"Um gato que seja só dela" - Texto concebido para a apresentação do livro "Na Terra dos Outros", de Manuel Abrantes
Item
Título do recurso
"Um gato que seja só dela" - Texto concebido para a apresentação do livro "Na Terra dos Outros", de Manuel Abrantes
Autor
Bruno Vieira do Amaral
Data
6-03-2024
Local
Livraria Fnac (Roma) Lisboa
Editora
Penguin Magazine, disponível aqui:
https://www.penguinlivros.pt/um-gato-que-seja-so-dela-bruno-vieira-amaral-apresenta-na-terra-dos-outros/?fbclid=IwAR1PeSlgO5KwN5Ts0V96SxwLugMem_y8cmKq56km8IBoEXaGGqgorPjg_9g
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Descrição
«Todas as semanas escolho uma palavra para a minha crónica no Expresso. Olho para a atualidade, procuro uma palavra invulgar trazida para a praça pública, invento neologismos. Por vezes, sou vencido pela preguiça e escolho uma palavra encontrada por acaso num livro, repescada de uma entrevista antiga, regresso a uma velha obsessão. Se tivesse de escolher uma palavra para este livro seria “servir”. Serve ou não serve? Terá de servir. E servir é um verbo enganador. É isso que faz Maria do Carmo, a protagonista deste romance. Serve. Serve os patrões, serve o marido, depois serve os filhos, novos patrões. Só não se serve a si mesma.
Canta Bob Dylan em “Gotta Serve Somebody” que todos nós, por mais poderosos que sejamos, temos de servir alguém ou alguma coisa, que por mais livres que nos julguemos pagamos sempre o preço dessa suposta liberdade servindo alguém ou alguma coisa. Somos sempre servos, escravos. É esse o sentido etimológico, original, de servir – servidão, escravidão. Haverá dignidade na palavra, no verbo tal como o utilizamos hoje – servir o outro – na ideia de serviço – como em serviço público – e até de uma expressão corriqueira – lindo serviço – desapareceram os vestígios dessa história de sujeição e privação da liberdade. Na vida narrada de Maria do Carmo, esse sentido original é recuperado. Ela serve porque não tem escolha, não pode escolher não servir. Contenta-se com pouco porque, como diz uma das patroas, “quanto menos escolha uma pessoa tem, mais facilmente se contenta.”
Bem triste é o contentamento de quem com pouco se contenta por não ter escolhas. É isso que a patroa não diz, é esse contentamento triste que é indizível. E é invisível aquele que o sente. O invisível não é necessariamente aquele que não faz nada. A espécie mais desafortunada de invisíveis são aqueles que estão no centro da vida dos outros mas que, por não terem voz, nem sequer a voz que lhes permita dar nome à tristeza, por não terem escolha, nem sequer a escolha triste de servir, deixam de ser vistos, são fantasmas a organizar as vidas alheias enquanto se escondem à vista de toda a gente. Outra patroa diz a Maria do Carmo: “Que indelicadeza maçá-la com as minhas lamúrias. Conte-me coisas sobre si, Carmo. É tão reservada. A sua vida é um mistério.” Mas Maria do Carmo não é reservada. O que lhe faltam são as palavras para se pensar. A sua vida é um mistério para os outros, que nunca a veem verdadeiramente, mas é, acima de tudo, um mistério para si mesma.
Estas mulheres que, tal como Carmo, vieram da província, das aldeias, para servir as famílias ricas da cidade, muitas ainda crianças, que nada conheciam do mundo, pobres e iletradas, não eram invisíveis apenas aos olhos dos outros, eram invisíveis para si mesmas. Os desejos – o que é desejar quando só se aprendeu o verbo servir? – não só lhes estavam interditos como elas não eram sequer capazes de os conceber, quanto mais verbalizar. Havia toda uma gramática interior, do eu, do ser, que lhes era inacessível. Não tinham sonhos e, pior, não tinham palavras, conceitos, para os descrever se os tivessem. Eram duplamente estrangeiras: viviam na terra dos outros, pelos quais se sacrificavam, e exiladas de si mesmas.
