Uma vida muito comprida
Item
Tema
A vida de Maria do Mar, cozinheira de profissão
Título
Uma vida muito comprida
Entrevistado
Maria do Mar (pseudónimo)
Resumo
No dia do seu casamento, Maria do Mar atravessou a ponte 25 de abril que, naquele tempo, se chamava Ponte Salazar. Assim definiu a sua lua de mel. Já tinham atravessado o rio, mas nunca de camioneta, com as vistas de cima, até Cacilhas. Chegou a casa, despiu a roupa, vestiu outra, e foi para o restaurante adiantar o trabalho de véspera porque à quinta era dia de cozido: pôr sal nas carnes e deixar a loiça arranjada. Maria não tinha direito a salário, mas durante anos trabalhou para o pai, e depois para o marido. Diz que os mais ricos iam ao seu lugar de comidas e bebidas porque também procuram onde é mais barato e bom. Sobreviveu a uma explosão de gás. O espaço era tão exíguo que o seu corpo não cabia estendido no chão. Ficou o corpo de lado e foi arrastada por um colega de trabalho. A sua reforma é, hoje, de 270 euros. Parece que teve uma vida comprida, diz olhando para o seu trajeto, em retrospetiva.
Data de nascimento
11 de março de 1945
Data de recolha do testemunho
22 de maio de 2022
Local de recolha
Pequena vila do distrito de Lisboa
Recurso
Transcrição de entrevista por gravação em audio
Autor da recolha
Ana Sofia Figueiredo
História do trabalho hoteleiro
P: Gosto sempre de começar por perguntar onde é que nasceu, como é que era a sua vida na altura, qual era a profissão dos seus pais e o caminho que fez até chegar aqui
R: A minha mãe, claro que a minha mãe trabalhou sempre só em casa. O meu pai era lavador de carros (lavava carros, pronto), mas depois pensou em estabelecer-se então abriu uma mercearia. Eu andava na escola, quando sai da escola tinha 11 anos e depois fui trabalhar para a mercearia.
P: Então foi ajudar o seu pai?
R: Pois. Depois, até aos 19 anos, fui para Lisboa, mais o meu pai. O meu pai estabeleceu-se lá mais uma casa de comidas. Ali trabalhei, e tinha empregados, tinha cozinheira, tinha essas coisas todas. Mas como o meu pai não se deu bem, aí nessa casa, passou-a e fomos para outra. Essa outra só levava uma luz de cozinha, e aí comecei eu a trabalhar mais ele. Trabalhámos sozinhos, os dois, eu como cozinheira e ele ao balcão. E ali andámos 9 anos!
P: Foi onde?
R: Em Lisboa, na Graça. E depois, comecei a namorar. O meu marido estabeleceu-se, antes de casar, e depois casámos, e ali fui cozinheira mais uns anos.
P: Foi cozinheira nessa casa, com o seu pai, então?
R: Do meu pai no início, e a depois do meu marido também.
P: Então juntaram-se todos no mesmo negócio?
R: Não, o meu pai não se juntou. O meu pai depois veio outra vez para cá (P.), novamente. Pôs um aviário e assim era. E depois eu o meu marido estabelecemo-nos, mas era sociedade.
P: Ser sociedade é o quê?
R: Sociedade quer dizer que tinha outros sócios. Ele era sócio, tanto como os outros, mas trabalhava e tinha o ordenado dele, não é? Depois eu comecei a trabalhar, a ajudar e tal, e fiquei também como cozinheira. Isso já em Cacilhas.
P: E quando é que veio para P.?
R: Quando voltei para cá, já não fui mais cozinheira, só em casa e a fazer alguns trabalhitos. Eu cozinheira fui 28 anos. Depois, mais a minha irmã, arranjámos sociedade e abrimos um minimercado.
P: Aqui em P.?
R: Sim! Aquela casa de primeiro andar era uma casa com dois andares e a gente morava por cima, e por baixo era a mercearia, era a loja do “Tio Eduardo”. Claro que depois a gente passámos a casa lá de Cacilhas, e viemos para cá. O meu marido reformou-se, mas começou a trabalhar. Quer dizer, ele não se reformou bem naquela altura. Doi só depois de ter começado a trabalhar na bomba. E eu trabalhava ali com a minha irmã, onde estivemos uns anos. Depois, aquilo não estava a dar muito.
P: Não?
R: Não. Sabe que os santos da casa nunca fazem milagres... começaram a abrir muitos supermercados. Quando começou a abrir o Pingo Doce, e essas coisas todas, então a gente perdeu, até que se fechou, fechámos aquilo… o meu pai morreu, depois morreu a minha mãe, morreu a minha irmã e eu depois empreguei-me. Empreguei-me aqui numa senhora que me pediu se eu podia ir fazer o lugar dela enquanto ela era operada. Então fui para S. trabalhar, chamava-se “O B.”.
P: Mas ainda esteve a trabalhar antes disso, não foi?
R: Ah sim! Tinha 62 anos. Quando fui para Lisboa tinha 19 anos. Quando me empreguei mesmo, porque onde trabalhei mesmo foi na casa da família, no restaurante que o meu pai abriu, foi aí. Mas depois aquilo foi para o meu marido. E fui trabalhar aos 62 anos em T. Aquilo tinha um café onde trabalhei a cozinhar.
P: E os filhos? Como é que geriu isso?
R: Elas andavam a estudar, uma andava a estudar aqui, a outra também andava a estudar, mas em Almada. Mas depois veio para cá… a gente passámos a casa e ela não quis ir mais para a escola. Eu ainda a inscrevi lá, mas ela não quis estudar mais, e agora dá-me na cara que eu é que fui a culpada.
P: Mas nasceram aqui em P.?
R: Não, nasceram em C. mesmo. Tanto uma como a outra.
P: E teve as suas filhas com que idade?
R: Tinha 28 anos na primeira, e tinha 36, parece-me, quando tive a segunda.
P: Foi quando arranjou mais estabilidade? E as coisas já estavam mais seguras?
R: Ah não, porque depois tinha de andar com as filhas atrás de mim e íamos trabalhar, porque a casa pertencia também ao meu marido, e as miúdas também tinham de lá estar, não é?
P: Elas também iam para lá trabalhar?
R: Trabalhar? Elas nunca trabalhavam. Também eram muito novas, a mais nova tinha 5 anos quando veio para P., a mais velha havia de ter uns 14 anos. Lá não faziam nada… uma vez o pai obrigou- a ir enxugar a loiça, ela não queria e levou uma palmada e não sei quê, cai-lhe um prato no chão e partiu o prato. Ela depois não fez nada. Aqui, nunca fez nada… depois é que começou a pedir à minha prima, que fazia luvas, então ela começou a fazer luvas. Eu nunca lhe pedi dinheiro nenhum, ela é que guardava e era para ela, mas pronto, não faziam mais nada. Mas hoje dá-me na cara que trabalhou muito. Casou com 19 anos… sim, ela casou tinha 19 anos; foi muito nova. Mas pronto, depois quando fiz 68 anos fiquei em casa e já não fui mais porque o B. fechou. Já não fui para mais lado nenhum. Também nunca procurei trabalho, vinham era cá pedir para eu ir trabalhar. Uma senhora veio-me cá pedir para eu ir enquanto ela fosse operada, depois eu fui trabalhar e depois olhe eu já não tinha vontade de fazer mais nada.
P: Porque já estava cansada?
R: Sim, mas a senhora coitada, foi infeliz e morreu. Depois da operação ela morreu. Então continuei lá a trabalhar, com a filha dela.
P: E eles gostavam do seu trabalho?
R: Eu trabalhava mais ou menos como ela, a senhora que foi operada era boazinha, coitada…só esteve lá um dia comigo a dizer-me os hábitos da casa, como é que se faziam as coisas. E lá fui, aprendi bastante com ela, num dia só aprendi muito com ela.
P: E quando para Lisboa?
R: Em Lisboa aprendi à minha custa.
P: Então nem teve oportunidade de ver os outros trabalhar?
R: No princípio ia à Praça com o meu pai, e vinha da praça e trazia peixe, caldeirada… mas eu até dizia: “Ó pai, mas eu nunca fiz isso!” Nunca tinha feito, mas saía-me sempre bem!
P: A sério?
R: Sempre bem! Até uma sopa de favas que eu nunca tinha feito! A minha mãe nunca fez sopa de favas.
P: Então como é que sabia fazer?
R: Sei que fiz com gosto porque a senhora que foi lá comer também era cozinheira e ela comeu muita sopa. Eu disse: “Nunca fiz nem nunca vi sopa de favas”, porque eu não usava muito. Elas punham favas em qualquer sopa, punham hortaliça e misturavam…. A minha mãe não misturava favas, ela não era muito amante de favas.
