"Tudo mentira que eles nunca fizeram mal às criadas" (Entrevista a Antónia Linhares)
Item
Tema
Trabalho Doméstico
Título
"Tudo mentira que eles nunca fizeram mal às criadas" (Entrevista a Antónia Linhares)
Entrevistado
Antónia Linhares (Nome fictício)
Resumo
A experiência de Antónia Linhares enquanto "criada de fora" na casa de uma personalidade ilustre não foi muito longa. Porém, a curta estada foi inversamente proporcional ao impacto que teve na sua vida e à importância do problema que esteve na base da dispensa de serviço por parte dos patrões, em particular, da patroa. Falamos de assédio. Ora, não só por esta razão nos importa conhecer a história de vida de Antónia Linhares. Neste percurso, tal como no de muitas outras trabalhadoras domésticas, fica marcado o elo estruturante entre o serviço doméstico, a pobreza e a doença, em particular como signo de famílias que viviam longe das cidades, marcadas pela mortalidade infantil e pelo trabalho precoce.
Data de nascimento
1922
Data de recolha do testemunho
6 de setembro de 2009
Local de realização da entrevista
Peniche
Recurso
Transcrição de entrevista por gravação em áudio
Autor da recolha
Inês Brasão
História de vida
P: Quantos anos tem?
Eu nasci no dia * de maio de 1922. Quantos tenho eu? (22 para 2009..vai fazer 87) Não!..No dia * de Maio, faço agora não sei quantos. Vou fazer 86. (Mostra-me o B.I.)
P: E nasceu cá?
Nasci na Amoreira, no concelho de Óbidos, distrito de Leiria. O meu pai era…tinha um talho, era só o que tinha. Tinham cabras e carneiros. Era só quem tinha um talho era ele.
P: E a sua mãe?
(Começa a chorar) A minha mãe, a minha mãe teve uma vida muito triste. A minha mãe era casada com um senhor, que ele era Casimiro, mas ele depois zangou-se com o irmão…não havia camionetas, havia só carroças. …A minha mãe era casada com esse senhor e tinham uma taberna lá em C.. Isto é um estudo. O irmão vinha com a carroça e zangaram-se os dois…e ele foi para cima do marido da minha mãe e caiu. Ele levava uma navalhinha para partir pinhões, era assim antigamente, e então picou-se. Ele disse que quando estivesse bom lhe fazia isto e fazia aquilo e depois infetou! Isto é o que eu oiço contar, da família dele. Depois ele foi mais a minha mãe para a Espanha. Lá na A.*, havia umas pessoas muito amigas dele, e depois pediram para o levar para a Espanha. Estiveram lá muito tempo e depois a minha mãe veio embora e ele como gostava muito dela, atravessou o Guadiana… mas ele sabia nadar, mas ou algum carabineiro viu aquela pessoa a fugir a nadar e deram-lhe um tiro e logo ele morreu. A minha mãe então foi para casa do Sr. Dr. J. S. V.*, aonde eu fui para lá também.
P: Teve muitos irmãos?
Sim, morreram dois, e agora morreu a minha irmã. Mas eu era gémea com um rapaz. A minha mãe em 18 meses teve 4. E a minha mãe ainda teve outro rapaz, mas os miúdos morreram. Isto é uma história muito grande e bonita…
P: Como é que era sua casa?
Era um quintal que era muito grande, mas o meu pai vendeu porque o meu irmão teve uma grande doença… o meu irmão mais velho, uma doença muito grande. E depois os remédios eram muito caros e o senhor doutor tinha de lá ir todos os dias. Depois, ele pôs-se bom, mas começou a beber e foi para o hospital de Óbidos e para lá ficou.
P: E foi à escola?
Fui. Os professores antigamente era só com quem eles queriam.
P: E gostava de ir à escola?
Gostava, gostava…
P: E todos os meninos iam?
Era tudo a ir para a escola. Quem tivesse ideia, saíam com a 4ª classe. Quem não tivesse ideia, não fazia exames, ia trabalhar. Dantes era assim.
P: E como é que foi no seu caso?
No meu caso não fiz a 4ª classe…faço muitos erros, mas ainda escrevo.
P: Consegue ler?
