"A gente chamava-lhe os burgueses" - Entrevista a Rosa Maria

Item

Tema

Trabalho Doméstico

Título

"A gente chamava-lhe os burgueses" - Entrevista a Rosa Maria

Entrevistado

Rosa Maria (nome fictício)

Resumo

Rosa Maria nasceu no ano de 1938, em M., uma aldeia situada no distrito de Santarém. O pai era lenhador, a mãe trabalhava na monda do arroz e faleceu quando Rosa tinha 13 anos. Antes de partir para a cidade, trabalhou na apanha do arroz, à jorna. Depois de ter sido posta fora de casa pelo pai, alcoólico, chega a Lisboa com 18 anos à procura de serviço doméstico. É colocada com a ajuda de uma tia numa casa situada no bairro do Restelo. Os patrões trabalham fora de casa: uma professora e um empregado de escritório. O regime de exploração a que se vê entregue leva-a a orquestrar uma fuga. Arranja colocação em casa de uma outra professora, sempre com o auxílio de parentes. A segunda experiência, embora lhe traga melhores recordações, também é associada a experiências de punição física. Passará por outras casas em famílias cuja posição social é aferida por rendimentos intermédios, até casar. Tendo ficado a viver em Lisboa, era dona de uma loja mercearias quando, perto de sua casa, ouviu as primeiras movimentações do 25 de Abril de 1974.

Data de nascimento

1938

Data de recolha do testemunho

9 de março de 2009 e 20 de junho de 2009

Local de realização da entrevista

Lisboa

Recurso

Transcrição de entrevista por gravação em áudio e fita magnética

Autor da recolha

Inês Brasão

História de vida

Rosa Maria: Eu nasci em Marinhais, na freguesia de Marinhais, concelho de Salvaterra de Magos. Vivíamos lá todos e eu nasci a 2 de Abril de 1938. Éramos quatro. Eu era a mais nova deles todos. Quer dizer, era a mais nova porque, quando eu tinha 11 anos, a minha mãe teve outro, mas nasceu morto. Por isso fui sempre a mais nova. Éramos três raparigas e um rapaz. Tinha a mais velha com 20 anos e eu tinha 13. Depois a minha mãe morreu e nós ficámos com o meu pai.

P: E em pequena, na sua aldeia, o que é que os seus pais faziam?

Rosa Maria: Trabalhavam no campo. Os dois. A minha mãe trabalhava no arroz, nas vinhas e aquilo tudo. O meu pai ia para a madeira que era para cortar madeira. Andava por lá uns 15 dias e depois vinha a casa que era para trazer qualquer coisita, porque apanhavam poucochinho. Apanhavam 10$00 por dia. Às vezes não havia dinheiro para comer e então quem ajudava a gente eram os meus avós, que viviam perto e tinham um bocado de terra. E a minha mãe por vezes também semeava batatas…era uma fazenda.

P: E a casa, lembra-se como era?

Rosa Maria: Oh filha, a casa era feita de…naquela altura chamava-se adobe, feita com barro. Era feita com barro e depois eram caiadas. Aquilo era tudo caiadinho. O chão era de barro e depois alisava-se. Aí até aos 12 anos, a gente dormia numa esteira que era no chão. Usavam-se aquelas esteiras que agora já não se vêem muito. Punha-se uma manta por cima, outra por baixo, e era assim que a gente dormia.

P: Passava-se um bocadinho de frio…

Rosa Maria: Dormíamos os quatro juntinhos que era para não termos frio. E depois, para lavar a roupa, a minha mãe, no inverno, lavava a roupa que era para enxugar à lareira. A gente quando ia vestir a roupa cheirava a fumo… (risos) Mas, como éramos miúdos, a gente queria era ter a roupa lavada…cheirasse a fumo ou não cheirasse. Entretanto, as coisas foram-se modernizando e depois a gente já estava melhor.

P: Na sua aldeia todos viviam assim?

Rosa Maria: Havia muita gente a passar necessidades, mas também havia alguns que viviam bem, que a gente chamava-lhe os burgueses, que eram os ricos, esses viviam bem. Agora a classe pobre era aquela que passava mais miséria.

P: Quantos burgueses é que lá havia?

Rosa Maria: Ai havia…eram aqueles que tinham aqueles terrenos. Tinham os terrenos de vinha, terrenos de arroz e andávamos a trabalhar para eles. Eu também trabalhei muito no campo. (e foi à escola?) A minha escola foi aos 9 anos ir trabalhar. Aos 7 anos ia para casa das minhas tias tomar conta dos meus primos…depois aos 9 anos comecei a trabalhar no campo. Íamos para o arroz e fazer outros trabalhos. (Nem os seus irmãos foram à escola?) O meu irmão foi. Agora as minhas irmãs, não. Não, porque antigamente eles diziam que as filhas das mulheres não precisavam ir para a escola, porque elas depois queriam era aprender a ler para escrever cartas para os rapazes. Era o que diziam. A nossa escola era o trabalho.

P: E o trabalho era longe de casa? Ganhava alguma coisa?

Rosa Maria: Ganhava 10$00 por dia. Era longe. Às vezes estávamos 15 dias sem ir a casa. Depois, as pessoas ficavam num barracão grande, a nossa cama era palha. Tínhamos a palha. A gente punha uma manta por baixo e outra por cima que era para termos mais manta e a gente não ter frio. Para a gente se tapar. A gente cada um tinha a sua, a gente chamava-lhe “camaradas” (camaratas) e depois para fazer o comer era assim em conjunto. Juntávamo-nos assim uns 3 ou 4, juntávamos todo o farnel que levávamos e depois assim é que a gente fazia as refeições. Comi muita couvinha com batatas sem nunca ferver. Chovia, a lenha estava molhada. A gente só tinha uma hora para almoço, de maneira que a gente às vezes começava a chover e tínhamos que comer umas coisinhas no barro…era quase sempre a mesma coisa…até se comia mais vezes do que a gente come agora…eh,…a gente começava a trabalhar ao nascer do sol, mas já tínhamos bebido o café, que era um bocado de café e um bocado de pão…e era até as sopas do café que a gente comia. Depois íamos trabalhar até às dez e meia… Às dez e meia íamos almoçar as tais couves com batatas, com pão, um bocadinho de toucinho, aquele toucinho já amarelo…e era o que a gente comia. Depois era o jantar, que agora chamam-lhe a merenda, o lanche, vá lá. E então era ao jantar que a gente comia batatas cozidas com sardinhas daquelas amarelas sem cabeça, porque era uma sardinha para dois. Era uma sardinha partida para dois e depois era à noite que a gente chamava-lhe a ceia. A ceia que era outra vez a sopa. E era assim que a gente aguentava. Levávamos o pão de milho ao princípio da semana e íamos comendo.