Nunca poderiam reclamar um quarto que fosse só delas porque antes do quarto era necessário existir um eu capaz de o reclamar, capaz de pensar o quarto e o indivíduo que dele se apropria para se exprimir. O quarto que ocupavam em casa dos patrões não era delas, não era extensão física da sua personalidade, era apenas a divisão onde se arrumava a criada. Era um estado anterior ao de que falava Virginia Woolf num discurso proferido para uma organização feminina. Nesse discurso, a escritora afirmava que ganhar o seu próprio dinheiro, conquistar o seu espaço, o seu quarto, eram os primeiros passos da verdadeira revolução que se seguiria para as mulheres: “o quarto já é vosso, mas ainda está vazio. Ele tem de ser mobilado; tem de ser decorado, tem de ser repartido. Como irão vocês mobilá-lo, como irão vocês decorá-lo? Com quem vão dividi-lo, e em que termos?” Tudo isso estava longe do alcance de Maria do Carmo e de mulheres da sua condição.
O que determinava a relação entre patrões e criadas era a dependência extrema e a obediência que a ela vinha acoplada. Mesmo quando não era expressamente exigida, era esperada. A boa criada era obediente, servil. Não era refinada, a educação não lhe permitia chegar a tanto, mas cumpria. Não era insolente, não tinha desejos próprios que colidissem com os seus deveres, não reclamava. Apagava-se. E a história de Maria do Carmo é a história do apagamento, do autoapagamento, desse exército silencioso de mulheres que invisivelmente sustentavam a sociedade, a família, a sua e a dos outros, e faziam-no com o sacrifício de arrumarem os seus desejos e ambições para que estes não se intrometessem nas suas tarefas, para que não as atrapalhassem, para que os patrões nunca vissem nelas mais do que uma criada, um utensílio doméstico, um robô de cozinha, de quarto, de sala, da casa toda. Qualquer tentativa de rasgar esse véu de invisibilidade era geradora de conflito. Se já a tinham salvado da miséria o que mais se podia pedir aos patrões?
O preço a pagar pela fuga à pobreza mais abjeta era o da abdicação da individualidade, o que era fácil porque não tinham tido oportunidade de a desenvolver. Era tão incipiente esse eu autónomo que quase não se dava por ele. Era preciso um esforço para o reconhecer como faz a filha mais nova de uma das patroas: “Só agora dava por si a questionar-se a respeito daquela mulher afinal dotada de individualidade e de intimidade.” Isto acontecia porque criada não era uma profissão. Era uma condição. Permeava toda a existência da mulher. Irrompia pela sua intimidade, por todas as facetas da sua vida. Ser criada era como ser enviada para um convento em que se renunciava às aspirações e aos sonhos e se vivia para sempre num estado de menoridade intelectual e cívica. Lê-se a certa altura sobre a mãe, Maria do Carmo, e o filho: “só os dois sabiam como o mundo é injusto quando não temos poder, quando os outros nos tratam com arrogância e querem tomar as decisões por nós, como sempre sucede às mulheres e aos filhos mais novos.”
Como sempre sucede às mulheres. Como sempre sucedia a estas mulheres. Eternas crianças. E não é possível desligar esse estatuto das privações materiais, porque as duas, privação material e inanição espiritual, andavam a par. As condições materiais são a base para as condições de uma outra vida, a interior, sendo esta fundamental para que a vida não se cinja precisamente às condições materiais, à superfície, aos objetos, às coisas. Só uma vez satisfeitas essas necessidades é possível o desenvolvimento pleno do espírito, a problematização do eu – eu? O que sou eu? O que quero? O que é ser eu? O que há para lá de um animal que respira e come e defeca e dá à luz e serve os outros? O que é ser esta pessoa? Onde está o meu silêncio? A solidão voluntária que não me ensinaram a aproveitar? Onde está a minha solidão, procurada, ansiada, a ilha deserta onde me encontro comigo?