Tenho falta de vista, mas é muito caro e não sei como é que há-de ser isto (começa a procurar os óculos na mala). O que eu mais gostava de fazer eram as contas de dividir. Às vezes, faço…se me disserem aquele número…já sei. Só sabia era fazer contas de dividir. Multiplicar e somar não era assim grande coisa. E havia uma escola para rapazes, e outra para raparigas.
P: E os seus pais tinham muitas necessidades em relação às outras pessoas da terra?
Não, graças a Deus nunca passámos mal. Tínhamos um talho. O meu pai é que era muito agarrado ao dinheiro e às vezes não queria ir pagar…porque as lojas também lá iam aviar-se de carne e…o meu pai também ia gastar lá nas lojas deles. Quando era muito, se gastavam trinta contos, já ele ralhava. Das 3 lojas, veja lá. Já era um desalvoro lá em casa. Ele nunca bateu à gente, mas fazia muito mal à minha mãe porque ela só gostava era do marido. Quando o meu pai veio da América é que fizeram aquele casamento.
P: Como é que foi para Lisboa para servir?
Fui para casa do Dr. de V.
P: foram os seus pais que quiseram?
Não, eles eram unidos, eu é que quis ir.
P: E quantos anos tinha nessa altura?
Tinha 17. Em casa do Dr. de V., eles gostavam muito de mim. E depois vim-me embora. Vim-me embora sabe porquê? Havia lá na A.* muita gente a querer ir para aquela casa…do Dr. dde V. …e da Dona C. E eles tinham os meninos doutores…que um deles ainda dá na televisão.
P: Onde era essa casa?
Em Lisboa, na Avenida 5 de Outubro. Parece-me que era na Avenida 5 de Outubro.
P: E como é que lá chegou?
Foi de camioneta!... Naquela altura, havia umas camionetas pequeninas. Já havia aquelas camionetas pequeninas de carreira. De maneira que estava lá uma criada à minha espera. Lá na… (e não ia triste nem chorou?) Não, não. Ia contente e estavam lá umas senhoras. Elas foram, lá na A., e começaram a dizer que os meninos que eram muito malandros, mas era tudo mentira. Nunca me ofenderam coisa nenhuma. Ela era muito ciumenta e estava com medo de que me fizessem mal e escreveu uma carta lá para Lisboa…e eu tinha aquilo arrecadado. E a doutora foi ler a carta, foi ler a carta onde dizia que os meninos eram muito maus e tudo mentira. Eles eram doutores, ainda hoje é o doutor F.. E depois a Dona C. disse-me assim: “Antónia, tem que se ir embora” – “Então porquê? Eu gosto de estar cá. Porquê?” – “Porque a sua mãe escreveu uma carta.” – “Isso são coisas da minha mãe.” – Ela também lá teve as filhas. Elas davam confiança a eles. A mim eles nunca me fizeram mal, eu ia à Praça da Figueira e vinha e ninguém me fazia mal, ninguém, ninguém. Nunca ninguém me ofendeu lá.
P: Nunca teve razão de queixa?
Não, não. Elas tinham. Uma ainda era casada… (silêncio)…aqui em P*, um que era mestre da música, o sr.…
P: E estavam todas lá em casa?
Estavam. As criadas de servir eram… eram 3. Uma cozinheira…eu era a criada de fora (de passar a ferro) e a outra era de pôr as mesas. Eram 3 criadas. E então a patroa disse: “Antónia” – “Diga-me, Sra. Doutora” – “Pois eu vi uma carta a dizerem que vocês que dizem que os meninos que são…que são maus. Eles não querem fazer mal às criadas.” Eles tiveram muitas pessoas a quem eles fizeram…, mas a mim, não. Eu lavava a roupa e passava a ferro. Era a minha limpeza. A outra era de fora e a outra era cozinheira. A outra era de pôr as mesas, de pôr os pratos, e eu era de passar a ferro. Eram 3 criadas.
P: E onde é que dormia?
Dormia num quarto ao pé da cozinheira. A cozinheira dormia sozinha. (tinha casa de banho?) Tinha. (tinha janela?) Tinha. Era a rua de S.. Tinha isso tudo. E a gente tinha as janelas viradas lá para o hospital.
P: Davam-se bem umas com as outras?