P: E chegavam de carroça ou como é que era?

Rosa Maria: De carroça? A pé!... Não sei se conhece a minha terra, que é no Ribatejo…Em Salvaterra de Magos. A gente vinha para Samora Correia…a pé…à segunda-feira. A pé para Samora Correia. E depois voltávamos e vínhamos também a pé para casa. Depois mais tarde é que começou a haver esses cavalos…

P: Tinham roupa, calçado?

Rosa Maria: Nada! A minha mãe que Deus tem morreu quando eu tinha 13 anos. Morreu cá em Lisboa. Eu para vir ao funeral da minha mãe tive que trazer uns sapatos de uma tia minha, que eu até nunca tinha tido sapatos. Pronto, às vezes a sola dos nossos pés parecia cortiça, a gente andava sempre descalços, no frio, no gelo…

P: E como eram os tempos de descanso, lembra-se?

Rosa Maria: A gente chegava ao sábado a casa, depois comíamos qualquer coisa e íamos trabalhar para a fazenda. E depois ao domingo levantávamo-nos de manhã e íamos para a fazenda até ao meio-dia. Ao meio-dia almoçávamos. E depois é que íamos lavar a roupa e pronto para depois vestirmos novamente e termos roupa para segunda-feira…que a gente em geral só tinha uma lavagem de roupa.

P: E não havia bailaricos?

Rosa Maria: Não, havia. Isso aos bailaricos a gente ia sempre aos bailaricos (risos)…eu cheguei a ir para o baile, lavar a roupa e depois ir trabalhar. (onde era?) Era lá… aquilo não tinha um sítio certo. Por exemplo, havia lá um senhor que tocava acordeão e ele tinha assim uma casa de comércio e depois ele fazia lá o baile. As raparigas, ao domingo, iam lavar a roupa, mas depois íamos à Praça, à nossa Praça que era onde se juntavam as raparigas e os rapazes…e homens, e mulheres, que queria arranjar trabalho. Ia um capataz e uma capataza. O capataz dava ordem à capataza para ir buscar tantas mulheres. E ele ia falar aos homens. Depois íamos trabalhar. A gente depois sabia onde era o baile e combinávamos umas com as outras. A gente ia e quando chegava a casa o meu pai já estava assim…. coiso (faz o gesto com o polegar simbolizando alguém que já estava alcoolizado) e depois a gente pedia se o meu pai deixava ir a gente ao baile e ele dizia: “Não, hoje não vai ninguém ao baile…” “Oh pai, deixe lá ir…” -“Então vocês vão mas vai o Toino (o irmão) com vocês.” Mas à meia-noite quero-vos aqui em casa, que o baile começava assim às nove e meia. “Tá bem”. Mas a gente chegava assim às 5, 6 horas da manhã.

P: Então era até tarde…

Rosa Maria: E de outras vezes, era ele que vinha com a gente. Mas ele começava e os outros a puxarem por ele “Vai mais uma pinguita?” E via o meu pai assim borracho e a gente já sabia que podia ficar até à hora que quisesse. Mas era tudo com respeito. Eu acho, a meu ver, que era tudo com respeito, os rapazes e as raparigas. Depois abriram um cinema. No cinema davam o filme e depois no fim era o baile. A gente pagava 5$00, depois íamos ver o cinema e depois era o baile. O cinema desarmava, a gente ajudava a desarmar a plateia, tirávamos as cadeiras e depois era baile até às quinhentas. (e lembra-se dos filmes que ia lá ver?) Olhe, eu não me lembro…Um que eu achei muita piada chamava-se “Em casa manda ela”. Depois vi foi uns filmes portugueses, que levavam lá os filmes portugueses para a gente ver. Da época, era “Sol e Toiros”; “O sol no Ribatejo”, “O Costa do Castelo”. Todos esses passavam lá no cinema. E antes de haver o cinema, iam lá aquelas barracas como o circo, e passavam lá os filmes também. Eu, a primeira vez que fui ao cinema ainda a minha mãe que Deus tem era viva, ia descalça. E então, para eu entrar no cinema, a minha mãe tinha um xaile. E então ela tapou-me com o xaile e entrei assim com ela no xaile para ver o cinema porque eu não tinha idade para ver o filme. Foi as “Capas Negras”. Nunca mais me esqueceu. Das capas negras…Iam todos, naquela altura parece que pagavam 25 tostões por pessoa, parece que era, mas os miúdos não pagavam.

P: E era difícil com o seu pai quando bebia?

Rosa Maria: Sim, era, porque ela (a mãe) se calava e ele batia-lhe porque ela o dava ao desprezo. Se ele falava e ela dizia alguma coisa ele batia-lhe porque ela não o dava ao respeito. Faltava-lhe ao respeito e ela coitadinha…e depois com a minha irmã mais velha também era a mesma coisa… (vai baixando a voz até ficar inaudível).

P: E falou, há pouco, numa capataza e num capataz…

Rosa Maria: Era, portanto, era os que mandavam. Os patrões arranjavam aqueles homens e aquela mulher. O capataz era para falar aos homens. A capataza era para falar às mulheres. A gente ia trabalhar e a capataza dizia: “Amanhã de manhã, quando chegarem ao trabalho, vocês vão para aqui e vocês vão para acolá. Depois ela é que ia mandar na gente.”

P: E mandava todo o dia?

Rosa Maria: Todo o dia. Toda a semana.

P: E ralhava?

Rosa Maria: Ai pois não! Ai não que não ralhava!...Eu uma vez andava a cavar terra para arroz e estava dentro d’água e por mandar a enxada e a água salpicar para cima de uma colega minha, ela andava à minha frente e quase me queriam mandar embora. (e não lhe queria pagar?) Não, não era questão de pagar. Naquela altura era assim. As pessoas, por tudo e por nada, falavam e diziam que nós não prestávamos para trabalhar. (e não podiam responder?) Não, a gente não podia dizer nadinha. Se a gente dissesse alguma coisa, naquela semana ainda chegávamos ao fim, mas depois para aquele patrão a gente nunca mais trabalhava.

