"Sem mimo, sem amor, sem nada" (entrevista a Catarina Miguel)

Item

Tema

Trabalho Doméstico

Título

"Sem mimo, sem amor, sem nada" (entrevista a Catarina Miguel)

Entrevistado

Catarina Miguel (nome fictício)

Resumo

Catarina Miguel é o nome fictício de uma mulher nascida nas terras da Beira Alta, onde o frio comia os dedos e as dificuldades da vida no campo expulsavam quem ali nascia. Chegou a Lisboa aos doze anos para servir, levada ao engano. A promessa de cidade seria para ir à escola, mas bem cedo se apercebeu da falsidade da história contada pelos familiares. As suas memórias introduzem questões estruturais permanentes nos traços que definem a condição servil doméstica: a fuga da miséria do campo, o engano, o assédio, a solidão perante uma cidade desconhecida, mas também as nuances nas formas de tratamento dos patrões, alguns deles compreensivos e generosos. Mas outros, não. A violência no tratamento atinge proporções mais elevadas no seio da própria família, que pune e maltrata naturalizando a servilidade como substância de inferiorização dos indivíduos. A fuga do trabalho doméstico vai dar-se mais tarde, integrando os serviços de limpeza de um Ministério, em Lisboa.

Data de nascimento

1938

Data de recolha do testemunho

12 de agosto de 2008

Local de realização da entrevista

Bairro da Bica (cidade de Lisboa)

Recurso

Transcrição de entrevista por gravação em áudio

Autor da recolha

Inês Brasão

História de vida

P: Fale-me da sua infância
Catarina Miguel: Eu era filha de gente pobre, já se sabe… O meu pai… nós éramos 3 irmãs, o meu pai foi para o Brasil com 25 anos e nunca mais quis saber da minha mãe (diz suspirando) a minha mãe ficou com 3 filhas, a mais velha era eu, tinha 5 anos e meio quando ele abalou, e eu aos 12 vim para Lisboa, já viu, eu vim aos 12… tenho 70, vim aos 12…, mas eu gosto de estar aqui.
P: E quando veio lembra-se como é que foi? Lembra-se?

Catarina Miguel: Lembro, lembro… lembro-me perfeitamente. Eu tinha saído da escola, fiz a 3ª classe só porque a professora chegava à altura dos exames e não dava exame aos alunos! Nada. Nada. Levava-os até à Páscoa e chegava-se à Páscoa e ia-se…de maneira que eu tinha a mania, quer dizer, coitadinha de mim, tinha a mania que queria ser professora, era uma ideia de garota, não é, na nossa infância qualquer pessoa tem isso…E então eu tinha cá uma tia que era, uma tia quer era madrinha…da minha mãe… e trouxe-me. Trouxe-me para cá ao engano! Eu vim ao engano. Ela disse-me: “Vá, levo-te para lá, vais estudar à escola…,” mas não. Chegou cá pôs-me a servir. Fui servir para a Rua do Arco em S. Mamede. Ao pé do Rato. Era uma senhora que era empregada no Príncipe Real, tinha 2 filhos…, mas eu, coitadinha de mim, o que é que eu sabia? Era uma garota com 12 anos, vinda da Província, sabia o quê? Nada! O que é que os nossos pais nos ensinaram? A apanhar batatas, milho, mais nada. Não sabíamos mais nada. E vim para ali e a senhora entendia que eu já devia saber o que…pronto, era aquela escravidão, era escravidão…
P: Como era essa família?
Catarina Miguel: um dos filhos era arquiteto, o outro era engenheiro…eh, eram os dois solteiros, a senhora era empregada no Príncipe Real, naquele edifício que agora fizeram um lar, não sei bem. A senhora era muito boa, não tenho a dizer, mas os filhos eram terríveis, e depois, a minha madrinha morava também na D. Piedade em São Bento. Ora, eu vim da terra para ali… e então a senhora, a senhora não, era uma senhora separada do marido, mas era uma senhora boa, não havia fome, nada, mas os filhos, pronto, naquela altura, o que é que eu sabia? Nada! Tinham a mania que eram, como a gente chama, uns mariolas, entendeu? E eu coitadinha vinha ceguinha lá da terra e então ele tentou... abusar de mim…tentou, começou-me a agarrar, eu comecei a gritar, porque, tive medo, tive medo não sei porquê, e ele não me fez mal. E fugi. Fugi, fui para a minha madrinha. Fui para a minha madrinha, cheguei lá, e disse, “Eu nunca mais vou para aquela casa porque o menino R. fez-me isto e…tantatan…” E ela não gostou nada. A partir de hoje, a minha sobrinha vai-se embora, vai comigo, vai lá para a minha casa. E fui-me embora.
P: Quanto tempo lá esteve?
Catarina Miguel: Estive lá só 3 meses. Só estive 3 meses. Depois a minha madrinha tinha um lugar de hortaliças aqui na 24 de julho, no mercado, e então de manhã, chego lá, trazia-me com ela, vinha às 4 da manhã com ela e…pronto, ajudava-a ali a juntar a hortaliça, as coisas…até que me arranjou ali uma senhora para a 24 de julho, uma senhora que também era viúva, tinha vindo de África e tinha uma filha que era médica, ela tinha uma farmácia. A farmácia ainda lá está, mas suponho que já não deve ser deles, ali na R…. uma farmácia que estava ali assim…era deles. Pronto, e eu era mais para fazer companhia à Senhora. Porque tinham outra criada, tinham uma criada para fazer o comer, eu era mais para ir com a Senhora aqui e ali…além…ora, mas lá voltamos ao mesmo. Eu queria era ir para a minha mãe, queria ir para a minha irmã, queria era ir para a terra…depois eu estava ali e chorava, chorava. Aquela Senhora…foi duma… olhe, nem sei como é que hei-de explicar... Aquela senhora foi duma…teve tanta paciência comigo…Eu de noite acordava cheia de medo e gritava, gritava, vinha assim para a varanda, mas…eu gritava, “Eu quero ir para a minha mãe!”. Eu não gostava nada de cá. Não gostava do comer. Não gostava de…ela fazia-me de tudo. Se eu queria café com leite ela dava-me, se eu queria doce, a senhora fazia-me tudo!.., mas eu não. Eu não queria nada, eu não queria nada, eu queria era ir para a minha mãe, depois punha-me a dizer que não gostava do comer, que não gostava deste comer, que não gostava daquele, até que ela, coitada, chegou a dizer à minha madrinha… olhe, faça-lhe a senhora lá o comer que eu lhe pago e traz-mo… porque ela gostava muito de mim!... Porque eu ia com ela, e fazia-lhe companhia, e eu era muito alegre. Eu era assim muito alegre quando não me dava a telha! Mas não, eu fui muito má para aquela senhora, eu fui muito má. Neste sentido: porque não os deixava dormir, eu levantava-me de noite…ela até me chegou a pôr a dormir na sala, pôs-me num colchão a dormir na sala que era para ver a claridade do Tejo, virada para o Tejo que ali via os barcos de Cacilhas…, mas eu não, nada daquilo me seduzia. Ela dizia-me: “Vai para a varanda! Olha, quando acordares vai para a varanda!...era num 6º andar, ninguém ia ali, não é, “Vai que…” Ela coitada! Tanto ela como a filha, eram extraordinárias! Mas eu nada! Nada daquilo, a minha madrinha lá aparecia com o caldo bem feito à moda da terra…(risos em silêncio), mas eu não…