P: As criadas? O pior era com a cozinheira. (Porquê?) Porque ela não era boa. Ralhava com a gente. Ralhava com a gente. Não sei o que é que ela dizia, já não me lembro. Ralhava comigo e com a Soledade. Com a Soledade era mais. Eu estava sempre cá em baixo a lavar a loiça. Naquela altura, não havia máquinas de lavar, não havia nada. Mas eu era danada para trabalhar. Elas tinham umas carpetes grandes, naquele tempo antigo. E eu levantava a carpete, punha a carpete cá fora na janela, sozinha, e limpava-a toda com uma escova. Ainda era com uma escova de esfregar, que era como se tirava melhor. “Então o que é que está a fazer menina Antónia?” “Então estou a limpar a carpete. Isto está tudo cheio de pó, por baixo e tudo.” E a passadeira era como daqui a…sei lá, era muito longe. E eu levantei a passadeira. Mas aquela gente não estava nada acostumada a isso. Então levei a passadeira lá para baixo e lavei-a toda. E disse assim: “Sra. Doutora, olhe que eu lavei a passadeira toda. Aquilo não estava capaz. Eu tirei duas pazadas de lixo ou três debaixo da passadeira.” E ela ficou contente, ela gostava muito de mim. (Antónia muda de assunto repentinamente) A minha mãe era muito nervosa e foi dizer que os miúdos [filhos do patrão] eram malandros. E ela (a patroa) disse: “Antónia!” - “Ai eu não vou Sra. Dra., eu não me vou embora.” Não, eu gostava de lá estar.
P: A que horas é que tinha de se levantar?
...levantava-me assim às 9 horas. Eu depois ia engraxar os sapatos ao Senhor Doutor lá para um sítio que aquilo era tudo mobílias muito antigas. Era uma casa muito… (Era uma moradia ou um prédio?) Um prédio: a gente entrava e… cá em baixo não morava ninguém. Só morava era o caseiro. Via as pessoas que entravam e as pessoas que não entravam. E eu um dia não o conheci e tive medo. “Mas o que é isto?” – “Oh, minha senhora, oh, minha senhora…” - Eu julgava que o homem vinha-me agarrar, mas não vinha. Estava sempre lá, mas eu nunca o lá tinha visto, e ganhei medo. Ele estava na parte de baixo, que era uma entrada. Eles eram muito políticos e tinham medo dos partidos das direitas. Eram políticos e tinham medo de que às vezes houvesse qualquer coisa. “Eh, vocês não abram as janelas!!” – Que eles sabiam que quando havia qualquer coisa…Ele era Diretor do * Era Diretor! E o Dr. F. fazia operações. Era cirurgião. E tinha outro que era das águas…não. Não, da Luz, mas morreu. Morreu quando eu já tinha vindo para cá. Na rua de S. havia muitas oficinas. (muda de tema repentinamente) Elas é que dão confiança (as outras criadas) e depois os patrões é que têm a culpa. Olhe, eu nunca dei. Nunca lá foi ninguém a perguntar por mim.
P: E tinha folgas?
Tinha, mas eu nunca ia porque tinha medo de ir sozinha. Ia à praça da Figueira. Mas uma vez eu perdi-me na Praça da Figueira e não sabia ir para a rua de S.. Perdi-me e fui ter com um guarda. A minha ideia! Eu era mais nova tinha 17, não. Tinha 16. E depois eu fui dizer a ele que tinha medo, mas não havia malandragem naquele tempo. Não! As pessoas corriam tudo e ninguém lhes fazia mal.
P: Nunca ia a um baile?
Não. Nunca fui passear com ninguém. Eu ia a casa duma tia que morava para cima da Bica, lá em cima. Às vezes, eu ia lá a casa delas. E eu disse assim: “Oh minha senhora, eu não quero ir para a Amoreira.” – “Não, a Antónia não pode ficar porque a sua mãe escreveu-me e agora eu tenho de ser representada” - toda chateada que eu gostava muito de lá estar. Depois, as minhas tias vieram da A. abrir aqui um restaurante e eu vim para cá. Eu namorava lá com um rapaz de A. que morreu agora. Ele nunca teve filhos., era do Norte, estava em Cascais. Casei com o meu marido. Ele era casado pelo civil e lá em A. o que interessa é casar pela igreja, o registo não tem valor, é como um rapaz solteiro. Juntei-me e casei-me com o meu marido. Nessa altura, trabalhava num restaurante com a minha tia. Fazia tudo: fazia o comer.