P: Então andou nessa vida de trabalhar no campo…

Rosa Maria: Desde os 9 até aos 18. Ainda não tinha bem 18 anos. (então dava para sustentar a família…) Não dava muito bem, filha…Porque quando o meu pai me pôs fora de casa, porque o meu pai pôs-me fora de casa…eh…eu tinha andado a trabalhar sozinha porque nessa altura o meu pai não tinha trabalho…e eu andei a trabalhar toda a semana a apanhar vides, sabe, nas vinhas, e então naquela altura cai o gelo, era inverno, e o frio era tanto que eu já não sentia as mãos…o capataz fazia uma fogueira para a gente se vir aquecer e eu nunca fui à fogueira…e eu fazia assim nas costas para as mãos aquecerem (faz o gesto de esfregar no corpo)…e então cheguei a casa ao sábado…10$00 por dia…60$00. E o meu pai foi para a taberna, uma taberna lá perto de minha casa, e o vizinho pediu-lhe se ele não tinha 50$00 para lhe emprestar. O meu pai dá-lhe os 50$00 a ele…e…ficou com 10$00 e gastou na taberna. Depois, a minha irmã pediu-me dinheiro para ir à mercearia, a gente lá não era a mercearia, era a loja…as lojas vendiam tudo, vendiam roupas, vendiam tudo. E eu disse, “Oh pai, dê-me lá dinheiro para a gente ir buscar…. o bacalhau e aquelas coisas que é para levar segunda-feira para o trabalho”. E ele disse “Ah, não tenho dinheiro…. Compra fiado.” Depois eu disse: “Então o que é que o pai fez ao dinheiro?” Ele tinha lá o dinheirinho todo! Aquilo ali a gente não podia mexer nada onde ele estava. Ele não me dava nenhum. Aquilo quando chegava ao fim-de-semana eu tinha que lho entregar. Ele a mim dava-me 2 tostões que era para eu comprar tremoços. Era o dinheiro que eu tinha por trabalhar. Era esse. “E então o que é que você fez ao dinheiro?”, perguntei ao meu pai. - “Ah, emprestei ali 50$00 ao rapaz. Emprestei ali ao C.”. - “Então pai, eu andei a trabalhar, vocês estiveram em casa e você foi dar o meu dinheiro, que eu ganhei, ao C.? Ele nunca mais lhe paga esse dinheiro. E agora o que é que eu compro? Então não vou trabalhar.” Ele deu-me uma tareia muito grande, mas eu refilei sempre. E depois eu disse: “Se você não me quer em casa diga-me que eu vou-me embora. Porque eu andar a trabalhar para você andar a beber copos, não. Está frio, e muitas vezes não há comida, chegar aqui com o dinheiro e você dá-lo a outro?...” Depois ele disse à minha irmã, “Pega nessa enxada e nesse xaile que está aí e vai levá-la à tua irmã.” A minha irmã já estava casada. Fui para casa da minha irmã. Inda demorava meia-horita a pé. Depois fiquei a viver com ela. Fiquei lá pouco tempo. Eu tinha que ganhar para comer e para me vestir e para me calçar. Só que depois a outra minha irmã casou e foi uma senhora que foi ao casamento da minha irmã, que era aqui perto (no Bairro Alto) e era prima do noivo. E estavam assim a falar: “Olha, se quiseres para ir para servir eu levo-te.”

P: Antes de me contar como foi quando chegou a Lisboa, diga-me só como era para saber o que se passava no mundo…tinham rádio? Falavam sobre alguma coisa?

Rosa Maria: A gente não sabia de nada…A gente não sabia nada! Só quem tinha rádio eram os ricos, a gente não tinha nada…nada de nada…agente ouvia falar de Lisboa porque havia pessoas que estavam cá e iam lá à terra e a gente depois é que ouvia alguma coisa, mas de governos eu nunca ouvi falar em nada. Só ouvi uma vez falar…o meu pai até foi preso, em Salvaterra, na GNR… que era não sei quê do Norton de Matos e depois o meu pai estava assim mais um grupo a falar e a gente chamava-lhe a camioneta preta. E veio a camioneta preta e levou-os …porque eles não queriam…estavam a fazer uma reunião, não sei quê, porque a gente não ouvia falar de nada. (mas tinham algum medo? Sabiam que não podiam falar de algumas coisas?) A gente não sabia de nada, filha! A gente não sabia se podia falar, a gente não ouvia dizer nada!...os outros é que sabiam, quem era os ricos é que sabia! O meu pai, naquele dia, estavam a falar…por causa de…devia ser por causa do Norton de Matos e qualquer coisa…e depois levaram-nos presos, porque a gente não sabia de nada. Eu só quando vim para Lisboa é que comecei a ouvir falar! Porque a gente ouvia falar no Salazar, não sei quê, mas a gente não sabia quem era o Salazar…

P: Havia comboio por ali?

Rosa Maria: Havia…havia uma estação perto. Agora já não há, mas havia comboios de…3 vezes por dia, ou 4…

P: E quando havia doenças, iam ao Posto Médico?

Rosa Maria: Havia posto médico aonde? Não havia posto médico em lado nenhum. Havia um médico que estava lá…quando havia qualquer coisa a gente ia lá. Pagava-se 15$00 por tudo. A primeira vez que fui ao médico tinha 18 anos (risos)… Havia farmácia, não é? havia essas coisas, mas o médico que era o Sr. G. era assim parecido, deixa lá ver… com o filho do Vítor Mendes, o Fernando Mendes…era muito gordo. Assim era aquele médico. E esse era o único que lá havia. Quando havia alguma coisa íamos chamá-lo a casa e ele lá ia no burro.

P: E à missa? Não era costume?

Rosa Maria: O meu pai não deixava a gente ir à missa. Só deixava ir ao dia de Natal e ao dia de Páscoa…de resto…não havia missa para ninguém. A missa era trabalhar na fazenda. O tempo que a gente tinha para ir à missa andávamos a trabalhar na fazenda. Não havia nada dessas coisas…. embora tivesse casado pela igreja e embora tivesse sido baptizado não era pessoa para…

P: Então agora vamos falar da sua vinda para Lisboa…

Rosa Maria: Havia uma senhora que morava aqui perto e que era de lá e a gente estava assim a falar e ela perguntou se eu queria vir para Lisboa servir. E eu perguntei à minha irmã mais velha, e disse “A ti Custódia disse que há lá uma senhora que queria uma criada…estás a ver, eu aqui não ganho nada de jeito…e eu vou, sempre ao fim do mês tenho aquele dinheirinho. São sempre 150$00…, mas como eu só ainda tinha 18 anos, o meu pai não me queria deixar…não me queria dar autorização. Porque eu só era maior aos 21. E ele disse, “Agora vais para Lisboa!… vais, mas é para casa porque agora a tua irmã casou-se e vais para casa para tomares conta do teu irmão.” E eu disse: “Eu para casa não vou. Nem que você me mate. Nem que você me mate eu vou para casa. E é agora mesmo. Vou para Lisboa.” E ele disse: “Eu vou buscar a Guarda (GNR).” “Vai buscar a Guarda e eu digo que o pai me pôs fora de casa.” E então o meu pai correu atrás de mim com uma enxada para me matar…e depois como eu refilei sempre foi quando ele me mandou para casa da mana. Por isso eu disse, “Eu não vou para casa” (em tom afirmativo) “Eu vou para Lisboa.” E depois vim.