P: E em Lisboa, como é que eram as suas condições de trabalho? Recebia algum dinheiro?
R: Tinha muito más condições! Eu trabalhava com fogões de petróleo. A casa tinha um fogão daqueles grandes de lenha, mas o fogão não prestava, nem deitava fumo, nem nada. Então pus os fogões em cima do outro a ferro e ali cozinhei, sempre. Não precisei de mais. Quando precisava de assar coisas no forno tinha o padeiro ao pé. Ia ao padeiro e assava lá.
P: E teve algum acidente na cozinha?
R: Sim! Num dia apareceu-me um grupo que joga à bola e foi lá com o “Águias do Oriente”, lá no sítio onde eu estava, então eles encomendaram-me bifes para todos, e eu assim, “mas como é que eu vou fritar batatas para tanta gente?”. Eram os dois grupos, eram 22 pessoas, mas era mais porque depois há suplentes e pronto, toda a gente vem atrás da equipa. E depois queimei-me! Fui ajeitar o fogão, a frigideira untou-se e queimei esta mão toda aqui acima. Ainda quando está frio nota-se. É uma mancha branquinha, esta mancha toda. Eu fui ao Hospital de São José.
P: Teve de fazer alguma cirurgia?
R: Não, aquilo curou sozinho.
P: Como é que eles fizeram o curativo?
R: Sei lá, não fizeram, até se nota ainda, chega cá acima.
P: E teve mais alguma com o fogão ou com o forno?
R: Ah, isso foi em C. Uma explosão de gás! Eu tinha feito bacalhau à Gomes de Sá, pus no forno, e ao fechar o forno, o forno apagou-se, e eu não reparei, quando eu comecei a tocar disse: “Então, mas isto está frio?” Vou a abrir aquilo e tinha os lumes todos acessos em cima e explodiu tudo. Eu caio para o chão… não caí mesmo no chão porque as cozinhas eram sempre pequeninas. Bati contra a porta. Os vidros da cozinha foram parar à rua e ficavam lá no fundo, mas foram parar à rua e eu sei lá… tanto chiqueiro, que eu nunca tinha visto tanto chiqueiro! Como é que o fogão tinha acumulado tanta porcaria? E estava sempre muito limpinho, mas eu não sei realmente onde é que acumulou tanto lixo. Foi porque então, o fogão ficou todo desmontado! O meu marido tinha ido para a praça, e eu, claro, fiquei na cozinha. Tinha batatas a cozer num tacho. Essa foi o que eu tive mais sorte. Tinha um tacho grande com dourada em lume brando e tinha batatas a cozer, e tinha a sopa, também ao lume. E então o meu marido chegou lá à cozinha, que ele tinha ido para a praça.
P: E ia buscar comida para cozinhar?
R: Pois! Peixe, carne.
P: Pois era sempre tudo fresco?
R: Sempre! Tudo fresco, era na altura, como é que aquilo se chama? A Ribeira! Iam para a Ribeira. E quando ele chegou ao pé de mim as pessoas já tinham dado conta porque havia uma barbearia ao lado. Então os barbeiros o que é que fizeram? Com medo de ele ficar assim, chegar ali de surpresa, ficaram à espera dele quando saiu do barco “olha, passou-se isto assim, assim…”
P: Mas quando ele chegou lá já tinham tratado do assunto?
R: Sim, e depois teve que se fechar as portas. Aquilo era só lixo, eram os vidros, porque aquilo era tudo envidraçado, tinha umas redes também, que ficaram todas soltas. Isso é que foi uma explosão de gás, só visto! Então estavam lá dois clientes e um deles alevantou-se.
P: E foi-se embora logo? Não chamou ajuda?
R: Foi-se embora logo! E não chamou. O único que me ajudou foi o empregado. Começou a puxar-me, foi pela camisola. Ele não sabia o que é que havia de fazer, até ficou pior que eu! Ele ficou branquinho mais cal que a parede! Não sabia o que é que havia de fazer e ainda disse: “vê lá se consegues tirar essas coisas aí de cima e desligares o fogão, porque eu já desliguei o gás!”, porque eu tinha a bilha lá dentro. Eu mesmo assim, quase deitada ainda consegui desligar o cabo a tempo, senão ia à vida.
P: E não estava inconsciente?
R: Não, nada! Depois o meu marido levou-me ao hospital, porque eu tinha-me queimado! A minha sorte foi, que não foram tachos com gordura. Foi o das batatas cozidas, que era só água! Caiu mesmo aqui, mas o médico tratou de mim com o seu tempo e disse-me: “teve muita sorte que podia ter ficado com o seu peito colado!”. Por causa dos ossos. Eu apanhei assim umas queimadurazitas não é, mas não eram pequenas!
P: E a D. Maria só estava na cozinha ou também ia servir?
R: Às vezes ia, como aquilo era assim uma coisa pequena, como não era assim uma coisa grande.
P: Havia mais intimidade com o cliente?
R: Sim! Era uma coisa mais familiar, ia lá pessoal da L. comer ao almoço. Ao jantar, eu não tinha horas. Depois, na altura em que fecharam as casas daquelas mulheres, iam muitas para a Costa da Caparica, e claro depois vinham às tantas, aquilo tinha licença até às duas horas da manhã. Tínhamos lá até às duas horas. Eu, quando o serviço estava despachado e via que tinha a cozinha arrumada, ia-me embora. A essa hora eram eles que faziam.
P: Quem eram eles?
R: Era o meu marido e outro que estava ali.
P: E os clientes eram mais amigos ou tinham um pouco de tudo?
R: Sim, tínhamos muitos amigos.
P: Que já conheciam o espaço, a comida…?
R: Pois, exatamente. E foram mesmo os clientes é que pediram para eu ficar, porque o meu marido tinha ficado sem empregada, tinha a empregada a levar o saco cheio. Realmente estavas a dizer e é verdade, há umas historiazinhas que realmente…
P: Ah, mas conte!
R: O meu marido andava desconfiado que ela andava a roubar, e andavam sempre a espreitar. Num dia, havia falta de bacalhau e é claro, despediu a empregada. Porque ela enchia o saco e ia guardar a uma casa que vendia hortaliças e assim, um lugar de hortaliças. Fiquei eu a trabalhar, mas o meu marido não gostava…porque eu estava grávida da mais velha, e é claro que ele achava que eu não devia de estar ali a trabalhar. Trabalhei sempre, mas nem ganhava nada!
P: Não?
R: Não, eu comia. Mas trabalhava muito.
P: Mas não ganhava para estar ali a trabalhar?
R: Era o meu marido que estava ali a tomar conta, ele já ganhava pouco, também… ainda quanto mais me dar o ordenado… não me dava. O meu marido é que foi culpado sempre, nem em caixa nem nada. O depois o guarda-livros, o guarda-livros era genro de um dos sócios.
P: O que é que era um guarda-livros?
R: Um guarda-livros é o que toma conta da escrita.
P: O guarda-livros ia lá para quê?
R: Ele ia lá quando, por exemplo, a gente sabia que estava lá a fiscalização. A gente telefonava para ele. Assim, ele aparecia, e alguém o atendia, por causa de ver as escritas das finanças, para ver se estava tudo em ordem e essa coisa toda. Depois ele é que respondia, ele sabia como é que aquilo andava, porque ele é que fazia a escrita toda. E depois quando foi para lá o outro, disse assim: “Ó A., mas você não tem a sua mulher à caixa?” e ele assim: “Pois não, nem nunca falei, nem com o teu sogro…”, “Ah, mas a gente vai pôr!”, e então pôs! Foi desde aí que eu comecei a receber alguma coisa, porque eu não recebia nada! E é isso que me está a valer agora, senão não tinha nada!
P: Foi quando começou a descontar para a Segurança Social?
R: Pois! Só depois dos 70 anos é que eles dão… que eles dão, mas a gente é que tem de andar a tratar disso e de papéis antes e assim. Sei lá os papeis que lá pôs…. Porque eles diziam que eu não tinha direito a nada, não tinha direito a nada, e um dia fui lá mais a minha filha, fomos lá, porque das outras vezes perdemos muito tempo ali. Mas consegui! Porque estava lá uma senhora a dizer assim: “O quê? Que não tem direito a nada? Toda a gente tem direito a uma pensão!”. De maneira que ela depois esteve a ver e diz: “Então claro! A sua mãe descontou 6 anos.
P: Foi 6 em Lisboa ou depois quando veio para cá?
R: Em Lisboa! Aqui eu nunca tive.
P: Então nunca descontou cá, foi sempre por fora?
R: Sim, descontei só em Lisboa, 6 anos.
P: Eram tempos difíceis.
