Nova lei para o serviço doméstico: velhas segregações com algumas injustiças corrigidas, por José Soeiro

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Nova lei para o serviço doméstico: velhas segregações com algumas injustiças corrigidas, por José Soeiro

Autor

José Soeiro (sociólogo, investigador do Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, deputado à Assembleia da República)

Resumo

No passado dia 1 de maio, entraram em vigor várias alterações a mais de uma dezena de diplomas legais que regulam as relações de trabalho em Portugal. Um deles é o do contrato de serviço doméstico (o Decreto-Lei n.º 235/92, de 24 de outubro). O debate sobre este tema não foi objeto de quase nenhuma atenção política e mediática, muito embora esta realidade laboral abranja, de acordo com as estimativas da OIT, 109 mil pessoas em Portugal. Já depois da aprovação da lei, surgiram notícias com alertas relativamente a uma nova e maior penalização do trabalho não declarado, dando-se como exemplo o serviço doméstico. Curiosamente, essa norma, que foi porventura a que mereceu maior destaque mediático relativamente ao tema, não foi apresentada nem discutida a pensar no serviço doméstico… Há, contudo, vários aspetos da lei aplicável ao trabalho doméstico que foram alterados. Olhemos à lupa para este conjunto de questões, contextualizando o enquadramento legal desta atividade, identificando o que muda com as novas regras que entraram em vigor e assinalando-se também o que permanece em debate.

Uma história de exclusão e segregação legislativa

O trabalho doméstico assalariado foi sempre menorizado, quer do ponto de vista do reconhecimento social e económico, quer do ponto de vista legislativo. Na realidade, só em 1980 passou a existir um diploma legal de natureza laboral que enquadra especificamente esta atividade. Até então, ao contrário do que já acontecia com outros trabalhos, o serviço doméstico continuava a ser regulado pelo Código Civil de 1867. Em várias leis subsequentes, como por exemplo na que em 1919 definiu os limites ao período de trabalho (a lei das oito horas diárias), a referência ao trabalho doméstico é para o excetuar dessa regra. Na década de 1930, o primeiro diploma que regula o “contrato de trabalho” (Lei 1952/37) não abrangeu o serviço doméstico e a única referência na lei que é feita a este trabalho é relativa ao despedimento por inaptidão para o serviço. Mesmo a Lei do Contrato de Trabalho, de 1966, não incorporou esta atividade. Depois da revolução do 25 de abril, manteve-se a segregação legislativa do serviço doméstico no quadro da legislação do trabalho. Em 1975, foi publicada a lei que criou o subsídio de desemprego (DL 169-D/75) e nela se dispõe que estão excluídos “os trabalhadores do serviço doméstico”. No mesmo ano, em pleno processo revolucionário em curso, foi aprovado o regime legal dos despedimentos (DL 372-A/75) e o serviço doméstico foi também excluído das novas regras que pretendiam responder aos “mais legítimos anseios das organizações sindicais e da generalidade do povo trabalhador”. Em 1976 aprovou-se a legislação sobre direito a férias, feriados e faltas (DL 874/76) e, logo no seu artigo 1º, estabeleceu-se que as trabalhadoras do serviço doméstico são excluídas do regime.[1] A pouca atenção, tão persistente e prolongada, dada ao serviço doméstico por parte de quem legisla é mais um sinal, e não irrelevante, de um apoucamento e de uma desvalorização deste trabalho na nossa sociedade.

Só na década de 1980, como se referiu, passou a existir uma lei para o trabalho doméstico assalariado. Não através da inclusão desta atividade nas leis gerais, mas sim por via de um regime próprio, autónomo. Deste modo se mantém, em “legislação especial”, até hoje, vigorando o Decreto-Lei 235, de 1992, embora com alterações face à versão original. Assim, quando, em 2003, se unificou pela primeira vez em Portugal as várias leis laborais num Código do Trabalho, o serviço doméstico continuou a ser regulado por uma lei à parte, o mesmo sucedendo com o Código de 2009. Por outro lado, vale a pena lembrar, até 2004 havia em Portugal dois salários mínimos diferentes: o geral e um outro, mais baixo, para estas trabalhadoras.

Além de existir como um regime especial (o que acontece também, por exemplo, com trabalhadores marítimos ou com o regime dos trabalhadores desportivos), choca sobretudo o conteúdo discriminatório da versão da lei do serviço doméstico que vigorou até abril de 2023. Esta lei, agora parcialmente alterada, dispunha, por exemplo, que as trabalhadoras do serviço doméstico tinham um período normal de trabalho superior aos trabalhadores em geral (44 horas semanais, em vez das 40 horas). Que só tinham direito a receber metade do subsídio de natal (podendo este ser pago até 22 de dezembro, mais tarde que o definido na lei geral). Que as causas para o despedimento são mais amplas do que as aplicáveis aos trabalhadores em geral (o que aliás se mantém) e que não era necessária a existência de um comportamento culposo por parte da trabalhadora para esta ser despedida (aspeto que agora mudou). Determinava também que, em caso de cessação de contrato a prazo, a compensação nem sempre se aplicava (isto é, podia não ser paga, caso essa disposição estivesse no contrato). Na lei que hoje vigora (e que vem, repita-se, de 1992) não se definem condições mínimas de habitabilidade no caso das trabalhadoras alojadas. E para as trabalhadoras “internas”, o tempo de disponibilidade, por exemplo, não é contabilizado (ou seja, só é contado o tempo de trabalho “efetivamente prestado”) e o seu repouso pode ser interrompido com uma grande latitude de motivos.