P: E como era o seu dia?
Catarina Miguel: Olhe, aquilo era assim. De manhã, punha a mesa para a senhora beber o café, e a senhora tomava o café e eu sentava-me ali ao pé dela, ela conversava comigo e depois, sim senhora, ela queria ir à rua e eu ia com ela. Íamos à rua…vínhamos…se me apetecia dormir, dormia, se não me apetecia, nada… (era muito livre?) Era, era, eu sinceramente não passei nada…, mas, lá está, chega-se a um ponto em que as pessoas enjoam, não é? Eu não queria, não queria, não queria, e fui-me embora. Fui-me embora e então…arranjei para uma senhora aqui à Travessa…, ali à Rua do S., que era modista. Então ali sim. Ali eu já gostava de estar. Porque andava na rua, a entregar os vestidos, os fatos, eu conhecia Lisboa de ponta a ponta. Campo de Ourique, eu lembro-me sempre de Campo de Ourique e eram só centeios e…coisas, assim, eu ia lá levar uns fatos ao Domingo, havia lá aqueles jogos de futebol amadores, aqueles assim, e eu ficava ali, quase a ver, pronto, depois ia para o Estoril…metia-me aqui no Cais do Sodré no comboio, nunca pagava bilhete.
P: Então tinha liberdade de movimentos…
Catarina Miguel: Tinha, tinha…eu vinha aqui à Baixa, buscar as amostras, comprar alfinetes. Eu ali gostava muito de estar, gostava muito de estar…, mas, já tinha 15 anos. E então acontece o quê? Acontece que estamos na mocidade e aparecem uns rapazitos para namorar e não sei quê. Mas não foi o meu caso, por acaso até não foi. Fui à terra. No mês de agosto fomos à terra, fui com a minha madrinha e, claro está, havia os bailaricos daquela época, que hoje não há, e ta-ta-ta, e claro, eu já não quis voltar. A minha madrinha ficou muito aborrecida… “agora como é que eu digo à senhora?” Tinha cá deixado a roupa… “Mas eu não quero saber, eu não vou.” Fugi. Até me fui esconder para não vir. E fiquei. Fiquei, mas dei um pontapé na minha vida, como se costuma dizer. Fiquei, e então fui para casa de umas senhoras…eh, umas senhoras que eram também duas irmãs, eram umas pessoas muito ricas e eu aí, então, é que não fazia mesmo nada. Andava só com as senhoras pelas propriedades, aqui e ali, e andava assim. Mas, uma tia que eu tinha lá em Trancoso, que era irmã do meu pai, precisou de uma … empregada…e aí é que eu amarguei…e então foi-me lá buscar…ali é que eu passei as passas do Algarve!... (pausada e sofridamente), como se costuma dizer. (Era em T.?) Em T. Eu fui para casa da minha tia, mas aquela pessoa não era minha tia, era uma pessoa muito má, muito má, foi muito má para mim. Tratou-me muito mal. Bateu-me muito. Passei lá fome. Passei fome. Bateu-me, proibia-me de falar com a minha mãe, com os meus avós. E tudo até que um dia…ela um dia deu-me uma tareia muito grande porque eu pedi-lhe para ir à festa da minha aldeia. A minha mãe foi lá pedir-lhe e ela disse que não me deixava ir. Que se eu fosse já não podia voltar…Ora ali a quatro passinhos, quatro quilómetros, não era assim tão difícil… Mas não. Ela entendeu que não me deixava ir. E então eu disse “Você não me deixa ir a bem, deixa-me ir a mal, que eu vou. A minha mãe é que manda em mim e eu vou.” Eu nessa altura tinha 15 anos…e ela então, olhe, deu-me uma tareia!…tão grande, tão grande que eu fiquei de cama 15 dias. Fiquei toda negra, toda negra, toda negra…Fiquei toda negra, e então quando comecei a levantar, depois ela queria-me obrigar a fazer as coisas na mesma, a lavar as escadas, “Quero as escadas a esfregar”…e aquilo tudo…e eu cheguei a um ponto em que cheguei lá um dia em que fui ter com um daqueles senhores que faziam os correios, naquela altura havia aqueles senhores que faziam os correios e…mandei um papel para a minha mãe me vir buscar, que eu não aguentava mais estar ali, senão fugia. Então a minha mãe, quando recebeu o papel, disse para a minha irmã do meio- “Olha, vais lá buscar a tua irmã.” Então combinámos eu ir à missa do meio-dia, e assim fiz. E pronto, lá fui para a terra. Ela depois mandou lá o filho à minha procura, a GNR, e aquilo tudo, mas a GNR não podia fazer nada, eu não tinha roubado nada, não tinha feito nada, era por ela me ter tratado mal…a GNR quando lá chegou disse “Estás com a tua mãe, estás muito bem, deixa-te estar.” A minha mãe até disse à GNR que ia lá e fazia e acontecia, mas não fez nada. E pronto. E fiquei. Fiquei ali um tempo: foi de maio até agosto, porque depois a minha madrinha voltou à terra e eu pedi-lhe para me trazer outra vez. Ela não me queria trazer, mas depois ela lá me trouxe. E então fui servir ali para a Avenida da Liberdade. Mas aí eu já estava quase a fazer 17 anos, e então ali para a Avenida da Liberdade, é o Condes…era logo ali... eu fui para aí servir como criada-de-fora, que havia a cozinheira e a criada-de-fora. (explique-me um pouco o que faziam as criadas-de-fora) Então a criada de fora essa assim: a cozinheira era a cozinheira, fazia o comer, ia às compras, passava a roupa-a-ferro e assim… e a criada de fora punha a mesa, levantava a mesa, servia os senhores. Eu servia à mesa, foi lá que eu aprendi a pôr uma mesa como deve ser, realmente…eu estive lá 2 anos e meio e aprendi muito com aquela senhora. Eram umas pessoas que também não eram fartas. O que eles comiam não comia a gente. Era tudo por ração. Naquela altura, era o pão escuro, metade para mim, metade para a P., que era a cozinheira. Dividia a manteiga, metade para mim, metade para a outra, mas a gente desenrascava-se, sim, a gente desenrascava-se, a gente não passava fome que a gente desenrascava-se…mas a criada-de-fora era assim: eu fazia, fazia a cama da senhora, que ela não consentia que ninguém mais fosse lá, fazia a cama da senhora, fazia a cama dos 2 filhos, que era um filho e uma filha, mas depois limpava o chão, depois punha a mesa…e então..(era interna?) Pois, dormia lá e tudo (tinha direito um quarto?) Sim, sim, sim, tinha um quarto pequenino, tinha um quarto pequenino, mas era um quarto só, ela dormia num quarto, eu dormia noutro quarto…tinha, sim senhora…tinha farda, tinha uma farda, mais que uma, até. Ia à rua, a senhora mandava naquela altura comprava-se o carvão, comprava-se o petróleo, e ela mandava-me à rua buscar essas coisas; ia sempre fardadinha, com aquela farda preta, e então quando a senhora queria sair, eu ia com ela também. E então, elas jogavam lá muito à Canasta, jogavam muito à Canasta e eu ficava ali às vezes até às 3, 4 da manhã ali a secar…porque elas depois pediam chá, pediam bolachas…pediam essas coisas e, às vezes, eu estava ali com a cabeça em cima da mesa. Tinha que estar, tinha que estar, não era uma questão de me tratarem mal, aquilo era assim mesmo e, e depois quando aquilo acabava já podia ir dormir mas depois às seis da manhã já tinha que estar a pé. Os meninos iam para a escola e eu já tinha que fazer o pequeno-almoço para os meninos, e tinha que ir levar os meninos à escola.