P: Veio sozinha?

Rosa Maria: Vim com aquela senhora porque a irmã dela morava lá ao pé de mim. Era só quem eu conhecia, não conhecia mais ninguém. Não conhecia uma letra. Não conhecia ninguém, só conhecia aquela mulher. E daqui fui para o Bairro do Restelo.

P: Chegou a Lisboa de comboio?

Rosa Maria: Sim, vim de comboio até ao Rossio. Vim com aquela senhora. Dormi em casa dela e depois, no outro dia, ela foi-me levar à senhora onde eu ia servir que era professora primária. Era aqui na Calçada do Combro que a senhora era empregada doméstica. Depois ela levou-me e eu fui para a casa do Restelo. Cheguei lá, vinda da cidade, vinda da província, sempre trabalhei no campo, não sabia uma letra do tamanho de mim, não conhecia ninguém, não conhecia nada, entrar numa casa estranha, com 3 miúdos, ela professora, mas neurótica…os miúdos terríveis que eu tinha as minhas canelas todas pretas dos pontapés que eles me davam…chorei uma semana inteira, de dia e de noite. O meu quarto era numa arrecadação. Era um quarto de tamanho normal, não era muito grande, mas tinha o meu divã, tinha o sítio onde eu pus a minha malita da roupa, que eu trazia duas ordens de roupa (risos), não tinha mais nada… Tinha uma casita de banho para mim que era a sanita e o lavatório.

P: O seu quarto ficava dentro da casa?

Rosa Maria: Ficava, daquelas casinhas do Bairro do Restelo que era rés-do-chão e 1º andar.

P: E não havia mais ninguém a servir?

Rosa Maria: Não, era só eu. Eu tinha que limpar a casa, tinha que tomar conta dos miúdos e fazer o comer. Levantava-me às 6 da manhã…ainda não havia máquinas de lavar a roupa nem nada, e o tanque estava no quintal…

P: E quando chegou a Lisboa, do que é que gostou? Andou a passear?

Rosa Maria: Oh, não, naquela altura não. Porque eu já cá tinha vindo ao funeral da minha mãe. A minha mãe morreu aqui em São José e eu vim cá ao Alto de São João. Quer dizer, eu quando fui para o Bairro do Restelo, aquilo não era como está agora, aquilo ainda era muito campo. Agora é que está tudo cheio de casas. Ainda havia ali muitos campos, por isso eu ali ainda estava…mais ou menos…a casa tinha um quintal grande, eles tinham lá uma enxada e obrigavam-me a ir lá cavar o quintal, plantar couves, plantar alfaces, quer dizer, fazer a horta! Eu fazia horta. (Isso sabia bem, não era?) Pois, não me sabia bem era levantar-me às 6 da manhã no inverno para estar ali ao frio!

P: E quando começou, ensinaram-lhe algumas regras?

Rosa Maria: Sim, a senhora disse-me o que eu tinha para fazer, a que horas é que tinha que me levantar, e depois só me deitava quando acabava o serviço. À noite é que passava a ferro…às vezes era uma hora da manhã e eu ainda estava a pé. Depois de manhã dava-lhe o pequeno-almoço e ele ia para o escritório, e ela depois saía para a escola e eu ficava com os miúdos. Mas os miúdos eram muita’ maus. Eu fechava-lhes a porta à chave, aquilo era rés-do-chão e primeiro andar, e eles saltavam-me pela janela…eu ia a correr atrás deles até à praia de Algés…

P: E eles eram de que idade?

Rosa Maria: Quando eu lá cheguei tinha o mais velho que tinha 6, depois o outro tinha 4, e depois o outro tinha 3. Eram assim todos seguidinhos. Entretanto, a miúda foi para a escola e eu queria vir-me embora, ficava lá sozinha. Um dia a patroa chegou lá a casa e eu disse: “Eu quero ir-me embora.” – “Ah, não te vais embora nada, não te vais embora nada…eu vou dizer à D. Custódia. Tu não te vais embora.” E eu disse: “Quero-me ir embora.” Porque lá ao pé estavam uns vizinhos que eram da minha terra e eu, entretanto, puxei conversa com a criada dele. Porque esse senhor conhecia o meu avô.

P: Porque tinha muito serviço?

Rosa Maria: Pois…era a cozinheira da casa, era a empregada de limpeza…Chamava-se naquela altura “criada para todo o serviço”. Pois…(risos)

P: E disse que a patroa era um bocadinho “neurótica”… Não lhe ensinou a fazer as coisas, ou ainda tentou ensinar?

Rosa Maria: Ela não sabia fazer nada!...Ela, a primeira vez, quando se casou, que foi fazer o comer, pôs um quilo de arroz dentro de um tacho pequenino, e então ela disse-me “Olha, quando fores fazer arroz não ponhas num tacho pequeno que eu uma vez fui fazer arroz e o arroz não coube lá dentro”. Claro, aquilo não cabia lá…

P: E servia à mesa?