R: Eram…. Depois mostrei à minha filha, à mais velha, que até estava em Inglaterra. Ela teve de tratar lá duns papéis, mandou para cá e depois não tinha direito a nada! Tinha sim senhor, elas é que não querem saber!
P: E o seu marido também descontou?
R: Não! O mal foi esse, porque depois ele recebia uma coisita de nada, também. Era 270, se eu não tivesse…e só consegui depois de ele morrer. Porque já tinha direito a 200€, e é o que eu recebo, porque o ordenado era pouco mais disso. Mas o meu marido, por exemplo, se ele estivesse vivo e eu estivesse a viver só da reforma do meu marido, já tínhamos morrido de fome! Ele recebia 270 ou que era.
P: Isso aconteceu porque não tinham todos os papeis?
R: Pois! O meu marido podia ter tido uma reforma boa porque começou a trabalhar aos 15 anos, na altura em que veio para Portugal.
P: O seu marido era do estrangeiro?
R: Era de Galiza.
P: E como é que se conheceram?
R: Porque eles nos dias de folga iam à casa do meu pai. E depois a gente começou a piscar o olho um ao outro.
P: Então e ele falava português?
R: Falava alguma coisa, arranhava. Mas também coitado, também o chateei bastante não é, que eu não percebia o que ele dizia, então era chata. Estava pior que agora, mas agora é surda.
P: E depois conseguiu aprender espanhol?
R: Não.
P: Ele é que aprendeu português?
R: Sim, ele é que aprendeu português. Ele só lidava com portugueses, mas lá paravam muitos espanhóis, lá na casa! Iam lá muitos almoçar, na sua folga pelo menos eles iam lá.
P: E como é que comunicavam com eles?
R: Haha… sei lá. A gente ainda entendia e fazíamos assim uns gestos para também tentar perceber não era. Mas a pronuncia nunca sai… eles têm muita coisa em português também! Falam muito parecido. Umas palavras têm mais uma letra, outras menos uma letra, mas é muito parecido. Porque é no norte de Espanha, na Galiza, é um sítio entre o Norte. Então o Presidente de lá… agora não me estou a lembrar do nome dele, que os nomes eu esqueço-me.
P: O Presidente de onde?
R: De Espanha! Antes do Rei Carlos, foi esse presidente que pagou os estudos todos ao Rei Carlos. O Rei Carlos ficou sem pai, era novo! Aquilo era reinado e depois o reinado passou a ser… O meu marido jogou muito à moeda com o Rei Carlos. O Rei Carlos passou por aqui, em Portugal. E ele, o meu marido, chegou a trabalhar, antes de estabelecer, trabalhou em boites também, à noite, e foi aí que ele o conheceu. Depois quando eles saíam, vinham cá para fora jogar às moedas. Então ele é da idade do meu marido.
P: Então e ele ia lá ao seu restaurante? O Rei Carlos?
R: Ao meu, não!
P: Qual foi a pessoa mais importante que serviu? Foram lá pessoas importantes?
R: Sim, foram! Iam lá advogados, por exemplo.
P: Pois, eram pessoas assim mais da alta sociedade na altura, não é?
R: É, mas eles também procuram onde é que era o mais barato e que seja bom!
P: E o seu era a escolha mais barata?
R: Sim, claro! Porque nos outros lados, nos restaurantes paga-se bem! Sempre foi assim.
P: E o seu era mais tradicional?
R: Era! Não estava como restaurante, estava como comidas e bebidas.
P: Era estilo Snack Bar, agora, porque antigamente não sei como é que se chamava.
R: Porque eu ainda estava solteira e depois juntei-me com ele, com o meu marido! Porque ele coitado, como ficou sem a cozinheira, telefonou-me logo para casa, pediu para o desenrascar e pronto lá vou eu, para o desenrascar.
P: Mas ainda não namoravam nessa altura?
R: Quando ele se estabeleceu? Já! Então ele estabeleceu-se em novembro, em janeiro fui para lá! Juntámo-nos, já não esperava outra coisa, eu namorava com ele há 6 anos.
P: Ah foi? É engraçado ver porque as pessoas na altura nem namoravam, casavam logo e a D. Maria ainda namorou bastante tempo!
R: Não era bem assim…. Havia namoros, a minha mãe também… acho que também namorou 6 anos. A minha irmã, por exemplo, namorou 9 anos!
P: Antes de casar?
R: Pois, então ela começou a namorar tinha 14 anos! Aliás, ainda não tinha bem os 14.
P: Então e usava farda?
R: Não!
P: Então ia com a roupa normal? E o cabelo, ia apanhado?
R: Não, isso a toca era obrigatória, tinha que usar!
P: E os empregados também andavam com roupa normal ou tinham um avental?
R: Tinham roupa normal.
P: E não tinham um avental? Ou alguma coisa que os identificasse?
R: Quando era preciso, tinha que se pôr. Eu sim, eu tinha, mas era meu!
P: E cá em T. já tinha farda?
R: Ah sim! Não tinha farda, mas os aventais eram da casa. Os aventais, por exemplo, numa casa que estive, na Boavista, eram da casa. Mas lá não estive assim muito tempo, porque eu ali nunca me senti cozinheira! A mulher metia-se em tudo, até houve um dia em que me estragou um tacho de polvo, de arroz de polvo.
P: Mas quem era essa mulher?
R: Era a mulher do patrão.
P: E ela fazia o quê lá?
R: Olhe, era tudo o que estava bom, era ela que fazia…, mas na verdade não fazia nada. Mas para estragar ela estragava. Mas depois quem ouvia ralhar era eu, lá vinha o patrão…Ela meteu-se enquanto eu fazia o polvo. a mulher esfregava aquilo com quilos de sal, ainda por cima como era polvo fresco, até deita aquela goma…não era preciso isso. O polvo tem de ser bem batido e lavado, com água e sal, se estiver realmente muito coiso, mas não era assim! Não pode deixar ao sal, a gente sabe logo quando o polvo está salgado, quando vamos fazer a comida a gente põe o sal, nem vai provando. Eu, é raro provar, mesmo cá em casa, é raro provar a comida.
P: Então e como é que sabe que está bom?
R: Eu sei, mais ou menos. Se ficasse insonso tinha remédio, agora se ficar salgado, ficava logo mal.
P: Bebe-se água.
R: Exatamente! Eu preferia que ficasse insonso que salgado. Qualquer coisa punha-se sempre um bocadinho de sal para acrescentar.
P: E teve quanto tempo nessa churrascaria?
R: Não sei bem, mas aí uns 4 meses ou qualquer coisa.
P: E foi o seu patrão que a mandou embora ou foi a D. Maria que quis ir?
R: Fui eu que me despedi. Porque houve uma vez que ouvi uma coisa. O meu marido, ele vinha-me pôr ao churrasco, e houve uma vez que ouvi uma conversa e não gostei. E depois chamei o Sr. Vítor, ele tinha um talho também ao pé, e disse: “Ó senhor Vítor, eu estou aqui a mais, porque a sua senhora afinal é que é aqui a cozinheira, porque eu aqui não me sinto cozinheira. Se a comida está boa, é ela que faz, se a comida está má, sou eu! E ela mete a colher em todo o lado! Portanto, senhor, eu vou-me embora!”. Mas foi maravilhoso, ele realmente concordou comigo.
P: E tinha que idade?
R: Eu tinha 62 anos, foi em 2005, mais ou menos, foi antes de trabalhar em T. Porque essa coisa de salgar muito a comida, mexeu muito comigo! Até pensei: “Não vou é trabalhar em mais lado nenhum!”.
P: Então foi primeiro para Torres Vedras e só depois é que foi para lá?
R: Foi, porque aquela casa era de um primo meu que abriu.
P: E como é que correu lá?
R: Ah correu bem, depois foi para lá a sogra dele. Eles depois começavam-se a cansar daquilo porque muita gente não gosta de trabalhar. Não gosta porque é aos sábados, aos domingos, aos feriados… e mesmo assim eles fechavam muito. E na hora do almoço, em vez de estarem ali a tomar conta, não. Saíam e iam tomar café com esse casal. Não estando o patrão, ficava eu e a sogra dele.
P: A servir e a cozinhar?
R: Pois, “Eu faço ali trabalhos que não me pertenciam a mim. Eu não pertenço a arrumar loiça e a lavar roupa!” Porque também se lavava lá roupa, os panos de cozinha. “O meu serviço aqui é de chef! Portanto não tenho nada de estar aqui a fazer limpezas.” Porque às vezes saía às cinco ou mais, da tarde. Eles não davam jantares, só almoços. Ela num dia até levou a mal e disse: “então olhe a porta da rua é serventia da casa!”. E eu assim: “Olhe, nem mais nem menos, amanhã já não venho aqui trabalhar!”. Então para estar a ouvir as coisas que ela dizia e mandava para as pessoas… E depois a confiança que ela dava aos clientes… A gente tem de saber-se comportar como deve ser.