P: Nunca tomou conta de crianças?
Catarina Miguel: Não, criar crianças nunca criei. Nunca fui, nesse sentido nunca foi. E eles nessa altura já andavam na 3ª ou na 4ª classe. Mas ela [a patroa] nunca os deixava ir sozinhos. E então eu ia lá levar os miúdos à escola. Ia levar um e depois ia levar o outro, porque eles não andavam na mesma escola. E, pronto, era isto assim que eu fazia: às vezes lá passava um bocadito a ferro, depois trocava com a minha colega. Ela não gostava muito e passava eu…

P: Tinha tempo livre?
Catarina Miguel: Tinha… só tinha folga de 15 em 15 dias. Uma semana era ela [a outra trabalhadora doméstica], outra era eu. Só de 15 em 15 dias é que tínhamos folga. Era ao Domingo, a seguir ao almoço. Eu ia sempre para a minha madrinha… bem, depois também comecei a namoriscar e tal e…ia ao teatro, ao ABC. Às vezes ficava ali pertinho, outras vezes ia visitar a minha madrinha. Na semana em que a minha colega folgava, eu tinha que fazer…ela deixava já o jantar adiantado, e depois eu tinha que fazer, aquecê-lo e pronto, a combinação já era aquela, e aí às 8 da noite tinha que estar lá. Era só aquele bocadinho da 1 da tarde até às 8 da noite. Era só aquele bocadinho de 15 em 15 dias.

P: Ensinaram-na a cozinhar pratos sofisticados, a servir?
Catarina Miguel: Não, eu isso receitas de bolos e assim nunca aprendi. Bem, naquela casa principalmente, naquela casa ali, uma pessoa tinha que estar ali, tinha que pôr os talheres muito bem…a senhora mesmo ensinou-me, quando era assim alguém mais especial, eu tinha umas luvinhas brancas para pôr, os aventais especiais, uma bata diferente, tinha que estar ali muito direitinha, depois a senhor fazia, tinha uma campainha ou tocava a campainha, ou fazia um sinal qualquer e eu tirava os pratos pela direita, ou pela esquerda, era assim…Depois cheguei a um ponto em que até já só com um movimento da senhora eu já sabia como é que havia de fazer, tinha que deixar sempre acabar o último para tirar o prato, tinha essas coisas todas. Mas assim aprender a fazer bolos e comeres, eu isso não sabia.