P: E nunca mais foi servir?
Não, fiquei a trabalhar com a minha tia. Mas eu gostava era de estar em Lisboa.
P: Quando foi servir para Lisboa, sentiu muito diferença da sua terra para Lisboa?
Ah, ali era toda a diferença. (Tinha que usar a farda?) Tinha (Como era?) Era azul, aos quadradinhos. Ao Senhor Doutor ainda ofereci muitas coisas. Ah, e estive no arroz. Estive no arroz. O arroz era semeado, não era como ali…a gente semeava os três pezinhos. Era muito frio, era em março. É por isso é que eu estou aqui à rasca de uma perna. Mas quem ganhava mais era eu e mais a Preciosa, e a Isabel. A gente as três é que ganhava mais porque eles viam que a gente é que trabalhava mais, ali na D. E vinha gente lá do Norte. Comíamos sangalhos, aquilo que dão aos coelhos. Faziam o feijão e depois migavam as serralhas. Punham a hortaliça para a gente…as serralhas até eram boas. Os coelhos engordam com as serralhas.
P: E na casa de Lisboa, comiam aquilo que os patrões comiam?
Era a mesma que os patrões comiam. Se era sopa, era igual à delas. Se era cozido, era igual ao deles. Era tudo igual.
P: E tinham muitas visitas?
Sim, tinham muitas visitas. Então ao Dr. de V.… davam cabritos. E depois, o Senhor Doutor disse: “Mas o que é que ela está a fazer?” Estava a amanhar o cabrito, a tirar-lhe a pele, a ver se tinham algum mal. Aquela gente saloia estavam lá no hospital, e eles faziam ofertas. Davam galinhas, davam coelhos, davam cabritos. Eu é que arranjei o cabrito, estava habituada: esfolei-o e arranjei-o. – “Ai, ai, …então e vossemecê não sabe? Também não é operador? Também é operador. Não tira é a pele, mas é operador.”
P: Não a repreendiam?
Não, ela [a patroa] até me dava do melhor e dizia: “Toma lá, Antónia.” Para as outras não verem. (era a preferida da patroa?) Era (o que é que ela lhe dava?) Olhe, dava-me bolo que não dava às outras… - “Não diga nada, está bem?” e eu ia lá para baixo e comia-o. Para ao pé da roupa. Eles hoje em dia já morreram todos. Só se for a Maria João que ainda esteja viva. E é assim a vida. Depois vim para casa dos meus filhos. Trabalhei muito. Fazia o comer porque era ali ao pé da Praça.
(silêncio)
O meu marido era contramestre de um barco. Agora precisava era de ir para um Lar. A minha filha não pode estar aqui e eu precisava de ir para um lar, pronto. Eu só tenho a pensão. Eu gostava de ir para um Lar. Mas eu tenho ali uma casinha com renda. Eu queria ir para as Caldas (quantos filhos teve?) Tive 3 filhos, morreu o meu filho (começa a chorar). Ele era primeiro-marinheiro e morreu a ser puxado por um cabo. (muda de tema repentinamente) Eu ficava danada era quando os patrões iam presos porque eram contra o Salazar. E depois elas diziam que eu que era comunista. Mas não era comunista, fui sempre socialista. Os comunistas tinham muito má fama. Agora já não têm. Eu ia lá ao forte, porque a minha tia tinha lá a pensão e eu levava comer para eles. A gente ia levar o comer quando o Álvaro cunhal estava preso lá. As empregadas da minha tia, a gente é que fornecia o comer para lá e havia uma senhora que trabalhava lá o marido e dizia: “Oh Antónia, quer ir ao forte?” – “Ai vocês vão? Então eu vou. E depois a gente cruzava-se ali com eles. Ia lá levar o comer aos guardas.”
P: Teve sempre saúde?
