"As criadas numa vila alentejana", por Maria Antónia Pires de Almeida
Item
Título | Title
"As criadas numa vila alentejana", por Maria Antónia Pires de Almeida
Autor | Author
Maria Antónia Pires de Almeida, CIES, ISCTE-IUL (Investigadora do CIES e Professora convidada do Departamento de História do ISCTE-IUL)
Local da gravação | Place of the recording
O livro Memórias Alentejanas do Século XX (Cascais, Princípia, 2010) reúne uma série de entrevistas realizadas com o objetivo de estudar o processo da Reforma Agrária que se iniciou no Sul de Portugal no final de 1974 e se prolongou, nalguns casos, por duas décadas. Depois dos factos apurados, o que fica é a memória de toda uma população afetada por uma experiência marcante e controversa. Salienta-se o contributo da História Oral para uma abordagem da história da mulher em meio rural, na qual se revelam histórias de vida de grande interesse humano, os percursos de pobreza e sofrimento, mas também de alegrias, que passam pelo serviço doméstico e o trabalho agrícola, as desigualdades no mercado de trabalho e a consciência das questões de género e de classe associadas às vivências próprias de meio rural marcado pelo latifúndio e pelo trabalho precário e sazonal. Apresenta-se a memória oral de uma geração em vias de desaparecimento que viveu o regime do Estado Novo em meio rural e participou ativamente na transição para a democracia. As entrevistas foram realizadas a membros das várias classes sociais e o critério de seleção obedeceu a uma amostragem do ecletismo da população local.
O resultado foi esclarecedor quanto à diversidade de experiências e percursos e permite verificar que a vivência feminina das trabalhadoras rurais era marcada por uma infância em casas alheias, a prestar serviços em troca de comida, que não tinham na sua própria casa, seguida de uma adolescência animada pelos trabalhos rurais e pelo convívio que estes proporcionavam. Depois vinha invariavelmente o sofrimento, sobretudo após o casamento e a chegada dos filhos. E ainda a subtileza do discurso sobre o aborto e a contraceção, tema importante nesta região do país. Por outro lado, entre as proprietárias e outras mulheres de condição social mais privilegiada, o acesso à educação estava limitado pela sociedade patriarcal onde estavam inseridas, numa total dependência de pais e maridos. Na segunda metade do século XX verifica-se alguma evolução no sentido do interesse na alfabetização das mulheres e maior autonomia, um fenómeno transversal a todas as classes sociais.
Trechos do livro:
O trabalho doméstico antes dos seis anos: “Eu era para fazer a lida dos mandados, limpar a casa de banho, limpar o pó… Eu até gostava, mas eu gostava mais de andar no campo. Nas casas tínhamos um privilégio melhor: é que comíamos! Tínhamos a barriguinha cheia. Não passávamos fome. Nas ceifas, as mulheres tinham um ordenado diferente dos homens, ganhávamos sempre menos 5$00. E tínhamos de dar o litro como eles davam. Tínhamos de andar à frente deles a esgatanhar, porque se não déssemos eles passavam para a frente e a gente ficávamos ali num coito de trigo a rabejar e éramos despedidas”.
Escolaridade: “Eu fui à escola. Fui na idade própria, fui aos sete anos. Mas andei só na 2ª classe. Porque eu em casa não tinha quem me ajudasse… Eu fiz 11 anos já em casa de uma senhora. Eu fui trabalhar, não foi porque fosse maltratada, até arranjei umas pessoas muito amigas, mas não foi por gosto, foi porque a minha mãe não podia. Quando uma filha se põe assim a trabalhar em casa dos outros, é porque a gente lhe custa a aguentá-la em casa. Eu dormia em casa da senhora. Havia uma menina, que tinha menos seis anos do que eu. Brincávamos às vezes, não era? Estive lá até talvez aos 13 ou 14. Não me mandaram embora! Depois, é claro, comecei a gostar também de ir trabalhar para o campo, e aprendi tudo! Aprendi a ceifar, fui à azeitona. Fiz tudo, tudo o que se fazia naquela altura. Custava um bocadinho, mas a gente, como raparigas novas, gostávamos de fazer tudo. Foi a trabalhar no campo que eu conheci o meu marido.”