P: E não se sentia controlada? Não tinha vontade de contrariar?
Catarina Miguel: Ah tinha, claro que tinha (risos) Claro que tinha, mas uma pessoa não conseguia. Uma pessoa não conseguia porque era assim: ainda algumas vezes eu…pedi…, “Ó D. E., deixe-me ir hoje mais cedo para a minha madrinha, ou deixe-me vir mais tarde…” Então aí era logo uma guerra, era logo uma guerra: “Não! E porque assim, e porque assado, e porque desta maneira e assim.” Eu fui para lá ganhar 40$00. Fui para lá ganhar 40$00 e ela logo no 2º mês logo me aumentou para 50$00. (Na altura era um bom ordenado?) Era um bom ordenado, 50$00. Ora eu tinha 17 anos, eu hoje tenho 70, já vê, era um bom ordenado naquela altura. Mas também era uma vida assim um bocadinho sacrificada, porque hoje as empregadas domésticas não têm nada a ver com o nosso tempo. Nós naquele tempo tínhamos que fazer tudo, desde as máquinas de lavar, não havia nada!... Era tudo feito à mão. (alguma vez adoeceu, trataram de si?) Não, isso felizmente eu nunca adoeci. Com isso, por exemplo, naquela casa em que eu estive…ali na rua Nova de São Mamede, faziam-me raspar o chão com os esfregões de arame. Faziam-me raspar o chão e isso é que me faziam…. depois eles gritavam muito comigo, que eu não limpava bem, que tinha os cantinhos mal limpos, eu queria era arear as tábuas!...o resto queria lá saber dos cantos…(risos) e então aí, sim, eles ralhavam muito comigo e pronto, aí nem tinha folgas! Quando eu fui para aí nunca tive folgas. Tive, nunca tive…a senhora ao Domingo arranjava sempre maneira de a gente ter que limpar as paredes, ter que limpar aquilo…nunca tive folgas. Na rua lá de São Mamede nunca tive folgas, nunca! Ali tive, tive de 15 em 15 dias. Mas pronto, foi bom, mas acabou porque… (está a falar do tempo em que trabalhava para a modista) até se eu não me tivesse ido embora eu até tinha aprendido costura…e quando a gente vem, é por isso que eu digo, naquele tempo havia montes de garotas, raparigas…havia a ceifa, havia a apanha do vinho, da azeitona e depois tudo aquilo me lembrava…
P: Nos primeiros tempos, houve alguma altura que não ganhasse, que fosse a troco de cama e comida?
Catarina Miguel: Isso eu já não me lembro muito bem, mas eu suponho que quando eu fui…eu suponho que quando fui lá para S. Bento eu só estava lá pelo vestir, vestir e calçar. Porque eu nunca me lembro de a minha madrinha me dizer que elas me davam dinheiro…nem nada. Eu quando comecei a ganhar dinheiro para ali para aquela senhora fui ganhar 20$00. Lembro-me porque a minha madrinha comprou-me uma pulseira, ainda a tenho, e então a pulseira custou 600$00. Ainda a tenho. E então a minha madrinha dava-me todos os dias uns 20$00 (escuditos) que ela me dava. Ela é que a pagou…depois quando fui ali para aquela senhora, para ali, é que era 40$00, já me dava o dinheiro todo, mas eu suponho que ali para a Rua do Arco eu não fui para ganhar nada. Suponho que estava lá só pelo vestir porque ela me dava um vestido, uns sapatos, e dava-me cuecas, e dava-me assim meias…
P: Naquela fase em que se tornou mulher, como foi? Essas pessoas substituíam um pouco a sua família?
Catarina Miguel: Não!... Houve sempre aquela separação das águas, como a gente lhe chamava. Sempre, sempre. Ali aquela senhora da 24 de julho é que tinha muita paciência para mim, ela estava sozinha, era uma senhora viúva, sim, essa senhora tratou-me praticamente como uma pessoa de família, ela até dizia à minha madrinha para me fazer o comer… agora nos outros lados, não. Havia a separação das águas. Não…não queriam lá…(não recebia afeto?) Não, não, nada disso. Mesmo eram agrestes para a gente. Por exemplo, a falar, às vezes estávamos lá na cozinha (eu mais a minha colega…) estava lá ao pé dela, estávamos a almoçar ou assim, ela ia lá “Não há nada que fazer?!...”. Os gritos que davam assim à gente, aqueles gritos…e vais fazer isto, e vais…às vezes coisas que a gente já tinha limpado e tinha que fazer outra vez…Era para a gente ter o tempo ocupado, não deixavam que a gente…Não, isso não. Pronto, e eu…sinceramente, quando comecei assim a crescer mais um bocadito, quis-me foi livrar daquilo. Depois tinha então 17 anos quando…eh…saí de servir. Saí porque arranjei aqui na B., aqui assim ao Cais do Sodré, uma pastelaria… (em que ano foi?) Ai, sei lá…Deixe-me cá ver, deixe-me cá ver…eu casei-me em 61…casei-me em 61, casei-me com 22, devia ter sido prá i em 58 ou, eu casei-me com 21 anos, 22! Tinha quase 22 e casei-me em 61…E então depois, como lhe disse a minha madrinha tinha ali aquele lugar de hortaliça…mas também não era aquilo que eu idealizava. Não queria, não queria, não queria. Queria ser um bocadinho independente, queria ser independente, mas com esta minha madrinha também não queria porque, veja, depois eu tinha prá i 18 anos, depois uma pessoa começa a namoriscar e…aquelas pessoas antigamente eram muito severas, a minha madrinha foi uma das pessoas que para mim foi minha madrinha, minha tia, minha mãe! também…mas sem mimo, sem amor, sem nada, sem nada, era daquelas pessoas “Posso, quero e mando”, e não deixava que a gente passasse daqui para ali, eu também com a minha madrinha passei muito…passei talvez mais do que nos patrões…na verdade, porque a minha madrinha era muito severa, para a filha, para mim, e tudo…era daquelas pessoas que, pronto, só ela é que era, só ela é que mandava, só ela é que sabia, só ela é que queria…e tínhamos que estar ali a fogo e ferro. E então eu comecei a ficar farta daquilo e um dia apareceu um anúncio para aquela pastelaria e eu fui para lá. Fui para lá para a pastelaria, ia às compras à Ribeira e ia para o Balcão. Fazia sandes, lavava copos, fazia sandes, quando era pela altura do Natal havia a fruta cristalizada e ia lá para a fábrica fazer fruta cristalizada…e então estive ali 3 anos e meio até que foi dali que eu me casei. Estive lá até me casar. Já se vê. Aí a vida deu outra volta. Depois…fui trabalhar para o Ministério…bem, mas estive ali ainda um tempo na Praça com a minha madrinha…porque, entretanto, o meu marido foi prá…tropa…e enquanto ele esteve na tropa – lá voltamos ao mesmo – nós próprios mais novos, também éramos um bocadinho…machistas, oh…não sei, não sei como é que hei-de explicar…o meu marido com ciúmes não deixava que eu estivesse empregada em lado nenhum. E então, espetou comigo na minha madrinha outra vez, porque ela tinha ali o lugar na Praça…então fui para lá outra vez…ó minha senhora!.. eu passei ali, eu passei ali as passas do Algarve. Eu passei ali muito! Trabalhei muito ali naquele mercado 24 de Julho, trabalhei muito para ela. Porque era assim: não sei se conheceu, cá em baixo era o mercado abastecedor e lá no primeiro andar é que servia ao público…e então a gente tinha que levar tudo cá debaixo do rés-do-chão…trabalhei ali muito!... carreguei com muita caixa de feijão, muita caixa de tomate…, mas