Rosa Maria: Ah, para servir à mesa tinha de ser de bata preta, aventalinho branco e a touca para a cabeça também era branca e o punho branco. (Em que dias vestia a farda?) Era só quando eles recebiam …e era tão ricos ou tão pobres que me pagavam ao fim do mês, recebiam e pagavam-me, e quando estávamos a chegar ali ao fim do mês, já me estavam a pedir o ordenado (silêncio prolongado). (Pagavam-me 150$00, mas quando era ali para o dia 20 e pouco já me estavam a pedir o ordenado. Depois, ao fim do mês pagavam-me o que me deviam e pagavam-me o ordenado e depois no mês seguinte já me estavam outra vez a pedir o dinheiro. Depois um dia eu disse: Já não quero estar mais nesta casa que eu não estou para aturar malucos. Quer dizer, eu vim da terra que era para não aturar o meu pai que era bêbado e agora vim para aqui aturar uma maluca, por isso vou-me embora. E eles: “Não vais e não vais e não vais”, que ela não queria que eu me fosse dali embora. Eu, entretanto, telefonei para esta senhora e disse: “Oh Custódia, eu quero ir-me embora porque se passou isto assim e assim.” (Tinha-se passado alguma coisa?) “a patroa atirou-me com uma faca e eu não quero cá ficar. Eu quero ir-me embora.” - “E agora como é que a gente vai fazer para tu te ires embora?”- “Eu arranjo, não te preocupes que eu arranjo uma maneira de eu me ir embora.” Quando ela chegou eu estava a chorar: “Que é que tens?” “Eu tenho que ir para a terra.” “Tens que ir para a terra porquê?” “Tenho a minha avó muito mal e eu tenho que ir para a terra para tomar conta dela, que as minhas irmãs não podem ir nestes dias.” Então, e quanto tempo é que lá vais estar? “Vou lá estar até a minha avó estar melhor. Se quiser telefonar para a Custódia, pode telefonar-lhe para saber.” Claro que eu já tinha combinado com a Custódia. E eu então vim. Vim, mas não trouxe outra coisa para além da roupa que tinha e mais uma ordenha de roupa que ela não me deixou trazer mais nada de meu. Eu cheguei aqui e já esta senhora tinha outra casa para eu ir servir. Depois fui servir para casa de outra professora.

P: Então nessa primeira casa tratavam-na mal? Não tinha ligação aos miúdos?

Rosa Maria: Não, eu dos miúdos gostava muito. A miúda era muito minha amiga. (ficava com eles a maior parte do tempo ….). Era o dia inteiro. (E eles consigo não tinham essa ligação?) Os rapazes não, mas a miúda era mais velha e era muito minha amiga. Ela às vezes dizia: não ralhes com a Maria que ela chora.

P: E contava-lhes coisas?

Rosa Maria: Pois, começava-lhes a contar histórias. Inventava-as, e depois cantava aquelas cantigas que havia lá na terra. A lagarto pintado/quem te pintou/Foi uma velha/que aqui passou/depois no tempo da eira/fazia poeira/e depois eu puxava-lhes uma orelha e depois dizia: Puxa lagarto/Por essa orelha!... Sentavam-se ali ao pé de mim e depois estava ali um bocadito, depois fartavam-se…

P: E sem ser essa vez violenta com a faca, que contou, o patrão também ralhava?

Rosa Maria: O Patrão não. O patrão só ralhou comigo uma vez porque eu bati no filho. E ele não gostou. Ele chamou e perguntou: “Então Maria, tu bateste ao Pedrinho?” “Bati, sim senhor” “Então porquê?” “Olhe, está a ver como eu tenho as minhas canelas?” “Então o que é isso?” “Então pergunte lá aos meninos”. “Então é por causa disso?” “Pois é, eles dão-me pontapés e eu dei-lhe um estalo. Mas por causa disso eu vou-me embora”. E ele disse: Pronto, pronto, pronto…caso contado está meio perdoado.” (começa-se a rir…) Mas depois aconteceram aquelas coisas todas e eu resolvi ir-me embora.

P: Quanto tempo é que ainda esteve nessa primeira casa?

Rosa Maria: Seis meses. (E tinha folgas?) Tinha de 15 em 15 dias. Ao domingo, depois de fazer e dar o almoço, a gente tinha que deixar tudo arrumado e depois vinha aqui (Bairro Alto) a casa desta senhora. Eu, lá no Bairro do Restelo, tinha que apanhar o eléctrico. Podia apanhar para o Cais do Sodré. No princípio não sabia e apanhei o eléctrico até Santos. Vim de Santos a pé até à Igreja de Santa Catarina… Conhece? Fica aqui ao pé da Calçada do Combro. Ao pé da Igreja de Santa Catarina apanhei um táxi até à travessa…(começa a rir-se…) Quer dizer, estava a 5 minutos da casa da senhora, apanhei um táxi (ri a gargalhada solta) e o homem diz-me assim: “Onde é que você quer ir?” “Para a travessa…(?)” “E você sabe onde é que fica?” “Eu não! Se soubesse não me estava a meter de dentro do táxi.” “Olhe, não sei que voltas é que o homem andou a dar que eu paguei 7$50…(ri-se em silêncio)….Uma vez já tinha ido até ali porque ela trabalhava ali na Escola 22. Eu sabia ir até à Igreja de Santa Catarina, mas para aqui é que eu não era capaz de vir!...

P: E lá no Restelo? Saía de vez em quando, por exemplo, para ir às compras?

Rosa Maria: Ah, para ir às compras saía muitas vezes. Às 7 horas da manhã ia buscar o pão e o leite. E depois quando era assim outras coisas era eu que ia comprar. Ia à Praça de Algés… Onde ela me mandava ir comprar é que eu lhe comprava. Aos domingos, juntávamo-nos ali 4 raparigas, porque éramos ali todas da minha terra; éramos todas vizinhas, ali pertinho umas das outras. E então juntávamos ali todas na casa daquela senhora. Naquela altura foi quando apareceu a televisão. Ninguém tinha televisão. Mas ela tinha porque o…cunhado dela era da Pide (diz em tom de sussurro). E então ele tinha televisão. E então a gente ia para ali. Naquela altura davam aquelas músicas, aquele folclore, e a gente fazia um baile em casa da senhora.(ri-se) Ela gostava porque a casa ficava com muita gente e ela também tinha uma menina pequenina, a gente trazia-lhe um pacotinho de bolachas de baunilha que naquela altura custava 15 tostões…e ficávamos ali a dançar toda a tarde. Chegava a hora de a gente se ir embora, porque a gente tinha hora certa para entrar em casa…Às 7 horas tínhamos que estar em casa, fosse Verão, fosse Inverno, às 7 tinha que estar em casa para dar o jantar…