““Eu não sei ler, o meu pai não deixou. Podia ter ido à escola, porque a gente morava ali a 10 minutos a pé, era um monte assim muito grande, morava lá muita gente. Mas ele não deixou por ser mulher. Eu tenho só uma irmã. Se tivesse um irmão, ele deixava-o ir à escola. Eu queria ir, eu chorava. A minha mãe também não sabia ler. Só me ensinou a coser. Mas eu comecei logo a trabalhar no campo aos oito anos. O dinheiro era todo para os pais.”
“Ainda fui à escola e fiz a 3ª classe. Porque dantes era assim: deixava-se de ir à escola para se ir trabalhar. Agora é que é, não estudam, nem querem trabalhar… A minha mãe trabalhava a dias lá para as casas, e o meu pai era maioral das parelhas. E eu fui trabalhar para o campo.”
“Quando o meu pai morreu eu tinha 14 anos. Também andei descalça e o meu irmão também. (…) Lá em casa comíamos uma sardinha partida por três, quando eu estava em casa. Era para mim, para o meu irmão e para a minha mãe. E um bocadinho de pão quando havia. Andei na escola até fazer a 3ª classe. Eu já não pude fazer a 4ª classe porque o meu pai adoeceu… Fiquei em casa e depois aos 13 fui servir. Fui trabalhar para casa de uma senhora. Era ajudante, fazia a limpeza, ia aos mandados. E depois saí de lá, porque ganhava pouco. Ganhava-se pouco, pois. E então fui servir para casa do meu padrinho, o médico. Fiquei aí sete anos. Trataram-me sempre muito bem. Não tenho nada que dizer. Nas casas é que eu comia bem. Comia sopas, muitas sopas, de pão e de peixe… Não me posso queixar. Onde eu estive a servir ninguém me tratou mal, e a trabalhar a dias toda a gente me tratou bem.”
O casamento: “Eu vivia muito mal foi quando casei, porque eu na altura que era solteira, a minha mãe era cozinheira, o meu pai era pastor, nunca tivemos necessidades. Tinha sapatinhos, tinha roupas, tinha tudo, graças a Deus. Comia bem, matava um porquito, tínhamos hortas, tínhamos essas coisas, nunca tive necessidade. Agora, quando casei, passei muito! Tinha 19 anos, aos 20 anos tive a primeira filha. Aos 21 tive um menino que nasceu morto. Partos terríveis (…) e o mê pai é que tinha de ir pedir fiado ao farmacêutico para levantar os remédios. Eu sofri mais foi em casada. Trabalhava no campo. Depois não tive mais filhos, não, já viu, se fosse assim, daqui a nada estávamos desgraçados. Evitava, pois. Sempre cheia de medo e ai! Nessa altura estava muito fraquinha e quanto mais fraquinha estava mais depressa engravidava. Havia muitas que faziam abortos. Mas a gente tinha medo. Faziam, faziam abortos, mas também era dinheiro e eu também não tinha. Tinham de ir para fora”.
Referência bibliográfica: Maria Antónia Pires de Almeida, Memórias Alentejanas do Século XX, Cascais, Princípia, 2010.
O resultado foi esclarecedor quanto à diversidade de experiências e percursos e permite verificar que a vivência feminina das trabalhadoras rurais era marcada por uma infância em casas alheias, a prestar serviços em troca de comida, que não tinham na sua própria casa, seguida de uma adolescência animada pelos trabalhos rurais e pelo convívio que estes proporcionavam. Depois vinha invariavelmente o sofrimento, sobretudo após o casamento e a chegada dos filhos. E ainda a subtileza do discurso sobre o aborto e a contraceção, tema importante nesta região do país. Por outro lado, entre as proprietárias e outras mulheres de condição social mais privilegiada, o acesso à educação estava limitado pela sociedade patriarcal onde estavam inseridas, numa total dependência de pais e maridos. Na segunda metade do século XX verifica-se alguma evolução no sentido do interesse na alfabetização das mulheres e maior autonomia, um fenómeno transversal a todas as classes sociais.
Trechos do livro:
O trabalho doméstico antes dos seis anos: “Eu era para fazer a lida dos mandados, limpar a casa de banho, limpar o pó… Eu até gostava, mas eu gostava mais de andar no campo. Nas casas tínhamos um privilégio melhor: é que comíamos! Tínhamos a barriguinha cheia. Não passávamos fome. Nas ceifas, as mulheres tinham um ordenado diferente dos homens, ganhávamos sempre menos 5$00. E tínhamos de dar o litro como eles davam. Tínhamos de andar à frente deles a esgatanhar, porque se não déssemos eles passavam para a frente e a gente ficávamos ali num coito de trigo a rabejar e éramos despedidas”.