O serviço doméstico continua fora do Código do Trabalho, mas foi clarificada a aplicação subsidiária do regime geral

Na chamada “Agenda do Trabalho Digno”, proposta pelo governo e aprovada no passado mês de fevereiro, mantém-se o paradigma de uma lei separada para o trabalho doméstico. Embora tenha sido apresentada a proposta de enquadrar estas trabalhadoras no Código do Trabalho, através de uma modalidade específica de contrato, capaz de salvaguardar algumas particularidades que existem nesta atividade (desde logo o facto de os empregadores serem famílias, e não empresas, e do local de trabalho ser um domicílio privado, o que coloca a necessidade de adaptação de algumas normas gerais), ela não passou. Esta mudança de fundo, de inclusão do serviço doméstico no Código do Trabalho, foi rejeitada pela generalidade dos partidos.[2] A manutenção de um regime especial tem, em todo o caso, originado debates interpretativos sobre que regras se aplicam nos casos omissos, que não estão definidos pela lei do serviço doméstico. Por regra, o entendimento é que se aplicam, nesses casos, as disposições do Código. Ainda assim, para sanar essa questão, foi aprovada por unanimidade uma proposta que estabelece (novo art. 37.º-A da lei do serviço doméstico) que “às relações emergentes do contrato de trabalho de serviço doméstico aplicam-se as normas do Código do Trabalho em tudo o que não esteja previsto no presente regime”.[3]

Melhorias legais e o fim de algumas discriminações

As alterações mais importantes aprovadas neste processo e que entraram em vigor no passado dia 1 de maio, foram as seguintes. Deixa de haver uma regra diferente e discriminatória sobre subsídio de natal (art. 12.º), aplicando-se a regra geral (valor correspondente a um salário mensal, pago no máximo até 15 de dezembro). O período normal de trabalho passa para as 40 horas semanais (art. 13.º). O repouso noturno (art. 14.º) passa das oito para as onze horas consecutivas, como no regime geral estabelecido pelo Código do Trabalho. No regime do serviço doméstico passam a aplicar-se os mesmos feriados que no regime geral (art. 24.º). À cessação de contrato a prazo no regime de serviço doméstico (art. 28.º) aplica-se também o que está no Código de Trabalho, que dispõe que há direito a compensação quando o contrato termina por observação do seu termo (ou seja, sempre que este termina). Para que haja justa causa de despedimento por comportamento do trabalhador, este passa a ter de ser considerado culposo (art. 30.º). A generalidade destas alterações foram aprovadas por unanimidade.

Algumas matérias mantiveram-se, embora mereçam debate. Por exemplo, na “duração de trabalho”, continua a vigorar que “no caso dos trabalhadores alojados apenas são considerados os tempos de trabalho efetivo”. Esta norma parece ser incompatível com a Diretiva Europeia de 2003 sobre tempos de trabalho, que preconiza a contabilização do tempo de disponibilidade (isto é, o tempo em que a pessoa está disponível para trabalhar, mesmo que não esteja a realizar concretamente uma atividade) como tempo efetivo de trabalho.[4] Também a Convenção da Organização Internacional do Trabalho sobre trabalho doméstico parece contrariar esta disposição que permanece na lei portuguesa. O caso é particularmente sensível porque os trabalhadores alojados (na linguagem de senso comum, as “empregadas internas”) podem, por lei, ver o seu tempo de descanso interrompido quando tenham sido contratados para assistir a doentes ou crianças até aos três anos, o que significa que o seu tempo de disponibilidade é, potencialmente, ilimitado e até, neste sentido, não remunerado integralmente.