lá voltamos ao mesmo! Até que eu cheguei a um dia…e disse, bem eu meto o barro à parede e vou-me embora. Então eu disse-lhe, porque havia ali um senhor do Ministério e ele disse, “Ai, você até é mal empregada estar aqui…uma rapariga estar aqui metida nisto e tátátátá” - “Pois é, mas eu é que não arranjo”. “Ah, mas eu arranjo-te lugar para lá.” E eu disse ao meu marido. “Olha, o Sr. D. arranja-me lugar para o Ministério e eu vou-me embora!...” – “Ah, mas não vais, porque tu estás aqui…” – “Mas vou.” Então disse, caramba, eu também tenho que ter a minha oportunidade, tenho que me impor, eu não sou, eu não sou nenhuma propriedade dele…sim, eu sou mulher dele, mas não sou nenhuma propriedade!... já tinha esta genica. Eu não sou propriedade! Mas eu vou chegar a um ponto em que não vai ter que ser assim. Então cheguei um dia e disse-lhe: “Olha, (o sr. D. disse-me) – “Estás a fazer quase 35 anos. Se não entrares agora já nunca mais entras.” E eu cheguei a casa e disse para o meu marido: “Eu vou para o Ministério.” Ele a dizer que não e eu a dizer que sim, ele a dizer que não e eu a dizer que sim. Mas vou! mas não vais! Mas vou! Eu não sou tua propriedade. Sou tua mulher, sou tua companheira, ouviste? Não queres assim largas-me da mão e eu vou fazer a minha vida e tu… Nunca tínhamos tido uma zanga, nunca tínhamos tido nada, mas nesse dia foi a sério! Ele entendia que eu que não o fazia. E ele disse: “Não vais, ai isso é que não vais”. Ai isso é que eu vou. E fui. Isto foi a uma quarta-feira e na quinta-feira eu larguei tudo ali! (diz com impetuosidade) Não quis saber de hortaliça, de nada! E fui para o Ministério. Cheguei lá e apresentei-me lá ao Sr. D., “Ó Sr. D., eu vinha cá saber se eu podia vir então para…Veja, quando é que eu posso?...” “Pode ficar já hoje. Fica já hoje.” Olhe, aquele serviço a mim não me… claro que fui para as limpezas…Não fui para nenhum escritório nem nada disso porque não tinha habilitações para isso…E então ele disse-me…” olha, agora vou-te arranjar para o gabinete do Ministro…, mas agora tens que ficar aqui…” “Oh, eu fico em qualquer lado, eu não tenho medo nenhum de trabalhar! Eu não tenho medo nenhum de trabalhar.” Então tinha metido cá na tola e disse-lhe, “oh, Sr. Dias, eu sei limpar uma casa…” porque eu tinha aprendido! “Eu sei limpar uma casa, sei aspirar, sei varrer, sei limpar o pó, sei limpar uma casa como deve ser, sei lavar as janelas, sei fazer isso tudo. Porque nas casas onde servi, também não era o meu serviço, mas eu ajudava a minha colega a fazer. Eu quando não tinha…ajudava-a a lavar as janelas, a limpar o pó, a pôr a cera, porque naquela altura tinha que se pôr tudo à mão.” Pronto, então, está bem. “Então anda cá que eu vou-te dizer.” Olhe, espetou-me um serviço que foi o primeiro andar todo do Ministério da…. Foi o primeiro andar todo! Onde andavam 17 gabinetes, um corredor e uma escadaria!... para se fazer das 6h às 9h da manhã, não era brinquedo!... Pronto, mas quem é que me mandou a mim? Se eu queria, fui, fui.
P: Nessa altura foi ganhar um bom ordenado?
Catarina Miguel: Era cinco contos, era cinco contos. Naquela altura era cinco contos, foi quanto eu fui para lá ganhar. E então eu…não tenho medo, mas, claro, para o primeiro dia, habituadinha como eu ia a fazer aqui em casa de tirar os bibelots, limpá-los…e depois no fim é que aspirava tudo, ali não podia ser assim. Tinha que ser a despachar e então era uma coisa muito má que o Ministério tinha. Só tinha 3 aspiradores para o Ministério todo. E eu, elas já estavam vestidas com as batas, e eu também, e eu pego por ali acima e comecei por um gabinete, a limpar muito bem, acabava de limpar um e começava a aspirar outro. Ah, daí a um bocado…talvez três quartos de hora depois e vem lá uma colega e diz: “Já aspirastes?” E eu disse: “Não…” “ai, não…então se não aspirastes tivesses aspirado porque eu agora vou-te levar o aspirador.” “Então leva!” – Não me atrapalhei nada. Fui buscar uma vassoura e disse, mas espera lá. Eu tenho que dar volta a isto. Agarrei, subiu-me logo aquilo à ideia. Agarrei, comecei a despejar os cinzeiros e os caixotes todos, dos gabinetes todos…e depois peguei numa vassoura e pronto. Varri de maneira a não deixar assentar o pó…e depois é que comecei no gabinete a limpar o pó. E deixei a escadaria para o fim, tinha que ser. Mas pensei… deixa estar que me enganaste hoje, mas não me voltas a enganar. No outro dia, elas lá ficaram a conversar e tal e eu… pego no aspirador, despejei os caixotes e aspirei aquilo tudo!...daí a bocado vem aí a outra. Já aspirastes? Eu não! Eu não. Então, não aspirastes, tivesses aspirado! Está bem, leva lá, eu tenho aqui uma vassoura!... Nunca mais me enganou! Nunca mais me enganou! Até que um dia me apanhou, claro, ela andava desconfiada, claro, e “Como é que esta tem tempo?” porque um dia ela estava a dizer assim para a irmã: “Ai, deixa estar que o serviço daquela há-de ficar bom! Vê lá tu, a varrer as alcatifas, que aquilo era tudo com alcatifas, a varrer as alcatifas ali com aquele pó!... deixa lá que não hão-de chover reclamações!” Eu, que apanhei aquilo, ai é? Haver reclamações!...Não te importes! Se houver reclamações não é contigo, é comigo. Não te preocupes. As reclamações… Até que um dia ela me apanhou (conta o episódio a rir) e diz, “Oh, Ana, sabes, ela já tinha aspirado tudo!” Ah, bem me queria parecer…” então vocês pensavam que me vinham ensinar alguma coisa a mim?”
P: Então não foram nada hospitaleiras?
Catarina Miguel: Não, não foram. Nada, nem eram nada amigas. Por exemplo, algumas coisas eu perguntava, perguntava, porque havia o gabinete das telefonistas, e eu perguntava como é que se limpava o PBx, “Eu não sei como é que se…” Então não sabes…Então vocês andam aqui… é que eu tenho medo de tirar algum fio e depois não se ver…” Não foram capazes de me dizer nada, não foram. A biblioteca era a mesma coisa. Também na biblioteca havia uma quantidade de coisas que…uma pessoa não podia mexer naquilo, não, não foram…, mas depois até foram. Elas depois foram lá! Depois foram lá. Depois o Sr. Dias agarrou-me, que também foi uma pessoa muito minha amiga e disse-me: “Isto agora, a partir do dia 1, vais para o gabinete do Ministro.” Estive lá até passar a contínua. Estive no gabinete do Ministro…e mais, arranjei um aspirador só para mim (risos)…Isso é que foi a danação delas. Depois eu ainda é que as ia ajudar a elas. Quando elas diziam… “ai, hoje estou tão atrasada…” - “Então anda cá, que eu já te vou ajudar.” Não, e depois arranjei lá grandes amigas e fomos todas grandes amigas porque depois chegámos à conclusão de que era assim… Elas não me conheciam de lado nenhum… Também não sabia como era…, mas naquela altura podiam ter sido um bocadinho mais… “Olha, tens que fazer assim…tens que aspirar, ou…” mas não…
P: Gostava mais desse trabalho que conseguiu lá no Ministério? Era muito exigente?
