"A construção do papel Servil", por Inês Brasão
Item
Título
"A construção do papel Servil", por Inês Brasão
Data
20 de setembro de 2021
Autor
Inês Brasão (Politécnico de Leiria e IHC / IN2PAST, NOVA FCSH)
Resumo
Na cultura ocidental, uma grande quantidade de narrativas fala de servos, criados e serviçais, desde os dialéticos mestre e criado de Hegel, até à biografia de Proust feita pela sua governanta, Céleste Albaret, É assim que Rafaela Sarti começa o seu ensaio sobre a história de Zita de Lucca”. Transformada em padroeira das serviçais, a historiadora mostra como as lutas pela história de Zita foram sendo palco de transformações até à versão convencionada e estabilizada pela Igreja oficial corresponder a uma representação conveniente do “bem servir”. Através deste seu ensaio, ficamos mais esclarecidos sobre o fenómeno de proliferação das Casas de Santa Zita por toda a Europa, a partir de finais de século XIX, sendo a portuguesa inaugurada em 1933. Mas a sua reflexão abre ainda um outro caminho não menos importante: o de não esquecermos que o patriarcado se constituiu, não em uma, nem em duas, mas três linhas de subordinação no espaço privado: à autoridade do pai (paterfamilias) se devia sujeitar a mulher, as crianças, bem como os seus criados.
A análise do percurso hagiográfico construído em torno de Zita de Lucca mostra como terá assistido a uma corrupção da sua biografia. Na primeira vida de Zita, tinha sido uma serva da família nobre Fatinelli, que nunca dera espaço para ociosidade e que trabalhara “sem censura ou culpa”. Porém, o seu percurso de obediência não era imaculado. Zita tinha uma alma caridosa e benevolente, não hesitando em tirar os bens dos seus amos para proteger os mais desvalidos. O espisódio do “baú dos feijões”, roubado aos amos para oferecer aos pobres, é aquele que sofreu alvo de maiores leituras. Um dos seus hagiógrafos questionava: ““Podemos louvar Zita por ter distribuído a propriedade do seu mestre ao invés da sua?” Ao longo dos tempos, este episódio tendeu a ser evitado, por representar uma versão de Zita menos perfeita, uma vez que tinha incorrido no erro da insubordinação e subtração dos bens dos seus amos. Ora, essa construção feria a docilidade e acatamento cego daquilo que os seus deveres exigiam. A verdade é que, ao logo século XIX, a versão mais dócil de Zita de Lucca é estabilizada e, em simultâneo, assistimos a uma «notável feminização dos servos domésticos.» Proliferam institutos e asilos com o nome de Santa Zita. De acordo com Sarti, tinham estes um duplo propósito: tomar conta do “espírito e riqueza material” das empregadas e “ajudar no controlo e conduta moral das famílias”.
Em Portugal, a Obra de Previdência e Formação de Criadas foi fundada em 1931. Na OPFC, a orientação espiritual das criadas constituía um objetivo importante, mas é justo reconhecer por parte da Obra a criação de mecanismos de reintegração laboral e social. A Obra de Previdência e Formação de Criadas, mais conhecida por Obra de Santa Zita, veio à cena pela mão de um padre. Nos seus estatutos, fica claro o sentido de assistência e formação a todas as trabalhadoras desta classe profissional, em particular: 1º- Raparigas de mau comportamento ou de comportamento duvidoso;2º- Raparigas desconhecidas e não abonadas suficientemente; 3º-Raparigas com doenças contagiosas. (in Cartilha, publicado em Voz das Criadas, nº 36, fevereiro de 1937.
Não deixou de pesar na identificação da missão da Obra de Santa Zita, em Portugal, a representação social das mulheres que chegavam, em particular as que desciam à procura de “serviço”, enquanto seres desprovidos de competência social para agir. As serviçais são representadas como anjos caídos, seres infantis, idealizados a partir de um mito campestre, inocente, tosco. Esse conjunto de representações é bem evidente nas páginas do seu periódico de referência, Voz das Criadas, e irá sustentar toda uma lógica de amparo às mais desvalidas e protegidas mulheres.
A análise do percurso hagiográfico construído em torno de Zita de Lucca mostra como terá assistido a uma corrupção da sua biografia. Na primeira vida de Zita, tinha sido uma serva da família nobre Fatinelli, que nunca dera espaço para ociosidade e que trabalhara “sem censura ou culpa”. Porém, o seu percurso de obediência não era imaculado. Zita tinha uma alma caridosa e benevolente, não hesitando em tirar os bens dos seus amos para proteger os mais desvalidos. O espisódio do “baú dos feijões”, roubado aos amos para oferecer aos pobres, é aquele que sofreu alvo de maiores leituras. Um dos seus hagiógrafos questionava: ““Podemos louvar Zita por ter distribuído a propriedade do seu mestre ao invés da sua?” Ao longo dos tempos, este episódio tendeu a ser evitado, por representar uma versão de Zita menos perfeita, uma vez que tinha incorrido no erro da insubordinação e subtração dos bens dos seus amos. Ora, essa construção feria a docilidade e acatamento cego daquilo que os seus deveres exigiam. A verdade é que, ao logo século XIX, a versão mais dócil de Zita de Lucca é estabilizada e, em simultâneo, assistimos a uma «notável feminização dos servos domésticos.» Proliferam institutos e asilos com o nome de Santa Zita. De acordo com Sarti, tinham estes um duplo propósito: tomar conta do “espírito e riqueza material” das empregadas e “ajudar no controlo e conduta moral das famílias”.
Em Portugal, a Obra de Previdência e Formação de Criadas foi fundada em 1931. Na OPFC, a orientação espiritual das criadas constituía um objetivo importante, mas é justo reconhecer por parte da Obra a criação de mecanismos de reintegração laboral e social. A Obra de Previdência e Formação de Criadas, mais conhecida por Obra de Santa Zita, veio à cena pela mão de um padre. Nos seus estatutos, fica claro o sentido de assistência e formação a todas as trabalhadoras desta classe profissional, em particular: 1º- Raparigas de mau comportamento ou de comportamento duvidoso;2º- Raparigas desconhecidas e não abonadas suficientemente; 3º-Raparigas com doenças contagiosas. (in Cartilha, publicado em Voz das Criadas, nº 36, fevereiro de 1937.
Não deixou de pesar na identificação da missão da Obra de Santa Zita, em Portugal, a representação social das mulheres que chegavam, em particular as que desciam à procura de “serviço”, enquanto seres desprovidos de competência social para agir. As serviçais são representadas como anjos caídos, seres infantis, idealizados a partir de um mito campestre, inocente, tosco. Esse conjunto de representações é bem evidente nas páginas do seu periódico de referência, Voz das Criadas, e irá sustentar toda uma lógica de amparo às mais desvalidas e protegidas mulheres.
Links associados
O artigo de Rafaella Sarti está disponível neste link, de acesso público:
Referências bibliográficas
SARTRI, Raffaela, “Telling Zita’s Tale”, in Regina Schulte e Pothiti Hantzaroula (org.), Narratives of the Servant, EUI Working Papers, Department of History and Civilization, HEC No. 2001/ 1. (March), 2007.