Sim, só uma vez é que tive uma depressão nervosa. Andava a curar-me no psiquiatra ali das Caldas. Já era casada. Já tinha os meus filhos (muda de tema repentinamente) A minha mãe era muito nervosa e começaram a dizer que os meninos faziam mal às criadas…tudo mentira que eles nunca fizeram mal às criadas. É que os meninos não têm ninguém e vão às criadas. É o que eles querem é ir às criadas. E era verdade. Isto havia de sair tudo na televisão. Isto é tudo verdade. Tudo verdade. Isto é a minha vida. Eu perguntei: “Como é que a senhora doutora soube isso? Foi lá ver a carta? Foi lá ler a carta, não foi?” - E eu fiquei muito aborrecida porque estava lá tão bem e elas gostavam muito de mim. Às vezes davam-me qualquer coisa: olha toma lá, toma lá e esconda. E eu ia lá para baixo.
P: Depois nunca mais viu essa família?
Não, nunca mais vi o menino P.
Eu nasci no dia * de maio de 1922. Quantos tenho eu? (22 para 2009..vai fazer 87) Não!..No dia * de Maio, faço agora não sei quantos. Vou fazer 86. (Mostra-me o B.I.)
P: E nasceu cá?
Nasci na Amoreira, no concelho de Óbidos, distrito de Leiria. O meu pai era…tinha um talho, era só o que tinha. Tinham cabras e carneiros. Era só quem tinha um talho era ele.
P: E a sua mãe?
(Começa a chorar) A minha mãe, a minha mãe teve uma vida muito triste. A minha mãe era casada com um senhor, que ele era Casimiro, mas ele depois zangou-se com o irmão…não havia camionetas, havia só carroças. …A minha mãe era casada com esse senhor e tinham uma taberna lá em C.. Isto é um estudo. O irmão vinha com a carroça e zangaram-se os dois…e ele foi para cima do marido da minha mãe e caiu. Ele levava uma navalhinha para partir pinhões, era assim antigamente, e então picou-se. Ele disse que quando estivesse bom lhe fazia isto e fazia aquilo e depois infetou! Isto é o que eu oiço contar, da família dele. Depois ele foi mais a minha mãe para a Espanha. Lá na A.*, havia umas pessoas muito amigas dele, e depois pediram para o levar para a Espanha. Estiveram lá muito tempo e depois a minha mãe veio embora e ele como gostava muito dela, atravessou o Guadiana… mas ele sabia nadar, mas ou algum carabineiro viu aquela pessoa a fugir a nadar e deram-lhe um tiro e logo ele morreu. A minha mãe então foi para casa do Sr. Dr. J. S. V.*, aonde eu fui para lá também.
P: Teve muitos irmãos?
Sim, morreram dois, e agora morreu a minha irmã. Mas eu era gémea com um rapaz. A minha mãe em 18 meses teve 4. E a minha mãe ainda teve outro rapaz, mas os miúdos morreram. Isto é uma história muito grande e bonita…
P: Como é que era sua casa?
Era um quintal que era muito grande, mas o meu pai vendeu porque o meu irmão teve uma grande doença… o meu irmão mais velho, uma doença muito grande. E depois os remédios eram muito caros e o senhor doutor tinha de lá ir todos os dias. Depois, ele pôs-se bom, mas começou a beber e foi para o hospital de Óbidos e para lá ficou.
P: E foi à escola?
Fui. Os professores antigamente era só com quem eles queriam.
P: E gostava de ir à escola?
Gostava, gostava…
P: E todos os meninos iam?
Era tudo a ir para a escola. Quem tivesse ideia, saíam com a 4ª classe. Quem não tivesse ideia, não fazia exames, ia trabalhar. Dantes era assim.
P: E como é que foi no seu caso?
No meu caso não fiz a 4ª classe…faço muitos erros, mas ainda escrevo.
P: Consegue ler?
Tenho falta de vista, mas é muito caro e não sei como é que há-de ser isto (começa a procurar os óculos na mala). O que eu mais gostava de fazer eram as contas de dividir. Às vezes, faço…se me disserem aquele número…já sei. Só sabia era fazer contas de dividir. Multiplicar e somar não era assim grande coisa. E havia uma escola para rapazes, e outra para raparigas.
P: E os seus pais tinham muitas necessidades em relação às outras pessoas da terra?