P: As suas amizades eram essas raparigas com quem se encontrava…

Rosa Maria: Era, era…(Não foi conhecendo outras pessoas?) Quer dizer, havia aquelas pessoas a quem eu dizia sempre “bom dia”, “boa tarde”… a padeira, eu conhecia a padeira. Conhecia o leiteiro, conhecia a peixeira onde ia buscar o peixe, essas coisas sim…, mas assim outras, ou outras criadas, mesmo assim nunca falei muito com elas! (Não? Nunca se encontravam para dizer mal dos patrões?) (ri-se): “Só dizia mal dos patrões aqui! (Bairro Alto) Aqui é que a gente contava, porque ela perguntava: “Então? Estás contente?” e eu dizia: “Eu não estou contente, eu quero vir-me embora.” Depois vim-me embora daquela porque ela arranjou-me para uma outra professora que vivia aqui na Calçada do Combro. Trabalhavam as duas pessoas na mesma Escola. Ora eu dizia assim para a D. Custódia: “Olhe lá, então se a D. Luísa está lá a trabalhar na mesma escola que a minha patroa, como é que a gente faz?” E depois se eu me encontro com ela? E ela assim: “Não te incomodes que não te vais encontrar com ela.” Então para lá fui, para aquela professora…já de idade. Também era má! O raio que a parta! Mas tinha um marido que era reformado. Era tenente, mas era reformado. Ali gostava de estar. Era um prédio que era de um professor… como é que se diz, aqueles professores mais altos..(universitário?) naquele tempo não lhe chamavam assim…(catedrático?) Isso mesmo, que era o Dr. A.... A casa era dele. Ele morava no 1º andar, e a gente morava no rés-do-chão. Como ele tinha muitas criadas, e havia também uma senhora que também tinha uma criada, depois a gente começou-se a dar bem ali umas com as outras. O Srº Dr. tinha a governanta, tinha a criada de quarto, a de mesa e tinha a cozinheira. Foi para aí que fui servir, para uma professora que morava no rés-do-chão. Estive lá dois anos e tal. Um dia, era na altura das sementeiras, fui para lá semear a terra…. e um dia chateou-se comigo e bateu-me! E eu não gostava.

P: E porque é que ela se chateou consigo?

Rosa Maria: Olhe já não me lembro bem o que é que foi. Sei que foi qualquer coisa que ela me disse e eu respondi-lhe. Isto as patroas não gostavam que a gente respondesse. Eles diziam aquilo que queriam e a gente tinha que ficar muito caladinhas. A gente tinha cá poucochinho, não podia falar… Eu sei que estava a lavar roupa, mas já não sei porque foi. E ela dá-me um estalo. E eu não gostei. “Que é isso?... A Senhora bateu-me?...” (silêncio prolongado). “Posso-lhe dizer uma coisa: a Senhora não leva também, não é que eu tenha medo de si. É por respeito. Porque a senhora tem idade de ser minha avó. Porque a minha avó nunca me bateu. E a senhora bateu-me. Então agora vou-me embora.” Agarrou-se a mim a chorar, a pedir-me desculpa, para eu não me ir embora…o sr. Tenente não estava lá. Mas o Sr. Tenente era uma pessoa que gostava muito de mim e eu gostava muito dele. Depois quando ele veio, lá me pediu, pediu…e fiquei ainda lá mais uns tempos.

P: Mas para lhe bater…para chegar a esse ponto…era costume?

Rosa Maria: Ela era um bocado fera. Ela tinha tido lá uma criada que tinha vindo de Viseu e veio para ali e sujeitou-se a muito. Batia-lhe muitas vezes.

P: Havia muitas regras?

Rosa Maria: À sexta e ao sábado eu já sabia que tinha que fazer limpeza à casa. Sexta tinha os quartos e a sala e ao sábado era a cozinha. Depois ao Domingo tinha a roupa e tinha de a pôr a serenar, a lavar…terça era para lavar a roupa e à quarta e à quinta era para passar a ferro. E era ir às compras e fazer o comer…

P: E gostava?

Rosa Maria: (risos) Então, havia certas coisas que eu gostava. Mas havia outras que não. Por exemplo, levantava-me às seis e meia da manhã, ou às seis, e ia lavar a roupa para o quintal. Isso custava-me muito, que eu lá na minha terra, embora a gente também lavasse a roupa ao pé do poço, tínhamos uma barraquinha para estar resguardada do frio. Ali não tínhamos nada disso.

P: E para se levantar às seis e meia tinha um relógio seu?

Rosa Maria: Era, tinha um despertador ao pé de mim. (na sua casa havia campainhas para chamar?) Não, não, não… Quem tinha as campainhas eram aquelas pessoas mais sofisticadas, mais ricas. Essas é que tinham as campainhas. Aquela não. Estavam na sala, na mesa e gritavam “Oh Maria!...Vê lá isto…” “Oh Maria!...traz aquilo!”

P: E tinha direito à sua privacidade?

Rosa Maria: Naquela já tinha o meu quarto. A casa de banho é não tinha banheira. Era tudo num alguidar e a gente tomava banho na casa-de-banho dos senhores. Agora na outra, não me deixavam tomar banho na banheira. Tinha que me lavar na tal casa-de-banho que eu tinha, pequena, só o lavatório e a sanita. Ali é que eu me lavava.

P: E podia, de vez em quando, ir descansar um bocadinho para o seu quarto?

Rosa Maria: (Faz um riso de incredulidade com a pergunta que lhe coloquei) (Continua a rir)…Havia sempre que fazer, nunca tinha tempo para descansar, não…Depois a seguir àquela que me bateu, aí já tinha mais um bocadinho. E, aí, à noite, já ía para o pé… ela não tinha televisão, mas tinha um rádio. No fim do jantar, ela e o marido iam jogar às cartas, e eu podia-me sentar ao pé deles a fazer croché. Foi na segunda casa onde eu estive. Era ao serão. Aí já podia estar enquanto eles estavam a jogar às cartas. Ouvia rádio e fazia croché…

P: Como era para cozinhar?

Rosa Maria: A gente é que tinha que o buscar todo. O petróleo tinha que se comprar ao litro…aquilo era avulso, não é como agora…havia as carvoarias que vendiam o carvão, o petróleo e aquela coisa toda. Naquela altura não se fazia grandes compras. Tinha que se comprar ao dia-a-dia conforme o dinheiro chegava. Se chegava para comprar um litro, comprava-se um litro, se não chegava comprava-se só meio litro. Era como o carvão. Se chegava para comprar 2 quilos, comprava-se 2 quilos. Se não chegava, comprava-se só 1 quilo.

P: E a cozinha? Comiam coisas mais modernas ou mais tradicionais?

Rosa Maria: Houve coisas que eu tive que aprender que não se faziam lá na terra. Lá fazíamos uns feijões com um bocado de toucinho e umas batatas, com couve, ou assim… Aqui, já não. Era mais a carne guisada, os bifes, o peixe…lá a gente só comia sardinhas e chicharro, aqui já havia mais peixe… Mas elas não eram assim de comer coisas muito “coisas”, muito puxadas. Eu até comecei a fazer peixe assado no forno, um dia comprei um parguinho e fiz, e olhe, o homem adorou aquilo!... (começa a rir) e outra vez, dantes havia daqueles talhos das miudezas, a cabeça da vaca, a cabeça da vitela, a dobrada…e era tudo vendido assim nesses talhos…E eu uma vez fui ao talho e comprei cabeça de vitela, e fiz jardineira…o homem gostou daquilo!... Da outra vez fiz com grão…Então ele dizia: “Esta mulher cozinha como eu gosto! Assim é que eu gosto!” Ele era assim do Norte… Fui aprendendo…fui aprendendo à minha custa.