P: E nesse, de T., quem é que recebia mais? As mulheres ou os homens? Ou não havia essa diferença?
R: Como não havia mais empregados, era só eu, ele e a sogra dele que foi para lá muito depois, então não havia essa diferença.
P: E nunca se sentiu muito cansada?
R: Sim! Pois por isso é que eu me afastei. Pois claro, eu também já não era criança, já tinha 60 e tal anos.
P: E as pessoas pediam muito rigor, eram muito exigentes?
R: Não eram assim muito, não tinha razão de queixa. Mas quem os aturava eram eles. Vendíamos também muita comida para fora.
P: Mas as pessoas pediam para levar para casa?
R: Era!
P: Quando é que surgiu isso? Já em Lisboa também fazia?
R: Às vezes sim! Mas era mais raro. Quando estive em Lisboa, na casa do meu pai, aqueciam-se muitas panelinhas porque pediam.
P: E a D. Maria falava muito com os clientes?
R: Sim! Sempre lá ia um perguntar isto ou aquilo.
P: Nunca teve uma queixa?
R: Tive! Tive uma queixa uma vez, apareceu uma baratinha na comida! Estava nas ervilhas.
P: E o que é que fez?
R: Olhe, foi a uma senhora que trabalhava na U. E ela compreendeu, entendeu como é que podia ter sido.
P: E a senhora não se chateou?
R: Não, ela não ficou chateada, ela continuou.
P: Ah ainda bem! E lá em Lisboa, não teve assim nenhuma queixa?
R: Em Lisboa também foi por causa de uma barata, a gente ia levar os tabuleiros para assar o peixe e assim. Mas claro, nos padeiros é normal, não há padeiro nenhum que não tenha baratas. Então em Lisboa, na cidade velha! Na moradia, tinha lá baratas…ah credo! Aquilo até tinha umas bombas, é assim que se chama. E um dia, o meu pai à noite fez aquilo, parecia uma chuva! Mas assim, daquelas grandes! Foi onde eu conheci isso, que eu não sabia o que eram baratas. E percevejos, que eu conheci, em Lisboa! Aquelas casas velhas, em Lisboa, aquilo estava tudo minado.
P: Mas o seu restaurante não tinha nada disso?
R: Mais ou menos. De vez em quando apareciam percevejos, mas só se viam à noite que era quando andavam de um lado para o outro. Houve uma vez que o meu irmão foi picado e tinha o corpo todo cheio de borbulhas, e tive de lavar o colchão com petróleo, que era como se lavava na altura. Tinha havido uma limpeza porque o meu pai depois só abriu quando fez umas obras. Realmente, eu parece que tenho uma vida muita comprida.
P: Então e quem é que lavava os copos e a loiça? Tinham um empregado para isso?
R: Não! Lavávamos a gente nos intervalos. Quando era preciso, se não tivéssemos, a gente tinha de lavar à pressa. Um dia a casa foi assaltada, a do meu pai! Quando passa o vento, as portas da cozinha estavam abertas, tinha um guarda vento, que é aqueles portitos que antigamente se usava, de madeira. Aquilo tinha lá um degrau onde tínhamos uma parreira grande de vinho, e ao subir as escadas, estava lá uma camisola cheia de vinho, e eu: “Ah!” O meu pai coitado levantou-se, porque na altura era eu mais ele, a minha irmã ficou cá com a minha mãe, aqui na P.
P: Então, e no assalto, o que é que levaram?
R: Levaram a registadora.
P: Com o dinheiro?
R: Era com tabaco. Dinheiro não havia lá muito, o meu pai era raro deixar o dinheiro lá. Só tinha uns trocozitos, deixava-se lá para ter trocos. Mas, às vezes, as pessoas não podiam pagar e então deixavam relógios, coisas assim. O meu pai, coitado, é que teve de pagar o concerto da registadora, porque eles foram metê-la dentro de um poço. Ainda gastou 900 escudos que naquele tempo era muito dinheiro.
P: E como é que aprenderam a troca da moeda?
R: Fomo-nos habituando. Eu vim para cá (P.) em 1982, que foi quando a gente veio para cá.
P: E quando foi trabalhar, ninguém lhe ensinou como é que se fazia?
R: Não! Aprendi à minha custa. Ia buscar mais ou menos aquilo que via a cozinheira fazer, quando o meu pai se estabeleceu. Ela era boa cozinheira, depois estragou-se foi com o amante… Esse, claro não fazia nada… chulozito… começava lá a tocar viola. Começou a levá-la para os bailes e ela ficou toda contente com aquilo.
P: Na altura, usavam saia ou eram calças?
R: Já se usavam calças, mas usava-se mais saia. Calça, nem toda a gente. Eu, quando comecei a usar calças, já morava em C.
P: E começou a usar por ser mais prático?
R: Não sei… o meu marido também gostava mais de me ver de calças. Mas eu mesmo assim ainda usava saias.
P: Para finalizar, acabou a sua carreira por já estar cansada?
R: Acabei porque aquilo fechou e eu não me interessei mais. Nunca mais, eu nunca mais. Cozinhava para o meu marido, às vezes ele tinha saudade de certas comidas... Depois de casados, trabalhámos quase sempre juntos, e quando eu ia, ele ia também! Mas, quer dizer, ele já estava reformado. Ele ia-me levar, depois vinha-me buscar, e depois só não ia mais vezes porque não tinha paciência, então andava de bicicleta, ele andava por lá de bicicleta, lá em S.
Áudio 2 (12 min e 58 segundos)
P: Diga-me lá como é que foi o seu casamento?
R: Já estava junta e foi na Conservatória. Depois fomos para a Quinta de S. comer. Estava já tudo encomendado: coelho à caçador, e fui bem servida. Estavam lá pessoas conhecidas do meu marido. Houve dança…
P: Então e para não fechar o estabelecimento, como é que fez?
R: Nesse dia? Porque a gente fechávamos às quartas-feiras, era o dia de folga. Depois quando a gente saímos do restaurante, apanhámos a camionete e fomos para Cacilhas, pela ponte que eu nunca tinha atravessado.
P: Foi a primeira vez?
R: Foi! Atravessei a ponte 25 de Abril que na altura era a Ponte de Salazar, e foi a minha lua de mel. Depois cheguei a casa, despi a roupa, vesti a roupa de trabalho e fui para o restaurante para adiantar o trabalho da véspera. Fazia cozido à quinta-feira. Era pôr sal nas carnes, deixar a loiça arranjada… Depois os empregados, quando chegavam é que punham a panela ao lume. Ali todo o serviço era adiantado. E às vezes eu chegava lá e eles já tinham quase tudo pronto, não era preciso fazer muito.
P: Era engraçado como é que cozinhava tanto em dois bicos!
R: Dois bicos e 4 fogões de petróleo! Havia vezes em que era em todo o lado! Onde eu trabalhei com um fogão bom foi na B. Esse é que era um fogão comercial. Até me custava chegar ao fim para o limpar, porque o fogão pertence à cozinheira limpar.
P: Nos tempos livres em que não trabalhavam, iam jogar à bola?
R: Nos domingos eles iam jogar à bola, eram um grupo, o “Á.”.
P: Então nos tempos livres vocês também aproveitavam todos juntos.
R: Era! Eu gostei muito de estar lá!
P: E nunca foi ao seu restaurante alguém da PIDE?
R: Não! Havia o quartel deles lá ao pé, ao pé da igreja! Foram lá uma vez. A minha mãe, coitada, cortou-se. Mas eles foram comer fora de horas. Já estava a porta fechada, bateram à porta, e eu assim: “Mas os senhores sabem que eu não posso fazer isso!”, e depois houve um que esteve a fazer o curativo e tudo à minha mãe, porque ela deu um golpe grande, não sabia trabalhar com facas… Eles eram chatos, muito chatos, parece que não queriam sair de lá!
P: Mas acha que estavam ali à procura de alguma informação?
R: Não, não. Eles foram só comer. Comeram bifes, àquela hora o que é que eu ia fazer… A gente fechávamos à meia-noite.
P: E abriam a que horas?
R: Entre as 8h e as 9h. Eu cheguei a trabalhar lá sozinha com o meu pai!
P: Então serviam pequenos-almoços?
R: Sim!
P: Então e almoçavam e jantavam antes de começar a servir os clientes?
R: Era depois. Eu às vezes nem almoçava… Isto era assim, eu ia primeiro pôr as coisas todas a jeito, e depois é que servia e só a seguir comia.