Catarina Miguel: Quer dizer, a gente entrava às 6 da manhã e era das 6h até às 9h. Depois…lá, lavava-se paredes, lavava-se janelas, lavava-se cá fora a rua, lavava-se os corredores, tínhamos uma máquina de raspar os corredores para depois pormos a cera…e depois, tudo isso. Pronto, era um serviço como se fosse em casa, esses serviços assim, como se fazia nas senhoras, é verdade, mas era um serviço mais da nossa responsabilidade, nós já sabíamos que cada uma tinha os seus gabinetes, cada uma tinha que responder por aquilo. Era uma autonomia completamente diferente. Quando acabasse…quando eu acabava, se me apetecia ir embora ia, se me apetecia sentava-me lá e pronto, tomava o pequeno-almoço, das 9 às 10, era a hora que a gente tinha para pequeno-almoço. Nós tínhamos que ter as coisas limpas porque eles começavam a entrar para os gabinetes e assim…deixávamos então para o fim a escadaria. Depois íamos então comer e a seguir limpávamos os amarelos – em conjunto – juntávamo-nos todas e dizíamos: este dia é para limpar os amarelos, umas põem a insulina, outras puxam o lustre, depois limpavam a escada e era assim. E ao sábado, em princípio íamos ao sábado, mas depois passámos a ir na sexta-feira à noite, para não irmos ao sábado. Para nos darem o sábado livre, então o senhor era muito bom e ele dizia, vocês ao sábado fazem assim uma limpeza mais ligeira que é para vocês não estarem aqui muito tempo. E era assim que a gente fazia. Às vezes juntávamo-nos todas e começávamos numa ponta e acabávamos noutra. Depois na segunda-feira já fazíamos melhor, já cada uma tinha o seu, e não, já era um serviço completamente diferente…
E faziam parte do quadro?
Não, não. Eu ainda estive lá muito tempo. Já descontava para a Segurança Social, mas sem estarmos no Quadro. Para termos direito à ADSE, descontávamos para a Segurança Social.
P: Vieram, como a senhora, muitas mulheres do interior do país que começaram pelo serviço doméstico…acha que foram as trabalhadoras que começaram a ir embora ou eram as famílias que já não podiam pagar?
Catarina Miguel: Não, não foi pelas famílias já não poderem pagar. Eu acho também que foi porque as pessoas queriam ter uma certa liberdade, havia casas que tinham muitas pessoas e a gente às vezes conversava e havia colegas que eram muito maltratadas…, mas na casa dos pais ainda estavam piores!... porque lá trabalhavam e tinham que dar tudo aos pais, e também não as deixavam ir para aqui, não as deixavam ir para ali, claro, o sair de lá, para ganhar dinheiro, para elas já era muito bom! E depois, também houve muitos patrões…que havia muito disso, eles abusavam das empregadas. Houve muito disso. Houve!...Houve muito disso… (como é que se sabia dessas situações?) Quer dizer…falava-se e depois acabava por se saber porque, porque…havia raparigas que engravidavam…e essa coisa toda, e depois os pais punham-nas fora de casa, não as queriam, punham-nas fora de casa…às vezes apareciam lá… não assumiam que a filha tivesse tido aquela coisa, e assim…eu tive na família uma pessoa assim, que estava a servir numa casa e depois ele engravidou-a e depois sabe o que é que eles fizeram? Olhe, espetaram com ela para o Brasil!... para a família dela não saber que ela estava grávida do patrão! É verdade! Ela teve lá o filho, que eu conheço-o, ele já cá veio, eu conheço-o perfeitamente! E a Z. também sabe quem é…e foi assim…E depois começaram a aparecer aquelas casas de trabalharem a dias, como se chamava, e então muitas pessoas já faziam assim: trabalhavam…começavam a querer ir-se embora porque arranjavam aquelas pessoas onde dormir, onde dormir, mas por dormir eles faziam-lhe a limpeza da casa e depois iam fazer outras horas fora. Era assim que faziam. Porque eu tive cunhadas minhas que foi assim: estavam a servir…pronto, uma delas estava a servir ali na Rua das Janelas Verdes…e fez isso! Estava a servir, mas as senhoras também eram tão coisas, tão coisas que ela agarrou e o que é que ela fez? Arranjou um quarto numa senhora, a senhora não lhe levava renda por ela dormir, mas ela fazia-lhe as limpezas todas, em troca da renda limpava a escada quando pertencia à senhora, como hoje, como nós aqui, cada inquilino limpa o seu vão de escada … eu tenho lá uma cunhada da terra que está num casal a tomar conta do filho, mas vai todos os dias: entra às seis da manhã e sai todos os dias às seis da tarde. Todos os dias, todos os dias. Mas ela lá não dorme. Tem a sua casa, tem os seus filhos, e aquilo deu aquela volta assim… chegou-se a uma altura que as pessoas também…começaram por ter um pouco de liberdade, porque não havia folgas, não havia nada…não foi bem o meu caso. Estive naquela senhora que foi assim, mas depois de 15 em 15 dias já tinha folgas. Mas depois também havia raparigas que não tinham. Lá quando íamos à terra no mês de Agosto, era sempre quando a gente conversava na terra sobre… “Olha, estou em tal lado, estou assim, estou assado…” e depois elas contavam – “Oh, a minha senhora é tão má, eu tenho que andar sempre a comer às escondidas…” havia algumas que passavam fome!...Tinham que andar a esconder, mas elas apesar de passarem mal não queriam voltar porque, apesar de tudo, aqui elas tinham o seu dinheirinho. E lá na terra, não. Porque a gente lá na terra, era assim, enquanto lá estive também andava lá a sachar milho e aquelas coisas todas, mas era de graça…antigamente…lá na nossa aldeia havia 3 pessoas…3, 4 pessoas que eram donas da gente todos, como se costuma dizer. Era como no Alentejo!...A gente chegava lá, eu ainda me lembro, um senhor que já faleceu, ele chegava lá e dizia assim para a minha mãe: “Ouviste?” (era assim que tratavam a gente…) “Vais segunda, terça quarta e quinta, vais para lá, vais tirar as batatas e aquilo e levas a garota!” (que era eu, que era a mais velha) Lá ia eu. Olhe, começávamos a sachar ao nascer do sol até já de escuro, até às 9 horas da noite, eram ali 14 e 15 horas a trabalhar, sob aquele sol ardente…eu era uma garota e não ganhava nada, e a minha mãe ganhava 25 tostões! Por dia, e comer, comíamos, é verdade, ah, isto há sessenta anos! Já viu? E era assim…escravizavam ali a gente, escravizavam ali a gente… e lá está o mesmo o problema…eu aqui, mal, tinha a barriguinha cheia e ainda levava aqueles 20 escuditos, primeiro, depois mais aqueles 40, e pronto, e era assim, e depois quando já tinha 17 já ia ao teatro, era assim. E claro, comecei-me a habituar mais à cidade, mas nunca deixei a minha terra, todos os anos eu ia lá! Mas já lá nunca quis ficar!... Desde que fui tratada mal pela minha tia nunca mais lá quis ficar. Mas… muita gente passou e muito! Muitas raparigas que vieram para aí servir passaram, digo-lhe que passaram…elas contavam, porque também já eram mais velhas do que eu…, mas contavam, “Ai, a minha senhora é tão má, às vezes já são tantas da noite ainda estou a lavar roupa.” Porque aquilo no meu tempo era tudo lavado à mão!... era tudo com o sabão e com a escova…não havia eletrodomésticos! Que é que havia? Havia, olhe, os fogareiros a carvão, os briquetes, não sei se…ouviu falar em briquetes, que a gente ia comprar lá à coisa!...eu também fui muita vez comprar lá as briquetes. Os fogões eram a briquetes, eram a carvão. Não havia eletricidade, não havia fogões elétricos, nem a gás, era tudo a carvão e a briquetes, daqueles fogões muito negros. Depois a gente tinha que arear aquilo tudo ficava ali como uma prata, areadinho, era trabalhoso, era. Aliás, às vezes a cozinheira fazia isso, ela ia lavar o fogão e eu lavava o chão, de joelhos, era tudo de joelhos, era tudo esfregado com uma escova, não foi fácil! Não foi fácil.