Não, graças a Deus nunca passámos mal. Tínhamos um talho. O meu pai é que era muito agarrado ao dinheiro e às vezes não queria ir pagar…porque as lojas também lá iam aviar-se de carne e…o meu pai também ia gastar lá nas lojas deles. Quando era muito, se gastavam trinta contos, já ele ralhava. Das 3 lojas, veja lá. Já era um desalvoro lá em casa. Ele nunca bateu à gente, mas fazia muito mal à minha mãe porque ela só gostava era do marido. Quando o meu pai veio da América é que fizeram aquele casamento.
P: Como é que foi para Lisboa para servir?
Fui para casa do Dr. de V.
P: foram os seus pais que quiseram?
Não, eles eram unidos, eu é que quis ir.
P: E quantos anos tinha nessa altura?
Tinha 17. Em casa do Dr. de V., eles gostavam muito de mim. E depois vim-me embora. Vim-me embora sabe porquê? Havia lá na A.* muita gente a querer ir para aquela casa…do Dr. dde V. …e da Dona C. E eles tinham os meninos doutores…que um deles ainda dá na televisão.
P: Onde era essa casa?
Em Lisboa, na Avenida 5 de Outubro. Parece-me que era na Avenida 5 de Outubro.
P: E como é que lá chegou?
Foi de camioneta!... Naquela altura, havia umas camionetas pequeninas. Já havia aquelas camionetas pequeninas de carreira. De maneira que estava lá uma criada à minha espera. Lá na… (e não ia triste nem chorou?) Não, não. Ia contente e estavam lá umas senhoras. Elas foram, lá na A., e começaram a dizer que os meninos que eram muito malandros, mas era tudo mentira. Nunca me ofenderam coisa nenhuma. Ela era muito ciumenta e estava com medo de que me fizessem mal e escreveu uma carta lá para Lisboa…e eu tinha aquilo arrecadado. E a doutora foi ler a carta, foi ler a carta onde dizia que os meninos eram muito maus e tudo mentira. Eles eram doutores, ainda hoje é o doutor F.. E depois a Dona C. disse-me assim: “Antónia, tem que se ir embora” – “Então porquê? Eu gosto de estar cá. Porquê?” – “Porque a sua mãe escreveu uma carta.” – “Isso são coisas da minha mãe.” – Ela também lá teve as filhas. Elas davam confiança a eles. A mim eles nunca me fizeram mal, eu ia à Praça da Figueira e vinha e ninguém me fazia mal, ninguém, ninguém. Nunca ninguém me ofendeu lá.
P: Nunca teve razão de queixa?
Não, não. Elas tinham. Uma ainda era casada… (silêncio)…aqui em P*, um que era mestre da música, o sr.…
P: E estavam todas lá em casa?
Estavam. As criadas de servir eram… eram 3. Uma cozinheira…eu era a criada de fora (de passar a ferro) e a outra era de pôr as mesas. Eram 3 criadas. E então a patroa disse: “Antónia” – “Diga-me, Sra. Doutora” – “Pois eu vi uma carta a dizerem que vocês que dizem que os meninos que são…que são maus. Eles não querem fazer mal às criadas.” Eles tiveram muitas pessoas a quem eles fizeram…, mas a mim, não. Eu lavava a roupa e passava a ferro. Era a minha limpeza. A outra era de fora e a outra era cozinheira. A outra era de pôr as mesas, de pôr os pratos, e eu era de passar a ferro. Eram 3 criadas.
P: E onde é que dormia?
Dormia num quarto ao pé da cozinheira. A cozinheira dormia sozinha. (tinha casa de banho?) Tinha. (tinha janela?) Tinha. Era a rua de S.. Tinha isso tudo. E a gente tinha as janelas viradas lá para o hospital.
P: Davam-se bem umas com as outras?