P: O que é que é a Carta do sindicato? É uma identificação do trabalho?
R: É, é isso. A gente quando sai de uma casa tem de mostrar ao sindicato. Se houver alguma coisa com os patrões a gente vai ao sindicato e o sindicato é que gere para a gente receber.
P: E recebiam o dinheiro?
R: Claro! Se a gente saía eles tinham de nos dar o dinheiro dessa altura. Saía com razão e pagavam a indeminização.
P: E assinavam um contrato?
R: Não, era tudo por palavra. Nós íamos buscar a carta do Sindicato em Lisboa, mesmo no centro, ao pé do teatro Nacional.
P: E tinham de pagar alguma coisa para fazer a carta?
R: Não, acho que não. A gente tinha de pagar alguma coisa, mas não era muito, tínhamos era de apresentar a carta lá todos os anos. Não chega servir…
R: A minha mãe, claro que a minha mãe trabalhou sempre só em casa. O meu pai era lavador de carros (lavava carros, pronto), mas depois pensou em estabelecer-se então abriu uma mercearia. Eu andava na escola, quando sai da escola tinha 11 anos e depois fui trabalhar para a mercearia.
P: Então foi ajudar o seu pai?
R: Pois. Depois, até aos 19 anos, fui para Lisboa, mais o meu pai. O meu pai estabeleceu-se lá mais uma casa de comidas. Ali trabalhei, e tinha empregados, tinha cozinheira, tinha essas coisas todas. Mas como o meu pai não se deu bem, aí nessa casa, passou-a e fomos para outra. Essa outra só levava uma luz de cozinha, e aí comecei eu a trabalhar mais ele. Trabalhámos sozinhos, os dois, eu como cozinheira e ele ao balcão. E ali andámos 9 anos!
P: Foi onde?
R: Em Lisboa, na Graça. E depois, comecei a namorar. O meu marido estabeleceu-se, antes de casar, e depois casámos, e ali fui cozinheira mais uns anos.
P: Foi cozinheira nessa casa, com o seu pai, então?
R: Do meu pai no início, e a depois do meu marido também.
P: Então juntaram-se todos no mesmo negócio?
R: Não, o meu pai não se juntou. O meu pai depois veio outra vez para cá (P.), novamente. Pôs um aviário e assim era. E depois eu o meu marido estabelecemo-nos, mas era sociedade.
P: Ser sociedade é o quê?
R: Sociedade quer dizer que tinha outros sócios. Ele era sócio, tanto como os outros, mas trabalhava e tinha o ordenado dele, não é? Depois eu comecei a trabalhar, a ajudar e tal, e fiquei também como cozinheira. Isso já em Cacilhas.
P: E quando é que veio para P.?
R: Quando voltei para cá, já não fui mais cozinheira, só em casa e a fazer alguns trabalhitos. Eu cozinheira fui 28 anos. Depois, mais a minha irmã, arranjámos sociedade e abrimos um minimercado.
P: Aqui em P.?
R: Sim! Aquela casa de primeiro andar era uma casa com dois andares e a gente morava por cima, e por baixo era a mercearia, era a loja do “Tio Eduardo”. Claro que depois a gente passámos a casa lá de Cacilhas, e viemos para cá. O meu marido reformou-se, mas começou a trabalhar. Quer dizer, ele não se reformou bem naquela altura. Doi só depois de ter começado a trabalhar na bomba. E eu trabalhava ali com a minha irmã, onde estivemos uns anos. Depois, aquilo não estava a dar muito.
P: Não?
R: Não. Sabe que os santos da casa nunca fazem milagres... começaram a abrir muitos supermercados. Quando começou a abrir o Pingo Doce, e essas coisas todas, então a gente perdeu, até que se fechou, fechámos aquilo… o meu pai morreu, depois morreu a minha mãe, morreu a minha irmã e eu depois empreguei-me. Empreguei-me aqui numa senhora que me pediu se eu podia ir fazer o lugar dela enquanto ela era operada. Então fui para S. trabalhar, chamava-se “O B.”.
P: Mas ainda esteve a trabalhar antes disso, não foi?
R: Ah sim! Tinha 62 anos. Quando fui para Lisboa tinha 19 anos. Quando me empreguei mesmo, porque onde trabalhei mesmo foi na casa da família, no restaurante que o meu pai abriu, foi aí. Mas depois aquilo foi para o meu marido. E fui trabalhar aos 62 anos em T. Aquilo tinha um café onde trabalhei a cozinhar.
P: E os filhos? Como é que geriu isso?
R: Elas andavam a estudar, uma andava a estudar aqui, a outra também andava a estudar, mas em Almada. Mas depois veio para cá… a gente passámos a casa e ela não quis ir mais para a escola. Eu ainda a inscrevi lá, mas ela não quis estudar mais, e agora dá-me na cara que eu é que fui a culpada.
P: Mas nasceram aqui em P.?
R: Não, nasceram em C. mesmo. Tanto uma como a outra.
P: E teve as suas filhas com que idade?
R: Tinha 28 anos na primeira, e tinha 36, parece-me, quando tive a segunda.
P: Foi quando arranjou mais estabilidade? E as coisas já estavam mais seguras?
R: Ah não, porque depois tinha de andar com as filhas atrás de mim e íamos trabalhar, porque a casa pertencia também ao meu marido, e as miúdas também tinham de lá estar, não é?
P: Elas também iam para lá trabalhar?
R: Trabalhar? Elas nunca trabalhavam. Também eram muito novas, a mais nova tinha 5 anos quando veio para P., a mais velha havia de ter uns 14 anos. Lá não faziam nada… uma vez o pai obrigou- a ir enxugar a loiça, ela não queria e levou uma palmada e não sei quê, cai-lhe um prato no chão e partiu o prato. Ela depois não fez nada. Aqui, nunca fez nada… depois é que começou a pedir à minha prima, que fazia luvas, então ela começou a fazer luvas. Eu nunca lhe pedi dinheiro nenhum, ela é que guardava e era para ela, mas pronto, não faziam mais nada. Mas hoje dá-me na cara que trabalhou muito. Casou com 19 anos… sim, ela casou tinha 19 anos; foi muito nova. Mas pronto, depois quando fiz 68 anos fiquei em casa e já não fui mais porque o B. fechou. Já não fui para mais lado nenhum. Também nunca procurei trabalho, vinham era cá pedir para eu ir trabalhar. Uma senhora veio-me cá pedir para eu ir enquanto ela fosse operada, depois eu fui trabalhar e depois olhe eu já não tinha vontade de fazer mais nada.
P: Porque já estava cansada?
R: Sim, mas a senhora coitada, foi infeliz e morreu. Depois da operação ela morreu. Então continuei lá a trabalhar, com a filha dela.
P: E eles gostavam do seu trabalho?
R: Eu trabalhava mais ou menos como ela, a senhora que foi operada era boazinha, coitada…só esteve lá um dia comigo a dizer-me os hábitos da casa, como é que se faziam as coisas. E lá fui, aprendi bastante com ela, num dia só aprendi muito com ela.
P: E quando para Lisboa?
R: Em Lisboa aprendi à minha custa.
P: Então nem teve oportunidade de ver os outros trabalhar?
R: No princípio ia à Praça com o meu pai, e vinha da praça e trazia peixe, caldeirada… mas eu até dizia: “Ó pai, mas eu nunca fiz isso!” Nunca tinha feito, mas saía-me sempre bem!
P: A sério?
R: Sempre bem! Até uma sopa de favas que eu nunca tinha feito! A minha mãe nunca fez sopa de favas.
P: Então como é que sabia fazer?
R: Sei que fiz com gosto porque a senhora que foi lá comer também era cozinheira e ela comeu muita sopa. Eu disse: “Nunca fiz nem nunca vi sopa de favas”, porque eu não usava muito. Elas punham favas em qualquer sopa, punham hortaliça e misturavam…. A minha mãe não misturava favas, ela não era muito amante de favas.
P: E em Lisboa, como é que eram as suas condições de trabalho? Recebia algum dinheiro?
R: Tinha muito más condições! Eu trabalhava com fogões de petróleo. A casa tinha um fogão daqueles grandes de lenha, mas o fogão não prestava, nem deitava fumo, nem nada. Então pus os fogões em cima do outro a ferro e ali cozinhei, sempre. Não precisei de mais. Quando precisava de assar coisas no forno tinha o padeiro ao pé. Ia ao padeiro e assava lá.
P: E teve algum acidente na cozinha?
