei a gritar, porque, tive medo, tive medo não sei porquê, e ele não me fez mal. E fugi. Fugi, fui para a minha madrinha. Fui para a minha madrinha, cheguei lá, e disse, “Eu nunca mais vou para aquela casa porque o menino R. fez-me isto e…tantatan…” E ela não gostou nada. A partir de hoje, a minha sobrinha vai-se embora, vai comigo, vai lá para a minha casa. E fui-me embora. P: Quanto tempo lá esteve? Catarina Miguel: Estive lá só 3 meses. Só estive 3 meses. Depois a minha madrinha tinha um lugar de hortaliças aqui na 24 de julho, no mercado, e então de manhã, chego lá, trazia-me com ela, vinha às 4 da manhã com ela e…pronto, ajudava-a ali a juntar a hortaliça, as coisas…até que me arranjou ali uma senhora para a 24 de julho, uma senhora que também era viúva, tinha vindo de África e tinha uma filha que era médica, ela tinha uma farmácia. A farmácia ainda lá está, mas suponho que já não deve ser deles, ali na R…. uma farmácia que estava ali assim…era deles. Pronto, e eu era mais para fazer companhia à Senhora. Porque tinham outra criada, tinham uma criada para fazer o comer, eu era mais para ir com a Senhora aqui e ali…além…ora, mas lá voltamos ao mesmo. Eu queria era ir para a minha mãe, queria ir para a minha irmã, queria era ir para a terra…depois eu estava ali e chorava, chorava. Aquela Senhora…foi duma… olhe, nem sei como é que hei-de explicar... Aquela senhora foi duma…teve tanta paciência comigo…Eu de noite acordava cheia de medo e gritava, gritava, vinha assim para a varanda, mas…eu gritava, “Eu quero ir para a minha mãe!”. Eu não gostava nada de cá. Não gostava do comer. Não gostava de…ela fazia-me de tudo. Se eu queria café com leite ela dava-me, se eu queria doce, a senhora fazia-me tudo!.., mas eu não. Eu não queria nada, eu não queria nada, eu queria era ir para a minha mãe, depois punha-me a dizer que não gostava do comer, que não gostava deste comer, que não gostava daquele, até que ela, coitada, chegou a dizer à minha madrinha… olhe, faça-lhe a senhora lá o comer que eu lhe pago e traz-mo… porque ela gostava muito de mim!... Porque eu ia com ela, e fazia-lhe companhia, e eu era muito alegre. Eu era assim muito alegre quando não me dava a telha! Mas não, eu fui muito má para aquela senhora, eu fui muito má. Neste sentido: porque não os deixava dormir, eu levantava-me de noite…ela até me chegou a pôr a dormir na sala, pôs-me num colchão a dormir na sala que era para ver a claridade do Tejo, virada para o Tejo que ali via os barcos de Cacilhas…, mas eu não, nada daquilo me seduzia. Ela dizia-me: “Vai para a varanda! Olha, quando acordares vai para a varanda!...era num 6º andar, ninguém ia ali, não é, “Vai que…” Ela coitada! Tanto ela como a filha, eram extraordinárias! Mas eu nada! Nada daquilo, a minha madrinha lá aparecia com o caldo bem feito à moda da terra…(risos em silêncio), mas eu não… P: E como era o seu dia? Catarina Miguel: Olhe, aquilo era assim. De manhã, punha a mesa para a senhora beber o café, e a senhora tomava o café e eu sentava-me ali ao pé dela, ela conversava comigo e depois, sim senhora, ela queria ir à rua e eu ia com ela. Íamos à rua…vínhamos…se me apetecia dormir, dormia, se não me apetecia, nada… (era muito livre?) Era, era, eu sinceramente não passei nada…, mas, lá está, chega-se a um ponto em que as pessoas enjoam, não é? Eu não queria, não queria, não queria, e fui-me embora. Fui-me embora e então…arranjei para uma senhora aqui à Travessa…, ali à Rua do S., que era modista. Então ali sim. Ali eu já gostava de estar. Porque andava na rua, a entregar os vestidos, os fatos, eu conhecia Lisboa de ponta a ponta. Campo de Ourique, eu lembro-me sempre de Campo de Ourique e eram só centeios e…coisas, assim, eu ia lá levar uns fatos ao Domingo, havia lá aqueles jogos de futebol amadores, aqueles assim, e eu ficava ali, quase a ver, pronto, depois ia para o Estoril…metia-me aqui no Cais do Sodré no comboio, nunca pagava bilhete. P: Então tinha liberdade de movimentos… Catarina Miguel: Tinha, tinha…eu vinha aqui à Baixa, buscar as amostras, comprar alfinetes. Eu ali gostava muito de estar, gostava muito de estar…, mas, já tinha 15 anos. E então acontece o quê? Acontece que estamos na mocidade e aparecem uns rapazitos para namorar e não sei quê. Mas não foi o meu caso, por acaso até não foi. Fui à terra. No mês de agosto fomos à terra, fui com a minha madrinha e, claro está, havia os bailaricos daquela época, que hoje não há, e ta-ta-ta, e claro, eu já não quis voltar. A minha madrinha ficou muito aborrecida… “agora como é que eu digo à senhora?” Tinha cá deixado a roupa… “Mas eu não quero saber, eu não vou.” Fugi. Até me fui esconder para não vir. E fiquei. Fiquei, mas dei um pontapé na minha vida, como se costuma dizer. Fiquei, e então fui para casa de umas senhoras…eh, umas senhoras que eram também duas irmãs, eram umas pessoas muito ricas e eu aí, então, é que não fazia mesmo nada. Andava só com as senhoras pelas propriedades, aqui e ali, e andava assim. Mas, uma tia que eu tinha lá em Trancoso, que era irmã do meu pai, precisou de uma … empregada…e aí é que eu amarguei…e então foi-me lá buscar…ali é que eu passei as passas do Algarve!... (pausada e sofridamente), como se costuma dizer. (Era em T.?) Em T. Eu fui para casa da minha tia, mas aquela pessoa não era minha tia, era uma pessoa muito má, muito má, foi muito má para mim. Tratou-me muito mal. Bateu-me muito. Passei lá fome. Passei fome. Bateu-me, proibia-me de falar com a minha mãe, com os meus avós. E tudo até que um dia…ela um dia deu-me uma tareia muito grande porque eu pedi-lhe para ir à festa da minha aldeia. A minha mãe foi lá pedir-lhe e ela disse que não me deixava ir. Que se eu fosse já não podia voltar…Ora ali a quatro passinhos, quatro quilómetros, não era assim tão difícil… Mas não. Ela entendeu que não me deixava ir. E então eu disse “Você não me deixa ir a bem, deixa-me ir a mal, que eu vou. A minha mãe é que manda em mim e eu vou.” Eu nessa altura tinha 15 anos…e ela então, olhe, deu-me uma tareia!…tão grande, tão grande que eu fiquei de cama 15 dias. Fiquei toda negra, toda negra, toda negra…Fiquei toda negra, e então quando comecei a levantar, depois ela queria-me obrigar a fazer as coisas na mesma, a lavar as escadas, “Quero as escadas a esfregar”…e aquilo tudo…e eu cheguei a um ponto em que cheguei lá um dia em que fui ter com um daqueles senhores que faziam os correios, naquela altura havia aqueles senhores que faziam os correios e…mandei um papel para a minha mãe me vir buscar, que eu não aguentava mais estar ali, senão fugia. Então a minha mãe, quando recebeu o papel, disse para a minha irmã do meio- “Olha, vais lá buscar a tua irmã.” Então combinámos eu ir à missa do meio-dia, e assim fiz. E pronto, lá fui para a terra. Ela depois mandou lá o filho à minha procura, a GNR, e aquilo tudo, mas a GNR não podia fazer nada, eu não tinha roubado nada, não tinha feito nada, era por ela me ter tratado mal…a GNR quando lá chegou disse “Estás com a tua mãe, estás muito bem, deixa-te estar.” A minha mãe até disse à GNR que ia lá e fazia e acontecia, mas não fez nada. E pronto. E fiquei. Fiquei ali um tempo: foi de maio até agosto, porque depois a minha madrinha voltou à terra e eu pedi-lhe para me trazer outra vez. Ela não me queria trazer, mas depois ela lá me trouxe. E então fui servir ali para a Avenida da Liberdade. Mas aí eu já estava quase a fazer 17 anos, e então ali para a Avenida da Liberdade, é o Condes…era logo ali... eu fui para aí servir como criada-de-fora, que havia a cozinheira e a criada-de-fora. (explique-me um pouco o que faziam as criadas-de-fora) Então a criada de fora essa assim: a cozinheira era a cozinheira, fazia o comer, ia às compras, passava a roupa-a-ferro e assim… e a criada de fora punha a mesa, levantava a mesa, servia os senhores. Eu servia à mesa, foi lá que eu aprendi a pôr uma mesa como deve ser, realmente…eu estive lá 2 anos e meio e aprendi muito com aquela senhora. Eram umas pessoas que também não eram fartas. O que eles comiam não comia a gente. Era tudo por ração. Naquela altura, era o pão escuro, metade para mim, metade para a P., que era a cozinheira. Dividia a manteiga, metade para mim, metade para a outra, mas a gente desenrascava-se, sim, a gente desenrascava-se, a gente não passava fome que a gente desenrascava-se…mas a criada-de-fora era assim: eu fazia, fazia a cama da senhora, que ela não consentia que ninguém mais fosse lá, fazia a cama da senhora, fazia a cama dos 2 filhos, que era um filho e uma filha, mas depois limpava o chão, depois punha a mesa…e então..(era interna?) Pois, dormia lá e tudo (tinha direito um quarto?) Sim, sim, sim, tinha um quarto pequenino, tinha um quarto pequenino, mas era um quarto só, ela dormia num quarto, eu dormia noutro quarto…tinha, sim senhora…tinha farda, tinha uma farda, mais que uma, até. Ia à rua, a senhora mandava naquela altura comprava-se o carvão, comprava-se o petróleo, e ela mandava-me à rua buscar essas coisas; ia sempre fardadinha, com aquela farda preta, e então quando a senhora queria sair, eu ia com ela também. E então, elas jogavam lá muito à Canasta, jogavam muito à Canasta e eu ficava ali às vezes até às 3, 4 da manhã ali a secar…porque elas depois pediam chá, pediam bolachas…pediam essas coisas e, às vezes, eu estava ali com a cabeça em cima da mesa. Tinha que estar, tinha que estar, não era uma questão de me tratarem mal, aquilo era assim mesmo e, e depois quando aquilo acabava já podia ir dormir mas depois às seis da manhã já tinha que estar a pé. Os meninos iam para a escola e eu já tinha que fazer o pequeno-almoço para os meninos, e tinha que ir levar os meninos à escola. P: Nunca tomou conta de crianças? Catarina Miguel: Não, criar crianças nunca criei. Nunca fui, nesse sentido nunca foi. E eles nessa altura já andavam na 3ª ou na 4ª classe. Mas ela [a patroa] nunca os deixava ir sozinhos. E então eu ia lá levar os miúdos à escola. Ia levar um e depois ia levar o outro, porque eles não andavam na mesma escola. E, pronto, era isto assim que eu fazia: às vezes lá passava um bocadito a ferro, depois trocava com a minha colega. Ela não gostava muito e passava eu… P: Tinha tempo livre? Catarina Miguel: Tinha… só tinha folga de 15 em 15 dias. Uma semana era ela [a outra trabalhadora doméstica], outra era eu. Só de 15 em 15 dias é que tínhamos folga. Era ao Domingo, a seguir ao almoço. Eu ia sempre para a minha madrinha… bem, depois também comecei a namoriscar e tal e…ia ao teatro, ao ABC. Às vezes ficava ali pertinho, outras vezes ia visitar a minha madrinha. Na semana em que a minha colega folgava, eu tinha que fazer…ela deixava já o jantar adiantado, e depois eu tinha que fazer, aquecê-lo e pronto, a combinação já era aquela, e aí às 8 da noite tinha que estar lá. Era só aquele bocadinho da 1 da tarde até às 8 da noite. Era só aquele bocadinho de 15 em 15 dias. P: Ensinaram-na a cozinhar pratos sofisticados, a servir? Catarina Miguel: Não, eu isso receitas de bolos e assim nunca aprendi. Bem, naquela casa principalmente, naquela casa ali, uma pessoa tinha que estar ali, tinha que pôr os talheres muito bem…a senhora mesmo ensinou-me, quando era assim alguém mais especial, eu tinha umas luvinhas brancas para pôr, os aventais especiais, uma bata diferente, tinha que estar ali muito direitinha, depois a senhor fazia, tinha uma campainha ou tocava a campainha, ou fazia um sinal qualquer e eu tirava os pratos pela direita, ou pela esquerda, era assim…Depois cheguei a um ponto em que até já só com um movimento da senhora eu já sabia como é que havia de fazer, tinha que deixar sempre acabar o último para tirar o prato, tinha essas coisas todas. Mas assim aprender a fazer bolos e comeres, eu isso não sabia. P: E não se sentia controlada? Não tinha vontade de contrariar? Catarina Miguel: Ah tinha, claro que tinha (risos) Claro que tinha, mas uma pessoa não conseguia. Uma pessoa não conseguia porque era assim: ainda algumas vezes eu…pedi…, “Ó D. E., deixe-me ir hoje mais cedo para a minha madrinha, ou deixe-me vir mais tarde…” Então aí era logo uma guerra, era logo uma guerra: “Não! E porque assim, e porque assado, e porque desta maneira e assim.” Eu fui para lá ganhar 40$00. Fui para lá ganhar 40$00 e ela logo no 2º mês logo me aumentou para 50$00. (Na altura era um bom ordenado?) Era um bom ordenado, 50$00. Ora eu tinha 17 anos, eu hoje tenho 70, já vê, era um bom ordenado naquela altura. Mas também era uma vida assim um bocadinho sacrificada, porque hoje as empregadas domésticas não têm nada a ver com o nosso tempo. Nós naquele tempo tínhamos que fazer tudo, desde as máquinas de lavar, não havia nada!... Era tudo feito à mão. (alguma vez adoeceu, trataram de si?) Não, isso felizmente eu nunca adoeci. Com isso, por exemplo, naquela casa em que eu estive…ali na rua Nova de São Mamede, faziam-me raspar o chão com os esfregões de arame. Faziam-me raspar o chão e isso é que me faziam…. depois eles gritavam muito comigo, que eu não limpava bem, que tinha os cantinhos mal limpos, eu queria era arear as tábuas!...o resto queria lá saber dos cantos…(risos) e então aí, sim, eles ralhavam muito comigo e pronto, aí nem tinha folgas! Quando eu fui para aí nunca tive folgas. Tive, nunca tive…a senhora ao Domingo arranjava sempre maneira de a gente ter que limpar as paredes, ter que limpar aquilo…nunca tive folgas. Na rua lá de São Mamede nunca tive folgas, nunca! Ali tive, tive de 15 em 15 dias. Mas pronto, foi bom, mas acabou porque… (está a falar do tempo em que trabalhava para a modista) até se eu não me tivesse ido embora eu até tinha aprendido costura…e quando a gente vem, é por isso que eu digo, naquele tempo havia montes de garotas, raparigas…havia a ceifa, havia a apanha do vinho, da azeitona e depois tudo aquilo me lembrava… P: Nos primeiros tempos, houve alguma altura que não ganhasse, que fosse a troco de cama e comida? Catarina Miguel: Isso eu já não me lembro muito bem, mas eu suponho que quando eu fui…eu suponho que quando fui lá para S. Bento eu só estava lá pelo vestir, vestir e calçar. Porque eu nunca me lembro de a minha madrinha me dizer que elas me davam dinheiro…nem nada. Eu quando comecei a ganhar dinheiro para ali para aquela senhora fui ganhar 20$00. Lembro-me porque a minha madrinha comprou-me uma pulseira, ainda a tenho, e então a pulseira custou 600$00. Ainda a tenho. E então a minha madrinha dava-me todos os dias uns 20$00 (escuditos) que ela me dava. Ela é que a pagou…depois quando fui ali para aquela senhora, para ali, é que era 40$00, já me dava o dinheiro todo, mas eu suponho que ali para a Rua do Arco eu não fui para ganhar nada. Suponho que estava lá só pelo vestir porque ela me dava um vestido, uns sapatos, e dava-me cuecas, e dava-me assim meias… P: Naquela fase em que se tornou mulher, como foi? Essas pessoas substituíam um pouco a sua família? Catarina Miguel: Não!... Houve sempre aquela separação das águas, como a gente lhe chamava. Sempre, sempre. Ali aquela senhora da 24 de julho é que tinha muita paciência para mim, ela estava sozinha, era uma senhora viúva, sim, essa senhora tratou-me praticamente como uma pessoa de família, ela até dizia à minha madrinha para me fazer o comer… agora nos outros lados, não. Havia a separação das águas. Não…não queriam lá…(não recebia afeto?) Não, não, nada disso. Mesmo eram agrestes para a gente. Por exemplo, a falar, às vezes estávamos lá na cozinha (eu mais a minha colega…) estava lá ao pé dela, estávamos a almoçar ou assim, ela ia lá “Não há nada que fazer?!...”