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Tema
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Trabalho Hoteleiro
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Título
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“Nós até somos muito bons. Demasiado.” (Entrevista a Simão Nevada)
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Entrevistado
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Simão Nevada
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Resumo
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Introdução ao trabalho de Simão Nevada, rececionista de hotel: Simão Nevada é o nome fictício de um rececionista de hotel. Consciente da exposição máxima inerente à função que ocupa, percebemos o quanto os elementos de trabalho emocional, como a ênfase na construção do sorriso e da empatia, são elementos infraestruturais da sua auto e heteroavaliação. Entre a noite o dia, a gestão burocrática e o imediatismo das questões de balcão, a receção é palco de um frenesim laboral em que cada segundo exige o máximo de cada trabalhador.
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Data de recolha do testemunho
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15 de janeiro de 2018
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Local de recolha
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Hotel (em Lisboa)
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Recurso
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Transcrição de entrevista por gravação em áudio
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Autor da recolha
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Inês Brasão
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História do trabalho hoteleiro
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P: Como começou a trabalhar este hotel?
Simão Nevada: Eu estive em Londres a trabalhar três anos e meio e vim a Portugal responder a uma entrevista. Tinha já enviado o CV para este Hotel, e depois acabei por ficar cá. Profissionalmente, sempre estive no mesmo ramo, o da receção. Vim com a estreia do Hotel.
P: Qual o papel da receção num Hotel?
Simão Nevada: A receção é o grau de exposição máximo, em termos laborais. Digamos que é o núcleo por onde tudo passa. Do ponto de vista das características mais importantes do rececionista, a coisa mais importante é o sorriso. É a primeira imagem com que o cliente fica, e que leva também do hotel. Mas também a simpatia, a disponibilidade. Isto também já vem da educação e também da própria personalidade da pessoa. As línguas são muito importantes também: o inglês, o francês e o espanhol. Aqui fala-se muito o francês e o espanhol, uma vez que se trata de um hotel de * e vêm aqui todas as nacionalidades. De dia, é mais o contacto com o cliente e, de noite, é mais trabalho de escritório, BackOffice, papeladas, relatórios, fecho do fim do dia… é mais trabalho operacional. À noite, o movimento já não é o mesmo. Tudo o que é burocracia é à noite.
P: Como funciona o vosso regime de turnos?
Simão Nevada: Há três turnos. Neste hotel, o horário mais turbulento é o da tarde. No geral, é sempre o da tarde. Um hotel como este está sempre a encher. A sair, já não é tão trabalhoso, é mais simples: chega, entrega a chave, paga o que tem a pagar e vai embora. Quando o cliente chega, à partida, ele quer saber tudo: o que é que a cidade tem, quais os serviços disponíveis, a nível de tours, visitas à cidade… tem que se ter sempre mais tempo para o cliente, o que por vezes também não é fácil... Nós temos que ter cultura geral. Temos que ter preparação para isso, a nível de comunicação social e jornais. Este turista também está interessado na nossa história, nos nossos restaurantes. Nós trabalhamos muito com restaurantes, a nível de passeios.
P: Se um cliente só tiver uma tarde, o que é que lhe vai aconselhar?
Simão Nevada: Depende... Se o cliente está mais voltado para os monumentos e ver a arquitetura de Lisboa, temos passeios, os autocarros turísticos da cidade, que podem sair a qualquer momento de vários pontos da cidade. Esse é o passeio mais rápido e mais indicado. As pessoas vão vendo cada ponto histórico, ou então podem sair para usufruir melhor. Nós ainda não trabalhamos muito com tutuques porque esses estão mais nas zonas históricas. É tentar avaliar o cliente que temos à frente, ser atento ao detalhe: pela conversa temos que avaliar e chegar àquilo que o cliente quer, sem ele se aperceber. Por exemplo, se quer ir ver a catedral é porque é religioso e gosta de ver essas situações. Aí, podemos sugerir também o Mosteiro dos Jerónimos, a Sé. Há certo tipo de detalhes que nos levam a entender aquilo que procura.
P: Que tipo de dados pedem ao cliente, quando faz a reserva?
Simão Nevada: A ficha de dados do cliente não inclui informação sobre a profissão. Por vezes, é ver também o aspeto físico, a forma como a pessoa se apresenta. Se vier vestido à executivo, se calhar, já vai procurar outro tipo de situações, já não tem tempo para lazer, já vem mais nos negócios. Em termos de clientes, há o “business” e o “leisure”. Nós aqui é mais a nível de stakeholders ou clientes que vêm mais para pernoitar. E temos também clientes de negócios.
P: Quais são as componentes principais do serviço de receção?