R: Sim! Num dia apareceu-me um grupo que joga à bola e foi lá com o “Águias do Oriente”, lá no sítio onde eu estava, então eles encomendaram-me bifes para todos, e eu assim, “mas como é que eu vou fritar batatas para tanta gente?”. Eram os dois grupos, eram 22 pessoas, mas era mais porque depois há suplentes e pronto, toda a gente vem atrás da equipa. E depois queimei-me! Fui ajeitar o fogão, a frigideira untou-se e queimei esta mão toda aqui acima. Ainda quando está frio nota-se. É uma mancha branquinha, esta mancha toda. Eu fui ao Hospital de São José.
P: Teve de fazer alguma cirurgia?
R: Não, aquilo curou sozinho.
P: Como é que eles fizeram o curativo?
R: Sei lá, não fizeram, até se nota ainda, chega cá acima.
P: E teve mais alguma com o fogão ou com o forno?
R: Ah, isso foi em C. Uma explosão de gás! Eu tinha feito bacalhau à Gomes de Sá, pus no forno, e ao fechar o forno, o forno apagou-se, e eu não reparei, quando eu comecei a tocar disse: “Então, mas isto está frio?” Vou a abrir aquilo e tinha os lumes todos acessos em cima e explodiu tudo. Eu caio para o chão… não caí mesmo no chão porque as cozinhas eram sempre pequeninas. Bati contra a porta. Os vidros da cozinha foram parar à rua e ficavam lá no fundo, mas foram parar à rua e eu sei lá… tanto chiqueiro, que eu nunca tinha visto tanto chiqueiro! Como é que o fogão tinha acumulado tanta porcaria? E estava sempre muito limpinho, mas eu não sei realmente onde é que acumulou tanto lixo. Foi porque então, o fogão ficou todo desmontado! O meu marido tinha ido para a praça, e eu, claro, fiquei na cozinha. Tinha batatas a cozer num tacho. Essa foi o que eu tive mais sorte. Tinha um tacho grande com dourada em lume brando e tinha batatas a cozer, e tinha a sopa, também ao lume. E então o meu marido chegou lá à cozinha, que ele tinha ido para a praça.
P: E ia buscar comida para cozinhar?
R: Pois! Peixe, carne.
P: Pois era sempre tudo fresco?
R: Sempre! Tudo fresco, era na altura, como é que aquilo se chama? A Ribeira! Iam para a Ribeira. E quando ele chegou ao pé de mim as pessoas já tinham dado conta porque havia uma barbearia ao lado. Então os barbeiros o que é que fizeram? Com medo de ele ficar assim, chegar ali de surpresa, ficaram à espera dele quando saiu do barco “olha, passou-se isto assim, assim…”
P: Mas quando ele chegou lá já tinham tratado do assunto?
R: Sim, e depois teve que se fechar as portas. Aquilo era só lixo, eram os vidros, porque aquilo era tudo envidraçado, tinha umas redes também, que ficaram todas soltas. Isso é que foi uma explosão de gás, só visto! Então estavam lá dois clientes e um deles alevantou-se.
P: E foi-se embora logo? Não chamou ajuda?
R: Foi-se embora logo! E não chamou. O único que me ajudou foi o empregado. Começou a puxar-me, foi pela camisola. Ele não sabia o que é que havia de fazer, até ficou pior que eu! Ele ficou branquinho mais cal que a parede! Não sabia o que é que havia de fazer e ainda disse: “vê lá se consegues tirar essas coisas aí de cima e desligares o fogão, porque eu já desliguei o gás!”, porque eu tinha a bilha lá dentro. Eu mesmo assim, quase deitada ainda consegui desligar o cabo a tempo, senão ia à vida.
P: E não estava inconsciente?
R: Não, nada! Depois o meu marido levou-me ao hospital, porque eu tinha-me queimado! A minha sorte foi, que não foram tachos com gordura. Foi o das batatas cozidas, que era só água! Caiu mesmo aqui, mas o médico tratou de mim com o seu tempo e disse-me: “teve muita sorte que podia ter ficado com o seu peito colado!”. Por causa dos ossos. Eu apanhei assim umas queimadurazitas não é, mas não eram pequenas!
P: E a D. Maria só estava na cozinha ou também ia servir?
R: Às vezes ia, como aquilo era assim uma coisa pequena, como não era assim uma coisa grande.
P: Havia mais intimidade com o cliente?
R: Sim! Era uma coisa mais familiar, ia lá pessoal da L. comer ao almoço. Ao jantar, eu não tinha horas. Depois, na altura em que fecharam as casas daquelas mulheres, iam muitas para a Costa da Caparica, e claro depois vinham às tantas, aquilo tinha licença até às duas horas da manhã. Tínhamos lá até às duas horas. Eu, quando o serviço estava despachado e via que tinha a cozinha arrumada, ia-me embora. A essa hora eram eles que faziam.
P: Quem eram eles?
R: Era o meu marido e outro que estava ali.
P: E os clientes eram mais amigos ou tinham um pouco de tudo?
R: Sim, tínhamos muitos amigos.
P: Que já conheciam o espaço, a comida…?
R: Pois, exatamente. E foram mesmo os clientes é que pediram para eu ficar, porque o meu marido tinha ficado sem empregada, tinha a empregada a levar o saco cheio. Realmente estavas a dizer e é verdade, há umas historiazinhas que realmente…
P: Ah, mas conte!
R: O meu marido andava desconfiado que ela andava a roubar, e andavam sempre a espreitar. Num dia, havia falta de bacalhau e é claro, despediu a empregada. Porque ela enchia o saco e ia guardar a uma casa que vendia hortaliças e assim, um lugar de hortaliças. Fiquei eu a trabalhar, mas o meu marido não gostava…porque eu estava grávida da mais velha, e é claro que ele achava que eu não devia de estar ali a trabalhar. Trabalhei sempre, mas nem ganhava nada!
P: Não?
R: Não, eu comia. Mas trabalhava muito.
P: Mas não ganhava para estar ali a trabalhar?
R: Era o meu marido que estava ali a tomar conta, ele já ganhava pouco, também… ainda quanto mais me dar o ordenado… não me dava. O meu marido é que foi culpado sempre, nem em caixa nem nada. O depois o guarda-livros, o guarda-livros era genro de um dos sócios.
P: O que é que era um guarda-livros?
R: Um guarda-livros é o que toma conta da escrita.
P: O guarda-livros ia lá para quê?
R: Ele ia lá quando, por exemplo, a gente sabia que estava lá a fiscalização. A gente telefonava para ele. Assim, ele aparecia, e alguém o atendia, por causa de ver as escritas das finanças, para ver se estava tudo em ordem e essa coisa toda. Depois ele é que respondia, ele sabia como é que aquilo andava, porque ele é que fazia a escrita toda. E depois quando foi para lá o outro, disse assim: “Ó A., mas você não tem a sua mulher à caixa?” e ele assim: “Pois não, nem nunca falei, nem com o teu sogro…”, “Ah, mas a gente vai pôr!”, e então pôs! Foi desde aí que eu comecei a receber alguma coisa, porque eu não recebia nada! E é isso que me está a valer agora, senão não tinha nada!
P: Foi quando começou a descontar para a Segurança Social?
R: Pois! Só depois dos 70 anos é que eles dão… que eles dão, mas a gente é que tem de andar a tratar disso e de papéis antes e assim. Sei lá os papeis que lá pôs…. Porque eles diziam que eu não tinha direito a nada, não tinha direito a nada, e um dia fui lá mais a minha filha, fomos lá, porque das outras vezes perdemos muito tempo ali. Mas consegui! Porque estava lá uma senhora a dizer assim: “O quê? Que não tem direito a nada? Toda a gente tem direito a uma pensão!”. De maneira que ela depois esteve a ver e diz: “Então claro! A sua mãe descontou 6 anos.
P: Foi 6 em Lisboa ou depois quando veio para cá?
R: Em Lisboa! Aqui eu nunca tive.
P: Então nunca descontou cá, foi sempre por fora?
R: Sim, descontei só em Lisboa, 6 anos.
P: Eram tempos difíceis.
R: Eram…. Depois mostrei à minha filha, à mais velha, que até estava em Inglaterra. Ela teve de tratar lá duns papéis, mandou para cá e depois não tinha direito a nada! Tinha sim senhor, elas é que não querem saber!
P: E o seu marido também descontou?
R: Não! O mal foi esse, porque depois ele recebia uma coisita de nada, também. Era 270, se eu não tivesse…e só consegui depois de ele morrer. Porque já tinha direito a 200€, e é o que eu recebo, porque o ordenado era pouco mais disso. Mas o meu marido, por exemplo, se ele estivesse vivo e eu estivesse a viver só da reforma do meu marido, já tínhamos morrido de fome! Ele recebia 270 ou que era.
P: Isso aconteceu porque não tinham todos os papeis?
R: Pois! O meu marido podia ter tido uma reforma boa porque começou a trabalhar aos 15 anos, na altura em que veio para Portugal.