. Os gritos que davam assim à gente, aqueles gritos…e vais fazer isto, e vais…às vezes coisas que a gente já tinha limpado e tinha que fazer outra vez…Era para a gente ter o tempo ocupado, não deixavam que a gente…Não, isso não. Pronto, e eu…sinceramente, quando comecei assim a crescer mais um bocadito, quis-me foi livrar daquilo. Depois tinha então 17 anos quando…eh…saí de servir. Saí porque arranjei aqui na B., aqui assim ao Cais do Sodré, uma pastelaria… (em que ano foi?) Ai, sei lá…Deixe-me cá ver, deixe-me cá ver…eu casei-me em 61…casei-me em 61, casei-me com 22, devia ter sido prá i em 58 ou, eu casei-me com 21 anos, 22! Tinha quase 22 e casei-me em 61…E então depois, como lhe disse a minha madrinha tinha ali aquele lugar de hortaliça…mas também não era aquilo que eu idealizava. Não queria, não queria, não queria. Queria ser um bocadinho independente, queria ser independente, mas com esta minha madrinha também não queria porque, veja, depois eu tinha prá i 18 anos, depois uma pessoa começa a namoriscar e…aquelas pessoas antigamente eram muito severas, a minha madrinha foi uma das pessoas que para mim foi minha madrinha, minha tia, minha mãe! também…mas sem mimo, sem amor, sem nada, sem nada, era daquelas pessoas “Posso, quero e mando”, e não deixava que a gente passasse daqui para ali, eu também com a minha madrinha passei muito…passei talvez mais do que nos patrões…na verdade, porque a minha madrinha era muito severa, para a filha, para mim, e tudo…era daquelas pessoas que, pronto, só ela é que era, só ela é que mandava, só ela é que sabia, só ela é que queria…e tínhamos que estar ali a fogo e ferro. E então eu comecei a ficar farta daquilo e um dia apareceu um anúncio para aquela pastelaria e eu fui para lá. Fui para lá para a pastelaria, ia às compras à Ribeira e ia para o Balcão. Fazia sandes, lavava copos, fazia sandes, quando era pela altura do Natal havia a fruta cristalizada e ia lá para a fábrica fazer fruta cristalizada…e então estive ali 3 anos e meio até que foi dali que eu me casei. Estive lá até me casar. Já se vê. Aí a vida deu outra volta. Depois…fui trabalhar para o Ministério…bem, mas estive ali ainda um tempo na Praça com a minha madrinha…porque, entretanto, o meu marido foi prá…tropa…e enquanto ele esteve na tropa – lá voltamos ao mesmo – nós próprios mais novos, também éramos um bocadinho…machistas, oh…não sei, não sei como é que hei-de explicar…o meu marido com ciúmes não deixava que eu estivesse empregada em lado nenhum. E então, espetou comigo na minha madrinha outra vez, porque ela tinha ali o lugar na Praça…então fui para lá outra vez…ó minha senhora!.. eu passei ali, eu passei ali as passas do Algarve. Eu passei ali muito! Trabalhei muito ali naquele mercado 24 de Julho, trabalhei muito para ela. Porque era assim: não sei se conheceu, cá em baixo era o mercado abastecedor e lá no primeiro andar é que servia ao público…e então a gente tinha que levar tudo cá debaixo do rés-do-chão…trabalhei ali muito!... carreguei com muita caixa de feijão, muita caixa de tomate…, mas lá voltamos ao mesmo! Até que eu cheguei a um dia…e disse, bem eu meto o barro à parede e vou-me embora. Então eu disse-lhe, porque havia ali um senhor do Ministério e ele disse, “Ai, você até é mal empregada estar aqui…uma rapariga estar aqui metida nisto e tátátátá” - “Pois é, mas eu é que não arranjo”. “Ah, mas eu arranjo-te lugar para lá.” E eu disse ao meu marido. “Olha, o Sr. D. arranja-me lugar para o Ministério e eu vou-me embora!...” – “Ah, mas não vais, porque tu estás aqui…” – “Mas vou.” Então disse, caramba, eu também tenho que ter a minha oportunidade, tenho que me impor, eu não sou, eu não sou nenhuma propriedade dele…sim, eu sou mulher dele, mas não sou nenhuma propriedade!... já tinha esta genica. Eu não sou propriedade! Mas eu vou chegar a um ponto em que não vai ter que ser assim. Então cheguei um dia e disse-lhe: “Olha, (o sr. D. disse-me) – “Estás a fazer quase 35 anos. Se não entrares agora já nunca mais entras.” E eu cheguei a casa e disse para o meu marido: “Eu vou para o Ministério.” Ele a dizer que não e eu a dizer que sim, ele a dizer que não e eu a dizer que sim. Mas vou! mas não vais! Mas vou! Eu não sou tua propriedade. Sou tua mulher, sou tua companheira, ouviste? Não queres assim largas-me da mão e eu vou fazer a minha vida e tu… Nunca tínhamos tido uma zanga, nunca tínhamos tido nada, mas nesse dia foi a sério! Ele entendia que eu que não o fazia. E ele disse: “Não vais, ai isso é que não vais”. Ai isso é que eu vou. E fui. Isto foi a uma quarta-feira e na quinta-feira eu larguei tudo ali! (diz com impetuosidade) Não quis saber de hortaliça, de nada! E fui para o Ministério. Cheguei lá e apresentei-me lá ao Sr. D., “Ó Sr. D., eu vinha cá saber se eu podia vir então para…Veja, quando é que eu posso?...” “Pode ficar já hoje. Fica já hoje.” Olhe, aquele serviço a mim não me… claro que fui para as limpezas…Não fui para nenhum escritório nem nada disso porque não tinha habilitações para isso…E então ele disse-me…” olha, agora vou-te arranjar para o gabinete do Ministro…, mas agora tens que ficar aqui…” “Oh, eu fico em qualquer lado, eu não tenho medo nenhum de trabalhar! Eu não tenho medo nenhum de trabalhar.” Então tinha metido cá na tola e disse-lhe, “oh, Sr. Dias, eu sei limpar uma casa…” porque eu tinha aprendido! “Eu sei limpar uma casa, sei aspirar, sei varrer, sei limpar o pó, sei limpar uma casa como deve ser, sei lavar as janelas, sei fazer isso tudo. Porque nas casas onde servi, também não era o meu serviço, mas eu ajudava a minha colega a fazer. Eu quando não tinha…ajudava-a a lavar as janelas, a limpar o pó, a pôr a cera, porque naquela altura tinha que se pôr tudo à mão.” Pronto, então, está bem. “Então anda cá que eu vou-te dizer.” Olhe, espetou-me um serviço que foi o primeiro andar todo do Ministério da…. Foi o primeiro andar todo! Onde andavam 17 gabinetes, um corredor e uma escadaria!... para se fazer das 6h às 9h da manhã, não era brinquedo!... Pronto, mas quem é que me mandou a mim? Se eu queria, fui, fui. P: Nessa altura foi ganhar um bom ordenado? Catarina Miguel: Era cinco contos, era cinco contos. Naquela altura era cinco contos, foi quanto eu fui para lá ganhar. E então eu…não tenho medo, mas, claro, para o primeiro dia, habituadinha como eu ia a fazer aqui em casa de tirar os bibelots, limpá-los…e depois no fim é que aspirava tudo, ali não podia ser assim. Tinha que ser a despachar e então era uma coisa muito má que o Ministério tinha. Só tinha 3 aspiradores para o Ministério todo. E eu, elas já estavam vestidas com as batas, e eu também, e eu pego por ali acima e comecei por um gabinete, a limpar muito bem, acabava de limpar um e começava a aspirar outro. Ah, daí a um bocado…talvez três quartos de hora depois e vem lá uma colega e diz: “Já aspirastes?” E eu disse: “Não…” “ai, não…então se não aspirastes tivesses aspirado porque eu agora vou-te levar o aspirador.” “Então leva!” – Não me atrapalhei nada. Fui buscar uma vassoura e disse, mas espera lá. Eu tenho que dar volta a isto. Agarrei, subiu-me logo aquilo à ideia. Agarrei, comecei a despejar os cinzeiros e os caixotes todos, dos gabinetes todos…e depois peguei numa vassoura e pronto. Varri de maneira a não deixar assentar o pó…e depois é que comecei no gabinete a limpar o pó. E deixei a escadaria para o fim, tinha que ser. Mas pensei… deixa estar que me enganaste hoje, mas não me voltas a enganar. No outro dia, elas lá ficaram a conversar e tal e eu… pego no aspirador, despejei os caixotes e aspirei aquilo tudo!...daí a bocado vem aí a outra. Já aspirastes? Eu não! Eu não. Então, não aspirastes, tivesses aspirado! Está bem, leva lá, eu tenho aqui uma vassoura!... Nunca mais me enganou! Nunca mais me enganou! Até que um dia me apanhou, claro, ela andava desconfiada, claro, e “Como é que esta tem tempo?” porque um dia ela estava a dizer assim para a irmã: “Ai, deixa estar que o serviço daquela há-de ficar bom! Vê lá tu, a varrer as alcatifas, que aquilo era tudo com alcatifas, a varrer as alcatifas ali com aquele pó!... deixa lá que não hão-de chover reclamações!” Eu, que apanhei aquilo, ai é? Haver reclamações!...Não te importes! Se houver reclamações não é contigo, é comigo. Não te preocupes. As reclamações… Até que um dia ela me apanhou (conta o episódio a rir) e diz, “Oh, Ana, sabes, ela já tinha aspirado tudo!” Ah, bem me queria parecer…” então vocês pensavam que me vinham ensinar alguma coisa a mim?” P: Então não foram nada hospitaleiras? Catarina Miguel: Não, não foram. Nada, nem eram nada amigas. Por exemplo, algumas coisas eu perguntava, perguntava, porque havia o gabinete das telefonistas, e eu perguntava como é que se limpava o PBx, “Eu não sei como é que se…” Então não sabes…Então vocês andam aqui… é que eu tenho medo de tirar algum fio e depois não se ver…” Não foram capazes de me dizer nada, não foram. A biblioteca era a mesma coisa. Também na biblioteca havia uma quantidade de coisas que…uma pessoa não podia mexer naquilo, não, não foram…, mas depois até foram. Elas depois foram lá! Depois foram lá. Depois o Sr. Dias agarrou-me, que também foi uma pessoa muito minha amiga e disse-me: “Isto agora, a partir do dia 1, vais para o gabinete do Ministro.” Estive lá até passar a contínua. Estive no gabinete do Ministro…e mais, arranjei um aspirador só para mim (risos)…Isso é que foi a danação delas. Depois eu ainda é que as ia ajudar a elas. Quando elas diziam… “ai, hoje estou tão atrasada…” - “Então anda cá, que eu já te vou ajudar.” Não, e depois arranjei lá grandes amigas e fomos todas grandes amigas porque depois chegámos à conclusão de que era assim… Elas não me conheciam de lado nenhum… Também não sabia como era…, mas naquela altura podiam ter sido um bocadinho mais… “Olha, tens que fazer assim…tens que aspirar, ou…” mas não… P: Gostava mais desse trabalho que conseguiu lá no Ministério? Era muito exigente? Catarina Miguel: Quer dizer, a gente entrava às 6 da manhã e era das 6h até às 9h. Depois…lá, lavava-se paredes, lavava-se janelas, lavava-se cá fora a rua, lavava-se os corredores, tínhamos uma máquina de raspar os corredores para depois pormos a cera…e depois, tudo isso. Pronto, era um serviço como se fosse em casa, esses serviços assim, como se fazia nas senhoras, é verdade, mas era um serviço mais da nossa responsabilidade, nós já sabíamos que cada uma tinha os seus gabinetes, cada uma tinha que responder por aquilo. Era uma autonomia completamente diferente. Quando acabasse…quando eu acabava, se me apetecia ir embora ia, se me apetecia sentava-me lá e pronto, tomava o pequeno-almoço, das 9 às 10, era a hora que a gente tinha para pequeno-almoço. Nós tínhamos que ter as coisas limpas porque eles começavam a entrar para os gabinetes e assim…deixávamos então para o fim a escadaria. Depois íamos então comer e a seguir limpávamos os amarelos – em conjunto – juntávamo-nos todas e dizíamos: este dia é para limpar os amarelos, umas põem a insulina, outras puxam o lustre, depois limpavam a escada e era assim. E ao sábado, em princípio íamos ao sábado, mas depois passámos a ir na sexta-feira à noite, para não irmos ao sábado. Para nos darem o sábado livre, então o senhor era muito bom e ele dizia, vocês ao sábado fazem assim uma limpeza mais ligeira que é para vocês não estarem aqui muito tempo. E era assim que a gente fazia. Às vezes juntávamo-nos todas e começávamos numa ponta e acabávamos noutra. Depois na segunda-feira já fazíamos melhor, já cada uma tinha o seu, e não, já era um serviço completamente diferente… E faziam parte do quadro? Não, não. Eu ainda estive lá muito tempo. Já descontava para a Segurança Social, mas sem estarmos no Quadro. Para termos direito à ADSE, descontávamos para a Segurança Social. P: Vieram, como a senhora, muitas mulheres do interior do país que começaram pelo serviço doméstico…acha que foram as trabalhadoras que começaram a ir embora ou eram as famílias que já não podiam pagar? Catarina Miguel: Não, não foi pelas famílias já não poderem pagar. Eu acho também que foi porque as pessoas queriam ter uma certa liberdade, havia casas que tinham muitas pessoas e a gente às vezes conversava e havia colegas que eram muito maltratadas…, mas na casa dos pais ainda estavam piores!... porque lá trabalhavam e tinham que dar tudo aos pais, e também não as deixavam ir para aqui, não as deixavam ir para ali, claro, o sair de lá, para ganhar dinheiro, para elas já era muito bom! E depois, também houve muitos patrões…que havia muito disso, eles abusavam das empregadas. Houve muito disso. Houve!...Houve muito disso… (como é que se sabia dessas situações?) Quer dizer…falava-se e depois acabava por se saber porque, porque…havia raparigas que engravidavam…e essa coisa toda, e depois os pais punham-nas fora de casa, não as queriam, punham-nas fora de casa…às vezes apareciam lá… não assumiam que a filha tivesse tido aquela coisa, e assim…eu tive na família uma pessoa assim, que estava a servir numa casa e depois ele engravidou-a e depois sabe o que é que eles fizeram? Olhe, espetaram com ela para o Brasil!... para a família dela não saber que ela estava grávida do patrão! É verdade! Ela teve lá o filho, que eu conheço-o, ele já cá veio, eu conheço-o perfeitamente! E a Z. também sabe quem é…e foi assim…E depois começaram a aparecer aquelas casas de trabalharem a dias, como se chamava, e então muitas pessoas já faziam assim: trabalhavam…começavam a querer ir-se embora porque arranjavam aquelas pessoas onde dormir, onde dormir, mas por dormir eles faziam-lhe a limpeza da casa e depois iam fazer outras horas fora. Era assim que faziam. Porque eu tive cunhadas minhas que foi assim: estavam a servir…pronto, uma delas estava a servir ali na Rua das Janelas Verdes…e fez isso! Estava a servir, mas as senhoras também eram tão coisas, tão coisas que ela agarrou e o que é que ela fez? Arranjou um quarto numa senhora, a senhora não lhe levava renda por ela dormir, mas ela fazia-lhe as limpezas todas, em troca da renda limpava a escada quando pertencia à senhora, como hoje, como nós aqui, cada inquilino limpa o seu vão de escada … eu tenho lá uma cunhada da terra que está num casal a tomar conta do filho, mas vai todos os dias: entra às seis da manhã e sai todos os dias às seis da tarde. Todos os dias, todos os dias. Mas ela lá não dorme. Tem a sua casa, tem os seus filhos, e aquilo deu aquela volta assim… chegou-se a uma altura que as pessoas também…começaram por ter um pouco de liberdade, porque não havia folgas, não havia nada…não foi bem o meu caso. Estive naquela senhora que foi assim, mas depois de 15 em 15 dias já tinha folgas. Mas depois também havia raparigas que não tinham. Lá quando íamos à terra no mês de Agosto, era sempre quando a gente conversava na terra sobre… “Olha, estou em tal lado, estou assim, estou assado…” e depois elas contavam – “Oh, a minha senhora é tão má, eu tenho que andar sempre a comer às escondidas…” havia algumas que passavam fome!...Tinham que andar a esconder, mas elas apesar de passarem mal não queriam voltar porque, apesar de tudo, aqui elas tinham o seu dinheirinho. E lá na terra, não. Porque a gente lá na terra, era assim, enquanto lá estive também andava lá a sachar milho e aquelas coisas todas, mas era de graça…antigamente…lá na nossa aldeia havia 3 pessoas…3, 4 pessoas que eram donas da gente todos, como se costuma dizer. Era como no Alentejo!...A gente chegava lá, eu ainda me lembro, um senhor que já faleceu, ele chegava lá e dizia assim para a minha mãe: “Ouviste?” (era assim que tratavam a gente…) “Vais segunda, terça quarta e quinta, vais para lá, vais tirar as batatas e aquilo e levas a garota!” (que era eu, que era a mais velha) Lá ia eu. Olhe, começávamos a sachar ao nascer do sol até já de escuro, até às 9 horas da noite, eram ali 14 e 15 horas a trabalhar, sob aquele sol ardente…eu era uma garota e não ganhava nada, e a minha mãe ganhava 25 tostões! Por dia, e comer, comíamos, é verdade, ah, isto há sessenta anos! Já viu? E era assim…escravizavam ali a gente, escravizavam ali a gente… e lá está o mesmo o problema…eu aqui, mal, tinha a barriguinha cheia e ainda levava aqueles 20 escuditos, primeiro, depois mais aqueles 40, e pronto, e era assim, e depois quando já tinha 17 já ia ao teatro, era assim. E claro, comecei-me a habituar mais à cidade, mas nunca deixei a minha terra, todos os anos eu ia lá! Mas já lá nunca quis ficar!... Desde que fui tratada mal pela minha tia nunca mais lá quis ficar. Mas… muita gente passou e muito! Muitas raparigas que vieram para aí servir passaram, digo-lhe que passaram…elas contavam, porque também já eram mais velhas do que eu…, mas contavam, “Ai, a minha senhora é tão má, às vezes já são tantas da noite ainda estou a lavar roupa.” Porque aquilo no meu tempo era tudo lavado à mão!... era tudo com o sabão e com a escova…não havia eletrodomésticos! Que é que havia? Havia, olhe, os fogareiros a carvão, os briquetes, não sei se…ouviu falar em briquetes, que a gente ia comprar lá à coisa!...eu também fui muita vez comprar lá as briquetes. Os fogões eram a briquetes, eram a carvão. Não havia eletricidade, não havia fogões elétricos, nem a gás, era tudo a carvão e a briquetes, daqueles fogões muito negros. Depois a gente tinha que arear aquilo tudo ficava ali como uma prata, areadinho, era trabalhoso, era. Aliás, às vezes a cozinheira fazia isso, ela ia lavar o fogão e eu lavava o chão, de joelhos, era tudo de joelhos, era tudo esfregado com uma escova, não foi fácil! Não foi fácil. P: E conversavam com os patrões? Catarina Miguel: Não, nada, nada. Olhe, uma vez até foi ali naquela senhora que vivia ali na Avenida L. e até foi muito engraçado. As traseiras…ainda lá deve existir…, mas havia umas rapariguitas…até quando um rapaz olha para a gente a gente fica logo todas deslumbradas, mas eu então era muito engraçado porque havia um campo de basquete no Ateneu Comercial…E as nossas janelas davam para o campo de basquetebol. E depois era muito engraçado porque eu, à noite, quando via que elas estavam lá a jogar…eu ia para lá, gostava de ver aquilo (diz sussurrando), gostava de ver aquilo…Quer dizer que, mais tarde, nos encontrámos na rua e ficámos tão amigos!!..ele próprio reconheceu que nós estávamos ali oprimidas…e o rapaz fez instrução, notava-se que era uma pessoa assim… e então, um dia, eu estava ali a comprar o carvão e ele disse-me: “Olha, tu não és ali daquele prédio?” “Sou”. “Às vezes vejo-te lá quando estou a jogar o basquetebol.” “Ah, olha, é para estar entretida!...Para não me dar o sono…para não me dar o sono…” Olhe, e depois o rapazinho começou-me a dar livros para eu ler, foi, foi…extraordinário, ficámos amigos!...quando se casou convidou-me para o casamento. Ficámos amigos… P: Na altura tinha voltado à escola? Catarina Miguel: Não se esqueça que eu, para entrar no ministério, tinha que fazer a 4ª classe. Fiz a 4ª classe em 28 dias. Já viu a minha força de vontade? (Era obrigatório?) Era obrigatório ter a 4ª classe. Eu fui para uma escola ali para o Alto de São João…Era uma Escola de adultos, era uma escola de adultos…Ah, agora não me lembro…ah, ao pé da Paiva Couceiro. Foi em 28 dias…andavam lá muitos adultos nessa altura…E então eu fiz a 4ª Classe…bem, eu tinha uma 3ª classe muito bem preparada… porque era assim! Ela levava-nos até ali e depois deixava-nos…e eu tinha uma coisa de querer ser professora. E então eu…quantos papéis eu encontrava eu lia tudo. Eu sabia a história de Portugal melhor do que os da 4ª classe. Tudo, todos os papéis que eu apanhasse…eu discutia a bola, eu fazia tudo isso, apanhava todos os papéis que houvesse. Eu saía para a rua, se encontrasse um papel na rua eu punha-me a lê-lo, porque eu tinha que estar a ler, às vezes até às 4 da manhã e eu tinha que pegar em qualquer coisa para me dar o sono. E então eu lia e escrevi muito, não dava erros, não dava nada. De maneira que foi muito fácil. Em 28 dias eu fiz exame para entrar para o Ministério. É verdade. Sei que aquela minha força de vontade. Eu para contas e tudo isso eu era uma barra! Era, ainda hoje…e eu era boa em matemática, e redação, eu fixava muito bem as coisas, mas naquela altura, eu sabia, eu tenho ainda aqui o meu livro da 3ª classe que eu não dou a ninguém, não me desfaço dele. Eu sei o meu livro da 3ª classe de cor. Eu sabia aquilo…aquilo para mim era