Uma das criadas mais célebres da literatura portuguesa é a Juliana, de O Primo Basílio. Sim, tem uma vida interior, embora povoada de invejas e ressentimentos. Imagina-se patroa, com dinheiro, a mandar em alguém, a ter quem a servisse. E, entretanto, servia: “Fazia no entanto o seu serviço, ninguém tinha nada que lhe dizer. O olho aberto sempre e o ouvido à escuta, já se vê! E como perdera a esperança de se estabelecer, não se sujeitava ao rigor de economizar: por isso ia-se consolando com algumas pinguinhas, de vez em quando; e satisfazia o seu vício – trazer o pé catita. O pé era o seu orgulho, a sua mania, a sua despesa. Tinha-o bonito e pequenino.” Negando os desejos do corpo, sufocando-os, concentrava-os todos no culto do pé, no luxo da botina. Esse luxo que sinaliza a individualidade de Juliana, a sua aspiração, o seu consolo, é o que falta a Maria do Carmo. Tudo nela desemboca no sacrifício, no serviço em prol dos outros, que, para piorar, não é reconhecido nem pelos filhos: “Aos dezanove anos, como podia ele ignorar o esforço que Carmo fazia para sobreviver a cada dia, para manter em movimento as engrenagens da vida?”
Manter em movimento as engrenagens da vida, esse labor perpétuo, invisível e menosprezado, é o desígnio de Maria do Carmo. Falta-lhe o espaço mental para cultivar o supérfluo e isso tanto deriva das necessidades materiais como da privação espiritual que delas decorre. Naquele discurso de Virginia Woolf que mencionei há pouco, a escritora contava a história do primeiro dinheiro que ganhou com a escrita, uma história para ilustrar o quão distante estava das lutas e das dificuldades das mulheres a quem se dirigia. Recebeu uma libra, dez shillings e seis pences. E o que fez com esse dinheiro? “Em vez de empregar aquela soma em pão e manteiga, renda, sapatos e meias, ou contas do talho, eu comprei um gato – um gato bonito, um gato persa, que logo me envolveu em desagradáveis discussões com os meus vizinhos.”
Comprar um gato com o primeiro salário é sinal de que não há necessidades básicas a suprir e que, mais importante, há uma vida interior a comandar as escolhas. Maria do Carmo não tem escolha e vai ganhando consciência dessa falta de vida interior que a torna invisível aos olhos dos outros: “Lamentou que todos lhe fizessem mil e uma exigências, mas também que a ignorassem, como se ela não existisse.” Pergunta-se, perante a fúria do filho que a acusa de não perceber nada: “E a ela, quem a percebia?” Quando a amiga a elogia por finalmente pensar nela própria, vem a culpa. Quando finalmente ganha consciência de si, desenvolve a sua individualidade, questiona a vida e a forma como os outros a veem, já os anos de obediência, de cativeiro, de serviço moldaram os seus sentimentos com o barro da culpa: “Querem lá saber do que se passa comigo. Querem lá saber das coisas más, das coisas sujas. Das coisas que eu não posso contar. Mandam, pagam e acham que já está. Mas realmente nem sequer têm culpa. A culpa é minha, que ainda aqui estou. É minha, que não aproveito a porta entreaberta”.
A serva culpa-se pela sua servidão. Sente-se culpada por fazer o que toda a vida foi programada para fazer, obedecer, baixar a cabeça: “O mundo bem te pode encher de porrada, que tu só sabes baixar a cabeça e pedir desculpa”, diz-lhe o filho. Como todos os escravos, como todos os servos, Carmo não sabe se deseja mais a liberdade ou se a teme. Chega a pensar se não teria sido melhor obedecer e resignar-se aos primeiros patrões. A liberdade, tão desejada, assusta.
Porém, há dois momentos no livro em que Maria do Carmo experimenta a liberdade, dois lampejos de vida liberta dos grilhões do servir os outros, de lavrar a terra dos outros. No primeiro, ainda muito jovem, Maria do Carmo foge da aldeia e da patroa que para lá regressara e vem para a cidade sem avisar ninguém e sem saber o que a espera. Sofre com o frio, come pão duro, vagueia pelas ruas, dorme ao relento, acorda rodeada de gatos, “que sempre lhe pareciam hostis e traiçoeiros”. Mas essas são as dores de se ser livre. Num segundo momento, a viver numa terra estrangeira, como sempre viveu, pega na bicicleta do filho e pedala pelos passeios e através do tempo, até à infância na aldeia, passando pela rua de Lisboa onde moravam os antigos patrões e, com medo de cair se tiver de parar, imagina-se a pedalar mais, para sempre, rua após rua, mantendo em funcionamento a engrenagem da vida, a engrenagem das ilusões.