P: O seu marido era do estrangeiro?
R: Era de Galiza.
P: E como é que se conheceram?
R: Porque eles nos dias de folga iam à casa do meu pai. E depois a gente começou a piscar o olho um ao outro.
P: Então e ele falava português?
R: Falava alguma coisa, arranhava. Mas também coitado, também o chateei bastante não é, que eu não percebia o que ele dizia, então era chata. Estava pior que agora, mas agora é surda.
P: E depois conseguiu aprender espanhol?
R: Não.
P: Ele é que aprendeu português?
R: Sim, ele é que aprendeu português. Ele só lidava com portugueses, mas lá paravam muitos espanhóis, lá na casa! Iam lá muitos almoçar, na sua folga pelo menos eles iam lá.
P: E como é que comunicavam com eles?
R: Haha… sei lá. A gente ainda entendia e fazíamos assim uns gestos para também tentar perceber não era. Mas a pronuncia nunca sai… eles têm muita coisa em português também! Falam muito parecido. Umas palavras têm mais uma letra, outras menos uma letra, mas é muito parecido. Porque é no norte de Espanha, na Galiza, é um sítio entre o Norte. Então o Presidente de lá… agora não me estou a lembrar do nome dele, que os nomes eu esqueço-me.
P: O Presidente de onde?
R: De Espanha! Antes do Rei Carlos, foi esse presidente que pagou os estudos todos ao Rei Carlos. O Rei Carlos ficou sem pai, era novo! Aquilo era reinado e depois o reinado passou a ser… O meu marido jogou muito à moeda com o Rei Carlos. O Rei Carlos passou por aqui, em Portugal. E ele, o meu marido, chegou a trabalhar, antes de estabelecer, trabalhou em boites também, à noite, e foi aí que ele o conheceu. Depois quando eles saíam, vinham cá para fora jogar às moedas. Então ele é da idade do meu marido.
P: Então e ele ia lá ao seu restaurante? O Rei Carlos?
R: Ao meu, não!
P: Qual foi a pessoa mais importante que serviu? Foram lá pessoas importantes?
R: Sim, foram! Iam lá advogados, por exemplo.
P: Pois, eram pessoas assim mais da alta sociedade na altura, não é?
R: É, mas eles também procuram onde é que era o mais barato e que seja bom!
P: E o seu era a escolha mais barata?
R: Sim, claro! Porque nos outros lados, nos restaurantes paga-se bem! Sempre foi assim.
P: E o seu era mais tradicional?
R: Era! Não estava como restaurante, estava como comidas e bebidas.
P: Era estilo Snack Bar, agora, porque antigamente não sei como é que se chamava.
R: Porque eu ainda estava solteira e depois juntei-me com ele, com o meu marido! Porque ele coitado, como ficou sem a cozinheira, telefonou-me logo para casa, pediu para o desenrascar e pronto lá vou eu, para o desenrascar.
P: Mas ainda não namoravam nessa altura?
R: Quando ele se estabeleceu? Já! Então ele estabeleceu-se em novembro, em janeiro fui para lá! Juntámo-nos, já não esperava outra coisa, eu namorava com ele há 6 anos.
P: Ah foi? É engraçado ver porque as pessoas na altura nem namoravam, casavam logo e a D. Maria ainda namorou bastante tempo!
R: Não era bem assim…. Havia namoros, a minha mãe também… acho que também namorou 6 anos. A minha irmã, por exemplo, namorou 9 anos!
P: Antes de casar?
R: Pois, então ela começou a namorar tinha 14 anos! Aliás, ainda não tinha bem os 14.
P: Então e usava farda?
R: Não!
P: Então ia com a roupa normal? E o cabelo, ia apanhado?
R: Não, isso a toca era obrigatória, tinha que usar!
P: E os empregados também andavam com roupa normal ou tinham um avental?
R: Tinham roupa normal.
P: E não tinham um avental? Ou alguma coisa que os identificasse?
R: Quando era preciso, tinha que se pôr. Eu sim, eu tinha, mas era meu!
P: E cá em T. já tinha farda?
R: Ah sim! Não tinha farda, mas os aventais eram da casa. Os aventais, por exemplo, numa casa que estive, na Boavista, eram da casa. Mas lá não estive assim muito tempo, porque eu ali nunca me senti cozinheira! A mulher metia-se em tudo, até houve um dia em que me estragou um tacho de polvo, de arroz de polvo.
P: Mas quem era essa mulher?
R: Era a mulher do patrão.
P: E ela fazia o quê lá?
R: Olhe, era tudo o que estava bom, era ela que fazia…, mas na verdade não fazia nada. Mas para estragar ela estragava. Mas depois quem ouvia ralhar era eu, lá vinha o patrão…Ela meteu-se enquanto eu fazia o polvo. a mulher esfregava aquilo com quilos de sal, ainda por cima como era polvo fresco, até deita aquela goma…não era preciso isso. O polvo tem de ser bem batido e lavado, com água e sal, se estiver realmente muito coiso, mas não era assim! Não pode deixar ao sal, a gente sabe logo quando o polvo está salgado, quando vamos fazer a comida a gente põe o sal, nem vai provando. Eu, é raro provar, mesmo cá em casa, é raro provar a comida.
P: Então e como é que sabe que está bom?
R: Eu sei, mais ou menos. Se ficasse insonso tinha remédio, agora se ficar salgado, ficava logo mal.
P: Bebe-se água.
R: Exatamente! Eu preferia que ficasse insonso que salgado. Qualquer coisa punha-se sempre um bocadinho de sal para acrescentar.
P: E teve quanto tempo nessa churrascaria?
R: Não sei bem, mas aí uns 4 meses ou qualquer coisa.
P: E foi o seu patrão que a mandou embora ou foi a D. Maria que quis ir?
R: Fui eu que me despedi. Porque houve uma vez que ouvi uma coisa. O meu marido, ele vinha-me pôr ao churrasco, e houve uma vez que ouvi uma conversa e não gostei. E depois chamei o Sr. Vítor, ele tinha um talho também ao pé, e disse: “Ó senhor Vítor, eu estou aqui a mais, porque a sua senhora afinal é que é aqui a cozinheira, porque eu aqui não me sinto cozinheira. Se a comida está boa, é ela que faz, se a comida está má, sou eu! E ela mete a colher em todo o lado! Portanto, senhor, eu vou-me embora!”. Mas foi maravilhoso, ele realmente concordou comigo.
P: E tinha que idade?
R: Eu tinha 62 anos, foi em 2005, mais ou menos, foi antes de trabalhar em T. Porque essa coisa de salgar muito a comida, mexeu muito comigo! Até pensei: “Não vou é trabalhar em mais lado nenhum!”.
P: Então foi primeiro para Torres Vedras e só depois é que foi para lá?
R: Foi, porque aquela casa era de um primo meu que abriu.
P: E como é que correu lá?
R: Ah correu bem, depois foi para lá a sogra dele. Eles depois começavam-se a cansar daquilo porque muita gente não gosta de trabalhar. Não gosta porque é aos sábados, aos domingos, aos feriados… e mesmo assim eles fechavam muito. E na hora do almoço, em vez de estarem ali a tomar conta, não. Saíam e iam tomar café com esse casal. Não estando o patrão, ficava eu e a sogra dele.
P: A servir e a cozinhar?
R: Pois, “Eu faço ali trabalhos que não me pertenciam a mim. Eu não pertenço a arrumar loiça e a lavar roupa!” Porque também se lavava lá roupa, os panos de cozinha. “O meu serviço aqui é de chef! Portanto não tenho nada de estar aqui a fazer limpezas.” Porque às vezes saía às cinco ou mais, da tarde. Eles não davam jantares, só almoços. Ela num dia até levou a mal e disse: “então olhe a porta da rua é serventia da casa!”. E eu assim: “Olhe, nem mais nem menos, amanhã já não venho aqui trabalhar!”. Então para estar a ouvir as coisas que ela dizia e mandava para as pessoas… E depois a confiança que ela dava aos clientes… A gente tem de saber-se comportar como deve ser.
P: E nesse, de T., quem é que recebia mais? As mulheres ou os homens? Ou não havia essa diferença?
R: Como não havia mais empregados, era só eu, ele e a sogra dele que foi para lá muito depois, então não havia essa diferença.
P: E nunca se sentiu muito cansada?
R: Sim! Pois por isso é que eu me afastei. Pois claro, eu também já não era criança, já tinha 60 e tal anos.
P: E as pessoas pediam muito rigor, eram muito exigentes?
R: Não eram assim muito, não tinha razão de queixa. Mas quem os aturava eram eles. Vendíamos também muita comida para fora.
