Recensão de Nuno Dias: A. Celeste Vieira (2019) Mulheres em Luta. A educação e a dinâmica de auto-organização das empregadas domésticas portuguesas do sindicato do serviço doméstico (1960 – 1986). Porto: Edições Afrontamento, 340 pp.

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Título

Recensão de Nuno Dias: A. Celeste Vieira (2019) Mulheres em Luta. A educação e a dinâmica de auto-organização das empregadas domésticas portuguesas do sindicato do serviço doméstico (1960 – 1986). Porto: Edições Afrontamento, 340 pp.

Data

22 de novembro de 2021

Autor

Nuno Dias (DINÂMIA’CET_iscte)

Resumo

Nas duas últimas décadas, a investigação sobre o universo do trabalho doméstico remunerado tem aumentado e permitido identificar diferentes dimensões do fenómeno em paralelo com um entendimento amplo das suas dinâmicas ao longo da história. Um dos consensos relativos à expressão do fenómeno em Portugal parece ser a escassez de movimentos representativos formados no interior da classe, que é acompanhada por uma presença esporádica no espaço mediático. Esta repetida ‘invisibilidade’ social e política do trabalho doméstico tem, no entanto, tempos e geografias que testemunham uma outra história. Vários trabalhos, que representam uma pequena fração do Estado da Arte dos Estudos sobre o Trabalho Doméstico, mostram a força transformadora dos movimentos de trabalhadoras domésticas na mudança das condições de trabalho a que se encontram sujeitas, em particular sobre a ausência de reconhecimento formal da condição das trabalhadoras domésticas como trabalhadoras elegíveis no âmbito dos códigos gerais do trabalho. México, Chile, Estados Unidos, Inglaterra, Brasil, Filipinas, etc. são exemplos de países em que a organização das trabalhadoras domésticas criou dinâmicas de discussão e de influência da ação governativa globalmente conhecidas. Em boa parte destes contextos encontramos mulheres migrantes, internacionais e nacionais, desenraizadas e encalacradas em diferentes categorias e níveis de opressão/alienação. Portugal não é exceção e encontramos nos movimentos migratórios nacionais e internacionais o principal fluxo de engrossamento desta categoria, em particular desde a segunda metade do séc. XX até aos dias de hoje com capítulos, protagonistas e nuances diversas.

Mulheres em Luta, de Celeste Vieira, é apresentado como resultado de uma investigação de doutoramento sobre a jornada histórica de um conjunto de momentos e de mulheres que conduziram as empregadas domésticas em Portugal à sua organização em sindicato. Ter acontecido em meados da década de 70 e ter consolidado e ampliado a sua ação e modelos de organização e empoderamento das empregadas domésticas após o momento revolucionário de Abril de 74 não foi uma casualidade. A história que a autora nos conta entretece várias dimensões de uma luta que se estende ao longo de quase todo o séc. XX. Estas dimensões identificadas pela autora representam os pontos de apoio que convergem no momento histórico dos finais da década de 60 e início da década de 70 no movimento sindical começado por um grupo inicial de poucas mulheres, mas que rapidamente se ampliou em número e área.

O livro encontra-se divido em três partes: uma primeira de enquadramento teórico-metodológico, na qual a autora identifica o que entende serem os movimentos constitutivos da identidade de classe das mulheres trabalhadoras domésticas e das suas lutas; uma segunda parte sobre os diferentes momentos centrais para a discussão da categoria formal referente à condição servil, desde o Código Civil de 1867 até ao reconhecimento oficial do Sindicato do Serviço Doméstico (SSD), já no ocaso da lei da unicidade sindical; e uma terceira parte centrada nas ações, iniciativas e orgânica do SSD, em particular na sua função de espaço formativo permanente de alfabetização e de reflexão sobre a condição das trabalhadoras domésticas no contexto do regime democrático.

A primeira parte do livro identifica as bases e origens teórico-práticas da vontade de organização a partir de um conjunto de contribuições provenientes de campos distintos. Em primeiro lugar é referido o papel que a doutrina social da igreja, em particular após o Concílio Vaticano II, tem no desenvolvimento da ideia de “dignificação dos trabalhadores e não do sistema que os explora” (p.31), entre o operariado católico, apesar do bloqueio aos seus princípios gerais por via da Concordata. Em segundo lugar, a força do movimento sindical durante a Primeira República, o ressurgimento nos anos 60 da luta laboral organizada e o impacto das ações grevistas na erosão da força totalitária do regime, são igualmente identificados como pontos importantes na história da organização das mulheres trabalhadoras domésticas. Em terceiro, o desenvolvimento das cooperativas como “escola social” que cria a ponte entre o indivíduo e o sistema enquanto veículo da ideia de “bem comum” e como recurso estratégico de correntes de oposição ao Estado Novo face ao bloqueio da associação livre (p. 51). Em quarto lugar a importância da teoria e prática feministas como instrumentos de combate ao cerco de género que dividia espaço público e privado. E, por último, a peça central da educação no empoderamento e na produção de uma identidade de classe por via de modelos formais, informais e não formais de transmissão de ideias, saberes e práticas de organização.