P: E conversavam com os patrões?
Catarina Miguel: Não, nada, nada. Olhe, uma vez até foi ali naquela senhora que vivia ali na Avenida L. e até foi muito engraçado. As traseiras…ainda lá deve existir…, mas havia umas rapariguitas…até quando um rapaz olha para a gente a gente fica logo todas deslumbradas, mas eu então era muito engraçado porque havia um campo de basquete no Ateneu Comercial…E as nossas janelas davam para o campo de basquetebol. E depois era muito engraçado porque eu, à noite, quando via que elas estavam lá a jogar…eu ia para lá, gostava de ver aquilo (diz sussurrando), gostava de ver aquilo…Quer dizer que, mais tarde, nos encontrámos na rua e ficámos tão amigos!!..ele próprio reconheceu que nós estávamos ali oprimidas…e o rapaz fez instrução, notava-se que era uma pessoa assim… e então, um dia, eu estava ali a comprar o carvão e ele disse-me: “Olha, tu não és ali daquele prédio?” “Sou”. “Às vezes vejo-te lá quando estou a jogar o basquetebol.” “Ah, olha, é para estar entretida!...Para não me dar o sono…para não me dar o sono…” Olhe, e depois o rapazinho começou-me a dar livros para eu ler, foi, foi…extraordinário, ficámos amigos!...quando se casou convidou-me para o casamento. Ficámos amigos…
P: Na altura tinha voltado à escola?
Catarina Miguel: Não se esqueça que eu, para entrar no ministério, tinha que fazer a 4ª classe. Fiz a 4ª classe em 28 dias. Já viu a minha força de vontade? (Era obrigatório?) Era obrigatório ter a 4ª classe. Eu fui para uma escola ali para o Alto de São João…Era uma Escola de adultos, era uma escola de adultos…Ah, agora não me lembro…ah, ao pé da Paiva Couceiro. Foi em 28 dias…andavam lá muitos adultos nessa altura…E então eu fiz a 4ª Classe…bem, eu tinha uma 3ª classe muito bem preparada… porque era assim! Ela levava-nos até ali e depois deixava-nos…e eu tinha uma coisa de querer ser professora. E então eu…quantos papéis eu encontrava eu lia tudo. Eu sabia a história de Portugal melhor do que os da 4ª classe. Tudo, todos os papéis que eu apanhasse…eu discutia a bola, eu fazia tudo isso, apanhava todos os papéis que houvesse. Eu saía para a rua, se encontrasse um papel na rua eu punha-me a lê-lo, porque eu tinha que estar a ler, às vezes até às 4 da manhã e eu tinha que pegar em qualquer coisa para me dar o sono. E então eu lia e escrevi muito, não dava erros, não dava nada. De maneira que foi muito fácil. Em 28 dias eu fiz exame para entrar para o Ministério. É verdade. Sei que aquela minha força de vontade. Eu para contas e tudo isso eu era uma barra! Era, ainda hoje…e eu era boa em matemática, e redação, eu fixava muito bem as coisas, mas naquela altura, eu sabia, eu tenho ainda aqui o meu livro da 3ª classe que eu não dou a ninguém, não me desfaço dele. Eu sei o meu livro da 3ª classe de cor. Eu sabia aquilo…aquilo para mim era música. Eu andava sempre a ler, sempre a ler, sempre a ler as mesmas coisas… até que eu o aprendi de cor… (risos) Eu até quando fui fazer exame (e comprava algumas revistas?) Não, não. Naquela altura não. Hoje compro, naquela altura eu não comprava. Mas…eu, quando fui fazer exame da 3ª classe a professora chegou lá e disse: qual é a lição que queres estudar? “O automóvel, o trem e o avião.” Olhe, e depois ela disse: olha, mas tu não estás a ler, tu estás a cantar!” (ri com vontade) Eu sabia a letra toda de cor, era uma coisa!... Mas pronto. E pronto olhe, foi assim, a história da minha vida. (ri-se)
(retoma o fio de conversa espontaneamente)
Mas olhe que as mulheres foram escravizadas…E de que maneira! A história de H. aqui da aldeia foi com certeza bem diferente da minha… tenho a certeza absoluta que houve mulheres, raparigas!... que vieram para aqui e que passaram muito a servir. Sei de algumas que até tinham que fugir das casas porque os patrões faziam pouco delas… Eu sei, porque houve até uma que estava ali em Almada e depois ela engravidou do filho do patrão e depois o filho do patrão puseram-na fora…era a realidade, mas aquela realidade encoberta! Porque a gente, hoje, a gente vê tudo na televisão e diz “Ai, isto é uma pouca-vergonha!...” Não é uma pouca-vergonha nada. Não é, não é. As pessoas percam a ilusão de que hoje é pior do que antigamente. Só que antigamente, olhe, a gente não podia falar, não podia dizer, sim, porque havia aquela censura, sim, eu sou do tempo da censura, a gente não podia nada. Eu ainda uma vez estava aqui na 24 de Julho, e estávamos 3 pessoas…já eu era mulher, já…e chegou lá um polícia e queria levar a gente para a esquadra porque a gente estávamos a falar de política e nós não estávamos a falar nada de política! Mas vê, era assim, abafava-se. A mulher andava grávida deste, calava-se, então, e só agora é que aparecem raparigas grávidas, minha senhora? Tanta rapariga grávida que houve naqueles tempos! Tanta! Tanta! Mas era tudo encoberto!... vergonha, isto é uma vergonha para a família…eu tenho uma tia que a filha dela também ficou grávida de um criado…e já estava grávida de 3 meses quando ela descobriu. Sabe o que é que ela fez? Agarrou na rapariga e queria matá-la!... Queria matar a rapariga. Depois é que agarrou, tinha lá uns senhores conhecidos no Rio de Janeiro e levaram para lá a rapariga. Olhe, a rapariga lá teve o rapazinho, lá teve o filho, e lá se casou e já tem 3 filhos …vê? Mas pronto, estava grávida de um criado, mas também podia ser empregada e estar desonrada do marido, que não era.
(faz uma pausa..)