música. Eu andava sempre a ler, sempre a ler, sempre a ler as mesmas coisas… até que eu o aprendi de cor… (risos) Eu até quando fui fazer exame (e comprava algumas revistas?) Não, não. Naquela altura não. Hoje compro, naquela altura eu não comprava. Mas…eu, quando fui fazer exame da 3ª classe a professora chegou lá e disse: qual é a lição que queres estudar? “O automóvel, o trem e o avião.” Olhe, e depois ela disse: olha, mas tu não estás a ler, tu estás a cantar!” (ri com vontade) Eu sabia a letra toda de cor, era uma coisa!... Mas pronto. E pronto olhe, foi assim, a história da minha vida. (ri-se) (retoma o fio de conversa espontaneamente) Mas olhe que as mulheres foram escravizadas…E de que maneira! A história de H. aqui da aldeia foi com certeza bem diferente da minha… tenho a certeza absoluta que houve mulheres, raparigas!... que vieram para aqui e que passaram muito a servir. Sei de algumas que até tinham que fugir das casas porque os patrões faziam pouco delas… Eu sei, porque houve até uma que estava ali em Almada e depois ela engravidou do filho do patrão e depois o filho do patrão puseram-na fora…era a realidade, mas aquela realidade encoberta! Porque a gente, hoje, a gente vê tudo na televisão e diz “Ai, isto é uma pouca-vergonha!...” Não é uma pouca-vergonha nada. Não é, não é. As pessoas percam a ilusão de que hoje é pior do que antigamente. Só que antigamente, olhe, a gente não podia falar, não podia dizer, sim, porque havia aquela censura, sim, eu sou do tempo da censura, a gente não podia nada. Eu ainda uma vez estava aqui na 24 de Julho, e estávamos 3 pessoas…já eu era mulher, já…e chegou lá um polícia e queria levar a gente para a esquadra porque a gente estávamos a falar de política e nós não estávamos a falar nada de política! Mas vê, era assim, abafava-se. A mulher andava grávida deste, calava-se, então, e só agora é que aparecem raparigas grávidas, minha senhora? Tanta rapariga grávida que houve naqueles tempos! Tanta! Tanta! Mas era tudo encoberto!... vergonha, isto é uma vergonha para a família…eu tenho uma tia que a filha dela também ficou grávida de um criado…e já estava grávida de 3 meses quando ela descobriu. Sabe o que é que ela fez? Agarrou na rapariga e queria matá-la!... Queria matar a rapariga. Depois é que agarrou, tinha lá uns senhores conhecidos no Rio de Janeiro e levaram para lá a rapariga. Olhe, a rapariga lá teve o rapazinho, lá teve o filho, e lá se casou e já tem 3 filhos …vê? Mas pronto, estava grávida de um criado, mas também podia ser empregada e estar desonrada do marido, que não era. (faz uma pausa..) Naquela altura era assim…hoje em dia as pessoas já não vão tanto nisso, mas naquele tempo era assim…Não havia acesso a nada, não havia a comunicação social…agora a gente abre a televisão e ouve tudo… Eu alguma vez tive um brinquedo? Eu nunca tive um brinquedo! A minha mãezinha, coitadinha, não tinha para nos dar e não nos dava…, mas ainda uma vez, no meio deste mês de agosto, há lá uma grande feira de S. B. que começa agora…é bonita, lá para eles, pronto, é o que têm, não é? E então, a minha mãe, vendiam aquelas bonecas de papelão, aqueles carrinhos de madeira, aquilo tudo. E eu, coitadinha de mim, queria uma boneca. Queria uma boneca…e comecei a dizer para a minha mãe que queria uma boneca e a minha mãe, coitadinha!...nunca me esqueço disto, a chorar, disse “Oh filha, mas eu não tenho dinheiro!..” mas eu para te comprar para ti tenho de comprar para a F. e para a I.…olha, mas deixa que eu vou lá para baixo e vou apanhar umas ervas de pinha que nascem ao pé do milho e vou vender para ver se eu consigo arranjar dinheiro para te comprar as bonecas.” E foi o que ela fez… eu nunca me lembro, e digo isto com mágoa de a minha mãe me agarrar assim ao colo e me dar beijinhos como a gente hoje faz aos filhos e aos sobrinhos e aos netos! A gente hoje agarra os filhos e dá-lhe carinhos…e a mim fez-me falta! Eu senti imensa falta!... eu às vezes chorava e a minha mãe nunca me deu um beijinho, já grande, e eu às vezes chorava!... Ai, a minha mãe nunca me deu um beijinho…Coitada, ela não tinha tempo para nada. Ela agarrava na gente e ia trabalhar fora e deixava o comer e dizia “aquecei-o e comei-o”…vinha à noite, coitada, com três filhos, naquele tempo, sozinha, a ganhar 5$00 por dia quando os ganhava, quando era no inverno não ganhava nada…e eu hoje pego nos meus sobrinhos e sinto aquela coisa de os acarinhar e ao mesmo tempo sinto, ai, a minha mãe nunca me fez isto!...é verdade, a gente não tinha carinho. Os nossos pais não eram carinhosos, mas eles não tinham…a minha mãe, ai de alguém que tocasse na gente! Mas era um amor diferente. Elas tinham amor à gente, mas não eram capazes de o demonstrar... eu nunca me lembro de a minha mãe me dar um beijo! Não me lembro! A minha mãe trouxe-nos sempre limpinhas! Com uns lacinhos nos cabelos, nunca andámos descalças…nunca. Nunca passámos fome. Comprava quatro sardinhas, uma era para ela e o resto era para a gente. Nunca passámos fome, mas era daquilo que havia, era as batatas e pão, mas carinho, não. Parece que ainda me lembro. Eu dormia com a minha mãe, não é, nós dormíamos as 4, a minha mãe dormia com a gente as 3, era assim, e eu gostava muito de dormir com o meu avô e com a minha avó. Porque o meu avô acarinhava-me! E então era uma guerra para dormir com eles! A minha mãe ficava danada! E o meu avô acarinhava-me e eu sentia aquele calorzinho, aquele carinho que a minha mãe não me fazia…, mas também quando eu me fui embora ela também, foi como se costuma dizer, foi como quem lhe arrancou os dentes!...ela chorou tanto, ela não queria nada que eu viesse, nada! Pronto, porque mãe é mãe e ela podia não me acarinhar, mas o amor dela estava lá… e pronto, mas a vida foi isto e eu também depois ainda a ajudei naquilo que eu pude. Fui amiga dela e ela era minha amiga. Entretanto, a do meio também foi para a França e também já a ajudava…E é assim. A gente levantava-se de noite quando era dezembro por causa da apanha da azeitona…Frio! A nevar, a nevar… Nós, garotinhas, lá íamos andar uns 20 Km ou mais para apanhar a azeitona. A gente fazia fogueiras para aquecer as pernas…uma vez quando vim para Lisboa a senhora disse-me, olha, vais ali ao talho e trazes 6 costeletas. E eu nunca me esqueceu isto. Eu cheguei lá e disse ao senhor do talho: “olhe, dê-me 6 costeletas de porco.” Quando o homem começou a cortar as costeletas eu disse assim para o homem (começa-se a rir com vontade) “Isso é costeletas de porco? Lá na casa da minha avó também há dessa carne!...(ri-se)”. Era carne de porco, mas eu sabia lá que isso era para se comer!... eu sabia lá o que eram costeletas, eu sabia lá o que era um bife! Não, não sabia!... agora já não, mas nos primeiros anos que eu ia à terra ia lá ao cafezinho e dizia, dê-me uma bica. Ninguém sabia o que era uma bica!... nós lá nas províncias éramos muito tapadinhos porque, lá está, nós não tínhamos acesso a nada! Nós não tínhamos acesso a nada…A gente ia daqui de Lisboa para lá e as pessoas diziam, “Ah…tu vens muito bonita! Vens de Lisboa, vens muito bonita!...” Porque lá está, não se apercebiam que estávamos num meio diferente! A gente aqui andávamos limpinhas, lá andávamos sujas porque andávamos na terra… uma vez, já eu tinha aí uns 18 anitos e tinha feito uma permanente, tinha cortado o cabelo, tinha uns brinquinhos de ouro que a minha mãe me tinha comprado, e então, ao domingo fui à missa e levei um vestido e então elas puseram-se a dizer: “Ah, mas tu fizeste-te uma vaidosa! Foste tu para Lisboa para te fazeres…” E eu disse, “Não, não ando vaidosa, só que lá não ando suja como andava aqui. Esta roupinha era a que eu tinha lá, e eu agora venho para aqui e venho de férias e não venho para aqui trabalhar e andar outra vez a apanhar batatas.”. Era uma censura…parece que era assim uma censura…e então havia outra coisa…a rapariga que viesse para Lisboa já era raro casar-se lá na terra porque as pessoas lá tinham a mania que a gente vinha para aqui e se entregava aí a qualquer…Eu ainda uma vez namorei lá um rapaz da terra e um dia mãe dele disse, e eu larguei-o por causa disso, e se eu gostava do rapaz e foi o primeiro namorado que eu tive, mas larguei-o por causa disso porque cheguei lá, e como ia assim já arranjadinha a mãe disse: “Onde é que tu ganhas o dinheiro? Andas a deitar-te debaixo de uns e doutros?” Eh pá… quando a mulher me disse aquilo eu era um bocadito senhorita do meu nariz e disse: “O que é que você está a dizer? Pois você julga que por vir aqui com um vestido?... eu trabalho!” “Ai, o meu Zé tem que ver o que é que anda a fazer!” quando ela me disse aquilo, eu adeus passa muito bem. Nunca mais quis saber do rapaz. Quando ele lá foi a casa da minha mãe eu disse, “Oh menino, a partir de agora nunca mais pões aqui os pés! Arranja uma rapariga lá à vontade da tua mãe porque a tua mãe disse-me isto, isto e isto.” Mas tinham a mania de dizer essas coisas. E eu, quando vim para cá, a minha madrinha logo me avisou, já nessa altura diziam essas coisas: que havia as casas dessas tias onde os rapazes, para não levarem as raparigas para as casas das meninas diziam que as levavam a casa das tias. Era muito vulgar aqui em Lisboa isso. Era vulgaríssimo. Era vulgaríssimo. Então a minha madrinha avisou-me para eu nunca ir para casa dessas tias porque era onde estavam as mulheres da vida, aquelas mulheres que se entregam a qualquer homem…E tu não vás! Olha que depois fazem pouco de ti e deixam-te com a barriga à boca.” Eu perguntei-lhe o que era deixar de barriga à boca e ela disse “Deixam-te grávida!” e eu então tive medo e quando comecei a namorar o meu marido e ele um dia disse, olha, hoje vais conhecer a minha tia Deolinda que eu quero-te apresentar a ela. E não, eu não fui. Fui com ele até à rua, ele chegou lá, bateu-lhe à porta, ela também estava lá a servir em casa duma senhora, ela veio à janela pedir-me para eu entrar mas eu é que não entrei. Ela é que teve que cá vir abaixo. Fiquei com aquele medo. Diziam, diziam. Isso era muito vulgar naqueles anos 50, eram as casas das tias. -
"Tudo mentira que eles nunca fizeram mal às criadas" (Entrevista a Antónia Linhares)
P: Quantos anos tem? Eu nasci no dia * de maio de 1922. Quantos tenho eu? (22 para 2009..vai fazer 87) Não!..No dia * de Maio, faço agora não sei quantos. Vou fazer 86. (Mostra-me o B.I.) P: E nasceu cá? Nasci na Amoreira, no concelho de Óbidos, distrito de Leiria. O meu pai era…tinha um talho, era só o que tinha. Tinham cabras e carneiros. Era só quem tinha um talho era ele. P: E a sua mãe? (Começa a chorar) A minha mãe, a minha mãe teve uma vida muito triste. A minha mãe era casada com um senhor, que ele era Casimiro, mas ele depois zangou-se com o irmão…não havia camionetas, havia só carroças. …A minha mãe era casada com esse senhor e tinham uma taberna lá em C.. Isto é um estudo. O irmão vinha com a carroça e zangaram-se os dois…e ele foi para cima do marido da minha mãe e caiu. Ele levava uma navalhinha para partir pinhões, era assim antigamente, e então picou-se. Ele disse que quando estivesse bom lhe fazia isto e fazia aquilo e depois infetou! Isto é o que eu oiço contar, da família dele. Depois ele foi mais a minha mãe para a Espanha. Lá na A.*, havia umas pessoas muito amigas dele, e depois pediram para o levar para a Espanha. Estiveram lá muito tempo e depois a minha mãe veio embora e ele como gostava muito dela, atravessou o Guadiana… mas ele sabia nadar, mas ou algum carabineiro viu aquela pessoa a fugir a nadar e deram-lhe um tiro e logo ele morreu. A minha mãe então foi para casa do Sr. Dr. J. S. V.*, aonde eu fui para lá também. P: Teve muitos irmãos? Sim, morreram dois, e agora morreu a minha irmã. Mas eu era gémea com um rapaz. A minha mãe em 18 meses teve 4. E a minha mãe ainda teve outro rapaz, mas os miúdos morreram. Isto é uma história muito grande e bonita… P: Como é que era sua casa? Era um quintal que era muito grande, mas o meu pai vendeu porque o meu irmão teve uma grande doença… o meu irmão mais velho, uma doença muito grande. E depois os remédios eram muito caros e o senhor doutor tinha de lá ir todos os dias. Depois, ele pôs-se bom, mas começou a beber e foi para o hospital de Óbidos e para lá ficou. P: E foi à escola? Fui. Os professores antigamente era só com quem eles queriam. P: E gostava de ir à escola? Gostava, gostava… P: E todos os meninos iam? Era tudo a ir para a escola. Quem tivesse ideia, saíam com a 4ª classe. Quem não tivesse ideia, não fazia exames, ia trabalhar. Dantes era assim. P: E como é que foi no seu caso? No meu caso não fiz a 4ª classe…faço muitos erros, mas ainda escrevo. P: Consegue ler? Tenho falta de vista, mas é muito caro e não sei como é que há-de ser isto (começa a procurar os óculos na mala). O que eu mais gostava de fazer eram as contas de dividir. Às vezes, faço…se me disserem aquele número…já sei. Só sabia era fazer contas de dividir. Multiplicar e somar não era assim grande coisa. E havia uma escola para rapazes, e outra para raparigas. P: E os seus pais tinham muitas necessidades em relação às outras pessoas da terra? Não, graças a Deus nunca passámos mal. Tínhamos um talho. O meu pai é que era muito agarrado ao dinheiro e às vezes não queria ir pagar…porque as lojas também lá iam aviar-se de carne e…o meu pai também ia gastar lá nas lojas deles. Quando era muito, se gastavam trinta contos, já ele ralhava. Das 3 lojas, veja lá. Já era um desalvoro lá em casa. Ele nunca bateu à gente, mas fazia muito mal à minha mãe porque ela só gostava era do marido. Quando o meu pai veio da América é que fizeram aquele casamento. P: Como é que foi para Lisboa para servir? Fui para casa do Dr. de V. P: foram os seus pais que quiseram? Não, eles eram unidos, eu é que quis ir. P: E quantos anos tinha nessa altura? Tinha 17. Em casa do Dr. de V., eles gostavam muito de mim. E depois vim-me embora. Vim-me embora sabe porquê? Havia lá na A.* muita gente a querer ir para aquela casa…do Dr. dde V. …e da Dona C. E eles tinham os meninos doutores…que um deles ainda dá na televisão. P: Onde era essa casa? Em Lisboa, na Avenida 5 de Outubro. Parece-me que era na Avenida 5 de Outubro. P: E como é que lá chegou? Foi de camioneta!... Naquela altura, havia umas camionetas pequeninas. Já havia aquelas camionetas pequeninas de carreira. De maneira que estava lá uma criada à minha espera. Lá na… (e não ia triste nem chorou?) Não, não. Ia contente e estavam lá umas senhoras. Elas foram, lá na A., e começaram a dizer que os meninos que eram muito malandros, mas era tudo mentira. Nunca me ofenderam coisa nenhuma. Ela era muito ciumenta e estava com medo de que me fizessem mal e escreveu uma carta lá para Lisboa…e eu tinha aquilo arrecadado. E a doutora foi ler a carta, foi ler a carta onde dizia que os meninos eram muito maus e tudo mentira. Eles eram doutores, ainda hoje é o doutor F.. E depois a Dona C. disse-me assim: “Antónia, tem que se ir embora” – “Então porquê? Eu gosto de estar cá. Porquê?” – “Porque a sua mãe escreveu uma carta.” – “Isso são coisas da minha mãe.” – Ela também lá teve as filhas. Elas davam confiança a eles. A mim eles nunca me fizeram mal, eu ia à Praça da Figueira e vinha e ninguém me fazia mal, ninguém, ninguém. Nunca ninguém me ofendeu lá. P: Nunca teve razão de queixa? Não, não. Elas tinham. Uma ainda era casada… (silêncio)…aqui em P*, um que era mestre da música, o sr.