"Mulheres para todo o serviço: as empregadas domésticas como sujeitos políticos no cinema documentário português", por Giulia Strippoli

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Título

"Mulheres para todo o serviço: as empregadas domésticas como sujeitos políticos no cinema documentário português", por Giulia Strippoli

Data

27 de setembro de 2021

Autor

Giulia Strippoli (IHC / IN2PAST, NOVA FCSH)

Resumo

«Já viste o que é trabalhar sem horário de trabalho?» Esta é só uma das inúmeras frases que exemplificam o paradoxo e a miséria de ser empregada doméstica.

Surge num dos diálogos do filme de Margarida Gil, Para Todo o Serviço, emitido em fevereiro de 1976, disponível online no site da RTP (Para Todo o Serviço – RTP Arquivos). Foi um dos primeiros documentários dirigidos pela cineasta portuguesa, que já tinha feito em 1975 Clínica Popular Comunal de Cova da Piedade, uma ocupação dirigida ao planeamento familiar e aos problemas das mulheres. Sobre aqueles tempos pós 25 de abril e os seus primeiros documentários, Margarida Gil lembrou a enorme liberdade que sentia na realização, algo que durou muito pouco tempo, mas que caraterizou essas obras: «Eram documentários completamente naïves, à margem do que se fazia. Não eram nada convencionais, eram muito improvisados, de certo modo. Com alguma frescura, provavelmente com uma intenção muito mais de cinema do que eu admitia»[1]. De facto, Para Todo o Serviço não é nada convencional, e - numa forma artística inédita - constrói em pouco mais de meia hora uma história multidimensional que abrange vários aspetos da vida das empregadas domésticas em Lisboa, como a migração do campo para a cidade, as horas e as tarefas em casa alheia, as relações de poder com os patrões, a perceção da opressão, a consciência da injustiça social e a organização coletiva para sair da condição servil: «Nós também somos trabalhadoras e temos sido tratadas como escravas» - pronuncia Maria da Conceição Ramos, protagonista do filme, ao falar da necessidade de acabar com a condição servil e de reconverter a profissão. Que foi o objetivo do primeiro sindicato de criadas de servir, organizadas para terem um horário de trabalho, um aumento do ordenado, as regalias que os trabalhadores tinham. As sequências do filme expressam bem o paradoxo da condição das mulheres empregadas em casas alheias: o trabalho era muito e pesado, o horário indefinido, os direitos inexistentes, e as consequências dramáticas, como a impossibilidade de alugar uma casa.

E eis a miséria e o paradoxo juntos: ao trabalhar – ganhando pouco - o primeiro passo a dar era ganharem o reconhecimento como trabalhadoras. E o de serem pessoas que, por exemplo, tinham um nome próprio e um apelido. Algo que – como relata Maria da Conceição Ramos num dos primeiros diálogos do documentário - os patrões podiam querer saber não porque queriam saber, mas para encontrar outro nome, mais fácil de lembrar e de chamar para o serviço. Os diálogos entre mulheres em serviço doméstico são um dos dispositivos narrativos escolhidos para contar esta história: duas mulheres falam entre elas da vida nas respetivas aldeias e das famílias deixadas para ir a Lisboa, trabalham juntas em casa, analisam as condições de vida das empregadas domésticas, falam da opressão que sentem, da necessidade de mudar a conceção do trabalho. Em outras sequências, Maria de Conceição Ramos entrevista as mulheres no Parque Eduardo VII sobre a atividade como empregadas domésticas, lê e distribui o documento reivindicativo do sindicato das empregadas domésticas, passa momentos de lazer junto com outros jovens no parque, e conversa com uma mulher mais velha, que conta a sua experiência de trabalho em casa de Salazar. O filme transmite bem a condição das mulheres oprimidas, mas também conscientes e organizadas: são empregadas que falam entre elas, refletem sobre as distintas implicações das condições laborais, como a migração, a solidão, a relação com os patrões, os horários, os ordenados e as formas de organização e luta comuns porque, como conclui o manifesto do sindicato «As empregadas domésticas unidas jamais serão vencidas!». O documentário reflete o espírito do tempo do pós 25 de abril, revelando visíveis sujeitos sem nome nem direitos, e apela à organização coletiva em luta contra a opressão. Mas a forma expressiva é original e recorre a dispositivos pouco óbvios como a construção dos diálogos entre as empregadas em casa dos patrões, a escrita da carta aos pais na aldeia, as lembranças da vida no campo através das fotografias, os passeios no parque e os encontros, as entrevistas, o discurso político que surge enquanto limpam juntas a casa dos patrões. Numa cena no parque, Maria da Conceição e a colega posam para um fotógrafo ambulante e esperam com curiosidade a revelação do negativo. Estão cercadas de pessoas. Uma das possíveis leituras desta sequência é a visibilidade das duas mulheres: os sujeitos emergem pouco a pouco onde antes não havia nada e a fotografia fixa a marca delas no espaço.