Estes cinco pilares de influência convergem historicamente, nas décadas de 60 e de 70, na formação do SSD, primeiro enquanto comissão pró-sindicato e depois como sindicato.

O recurso à história oral e à analise documental variada, em particular a informação preciosa dos cadernos de notas de Conceição Ramos e Helena Freitas (que cobrem o período entre 1962 e 1980) que mobilizaram e dinamizaram grupos de empregadas domésticas durante e após a ditadura, e os livros de atas do SSD e da Cooperativa de Serviço Doméstico (Cooperserdo), permitem à autora apresentar a história longa da luta dos diferentes avatares da condição servil pelo seu reconhecimento formal liberto da letra arcaica do Código Civil de 1867. Este percurso, até ao momento em que a dinâmica de auto-organização se assume como núcleo político da luta das empregadas domésticas, é resultado de um perene esquecimento da profissão nas mudanças ocorridas na estrutura organizacional do trabalho desde a industrialização e além da revolução, e pela manutenção dos formatos pré-modernos de patriarcado e relações laborais baseadas exclusivamente no contrato oral de trabalho. A tese de Celeste Vieira é, nesse sentido, uma reflexão sobre as resistências à subalternidade intersecional de mulheres, migrantes rurais na sua maioria, desenraizadas nas grandes cidades e, em muitos casos, sem educação formal, menores e a receberem apenas alimentação e teto.

Um aspeto fundamental destas resistências, na análise de Celeste Vieira, é o seu lugar nas lutas feministas durante o séc. XX. No campo da condição servil, a tutela patriarcal, do ideal de feminilidade servil materializada na moral cristã da Obra de Previdência e Formação de Criadas. Criada em 1934 e conhecida como Obra de Sta. Zita, assumia os objetivos da formação religiosa e preparação das raparigas para o ofício da servidão. O mote das “Mãos no trabalho e coração em Deus” e da obediência como razão de vida são complementados pela reprovação do lazer e do uso livre do tempo (p.120). Não obstante a orientação caritativa da Obra de Sta. Zita, e uma ideia da religião como o centro “da mentalidade da rapariga para ser somente dona de casa” como refere Conceição Matos, ideóloga orgânica do movimento das empregadas (p.157), de acordo com a autora, será no interior de alguns grupos paroquiais dos Movimentos Operários da Ação Católica, e mais tarde no movimento BASE-Frente Unitária de Trabalhadores, que surge o grupo que, autonomizado, cria em 1973 uma comissão pró-sindicato e mais tarde o SSD. Para este efeito e para a organização do caderno reivindicativo do horário de trabalho, da folga e outros direitos foi importante a participação no encontro europeu de 1972 e o contacto com outros movimentos de mulheres empregadas domésticas e sindicatos.

O 25 de abril de 1974 encontra as empregadas domésticas em reuniões avançadas sobre a formação do sindicato e dos seus estatutos e objetivos colocando-se em movimento a comissão pró-sindicato necessária à formalização da organização sindical. O que vem a acontecer, apesar do antagonismo social da pretensão concorrente da Obra de Sta. Zita em apresentar uma versão própria de organização sindical que cria uma clara divisão ideológica entre os dois movimentos que aspiram à representação da classe.

Durante esse processo, as empregadas domésticas no interior do SSD criam um programa de alfabetização como grau zero para a emancipação da mulher no contexto revolucionário e lançam as bases para a descentralização regional do sindicato e dos programas criados no interior deste. O Boletim do SSD tornou-se um meio fundamental de circulação da informação sobre as ações e atividades do sindicato, a denúncia, a divulgação de direitos, a partilha de experiências, as campanhas de alfabetização e também da persistência da fronteira social e política que teima em reconhecer o valor da profissão.

Além do trabalho imprescindível de organização e problematização das inúmeras fontes documentais dispersas sobre a condição das mulheres empregadas domésticas na história do séc. XX, Mulheres em Luta recupera para a contemporaneidade não apenas uma história, apagada das celebrações maiores da luta operária, de um sindicato de mulheres organizado exclusivamente por mulheres empregadas domésticas, mas, sobretudo, um manual. Um itinerário de superação do isolamento, do desamparo e da exploração por via da camaradagem e da partilha como plataforma de reconversão do valor social da profissão e da identidade de classe – encontrada na luta pela educação, pelos direitos iguais, pelas creches e infantários, pelas lavandarias, pelas cantinas com refeições a preços económicos e, sobretudo, pelo controlo do tempo.

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