… P: E estavam todas lá em casa? Estavam. As criadas de servir eram… eram 3. Uma cozinheira…eu era a criada de fora (de passar a ferro) e a outra era de pôr as mesas. Eram 3 criadas. E então a patroa disse: “Antónia” – “Diga-me, Sra. Doutora” – “Pois eu vi uma carta a dizerem que vocês que dizem que os meninos que são…que são maus. Eles não querem fazer mal às criadas.” Eles tiveram muitas pessoas a quem eles fizeram…, mas a mim, não. Eu lavava a roupa e passava a ferro. Era a minha limpeza. A outra era de fora e a outra era cozinheira. A outra era de pôr as mesas, de pôr os pratos, e eu era de passar a ferro. Eram 3 criadas. P: E onde é que dormia? Dormia num quarto ao pé da cozinheira. A cozinheira dormia sozinha. (tinha casa de banho?) Tinha. (tinha janela?) Tinha. Era a rua de S.. Tinha isso tudo. E a gente tinha as janelas viradas lá para o hospital. P: Davam-se bem umas com as outras? P: As criadas? O pior era com a cozinheira. (Porquê?) Porque ela não era boa. Ralhava com a gente. Ralhava com a gente. Não sei o que é que ela dizia, já não me lembro. Ralhava comigo e com a Soledade. Com a Soledade era mais. Eu estava sempre cá em baixo a lavar a loiça. Naquela altura, não havia máquinas de lavar, não havia nada. Mas eu era danada para trabalhar. Elas tinham umas carpetes grandes, naquele tempo antigo. E eu levantava a carpete, punha a carpete cá fora na janela, sozinha, e limpava-a toda com uma escova. Ainda era com uma escova de esfregar, que era como se tirava melhor. “Então o que é que está a fazer menina Antónia?” “Então estou a limpar a carpete. Isto está tudo cheio de pó, por baixo e tudo.” E a passadeira era como daqui a…sei lá, era muito longe. E eu levantei a passadeira. Mas aquela gente não estava nada acostumada a isso. Então levei a passadeira lá para baixo e lavei-a toda. E disse assim: “Sra. Doutora, olhe que eu lavei a passadeira toda. Aquilo não estava capaz. Eu tirei duas pazadas de lixo ou três debaixo da passadeira.” E ela ficou contente, ela gostava muito de mim. (Antónia muda de assunto repentinamente) A minha mãe era muito nervosa e foi dizer que os miúdos [filhos do patrão] eram malandros. E ela (a patroa) disse: “Antónia!” - “Ai eu não vou Sra. Dra., eu não me vou embora.” Não, eu gostava de lá estar. P: A que horas é que tinha de se levantar? ...levantava-me assim às 9 horas. Eu depois ia engraxar os sapatos ao Senhor Doutor lá para um sítio que aquilo era tudo mobílias muito antigas. Era uma casa muito… (Era uma moradia ou um prédio?) Um prédio: a gente entrava e… cá em baixo não morava ninguém. Só morava era o caseiro. Via as pessoas que entravam e as pessoas que não entravam. E eu um dia não o conheci e tive medo. “Mas o que é isto?” – “Oh, minha senhora, oh, minha senhora…” - Eu julgava que o homem vinha-me agarrar, mas não vinha. Estava sempre lá, mas eu nunca o lá tinha visto, e ganhei medo. Ele estava na parte de baixo, que era uma entrada. Eles eram muito políticos e tinham medo dos partidos das direitas. Eram políticos e tinham medo de que às vezes houvesse qualquer coisa. “Eh, vocês não abram as janelas!!” – Que eles sabiam que quando havia qualquer coisa…Ele era Diretor do * Era Diretor! E o Dr. F. fazia operações. Era cirurgião. E tinha outro que era das águas…não. Não, da Luz, mas morreu. Morreu quando eu já tinha vindo para cá. Na rua de S. havia muitas oficinas. (muda de tema repentinamente) Elas é que dão confiança (as outras criadas) e depois os patrões é que têm a culpa. Olhe, eu nunca dei. Nunca lá foi ninguém a perguntar por mim. P: E tinha folgas? Tinha, mas eu nunca ia porque tinha medo de ir sozinha. Ia à praça da Figueira. Mas uma vez eu perdi-me na Praça da Figueira e não sabia ir para a rua de S.. Perdi-me e fui ter com um guarda. A minha ideia! Eu era mais nova tinha 17, não. Tinha 16. E depois eu fui dizer a ele que tinha medo, mas não havia malandragem naquele tempo. Não! As pessoas corriam tudo e ninguém lhes fazia mal. P: Nunca ia a um baile? Não. Nunca fui passear com ninguém. Eu ia a casa duma tia que morava para cima da Bica, lá em cima. Às vezes, eu ia lá a casa delas. E eu disse assim: “Oh minha senhora, eu não quero ir para a Amoreira.” – “Não, a Antónia não pode ficar porque a sua mãe escreveu-me e agora eu tenho de ser representada” - toda chateada que eu gostava muito de lá estar. Depois, as minhas tias vieram da A. abrir aqui um restaurante e eu vim para cá. Eu namorava lá com um rapaz de A. que morreu agora. Ele nunca teve filhos., era do Norte, estava em Cascais. Casei com o meu marido. Ele era casado pelo civil e lá em A. o que interessa é casar pela igreja, o registo não tem valor, é como um rapaz solteiro. Juntei-me e casei-me com o meu marido. Nessa altura, trabalhava num restaurante com a minha tia. Fazia tudo: fazia o comer. P: E nunca mais foi servir? Não, fiquei a trabalhar com a minha tia. Mas eu gostava era de estar em Lisboa. P: Quando foi servir para Lisboa, sentiu muito diferença da sua terra para Lisboa? Ah, ali era toda a diferença. (Tinha que usar a farda?) Tinha (Como era?) Era azul, aos quadradinhos. Ao Senhor Doutor ainda ofereci muitas coisas. Ah, e estive no arroz. Estive no arroz. O arroz era semeado, não era como ali…a gente semeava os três pezinhos. Era muito frio, era em março. É por isso é que eu estou aqui à rasca de uma perna. Mas quem ganhava mais era eu e mais a Preciosa, e a Isabel. A gente as três é que ganhava mais porque eles viam que a gente é que trabalhava mais, ali na D. E vinha gente lá do Norte. Comíamos sangalhos, aquilo que dão aos coelhos. Faziam o feijão e depois migavam as serralhas. Punham a hortaliça para a gente…as serralhas até eram boas. Os coelhos engordam com as serralhas. P: E na casa de Lisboa, comiam aquilo que os patrões comiam? Era a mesma que os patrões comiam. Se era sopa, era igual à delas. Se era cozido, era igual ao deles. Era tudo igual. P: E tinham muitas visitas? Sim, tinham muitas visitas. Então ao Dr. de V.… davam cabritos. E depois, o Senhor Doutor disse: “Mas o que é que ela está a fazer?” Estava a amanhar o cabrito, a tirar-lhe a pele, a ver se tinham algum mal. Aquela gente saloia estavam lá no hospital, e eles faziam ofertas. Davam galinhas, davam coelhos, davam cabritos. Eu é que arranjei o cabrito, estava habituada: esfolei-o e arranjei-o. – “Ai, ai, …então e vossemecê não sabe? Também não é operador? Também é operador. Não tira é a pele, mas é operador.” P: Não a repreendiam? Não, ela [a patroa] até me dava do melhor e dizia: “Toma lá, Antónia.” Para as outras não verem. (era a preferida da patroa?) Era (o que é que ela lhe dava?) Olhe, dava-me bolo que não dava às outras… - “Não diga nada, está bem?” e eu ia lá para baixo e comia-o. Para ao pé da roupa. Eles hoje em dia já morreram todos. Só se for a Maria João que ainda esteja viva. E é assim a vida. Depois vim para casa dos meus filhos. Trabalhei muito. Fazia o comer porque era ali ao pé da Praça. (silêncio) O meu marido era contramestre de um barco. Agora precisava era de ir para um Lar. A minha filha não pode estar aqui e eu precisava de ir para um lar, pronto. Eu só tenho a pensão. Eu gostava de ir para um Lar. Mas eu tenho ali uma casinha com renda. Eu queria ir para as Caldas (quantos filhos teve?) Tive 3 filhos, morreu o meu filho (começa a chorar). Ele era primeiro-marinheiro e morreu a ser puxado por um cabo. (muda de tema repentinamente) Eu ficava danada era quando os patrões iam presos porque eram contra o Salazar. E depois elas diziam que eu que era comunista. Mas não era comunista, fui sempre socialista. Os comunistas tinham muito má fama. Agora já não têm. Eu ia lá ao forte, porque a minha tia tinha lá a pensão e eu levava comer para eles. A gente ia levar o comer quando o Álvaro cunhal estava preso lá. As empregadas da minha tia, a gente é que fornecia o comer para lá e havia uma senhora que trabalhava lá o marido e dizia: “Oh Antónia, quer ir ao forte?” – “Ai vocês vão? Então eu vou. E depois a gente cruzava-se ali com eles. Ia lá levar o comer aos guardas.” P: Teve sempre saúde? Sim, só uma vez é que tive uma depressão nervosa. Andava a curar-me no psiquiatra ali das Caldas. Já era casada. Já tinha os meus filhos (muda de tema repentinamente) A minha mãe era muito nervosa e começaram a dizer que os meninos faziam mal às criadas…tudo mentira que eles nunca fizeram mal às criadas. É que os meninos não têm ninguém e vão às criadas. É o que eles querem é ir às criadas. E era verdade. Isto havia de sair tudo na televisão. Isto é tudo verdade. Tudo verdade. Isto é a minha vida. Eu perguntei: “Como é que a senhora doutora soube isso? Foi lá ver a carta? Foi lá ler a carta, não foi?” - E eu fiquei muito aborrecida porque estava lá tão bem e elas gostavam muito de mim. Às vezes davam-me qualquer coisa: olha toma lá, toma lá e esconda. E eu ia lá para baixo. P: Depois nunca mais viu essa família? Não, nunca mais vi o menino P. -
Calar o corpo. Cuidar dos outros
P: Gosto de começar por perguntar onde é que nasceu, em que ano nasceu, … Madalena Monforte: Eu nasci em casa, no M., lá em baixo… a aldeia grande que temos lá em baixo é o centro. Isto aqui já são tudo arredores. Embora aqui pertença a Sintra, não pertence lá em baixo, porque aquilo ali é uma coisa assim pequenina. P: Um pequeno lugar, sim. Madalena Monforte: E eu nasci em 1946, em março. P: E os seus pais, o que faziam? Madalena Monforte: Meus pais eram do campo, eram agricultores. P: Lembra-se de os ver a trabalhar no campo? Madalena Monforte: Sim, sim. P: Os dois, portanto… A mãe não estava em casa, também era trabalhadora? Madalena Monforte: Não, a mãe estava mais tempo em casa. A mãe começou por arranjar aquelas casas das pessoas que vinham para cá passar férias… Vinha para a zona muita gente passar férias. P: Já era um lugar onde as pessoas vinham? Madalena Monforte: Já, já. As pessoas alugavam as casas e iam para uma casinha qualquer que houvesse no quintal. Alugavam nos meses de verão para arranjarem dinheiro P: E tinha irmãos? Madalena Monforte: Tenho um irmão, mas é mais novo do que eu quase sete anos. P: Considerava que era uma família remediada? Madalena Monforte: Sim, sim. P: Não tiveram propriamente carências... ou não se lembra de terem passado…? Madalena Monforte: Quer dizer, a gente conseguia-se manter mais ou menos. Nasci quando acabou a guerra. Como a minha mãe dizia, tínhamos umas senhas para ir buscar as coisas. P: Porque nesse período ainda havia racionamento, não é? Madalena Monforte: Havia, havia sim. P: Foi à escola? Madalena Monforte: Eu fiz a quarta classe, a chamada quarta classe. Mas não fiz mais. P: Porque…? Madalena Monforte: Porque não havia dinheiro para isso, porque aqui não havia outras escolas a não ser a primária, e depois já era preciso ir para a zona de Sintra, Lisboa, por aí fora, como foi o meu irmão. Ele já foi estudar, embora os meus pais não quisessem, mas foi por incentivo da professora que ele foi tirar… ele é contabilista, formado. P: Portanto, ele já pôde ir passar ao nível seguinte da escola? Madalena Monforte: Já! P: E se calhar apanhar um transporte para poder ir à escola e voltar? Madalena Monforte: Exato, já passou daqui para o Cacém. Ia daqui de autocarro e depois de comboio. P: Quer dizer que, na altura era um bocadinho longe, ou seja, as distâncias eram vistas de outra maneira, não é? Madalena Monforte: Era, era! Arranjou-se lá quem dissesse mais ou menos o que é que ele andava por lá fazendo, ainda por cima ele era pequenito… ali fez quatro anos, parece-me. Depois passou para Lisboa e teve um ano na escola de Camões. E depois foi para o Instituto. P: Que já era o de contabilidade? Madalena Monforte: Já! Ao pé da fonte luminosa. P: Sim, mas no seu caso, já vi que não houve ninguém que a ajudou a sair daqui…, lembra-se de ter tido pena, ou de ser uma coisa natural … Lembra-se de como foi, para si, essa experiência? Madalena Monforte: Não, quando o meu irmão começou a ir mais para longe, eles disseram-me “Então, e tu também queres ir?”, e eu disse, “Eu não! Agora o que é que eu vou fazer ao fim destes anos todos para a escola, andar para trás? Não, vou andar para a frente, para mim já não merece a pena…” P: Sim, correu muito tempo. Para si, então, não fazia sentido regressar àquele patamar? Madalena Monforte: Não, não! Nem conseguia chegar àquele patamar! Até lá tinha de estudar muito…Embora as nossas quartas classes naquela altura fossem boas, ou melhores do que agora algumas coisas que a gente vê… a gente lembra-se de coisas que a gente hoje pergunta e eles não sabem responder, nem sabem sequer o que é… P: Conhecimentos que tinham… Madalena Monforte: Exato! A gente tinha muitos conhecimentos, e por exemplo, os livros, pelo menos da quarta classe, eram fantásticos! P: E lê e escreve perfeitamente, ou seja, conseguiu ficar com as competências da leitura, da escrita, tudo? Madalena Monforte: Sim, sim, tudo! E como eu gosto muito de ler, pronto, nunca perdi a leitura. P: Sim, sim, já lá vamos! Mas, então, o que foi o seu percurso logo a seguir a perceber que não ia continuar a escola? Madalena Monforte: Fui para o campo atrás do pai. P: O que era uma filha andar no campo atrás do pai? É ajudar a fazer…? Madalena Monforte: É ajudar a fazer as sementeiras, na vindima, na época do trigo, andar na ceifa… de tudo isso eu fiz. P: Com outras crianças? Madalena Monforte: Não, não! Criança era só eu! Não, não… das minhas colegas todas ninguém foi para o campo… os meus pais é que eram do campo, e eu atrás deles fui! P: Claro, e uma vida dessas é levantar cedo…ou já lhe davam assim algumas folgas…? Madalena Monforte: Nem ao domingo! (risos) P: Nem ao domingo!? Não havia folga!? (risos) Às vezes a família ainda é pior, quando se trabalha com a família, não é? (risos) Madalena Monforte: É, é, embora eles não fossem maus, não me tratavam mal. Não me davam tareia, a minha mãe dava. A minha mãe era… arisca… P: O que se lembra dessa vida? Era levantar-se a que horas? Madalena Monforte: Era levantar à mesma hora do que o pai e do que a mãe, às sete/seis horas, conforme a época em que a gente tivesse, não é? E pronto, depois tomava o pequeno- almoço, arrumava a casa toda e depois, a seguir ao almoço, ia levar o almoço ao pai e ficava com ele a semear batatas, feijão, … P: Até ao pôr do Sol? Madalena Monforte: Até ao sol pôr! Depois vinha para casa e pronto. P: Quer dizer que perdeu um bocadinho também o convívio com as outras pessoas da sua idade? Madalena Monforte: Sim, sim… só tínhamos, por exemplo, uma coisa que agora na mocidade não existe, e passado uns anos também deixou de existir, eram os bailes que a gente tinha… havia peças de teatro feitas cá, havia… vinham aí fazer o cinema mudo! (risos) E a gente ia ver! Pronto, eram as nossas… porque daqui para fora, eu pelo menos, nunca tive ordem de sair… P: Nada que fosse para além da terra? Madalena Monforte: Do círculo da terra… E não podíamos ir sozinhas! Não ia sozinha! Depois, quando o irmão cresceu, ia o irmão, ou então, por exemplo, ao domingo quando havia os bailes iam o pai e a mãe, pronto, iam sempre tomar conta da gente. P: Mesmo nos bailes? Madalena Monforte: Mesmo nos bailes… P: Eu pensei que aí houvesse um pouco mais de… ou seja, não vigilância, mas não? Madalena Monforte: Não, não! Era quando havia mais vigilância… porque durante a semana a gente estava no campo, não havia problema! (risos) P: O pior é quando se juntam (risos)! Madalena Monforte: O pior é quando as mocidades se juntavam, porque aquilo… tinha e temos uma sociedade de recreio, onde há desporto, … eu nunca tive ordem de ir para desporto, nunca tive ordem de ir para o teatro. P: Mas se calhar, não havia essas vontades… Madalena Monforte: Em mim havia essas vontades! (exclama alto) Só que não tinha ordem… eles não deixavam, ou então tinha de ir com companhia… P: Eram aqueles medos… Madalena Monforte: Nem sei de quê…porque a gente chegava a casa do trabalho, já não saímos para lado nenhum… só se saía ou ao sábado ou ao domingo, consoante o que houvesse para a gente poder ir…Mas é a vida no campo… dizem que é… é muito triste! (voz mais baixa e comovida) E dá cabo dos nossos corpos! Imagine uma rapariga com treze/catorze anos e com uma grande cesta à cabeça cheia de batatas, ou cheia de uva, ou cheia de…pesadíssima… vai tudo para baixo, não é? Os ossos não se desenvolvem…Eu andei sempre muito direita e hoje já está a querer ficar um bocadinho mais curvada… e tenho dores! P: Pois, são as mazelas que ficam desse tempo… Madalena Monforte: E depois fui aprender costura… P: Isso já foi outra coisa que lhe aconteceu, então, e a que idade é que foi aprender? Madalena Monforte: Fui aprender com treze anos. A partir dos treze fui aprender, mas era aqui. P: Com uma mestra ou uma escola? Madalena Monforte: Não, não, modistas daqui! Havia cá umas poucas e elas faziam… pronto, faziam os vestidos, faziam as calças, faziam os casacos, faziam tudo o que era vestuário! E a gente aprendia com elas. P: Mas não quis ser costureira? Madalena Monforte: Não. P: Para onde é que estava o seu sonho, na altura? Consegue lembrar-se de alguma coisa que se tivesse conseguido… entrar ou alcançar… Madalena Monforte: Não… P: Não tinha os seus sonhos abertos? Madalena Monforte: Não, depois não me deixaram viajar e fui aprender a costura. Mais tarde, comecei a trabalhar nessas pessoas que vinham de Lisboa passar cá as férias, para sair e fazer o verão. Trabalhei para mais que uma pessoa! Quando comecei fui ganhar 2 euros e meio… 2 escudos e meio… 25 tostões! Que era como a gente chamava! P: Então, lembra-se da primeira vez em que foi… no fundo, tratar da casa. Era assim que se dizia? Madalena Monforte: Era! Exatamente! Pronto, as pessoas vinham passar férias e a gente ia lá lavar roupa, passar a ferro… cheguei a fazer comida também, conforme as pessoas precisavam. P: Era nova nessa altura? Que idade é que tinha? Madalena Monforte: Catorze/quinze (risos)… a primeira pessoa para onde eu fui nunca me esqueci! Aqueles lenços que a gente usa, de pano… a senhora queria os cantinhos todos, todos ali unidinhos! Todos, todos! Acabei por aprender mais do que em casa! P: Pela exigência que lhe pediam? Madalena Monforte: Pois, e também pelas coisas diferentes que tinham! Porque eles vinham de férias, mas vinham de Lisboa! Lisboa era Lisboa, não é? Eles iam para a praia, eles traziam toalhas, eles traziam vários fatos de banho, coisas que a gente cá… eu nunca vesti um fato de banho! P: Até hoje? Madalena Monforte: Não, até hoje… não consigo! Não! Eu fui já, depois do meu marido, eu sou viúva… depois do meu marido ter morrido, o meu filho, que mora aqui mesmo ao pé de mim, insistiu, insistiu mais a minha nora e “vem e vem, vais mais a gente, vais com a gente, então e tu nunca vais para lado nenhum!”, e eu “não estou habituada a ir para lado nenhum, estou habituada a estar em casa, o que é que vocês querem que eu faça!?”