É verdade. São sempre as mulheres que mantêm as coisas a funcionar, como se lê a meio do livro: “os homens sempre têm as mulheres para manter as coisas a funcionar, para pôr a comida na mesa e para lavar a roupa. E uma mulher? Uma mulher nem isso tem, uma mulher não tem nada, nada.” Mas não ter nada, como também canta Bob Dylan, é não ter nada a perder. Não ter nada é também não ter medo, que talvez seja a forma mais pura de liberdade. E quase no final do livro lemos que Maria do Carmo já “não tinha medo.” Pode ser que na vida que acontece às personagens depois de fecharmos um livro, Maria do Carmo, sem nada e sem medo, use o dinheiro do último salário para comprar um bonito gato persa, um gato que não seja hostil nem traiçoeiro, um gato que seja só dela.
Lisboa, 6 de março de 2024»
Canta Bob Dylan em “Gotta Serve Somebody” que todos nós, por mais poderosos que sejamos, temos de servir alguém ou alguma coisa, que por mais livres que nos julguemos pagamos sempre o preço dessa suposta liberdade servindo alguém ou alguma coisa. Somos sempre servos, escravos. É esse o sentido etimológico, original, de servir – servidão, escravidão. Haverá dignidade na palavra, no verbo tal como o utilizamos hoje – servir o outro – na ideia de serviço – como em serviço público – e até de uma expressão corriqueira – lindo serviço – desapareceram os vestígios dessa história de sujeição e privação da liberdade. Na vida narrada de Maria do Carmo, esse sentido original é recuperado. Ela serve porque não tem escolha, não pode escolher não servir. Contenta-se com pouco porque, como diz uma das patroas, “quanto menos escolha uma pessoa tem, mais facilmente se contenta.”
Bem triste é o contentamento de quem com pouco se contenta por não ter escolhas. É isso que a patroa não diz, é esse contentamento triste que é indizível. E é invisível aquele que o sente. O invisível não é necessariamente aquele que não faz nada. A espécie mais desafortunada de invisíveis são aqueles que estão no centro da vida dos outros mas que, por não terem voz, nem sequer a voz que lhes permita dar nome à tristeza, por não terem escolha, nem sequer a escolha triste de servir, deixam de ser vistos, são fantasmas a organizar as vidas alheias enquanto se escondem à vista de toda a gente. Outra patroa diz a Maria do Carmo: “Que indelicadeza maçá-la com as minhas lamúrias. Conte-me coisas sobre si, Carmo. É tão reservada. A sua vida é um mistério.” Mas Maria do Carmo não é reservada. O que lhe faltam são as palavras para se pensar. A sua vida é um mistério para os outros, que nunca a veem verdadeiramente, mas é, acima de tudo, um mistério para si mesma.
Estas mulheres que, tal como Carmo, vieram da província, das aldeias, para servir as famílias ricas da cidade, muitas ainda crianças, que nada conheciam do mundo, pobres e iletradas, não eram invisíveis apenas aos olhos dos outros, eram invisíveis para si mesmas. Os desejos – o que é desejar quando só se aprendeu o verbo servir? – não só lhes estavam interditos como elas não eram sequer capazes de os conceber, quanto mais verbalizar. Havia toda uma gramática interior, do eu, do ser, que lhes era inacessível. Não tinham sonhos e, pior, não tinham palavras, conceitos, para os descrever se os tivessem. Eram duplamente estrangeiras: viviam na terra dos outros, pelos quais se sacrificavam, e exiladas de si mesmas.
Nunca poderiam reclamar um quarto que fosse só delas porque antes do quarto era necessário existir um eu capaz de o reclamar, capaz de pensar o quarto e o indivíduo que dele se apropria para se exprimir. O quarto que ocupavam em casa dos patrões não era delas, não era extensão física da sua personalidade, era apenas a divisão onde se arrumava a criada. Era um estado anterior ao de que falava Virginia Woolf num discurso proferido para uma organização feminina. Nesse discurso, a escritora afirmava que ganhar o seu próprio dinheiro, conquistar o seu espaço, o seu quarto, eram os primeiros passos da verdadeira revolução que se seguiria para as mulheres: “o quarto já é vosso, mas ainda está vazio. Ele tem de ser mobilado; tem de ser decorado, tem de ser repartido. Como irão vocês mobilá-lo, como irão vocês decorá-lo? Com quem vão dividi-lo, e em que termos?” Tudo isso estava longe do alcance de Maria do Carmo e de mulheres da sua condição.