Simão Nevada: Para além da receção, temos uma parte de concierge. Os clientes ainda usam o telefone para colocar questões: pedir um ferro e uma tábua, pedirem serviço de “room service” e aí nós passamos ao restaurante porque são eles os entendidos…, mas nós disponibilizamos almofadas ao gosto do cliente, berço, cama-extra… uma vez uma cliente sentiu-se mal e tivemos logo que chamar o médico de serviço. Nós somos o ponto número 1 de contacto. Tudo começa na receção e tudo acaba nela. E a última imagem que o cliente leva tem que ver com a receção. Todas as secções têm contacto com a receção. A receção é o apoio de onde sai toda a informação.
P: Quantos funcionários fazem parte da equipa de receção?
Simão Nevada: No turno de manhã e de tarde estão duas pessoas e, à noite, também. Pode haver alguma situação em que estejam três, mas é exceção, embora um hotel com este movimento pudesse ter três. Nunca são demais. No local temos computador, temos três postos com sistema, temos os telefones, a impressora, fotocopiadora, temos um sistema de fazer chaves…é o nosso kit de trabalho (ri-se)
P: Num dia muito, muito difícil, quantos registos podem aparecer?
Simão Nevada: Diariamente, temos para cima de 100 chegadas e não é fácil. São 68 quartos e, por vezes, é complicado para duas únicas pessoas tratarem. Quando há mil e umas coisas para resolver: a operação para controlar, os clientes que temos para satisfazer… nem sempre é fácil… dependendo das condições que nos dão e que nos apresentam. Quase não há pausas: temos meia-hora de jantar, de refeição e pausas só mesmo para ir à casa-de-banho. Aqui, quem quiser fazer pausas por autoria própria, é impossível, a não ser que arranje alguma maneira…mesmo em termos de internet, o acesso está restrito, os sites sem serem dentro do sistema, estão restritos.
P: Já se deparou com situações de clientes alcoolizados?
Simão Nevada: Ah, sim. Ainda outro dia a senhora da limpeza estava no período da tarde e veio dizer-nos que estava um senhor todo nu no corredor, e efetivamente estava. Não quis acreditar. Fui lá acima e depois percebemos que a porta se tinha fechado com o senhor cá fora (gargalhada). A senhora da limpeza ficou escandalizada e chegou à receção aos gritos e pedimos que ela falasse um pouco mais baixo. Mas acho que o cliente também estava um pouco embriagado. Alguma coisa que quis ver e foi atraiçoado. Temos de tentar que sempre que haja uma reclamação por algum motivo, que os outros clientes não se apercebam porque, por vezes, reclamação gera reclamação, e então é complicado. Saber resolver a situação com alguma precaução e sigilo, se assim podemos dizer, quase com invisibilidade: tentar chamar o cliente à parte.
P: Sentem que guardam muitos segredos sobre o cliente?
Simão Nevada: Não é tanto assim porque, de alguma maneira, nós mantemos sempre alguma distância e a postura para não invadirmos esse cliente. Aliás, já tivemos clientes que nos pediram diretamente o anonimato, não querem que ninguém saiba que estão cá. A priori, nós não prestamos qualquer informação sobre o cliente. Dizem-nos que nunca estiveram cá, não estão cá e não querem ser incomodados com chamadas e por pessoas. Qualquer um dos hotéis, a nível geral, têm um código de conduta do trabalhador. Se ligarem para aqui a perguntar se a pessoa x está, nós não estamos autorizados a prestar essa informação, é complicado.
P: Há muito desgaste nesta área?
Simão Nevada: Por vezes, é bom haver rotação, pôr caras novas. Mas, outras vezes, também é muito o reconhecimento, sobretudo os clientes habituais também gostam de ser reconhecidos e se houver demasiada rotatividade, isso nunca vai acontecer. O cliente não se sente seguro se estão sempre a mudar as pessoas.
P: Como é o vosso ambiente de trabalho?
Simão Nevada: Há muita interação na receção e eu prezo muito isso. E a hotelaria é muito isso: é trabalhar com alegria, trabalhar com vontade e, se houver um bom ambiente de trabalho, eu acho que é muito importante. Trabalhar à séria, mas a brincar: tem que haver equilíbrio e responsabilidade porque nós aqui trabalhamos todos em conjunto, estamos a trabalhar todos para o mesmo. Tem que haver uma interajuda grande. Gosto do que faço. Eu já saltei algumas vezes de hotel em hotel e julgo que isso é importante a nível curricular. Há sempre alturas em que chegamos a um sítio e dizemos que já não vamos tirar nada. Aí tento sempre procurar outra situação. Até hoje não me arrependo de estar por aqui. A hotelaria não é diferente lá fora. Nós até, em termos de acolhimento, somos muito bons. Demasiado. A priori já somos alegres. Mas nem todos somos iguais.