. Eu nunca vesti um fato de banho! Quando muito, nós fomos pequeninas, que podíamos andar lá de cuequinhas que isto ainda não tinha aparecido! Podia andar assim… Assim que os meninos começaram a crescer, o pai proibiu, pronto! P: Acabou-se a praia… Madalena Monforte: Acabou-se a praia! P: Estas pessoas que alugavam casas traziam objetos e roupas que não eram realmente nada… Madalena Monforte: Daqui, não! Nada comparado com aquilo que a gente tinha! P: Era interessante para si? Madalena Monforte: Não sabíamos nada, porque a gente a maior parte do tempo andávamos descalços! Ah pois! (exclama alto) Comprava-se, por exemplo, pela altura do Natal, comprava-se uns sapatos e os sapatos eram arrumados! Calçava-se depois no dia do Ano Novo, na passagem do Ano Novo, calçava-se… depois era para a Páscoa, depois era assim só nestas datas lembradas. Mais certo era andar descalço ou usar uns tamancos… pesava mais do que eu quase, os tamancos! P: Aqueles tamancos mais típicos do campo? Madalena Monforte: Exato! Aqueles de madeira, mas que eu gostava… eu gosto. Isto para ir para a terra tínhamos uns botins de borracha… P: Sim, que são fortes? Madalena Monforte: São mais fortes e não deixam passar a água…. porque aquilo é até quase ao joelho. P: Então, e diga-me uma coisa, quando começou essa casa, por exemplo, estabeleciam muitas regras…? Madalena Monforte: Não! P: como eram essa, ou essas famílias? Penso que num primeiro momento andava de casa em casa, é isso? Madalena Monforte: Sim, normalmente eram três. Mas, pronto, é porque os hábitos eram diferentes dos da aldeia, não é? Muito diferentes! Por exemplo, quando eles iam almoçar a entrada era, por exemplo, queijo fresco ou coisa assim, que eram mesmo feitos cá na terra, que eu cheguei a fazer muitos, porque a gente tinha também vacas, e eles comiam o queijo antes da refeição e a gente ficava a olhar… P: Porque na sua casa o queijo era depois, ou…? Madalena Monforte: Não, tínhamos a sopa... Tinha de haver sempre sopa e depois comia-se o queijinho em cima com um bocadinho de pão e pronto! P: Para a força do trabalho, sim. E a ordem da mesa, as roupas? Madalena Monforte: Pois, cheguei a pôr uma mesa…O guardanapo ficava a uma distância do prato, o talher ficava a outra distância, aqui (exemplifica) fica o da sobremesa, depois a gente cá da aldeia não sabia, a gente sabia lá! Nem sequer sabíamos que existia talheres para sobremesa ou para o peixe… ninguém sabia! P: Sim, e é engraçado que estavam de férias e mesmo assim tinham esses cuidados, não é? Madalena Monforte: Tinham! Traziam…. Tinham é de trazer. Se queriam ter essas coisas diferentes, pelo menos para o comer, tinham de trazer, porque as pessoas cá não tinham. P: E seriam famílias muito abastadas? Médicos, advogados, ou até podiam ser professores…? Madalena Monforte: Alguns! Eu trabalhei num que eles tinham uma fábrica de madeiras em Lisboa. P: Engenheiros? Madalena Monforte: Pois, era sempre gente mais, pronto, com mais algum poder, alguma posse. Pronto, a gente cá não tinha posses para essas coisas… P: Sim, sim, mas pagavam-lhe? Madalena Monforte: Sim, só que a minha mãe tirava-me logo o dinheiro! Pagavam-me ao dia, normalmente era à hora, as horas que se fizesse, era o que eu ganhava. Mas eu chegava a casa quando recebia e tinha de entregar à mãe, e se eu não entregasse à mãe, a mãe ia lá buscar onde eu aguardava… P: Isso custava-lhe? Madalena Monforte: Muito! (voz amargurada) Ainda hoje existe aquelas revistas, assim pequeninas, que era a Maria e havia cá uma senhora velhinha, que era a vendedeira dos jornais e das revistas, e os meus pais não gostavam que eu lesse essas coisas, que “isso só traz é coisas que não prestam!”, pronto, e eu combinei com a senhora, guardar… que aquilo custava 25 tostões, “mas você nunca diga à minha mãe, ouviu!?” … Oh pá! Numa semana, não fui lá logo no dia buscar, ela viu passar a minha mãe e disse-lhe “Olha, leva isto para a tua filha, que ela tem cá guardado!” Oh meu Deus do céu! Que trovoada foi lá naquela casa! Tive de deixar de comprar… P: Não queriam, se calhar, que lesse certas coisas… Madalena Monforte: É, é… eu já entendia que, para eles, trazia certas coisas que podiam ser más para as nossas cabeças, ou sei lá, ou mudarmos de opinião e querer… P: Querer sair daqui, talvez…? Madalena Monforte: Pois, exato! E, então, tive de desistir… nem isso ela deixava comprar… (voz triste) P: Alguma vez chegou a ver esse dinheiro? Madalena Monforte: Não… (baixou o tom de voz) P: Não foi para um enxoval, por exemplo? Madalena Monforte: Para o enxoval tive eu depois de trabalhar no verão, mas isso eu já tinha outra idade… mesmo assim, guardei e ela foi lá buscar… só consegui ficar com os últimos 3 meses que eu trabalhei… eu fui em 1965, que foi quando me casei, é que eu consegui e eu depois disse-lhe a ela “Neste, tu não mexes!” Já tinha dezoito anos… e eu disse “Neste tu não mexes! Porque tu depois não me dás o que eu quero, e eu vou me casar para novembro, e eu preciso das minhas coisas!”, “Mas ah o que é que tu precisas!?”, ela tinha e ela gostava de comprar! Eu não tinha ordem na matéria… P: Nem liberdade para comprar? Madalena Monforte: Não, não… ela é que comprava tudo. P: Pois, isso deve ter-lhe doído… Madalena Monforte: Dói muito!... (voz trémula) Dói muito, porque depois, claro que, já mesmo naquela época, a gente queria uma loicinha melhor, um serviço de jantar, … e eu não levei faqueiros, eu não levei nada disso, só mais ou menos o necessário para ter na cozinha e essas coisas assim… o fogão que ela me deu, depois de me ter tirado tanto dinheiro, foi daqueles que só têm 2 bicos. E agora quero fazer um bolo, vou fazer um bolo aonde? Foi-me comprar uma forma, daquelas de tampa, com um óculo… queria fazer o bolo, tinha que estar lá a espreitar para ver se o bolo crescia ou não crescia… (risos) Ai, foi uma vida de muito sacrifício (volta a baixar o tom de voz) … muito, muito… Até me casar! Depois, casei-me aos dezoito… P: Portanto, entre os treze/catorze e os dezoito o seu trabalho era…? Madalena Monforte: Era no campo à mesma. P: Era o campo, embora no verão tinham estas oportunidades, não é? Madalena Monforte: É, eram essas oportunidades… e havia menos trabalho no campo. Já era mais apanhas de fruta e essas coisas assim, eles dispensavam-me. P: Diga-me só mais uma coisa: nunca trabalhou em casa de famílias estrangeiras? Madalena Monforte: Trabalhei. Trabalhei com uns americanos que vieram para cá passar férias e tinham um bebé pequenino e queriam uma pessoa para estar a tomar conta dele, mas esses já eram… tinham governanta, tinham cozinheira, essas coisas assim… e eu fui para lá nessa altura. Ora, eu casei em 66…. fui para lá em 65, a ganhar 800 escudos por mês. Que era muito bom! Naquela altura era muito bom! Comia, vivia e dormia em casa, porque era no Pinhal do Banzão, e eu vinha para casa, vinha dormir. P: Tomou conta dum bebé? Madalena Monforte: Tomei, chamado Mateus. No outro ano, eles vieram para cá outra vez, mas ficaram em São Pedro numa quinta. Mas vieram à minha procura! (exclama alto) Ainda hoje se me virem, eles vêm cá! Eles conhecem melhor a mim do que eu a eles (risos)... Ainda hoje vão ao meu encontro. Eles depois compraram cá a casa, depois já veio o filho,já claro um homem, não é? Vieram à minha procura para eu ir para lá para São Pedro, mas (baixa o tom de voz) … é uma tristeza, mas tenho de o dizer… não fui, o meu pai não me deixou! Não deixou porque eles queriam que eu ficasse, neste caso, como era lá para São Pedro de Sintra, lá para cima, para ao pé da Serra, não queriam que eu ficasse lá de noite, e os pais disseram “não!” … então, quer dizer, ia ganhar os mesmos 800 escudos, comidos e bebidos e dormidos lá e eles tinham de andar todos os dias para baixo e para cima para me vir pôr, porque eles não me deixavam vir de transportes públicos… P: Queriam trazê-la… ou um chofer, não? Madalena Monforte: Não, eram mesmo eles! Porque eles vinham da América, não traziam o chofer, só alugavam cá o carro e depois tinham-no cá. Mas… o meu pai disse sempre que “não e não!” e vinha me pôr ao sábado à noite… não, na sexta à noite! E eu ficava sábado e domingo em casa… e mesmo assim não me deixaram… eu disse “Oh pai, deixem-me ir! Qual é o problema? Pois, se eu vou, fico lá a semana ao pé deles, eles vêm cá pôr e eu preciso desse dinheiro que eu vou casar daqui dois ou três meses, então? Como é que é isso?”, “Não, não vais e não vais!” e o casal americano depois, com pena, arranjou uma casa, perto da praia das Maças. P: Para poder ir? Madalena Monforte: Para poder ir e vir todos os dias para cá! Também fui tomar conta de uma criança, mas esse era alemão, era tão ruim o rapaz… Ai! Tão mau, tão mau que ele era… Mas eu lá o dominei (risos). P: Lá conseguiu (risos)… porque tinha jeito, com certeza! Madalena Monforte: Sim! Sempre gostei de crianças, sempre… eu tenho dois filhos, mas já tenho quatro netos. Lá criei os filhos, lá criei os netos, pelo menos até aos quatro anos, alguns estiveram comigo… já criei sobrinhos, … P: E como foi quando começou a namorar? Madalena Monforte: A gente dantes havia a correspondência com as nossas tropas que estavam no Ultramar, éramos as madrinhas de guerra. Fui madrinha de dois. Fui madrinha de um colega e ele escreveu-me para cá, que eu nem sabia quem ele era… éramos da mesma terra, com 5 anos de diferença um do outro e eu não conhecia… “Quem é, quem não é!?”, ele lá também não me conhecia, mas eu também não sei como é que ele me escreveu! FiqueI sem saber por onde é que ele foi arranjar a morada… depois também fiquei a escrever-me com o rapaz que era dos madeireiros, lá de cima… não me lembro agora do nome da terra… só sei que ele se chamava Xavier (nome fictício) e o resto… já passou … E fiquei-me a escrever com ele, e eu pensava, “mas quem é ele?”, ninguém me sabia dizer… P: Ninguém lhe conseguia dar uma resposta? Madalena Monforte: Não. Pelo nome o que ele mandava, que era o nome verdadeiro dele, ninguém sabia dizer ser quem! Eu não tinha convivência nem com o pai, nem com a mãe dele. O pai até já nem existia, o pai morreu em 1961, quando ele estava na tropa em C.… Depois só fui à chegada dele, ao barco, foi o K. que vinha cheio. P: Em sessentas e tais, não? Madalena Monforte: Sim, 62/63… não! 63, mais ou menos! A gente namorou um ano e pouco… foi assim que ele chegou, eu fiquei encantada e ele ficou também! P: Quer dizer, não o conhecia? Foi vê-lo a chegar? Madalena Monforte: A chegar em Lisboa! P: Porque estavam lá as madrinhas todas… Madalena Monforte: É, é! Exatamente! Apresentou-me o meu outro afilhado, vinha também junto, estavam os dois em campo, ele esteve foi em Cabo Verde… ele estava para embarcar para a Índia, rebentou a guerra lá na Índia e ele já não foi. Depois mandaram-no para Cabo Verde e foi assim… ele esteve lá dois anos e pronto… depois casámos! P: Foi um namoro à distância? Madalena Monforte: Não, não foi namoro! Não, não, nem sequer o conhecia! Nem sabia quem ele era, nada! Era assim uma coisa… depois quando a gente foi ao cais em Lisboa, na espera a mãe dele é que me disse “Olha ele está ali! Olha está ali!”, ele ficou tão maluco quando viu a mãe, perdeu o boné! (risos) O boné caiu à água! Quando foi entregar a roupa ao quartel, teve de o pagar! E pronto, casámos depois em 65. A minha filha nasceu em 68, o 25 de abril foi em 74, e ele nasceu em 75! Já tinha vinte e nove anos quando o tive, eles têm bastante diferença um do outro. P: Também casou muito nova, não é? Madalena Monforte: Casei, mas também só tive a filha ao fim de dois anos. Depois, no casamento, é que foi o descalabro todo… (baixa o tom de voz) P: Quer falar um bocadinho o que é que foi essa vida para si, essa tristeza? Madalena Monforte: Depois de casar fui para um emprego que é chamado caseiros. Fui para lá, e fui para lá a fazer um ano de casada. E ficámos lá! Eu fazia o serviço. Eles eram estrangeiros, eram da Áustria e fizeram cá aquela casa… Eu é que fui estrear a casa, a moradia. E depois, olha, fomos ficando lá, eu fui fazendo sempre os trabalhos todos que eram precisos lá em casa, quando eles vinham de férias… P: Portanto, ainda é aquela ideia que o caseiro fica numa casa própria com a família, não é? Madalena Monforte: Não! Eu ao princípio fui mesmo para um quarto que existia na casa, que era o quarto para a criada, que tinha casa de banho incluída, própria. E depois era a cozinha, tinha a cozinha lá dentro, a cozinha era a mesma deles e minha. P: Mas o seu marido não foi consigo? Madalena Monforte: Foi, foi. P: Então, ele dormia no seu quarto? Madalena Monforte: Dormia, mas já estávamos casados! Eles aceitaram a gente porque a gente ainda não tinha filhos, percebe? De maneira que a gente fazia a vida de casal à nossa maneira, eles também estavam cá pouco tempo. Eles vinham em maio/abril e agosto. Nessa altura, até a esposa dele não vinha, a esposa dele só vinha em agosto, aí é que vinha o mês todo porque tinha três crianças e lá na Áustria não existe mar. É um país rodeado de outros países, só tem água doce, de maneira que ela vinha. Ele vinha em abril/maio sozinho. Foi assim que eu o conheci, eu fui para lá sem conhecer o casal, sem conhecer ninguém! Tive uma aventura assim um bocado esquisita, mas pronto…Precisava de dinheiro, eram 800 escudos por mês, com casa, água e luz, o que é que eu queria mais!? P: E da parte do seu marido, não tinha nenhuma outra profissão? Madalena Monforte: Ele era carpinteiro. Quando a gente se casou, o meu marido dava-me 500 escudos por mês e pagava ele a água e a luz. Depois… foi um bocado, assim, complicado… porque ele estava mal-habituado na boca, na comida e como tinha de levar comida com ele, não vinha almoçar a casa, só queria era bifes! Bifes e bifes! “Então e o acompanhamento?”, “Arroz, não quero! Farto de arroz lá do Ultramar até dizer chega! Que era todos os dias, de manhã, ao almoço e à noite!”, (risos) “Então, cozo uma batata!”, “ah! Com bife!? Quero lá batatas!”… levava só a carne, pão… P: E porque gostaria assim tanto de bifes? Bifes é um artigo caro… Madalena Monforte: Naquela altura não… naquela altura até era talvez …agora toda a gente diz que é cara, mas a outra da minha época, em comparação, era baratíssima! Pronto, pode-se dizer assim... P: Vinha com esses requintes de comer certas coisas e isso começou a ser um problema entre vós? Madalena Monforte: Começou. Porque, ao fim de semana, era cozido. Todo os domingos cozido e cozido! Ai credo… mas o cozido para ele era o porco, a vaca, os chouriços; e as batatas e as cenouras e o resto da hortaliça não se comia! “Então e agora o que é que eu faço à sopa!? Não posso deitar a sopa fora!”, Não tinha frigorífico, naquela altura, não é!? Houve um fim de semana que eu não fiz! Não fiz o cozido. E ele vai e diz assim…, eu nem sei o que é que fiz,… ele vai e diz assim “então hoje, não há cozido?”, “não.” “então?”, “Então, eu não estou para estar a comer a sopa toda e toda a semana sozinha e ainda ter de deitar lá para as galinhas da minha mãe, porque tu não comes sopa!”, eu não era capaz de comer uma panela de sopa dias e dias sempre a comer sopa e até porque não havia frigorífico, estragava-se, azedava-se! Naquela altura azedava menos do que agora, porque as hortaliças era tudo criado de maneira diferente, durava mais tempo, era completamente diferente… e não fiz! Depois houve dia, não sei porquê, eu não tinha jantar, não tinha nada, porque a gente tinha comprado consoante o que aparecesse na terra, naquela altura. Não havia estabelecimentos como há agora, não havia condições… só ao sábado e ao domingo (para vender, não é?). Pois, “E agora o que é que eu faço?”. Eu vou lá acima à minha mãe buscar ovos, a gente morava na mesma rua, e olha… eu fiz-lhe uns ovos e ele vai e diz assim “então, o que é que eu como mais?”, e eu disse assim “então, não chega?”, “claro que não! Onde é que isto chega!? Eu venho do trabalho!”, “então, mas quando vinhas do trabalho e ias para a casa da tua mãe, também era o que tu comias! Muitas vezes que eu cheguei a ver! E agora não chega!?”, “Ah é porque eu dantes, quando ia para a casa da minha mãe, já sabia que era esse o hábito, já ia meio comido de fora!” “Ah, isso é tu nunca me tinhas dito!” …. naquele dia ficou só com os ovos e foi à gaveta buscar queijo. Ao fim de 2 meses, apareceu-me bêbado em casa, que ele bebia muito. Mas eu nunca tinha visto! Só ao fim de 2 meses é que vi. Tínhamos uma casinha cá fora no quintal, onde ele metia a motorizada, que ele tinha uma Famel… e arrumou a moto lá dentro da casinha, foi para casa, sentou-se num banco à mesa na cozinha, não era nada disto, era uma casa muito pobrezinha também, e eu vi do quarto, eu já estava deitada, e eu vi pelo espelho do guarda vestidos que ele estava sentado à mesa. Digo assim “então tu não te vens deitar!?”, “eu quero comer!”, “mas eu agora não tenho comida!”, “mas eu quero comer!”. Começa a abrir os tachos e as panelas, e as gavetas, e não sei o quê, à procura de comer. Eu que estava casada há poucos meses … P: Ainda tinha passado muito pouco tempo de vida de casados? Madalena Monforte: Tinha passado muito pouco tempo! Eu levantei-me, vim à cozinha e ele “para que é que eu te dou o dinheiro!?”, e eu assim “porquê?”, “então, eu agora chego a casa e não tenho comida?”. Comecei a levar… (baixa o tom de voz) Eu só lhe disse assim “então, mas o que é que tu estás a fazer!?”, “para a outra vez tem cá comer em casa, que eu quando chego a casa quero comer!” e ele tinha um vício de comer mesmo! Porque ele mesmo bêbado, ele procurava por todo o lado comida! P: Foi a primeira vez que foi violento? Madalena Monforte: Foi. Foi a primeira vez que eu o vi bêbado e foi a primeira vez que eu levei assim, aqui na carinha. Depois, mais tarde, descobri que a minha mãe era uma mulher malcomportada… aí é que foi, aí então é que foi descalabro todo… Por tudo e por nada, pumba! Desde que ele fosse bêbedo para casa, eu levava sempre! Sempre, sempre, sempre! Quer falasse, quer não falasse. P: Todas as razões eram boas para lhe bater… Madalena Monforte: Todas as razões eram boas para levar! P: E o sofrimento que isso começou a ter em si, não é? Partilhou com alguém? Madalena Monforte: Não… (voz trémula), nunca. Nunca partilhei com ninguém foi, sempre para mim sozinha… Nem os filhos que depois começaram a aparecer, nem eles davam por isso, ele fez-me coisas… Meu Deus… enfim, nem é bom pensar (diz a sussurrar). P: Tudo ficava em si, mas tanto tempo e… não viu nenhuma escapatória? Madalena Monforte: Não, porque eu estava dependente também do dinheiro dele! O que eu ganhava eram 800 escudos, mas tinha a casa, a água e a luz, aquilo não eram 800, era muito mais, não? Ora, para mim daria, mas era se ele fosse embora! Ele não ia, não é? Depois quem é que lhe lavava a roupa, passava a ferro, e lhe aturava as bebedeiras… não tinha, e nem tinha casa para onde ir… P: E, portanto, tudo se consumia naqueles hábitos… Madalena Monforte: Tudo… quantas vezes eu dizia assim “dá-me o dinheiro”, ele nunca me dava. Por exemplo, chegar ao fim da semana, ou ao fim do mês, quando recebesse “olha este é para ti, e este fica para mim”, nunca me deu dinheiro, eu tinha sempre de estar a pedir! Sempre, sempre! E quando eu recebia o meu, lá de onde eu estava, do dele eu não via. Eu depois digo assim, “Epá, isto não pode ser! Como é que eu faço?” P: Passaram-se anos? Madalena Monforte: Passaram-se anos, anos e anos… (diz a sussurrar). Ele adoeceu em 1999, a 31 de dezembro, quando ele fazia anos. Até essa atura, desde os 19 até essa altura eu levei… não sei se todos os dias, mas quase todos os dias! E depois, então, por causa da minha mãe começou a vir a casa ver se eu estava em casa, e para onde é que eu ia, o que é que eu fazia… aquele tipo de perseguição, a ver “se posso confiar, não posso” …. eu às vezes dizia-lhe assim para ele “então, eu posso confiar em ti e tu não podes confiar em mim?”, “Não, a tua mãe…” e mais assim e mais isto… Mas o que eu lhe disse foi “olha, está calado, não me atires com a minha mãe, porque a tua também fez o mesmo ao teu pai!”, disse eu, e ele disse assim para mim “como é que tu sabes?”, “porque sei, só que nunca te disse nada, nem nunca te atirei nada à cara. Porque é que tu me fazes isso!?”