O que determinava a relação entre patrões e criadas era a dependência extrema e a obediência que a ela vinha acoplada. Mesmo quando não era expressamente exigida, era esperada. A boa criada era obediente, servil. Não era refinada, a educação não lhe permitia chegar a tanto, mas cumpria. Não era insolente, não tinha desejos próprios que colidissem com os seus deveres, não reclamava. Apagava-se. E a história de Maria do Carmo é a história do apagamento, do autoapagamento, desse exército silencioso de mulheres que invisivelmente sustentavam a sociedade, a família, a sua e a dos outros, e faziam-no com o sacrifício de arrumarem os seus desejos e ambições para que estes não se intrometessem nas suas tarefas, para que não as atrapalhassem, para que os patrões nunca vissem nelas mais do que uma criada, um utensílio doméstico, um robô de cozinha, de quarto, de sala, da casa toda. Qualquer tentativa de rasgar esse véu de invisibilidade era geradora de conflito. Se já a tinham salvado da miséria o que mais se podia pedir aos patrões?
O preço a pagar pela fuga à pobreza mais abjeta era o da abdicação da individualidade, o que era fácil porque não tinham tido oportunidade de a desenvolver. Era tão incipiente esse eu autónomo que quase não se dava por ele. Era preciso um esforço para o reconhecer como faz a filha mais nova de uma das patroas: “Só agora dava por si a questionar-se a respeito daquela mulher afinal dotada de individualidade e de intimidade.” Isto acontecia porque criada não era uma profissão. Era uma condição. Permeava toda a existência da mulher. Irrompia pela sua intimidade, por todas as facetas da sua vida. Ser criada era como ser enviada para um convento em que se renunciava às aspirações e aos sonhos e se vivia para sempre num estado de menoridade intelectual e cívica. Lê-se a certa altura sobre a mãe, Maria do Carmo, e o filho: “só os dois sabiam como o mundo é injusto quando não temos poder, quando os outros nos tratam com arrogância e querem tomar as decisões por nós, como sempre sucede às mulheres e aos filhos mais novos.”
Como sempre sucede às mulheres. Como sempre sucedia a estas mulheres. Eternas crianças. E não é possível desligar esse estatuto das privações materiais, porque as duas, privação material e inanição espiritual, andavam a par. As condições materiais são a base para as condições de uma outra vida, a interior, sendo esta fundamental para que a vida não se cinja precisamente às condições materiais, à superfície, aos objetos, às coisas. Só uma vez satisfeitas essas necessidades é possível o desenvolvimento pleno do espírito, a problematização do eu – eu? O que sou eu? O que quero? O que é ser eu? O que há para lá de um animal que respira e come e defeca e dá à luz e serve os outros? O que é ser esta pessoa? Onde está o meu silêncio? A solidão voluntária que não me ensinaram a aproveitar? Onde está a minha solidão, procurada, ansiada, a ilha deserta onde me encontro comigo?
Uma das criadas mais célebres da literatura portuguesa é a Juliana, de O Primo Basílio. Sim, tem uma vida interior, embora povoada de invejas e ressentimentos. Imagina-se patroa, com dinheiro, a mandar em alguém, a ter quem a servisse. E, entretanto, servia: “Fazia no entanto o seu serviço, ninguém tinha nada que lhe dizer. O olho aberto sempre e o ouvido à escuta, já se vê! E como perdera a esperança de se estabelecer, não se sujeitava ao rigor de economizar: por isso ia-se consolando com algumas pinguinhas, de vez em quando; e satisfazia o seu vício – trazer o pé catita. O pé era o seu orgulho, a sua mania, a sua despesa. Tinha-o bonito e pequenino.” Negando os desejos do corpo, sufocando-os, concentrava-os todos no culto do pé, no luxo da botina. Esse luxo que sinaliza a individualidade de Juliana, a sua aspiração, o seu consolo, é o que falta a Maria do Carmo. Tudo nela desemboca no sacrifício, no serviço em prol dos outros, que, para piorar, não é reconhecido nem pelos filhos: “Aos dezanove anos, como podia ele ignorar o esforço que Carmo fazia para sobreviver a cada dia, para manter em movimento as engrenagens da vida?”