P: As criadas? O pior era com a cozinheira. (Porquê?) Porque ela não era boa. Ralhava com a gente. Ralhava com a gente. Não sei o que é que ela dizia, já não me lembro. Ralhava comigo e com a Soledade. Com a Soledade era mais. Eu estava sempre cá em baixo a lavar a loiça. Naquela altura, não havia máquinas de lavar, não havia nada. Mas eu era danada para trabalhar. Elas tinham umas carpetes grandes, naquele tempo antigo. E eu levantava a carpete, punha a carpete cá fora na janela, sozinha, e limpava-a toda com uma escova. Ainda era com uma escova de esfregar, que era como se tirava melhor. “Então o que é que está a fazer menina Antónia?” “Então estou a limpar a carpete. Isto está tudo cheio de pó, por baixo e tudo.” E a passadeira era como daqui a…sei lá, era muito longe. E eu levantei a passadeira. Mas aquela gente não estava nada acostumada a isso. Então levei a passadeira lá para baixo e lavei-a toda. E disse assim: “Sra. Doutora, olhe que eu lavei a passadeira toda. Aquilo não estava capaz. Eu tirei duas pazadas de lixo ou três debaixo da passadeira.” E ela ficou contente, ela gostava muito de mim. (Antónia muda de assunto repentinamente) A minha mãe era muito nervosa e foi dizer que os miúdos [filhos do patrão] eram malandros. E ela (a patroa) disse: “Antónia!” - “Ai eu não vou Sra. Dra., eu não me vou embora.” Não, eu gostava de lá estar.
P: A que horas é que tinha de se levantar?
...levantava-me assim às 9 horas. Eu depois ia engraxar os sapatos ao Senhor Doutor lá para um sítio que aquilo era tudo mobílias muito antigas. Era uma casa muito… (Era uma moradia ou um prédio?) Um prédio: a gente entrava e… cá em baixo não morava ninguém. Só morava era o caseiro. Via as pessoas que entravam e as pessoas que não entravam. E eu um dia não o conheci e tive medo. “Mas o que é isto?” – “Oh, minha senhora, oh, minha senhora…” - Eu julgava que o homem vinha-me agarrar, mas não vinha. Estava sempre lá, mas eu nunca o lá tinha visto, e ganhei medo. Ele estava na parte de baixo, que era uma entrada. Eles eram muito políticos e tinham medo dos partidos das direitas. Eram políticos e tinham medo de que às vezes houvesse qualquer coisa. “Eh, vocês não abram as janelas!!” – Que eles sabiam que quando havia qualquer coisa…Ele era Diretor do * Era Diretor! E o Dr. F. fazia operações. Era cirurgião. E tinha outro que era das águas…não. Não, da Luz, mas morreu. Morreu quando eu já tinha vindo para cá. Na rua de S. havia muitas oficinas. (muda de tema repentinamente) Elas é que dão confiança (as outras criadas) e depois os patrões é que têm a culpa. Olhe, eu nunca dei. Nunca lá foi ninguém a perguntar por mim.
P: E tinha folgas?
Tinha, mas eu nunca ia porque tinha medo de ir sozinha. Ia à praça da Figueira. Mas uma vez eu perdi-me na Praça da Figueira e não sabia ir para a rua de S.. Perdi-me e fui ter com um guarda. A minha ideia! Eu era mais nova tinha 17, não. Tinha 16. E depois eu fui dizer a ele que tinha medo, mas não havia malandragem naquele tempo. Não! As pessoas corriam tudo e ninguém lhes fazia mal.
P: Nunca ia a um baile?
Não. Nunca fui passear com ninguém. Eu ia a casa duma tia que morava para cima da Bica, lá em cima. Às vezes, eu ia lá a casa delas. E eu disse assim: “Oh minha senhora, eu não quero ir para a Amoreira.” – “Não, a Antónia não pode ficar porque a sua mãe escreveu-me e agora eu tenho de ser representada” - toda chateada que eu gostava muito de lá estar. Depois, as minhas tias vieram da A. abrir aqui um restaurante e eu vim para cá. Eu namorava lá com um rapaz de A. que morreu agora. Ele nunca teve filhos., era do Norte, estava em Cascais. Casei com o meu marido. Ele era casado pelo civil e lá em A. o que interessa é casar pela igreja, o registo não tem valor, é como um rapaz solteiro. Juntei-me e casei-me com o meu marido. Nessa altura, trabalhava num restaurante com a minha tia. Fazia tudo: fazia o comer.
P: E nunca mais foi servir?
Não, fiquei a trabalhar com a minha tia. Mas eu gostava era de estar em Lisboa.
P: Quando foi servir para Lisboa, sentiu muito diferença da sua terra para Lisboa?