. Eu não falo com ela, não falo com meu pai, não vou lá a casa… eu tive 20 anos sem falar com os meus pais!... P: Porque também tinha acumulado algumas tristezas, mas depois ele não a deixou… Madalena Monforte: Tinha! Tinha acumulado algumas tristezas da parte da minha mãe, porque eu tinha, por exemplo, 49 anos quando descobri que ela também quis… (faz uma pausa e baixa o tom de voz) Ai meu Deus, o que eu vou dizer, … também quis o meu marido! E eu, então, é que cortei, tive que cortar com eles! Ou eu fazia vida com os meus pais e não lhe ligava… mas também, a minha mãe e o meu pai já não me queriam lá em casa… “Estás casada, agora…”. E, no entanto, eu trabalhei junto com eles, mesmo estando lá em baixo nos meus patrões, eu trabalhei com eles até aos 28 anos… Sempre que eu podia, ia ajudá-los… e a recompensa foi que a minha mãe aos 49 anos bateu-me! (exalta o tom de voz) P: Isso são muitas coisas acumuladas de não se sentir bem tratada, não é? Onde é que foi arranjar força? Madalena Monforte: O meu pai não me dizia nada, mas… não sei … não sei, eu tinha uma alegria muito grande comigo. P: Era uma pessoa com alegria de vida? Madalena Monforte: Era, era uma pessoa que gostava de viver, que gostava de conviver, embora ele não… não me quisesse levar, por exemplo, para lado nenhum! Marcou uma excursão para Espanha só para ele! Foi de excursão a Espanha e eu fiquei em casa! Ao domingo, acabávamos de almoçar, ainda não tinha filhos nessa altura, e ele saía e ia embora… e eu assim, “mas para onde é que tu vais?”, “vou dar uma volta!”, “então se vais dar uma volta, espera aí que eu vou contigo!”, “ah! estou mesmo para aqui à espera de que levantes a mesa para ires comigo, era o que faltava!”, e eu fiquei. No outro domingo a seguir, “para onde é que tu vais outra vez?”, “vou por aí fora, vou dar uma volta!”, “então espera aí que eu vou também”, “então não tens a mesa para levantar!?”, “eu levanto quando chegar a casa!”, e fui! E foi assim que ele se habituou a levar-me com ele ao domingo, quando ele saía para qualquer lado... P: Mas por insistência? Madalena Monforte: Mais por imposição! Deixava a mesa, pronto…os patrões não estavam cá, porque quando eles cá estavam eu também não podia sair. Eles estavam cá tão pouco tempo que eu tinha de fazer lá sábados, domingos e feriados e… visitas e almoços e jantares… cheguei a ter lá 50 pessoas em casa deles. P: Sim, já vamos falar um bocadinho sobre essa sua parte, mas diga, se conseguir…, ele se calhar nunca chegou a gostar de si, ou acha que gostou de si? Ou havia ali um misto? Madalena Monforte: Havia um misto, porque eu tenho a impressão de que ele quando ia bêbado, não estava sozinho a beber, e os colegas, e os amigos dele, tinha muitos. Mas quando adoeceu ficou sem nenhum. Eram amigos, mas era da carteira deles. P: Mas gostava de si? Madalena Monforte: Sim, gostava porque há aqui uma rapariga que andou sempre muito atrás dele, quando ele chegou do Ultramar e, um dia, estávamos a conversar e ela disse “não o deixes, olha que ele adora-te!”. P: Acha que era pelo álcool? Ou porque alguém disse que bater na mulher era algo… Madalena Monforte: Isso não sei, mas sei que os colegas por causa da minha mãe o picavam, percebe? Depois quando ele chegava a casa com os ouvidos cheios e bêbado quem pagava era eu. Eu é que pagava, pois. Por isso é que eu hoje penso, não digo a ninguém, nem nunca disse aos filhos, porque é que a juventude de hoje é um caso que é um disparate e violência doméstica e não aguentam nada! Não aguentam porque elas têm um ordenado que a gente antes não tinha, não é? Embora eu, pronto, lá está, ele nunca deu o dinheiro por saber quanto é que eu ficava ao fim do mês, nem deixava de ter, era sempre: “hoje dá-me 100!”, amanhã era, “ah já gastaste tudo! Não tenho!”. Eu um dia fui à carteira e vi que tinha lá dinheiro! E depois pedi-lhe quando ele ia para ir embora para o trabalho: “tens que me deixar dinheiro”, “ai, eu não tenho”, “tens, tens!”, “foste-me à carteira!?”, “fui ver! E depois estás sempre a dizer que não tens, não tens chegas aqui sentas-te comes, mas não te lembras que é preciso dinheiro para comprar! Eu não sou obrigada a poupar o meu para te dar a ti! Eu casei contigo, mas não sou tua escrava, portanto, ou deixas dinheiro, ou hoje quando chegares ao almoço, não comes!”. Impus-me um bocado e, então, ele depois deixou. Quando eu pedia, deixava, mas quando eu recebia o meu, que o meu patrão tinha cá um procurador que o representava, e eu todos os meses recebia, e recebia em dinheiro! E ele sabia, e então nessa altura não me dava, “gasta do teu!” P: Já não era para partilhar. Madalena Monforte: Não, o meu já não era para partilhar e já podia comer à minha custa! Percebe? Mas eu fui sempre andando… “olha que eu já não tenho dinheiro”, “já gastaste o teu dinheiro todo!?”, “come menos!”, “tu dantes ficavas sempre calada, agora estás sempre a refilar!”, “o mal que eu fiz foi ter ficado sempre calada!” P: Aí já tinha os filhos? Madalena Monforte: Já! Já estavam grandes, já não era preciso coisas para eles, era diferente! Quando chegou a uma certa altura, a rapariga (filha) começou a namorar, qualquer dia também quer casar e depois que é do dinheiro? É que não tenho eu, nem tem ele!” Então o que é que aconteceu!? Comecei a enrolá-lo, a enganá-lo e comecei a guardar uma parte do meu ordenado, pronto, foi assim que eu consegui amealhar para fazer o casamento da minha filha… e mesmo assim, queria que eu lhe fosse comprar a roupa para ele! Eu fui para Lisboa, comprei para mim, comprei para o filho e, pronto, o dele foi os padrinhos, “então, mas não comprastes para mim!? “não te pedi dinheiro, pois não? Fui com o meu dinheiro, agora tu vais comprar o teu!”. Era só o que faltava, agora ainda ter de estar a vestir para ir para o casamento da filha! Oito dias antes ele foi ali ao mercado em São Pedro comprou lá um fato à maneira dele, e pronto… lá se fez o casamento. Mas quem pagou casamento fui eu! P: E os filhos sempre um bocadinho sem perceber que estava a sofrer, não era? Madalena Monforte: Nunca, nunca! P: Isso também é muito impressionante, a sua capacidade de esconder, deixar a ideia de que havia alguma… fez isso por si e por eles… Madalena Monforte: Porque sabe, ele batia-me e eu não me queixava, nem gritava com ele, nem dizia nada…. porque eles estavam a dormir e eles iam acordar! Eu cheguei a ter alturas de ter de galgar da minha cama para fora, para ele não vomitar para cima de mim… porque ele ia bêbado! P: Que sofrimento… Madalena Monforte: E depois deixou… não sei lá como é que o organismo dele se habituou àquelas porcarias todas que ele metia lá para dentro da boca para comer, que deixou de vomitar. Foi muito duro, há muita coisa que ainda não sai daqui …(baixa o tom de voz) Mas eu também sei que prefiro esquecer, porque eu também sei que gostava muito dele! Eu até há pouco tempo vi-me e desejei-me para me esquecer dele. Foi o único homem que eu tive. Nem antes, nem depois … o meu filho, um dia, disse-me assim …eu só estou aqui quase há 10 anos, o resto foi passado lá em baixo, na quinta, e o meu filho estava lá um dia a almoçar, conforme ia todos os dias, ele ficou com o negócio do pai depois…, mas também sabe o que ele me fez, o malandro… deixou-me 30.000 contos de dívidas. Só que tive a sorte que o meu filho seguiu a vida do pai, a vida do trabalho, que está aqui atrás, que é uma carpintaria. E ele agora fez uma nova, no terreno dele… e se não fosse o meu filho, eu não tinha nada disto! O meu filho é que se encarregou de trabalhar e pagar as dívidas do seu pai… quando o pai morreu já tinha as dividas, quando o pai morreu ele esteve a trabalhar sozinho 8 anos, ao fim de 8 anos estavam as dívidas todas pagas! P: Quantos anos esteve casada? Madalena Monforte: Eu já fiz essas contas no papel, agora já não me lembro de cabeça… P: Mas foi em 1999 que faleceu o seu marido? Madalena Monforte: Não, foi em 99 que adoeceu! Com um AVC hemorrágico… veio para casa com paralisias totais! Nem escrevia, nem falava, nem era capaz de comer, nem andava, fazia tudo nas fraldas… oito anos… oito anos! Oito anos que ele esteve doente. Nem falava, nem nada. Em casa depois, ia para a fisioterapia todos os dias, para Sintra, lavavam-no os bombeiros, para recuperar… porque ele teve tudo da parte direita. Que é o mais difícil de recuperar. E, então, mesmo assim lá na fisioterapia conseguiu, mas eu queria também a terapeuta da fala e não havia! E então a terapeuta da fala fui eu! (risos) P: (risos) Não havendo, a gente também a gente aprende, não é!? Mas quase que o voltou a conseguir pô-lo a…? Madalena Monforte: Falou, falou! Passando não sei quantos anos, começou a falar. Consegui pô-lo a falar e a fisioterapia pô-lo a andar, mas com um tripé. Teve de estar sempre emparado, andou muito tempo de cadeira de rodas. Depois eu ia às compras e queria que eu o levasse! E eu disse “não levo, era o que faltava! Agora subia, depois descia a empurrar-te a cadeira de rodas, nem penses!”, “ainda ias embora e me deixavas aqui”, “agora ficas tu! Ficas a tomar conta da casa!” Quantas vezes eu ia lá acima, à aldeia buscar as compras e ele dizia assim: “mas tens que ir às compras todos os dias!?”, “com certeza, então tu não comes à mesma todos os dias!? Tu comes todos os dias, não comes? Então tenho que ir buscar o que é preciso!”. E depois o meu filho fez uma coisa, passou a dar-me um x por mês, e então já eu podia equilibrar mais as coisas. Quando o meu filho casou, já ele estava paraplégico. P: Certo, certo, pronto, então agora vamos falar do último capítulo que é: vamos voltar ao facto de lhe terem dado a oportunidade de governar a casa, é assim que se diz? Era a governanta da casa? Como é que aconteceu? Que família era essa, como é que eles se afeiçoaram a si, o que é que era governar a casa…? Madalena Monforte: Olhe, o estrangeiro… bem, eu não governava a casa! Eles tinham a governanta, ela é que orientava… tinha a governanta e tinha uma cozinheira. Mas aprendi muito com eles, eu conheci a nossa zona toda, desde a Ericeira a Cascais, e tudo mais, foi com eles! Porque eles a seguir ao almoço, ou antes, de manhã, saíam sempre e eu ia com eles, porque eu era a ama do menino. E foi assim que eu fiquei a conhecer o concelho de Sintra. P: Esta casa onde vivia com o seu marido, foi a mesma onde foi ama? Madalena Monforte: Não! P: Ah! É dessa que eu agora gostava de falar. Madalena Monforte: Onde eu estive 43 anos? P: Sim! Porque era isso que lhe dava o seu sustento? Madalena Monforte: Era, era! Eram os 800 escudos que eu ganhava ali, que eu podia, pronto, economizar alguma… ou ouvir ralhar por ter gastado tudo, porque eram 800 escudos, era muito dinheiro naquela altura! Era uma fortuna pode-se quase dizer! Portanto, havia outros caseiros como eu… eu ganhava mais do que os caseiros todos que havia por aí, estavam desejosos de me pôr de lá para fora, que era para irem para lá! Porque essa governava eu, sim senhora! P: Então, e é sobre isso que eu agora quero que me fale, vamos ver a parte desse lado da sua vida. Como é que isso começou…? Madalena Monforte: Olhe, isto começou porque é assim: o meu marido era carpinteiro e foi para lá fazer o madeiramento e essas coisas todas, por conta de um patrão que ele tinha, porque ele quando a gente se casou, não tinha nada disto… e fui e foi o patrão dele, que era o mestre de obras lá do prédio, que lhe disse que o procurador andava à procura de um casal que não tivesse filhos, que quisesse ir para lá tomar conta daquilo. E foi assim que a gente foi para lá. Portanto, eu quando fui para lá, não tinha casa. Fiquei dentro do prédio deles, da moradia deles. Só depois mais tarde, quando a minha filha nasceu, é que eles resolveram fazer uma casa fora da deles, para a gente ficar. Era uma casa comprida, pronto, era uma casa que tinha as condições para a gente estar lá. Depois veio a minha filha, que nasceu lá, nasceu mesmo dentro da propriedade da casa deles. P: Com assistência ou sem assistência? Madalena Monforte: Não, com assistência, tive uma parteira. E pronto, depois com uma bebé, pois é um bebé, eles não queriam barulho, os deles estavam habituados àquelas regras que eles traziam… chegando àquela hora não havia mais barulho nenhum. Iam para a cama às 5h ou 6h da tarde, ou às 7h, normalmente jantavam às 7h e depois às 8h já estavam na cama! Era a regra deles. E às 8h da manhã estava toda a gente sentada à mesa para tomar o pequeno-almoço! E tanto fazia estar pronto, como não estar, estava tudo sentado! P: Mas quem fazia o pequeno-almoço? Madalena Monforte: Era eu! Eu entrava para lá para o prédio às 7h da manhã, limpava a casa de jantar, limpava a sala e às 8 horas tinha de ter o pequeno-almoço na mesa para todos! Que eles eram cinco. P: Portanto, isso fazia tudo parte das suas funções? Madalena Monforte: Tudo! Pronto, eu ganhava aquele dinheiro, mas tinha… P: Ia ao pão, ia ao café, ia buscar as manteigas, aquelas coisas todas, as frutas, …? Madalena Monforte: Às compras iam eles. P: Mas dizia que eles também eram frescos, o que é que isso quer dizer? Madalena Monforte: Eram frescos porque eram muito exigentes! P: É essa parte que eu quero saber, que é para a gente saber o que é que era a vida de quem trabalhava em casa desses senhores… Madalena Monforte: Olhe, a minha patroa quando se levantava, chegava à casa de jantar, fazia assim às carpetes (barulho a levantar o tapete), todos os dias fazia isto! Um dia zanguei-me com ela. “Mas quem é que a patroa pensa que eu sou!? Eu não sou porca!”, “ó Madalena Monforte (nome fictício) …”, “não é Madalena Monforte, então a Madame está-me a levantar as pontas das carpetes para ver se eu ponho o lixo lá para baixo!? Eu não ponho!”. Era para ver se podia confiar, ou não! Chegaram-me a pôr-me relógios dentro da roupa suja, junto com a roupa suja… (Para testá-la?) Para testar! Que eles foram um ano, já não me lembro, saíram para fora daqui, foram a outro lado, ficaram cá as crianças comigo… P: Os três? Madalena Monforte: Os três, e eu quando fui buscar a roupa lá ao quarto para ir pôr a lavar, caiu-me o relógio no chão! Ai, valha-me Deus! Era só o que me faltava! Então agora estão-me a experimentar! Quando ele chegou, eu disse assim “Olhe, doutor não sei se o relógio está bom, se não! Que ele foi para dentro de água, foi de molho! Não precisa deixar as coisas para me testar, que o seu relógio está lá em cima da mesa de cabeceira! Eu não preciso do seu relógio para nada!”. E outras coisas mais… P: E, por exemplo, puniam-na? Madalena Monforte: Não, não! P: Nada disso? Madalena Monforte: Não, se não eu não admitia! Eu cheguei-lhes a bater o pé! Se eu tinha que os respeitar, porque é que eles não me respeitavam, não é? Eu acho que era a mesma coisa… eu era uma criada deles, mas não era nenhuma escrava! … aquilo tinha um jardim muito grande, tinha uma rega automática, o motor avariou, depois foram lá arranjar, mas o motor nunca mais estava bom. Um dia, por volta das 14h, mais ou menos, a senhora acabava de almoçar, ela ia vestir um biquíni, vinha para cá para fora para o lado, não era onde eu estava, era para outra frente e vinha para debaixo de uma palmeira que tem lá, e acho que ainda lá está, para tomar um sol. Eu vejo o motor a arrancar digo assim “ai que a desgraçada vai ficar toda molhada!”. Fui a correr, desliguei o motor. Sai-me ele lá da porta do quarto, que eles tinham uma porta do quarto para a rua, ele vinha maluco! E eu disse “então, mas o que é que eu fiz!?”, “não mexes mais no motor!”, “está bem, eu não mexo, mas a senhora estava a apanhar a água!”, “mas agora não mexe mais!” eh pá… ele falou na língua dele e eu percebi o que era… P: É isso que eu ia perguntar, como é que se entendiam? O patrão conhecia algumas palavras do português? Madalena Monforte: Eles arranhavam o nosso português e depois queriam que eu para eles falasse devagar, que era para eles perceberem, e eles para mim não falavam devagar! Ele dizia “mais devagar, porque se não, eu não percebo nada!”. Mas naquele dia, eu sabia o que é que ele estava a dizer, porque eu ainda aprendi alguma coisa, principalmente com as crianças… (do alemão?) Exato! O alemão que, segundo uma senhora, uma amiga deles, que me disse que se eu quisesse aprender alemão que não era com eles, porque eles têm um dialeto tirolês, pois eram do Tirol e não era bem o alemão verdadeiro. Mas a senhora ensinou-me certas coisas e eu sabia o que é que ele estava a dizer. Eu desalvorei pelo quintal fora e falei mesmo mal! E eles perceberam o que eu disse, mas eu também tinha percebido o que é que ele tinha dito! Eles viram que eu estava zangada, nunca me tinham visto assim, nunca! Mais tarde, depois, estava o dicionário fora do sítio. Eles foram à procura daquilo que ele me tinha chamado! Ela chamou, mandou… “a senhora disse alguma coisa?”, eles puseram a cara abaixo, eu fiz tudo o que tinha a fazer, não houve mais conversa nenhuma! Foi para eles verem, que lá porque eu não falasse a língua deles, não quer dizer que eu não compreendesse! Eu aprendi com os miúdos… eles queriam uma faca eu já sabia o que era, eles queriam uma colher, eu já sabia… porque eles não comiam connosco, eles comiam sozinhos, porque os pais não queriam… Para não verem certas coisas que as crianças fazem! Comiam 1 hora mais cedo, os filhos, e depois eles comiam mais tarde. E eu já sabia o que era um bolo, o que era um biscoito, o que era uma faca, um pato, um copo, essas coisas triviais que a gente usa e, principalmente, com as crianças, ainda mais. E naquele dia nunca mais me falaram como deve ser. Jantaram lá à maneira deles, sozinhos, não me disseram nada. Só foi para despachar os miúdos para irem para a cama. E houve uma zanga, essa é que foi mesmo uma zanga a sério! Que eu tive com ele. Ele tinha recebido um pagamento para ele fazer ir lá um carro despejar as fossas, que naquela altura ainda era os carros que vinham para despejar. Dei-lhe dois dias antes do prazo terminar e o homem não foi pagar! Não pagou aquilo. Eu soube, depois, que ele não pagou porque já não tinha dinheiro do meu patrão porque estava para se ir embora e o meu patrão nem mandou mais dinheiro. Eh pá, ele vem lá de Sintra, foi chamado a Tribunal, teve de ir a Tribunal por causa disso. 