"Entre gaiolas", - Entrevista a Márcia Figueiredo

Item

Tema

Trabalho Hoteleiro: Governanta

Título

"Entre gaiolas", - Entrevista a Márcia Figueiredo

Entrevistado

Márcia Figueiredo (nome fictício)

Resumo

Márcia Figueiredo chegou à Hotelaria depois de o seu contrato temporário de trabalho não ter sido renovado quando engravidou e trabalhava numa escola assumindo funções de auxiliar de ação educativa. Recrutada para o trabalho de limpeza de quartos, aprendeu a pulso as manobras de gestão dos objetos com a rapidez necessária para cumprir os requisitos de competência para o trabalho. Fala com dor da passagem de trabalhadora a governanta, porque lhe custa a alteração da relação de poder com ass trabalhadoras que, outrora, eram seus pares. E também da crueldade dos clientes que sujam e danificam os quartos como se isso não exigisse das empregadas as horas extras.

Data de recolha do testemunho

janeiro de 2016

Local de recolha

Lisboa

Recurso

Transcrição de entrevista por gravação em áudio e fita magnética

Autor da recolha

Inês Brasão

História do trabalho hoteleiro

P: Como começou a trabalhar neste hotel?

Márcia Figueiredo: Comecei como empregada de andares. Antes disso era auxiliar de ação educativa (murmura). Entretanto, essa minha profissão acabou porque engravidei…e já não servi. Fiquei com uma criança pequenina. Vim à procura de trabalho e foi aqui que comecei e aprendi tudo. Vim para fazer quartos. Depois, a minha governanta enquadrou-me no turno da tarde que é o turno onde se sabe tudo porque é o turno em que se faz um bocadinho de tudo. O turno que começa entre as 15h e as 15h30 é o que faz todas as áreas do hotel. Depois temos das 8h às 16h30 que só fazem quartos. Depois temos um turno entre as 14h30 e as 22h30 que faz tudo. Entregam coisas aos quartos e, como ficam sozinhas, têm de aprender tudo porque ficam duas pessoas sozinhas a tratar de todo o departamento. Ficam responsáveis pela limpeza, organização. Fazem a contagem do minibar dos quartos, entregam a roupa dos clientes, limpam o restaurante e resolvem pequenas avarias que são detetadas: foi por isso que eu passei. O número total de empregadas ronda os vinte e cinco.

P: Foi difícil a adaptação a uma nova forma de trabalho?


Márcia Figueiredo: No primeiro dia em que fiquei sozinha tive que me desenvencilhar, do tipo, “Caiu uma porta! Vanda, vai lá ver!” Tive de aprender a desenvencilhar-me por mim própria. Agora faço apenas supervisão para ver se está tudo bem. Dantes era eu quem reparava. Dantes fazia os quartos e limpava, tal e qual como uma empregada. Agora não. Um quarto demora meia-hora a limpar. Se for um quarto que está todo virado e muito mau, demora mais tempo. Quando a pessoa é mais organizada e deixa as coisas mais ou menos no sítio leva menos tempo. A primeira coisa a fazer é abrir a janela para arejar. Depois, é tirar roupa suja, tirar lixos. Pronto: sai tudo do quarto e vai para o carrinho de roupa suja. Cada funcionária carrega dois carrinhos, um balde, a esfregona e um aspirador. Há um carrinho que montam no início do dia com tudo o que o quarto leva: os papéis, os bombons… e depois há um saco vazio, preto, onde nós pomos a roupa suja. Nada pode ser misturado até porque ainda tem que ser feita a reciclagem: um saquinho de cada cor para todo o tipo de lixo e é assim que funciona. Aqui nós fazemos 16 quartos. Quando distribuo quartos: distribuo 16 para cada uma delas. Para mim, o trabalho mais difícil é o trabalho de andares. Porquê? Porque é o mais trabalhoso, é o mais exigente, é o que tem que ser mais perfeito, apesar de eu achar que tudo tem que estar bem. Mas é puxar uma cama, a casa-de-banho, os inox têm que estar todos impecáveis.

P: O que pode correr mal?

Márcia Figueiredo: Por exemplo, eu, uma vez, à noite, entrei dentro de um quarto. Tínhamos uma companhia aérea e quando entrei no quarto deu-me vontade de fechar a porta e ir embora porque eu tinha as camas separadas, com a mesa do terraço dentro, com camarões por todo o lado, sacos de comida por todo o lado, os móveis retirados dos sítios…eu olhei e apeteceu-me fechar tudo. Também já aconteceu chegarmos e ver a cabeceira toda danificada de cigarros, com buraquinhos, com camas manchadas de vinho. Temos clientes muito diferentes. Às vezes parece que passou por ali um furacão. Um dia bato à porta do cliente e digo “housekeeping, housekeeping” e nada. Ninguém responde. Quando entro e ponho o cartão para acender a luz, tinha uma pessoa toda nua em cima da cama. Não me ouviu (risos)

P: É difícil gerir todos os objetos dos clientes, em termos de arrumação?