Ah, ali era toda a diferença. (Tinha que usar a farda?) Tinha (Como era?) Era azul, aos quadradinhos. Ao Senhor Doutor ainda ofereci muitas coisas. Ah, e estive no arroz. Estive no arroz. O arroz era semeado, não era como ali…a gente semeava os três pezinhos. Era muito frio, era em março. É por isso é que eu estou aqui à rasca de uma perna. Mas quem ganhava mais era eu e mais a Preciosa, e a Isabel. A gente as três é que ganhava mais porque eles viam que a gente é que trabalhava mais, ali na D. E vinha gente lá do Norte. Comíamos sangalhos, aquilo que dão aos coelhos. Faziam o feijão e depois migavam as serralhas. Punham a hortaliça para a gente…as serralhas até eram boas. Os coelhos engordam com as serralhas.
P: E na casa de Lisboa, comiam aquilo que os patrões comiam?
Era a mesma que os patrões comiam. Se era sopa, era igual à delas. Se era cozido, era igual ao deles. Era tudo igual.
P: E tinham muitas visitas?
Sim, tinham muitas visitas. Então ao Dr. de V.… davam cabritos. E depois, o Senhor Doutor disse: “Mas o que é que ela está a fazer?” Estava a amanhar o cabrito, a tirar-lhe a pele, a ver se tinham algum mal. Aquela gente saloia estavam lá no hospital, e eles faziam ofertas. Davam galinhas, davam coelhos, davam cabritos. Eu é que arranjei o cabrito, estava habituada: esfolei-o e arranjei-o. – “Ai, ai, …então e vossemecê não sabe? Também não é operador? Também é operador. Não tira é a pele, mas é operador.”
P: Não a repreendiam?
Não, ela [a patroa] até me dava do melhor e dizia: “Toma lá, Antónia.” Para as outras não verem. (era a preferida da patroa?) Era (o que é que ela lhe dava?) Olhe, dava-me bolo que não dava às outras… - “Não diga nada, está bem?” e eu ia lá para baixo e comia-o. Para ao pé da roupa. Eles hoje em dia já morreram todos. Só se for a Maria João que ainda esteja viva. E é assim a vida. Depois vim para casa dos meus filhos. Trabalhei muito. Fazia o comer porque era ali ao pé da Praça.
(silêncio)
O meu marido era contramestre de um barco. Agora precisava era de ir para um Lar. A minha filha não pode estar aqui e eu precisava de ir para um lar, pronto. Eu só tenho a pensão. Eu gostava de ir para um Lar. Mas eu tenho ali uma casinha com renda. Eu queria ir para as Caldas (quantos filhos teve?) Tive 3 filhos, morreu o meu filho (começa a chorar). Ele era primeiro-marinheiro e morreu a ser puxado por um cabo. (muda de tema repentinamente) Eu ficava danada era quando os patrões iam presos porque eram contra o Salazar. E depois elas diziam que eu que era comunista. Mas não era comunista, fui sempre socialista. Os comunistas tinham muito má fama. Agora já não têm. Eu ia lá ao forte, porque a minha tia tinha lá a pensão e eu levava comer para eles. A gente ia levar o comer quando o Álvaro cunhal estava preso lá. As empregadas da minha tia, a gente é que fornecia o comer para lá e havia uma senhora que trabalhava lá o marido e dizia: “Oh Antónia, quer ir ao forte?” – “Ai vocês vão? Então eu vou. E depois a gente cruzava-se ali com eles. Ia lá levar o comer aos guardas.”
P: Teve sempre saúde?
Sim, só uma vez é que tive uma depressão nervosa. Andava a curar-me no psiquiatra ali das Caldas. Já era casada. Já tinha os meus filhos (muda de tema repentinamente) A minha mãe era muito nervosa e começaram a dizer que os meninos faziam mal às criadas…tudo mentira que eles nunca fizeram mal às criadas. É que os meninos não têm ninguém e vão às criadas. É o que eles querem é ir às criadas. E era verdade. Isto havia de sair tudo na televisão. Isto é tudo verdade. Tudo verdade. Isto é a minha vida. Eu perguntei: “Como é que a senhora doutora soube isso? Foi lá ver a carta? Foi lá ler a carta, não foi?” - E eu fiquei muito aborrecida porque estava lá tão bem e elas gostavam muito de mim. Às vezes davam-me qualquer coisa: olha toma lá, toma lá e esconda. E eu ia lá para baixo.
P: Depois nunca mais viu essa família?
Não, nunca mais vi o menino P.