750 escudos, vejam lá bem! “Porque a Madalena Monforte está cá, mas não faz nada! Durante o tempo que eu não estou cá, não quer saber nada disto!”, e eu disse “não é assim! Eu entreguei ao doutor José (nome fictício) o recibo para ele ir pagar o despejo das fossas com 2 dias de antecedência. Porque que é que ele não foi, eu não sei!” P: Pois, a sua função foi cumprida…. Madalena Monforte: Exato, eu entreguei-lhe aquilo que me chegou às mãos. “Mas foi a Madalena Monforte!”, “não fui eu!”, “mas foi! A Madalena Monforte não fez as coisas como deve ser e agora eu tive de ir para Tribunal!”, “então vá pedir contas ao doutor José, porque não foi por minha culpa!”, e eu disse para ele assim diretamente mesmo, naquela altura já estava com os cabelos em pé e tudo, disse para ele “olhe, doutor eu mentirosa não sou! Portanto, enquanto eu disser a verdade, a mim o doutor não me manda calar!”, e ele vai mandou-me para a rua… na língua deles, e eu disse “vou-me embora, mas já não volto cá dentro, nem para servir o almoço, nem para nada! Só se forem à minha casa chamarem-me!”, e fui-me embora para minha casa e não fui lá mais. Isto foi ainda no tempo da primeira mulher, que era a mãe dos filhos, que ela morreu. Às tantas aparece lá ela, “Ó Madalena Monforte, vai lá a casa. Está a mesa ainda por levantar.”, que a Alice (nome fictício) que era a cozinheira que lá ia, pois o José dava vencimento a tudo… fazer comer com 3 crianças, e eles os 2, eram 5, com 5 da minha casa eram uns 10! E então meteram uma cozinheira e como a cozinheira era só x horas, já estava a passar da hora dela, ela tinha de ir lá chamar-me! “Está bem, Madame, se tiver que me chamar, eu vou.”. Depois andava eu a levantar a mesa e ela atrás de mim “ó Madalena Monforte”, “diga” “ó Madalena Monforte, isto não foi nada, não foi nada…”, “foi, foi! Para mim foi!”. P: Sentiu-se desrespeitada e acusada injustamente? Madalena Monforte: Senti! E eu disse para a patroa “Não, não! E agora vou-me embora e a Alice lava a loiça e a arruma que eu não volto cá mais!”, e ela disse “ó Madalena Monforte, desculpa o senhor doutor”, “não!”, “ó Madalena Monforte, desculpa-o, ele está com dor de dentes…”, “Vá ao dentista!” P: Mesmo assim já havia confiança para lhe dar essa resposta? Madalena Monforte: Já! Já havia, já! Ao fim ao cabo eles eram liberais no lidar… queriam era a tal coisa! São do tempo da guerra dos alemães! Não sei se me faço entender… E a casa deles tinha… Eles é que eram verdadeiros! A gente era os criados…Não tínhamos razão nenhuma, não é!? Pronto… a casa deles é assim: faz de conta que daqui era a sala de aliera a casa de jantar, e ele estava na sala deitado no sofá, com o seu grande charuto, que era o que fazia, e ele ouviu muito bem o que eu disse que eu até falei mais alto! “Está com dores de dentes vá ao dentista! Eu não tenho a culpa! Mentirosa não sou…”. Pronto, ficou a conversa arrumada por ali… não se falou mais. E depois ainda foi uma boa…. ai eu tenho tantas, meu Deus! P: Mas há umas que ficam mais na memória, não é? Madalena Monforte: Ficam, e depois com o passar dos anos também vai passando… também tenho mais uma coisinha, até tenho duas e há de haver muito mais! Veio uma cozinheira de Lisboa, foi arranjada por uns amigos deles, que eram os Pereira Melo (nome fictício) e veio de Lisboa. Ela era uma cozinheira boa! Daquelas que desmanchavam um frango, não ficavam um osso agarrado ao frango, mas o frango ia para a mesa armado, Tal e qual como se tivesse inteiro! E a carcaça ficou cá, na cozinha…Ela era… meu Deus do Céu! P: Mas cozinhava bem! Madalena Monforte: Cozinhava, cozinhava! Isso então… Jesus! E depois armou o frango inteiro sem tirar um alfinete! P: Tinha o hábito de beber? Madalena Monforte: Ela foi a abrir uma garrafa lá dentro! Levou a garrafa lá para o quarto! (risos) A garrafa deu-lhe um trabalhão para abrir! E quando abriu ficou o vinho todo espalhado pelo quarto (risos)! Eles depois acabaram por a mandar embora e quando foram sair, eles disseram “ó Madalena Monforte, vê lá como é que ela faz as coisas para ir embora, não leve ela alguma coisa nossa!”, “Não, senhora doutora! A mulher não leva nada…”. E foi embora naquele dia. Nesse dia era um frango! Ela desarmou-o todo, armou- outra vez, e a carcaça ficou na cozinha. A patroa vai à cozinha (a primeira patroa) e vê lá a carcaça do frango, que ainda tinha uns bocadinhos agarrados, não é? Uma pessoa também não é assim tão perfeita, que consiga tirar tudo! E ela era assim para mim “ó dona Madalena Monforte…”, “diga, o que é que você quer?”, “leva aquilo para a sua casa, para você? aquilo ainda dá qualquer coisa para si!”, e eu disse para ela “Não levo! Você sabe muito bem o feitio que ela tem, e a patroa daqui a bocado aparece aí à procura da carcaça do frango!”, “Não aparece nada, isto não presta para nada!”. Ai meu Deus do céu! Já eu estava em casa, aparece-me ela à procura do frango! Até à minha cozinha foi! Mas a cozinheira foi lá pôr e meteu dentro do meu forno. Ela não via nada. E eu disse assim, “mas o que é que a Madame quer?”, “a carcaça do frango!” … “o osso do frango!”, assim é que ela disse!, “o osso do frango? Está aí que a cozinheira veio aí pôr, mas para não ficar às moscas, meteu dentro do meu forno!”. Tinha visitas nesse dia… e portugueses! “Mas porquê?”, “porque eu quero isso, porque amanhã dá uma omelete para o doutor!” “Ai é!? então pode levar, tome!”. Ela não levou. Mas eu fui atrás dela, entrei, deixei aquilo lá na cozinha, e fui direito à sala! Ele apanhou uma cachola que nem queira saber… o homem parece que se tivesse um buraco, tinha-se enfiado, com certeza! E digo assim para ela, “olhe Madame, a carcaça do frango, os ossos do frango, já estão lá na cozinha! Porque eu não preciso da sua comida! A Madame não me dá comer, mas eu também não preciso da sua comida para nada! Além disso, são restos… agarrados ao osso! Eu tenho na minha casa mais comida do que a Madame tem no seu frigorífico, portanto, eu não preciso do seu comer para nada!”, e virei-lhe as costas. Imagine isto com visitas portuguesas… P: Claro, mas também se sentiu ofendida, não é? Madalena Monforte: Sim, porque ela foi na coisa que eu é que tinha… P: Por causa de uns restos foi à sua casa, saber da carcaça do frango? Madalena Monforte: Foi! Foi à procura dos ossos do frango, pois… P: Era gente… Madalena Monforte: Riquíssima! Tinham fábricas de têxteis…Eu não precisava daquilo, mas pronto, não outro dia também não ia deixar estragar aqueles bocadinhos que estavam, não é! Ora no outro dia, ela mandou a cozinheira fazer uma omelete daquelas. O meu Patrão não lhe tocou! Não comeu! P: Mas para lhe dar razão a si? Madalena Monforte: E porque ele também não gostava de restos! Não gostava! A vergonha que ela o fez passar. Ele, pelo menos, passou, não é!? Por causa dela, por causa de uma carcaça de um frango, que tinha um bocadinho aqui e um bocadinho ali… P: Havia muitas outras regras que se lembra, ao longo destes 40 anos, que teve? O que é que estipulavam como obrigações? Por exemplo, tinha de andar de uniforme? Madalena Monforte: Não, não! Eu quando tinha visitas, simplesmente punha um avental branco, mais nada. P: Das competências todas que tinha, portanto, o que eu vejo é: os miúdos, cuidava deles, não é? A parte da limpeza? Madalena Monforte: Tudo! E olhe que eram 4 quartos, 5 casas de banho, uma sala e um salão maior do que isto tudo aqui. Eu sentei lá 80 pessoas, só dentro da sala! P: Esses dias são os dias em que a pessoas não esquece, não é? Conseguir ser capaz de arranjar um evento, e tudo às suas costas… Madalena Monforte: O evento foi para mim… (risos) P: Porquê!? (risos) Madalena Monforte: Porque eu criei desde os 11 anos um sobrinho do meu marido. O pai morreu, e o meu marido entendeu que ele… ele tinha era madrasta, e o meu marido entendeu que a madrasta não tinha capacidades para o criar, e foi para a nossa casa. P: Ah, por isso é que há bocadinho disse que eram 5 lá em casa! Porque ficaram com ele, com esse menino… Madalena Monforte: Desde os 11 anos até ele casar! E então, como eles não vinham cá nessa altura, eu fiz o casamento lá! Para não gastar tanto dinheiro, fiz o casamento lá dentro do salão… eu sentei 80 pessoas à mesa, do casamento dele. E eles nunca souberam…Dizia o meu marido assim “estás a arranjá-las, estás! Mas depois vais ver como é que é…”, e eu disse “tu também vais ver como é que é, o sobrinho é teu…”. Tanto que o meu filho está cá… pelo meu marido não queria mais filhos, e eu disse para ele “mas porque é que a gente não há de ter outro filho nosso?”, “porque somos 5!”, “mas o teu sobrinho não é meu filho!”, dizia eu para ele, “eu estou a criá-lo por ti! Porque ele a mim, não me é nada! Eu não o vejo há meses… ele mora lá m cima e não vem à casa da tia…” P: Não tem essa necessidade… Madalena Monforte: Não, não tem. E pronto, e eu meti lá 80 pessoas! Está a ver, um salão enorme! E ainda tem depois a casa de jantar agarrada à sala! Eu na casa de jantar não quis que fosse para lá ninguém, porque eles tinham muitos… Tinham muito prato antigo! Muita antiguidade, muito tudo, tudo antigo! Não tinha uma peça moderna! Até coisas a cair… pronto, era a ideia deles. E eu não quis que fosse para ali ninguém, que ainda me partiam algum prato, depois… Depois é que estava bonito! Pratos de 100 contos e tal! P: Portanto a patroa, ela tinha atividade? Madalena Monforte: Não, não! P: Ela era dona de casa? Madalena Monforte: Mais nada! O trabalho dela era levar os meninos à praia, ir às compras, quer dizer, gostava…. já a segunda mulher dele também. Gostava de fazer as compras, e pronto… P: Mas não ficou assim nenhum… não sinto assim também ficado um laço, nem de amizade, nem nada, pois não? Madalena Monforte: Não, eles não são pessoas de criarem amizades com ninguém. P: Não criaram essa ligação, nunca? Madalena Monforte: Não que eles depois acabaram… eu estou aqui quase há 10 anos, porque eles acabaram por vender a propriedade e foram embora para a Áustria… P: E nem os filhos que ajudou, também a tomar conta, nem nada? Madalena Monforte: Houve uma das filhas que ainda veio por aí 2 vezes, mas à segunda vez, eu já não estava cá e também não me preocupei em procurá-la… eu nunca mais os vi. Nunca mais disseram uma palavra, nunca mais disseram nada… e para receber 10 000 contos, 5000 mais 10 000 de indemnização, foi preciso meter um advogado. Não queriam dar nada… P: Ou seja, queriam despedi-la, mas sem a indemnização, é isso? Madalena Monforte: E eu estive lá há 43 anos, sem um ordenado como deve ser, nunca tive um ordenado de lei, que era o ordenado mínimo, nunca tive subsídio de Natal, nunca tive subsídio de férias… Nunca tive férias! Imagine se eu fosse pôr tudo em cima! E a minha advogada depois disse “Oh Madalena Monforte veja lá se consegue arrancar-lhe qualquer coisa!” e ele dizia assim, “mas eu não sou obrigado a dar nada à Madalena Monforte!” “é, é!”, “não sou, a Madalena Monforte nem sequer tem caixa…”, “Ah, isso é que tenho!”, “Não tem caixa, eu nunca assinei nada!”, “nem foi preciso estava cá o seu procurador nessa altura, ele assinou!”, “então e depois?”, “Depois paguei eu esses termos todos, assinei as folhas, fui lá entregar e nem precisei de si para nada! Mas vá lá acima a Sintra, vá à procura, que eu estou lá como sua empregada. Portanto, quer que eu o meta em Tribunal, o trabalho é o mesmo, eu meto-o e depois, então, em vez dos 10 000 dá-me uns 50 000 ou mais!”. P: Não lhe queriam dar nada? Madalena Monforte: Não, nada. São secos! Muito secos… Até para os próprios filhos, ele foi… P: Sim, uma relação de…, mas apesar de tudo, agora estava a falar, quando começamos a conversar, que apesar de tudo aí tinha o seu poder, não é? Madalena Monforte: Ao princípio eles não me davam poder para nada. Só para comprar as coisas. P: Tinha alguma autoestima, porque era o que sabia fazer, não é? Madalena Monforte: E se eles não tivessem, viam-se aflitos para arranjar outra pessoa, se eu desse certas informações que eles eram… quem é que queria ir para lá? Pelo dinheiro não queriam! P: Mas acha que pelo feitio aquilo não era fácil? Madalena Monforte: Não, ninguém aguentava aquilo. Eles estavam pouco tempo, mas aquilo que eles faziam era suficiente para… P: Muita exigência? Madalena Monforte: É. Aquilo quando eles chegavam tinha de estar tudo, tudo, tudo impecável! Um ano, eu disse-lhe assim “oh senhor doutor, eu vou tirar férias.”, “oh Madalena Monforte, não vai…”, “vou, então!? Nunca tive férias, vou tirar férias!”, “então e depois?”, “depois o quê!? Depois isto fica aqui! Eu não levo nada disto para férias, não levo nada disto comigo!”, “ah, mas a Madalena Monforte fica de férias…” “ai eu fico de férias? Quando?”, “quando eu me vou embora… eu estou cá um mês, vou embora, só venho dali a 2 meses…”, “ah pois é! E eu tenho férias nessa altura!?”, “pois, a Madalena Monforte fica aqui com isto tudo, fica à vontade, fica sozinha, faz o que quer…” e eu disse-lhe para eles “faço o que quero? Não. Eu não faço o que quero. Eu tenho que pôr a sua casa em ordem outra vez, porque vocês o tempo que estão aqui, seja uma semana, sejam duas, seja um mês, vocês deixam tudo sujo, tudo estragado! E eu não faço nada!? Vocês deixam três ou quatro máquinas de roupa para lavar, que eu lavo na minha máquina! Nem sequer máquina têm!”. P: Não tinham máquina? Madalena Monforte: Não! Nada! Era tudo à mão! Depois como nasceu o meu filho, eu encarreguei- me de comprar uma máquina para pôr na minha casa, porque era roupa demais, eu já não aguentava! Naquela altura nem sequer se usava fraldas descartáveis, eram fraldas de pano… Eu disse “eu assim não aguento! Temos de ir comprar uma máquina para lavar roupa, para pôr aqui em casa.”. Depois eu comprei uma máquina de lavar roupa, e eu disse-lhe nesse dia “o senhor doutor vai-se embora, deixa-me duas ou três máquinas de roupa para lavar, que eu lavo na minha máquina! Na minha! O senhor doutor não tem! Nunca comprou nenhuma, pois não!?”, não fosse ele também dizer que a máquina que era dele, “e eu fico de férias!? Realmente… por isso é que o senhor doutor quando chega, quando volta ao fim do mês ou dois, a casa está como o senhor doutor a deixou… as janelas todas sujas… (diz com ironia) P: Não é uma magia! (risos) Madalena Monforte: “Não estão as janelas todas sujas, quando o senhor dr. cá chega, todas sujas das moscas, que o senhor doutor anda aí como um jornal a sujar os vidros todos, a matar as moscas! A casa está toda suja, o chão está todo riscado... e eu fico de férias!?” (com ironia) P: E aí ele compreendeu? Madalena Monforte: Mas não fui de férias à mesma! P: Pois, nunca teve essa realidade? Madalena Monforte: Não, nunca tive férias. E o meu marido também não queria tirar férias! Porque ele não queria fechar a fábrica… “ah! Vou agora fechar a fábrica duas semanas!” … Esta é a melhor de todas! Quando eu fiz 25 anos de estar lá em baixo, o meu Patrão disse-me assim “A Madalena Monforte tem passaporte?”, “eu não senhor doutor, tenho agora passaporte… passaporte para quê!? Eu não vou para lado nenhum…”, “então a Madalena Monforte mais o Manuel (nome fictício) vão tirar o passaporte, que vou levar a Madalena Monforte a Áustria uma semana, mais o Manuel”, disse ele. “Ó senhor doutor, eu vou agora cá para a Áustria…”, “vai, vai, uma semana” … P: Se calhar ainda estavam na juventude, mais no início? Madalena Monforte: Sim, quer dizer, já tinha 25 anos de lá estar! E o patrão disse: “O Manel gosta de caça, eu levo o Manel lá em cima à serra, que cada um tem uma certa fração dentro da serra, têm depois lá uma casa e depois apanham a caça grosa, veados! E eu levo o Manel lá acima à serra e levo a Madalena Monforte e o Manel a Itália, a Verona a ver o meu irmão.”. Já o irmão do patrão é completamente diferente dele! É uma pessoa impecável. Eu disse “está bem, eu vou falar com o Manuel, mas… senhor doutor não sei, tenho a impressão que não”, “então, mas vai a Madalena Monforte!”, “Eu não! Agora vou sozinha!”. Depois o meu marido não quis ir e eu também não fui! (diz com um tom de voz mais alto e a bater com algo na mesa).Passado uns anos, disse ao meu marido “Olha, há uma ou duas coisas que eu estou muito arrependida… Foi de não ter ido à Áustria sem ti! Tu ficavas cá!”. (diz com um tom de voz elevado) E eu ia… porque eu tinha tudo, tudo, de viagens para lá, para cá, estadia, tudo! Tinha tudo pago por eles! Então, não é triste!? P: Apesar de tudo, hoje é uma mulher mais livre, sente-se mais livre, hoje? Madalena Monforte: Sinto, mas há uma coisa que eu não fiz… E hoje tenho pena de não ter feito, estou arrependida, mas agora também já não faço. Foi tirar a carta e comprar um carro! Mas eu quis tirar! O meu marido nunca me deixou…Eu pedi mesmo! Nunca me deixou tirar a carta, nunca, nunca! “Ah, pois, vais, vais tirar a carta! Eu bem vejo, quando passo por elas aí na estrada, o que é que elas andam a fazer quando têm carro e cargas!”, “eu não quero saber das outras, eu só quero é para mim! Se eu vou lá acima ao M. às compras, venho carregada que nem uma burra!”