Manter em movimento as engrenagens da vida, esse labor perpétuo, invisível e menosprezado, é o desígnio de Maria do Carmo. Falta-lhe o espaço mental para cultivar o supérfluo e isso tanto deriva das necessidades materiais como da privação espiritual que delas decorre. Naquele discurso de Virginia Woolf que mencionei há pouco, a escritora contava a história do primeiro dinheiro que ganhou com a escrita, uma história para ilustrar o quão distante estava das lutas e das dificuldades das mulheres a quem se dirigia. Recebeu uma libra, dez shillings e seis pences. E o que fez com esse dinheiro? “Em vez de empregar aquela soma em pão e manteiga, renda, sapatos e meias, ou contas do talho, eu comprei um gato – um gato bonito, um gato persa, que logo me envolveu em desagradáveis discussões com os meus vizinhos.”
Comprar um gato com o primeiro salário é sinal de que não há necessidades básicas a suprir e que, mais importante, há uma vida interior a comandar as escolhas. Maria do Carmo não tem escolha e vai ganhando consciência dessa falta de vida interior que a torna invisível aos olhos dos outros: “Lamentou que todos lhe fizessem mil e uma exigências, mas também que a ignorassem, como se ela não existisse.” Pergunta-se, perante a fúria do filho que a acusa de não perceber nada: “E a ela, quem a percebia?” Quando a amiga a elogia por finalmente pensar nela própria, vem a culpa. Quando finalmente ganha consciência de si, desenvolve a sua individualidade, questiona a vida e a forma como os outros a veem, já os anos de obediência, de cativeiro, de serviço moldaram os seus sentimentos com o barro da culpa: “Querem lá saber do que se passa comigo. Querem lá saber das coisas más, das coisas sujas. Das coisas que eu não posso contar. Mandam, pagam e acham que já está. Mas realmente nem sequer têm culpa. A culpa é minha, que ainda aqui estou. É minha, que não aproveito a porta entreaberta”.
A serva culpa-se pela sua servidão. Sente-se culpada por fazer o que toda a vida foi programada para fazer, obedecer, baixar a cabeça: “O mundo bem te pode encher de porrada, que tu só sabes baixar a cabeça e pedir desculpa”, diz-lhe o filho. Como todos os escravos, como todos os servos, Carmo não sabe se deseja mais a liberdade ou se a teme. Chega a pensar se não teria sido melhor obedecer e resignar-se aos primeiros patrões. A liberdade, tão desejada, assusta.
Porém, há dois momentos no livro em que Maria do Carmo experimenta a liberdade, dois lampejos de vida liberta dos grilhões do servir os outros, de lavrar a terra dos outros. No primeiro, ainda muito jovem, Maria do Carmo foge da aldeia e da patroa que para lá regressara e vem para a cidade sem avisar ninguém e sem saber o que a espera. Sofre com o frio, come pão duro, vagueia pelas ruas, dorme ao relento, acorda rodeada de gatos, “que sempre lhe pareciam hostis e traiçoeiros”. Mas essas são as dores de se ser livre. Num segundo momento, a viver numa terra estrangeira, como sempre viveu, pega na bicicleta do filho e pedala pelos passeios e através do tempo, até à infância na aldeia, passando pela rua de Lisboa onde moravam os antigos patrões e, com medo de cair se tiver de parar, imagina-se a pedalar mais, para sempre, rua após rua, mantendo em funcionamento a engrenagem da vida, a engrenagem das ilusões.
É verdade. São sempre as mulheres que mantêm as coisas a funcionar, como se lê a meio do livro: “os homens sempre têm as mulheres para manter as coisas a funcionar, para pôr a comida na mesa e para lavar a roupa. E uma mulher? Uma mulher nem isso tem, uma mulher não tem nada, nada.” Mas não ter nada, como também canta Bob Dylan, é não ter nada a perder. Não ter nada é também não ter medo, que talvez seja a forma mais pura de liberdade. E quase no final do livro lemos que Maria do Carmo já “não tinha medo.” Pode ser que na vida que acontece às personagens depois de fecharmos um livro, Maria do Carmo, sem nada e sem medo, use o dinheiro do último salário para comprar um bonito gato persa, um gato que não seja hostil nem traiçoeiro, um gato que seja só dela.
Lisboa, 6 de março de 2024»