Naquela altura era assim…hoje em dia as pessoas já não vão tanto nisso, mas naquele tempo era assim…Não havia acesso a nada, não havia a comunicação social…agora a gente abre a televisão e ouve tudo… Eu alguma vez tive um brinquedo? Eu nunca tive um brinquedo! A minha mãezinha, coitadinha, não tinha para nos dar e não nos dava…, mas ainda uma vez, no meio deste mês de agosto, há lá uma grande feira de S. B. que começa agora…é bonita, lá para eles, pronto, é o que têm, não é? E então, a minha mãe, vendiam aquelas bonecas de papelão, aqueles carrinhos de madeira, aquilo tudo. E eu, coitadinha de mim, queria uma boneca. Queria uma boneca…e comecei a dizer para a minha mãe que queria uma boneca e a minha mãe, coitadinha!...nunca me esqueço disto, a chorar, disse “Oh filha, mas eu não tenho dinheiro!..” mas eu para te comprar para ti tenho de comprar para a F. e para a I.…olha, mas deixa que eu vou lá para baixo e vou apanhar umas ervas de pinha que nascem ao pé do milho e vou vender para ver se eu consigo arranjar dinheiro para te comprar as bonecas.” E foi o que ela fez… eu nunca me lembro, e digo isto com mágoa de a minha mãe me agarrar assim ao colo e me dar beijinhos como a gente hoje faz aos filhos e aos sobrinhos e aos netos! A gente hoje agarra os filhos e dá-lhe carinhos…e a mim fez-me falta! Eu senti imensa falta!... eu às vezes chorava e a minha mãe nunca me deu um beijinho, já grande, e eu às vezes chorava!... Ai, a minha mãe nunca me deu um beijinho…Coitada, ela não tinha tempo para nada. Ela agarrava na gente e ia trabalhar fora e deixava o comer e dizia “aquecei-o e comei-o”…vinha à noite, coitada, com três filhos, naquele tempo, sozinha, a ganhar 5$00 por dia quando os ganhava, quando era no inverno não ganhava nada…e eu hoje pego nos meus sobrinhos e sinto aquela coisa de os acarinhar e ao mesmo tempo sinto, ai, a minha mãe nunca me fez isto!...é verdade, a gente não tinha carinho. Os nossos pais não eram carinhosos, mas eles não tinham…a minha mãe, ai de alguém que tocasse na gente! Mas era um amor diferente. Elas tinham amor à gente, mas não eram capazes de o demonstrar... eu nunca me lembro de a minha mãe me dar um beijo! Não me lembro! A minha mãe trouxe-nos sempre limpinhas! Com uns lacinhos nos cabelos, nunca andámos descalças…nunca. Nunca passámos fome. Comprava quatro sardinhas, uma era para ela e o resto era para a gente. Nunca passámos fome, mas era daquilo que havia, era as batatas e pão, mas carinho, não. Parece que ainda me lembro. Eu dormia com a minha mãe, não é, nós dormíamos as 4, a minha mãe dormia com a gente as 3, era assim, e eu gostava muito de dormir com o meu avô e com a minha avó. Porque o meu avô acarinhava-me! E então era uma guerra para dormir com eles! A minha mãe ficava danada! E o meu avô acarinhava-me e eu sentia aquele calorzinho, aquele carinho que a minha mãe não me fazia…, mas também quando eu me fui embora ela também, foi como se costuma dizer, foi como quem lhe arrancou os dentes!...ela chorou tanto, ela não queria nada que eu viesse, nada! Pronto, porque mãe é mãe e ela podia não me acarinhar, mas o amor dela estava lá… e pronto, mas a vida foi isto e eu também depois ainda a ajudei naquilo que eu pude. Fui amiga dela e ela era minha amiga. Entretanto, a do meio também foi para a França e também já a ajudava…E é assim. A gente levantava-se de noite quando era dezembro por causa da apanha da azeitona…Frio! A nevar, a nevar… Nós, garotinhas, lá íamos andar uns 20 Km ou mais para apanhar a azeitona. A gente fazia fogueiras para aquecer as pernas…uma vez quando vim para Lisboa a senhora disse-me, olha, vais ali ao talho e trazes 6 costeletas. E eu nunca me esqueceu isto. Eu cheguei lá e disse ao senhor do talho: “olhe, dê-me 6 costeletas de porco.” Quando o homem começou a cortar as costeletas eu disse assim para o homem (começa-se a rir com vontade) “Isso é costeletas de porco? Lá na casa da minha avó também há dessa carne!...(ri-se)”. Era carne de porco, mas eu sabia lá que isso era para se comer!... eu sabia lá o que eram costeletas, eu sabia lá o que era um bife! Não, não sabia!... agora já não, mas nos primeiros anos que eu ia à terra ia lá ao cafezinho e dizia, dê-me uma bica. Ninguém sabia o que era uma bica!... nós lá nas províncias éramos muito tapadinhos porque, lá está, nós não tínhamos acesso a nada! Nós não tínhamos acesso a nada…A gente ia daqui de Lisboa para lá e as pessoas diziam, “Ah…tu vens muito bonita! Vens de Lisboa, vens muito bonita!...” Porque lá está, não se apercebiam que estávamos num meio diferente! A gente aqui andávamos limpinhas, lá andávamos sujas porque andávamos na terra… uma vez, já eu tinha aí uns 18 anitos e tinha feito uma permanente, tinha cortado o cabelo, tinha uns brinquinhos de ouro que a minha mãe me tinha comprado, e então, ao domingo fui à missa e levei um vestido e então elas puseram-se a dizer: “Ah, mas tu fizeste-te uma vaidosa! Foste tu para Lisboa para te fazeres…” E eu disse, “Não, não ando vaidosa, só que lá não ando suja como andava aqui. Esta roupinha era a que eu tinha lá, e eu agora venho para aqui e venho de férias e não venho para aqui trabalhar e andar outra vez a apanhar batatas.”. Era uma censura…parece que era assim uma censura…e então havia outra coisa…a rapariga que viesse para Lisboa já era raro casar-se lá na terra porque as pessoas lá tinham a mania que a gente vinha para aqui e se entregava aí a qualquer…Eu ainda uma vez namorei lá um rapaz da terra e um dia mãe dele disse, e eu larguei-o por causa disso, e se eu gostava do rapaz e foi o primeiro namorado que eu tive, mas larguei-o por causa disso porque cheguei lá, e como ia assim já arranjadinha a mãe disse: “Onde é que tu ganhas o dinheiro? Andas a deitar-te debaixo de uns e doutros?” Eh pá… quando a mulher me disse aquilo eu era um bocadito senhorita do meu nariz e disse: “O que é que você está a dizer? Pois você julga que por vir aqui com um vestido?... eu trabalho!” “Ai, o meu Zé tem que ver o que é que anda a fazer!” quando ela me disse aquilo, eu adeus passa muito bem. Nunca mais quis saber do rapaz. Quando ele lá foi a casa da minha mãe eu disse, “Oh menino, a partir de agora nunca mais pões aqui os pés! Arranja uma rapariga lá à vontade da tua mãe porque a tua mãe disse-me isto, isto e isto.” Mas tinham a mania de dizer essas coisas. E eu, quando vim para cá, a minha madrinha logo me avisou, já nessa altura diziam essas coisas: que havia as casas dessas tias onde os rapazes, para não levarem as raparigas para as casas das meninas diziam que as levavam a casa das tias. Era muito vulgar aqui em Lisboa isso. Era vulgaríssimo. Era vulgaríssimo. Então a minha madrinha avisou-me para eu nunca ir para casa dessas tias porque era onde estavam as mulheres da vida, aquelas mulheres que se entregam a qualquer homem…E tu não vás! Olha que depois fazem pouco de ti e deixam-te com a barriga à boca.” Eu perguntei-lhe o que era deixar de barriga à boca e ela disse “Deixam-te grávida!” e eu então tive medo e quando comecei a namorar o meu marido e ele um dia disse, olha, hoje vais conhecer a minha tia Deolinda que eu quero-te apresentar a ela. E não, eu não fui. Fui com ele até à rua, ele chegou lá, bateu-lhe à porta, ela também estava lá a servir em casa duma senhora, ela veio à janela pedir-me para eu entrar mas eu é que não entrei. Ela é que teve que cá vir abaixo. Fiquei com aquele medo. Diziam, diziam. Isso era muito vulgar naqueles anos 50, eram as casas das tias.

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