. “Somos 5 pessoas em casa, tu não me levas a lado nenhum! Já tenho pedido para me levares”, tínhamos dois carros e um ficava sempre à porta, uma carrinha e uma camionete, “no dia em que eu quiser ir às compras, deixa-me cá a carrinha! Ensina-me ao menos a conduzir aqui!”, porque naquela altura havia pouca polícia! Ensinava-me e eu vinha até ao M.! Deixava cá fora da aldeia e depois vinha para casa! Mas não, não… depois eu fazia serviços para a fábrica para ele, ia às finanças e aos bancos, que é em Sintra, ia de transportes públicos… e eu disse-lhe “Ó Manel, deixa-me ir tirar a carta! Eu vou tantas vezes a Sintra, vou pelo menos duas vezes por semana, depois venho a correr para apanhar a camioneta e o autocarro para vir ainda fazer o almoço… eh pá, deixa-me tirar a carta!”, “não, já disse que não e não! Não tiras, pronto, quem manda sou eu!” … Um dia saiu a lei do balão. P: Por causa do álcool, não é? Madalena Monforte: Ele gostava de sair sozinho, gostava de ir à noite, às vezes chegava às tantas a casa, quando chegava assim a uma certa hora eu dizia para os meus filhos “vamos jantar que o pai hoje já vem jantado.”, e a gente jantava, mas eu tinha que esconder a comida toda que ficasse em casa! Tudo! Porque ele ia dar a volta e, se viesse com amigos, ele dava a volta e ele rapava tudo, tudo, tudo! E depois, no outro dia, dizia-lhe assim “agora quero o dinheiro.”, “queres dinheiro para quê?”, “para ir comprar aquilo que tu comeste e destes para os teus amigos! Agora não tenho, nem para mim, nem para os filhos!” Depois saiu a lei do balão, e um dia ele vai e diz-me assim “andavas sempre a dizer que gostavas de tirar a carta… agora podias ir tirar”, eu digo assim, “Eh lá, porque é que tu queres que eu tire a carta agora!?”, “ah é que se a gente for para algum lado, se eu beber de mais, depois trazes tu o carro…”, “Ahhh! Não é para me favoreceres a mim! É para tu beberes mais! Não! Muito obrigada, agora não quero! Bebe menos ou então onde estiveres, fica lá a dormir!”, e não tirei. P: Hoje o que seria poder ir às suas comprinhas, não era? Madalena Monforte: Mas é mesmo! Arranjar uma amiga ou duas, que tenho amigas, e a gente ia… tenho mais amigas viúvas… Nem a um domingo, nem nada, eu não saio daqui. P: Compreendo… Madalena Monforte: Também não vou incomodar o meu filho que está ali daquele lado, tem uma menina com 15 anos e outro com 12, para ir com eles para qualquer lado… cada um faz a sua vida, não é!? Se eles me disseram assim “olha a gente vai a tal sítio, queres vir connosco?”, é diferente. As primeiras férias que eu tive foi na companhia deles! E o primeiro fato de banho que eu vesti foi na companhia deles, portanto, que eu cheguei lá foi para Sesimbra, mas veja lá bem o que o meu filho fez… eles foram para o Algarve. Do Algarve, depois, vieram para Sesimbra, porque ela, a minha nora, é cabo na guarda republicana, é escriturária, e arranjam aquelas casas da guarda para irem passar férias. Eles fora primeiro para o Algarve e depois disseram assim “olha a gente vai ao Algarve e depois vamos ter a Peniche e depois eu venho cá buscar-te”. E assim foi, mas eu pensei “Ai meu Deus do céu! então o rapaz agora vem Peniche para aqui, só para eu passar 2 dias!”, que era só o fim de semana…O que é que eu faço? Fui comprar um fato de banho! Fui fazer a depilação (risos), que nunca tinha feito (mais risos)! Já tinha cinquenta e tal anos! E quando cheguei, ela diz assim, “ó dona Madalena Monforte”, “diz Paula” (nome fictício), “então vem preparada para a gente ir lá abaixo comprar um fato de banho?”, e eu digo assim, “não é preciso, eu já comprei!”, “então e foi…?”, “fui à depilação, fui, fui! Está descansada”. Mas sabe que eu arranjei uma…, não sei como é que aquilo se chama, para pôr por cima do fato de banho e gente traça e ata com um laço… P: Por acaso também não sei como se chama, mas pronto, é uma espécie de uma sainha, não é? Madalena Monforte: É uma espécie de uma saia, é! E eu nunca tirei aquilo. Eu não me sinto… tanto que o fato de banho deixou de me servir, nunca mais comprei outro. Não fui habituada a nada! Passei o casamento todo sem nunca ir à praia! Ele não ia, eu também não ia, pronto. Não! Estou mentindo! Fui à praia… P: Se calhar também por causa dos pequenitos, não? Madalena Monforte: Fui à praia, sim senhora, para ir à praia com os meus filhos! E dei-lhes sempre banho, eu ia sem fato de banho, e quando chegou a altura de eu já não ser capaz, porque já era preciso ir mais para dentro e eles queriam ir… E havia regras, e os banheiros que existiam na praia, dantes a gente tinha sempre banheiros, eles já sabiam, não eram só os meus! Eram praticamente todos! Para darem um balho como deve ser, eles agarravam neles, um de cada vez, iam lá para dentro, davam-lhes um bom banho e depois vinham trazê-los à gente! P: Mas isso ainda nos anos 80 e assim? Eles davam banho? Madalena Monforte: Davam sim senhor! Iam levá-los ao colo! A gente nem vestia fato de banho! A gente puxava as saias assim até ao joelho, mas depois dali para cima já não ia. E eles já sabiam pronto, lá iam os miúdos todos! Levavam os miúdos todos! Porque havia muita mulher que não vestia fato de banho, cá. Muitas mesmo, muitas. Só muito mais tarde depois, é que começou a ver outra maneira de viver, de ver as coisas…, pronto as pessoas foram evoluindo, não é? Mas o meu marido não evoluiu nada, esteve sempre na mesma! (levanta o tom de voz) Foram uns tempos muito complicados… levei muita tareia… (tom de voz mais baixo) P: Pois, para quem não tem essa experiência é difícil perceber como é que se consegue suportar essa base diária de agressões, não é? Madalena Monforte: É, é! Mas eu tinha casa, tinha água, tinha luz, tinha dinheiro! … Que eu uma vez ainda o pus na rua! (aumenta o tom de voz) Uma vez ele veio para me bater, não sei já o que é que me deu, estávamos assim mais próximos da porta… eu não sei o que é que se passou comigo… Ele pesava mais de 100 kg! P: Era um homem grande? Madalena Monforte: Não, não era grande, era gordo! Eu agarrei nele em peso e disse-lhe para ele “sou put*, não sou? Sou como a minha mãe, não sou? Não gostas, pois não? Rua! Vai-te embora!” P: Porque esses nomes eram chamados? Chamava-lhe esses nomes? Madalena Monforte: Chamava. (tom de voz muito baixo) P: Pois, imagine, uma pessoa que esteve ali sempre ali a cuidar… Madalena Monforte: Houve uma coisa que a gente tinha combinado… (aumenta o tom de voz) Eu nunca entrei numa taberna, sabe o que é uma taberna? P: Sei, perfeitamente, sim. Madalena Monforte: Lá em baixo na aldeia havia uma. E ele disse-me “Então, tu, agora vais buscar o vinho!”, eu disse “Eu não. Nunca entrei numa taberna. Eu não bebo! Queres vinho, vai buscá-lo!” e então ele levava o vinho. Houve um dia que deixou acabar… Oh meu Deus… que dia! Eu tinha assim uma coisa da loiça das Caldas, acima da mesa, ele agarra naquilo “ai, não me trouxeste o vinho…”, “é o que está combinado, tu é que trazes! Se te esqueceste, eu não tenho culpa!”, ele atira-me com aquilo, só tive tempo para fazer assim, que aquilo passou a porta de entrada e foi bater na parede do prédio dos meus patrões! P: Podia ter… entrado nos olhos… Madalena Monforte: Tinha me desgraçado! E eu disse assim para ele “fizeste bonita, não fizeste? Ai, é? Olha, agora se queres o vinho, vai buscá-la à mesma! E tens de me dar dinheiro para eu comprar outra fruteira, para pôr no sítio onde estava essa! Foi só o que tu ganhaste,mais nada!” E outras vezes não era de agredirem, eram palavras! Ele uma vez deu-me uma tareia tão grande que eu fiquei com os olhos todos negros… ele só deu por isso ao fim de 3 dias! Eu vinha com o almoço para ali, almoçávamos junto com os empregados, que a gente chegou a ter 78, e eu estava a comer e ele estava também, e estava esse sobrinho, e eu estive sempre de cabeça baixa. P: Doía-lhe, com certeza? Madalena Monforte: Não, não doía (voz mais baixa), estava era tudo negro e ele veio e diz-me assim “o que é que tens?”, “nada.”, “o que é que tens?” “nada!” (aumenta o tom de voz), “então, porque é que estás de cabeça para baixo?”, fiz só assim, porque estavam lá os empregados também a almoçar à mesa, ele estava aqui, e eu estava à frente dele. E eu fiz só assim, “por causa disto, já viste? Foste tu!”, “Foste tu!?”, só ao fim de 3 dias é que ele deu por isso. O que fez, foi lá em baixo, em casa, mas depois eu tinha que vir trazer o almoço, cá a cima, porque ele era um egoísta de primeira! Ele tinha 2 carros! P: Ah, era a senhora que tinha de ir trazer o almoço!? Madalena Monforte: Vinha lá de baixo, quase ao pé da praia das Maçãs… até com a minha filha, até com ela eu cheguei a vir com o carrinho, a empurrar o carrinho e com o almoço, e depois almoçávamos aqui. Porque ele não podia ir a casa! E ele tinha 6 pés, 6 pernas! Cada carro tem 4 rodas, com mais 2 pernas dele, eram 6! E eu tinha que ir! Até que depois num inverno, chateei-me com ele e disse” olha, ou levas a comer e fazes lá tu, ou faz como quiseres, agora eu não vou com a menina por aí acima, à chuva, para te levar o comer.” Vem cá almoçares a casa se quiseres, se não quiseres…Vai comer ao restaurante, vai comer onde quiseres, mas agora eu lá acima não vou mais para o almoço”, “pois! Queres é estar aqui de cu sentado em casa!”, “nem é isso! É que é muito longe! E eu tenho a menina! Eu sacrifico me por ti, mas pela menina não! Não faço isso à menina! És um egoísta! Vou agora por aí acima no carrinho, a empurrar o carrinho no terreno com a chuva, e o cabaz… não, não vou! Ou resolves como quiseres, mas eu não vou lá mais!”. Outras vezes trazia e ainda vinha fazer aqui. P: Pois, a dedicação foi total.. Madalena Monforte: Quando ele teve a hemorragia, o AVC cerebral e hemorrágico, disseram-me… eu nem sei como ele resistiu, ele é muito forte! Pois é, mas eu depois é que andei de pantanas a quase… (diz com a voz baixa). E a assistente social lá do hospital, quandochegou a altura dele vir para casa, que não podia estar lá mais, ainda fiz obras lá em baixo na casa, tive que alargar as portas para poder entrar a cadeira de rodas, tive de modificar a casa de banho para a cadeira de rodas entrar dentro do duche, para depois poder agarrar nele e tirá-lo, arranjámos um banco próprio para pôr lá dentro do duche para ele se sentar, e… E os meus patrões não ajudaram em nada! (aumenta o tom de voz) Que as obras foram feitas na casa do meu Patrão! Não foi na minha, não é!? P: Quando ele adoeceu estava lá ainda? Madalena Monforte: Estava, estava. E quando ele morreu também ainda estava lá. A doença prolongou-se ainda durante 8 anos e 2 meses. P: É muito, é muito ano… assim nessas dependências, não é? Madalena Monforte: Ele nas vésperas de Ano Novo, em 1999, ainda estávamos em 99 e foi até 2008. Foi muito tempo e muito sacrifício… quantas vezes eu vinha cá assim às compras, ele ficava… eu para estar sossegada e descansada às compras eu tinha de o deixar deitado. Porque ele não conseguia levantar-se sozinho, nem vestir-se, nem nada, então eu ia e vinha sossegada não é? Mas só quando eu abria a porta às vezes dizia assim “ai Jesus, meu Deus do céu… já tenho sobremesa…”, sabe o que quer dizer? P: Sei perfeitamente. Madalena Monforte: Depois toca a agarrar nele… ai meu Deus! Depois tive lá dentro do hospital um enfermeiro muito bom! E quando eles iam fazer a limpeza, era duas vezes por dia, houve um dia em que a auxiliar dele estava-me a pôr na rua. O quarto era de duas camas, por acaso estavam as duas ocupadas, mas isso fecha-se o cortinado e pronto! E a ajudante dizia assim “a senhora tem de ir para fora.”, eu disse “não vou nada para fora, vou agora para fora! Então ele é meu marido eu estou cá sempre, não saio daqui, só para ir à casa de banho ou comer alguma coisa lá em baixo e agora está a mandar-me para a rua! Vai arranjar o meu marido? Então para arranjar o meu marido manda me para a rua? Não deve estar bem com certeza!”. Foi um enfermeiro pequenino, assim mais ou menos como eu, entrou e disse assim “o que é que se passa?”, “a sua ajudanta está a mandar-me para daqui para fora! Então estou aqui todos os dias! O homem é o meu marido, faz algum mal eu estar a ver arranjá-lo?…”, ele olhou assim para mim e diz assim “Ai a senhora deve estar agora breve para ir para casa e que não aceitam um auxílio da terceira pessoa em casa!”,eu disse “não! Eu disse à senhora da assistência social que ia experimentar!”, porque ele era uma pessoa muito esquisita, ninguém lhe podia mexer. E ele disse assim “ah pois, vocês estão para ir daqui a pouco embora, não é?”, “estamos só estou à espera que acabe algumas obras que eu estou a fazer…”, “pois, mas já está cá há mais 15 dias do que aquilo que devia, não é?”, e eu disse “estamos, eu até já tive aí uma pega que a doutora, não foi brincadeira!”. Porque a gente tem um primo em Viana do Castelo que é médico e cirurgião e diretor das urgências em Viana do Castelo, e então estava sempre a telefonar “ó prima, então? Como é que está? Ele já tem isto, ele já teve aquilo, ele fez assim, elas fizeram-lhe isto, e elas fizeram lhe aquilo…?”, e depois eu apertava com a médica (risos). E eu depois perguntei e fazia certas perguntas à médica, e ela vai diz-me assim “mas como é que a senhora sabe!?”, “olhe, porque sei! Se a senhora doutora está a ver que eu sei, responda-me à informação que eu lhe estou a pedir, que é a sua obrigação! Eu estou na minha hora da senhora me receber, portanto, eu daqui não saio!”. Ela vai porta fora e corredor fora e eu era assim atrás dela “ó doutora espera aí por mim! Não se vá embora! Eu estou dentro da minha hora, a senhora faz favor atenda-me!”, ela voltou para trás e veio então atender-me como deve ser! E tinha de ser, então! P: Pois, ela tinha de dar informação… Madalena Monforte: E o enfermeiro foi arranjar o meu marido, e diz-me assim “então olhe lá, a senhora quer ajudar-me a arranjar o seu marido?”, “eu quero!”, “então vai-te tu embora!”, disse ele para a auxiliar. “Vá ali ao carro tire umas luvas, ponha as luvas, que eu vou lhe ensinar como é que a senhora tem que fazer”, porque ele quando veio não saía da cama, só saía se a gente o vestisse e o tirasse em peso! Olhe que maravilha! “Atire para lá, arranja daqui, vira para cá, empurre o lençol todo para lá, todo! Agora vá lá do outro lado e virem para cá, agora puxe o lençol…”, e vim de lá a saber como é…Como era a maneira de os arranjar! É uma técnica muito boa! P: Que ajuda e facilita o trabalho... Madalena Monforte: Oh! Nem queira saber! Porque ele, depois, começou a ser ainda mais malandro, porque de dia dava-lhe a vontade para fazer xixi e já andava sem fralda, mas em chegar e não chegar à casa de banho…Depois com medo de fazer pelo caminho, começou a apertar, a apertar, era de noite… Ai1 Três vezes que eu cheguei a despir e a vesti-lo! Três vezes por noite! Era roupa até dizer… meu Deus! Eu cheguei a um ponto em que “eu já nem passava a roupa a ferro! Veste o pijama assim como está, quero lá saber!”. Eu não dou vencimento! P: Sim, é difícil, imagino que tenha sido muito duro… Madalena Monforte: E mesmo doente ainda me quis bater! Eu tive um esgotamento. Fui para a minha médica de família e ela depois, como eu lhe contei a minha vida, ela viu que eu estava com uma depressão muito grande, chorei, chorei, chorei nesse dia, ao pé dela. E ela vai e diz-me assim “olhe dona Madalena Monforte, se ele era assim, assim vai continuar a ser, ele não muda! A senhora ponha-se a pau, porque ele vai lhe bater outra vez! E além disso, não lhe faça as vontades todas! Obrigue-o a fazer certas coisas, porque ele pode fazer!”. E foi assim que eu o comecei a obrigar… o meu filho deu por isso, que eu já não estava a tratar do pai como deve ser, ele dizia assim “ó mãe, tu já não tratas o pai como deve ser, tu estás muito arisca para o pai!”, “não estou não, são ordens da médica!”. “São ordens da médica, porque eu estou com uma depressão. Mas eu agora não te conto nada. Para a semana quando a tua irmã vier cá almoçar no domingo, a gente fala… primeiro a gente almoça! Depois deixamo-lo aqui sentado à mesa, nem que seja para ele comer até ficar empanturrado de todo, e vamos para o terraço lá para a frente e eu vou-vos contar o que é que tem sido a minha vida, porque vocês não sabem nada.”. E assim foi. Juntei todos e aí é que eu contei tudo. E eles disseram assim “porque é que nunca nos disseste!” e eu disse “não, para quê? Vocês não tinham nada de sofrer por causa dele, quem estava casada com ele era eu, não eram vocês, ele se tivesse vergonho ou juízo, não me tinha feito o que fez, além de eu gostar dele como gostava! Não tinha nada que estar a fazer o que fazia e vocês darem por isso, vocês não tinham de sofrer por causa dele!”. Depois era uma pena a gente estávamos todos juntos, ou quando a gente recebia visitas, que eu fui sempre ter muita gente em casa, e ele depois havia certas coisas que não podia comer, mas que nessas alturas eu punha na mesa, mas estava sempre a pôr mais afastado, pois davam-lhe um bocadinho, depois era o filho que lhe dava não sei o quê,… mas ele lá ia com a mão esquerda (faz barulhos de quem se está a esforçar e a esticar) e agarrava e tinha que comer! E o filho depois dizia para ele “vai, vai, vai buscar mais, vai que depois está aí a criada para te aturar, não é!? Vai lá buscar mais!”. No entanto, ele gostava de continuar a beber, ele bebia… a gente punha-lhe assim, faz de conta, um bocadinho de vinho no copo, quando a gente tinha visitas! assim um bocadinho. E um dia, ele vai e diz assim para o filho, “ó filho, eu quero mais vinho!”, o filho diz assim “se tivesses sabido render o que estava aí, porque não bebes mais! Já bebeste o suficiente, já sabes que não podes!”, e elevai diz assim para o filho “o vinho é meu e eu não posso beber e tu podes!” … o filho foi- se embora a chorar de casa, e foi um caso sério para conseguir que ele se acalmasse… Ele era “eu quero, posso e mando”! P: E isso não passa, nem muda? Madalena Monforte: Não…