P: Mas as pessoas pediam para levar para casa?
R: Era!
P: Quando é que surgiu isso? Já em Lisboa também fazia?
R: Às vezes sim! Mas era mais raro. Quando estive em Lisboa, na casa do meu pai, aqueciam-se muitas panelinhas porque pediam.
P: E a D. Maria falava muito com os clientes?
R: Sim! Sempre lá ia um perguntar isto ou aquilo.
P: Nunca teve uma queixa?
R: Tive! Tive uma queixa uma vez, apareceu uma baratinha na comida! Estava nas ervilhas.
P: E o que é que fez?
R: Olhe, foi a uma senhora que trabalhava na U. E ela compreendeu, entendeu como é que podia ter sido.
P: E a senhora não se chateou?
R: Não, ela não ficou chateada, ela continuou.
P: Ah ainda bem! E lá em Lisboa, não teve assim nenhuma queixa?
R: Em Lisboa também foi por causa de uma barata, a gente ia levar os tabuleiros para assar o peixe e assim. Mas claro, nos padeiros é normal, não há padeiro nenhum que não tenha baratas. Então em Lisboa, na cidade velha! Na moradia, tinha lá baratas…ah credo! Aquilo até tinha umas bombas, é assim que se chama. E um dia, o meu pai à noite fez aquilo, parecia uma chuva! Mas assim, daquelas grandes! Foi onde eu conheci isso, que eu não sabia o que eram baratas. E percevejos, que eu conheci, em Lisboa! Aquelas casas velhas, em Lisboa, aquilo estava tudo minado.
P: Mas o seu restaurante não tinha nada disso?
R: Mais ou menos. De vez em quando apareciam percevejos, mas só se viam à noite que era quando andavam de um lado para o outro. Houve uma vez que o meu irmão foi picado e tinha o corpo todo cheio de borbulhas, e tive de lavar o colchão com petróleo, que era como se lavava na altura. Tinha havido uma limpeza porque o meu pai depois só abriu quando fez umas obras. Realmente, eu parece que tenho uma vida muita comprida.
P: Então e quem é que lavava os copos e a loiça? Tinham um empregado para isso?
R: Não! Lavávamos a gente nos intervalos. Quando era preciso, se não tivéssemos, a gente tinha de lavar à pressa. Um dia a casa foi assaltada, a do meu pai! Quando passa o vento, as portas da cozinha estavam abertas, tinha um guarda vento, que é aqueles portitos que antigamente se usava, de madeira. Aquilo tinha lá um degrau onde tínhamos uma parreira grande de vinho, e ao subir as escadas, estava lá uma camisola cheia de vinho, e eu: “Ah!” O meu pai coitado levantou-se, porque na altura era eu mais ele, a minha irmã ficou cá com a minha mãe, aqui na P.
P: Então, e no assalto, o que é que levaram?
R: Levaram a registadora.
P: Com o dinheiro?
R: Era com tabaco. Dinheiro não havia lá muito, o meu pai era raro deixar o dinheiro lá. Só tinha uns trocozitos, deixava-se lá para ter trocos. Mas, às vezes, as pessoas não podiam pagar e então deixavam relógios, coisas assim. O meu pai, coitado, é que teve de pagar o concerto da registadora, porque eles foram metê-la dentro de um poço. Ainda gastou 900 escudos que naquele tempo era muito dinheiro.
P: E como é que aprenderam a troca da moeda?
R: Fomo-nos habituando. Eu vim para cá (P.) em 1982, que foi quando a gente veio para cá.
P: E quando foi trabalhar, ninguém lhe ensinou como é que se fazia?
R: Não! Aprendi à minha custa. Ia buscar mais ou menos aquilo que via a cozinheira fazer, quando o meu pai se estabeleceu. Ela era boa cozinheira, depois estragou-se foi com o amante… Esse, claro não fazia nada… chulozito… começava lá a tocar viola. Começou a levá-la para os bailes e ela ficou toda contente com aquilo.
P: Na altura, usavam saia ou eram calças?
R: Já se usavam calças, mas usava-se mais saia. Calça, nem toda a gente. Eu, quando comecei a usar calças, já morava em C.
P: E começou a usar por ser mais prático?
R: Não sei… o meu marido também gostava mais de me ver de calças. Mas eu mesmo assim ainda usava saias.
P: Para finalizar, acabou a sua carreira por já estar cansada?
R: Acabei porque aquilo fechou e eu não me interessei mais. Nunca mais, eu nunca mais. Cozinhava para o meu marido, às vezes ele tinha saudade de certas comidas... Depois de casados, trabalhámos quase sempre juntos, e quando eu ia, ele ia também! Mas, quer dizer, ele já estava reformado. Ele ia-me levar, depois vinha-me buscar, e depois só não ia mais vezes porque não tinha paciência, então andava de bicicleta, ele andava por lá de bicicleta, lá em S.
Áudio 2 (12 min e 58 segundos)
P: Diga-me lá como é que foi o seu casamento?
R: Já estava junta e foi na Conservatória. Depois fomos para a Quinta de S. comer. Estava já tudo encomendado: coelho à caçador, e fui bem servida. Estavam lá pessoas conhecidas do meu marido. Houve dança…
P: Então e para não fechar o estabelecimento, como é que fez?
R: Nesse dia? Porque a gente fechávamos às quartas-feiras, era o dia de folga. Depois quando a gente saímos do restaurante, apanhámos a camionete e fomos para Cacilhas, pela ponte que eu nunca tinha atravessado.
P: Foi a primeira vez?
R: Foi! Atravessei a ponte 25 de Abril que na altura era a Ponte de Salazar, e foi a minha lua de mel. Depois cheguei a casa, despi a roupa, vesti a roupa de trabalho e fui para o restaurante para adiantar o trabalho da véspera. Fazia cozido à quinta-feira. Era pôr sal nas carnes, deixar a loiça arranjada… Depois os empregados, quando chegavam é que punham a panela ao lume. Ali todo o serviço era adiantado. E às vezes eu chegava lá e eles já tinham quase tudo pronto, não era preciso fazer muito.
P: Era engraçado como é que cozinhava tanto em dois bicos!
R: Dois bicos e 4 fogões de petróleo! Havia vezes em que era em todo o lado! Onde eu trabalhei com um fogão bom foi na B. Esse é que era um fogão comercial. Até me custava chegar ao fim para o limpar, porque o fogão pertence à cozinheira limpar.
P: Nos tempos livres em que não trabalhavam, iam jogar à bola?
R: Nos domingos eles iam jogar à bola, eram um grupo, o “Á.”.
P: Então nos tempos livres vocês também aproveitavam todos juntos.
R: Era! Eu gostei muito de estar lá!
P: E nunca foi ao seu restaurante alguém da PIDE?
R: Não! Havia o quartel deles lá ao pé, ao pé da igreja! Foram lá uma vez. A minha mãe, coitada, cortou-se. Mas eles foram comer fora de horas. Já estava a porta fechada, bateram à porta, e eu assim: “Mas os senhores sabem que eu não posso fazer isso!”, e depois houve um que esteve a fazer o curativo e tudo à minha mãe, porque ela deu um golpe grande, não sabia trabalhar com facas… Eles eram chatos, muito chatos, parece que não queriam sair de lá!
P: Mas acha que estavam ali à procura de alguma informação?
R: Não, não. Eles foram só comer. Comeram bifes, àquela hora o que é que eu ia fazer… A gente fechávamos à meia-noite.
P: E abriam a que horas?
R: Entre as 8h e as 9h. Eu cheguei a trabalhar lá sozinha com o meu pai!
P: Então serviam pequenos-almoços?
R: Sim!
P: Então e almoçavam e jantavam antes de começar a servir os clientes?
R: Era depois. Eu às vezes nem almoçava… Isto era assim, eu ia primeiro pôr as coisas todas a jeito, e depois é que servia e só a seguir comia.
P: O que é que é a Carta do sindicato? É uma identificação do trabalho?
R: É, é isso. A gente quando sai de uma casa tem de mostrar ao sindicato. Se houver alguma coisa com os patrões a gente vai ao sindicato e o sindicato é que gere para a gente receber.
P: E recebiam o dinheiro?
R: Claro! Se a gente saía eles tinham de nos dar o dinheiro dessa altura. Saía com razão e pagavam a indeminização.
P: E assinavam um contrato?
R: Não, era tudo por palavra. Nós íamos buscar a carta do Sindicato em Lisboa, mesmo no centro, ao pé do teatro Nacional.
P: E tinham de pagar alguma coisa para fazer a carta?
R: Não, acho que não. A gente tinha de pagar alguma coisa, mas não era muito, tínhamos era de apresentar a carta lá todos os anos. Não chega servir…