P: Também costumavam ter convidados?

Rosa Maria: Era muito raro… Aquela senhora só teve um filho, e só quando o filho lá ia é que fazíamos…o que a mulher não fazia em casa era o que ele me pedia fazer…

P: Nunca foi repreendida em público que não tivesse gostado?

Rosa Maria: Ali naquela casa, não. Mas quando saí de lá fui para outra e aí já sofri um bocadinho… (fala em tom muito baixo)

P: Deram-lhe alguma vez prendas, ou recompensas?

Rosa Maria: Quando era no Natal, aquela professora dava-me um lencinho de mão, uma coisa pequenina…(E disse que, às vezes, o patrão era brincalhão, porquê?) Era assim coisas de galhofa…do género “Oh Maria, hoje estás na boa?” E eu naquela altura dizia-lhe: “Estou na broa, estou.” Depois ele começava a contar-me aquelas histórias lá de África…E eu dizia-lhe, porque ele trouxe uma cambada de filhos de lá: “Então se você trouxe os filhos porque é que não trouxe também a preta?”, - “Porque ela não quis vir!” – dizia assim (começa a rir-se).

P: Ele não se ofendia?

Rosa Maria: Não!...Às vezes, chegava ao pé deles e dizia “Eu agora vou-me deitar, estou cansada.” E ele respondia, “Não, anda aqui um bocadinho para ao pé da gente, anda lá…” Não, ele era muito boa pessoa.

P: Então esses patrões já eram mais próximos?

Rosa Maria: Aqueles eram. Ela é que era assim professora primária e já se sabe como é que é, não é? Por isso eu ainda outro dia disse: Os pais agora vão às escolas porque os professores batem nos filhos. Quem me dera a mim que me tivessem dado porrada na escola. (os seus patrões nunca quiseram ensiná-la a ler?) Não, eu estive em casa de duas professoras primárias, não é? Nunca puxaram para me ensinar! Depois, quando eu saí lá dessa professora é que fui para uma casa de onde me casei. Essa professora, depois…havia as escolas nocturnas, e ela disse: “Olha Maria, abriu a escola à noite, para as pessoas que quiserem ir aprender. Eu dou-te aquelas duas horas que é para tu ires aprender a ler.” Não sei se tinha 21, se era 22…ainda andei ali…fiz a primeira classe, depois passei para a 2ª, depois andei na 2ª até ao meio, só cheguei ao meio da 2ª classe…Depois comecei a namorar o meu marido, depois entretanto eles quiseram que eu me casasse e eu desisti da escola…

P: Eles, quem?

Rosa Maria: A minha patroa. Eu estava a servir à minha cunhada, que era afilhada da minha patroa. Aí é que eu sofri, aí é que eu sofri (num tom muito baixo) Ela tratou-me muito mal..

P: Os patrões naquela altura substituíam um pouco os pais…lembra-se de pensar isso?

Rosa Maria: Não, não…nunca foi assim. Esta patroa para onde eu fui quando me casei…quando eu fui para lá o marido tinha-lhe dado uma trombose, ali ainda fui bem tratada que ela era daquelas pessoas que se levantava às seis e depois ia para a missa. Chegava a casa já era uma e tal da manhã…A essa hora eu já tinha dado de comer ao homenzinho…que ele coitadinho também não segurava as fezes…E eu um dia estava deitada, também aí tinha o meu quartinho, tinha a casa de banho em ordem e ele coitadinho aparece-me no meu quarto despido da cintura para baixo e…todo sujo….E ele começa assim: “Oh menina!...! – “O que é que foi?...” – “Oh menina, anda-me acudir!” – Fui dar com ele… meti-o dentro da banheira…despi o homem e era o homem a chorar e eu…nunca tinha feito aquilo…eu era uma miúda, devia ter 22…eu nunca tinha visto nenhum homem nu…e era ele a chorar e eu…depois quando ela chegou ele já estava tratado. E ele “Esta mulher!...Anda sempre na missa!...Não me liga nenhuma…se não fosse a rapariga…coitadinha da menina, teve que me estar aqui a lavar. Olha, ficas avisada, quando ela se casar fazes-lhe o casamento. Até um certo ponto ela também foi minha amiga…No princípio, não queria que eu me casasse. Mas depois, enquanto eu não casei, não descansou..

P: E porque é que saiu daquela segunda vez?

Rosa Maria: Porque ela me bateu. Ela bateu-me, mas depois bateu-me uma segunda vez. A primeira eu fiquei. Depois à segunda eu quis vir-me embora….

P: Porque é que lhe bateu?

