Mulheres móveis

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Título | Title

Mulheres móveis

Autor | Author

Inês Brasão (Politécnico de Leiria, IHC-NOVA FCSH)

Data | Date

8 de novembro de 2021

Local da gravação | Place of the recording

“Mulheres Móveis” é uma importante pesquisa conduzida pelos diretores artísticos Ângela Marques e Fernando Moreira, da Companhia Astro Fingido, que deu origem a uma peça levada à cena em 2017, mas também a um belíssimo livro “Mulheres Móveis”, lançado no Dia Mundial de Teatro, no ano 2021.

Quando perguntaram a uma antiga carreteira o que se lembrava dos tempos em que carregava móveis às costas, ainda menina, ela respondeu: “Eu sentia-me de uma maneira de escrava”. Achamos que os homens tudo carregaram porque a força dos seus braços foi a anatomia (tornada construção social) que os fez levar o mundo às costas, dos troncos às pedras. Em Lordelo, a história dos carregos tem outra anatomia. Para filhas e mulheres de marceneiros, foi justamente o seu corpo o transporte, envolvendo as mobílias em cordas bem presas, e levada às pernas, braços e cabeça. “Mulheres Móveis” foram mulheres carreteiras de móveis, pelos ermos e frios da lua nova, de Lordelo ao Porto, ou a Espinho, ou a Guimarães, como animais de carga com suor humano, assim levando tudo às costas para fazer a venda e entrega de mobílias: de cadeiras, a cómodas, de louceiros a guarda-vestidos. Palmira, uma das mulheres que testemunhou para deslindar esta história de servidão, chegou a carregar mais de 40kg às costas, de Lordelo a Guimarães. Com efeito, pode-se contar a história do desenvolvimento da indústria do imobiliário naquela zona particular do norte do país a partir das mulheres-carregos, tendo elas ajudado a florescer a economia local, hoje tornada símbolo. E este aspeto é, de algum modo, tão relevante quanto o primeiro. Porque se este exemplo da história das mulheres de Lordelo destitui por terra a banalização do duo força-fraqueza ligada ao duo homem-mulher, destrói igualmente o de que as mulheres estariam definitivamente arreigadas, no passado, ao trabalho informal, e os homens ao formal. Da mesma forma como no caso das servidoras domésticas, o trabalho de carregadoras de móveis surgiu para estas mulheres como uma consequência natural da divisão familiar do trabalho e, enquanto os homens executavam, nos seus ofícios, as peças de mobiliário, era-lhes deixada a tarefa de carrego, naturalmente a parte do trabalho menos reconhecida. E, da mesma forma, era enquanto o seu corpo ainda estava a formar-se, um corpo porventura débil de forças e capacidade de gerir o esforço, que o serviço era iniciado, sendo um dado que as memórias das carreteiras as transportam até à infância. Ao mesmo tempo, é interessante notar o quanto recordam ainda aspetos de solidariedade e partilha naquilo que era uma propriedade de se ser mulher, entre outras, que tinham de recorrer a alguma entreajuda, mas também às pausas no trabalho, para fortalecer os laços, enquanto a noite e o perigo dos caminhos as deixavam desprotegidas. Seria muito relevante que estes trabalhos ligados à subalternidade continuassem a ser desenvolvidos. Por ora, um enorme reconhecimento pelo trabalho desenvolvido pela companhia Astro Fingido, que recorreu à etnografia e aos testemunhos “das que não têm voz” para realizar os seu trabalho artístico.



Deixamos aqui alguns breves trechos dos testemunhos publicados no livro:

“Mulheres Móveis, a Torre dos Alcoforados e o Português Voador”, (coordenação Ângela Marques e Fernando Moreira), editora O Paredense, 2021.



Dona Arminda, 67 anos

“E depois começaram a fazer os móveis e não havia as máquinas suficientes para trabalhar, naquele tempo. Então eles cortavam e eu, à cabeça, levava para outra fábrica, onde tinham as máquinas todas.” P. 55

“O meu pai era guarda-fatos e guarda-pratas, louceiros, como se chamava. Então, a minha irnã levava o pegão de baixo e eu levava o pegão do louceiro, de cima, sempre o mais leve porque eu era 8 anos mais nova do que elas, Prontos, depois, o meu marido, já eram cómodas e também já pesavam bem, e eu pegava nelas lá de cima e ia levá-las acolá a Vila-Boa, que é Arreigada. Ainda eram uns quilómetros.” P. 57



Dona Rosa, 77 anos

“A gente ganhava 5 tostões, 10 tostões, 25 tostões. Eu tive a minha filha, a mais nova, que é agora já com 49 anos, que vai fazer, e andei a carregar. Tive-a no domingo e no sábado andei a carregar à cabeça (…) Aquelas peças grandes: peças de sala, cómodas, cadeiras, pechichés. Tudo! A gente levava tudo. Tudo quanto havia, a gente levava. (…) E fiz o enxoval para a minha filha, tudo com o dinheiro dos carregos que eu ganhava.”p.61



Dona Palmira, 84 anos

“E então a minha vida é esta. É assim, dos princípios dos 14 anos. Dos 14 anos comecei, prontos, a minha vida foi complicada. Desde os 14 anos, não tinha pai, fazíamos uma terra, mas depois deixamos de fazer. Fiquei eu mais a minha mãe, os meus irmão casaram, e o que é que eu fiz? Fomos fazer, então, os carregos de guarda-vestidos, de calitre. Sabe que naquele tempo, não era no meu tempo, mas ainda apanhou um bocado, essa mobílias de calitre, pesadas.”p. 75, 76

“A primeira vez que eu fui, foi a Guimarães. Espetaram-me, com 14 anos, ainda era uma criança, porque agora com 14 anos, 10 anos, já elas são umas mulheres porque comem bem, , têm outra vida que a gente não tinha, então, o que é que se fazia, com 14 anos eu nunca tinha ido a Guimarães, então eu e a minha irmã tínhamos que levar um roupeiro, um guarda-vestidos, a Guimarães. Mas tínhamos que sair às 2h da madrugada. Quem diz 2, 3 horas, assim cedo que era para nós irmos pousando os carregos até lá.”p.76

“Uma vida que a gente teve complicada. Depois é assim, andávamos aos dias, ganhávamos 25 tostões. Quando não tínhamos carregos, nãe é? Andávamos pelos lavradores.”p.79

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