Proteção social e subsídio de desemprego sem mudanças

Um aspeto crítico do enquadramento legal do trabalho doméstico assalariado é também a proteção social. Quem trabalha no serviço doméstico não está abrangido pelo regime geral de proteção no desemprego, aplicando-se um regime próprio que tem dimensões discriminatórias, se comparado com o dos restantes trabalhadores por conta de outrém. Mesmo quando as suas relações de trabalho estão formalizadas (e sabemos que uma grande parte não está) e as trabalhadoras fazem descontos, na sua maioria não têm acesso ao subsídio de desemprego. Porquê? Porque no atual regime específico de proteção social para o serviço doméstico, é preciso, simultaneamente, ter um contrato mensal a tempo inteiro e não optar pelo chamado “regime convencionado" (descontos mais baixos, em função do indexante de apoios sociais e não do salário). Ora, a maioria das trabalhadoras não tem um contrato a tempo inteiro, trabalhando antes com vários empregadores, e em geral opta pelo regime com contribuições menores, até por auferir parcos rendimentos. Esta situação, que coloca quem trabalha neste setor numa situação de desproteção, motivou a crítica da OIT a Portugal, no seu recente relatório sobre a Convenção n.º 189.[5] A desproteção das trabalhadoras do serviço doméstico quando confrontadas com uma situação de desemprego ficou patente no período da pandemia da Covid-19, quando se decretou o confinamento e muitas viram a sua atividade suspensa ou foram dispensadas. Foi aliás essa constatação que esteve então na origem da criação de apoios extraordinários para estas trabalhadoras, que não estavam cobertas pelo lay-off simplificado nem pelo subsídio de desemprego. No entanto, a revisão do regime de segurança social do serviço doméstico, mesmo tendo sido proposta no recente processo legislativo, foi rejeitada.

O combate ao trabalho não declarado

Como se disse no início, apesar de não ter havido propriamente debate público nem interesse mediático sobre as alterações à lei do serviço doméstico, vários jornais noticiaram, após a aprovação da “Agenda do Trabalho Digno”, e antes desta entrar em vigor, uma mudança relativa ao trabalho não declarado. “Tem uma empregada doméstica e não a declarou? Multa pode chegar aos 180 mil euros”, titulou o Expresso (3/3/2023); “Não declarar empregada doméstica vai ser crime. Saiba o que muda na lei”, noticiou o Público (8/3/2023); “Trabalho doméstico por declarar arrisca prisão”, escolheu o jornal ECO como título (20 de março de 2023). Não deixa de ser significativo, incluindo do ponto de vista de classe, que este tema só tenha entrado no campo mediático a partir de uma norma aplicável aos patrões (as pessoas que “têm uma empregada doméstica”), e não das que dizem respeito às trabalhadoras, sendo assim aqueles, claramente, o “público imaginado” destas publicações periódicas e as suas infrações enquanto empregadores informais a fonte do interesse noticioso.

Igualmente curioso é o facto de a norma a que tais notícias se referem não ter sido debatida no âmbito da revisão da lei do serviço doméstico, mas sim do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5 de junho), um dos 12 diplomas que foram alterados no processo da “Agenda do Trabalho Digno”. A apresentação da proposta em causa, que prevê que as entidades patronais que não comuniquem à segurança social a admissão de trabalhadores no prazo de seis meses subsequentes ao termo do prazo legalmente previsto são punidas com pena até três anos de prisão, o que eleva à categoria de crime esta prática de recrutamento clandestino de trabalho, foi feita no quadro da discussão sobre o combate ao “trabalho forçado” (suscitado pelos casos do trabalho agrícola clandestino em Odemira e noutras localidades e pela não declaração destes trabalhadores por parte das cadeias de subcontratação). Na discussão da norma no parlamento, nunca houve qualquer referência ao trabalho doméstico. Sucede que, uma vez que aquilo que se dispõe para o Código do Trabalho e esteja omisso no regime do serviço doméstico passa também a aplicar-se, subsidiariamente, às relações de trabalho do serviço doméstico, alguns advogados chamaram a atenção dos jornalistas para este facto, tendo-se assim criado um interesse pelo tema.

Se a norma terá efeito real na formalização das relações de trabalho doméstico, terá de ser avaliado no futuro, decorrido algum período com a nova lei. Como é sabido, a informalidade neste setor é relevante, mas os mecanismos de fiscalização são escassos e enfrentam obstáculos maiores, desde logo por existir uma grande dispersão dos locais de trabalho e porque a inspeção de trabalho não entra nos domicílios privados, ao contrário do que acontece em empresas, explorações agrícolas e estaleiros de obras. Mas que esta questão tenha sido a principal expressão mediática relativa às mudanças no enquadramento legal do serviço doméstico é, em si mesmo, um facto com significado sociológico e político.
[1] Para aprofundar a história do enquadramento legal do serviço doméstico, ver Victor Hugo Ventura (2021), “O Regime do Contrato de Serviço Doméstico”, Lisboa, AAFDL, pp 23-28; e A. Celeste Vieira (2018), “Mulheres em Luta”, Porto, Afrontamento, pp 202-206.

[2] Do conjunto dos grupos parlamentares que fazem parte da Comissão Parlamentar de Trabalho, só o Bloco de Esquerda, que apresentou a proposta, e o PCP, que a apoiou, foram favoráveis a esta perspetiva.

[3] Esta proposta foi apresentada, já no âmbito da especialidade, pelo PCP.

[4] Victor Hugo Ventura chama a atenção para este aspeto no seu livro, op. cit, pp 94-102.

[5] Ver ILO (2021), Making decent work a reality for domestic workers: Progress and prospects ten years after the adoption of the Domestic Workers Convention, 2011 (No. 189), Geneva: ILO.

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