Maria da Conceição Ramos já tinha participado num outro documentário sobre o mesmo sindicato, acabado pouco antes de Para Todo o Serviço, que tem o título de Servir em Casa Alheia, saído em dezembro 1975, também disponível online no site da RTP (Servir em Casa Alheia – Parte I – RTP Arquivos; Servir em Casa Alheia – Parte II – RTP Arquivos). Este documentário está dividido em duas partes e é da autoria da Cinequipa (Cooperativa de Cinema Experimental), com realização de Maria Antónia Palla e Antónia de Sousa. Mais clássico na forma narrativa, conta a história do apoio às empregadas domésticas através do Sindicato de Serviços Domésticos e da Cooperativa Operária de Serviços Domésticos, uma organização que começou por se formar em finais de 1974 e que, na altura da realização do documentário, reunia cerca de 5.000 pessoas, contando com sedes em várias partes do país. Este filme é mais informativo na comparação com Para Todo o Serviço e fornece alguns números, como as 100.000 empregadas domésticas em Portugal, trabalhadoras na cidade, mas vindas do campo. As entrevistas atestam o trabalho de organização sindical e as dificuldades sentidas, como a recusa de denunciar publicamente os patrões.

Em formas distintas, os dois filmes colocam duas questões fundamentais: a condição servil das mulheres empregadas domésticas e a organização político-sindical coletiva. Em particular, o trabalho servil é analisado como sendo uma condição de opressão ligada em particular ao género feminino, à pobreza, à necessidade da migração, e como uma condição que leva consigo a despersonalização, a transformação do trabalho em algo cujas fronteiras indefinidas o tornam menos digno, a consideração das trabalhadoras como escravas dos patrões e a necessidade da luta.

O debate sobre o trabalho doméstico surgido nos anos setenta trouxe consigo a necessidade de rotura epistemológica e de reconceptualização das definições tradicionais de trabalho e exploração[2]. É precisamente disso que fala Maria da Conceição Ramos, apontando para a necessidade de reconsiderar o trabalho no seu conjunto e de considerar as pessoas como pessoas.

Nesta perspetiva, os dois documentários são uma fonte histórica sobre a representação da condição do emprego doméstico no Portugal urbanizado e da organização das trabalhadoras no pós 25 de abril, mas oferecem também uma oportunidade de análise das relações entre trabalho assalariado, género, relações de poder, numa perspetiva que vai para além das fronteiras nacionais. E questionam o olhar historiográfico e político sobre a ação política dos sujeitos subalternizados.
[1] Conversa com Margarida Gil, em Castro,Ilda, Teresa (Org. & interviews). Cineastas Portuguesas 1874-1956 conversas com Noémia Delgado, Teresa Olga, Margarida Cordeiro, Monique Rutler, Paola Porru, Solveig Nordlund, Renée Gagnon, Manuela Serra, Margarida Gil, Rosa Coutinho Cabral, Cristina Hauser, Rita Azevedo Gomes. Câmara Municipal de Lisboa – Cultura, Lisboa, 2001.
[2] Sobre as contribuições ao Domestic Labor Debate sugerimos a leitura de Charles, A. & Galerand, E. (2017), Du travail ménager au service domestique, de l’emploi féminin au travail militant : critiques féministes en évolution. Recherches féministes, 30(2), 1–16. https://doi.org/10.7202/1043919ar. Para aprofundar o tema, sugerimos também a leitura dos trabalhos de Jules Falquet, como De gré ou de force. Les femmes dans la mondialisation, Paris, La Dispute, 2008 e o mais recente Imbrication. Femmes, race et classe dans les mouvements sociaux, Paris, Le Croquant, 2020. Muitas das obras de Jules Falquet estão traduzidas em português e espanhol. Ver: https://julesfalquet.com/

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