Rosa Maria: Há certas coisas que eu também já não me recordo muito bem, mas ela embirrava com tudo…Vinha da escola, e quando via que com os miúdos havia alguma coisa que não estava bem, eu é que pagava…porque ela também era professora primária. Ela dava aulas à 3ª e à 4ª. Ela tinha as 2 classes…depois, às vezes, chegava a casa e coitada…chorava, e depois começava a ralhar comigo por qualquer coisa, e depois eu refilava… quando saí dessa, fui servir para casa de uma enfermeira, fui para casa de uma enfermeira aonde tinha um bebé pequenino. Tinha…parece que era um mês e meio. Agora tem-se quatro meses de licença de parto. Naquela altura era só 1 mês. E ela passou aquele mês e eu fui para lá para tomar conta do menino. Era enfermeira no Hospital da Cuf. Eu tinha que tomar conta da casa, fazer tudo e tomar conta do menino. Mas, em primeiro lugar, era para tratar do menino…. Quando a patroa estava em casa, dava o peito ao menino. Quando calhava dar a mama ao menino na hora do turno, ela tirava o leite com a bomba e ele ia buscar o leite e depois eu dava ao menino…. uma vez ele não me aparecia…o menino a chorar e eu não conseguia adormecê-lo…e ele não chegava. E que é que eu faço? Pus-me…tinha deixado o menino em casa e ia buscar o leite ao hospital da Cuf. E o eléctrico não vinha…e o que é que eu faço? Pus-me a correr! Pus-me a correr até ao hospital da Cuf. Cheguei lá e ela deu-me o leite e disse: “Agora meta-se no eléctrico! Eu vim a correr até chegar a casa e dar o leite ao miúdo, já o patrão estava em casa… “Onde é que você foi que deixou o menino sozinho?” – “Ai eu fui buscar o leite ao menino…” Porque a gente andava sempre à guerra um com o outro. Ela é que gostava muito de mim. Andávamos sempre à birra um com o outro. Quando a senhora ia trabalhar, por exemplo, das quatro às meia-noite, se eu me despachava antes de ela chegar, levava o menino para o meu quarto…Se ele ainda estava a pé…outras vezes ele chegava e levava o menino para o quarto dele….Uma vez ele chega a casa e o menino estava no meu quarto, e ele costumava bater à porta a perguntar por mim…Naquele dia ele vinha bêbado e abriu a porta do meu quarto e entrou por ali a dentro…E eu disse: “O que é que o senhor quer daqui?” – “Quero o meu filho.” – “O seu filho não sai daqui. Está a dormir. Vá para o seu quarto e deixe estar a criança que você não está em condições de tomar conta dela.” – “Quem é que manda aqui? Sou eu ou é você?” – “O senhor manda no seu quarto. Eu mando no meu.” – “Aqui a casa é minha.” – “A casa é sua, mas o quarto é meu…Eu estou aqui. O quarto é meu. Quando eu cá estou dentro. Por isso, ou você se vai embora ou eu mando-lhe um cesto em cima.” – Nisto, entra a patroa…, mas ela era muito boa…porque eu tive sempre medo de casais novos, ou que tivessem filhos, porque tinha conhecimento de raparigas que já tinham engravidado dos patrões ou dos filhos e eles obrigavam-nas a fazer o aborto, ou então as patroas já sabiam do que se estava passar e punham-nas na rua. Agora eu, se me acontecesse isso, o que é que fazia? Naquela altura…não sei se ainda hoje, mas naquela altura havia as Casas de Santa Zita, que era para onde as raparigas, as que ficavam grávidas dos patrões e eles punham-nas na rua, que era para onde elas iam. Naquela altura havia duas raparigas que eram minhas conhecidas. Ficaram grávidas e tiveram que fazer aborto. Os patrões não lhe pagavam…elas também não tinham dinheiro…porque naquela altura para se fazer um aborto tinha que se ter certos conhecimentos…depois elas iam para lá. Depois criavam lá os filhos e arranjavam emprego… e então eu tive sempre muito medo, eu tive sempre muito medo de ir para alguma casa dessas pessoas para me fazerem mal e depois eu ficava…naquela altura dizia-se que era uma “desgraçada”!...

P: Em Lisboa falavam muito nesses perigos, não era?

Rosa Maria: Pois, pois… (conheceu pessoas nessa situação?) Eram criadas de servir… então eu tinha muito medo. Quando eu me vim embora da casa da enfermeira, fomos ver uma casa ali no Rossio. E então essa senhora estava a dizer como é que eram as regras da casa…e depois estava a dizer: “Olhe, fica com os meninos…está ali o quarto dos meninos…depois estava a dizer o lugar onde ficavam os sapatos…” Você quando se levantar engraxa os sapatos e vem pô-los aqui, e depois vai fazer os pequenos-almoços”. – “Está bem.” – Cheguei cá fora e disse à Lucinda que tinha ido comigo: - “Oh Lucinda, eu não quero ir para aqui.” – “Então porquê?” – “Não quero. Ela tem filhos. Eu não quero ir para aqui.” E então fui lá para aquela casa em que eu lhe dava banho e essas coisas todas.

P: Alguma vez os filhos se puseram a seu lado contra os pais?

Rosa Maria: Nunca servi em casas com filhos. Ou eram velhos, ou tinham já os filhos casados. Ou eram aqueles bebés de quem eu ia tomar conta. Mas casais com filhos já homens nunca estive. Se eu fosse à procura de casa e me dissessem que tinham filhos já homens, eu não queria.

P: Tinha férias?

Rosa Maria: Férias? (Desata a rir sem som) Havia férias naquela altura? (estou a perguntar-lhe….) Não havia férias…Eu nunca tive férias…(No verão, não ia para lado nenhum?)...Ia com os patrões…Quer dizer, com aqueles velhotes que eu tive, íamos para as férias deles. Esses íamos sempre para lá dois meses. Agora com os outros, não. Nunca tive férias. (e no verão o serviço era o mesmo?) Era a mesma coisa.

P: Nunca ia à sua terra?

Rosa Maria: Não…só ia à terra pela Páscoa. Pela Páscoa é que eu ia no Sábado de Aleluia e depois vinha na segunda-feira. Passava lá o Domingo.

P: E era bem recebida pelas pessoas da terra?

Rosa Maria: Era, porque éramos muitas. Naquela altura muitas raparigas vinham servir por que a vida do campo não era…A gente saía com o cabelinho curtinho e quando lá ia já ia com o cabelinho cortado, já íamos assim com uns sapatinhos novos para a gente mostrar que a gente lá na cidade vivia-se melhor do que lá na província. (havia inveja?) (risos) Uma vez, quando fui lá passar a Páscoa, eu tinha comprado um fio de ouro, com uma medalha…as raparigas começaram a dizer que aquilo tinha sido um amante que eu cá tinha que me tinha dado o fio…Naquela altura, se a gente aparecesse com certas coisas era logo porque tínhamos aqui alguém que nos dava prendas….”Sabe-se lá o que andam a fazer!...” – Mas eu, graças a Deus…

P: Conseguiu poupar? Já ganhava um pouco melhor?

Rosa Maria: Já ganhava, parece-me que era 200$00. (E isso em relação às outras profissões?) Sim, já era melhorzinho. Eu, sem saber ler nem escrever, ter assim um ordenadinho de 200$00 ao fim do mês já não era nada mau…Naquela altura já me considerava uma criada bem paga. (e poupava?) Eu não gastava…não ia ao cinema, não ia a lado nenhum, era só as saídas de vir para aqui assim (Bairro Alto). Eu não gastava dinheiro nenhum. A gente poupava assim um dinheirito…

P: Mas passeava…

Rosa Maria: Às vezes, eu e as minhas colegas íamos até ao Castelo de São Jorge ou íamos até ao cimo do Parque Eduardo Sétimo, eh…havia lá um bailarico todos os domingos à tarde, e então a gente ia para lá…(risos) Havia lá um acordeãozito e a gente também dançava… (mas não eram músicas modernas…) Não, eram músicas daquela altura! Por isso é que eu digo: hoje, se fosse a um baile, não sabia nada porque é só bandas, não é? Naquela altura era só acordeão. Era aquelas músicas que agora não há. Quer dizer, agora há, mas é o rancho folclórico…

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