Escolaridade: “Eu fui à escola. Fui na idade própria, fui aos sete anos. Mas andei só na 2ª classe. Porque eu em casa não tinha quem me ajudasse… Eu fiz 11 anos já em casa de uma senhora. Eu fui trabalhar, não foi porque fosse maltratada, até arranjei umas pessoas muito amigas, mas não foi por gosto, foi porque a minha mãe não podia. Quando uma filha se põe assim a trabalhar em casa dos outros, é porque a gente lhe custa a aguentá-la em casa. Eu dormia em casa da senhora. Havia uma menina, que tinha menos seis anos do que eu. Brincávamos às vezes, não era? Estive lá até talvez aos 13 ou 14. Não me mandaram embora! Depois, é claro, comecei a gostar também de ir trabalhar para o campo, e aprendi tudo! Aprendi a ceifar, fui à azeitona. Fiz tudo, tudo o que se fazia naquela altura. Custava um bocadinho, mas a gente, como raparigas novas, gostávamos de fazer tudo. Foi a trabalhar no campo que eu conheci o meu marido.”
““Eu não sei ler, o meu pai não deixou. Podia ter ido à escola, porque a gente morava ali a 10 minutos a pé, era um monte assim muito grande, morava lá muita gente. Mas ele não deixou por ser mulher. Eu tenho só uma irmã. Se tivesse um irmão, ele deixava-o ir à escola. Eu queria ir, eu chorava. A minha mãe também não sabia ler. Só me ensinou a coser. Mas eu comecei logo a trabalhar no campo aos oito anos. O dinheiro era todo para os pais.”
“Ainda fui à escola e fiz a 3ª classe. Porque dantes era assim: deixava-se de ir à escola para se ir trabalhar. Agora é que é, não estudam, nem querem trabalhar… A minha mãe trabalhava a dias lá para as casas, e o meu pai era maioral das parelhas. E eu fui trabalhar para o campo.”
“Quando o meu pai morreu eu tinha 14 anos. Também andei descalça e o meu irmão também. (…) Lá em casa comíamos uma sardinha partida por três, quando eu estava em casa. Era para mim, para o meu irmão e para a minha mãe. E um bocadinho de pão quando havia. Andei na escola até fazer a 3ª classe. Eu já não pude fazer a 4ª classe porque o meu pai adoeceu… Fiquei em casa e depois aos 13 fui servir. Fui trabalhar para casa de uma senhora. Era ajudante, fazia a limpeza, ia aos mandados. E depois saí de lá, porque ganhava pouco. Ganhava-se pouco, pois. E então fui servir para casa do meu padrinho, o médico. Fiquei aí sete anos. Trataram-me sempre muito bem. Não tenho nada que dizer. Nas casas é que eu comia bem. Comia sopas, muitas sopas, de pão e de peixe… Não me posso queixar. Onde eu estive a servir ninguém me tratou mal, e a trabalhar a dias toda a gente me tratou bem.”
O casamento: “Eu vivia muito mal foi quando casei, porque eu na altura que era solteira, a minha mãe era cozinheira, o meu pai era pastor, nunca tivemos necessidades. Tinha sapatinhos, tinha roupas, tinha tudo, graças a Deus. Comia bem, matava um porquito, tínhamos hortas, tínhamos essas coisas, nunca tive necessidade. Agora, quando casei, passei muito! Tinha 19 anos, aos 20 anos tive a primeira filha. Aos 21 tive um menino que nasceu morto. Partos terríveis (…) e o mê pai é que tinha de ir pedir fiado ao farmacêutico para levantar os remédios. Eu sofri mais foi em casada. Trabalhava no campo. Depois não tive mais filhos, não, já viu, se fosse assim, daqui a nada estávamos desgraçados. Evitava, pois. Sempre cheia de medo e ai! Nessa altura estava muito fraquinha e quanto mais fraquinha estava mais depressa engravidava. Havia muitas que faziam abortos. Mas a gente tinha medo. Faziam, faziam abortos, mas também era dinheiro e eu também não tinha. Tinham de ir para fora”.
Referência bibliográfica: Maria Antónia Pires de Almeida, Memórias Alentejanas do Século XX, Cascais, Princípia, 2010.