Márcia Figueiredo: Em regra, temos ordem para não mexer nos objetos pessoais, a não ser que atropele a limpeza. Por aí, consegue-se tirar um pouco da personalidade do cliente: uns sapatos mais chiques, o computador pessoal. Dá para ver o perfil, sim.

P: Qual é o kit de cada quarto?

Márcia Figueiredo: Para um quarto de casal, 3 lençóis, 4 fronhas, 2 banhos, 2 rostos, um tapete, papel higiénico, shampôs e sabonetes. Se for familiar, já passa a 12 lençóis e multiplica-se tudo por dois.

P: Costumam conhecer os clientes?

Márcia Figueiredo: Nem sempre os clientes estabelecem uma abordagem no corredor. Às vezes é mesmo o mais completo silêncio, passando por cima do cumprimento matinal. Os clientes queixam-se muito do aspirador porque querem dormir…

P: É muito duro, este trabalho?

Márcia Figueiredo: Quando falta aqui alguém, isto é obra. Eu tenho a minha filha na cresce e um marido que apoia. A passagem para a supervisão foi porque eu já sabia um pouco de tudo e, no fundo, eu já geria o meu turno. Então comecei a gerir o serviço, a lidar com elas: elas também começaram a ter uma aproximação a mim diferente e era comigo que vinham falar. Quando eu fazia quartos chegava ali, tirava a roupa e limpava! Hoje, não. Hoje entro dentro de um quarto e tenho que ver se alguém limpou bem. Se não, tenho que chamar a atenção: por exemplo, um vidro. Por exemplo, deixar o espelho de aumento do lado errado, ou se deixam os carros arrumados. Eu tenho à minha responsabilidade quatro pisos e um determinado número de quartos. Tenho que inspecionar. Para mim, o mais difícil é confiar que essa pessoa vai fazer bem. Para mim, foi um bocado difícil coordenar as minhas colegas porque elas já foram minhas colegas. A lista de trabalhos modifica-se consoante o dia. Se eu tiver salas ocupadas como o dia de hoje, as meninas da tarde vão ter que fazer salas, para além dos quartos. Temos de gerir as prioridades.

P: Têm tempo para pausas?

Márcia Figueiredo: Nós também temos os nossos momentos de piadas. Este trabalho não é solitário, não, não. Nós também temos os nossos momentos de piadas. São umas quantas a aproveitar para ver a novela enquanto trabalhamos. No caso dos andares é mais solitário e têm de andar sempre a correr e chegam a conseguir ver um episódio, mas a partir de quartos diferentes. Mas fazem o trabalho delas e isso é que importa.

P: Como é o local de trabalho de uma governanta de andares?

Márcia Figueiredo: Isto é uma rouparia. É onde é guardada a roupa, é onde reunimos. Quando chegam, às oito da manhã, é aqui que se dirigem. Começamos a distribuir trabalho. Vêm aqui e recolhem as instruções de trabalho. Este espaço também serve para passar informação sobre o que se passou no dia anterior, por exemplo. Levam as chaves dos pisos e começam a trabalhar. À hora de almoço, descem e dão informação sobre os quartos que fizeram da parte da manhã e os consumos do minibar. Aqui há de tudo: as sapateiras, os copos e a base dos copos, peluches, peças de encosto do pescoço, menu de almofadas, lençóis de seda se o cliente quiser, café, máquinas e tabuleiros. Há um kit de detergentes (os cestos levam as amenities). O cliente também pode pedir chaleiras. Há a roupa de beliches, com motivos mais infantis. Há chapéus de sol que foram deixados por clientes. As gaiolas (são os carrinhos que levam as coisas). Tudo está por caixas, para facilitar a orientação.

P: Têm vestuário próprio?

Márcia Figueiredo: As empregadas têm os seus próprios sapatinhos confortáveis ou as crocs para trabalhar. As costas são as zonas mais sensíveis destes trabalhos. O facto de termos de puxar pelas costas…

P: Os clientes tentam enganar?

Márcia Figueiredo: Por exemplo, a batata frita, fecham para fingir que não consumiram. também fazem o mesmo com a água. Depois, a responsabilidade é nossa… fecham a latinha do amendoim e depois não sabemos que cliente foi…

Conjuntos de itens